Conceitos de texto e discurso Introdução aos Estudos da Língua Portuguesa II Profa. Sheila Vieira de Camargo Grillo Etimologia dos termos (CUNHA, A.G. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010. discur-sar, -ivo –o DISCORRER discorrer vb. ‘percorrer, atravessar’ ‘tratar, expor, analisar’ 1572. Do lat. Disccurrere, de currere // discursar XVI // discursivo 1813// discurso XVI. Do lat. Discursos –us, de discursum, supino de discurrere. Texto sm. ‘as próprias palavras de um autor, livro ou escrito’/ XIV texto XIV / Do lat. Textum –i ‘entrelaçamento, tecido’ ‘contextura (duma obra)’ Contexto sm. ‘conjunto, todo, reunião’ ‘encadeamento das ideias dum discurso’ 1813. Do fr. Contexte, deriv. do lat. Contextus – us // contextura XVIII. Do fr. Contexture. Texto e discurso em diferentes teorias • Linguística Textual • Análise de discurso de origem francesa • Teoria bakhtiniana Linguística Textual - LT • Texto e discurso são sinônimos • O conceito de texto é seu objeto de estudo • A LT opera com uma metodologia de investigação científica que privilegia as relações cotextuais de composição das sequências linguísticas dotadas de unidade semântica Conceito de texto sofre significativas alterações na história da disciplina (KOCH, I.G.V. Introdução à linguística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2006[2004]. • segunda metade da década de 1960 e a primeira da década de 1970 –uma unidade linguística superior à sentença formada por “uma sucessão de unidades lingüísticas constituída mediante uma concatenação pronominal ininterrupta.”(Koch, 2006, p. 4), ora como uma sequência coerente de enunciados Texto falado: Inquérito 343 – NURC/SP Documentadora mulher, informante 1 homem, informante 2 mulher Doc. bom... gostaríamos que vocês falassem a respeito da cidade e do comércio L1: Tem saído de carro ultimamente ... de carro? L2: (tenho) escola essas coisas... tenho... se bem que acho que conheço POuco a cidade né ... se a gente for comparar L1: -- já viu se tá gravando direito?— Doc.: -- tá ... já deixo no automático – L1: -- no automático não tem problema não né – L2: tenho saído sim ... em termos:... hoje por exemplo... de saí:: eh::...sabe...de sair por aí... descobrir lugares novos e tal acho que meu conhecimento de São Paulo é muito restrito se comparar com papai por eXEMplo L1: eu fui:::... quinta-feira ... não ... foi terça-feira à noite... eu fui lá no (Taidi) né...na Celso Furtado L2: ah:: L1: e passei ali em frente a::: faculdade de Letras... eu tava lembrando ... que eu ia muito lá quando eu tinha sete nove anos ... na casa da titia sabe... eh:: tá muito pior (a cidade) o aspecto dos prédios assim é bem mais sujo... tudo acinzentado né L2: Uh::.. poluição? L1: as ruas mais ou menos sujas ... ali perto da praça da Sé... da praça da Sé tudo esburacado... por causa do metrô né...(cheio de) e toda segunda à noite eu passo ali...do lado da faculdade sabe... L2: quando você vai pra::: Aliança né? ( ) • [ L1: é quando eu pego o carro... e:: também é horrível o aspecto... montoeira de concreto... sem nenhum::aspecto humano certo? Os prédios sem estilo arquitetônico... ou de estilo arquitetônico tudo desencontrado não tem não tem integração... L2: mas isso acho que não tem:: né? em::: lugar nenhum da cidade a não ser talvez ... •[ L1: me parece que... L2: em bairro em termos de visão:: L1: me parece que tá ah:: envelhecida a cidade né?... ahh:: muita construção ... antiga não tem muita construção nova. Texto como concatenação pronominal ininterrupta Cidade > Cidade > São Paulo > no (Taidi) né...na Celso Furtado > (a cidade) > prédios > prédios > as ruas > praça da Sé... da praça da Sé > o aspecto... montoeira de concreto > Os prédios > em::: lugar nenhum da cidade > em bairro > a cidade Coesão referencial: -referente é cidade -Todo/Geral > Partes/Específico -Repetições são elementos característicos do texto falado -A coerência é uma propriedade dos elementos da superfície textual Aspectos formadores do texto falado • Construção conjunta – dialogal – presença forte de dêiticos de 1a e 2a pessoa • Planejamento e formulação quase simultâneos: hesitações, alogamento de vogais, pausas • Participação de elementos extra-linguísticos: olhar, gestões, situação imediata • Importância de elementos suprasegmentais: ênfase, entonação Virada pragmática - segunda metade dos anos 1970 - virada pragmática unidade básica de comunicação ou interação humana, compreendendo o contexto enquanto situação comunicativa. O contexto situacional imediato é constitutivo do texto A: O telefone! B: Estou no banho! A: Certo. (KOCH/TRAVAGLIA, A coerência textual. São Paulo: Contexto,1992, p. 24) O que faz dos três turnos um texto? • A possibilidade de fazerem sentido em uma situação socio-histórica facilmente reconhecível e reconstruível pelos interlocutores do diálogo e por nós leitores • Os elementos linguísticos coesivos estão ausentes e a continuidade é recuperada pela remissão à situação Virada cognitivista - década de 1980, a compreensão de que as ações em geral acompanham-se de processos de ordem cognitiva motivou uma nova concepção de texto como “resultado de processos mentais” (Koch, 2006, p. 21), isto é, o texto é resultado da ativação pelos parceiros da comunicação de saberes acumulados na memória (linguístico, enciclopédico, cognitivos, sociointeracional etc.) quanto aos diversos tipos de atividades da vida social. • Pressuposto da perspectiva cognitivista: o texto não diz tudo que é necessário para a sua compreensão e portanto o interlocutor é ativo na construção dos sentidos textuais • Metáfora: a superfície linguística é a ponta do iceberg Conhecimentos necessários ao processamento textual • Conhecimento linguístico • Conhecimento enciclopédico • Conhecimento sociointeracional: - ilocutivo (tipos de objetivos ou atos de fala) - comunicacional (informatividade, variante linguística, tipos de textos) - metacomunicativo - modelos textuais/superestrutural (gêneros) Perspectiva sociocognitivointeracionista • perspectiva sociocognitiva-interacionista - integração da virada pragmática com a perspectiva cognitivista o texto é o próprio lugar da interação e os interlocutores, sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e por ele são construídos. Análise de Discurso francesa • Duas concepções de sujeito: 1) Pechêux postula uma teoria não-subjetivista da subjetividade, uma vez que o indivíduo é interpelado em sujeito de seu discurso por sua identificação à formação discursiva que o domina. 2) Charaudeau, por sua vez, opera com um conceito de sujeito que ao mesmo tempo é coagido pelo contrato de comunicação e se individualiza por meio de estratégias. Três momentos dos processos de produção do discurso: 1) Sua constituição, a partir da memória do dizer, fazendo intervir o contexto histórico-ideológico mais amplo; 2) Sua formulação, em condições de produção e circunstâncias de enunciação específicas e 3) Sua circulação que se dá em certa conjuntura e segundo certa condições. (ORLANDI, 2008, p. 9) Formulação • Gesto de interpretação – junção, articulação entre a memória discursiva (filiações de sentidos, formação discursiva) e suas marcas no texto (o sujeito diz o que diz, é o autor do texto) • Sujeito – determinado pela exterioridade ( sujeito a ) e determina o que diz ( sujeito de ) Discurso O discurso é da ordem da constituição, como dimensão vertical em que o interdiscurso ou a memória discursiva determina o intradiscurso. O discurso é “efeito de sentidos entre locutores” (2008, p. 63) que se realiza na inscrição da língua na história, regida pelo mecanismo ideológico de filiação a redes de memória. Segundo Orlandi, o “discurso é um processo contínuo que não se esgota em uma situação particular. Outras coisas foram ditas antes e outras serão ditas depois.” (2008, p. 14). Texto O texto é da ordem da formulação em sua materialidade como historicidade significante e significada, é a manifestação concreta do discurso e parte de um processo pelo qual se tem acesso indireto à discursividade. O texto é o lugar onde aflora a discursividade, lugar de tensão entre o mesmo e o diferente, ou seja, de variação do/no dizer. Interpretação na AD • Sujeito, que interpreta, lê a partir de sua posição sujeito • Sujeito leitor crítico lê refletindo sobre sua posição sujeito (e a dos outros), compreende • Sujeito analista do discurso lê mediado por um dispositivo teórico – desnaturalização e desautomatização da relação com a língua, consigo mesmo e com a história Exemplo de texto falado • “Mãe, não dá para correr e comer. Depois ele descansa um pouquinho e ele come.” - Circunstância da enunciação: na rua mãe e filha e um menino adiante com amoras na mão sem a permissão para guardá-las no bolso corre até o pai - Contexto sócio-histórico: familiares, obediência etc.) - Memória discursiva: o princípio da autoridade no conjunto das múltiplas formulações - Modo de circulação: situação de conversa de rua regras de família, relações Sujeito/autor • O discurso tem sujeito, isto é, as diferentes posições resultantes da inscrição dos sujeitos em diferentes regiões de sentido (formações discursivas). Para Orlandi (2008), a forma-sujeito (posição na relação) da contemporaneidade é compelida à responsabilidade e liberdade que são tomados como efeitos de nossa estrutura jurídica de sujeitos com direitos e deveres. • O texto tem autor que “se representa em sua origem, com sua unidade, lhe propiciando coerência, nãocontradição, conferindo-lhe progressão e finalidade”. (ORLANDI, 2008, p. 112). Esse trabalho do sujeito é, para a AD, uma relação imaginária com o sentido chamada função-autor. Divulgação científica (Orlandi) • a divulgação científica: discurso de textualização jornalística do discurso científico em um jogo complexo de interpretação. • O discurso da divulgação científica parte de um texto que é da ordem do discurso científico e, pela textualização jornalística, organiza os sentidos de modo a manter um efeito-ciência. Nesse processo, cria-se o efeito de “exterioridade” da ciência que será vista como afetando coisas a saber no cotidiano da vida social. • O jornalista científico ocupa uma posição-sujeito específica da transferência pelo qual algo que significava de um modo, desliza para produzir efeitos de sentidos diferentes. Ciência Hoje 1982 Certamente, houve um crescimento industrial muito rápido em Cubatão. Entretanto, durante a fase principal de implantação de suas indústrias – realizada em apenas duas décadas – não houve qualquer previsão dos impactos sociais relacionados direta ou indiretamente com a industrialização. Partiu-se, aparentemente, do velho pressuposto de que onde haja mercado de trabalho industrial, em países subdesenvolvidos, para lá se deslocam apreciáveis parcelas de populações carentes à procura de empregos. Mais uma vez, cuidou-se da viabilidade técnica e econômica das empresas de um modo frio, calculista e incompleto, nada se fazendo para receber e alojar o operariado industrial. (Aziz Ab’Saber, CH, n. 1, 1982, p. 20) Textualização • Textualização - material semiótico fotografia, tipografia e linguagem verbal híbrido: • Textualização jornalística – fotografia • Efeito de exterioridade da ciência “Cubatão: o que dizem os cientistas” • Função-autor: divulgador Discurso • Formação ideológica político-econômica – processo de industrialização do Brasil nos anos 1960-1970 • 2 FD em conflito: 1) FD capitalista em países subdesenvolvidos responsável pela situação (foto, enunciado do cientista) 2) FD contestadora do modelo econômico – defesa dos oprimidos – Ciência/SBPC Teoria bakhtiniana • “O problema do texto na lingüística, na filologia e em outras ciências humanas” (Estética da criação verbal, 2003[1959-1961]) • Texto: objeto primeiro de todas as ciências humanas, diferenciando-as das ciências naturais Concepçõ semióticoideológica de texto • Texto: “conjunto coerente de signos, a ciência das artes (a musicologia, a teoria e a história das artes plásticas” opera com textos (obras de arte)” (BAKHTIN, 2003[1959-61], p.305, grifos meus) - Signo ideológico: lugar da luta para definição dos sentidos/significados, os signos adquirem seus significados nas esferas ideológicas (religião, literatura, ciência, publicidade etc.) Texto: repetível/irrepetível • Texto = enunciado – realizado historicamente, irrepetível • Texto = por trás está o sistema da linguagem/língua (iazyk), elementos repetíveis Texto = enunciado - inclusão “na comunicação discursiva de dado campo” (idem, p. 309), onde entra em relações dialógicas com outros textos - “o enunciado é um todo individual singular e historicamente único” (idem, p. 334) - natureza extralinguística, os elementos linguísticos são um meio para realização do enunciado. • Objeto das ciências humanas: o homem inserido na sociedade, cujas ações físicas só podem ser interpretadas em sua expressão semiótica ou em signos • O texto tem autor: “Encontramos autor (percebemos, compreendemos, sentimos, temos a sensação dele) em qualquer obra de arte. Por exemplo, em uma obra de pintura sempre sentimos o seu autor (o pintor), contudo nunca o vemos da maneira como vemos as imagens por ele representadas” (BAKHTIN, 2003 [1959-61], p. 314) Metalinguística: relações dialógicas (=discurso) • “As relações dialógicas entre os enunciados, que atravessam por dentro também enunciados isolados, pertencem à metalinguística.” (idem, p. 320) • as relações dialógicas (concordância, polêmica, contradição, discussão etc.) são de natureza semântica • ocorrem entre enunciados integrais • são sustentadas por sujeitos-autores dos enunciados • a compreensão do enunciado envolve responsividade e, consequentemente, juízo de valor (verdadeiro, falso, belo, justo etc.). Texto: objeto da linguística – elementos repetíveis • A linguística opera com texto mas não com obra (...) as relações puramente linguísticas (isto é, objeto da lingüística) são relações do signo com o signo e com o signos no âmbito do sistema da língua ou do texto (isto é, as relações sistêmicas ou lineares entre os signos).”(idem, p. 330). • A linguística conhece apenas o sistema da língua e o texto. (2003[1970-71], p. 382) “Gabriela, cravo e canela” (Jorge Amado, 1958) • O pássaro se batia contra as grades, há quanto dias estaria preso? Muitos não eram com certeza, não dera tempo de acostumar-se. Quem se acostuma com viver preso? Gostava dos bichos, tomavalhes amizade. Gatos, cachorros, mesmo galinhas. Tivera um papagaio na roça, sabia falar. Morrera de fome, antes do tio. Passarinhos preso em gaiola não quisera jamais. Dava-lhe pena. Só não dissera pra não ofender seu Nacib. Pensara lhe dar um presente, companhia pra casa, sofrê cantador. Canto tão triste, seu Nacib tão triste! Não queria ofendê-lo, tomaria cuidado. Não queria magoá-lo, diria que o pássaro tinha fugido. • Foi pro quintal, abriu a gaiola em frente à goiabeira. O gato dormia. Voou o sofrê, num galho pousou, para ela cantou. Que trinado mais claro e mais alegre! Gabriela sorriu. O gato acordou. (Jorge Amado. Gabriela, cravo e canela. p. 227) Período composto por subordinação sem conjunção Muitos não eram com certeza, não dera tempo de acostumar-se. Muitos não eram com certeza, pois não dera tempo de acostumarse. Passarinhos preso em gaiola não quisera jamais. Dava-lhe pena Passarinhos preso em gaiola não quisera jamais, porque dava-lhe pena. Não queria ofendê-lo, tomaria cuidado. Não queria magoá-lo, diria que o pássaro tinha fugido. Como não queria ofendê-lo, tomaria cuidado. Porque não queria magoá-lo, diria que o pássaro tinha fugido. Referências AMADO, J. Gabriela, cravo e canela. São Paulo: Companhia das Letra, 2008[1958]. BAKHTIN, M.M. 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