Uma griot brasileira: Conceição Evaristo e suas histórias Cláudia Maria Fernandes Corrêa Doutoranda do Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Orientador: Prof. Doutor Lynn Mário T. M. de Souza Justificativa A apresentação a seguir serviu como seminário para a disciplina ministrada pela Profa. Dra. Simone Caputo Gomes no 1º.Semestre de 2010 (FLC6088-Literatura em Relação com Outras Artes: Brasil, Angola, Cabo Verde e Moçambique) na Universidade de São Paulo. Nosso seminário analisa o poema Vozes-mulheres (1990) da brasileira Conceição Evaristo, centrando nossa atenção na diáspora africana para as Américas e suas consequências para as mulheres negras que vieram para o Brasil. Para tanto, partimos da música Coisa da antiga (interpretada por Clara Nunes) e do poema Navio Negreiro de Castro Alves como narrativas que historizam tanto a chegada às Américas quanto o estabelecimento dessas populações. Assim como Castro Alves e Clara Nunes, Evaristo também transmite às novas gerações a história dos africanos e afrodescendentes porém, a autora se detém nas histórias das mulheres negras e nas suas lutas, provações mas, também na esperança contida nas vozes de tantas mulheres que aqui chegaram, resistiram, e sobreviveram para contar. Aqui estão algumas histórias de mulheres negras, tecidas pelas palavras de uma griot brasileira: Conceição Evaristo. Coisa da antiga Compositor: Wilson Moreira / Nei Lopes Intérprete: Clara Nunes Na tina, vovó lavou (vovó lavou) A roupa que mamãe vestiu quando foi batizada E mamãe quando era menina teve que passar (teve que passar) Muita fumaça e calor no ferro de engomar Hoje mamãe me falou de vovó (só de vovó) Disse que no tempo dela era bem melhor Mesmo agachada na tina e soprando no ferro de carvão Tinha-se mais amizade e mais consideração Disse que naquele tempo a palavra de um mero cidadão Valia mais que hoje em dia, uma nota de milhão Disse afinal que o que é de verdade ninguém mais hoje liga Isso é coisa da antiga Hoje o olhar de mamãe marejou (só marejou) Quando se lembrou do velho,o meu bisavô Disse que ele foi escravo e não se entregou à escravidão Sempre vivia fugindo e arrumando confusão Disse pra mim que essa história do meu bisavô negro fujão Devia servir de exemplo à "esses nego pai-João" Disse afinal que o que é de verdade ninguém mais hoje liga Isso é coisa da antiga (FONTE: Navio Negreiro Castro Alves III Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador! Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! V Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu nas vagas, Como um íris no pélago profundo! Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares! Maria da Conceição Evaristo Nasceu em Belo Horizonte em 1946 Mudou-se para o Rio de Janeiro onde fez Mestrado na PUC/RJ Publicou em 1990 no 13 Volume de Cadernos Negros o poema Vozesmulheres Conceição Evaristo surgiu no cenário literário em 1990 nos Cadernos Negros, publicação dedicada à produção literária afrodescendente. No periódico de número 13 com quatro poemas, dentre eles, Vozes-mulheres que será o objeto deste trabalho. Desde então, sua produção nunca parou. Militante, ativista, feminista, professora, ensaísta, Evaristo sempre deixou registrada sua voz e posicionamentos sobre diversos assuntos tanto em sua obra poética quanto em seus contos. Evaristo adotou direta ou indiretamente, a luta escrita como locus de uma enunciação por vezes singular, outras, coletiva para deixar registradas suas emoções, seus sentimentos, suas frustrações, as histórias de seus ancestrais e, para além, deixar registrada sua indignação ante a situação de degradação humana. Obras de Conceição Evaristo Poemas da recordação e outros movimentos (2008); Becos da Memória (2006); Ponciá Vicêncio (2003). Em entrevista, Evaristo definiu-se da seguinte maneira... "Espera-se que a mulher negra seja capaz de desempenhar determinadas funções, como cozinhar muito bem, dançar, cantar, mas não escrever. Às vezes me perguntam: ‘você canta? E eu digo: ‘não canto nem danço’ [...] E falou do seu lugar no mundo literário brasileiro... “Para um negro desconhecido tornar-se escritor, há todas essas dificuldades. Para uma mulher negra, pode multiplicar isso por mil, pois você vai assumir uma função que a sociedade não está acostumada a esperar. A sociedade tem uma expectativa que nunca é intelectual.” A escravização Para nosso trabalho, elegemos a escravização como “evento-limite”(SELIGMANN, 2000) que desestrutura as possibilidades de progresso para a África e que, no Brasil, serviu como mote para o racismo, preconceito e consequente apagamento da presença africana e afrodescendente na construção da nação brasileira. Em Vozes-mulheres, Evaristo retoma a escravização para revelar seus efeitos colaterais, em especial, para as mulheres negras brasileiras. No poema, Evaristo rememora a diáspora, a escravização e suas consequências, detendo-se nos seus efeitos para as mulheres africanas e afrodescendentes. A diáspora rompeu com toda a cadeia de significação, laços afetivos e culturais dos africanos e “transformou [...], reorganizou toda a reflexão sobre [...] a possibilidade da sua representação” (SELIGMANN, 200, p. 75). Evaristo historiza sua genealogia pela linhagem feminina, iniciando no momento da ruptura, ou seja, quando a bisavó foi enviada ao Brasil na diáspora. A rememoração No momento da rememoração, Evaristo assume a posição de transmissora da história, uma griot encarregada de não deixar que a história dessas mulheres seja apagada pelo esquecimento e também para “libertar-se de uma imagem do passado” que, por seu turno, “deve ser incorporado dentro de uma memória voltada agora também para o futuro – dentro de uma memória que possibilite a narração [...]” (SELIGMANN, 2000,p. 89). A partir da compreensão desse passado, é necessário buscar “novas formas de identificação fora do espaço nacional” (CORRÊA, 2009, p. 9); isto significa que é preciso (re)significar-se na tentativa de equilibrar o duplo que se forma após a ruptura com os laços identitários originais. Desse rompimento, surge a duplaconsciência que Du Bois (1994 [1903]) afirmou ser: A peculiar sensation [...] this sense of always looking at one’s self through the eyes of others, of measuring one’s soul by the tape of a word that looks on in an amused contempt and pity. One never feels his twoness […] two souls, two thoughts, two unreconciled strivings; two warring ideals in one dark body […] (p. 12) Portanto, podemos afirmar que a luta do sujeito diaspórico está sempre pautada na auto(re)definição: o que significa ser um negro na América? Todavia, no caso das mulheres, esse conflito identitário vai além: o que significa ser uma mulher e, além disso, ser negra no Brasil? Na tentativa de responder essa pergunta, Evaristo tece a história das mulheres de sua família que se torna um caso emblemático para as demais africanas que foram enviadas para o Brasil, iniciando com a conscientização das mulheres negras sobre o espaço que ocupam na estrutura social brasileira desde a sua chegada como escravizadas. Essa percepção surge da observação de suas antecessoras e da observação de sua própria condição de vida. A jornada rumo ao futuro tem início com um olhar que se volta ao passado para lançar luz às histórias de vida da bisavó, da avó, da mãe e do próprio sujeitopoético para, então, vislumbrar uma esperança para o futuro representado pela filha que após encerrar em si todas as vozes de suas antecessoras, acrescentará a sua própria voz, soltando um grito feminino libertador. Logo, o poema de Evaristo surge como um registro da presença feminina em uma multiplicidade de espaços sociais –no porão do navio, na casa-grande, nas cozinhas, na favela- transformando o espaço social em um espaço político e a fronteira entre esses espaços is essentially unstable and requires constant displacements and renegotiations between social agents […] every order is predicated on the exclusion of the other possibilities. It is in that sense that it can be called ‘political’ since it is the expression of a particular structure of power relations. Power is constitutive of the social because the social could not exist without the power relations through which it is given shape. (MOUFFE, 2007, p. 2) Então, ouçamos Evaristo. VOZES-MULHERES A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida. O espaço público é um campo de batalha onde forças e poderes antagônicos se encontram em relação desigual de forças. O embate existe e a luta é travada numa multiplicidade de esferas discursivas (MOUFFE, 2007) como ocorre na primeira estrofe do poema. O eco, uma reflexão da voz, aos ouvidos do dominador é um som é abafado e inaudível. O que chega a eles é uma mera reverberação, a reflexão da voz da bisavó e de tantas outras vozes de mulheres que não se pode distinguir umas das outras. O porão do navio e suas portas são a censura daquilo que não pode ser dito. Do tombadilho, o comerciante de escravos ouve apenas a reverberação. Esta censura imposta exclui “o dizível produzido pela intervenção de relações de forças nas circunstâncias de enunciação: não se pode dizer aquilo que [...] foi proibido” (ORLANDI, 2007, p. 105). Os lamentos são o símbolo da tríplice ruptura – a física, a linguística e a cultural- uma vez que não é possível dizer “eu sou” em um idioma desconhecido. Como afirmar “eu sou” em águas sem fronteiras? Restou à bisavó apenas (re)enraizar-se e obedecer aos senhores “donos de tudo”. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. Atrelado ao mercantilismo europeu e as teorias racialistas do século XIX, temos na escravização, a coisificação do ser humano, a destituição à humanidade e, principalmente no caso das mulheres, a objetificação e exposição à brutalidade e a imoralidade institucionalizada. O corpo das mulheres negras, contrário ao corpo das mulheres brancas, não serve para ser contemplado; pelo contrário, ele representa a desordem e a inferioridade. Com suas formas grandes e protuberantes, o corpo negro era visto como uma marca de degeneração e a fonte de toda corrupção e doença devido à sexualidade exacerbada (GILMAN, 1985). O olhar masculino branco e europeu fixa a mulher negra como um ser passivo, lascivo, subserviente, destinada apenas às atividades da esfera privado, incluindo servir sexualmente ao senhor branco. Assim, o corpo de grandes proporções da Vênus Hotentote (Saartjie "Sarah" Baartman (1789-1815)) no século XVIII, tornou-se o ícone da diferença do corpo das mulheres negras. A VÊNUS CANÔNICA Se por um lado a Vênus de Botticelli é estática, está sempre a olhar para o contexto sem no entanto, interagir com ele, por outro, a Vênus Hotentote está inserida num contexto humano o que significa que ela é real; porém, contrária à Vênus canônica, a Vênus Hotentote é uma construção social, desprovida de história, de memória, de identidade mas com uma função clara: servir. A VÊNUS HOTTENTOT: CARICATURA DO CORPO NEGRO O olhar masculino, branco e europeu fixa a mulher negra como um ser passivo, lascivo, subserviente, destinada apenas às atividades da esfera privado, incluindo servir sexualmente ao senhor branco. Assim, o corpo de grandes proporções da Vênus Hotentote (Saartjie "Sarah" Baartman (1789-1815)) no século XVIII, tornou-se o ícone da diferença do corpo das mulheres negras. O cenário era desalentador porque, além da violência física a que eram submetidas repetidas vezes pelos senhores, ainda havia a ira das esposas brancas traídas. Algumas vendiam as escravas; outras impingiam mais sofrimento às escravas. Embora o corpo não pertencesse ás mulheres negras, a resistência se fazia presente. Ainda que essas escravas, como a avó do sujeito-poético, tenham tido que mostrar obediência e realizar trabalhos domésticos do nascer ao pôr do sol, ao contar sua história para o sujeito-poético, dá-se a transmissão da cultura pela oralidade e a memória é passada adiante. Ao perpetuar a história, o discurso torna-se ação. Portanto, a narrativa enfatiza os momentos ou processos que articulam as diferenças culturais e criam o “entre-lugar” (BHABHA, 2005) onde as estratégias de subjetivação – singular ou coletiva- “[...] dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 2005, p. 20). A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. O poema continua voltando-se agora para a figura da mãe que trabalhava nas cozinhas e morava na favela que representa uma continuidade da escravização; a favela é a senzala contemporânea, lugar onde os negros egressos da escravização foram forçados a se estabelecer por não terem para onde ir. É o lugar do sofrimento, do abjeto, da pobreza. Todavia, Evaristo também mostra a resistência da mãe em seu papel informal: na lavação de roupa e na cozinha, a mãe transmite a história. Evaristo “documenta a experiência vivida como possibilidade de abrir caminhos novos” (DIAS, 1994, p. 374). A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A resistência está nos pequenos atos informais do cotidiano e, nesses atos, subjaz um propósito político. Da mesma forma que outras escritoras pós-coloniais e feministas, Evaristo caminha em direção ao futuro, mas com o olhar fixo no passado, dando visibilidade às mulheres em seus contextos históricos: “Essa presença do passado como referência para as demandas do presente confere à escrita dos afrodescendentes uma dimensão histórica e política específica” (DUARTE(a), 2006, p. 306). A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. Chegando ao presente, o sujeito-poético ecoa todas as injustiças sociais que ainda prevalecem. O grito libertário ainda não aconteceu. Falando com múltiplas vozes, o sujeito-poético insere-se num diálogo contestatório com o poder hegemônico dominante (HENDERSON, 1990). Ao final do poema, todas as vozes entrarão em uníssono através da filha que representa o futuro. As histórias resgatadas desde a saída da áfrica até a denúncia da situação de injustiça sairão pelo grito da filha. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. o ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade. Mouffe (2007) afirma que toda ordem hegemônica é suscetível ao desafio das práticas contra-hegemônicas que tentaram desarticular a ordem vigente, instalando outra forma de hegemonia. Observamos que esse desafio é uma luta agonística (MOUFFE, 2007) que necessita confrontar e incomodar, sugerindo que os ouvintes mudem inclusive sua forma de ouvir e de ser (Hooks, 1989). Isso acontece quando o espaço público e o privado se encontram. Considerações Finais Conceição Evaristo busca construir uma identidade coletiva, fundindo simbolicamente as vozes de suas antecessoras. As palavras dessas mulheres separadas pelo mar, pelas senzalas, pelas favelas, mas unidas por um ideal comum, a justiça, se configuram como um ato de resistência, estabelecendo sua voz libertária para além do ato de apropriação da voz. Evaristo amplia essas vozes, caracterizada pela resistência (hooks, 1989), trazendo à tona a “necessidade histórica do testemunho” (DUARTE, 2006, p. 308); a necessidade de narrar para não esquecer “mediante um otimismo construtivo, que leva ao positivo, ao crescimento e à possibilidade de uma estruturação de uma sociedade mais justa” (SALGUEIRO, 2004, p. 65). Portanto, em meio às “hecatombes que sacodem o nosso cotidiano” (DUARTE(b), 2005, p. 17) encontramos uma mulher que conta histórias reais e que, assim como o poeta Manuel Alegre, ousa falar daqueles que não se calam perante às injustiças, ressoando em seus versos as palavras de Manuel Alegre: Há sempre alguém que resiste Há sempre alguém que diz não REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte : Ed. UFMG, 2005. CORRÊA, Cláudia Maria Fernandes. Ecos da solidão: uma autobiografia de Maya Angelou. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2009. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. “Novas Subjetividades na pesquisa Histórica Feminista: uma Hermenêutica das Diferenças”. Estudos Feministas. UFRJ/Ciec, 2º. Semestre, 1994, pp. 373-382. DUARTE(a), Eduardo de. O Bildungsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo. 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