MARA BILK DE ATHAYDE MITO, ARQUÉTIPOS E ESTEREÓTIPOS EM PONCIÁ VICÊNCIO DE CONCEIÇÃO EVARISTO CURITIBA 2015 MARA BILK DE ATHAYDE MITO, ARQUÉTIPOS E ESTEREÓTIPOS EM PONCIÁ VICÊNCIO DE CONCEIÇÃO EVARISTO Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do Grau de Mestre ao Curso de Mestrado em Teoria Literária do Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE. Orientadora: Profa. Dra. Mail Marques de Azevedo CURITIBA 2015 AGRADECIMENTOS Agradeço À minha orientadora, profa. Dra. Mail Marques de Azevedo, os apontamentos certeiros, o aprendizado que ganhei com suas orientações, a generosidade, segurança, disponibilidade e, sobretudo, a apresentação à literatura afro-brasileira, especialmente a Conceição Evaristo; Aos professores Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado e Dr. Edson Ribeiro da Silva, as orientações transmitidas por ocasião do exame de qualificação; Às professoras do mestrado, os conhecimentos transmitidos; Aos colegas do mestrado, o compartilhamento de dúvidas, alegrias e conquistas; Ao colega de mestrado Josiel, a amizade, apoio e sugestões. Dedico este trabalho a meu pai (in memoriam) e a minha mãe; A Maristela, Mário e Marcio; Ao Amilton. SUMÁRIO RESUMO ..................................................................................................................... vii ABSTRAT ................................................................................................................... viii INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9 1 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA ......................................................................... 19 1.1 ESCRITURA NEGRA FEMININA: DOS PRIMÓRDIOS AO SÉCULO XXI ............. 33 1.2 CONCEIÇÃO EVARISTO: ESCREVIVÊNCIA E VISÃO DE MUNDO .................... 41 1.2.1 Contradiscurso em prosa e verso ................................................................... 46 1.2.2 Ponciá Vicêncio ................................................................................................ 57 2 MITO E ARQUÉTIPOS ............................................................................................. 63 2.1 O HERÓI MODERNO ............................................................................................ 68 3 A TRAJETÓRIA CÍCLICA DO MONOMITO EM PONCIÁ VICÊNCIO ...................... 71 3.1 O MUNDO CONHECIDO ....................................................................................... 75 3.1.1 A estranheza com o próprio nome .................................................................. 79 3.1.2 A semelhança com Vô Vicêncio....................................................................... 82 3.1.3 A ausência do pai ............................................................................................. 84 3.2 O CAMINHO DE PROVAS .................................................................................... 87 3.2.1 Passagem pelo primeiro limiar ........................................................................ 88 3.2.2 A cidade estranha ............................................................................................. 91 3.2.3 Primeiro retorno ................................................................................................ 94 3.2.4 Silenciamento.................................................................................................... 97 3.3 O RETORNO ......................................................................................................... 102 3.3.1 A recusa do retorno .......................................................................................... 103 3.3.2 A fuga mágica ................................................................................................... 104 3.3.3 O resgate com auxílio externo: A herança de Vô Vicêncio ............................ 105 3.3.4 Liberdade para viver ......................................................................................... 109 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... 110 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 115 ANEXOS...................................................................................................................... 121 ESTUDOS ACADÊMICOS SOBRE O LIVRO PONCIÁ VICÊNCIO ............................. 121 BIBLIOGRAFIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO ............................................................. 126 ENTREVISTAS ............................................................................................................ 129 vi RESUMO Esta dissertação analisa a trajetória da personagem-título do romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, em paralelo à jornada do herói mitológico, que busca o conhecimento de si próprio e do mundo. O emprego da abordagem arquetípica para o estudo da personagem, e da sua ambientação física e espiritual, objetiva conduzir à compreensão do drama do negro retratado por Evaristo, como exemplo representativo da literatura afro-brasileira. Adapta-se para a análise a estrutura nuclear do monomito, a jornada exemplar do herói, separação-iniciaçãoretorno, proposta por Joseph Campbell, na obra seminal O herói de mil faces, complementada com a conceituação de mito de Mircea Eliade. Na análise da busca individual enfatiza-se o retorno às raízes e o resgate da memória ancestral, tema recorrente na literatura de escritores negros brasileiros, que visam a dignificar seu grupo étnico. Para o levantamento diacrônico da escritura negra no Brasil utilizam-se os trabalhos de Eduardo de Assis Duarte, Zilá Bernd, Domício Proença Filho, que balizam as pesquisas no campo. O suporte teórico para a questão de identidades diaspóricas provém de Frantz Fanon, Homi Bhabha, Stuart Hall e Paul Gilroy. Palavras-chave: Políticas da Subjetividade. Literatura Afro-brasileira. Conceição Evaristo. Monomito. Joseph Campbell. vii ABSTRACT This dissertation analyzes the transcendental journey of the title-character Ponciá Vicêncio, in Conceição Evaristo´s novel, as a parallel to the mythological adventure of the hero, in search of self-knowledge and wisdom. The archetypical approach for the study of the protagonist, as well as of her physical and spiritual ambiance, aims to reach an extensive comprehension of the plight of the Negro, the black woman´s particularly, as depicted by Evaristo in her exemplary text of African-Brazilian literature. Joseph Campbell´s structure of the nuclear unit of the monomyth ─ separation-initiation-return, in his seminal work The hero with a thousand faces ─ is adapted as analytical instrument of this study, complemented by Mircea Eliade´s conceptualization of myth. An initial diachronic survey of black writings in Brazil is based mainly on studies by leading researchers Eduardo de Assis Duarte, Zilá Bernd and Domício Proença Filho. Theoretical support for the issue of diasporic identities comes from Frantz Fanon, Homi Bhabha, Stuart Hall, and Paul Gilroy. Keywords: Políticas da Subjetividade. African-Brazilian Literature. Conceição Evaristo. Myth. Joseph Campbell. viii 9 INTRODUÇÃO É preciso comprometer a vida com a escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com a vida? Conceição Evaristo1 Maria da Conceição Evaristo de Brito (1946-) ocupa hoje lugar de destaque no cânone da literatura brasileira, consolidando sua reputação como artista do verso e da prosa por apresentar uma escrita que busca reconstruir a história do afrodescendente sob um olhar feminino e negro. Seus primeiros poemas, publicados na série nº 13 dos Cadernos Negros, em 1990, revelam ao mundo seu projeto literário e a intenção de dar voz às mulheres negras relegadas ao mutismo em uma sociedade que não tem interesse em ouvi-las. Seu poema “Vozes-Mulheres” reconstrói, no paralelismo das vozes que ecoam de uma geração para outra, a longa história de sofrimentos da mulher escrava. Dos lamentos de uma infância perdida, ainda no porão de um navio, a VozMulher lembra com profunda revolta a obediência passiva aos “brancos-donos de tudo”, prossegue para a revolta contra as condições de vida escrava que se perpetuam, mas, na última estrofe, faz ressoar a esperança da liberdade, na voz da filha, que se ouve no “hoje”, no “agora”. A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe 1 Evaristo (2009, p.2). 10 ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância o eco da vida-liberdade. (EVARISTO, 1990, p. 32-33. Ênfase acrescentada) A voz do eu lírico, perplexa diante de uma situação que se perpetua, ecoa rimas de sangue. É somente a voz da última geração que se faz ouvir e faz ouvir as vozes sufocadas das ancestrais. “Vozes-Mulheres” é considerado, pelo pesquisador e ensaísta Eduardo de Assis Duarte, o manifesto-síntese da criação literária de Evaristo, que se propõe a retirar o povo negro da condição de escravo, mudo e alienado, para torná-lo sujeito de sua própria escritura. 11 Os versos enfatizam a necessidade do eu poético de falar por si e pelos seus. Esse sujeito de enunciação, ao mesmo tempo individual e coletivo, caracteriza não apenas os escritos de Conceição Evaristo, mas da grande maioria dos autores afrobrasileiros, voltados para a construção de uma imagem do povo negro infensa dos estereótipos e empenhada em não deixar esquecer o passado de sofrimentos, mas, igualmente de resistência à opressão. (DUARTE, 2006, p. 25). A pesquisadora Florentina Souza destaca, ademais, a consciência de um fazer poético, marcado pelo inconformismo e pelo sonho de liberdade, que rememora as vozes ancestrais e pretende participar ativamente da construção de uma identidade afro-brasileira. Da bisavó à filha, institui-se um circuito criado pelas vozes da memória, e as vozes atualizadas pelas histórias do presente, viabilizando o redesenho de práticas, permitem a construção de um potente trânsito criativo que se constituirá, nos vários campos, como características de afrodescendência. (SOUZA, 2007, p. 33) A riqueza da dicção poética de Conceição Evaristo ─ como é conhecida nos meios literários – torna mais enfático o protesto contra o aviltamento da mulher negra e a necessidade de se fazer ouvir a sua voz como “eco da vida-liberdade”. Conceição Evaristo admite que, para ela, escrever pode ser uma espécie de vingança. “Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir um silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança [...] é a senha pela qual eu acesso o mundo” (EVARISTO, 2005, p. 202). Poesia e protesto alinham-se no romance Ponciá Vicêncio2, sua obra mais conhecida, objeto de numerosos estudos acadêmicos que compõem larga variedade de leituras. O texto já foi explicado da perspectiva crítica das teorias feministas e como veículo estético da tradição negra; analisado em comparação a outras obras da escritora; objeto de tese de literatura comparada que relaciona a obra de Evaristo 2 Nos anexos, relação de trabalhos acadêmicos sobre o livro. 12 à de Toni Morrison; examinado como bildungsroman feminino negro e como narrativa de memória sobre a herança da escravidão. Assis Duarte ressalta na obra de Conceição Evaristo a junção de forma poética e denúncia. Os escritos de Conceição Evaristo se destacam pela forma poética com que representa a crueldade do cotidiano dos excluídos. A mescla de violência e sentimento, de realismo cru e ternura revela o compromisso e a identificação da intelectual afrodescendente com os irmãos colocados à margem do desenvolvimento [...]filia-se, portanto, a esse veio afrodescendente que mescla história não-oficial, memória individual e coletiva com invenção literária. (DUARTE, 2006, p.1) Dentre inúmeras interpretações, dois pontos básicos para a compreensão do trabalho de Evaristo são a importância de dar voz ao seu povo para superar os empecilhos do status social e psicológico dos negros, bem como o emprego de imagens típicas, personagens, desenhos narrativos, temas e outros fenômenos literários característicos da cultura negra ─ a oralidade, o mito, crenças e superstições. Para embasar este estudo, portanto, escolheu-se uma abordagem híbrida que contemplasse as duas faces do romance. Nos estudos de Frantz Fanon, Homi Bhabha, Stuart Hall e Albert Memmi busca-se o suporte histórico-social e literário para discutir as consequências da escravidão negra na literatura de Evaristo, corolário cruel do processo de colonização. Para aprofundar a face mítica, simbólica e poética do romance optou-se por uma abordagem arquetípica, baseada nos arquétipos ou imagens recorrentes na psique humana e em toda a literatura. A crítica arquetípica tem fonte extraliterária na antropologia cultural e nas teorias de Jung sobre o inconsciente coletivo, subjacente à produção de mitos, visões, ideias religiosas e certos tipos de sonhos, comuns a 13 numerosas culturas e períodos da história. Para Jung, como informa Irene Makaryk, “um produto maior do inconsciente é o mito do herói, a exposição na linguagem de contos de fadas do desenvolvimento da criança, da infância à idade adulta” (MAKARYK, 1993, p. 3). Utilizando como referência os estudos de Carl Jung sobre o sonho, o inconsciente coletivo e os arquétipos, Joseph Campbell enfatiza que o mito é produto do inconsciente humano, ligado à psique. O mito é o sonho público e o sonho é o mito privado. Se o seu mito privado, seu sonho coincide com o da sociedade, você está em bom estado com seu grupo. Se não, a aventura o aguarda na densa floresta a sua frente. (CAMPBELL, 1990, p.52). A esta aventura Campbell denominou jornada do herói mitológico ou monomito3, descrita na obra O herói de mil faces (1949). Parte-se do mundo conhecido para um mundo desconhecido, no qual o herói enfrentará desafios para mudar seu destino. A função primária da mitologia e dos ritos, afirma Campbell, “sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás” (CAMPBELL, 1990, p.21). As etapas desta trajetória, que são representadas pela aventura mitológica dos rituais de passagem −separação, iniciação e retorno − podem ser aplicadas ao objeto deste estudo, bem como a qualquer obra literária, cujo tema central seja o heroísmo, com o objetivo último de conquistar a sabedoria e o poder de servir aos outros. Como afirmado, este trabalho objetiva a análise compósita do romance Ponciá Vicêncio: da perspectiva arquetípica e de rememoração, expressa pela “Voz- 3 Termo tomado de empréstimo a James Joyce, em Finnegans Wake. 14 Mulher”; do ponto de vista sociocultural e de protesto contra a situação de inferioridade do povo negro, que inspira a obra de Conceição Evaristo. O traço principal da personagem título do romance, Ponciá, que vive com a mãe, em uma casinha paupérrima, é a estranheza: um bebê estranho, que chora e ri ainda no ventre materno; uma menina estranha que considera estranho o seu próprio nome. “Menina tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa” (EVARISTO, 2003, p. 19). Mesmo com o passar do tempo, não se acostuma com o próprio nome, que achava “vazio, distante” (EVARISTO, 2003, p. 19). Desconhece a origem de Ponciá, enquanto o sobrenome Vicêncio lembra-lhe “um tal coronel Vicêncio” dono da terra e dos homens (EVARISTO, 2003, p. 29).A insatisfação com o próprio nome é o primeiro sinal de não pertencimento. Stuart Hall assinala que a perda do sentido estável de si é chamada, algumas vezes, de deslocamento – descentração– dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos; em outras palavras, constitui uma crise de identidade. “Toda identidade tem necessidade daquilo que lhe ‘falta’– mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inarticulado” (HALL, 2003, p.110). A busca da identidade e do autoconhecimento, portanto, é o objetivo a ser atingido na jornada mítica que Ponciá empreende a partir da terra natal, levada pelo desejo de preencher os espaços vazios em sua existência. Vemos na determinação de Ponciá as características de coragem e resiliência que informam a mitologia do herói, comum a todos os povos, primitivos ou clássicos, e que sobrevive no culto a músicos, artistas, atletas e outros heróis, hoje endeusados pela mídia. Considerando 15 a recorrência universal do mito do herói é que Joseph Campbell lhe atribui a denominação de monomito, descrito como: Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura como poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. (CAMPBELL, 1995, p. 36. Ênfase no original) Para entender o périplo do afrodescendente volta-se às raízes da escravização dos povos e à escravidão econômica e social (sem direito à terra, a nome e à própria história) enfatizada na narrativa pelos sofrimentos do pai e do avô de Ponciá. Busca-se nos teóricos dos estudos pós-coloniais – Albert Memmi, Stuart Hall, Frantz Fanon e Homi Bhabha – subsídios para apontar o caráter violento do colonialismo, sofrido, a princípio, pelo avô Vicêncio, que se revolta contra a situação de permanecer escravo quando já está liberto, e do pai de Ponciá, pajem do SinhôMoço, sujeito às piores humilhações, embora tivesse nascido após a promulgação da Lei do Ventre Livre4. Estruturalmente, este trabalho constitui-se de três capítulos. No primeiro, “A literatura afro-brasileira”, discutem-se inicialmente os termos descritivos da literatura negra no contexto literário do país: “literatura afro-brasileira”, “literatura negra”, “literatura negro-brasileira”, ou, ainda, “literatura negra-brasileira”. Para justificar nossa escolha para o trabalho, examinam-se denominações usadas por Assis Duarte, Proença Filho, Octavio Ianni, Cuti e pela própria Conceição Evaristo. A caracterização estereotipada atribuída aos personagens negros parte da hipótese de Albert Memmi, que atribui ao processo de colonização a relação de 4 Lei do Ventre Livre ou“ Lei Rio Branco”, de 1871, considerava livre todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir da data da lei. As crianças ficariam sob a custódia dos seus donos ou do Estado até os seus 21 anos, depois desta idade poderiam ficar livres. Esta lei não chegou a beneficiar ninguém, pois em 1888 (17 anos depois) foi promulgada a Lei Áurea. 16 desigualdade, de outremização, estabelecida entre brancos e negros, que prevalece ainda hoje. Apresenta-se, a seguir, breve historiografia literária, que inclui o nome de algumas escritoras negras que, mesmo silenciadas ao longo dos séculos, tiveram a ousadia de registrar suas experiências existenciais. Dedica-se a Conceição Evaristo espaço para uma revisão biográfica que contempla o conjunto de sua obra e estabelece relações com sua temática principal. O segundo capítulo, intitulado “Mito e arquétipos”, apresenta as perspectivas teóricas da pesquisa, com uma discussão dos conceitos e da representação literária do herói para estabelecer paralelos entre as qualidades antológicas de coragem e fortaleza e sua reprodução nos protagonistas de narrativas de hoje. A abordagem básica é a dos estudos sobre arquétipos segundo Jung, relacionados ao conceito de monomito adotado por Joseph Campbell. A obra seminal Mito e realidade, de Mircea Eliade, complementa as bases do estudo das origens e do prestígio do mito como explicação cosmogônica. O terceiro capítulo, “A trajetória cíclica do monomito em Ponciá Vicêncio”, engloba a análise do romance, que segue basicamente a estrutura nuclear do monomito proposta por Campbell: separação-iniciação-retorno. A modificação principal no modelo, que serve de metáfora para o caminho das provas, é a substituição do herói mitológico por seu conterpart feminino, o que põe em evidência o papel heroico da mulher negra na sobrevivência física e espiritual das comunidades afrodescendentes em vários estágios da história política e cultural. Na primeira fase, da separação ou afastamento, analisa-se o desenvolvimento da personagem-heroína até o momento de sua partida do povoado, que denominamos o mundo conhecido, cuja descrição concentra-se em 17 alguns aspectos físicos: a casa, o rio, o barro e o arco-íris e sua relação coma cultura banto. Para análise das imagens utilizam-se as configurações da imaginação poética de Gaston Bachelard, relacionando-as com os quatro elementos: terra, ar, água e fogo. As circunstâncias em que se dá o chamado remetem a problemas da estrutura social escravagista que sobrevive na vila Vicêncio. Como nos ritos de passagem das sociedades tribais, a iniciação da heroína inclui inúmeros obstáculos, no caminho de provas que deve percorrer. A vida de Ponciá na cidade grande caracteriza-se pela exclusão social, pelo abandono e pela frustração dos sonhos de conquistar um lar e uma família. Assim, o retorno à vila Vicêncio não significa a volta triunfal do herói que traz nas mãos o item mágico que libertará seu povo, mas um pedido de socorro aos seus. O encontro posterior com a mãe e o irmão, Luandi, corresponde ao que Joseph Campbell denomina resgate com auxílio externo. A passagem pelo limiar, que caracterizaria a volta triunfal do herói, conduz Ponciá a um nível de reencontro que denominamos “negação da liberdade”. Ponciá refugia-se em si mesma, isolando-se do mundo, mas sua jornada mítica tem o efeito de transferir a Luandi, que sai fortalecido do enfrentamento dos perigos da cidade grande, a recompensa da liberdade para viver. Nas “Considerações finais” justifica-se a relevância de utilizar a abordagem arquetípica para o estudo do romance, ao reconhecer Ponciá Vicêncio como heroína em sua trajetória, tanto para dentro como para fora de si mesma. Percorre o caminho interior para atingir autoconhecimento e estabelecer sua identidade. O caminho para fora deve partilhar com a comunidade a herança ancestral do povo negro. Apresenta-se, assim, novo olhar, que se julga relevante, sobre o romance, embora sua riqueza textual tenha permitido inúmeras possibilidades de leitura. 18 Faz-se, ainda, a conexão entre os capítulos um e dois ─ sobre a literatura afro-brasileira, a escrevivência de Conceição Evaristo e sua relação com as narrativas das origens do homem – para ilustrar os dois pontos básicos apontados para a compreensão do trabalho de Evaristo: a importância de dar voz ao seu povo para superar os empecilhos do status social e psicológico dos negros, como consequência, ainda hoje, da diáspora negra; em segundo lugar, o emprego de imagens, personagens, desenhos narrativos e temas característicos da cultura negra que aprofundam a face mítica, simbólica e poética do romance. 19 1 A LITERATURA AFRO-BRASILEIRA Em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras [...] escrever adquire um sentido de insubordinação. Conceição Evaristo5 Os primeiros estudos acadêmicos de relevância sobre a literatura negra no Brasil foram feitos por pesquisadores estrangeiros, como Roger Bastide e David Brookshaw. Os Estudos afro-brasileiros, de Bastide, abrangem temas variados no campo das relações étnicas e da cultura folclorizada: religião, medicina popular, imagens, narrativas orais ou escritas e outros. A obra em três volumes foi publicada de 1946 a 1953. O livro Raça e cor na literatura brasileira (1983), do inglês David Brookshaw, publicado trinta anos mais tarde, interessa pela representação e autoria de escritores negros, que agrupa em três categorias: 1) de tradição erudita – caracterizada pelo recalque da condição afro-brasileira; 2) popular – cuja característica é o humor e a assunção da africanidade; e 3) de protesto e sátira. Relevantes entre os teóricos brasileiros são os estudos da pesquisadora Zilá Bernd, Negritude e literatura na América Latina (1987) e Introdução à literatura negra (1988) que nortearam prioritariamente as pesquisas no Brasil. Bernd discorda da visão de Brookshaw, que focaliza os autores negros obedecendo apenas ao critério da cor da pele. A pesquisadora prefere observar as características textuais das obras que constituiriam a literatura negra, denominação que escolhe “por ser menos limitadora e por transcender os limites de nacionalidade, época, idioma, geografia, etc.” (BERND, 1987, p. 80). 5 EVARISTO (2009, p. 3). 20 Paralelamente, surge entre teóricos da literatura, bem como entre escritores, a discussão sobre a denominação desta vertente na literatura brasileira: literatura afro-brasileira, literatura negra ou literatura negro-brasileira. Examina-se a seguir a escolha da denominação por alguns estudiosos. O sociólogo Octavio Ianni utiliza a mesma denominação de Bernd, literatura negra, destacando o processo constante de articulação e transformação dessa literatura: Não surge de um momento para outro, nem é autônoma desde o primeiro instante. Sua história está assinalada por autores, obras, temas, invenções literárias. É um imaginário que se articula aqui e ali, conforme o diálogo de autores, obras, temas, invenções literárias. É um movimento, um devir, no sentido de que se forma e transforma. Aos poucos, por dentro e por fora da literatura brasileira, surge a literatura negra, como um todo com perfil próprio, um sistema significativo. (IANNI, 1988, p. 97) Nesse sentido, Eduardo Assis Duarte aponta a necessidade de construir operadores teóricos eficientes para ampliar a reflexão crítica, a partir da avaliação do “estado da arte” dos conceitos de literatura negra e de literatura afro-brasileira (DUARTE, 2006, p. 2. Ênfase no original). Prendendo-se ao conceito benjaminiano de literatura, Domício Proença Filho, pesquisador e autor de um clássico da poesia negra, Dionísio esfacelado (1984), entende que o uso do termo literatura negra ou afro-brasileira corre o risco de reproduzir estereótipos, fazendo o jogo do preconceito velado. Adverte ele que literatura não tem cor e não deve, portanto, receber a denominação de negra, tampouco de afrodescendente. É preciso, entretanto, ter sempre em mente que a arte literária compromissada precisa ser arte literária antes de ser compromissada, sob pena de descaracterizarse e perder seu poder de repercussão mobilizadora. Essa posição benjaminiana 21 não pode ser desprezada, quando consideramos a contribuição literária dos negros e dos descendentes de negros que trazem para seus textos a preocupação com a etnia. Há que considerar a literatura como lugar de afirmação e singularização de identidades múltiplas e várias, mas integradas no tecido da arte literária brasileira e universal. (PROENÇA FILHO, 2004, p. 187) Proença Filho é bastante claro ao enfatizar a relevância da literatura engajada em sua preocupação com a etnia negra, desde que integrada na “arte literária brasileira e universal”. Quanto à denominação, o autor tem visão bastante ampla e, neste ponto, semelhante ao pensamento de Bernd: considera negra tanto a literatura feita por negros, de propósitos ideológicos específicos, como, lato sensu, a arte literária praticada não especificamente por negros, mas centrada em patamares característicos dos negros e seus descendentes. Em sentido restrito, considera-se negra uma literatura feita por negros ou por descendentes assumidos de negros e, como tal, reveladora de visões de mundo, de ideologias e de modos de realização que, por força de condições atávicas, sociais, e históricas condicionadoras, caracteriza-se por uma certa especificidade, ligada a um intuito claro de singularidade cultural. Lato sensu, será negra a arte literária feita por quem quer que seja, desde que centrada em dimensões peculiares aos negros ou aos descendentes de negros. (PROENÇA FILHO, 2004, p. 185. Ênfase acrescentada) No artigo “Literatura negra, literatura afro-brasileira: como responder à polêmica?”, Maria Nazareth Soares Fonseca assinala que atualmente são mais utilizadas as expressões literatura afro-brasileira e literatura afrodescendente. Entretanto, o emprego dessas expressões não põe fim às “complexas questões que circulam em torno de seus significados”, embora possa revelar “um modo de se considerar a pluralidade como um traço importante da cultura brasileira” (FONSECA, 2006, p. 12). 22 No livro Literatura negro-brasileira (2010), Luiz Silva, o poeta Cuti faz uma opção estética, política e ideológica pela palavra “negro”. Para o escritor, os termos “afro-brasileira” ou “afrodescendente” acabam por escamotear a questão negra, que se perderia na diversidade subjacente ao prefixo afro, que abrange mestiços e brancos a quem o racismo não atinge. A literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a palavra “negro” aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a englobaria como um todo a receber daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer. Por se tratar de participação na vida nacional, o realce a essa vertente literária deve estar referenciado à sua gênese social ativa. O que há de manifestações reivindicatórias apoia-se na palavra “negro”. (CUTI, 2010, p. 44) O uso da palavra negro expressaria, segundo Cuti, uma visão da experiência, no Brasil, dos africanos escravizados e de seus descendentes. Esse ponto de vista, diferenciado, a partir do olhar negro, é o mesmo que Conceição Evaristo utiliza para definir a sua escrita, que denominou de escrevivência, sendo este o ponto que distingue o fazer literário negro, o comprometimento do escritor com o constructo social e não somente com a cor da pele, ou etnia assumida: A maneira como ele vai viver em si a condição e a aventura de ser um negro escritor. [...] E, se há um comprometimento entre o fazer literário do escritor e essa experiência pessoal, singular, única, se ele se faz enunciar enunciando essa vivência negra, marcando ideologicamente o seu espaço, a sua presença, a sua escolha por uma fala afirmativa, de um discurso outro – diferente e diferenciador do discurso institucionalizado sobre o negro – podemos ler em sua criação referências de uma literatura negra. (EVARISTO, 2010, p. 5) 23 Assis Duarte amplia essa noção ao afirmar que a especificidade da literatura negra, em contraposição ao conjunto da literatura brasileira, baseia-se em quatro aspectos: 1) temática ─ incorporação da experiência do negro ao texto literário; 2) autoria ─ o negro é sujeito da enunciação, destacando sua maneira de entender, ver e sentir o mundo; 3) ponto de vista ─ prevalecem a história e as tradições negras; 4) linguagem ─ marcas da herança linguístico-cultural africana. Considerando a exposição acima, optou-se por utilizar nesta dissertação o termo literatura afro-brasileira. Para justificar a escolha, tomaram-se, ainda uma vez, os argumentos de Assis Duarte. Acredito, pois, na maior pertinência do conceito de literatura afro-brasileira, presente em nossos estudos literários desde o livro pioneiro de Roger Bastide (1943), com os equívocos, é certo, que aquele momento não permitia a ele superar [...]. E também presente nas reflexões de Moema Augel e, mais enfaticamente, de Luiza Lobo (1993, 2007). Adotado, enfim, por praticamente todos os que lidam com a questão nos dias de hoje, inclusive pelos próprios autores do Quilombhoje, seja nos subtítulos dos Cadernos Negros, seja no próprio volume teórico-crítico lançado pelo grupo, em 1985, com o título de Reflexões sobre a literatura afro-brasileira. (DUARTE, 2014, p. 28. Ênfase acrescentada) A citação de Assis Duarte põe em relevo dois aspectos seminais da literatura afro-brasileira: a contribuição da escritora negra, a exemplo de Moema Augel e Luiza Lobo, na crítica e teorização; e a criação de um veículo destinado a disseminar a obra discursiva ou de ficção de escritores negros, os Cadernos Negros, com o intuito de marcar a presença do negro na literatura brasileira. Segundo Proença Filho, o negro na literatura brasileira não escapa ao tratamento marginalizado a que é submetido, desde as instâncias fundadoras, no processo de construção da nossa sociedade. É fácil encontrar textos em que o negro aparece estereotipado como preguiçoso, malandro, macumbeiro ou 24 vagabundo, sendo um mero ornamento do cenário. Em contraposição, tem-se no personagem Henrique Dias, retratado no livro Caramuru, de Santa Rita Durão, a figura do herói negro que luta corajosamente contra a dominação holandesa para defender os interesses da coroa de Portugal. No livro Imagens do negro na literatura brasileira (1998), o historiador Jean Carvalho França aponta que na construção dos personagens negros prevalecia uma distinção que foi fartamente explorada pelos nossos ficcionistas do oitocentos: as mulheres eram mais arrebatadas pela sensibilidade e os homens mais razoáveis. Todavia, um traço comum tornava os dois sexos da raça negra muito próximos: a animalidade e a sensualidade extremada. (FRANÇA, 1998, p. 73) Estereótipos da mulher negra são ainda mais recorrentes na literatura canônica, em que é admitida como personagem secundária: a cozinheira de mão cheia, como, por exemplo, tia Nastácia, do Sitio do Pica-pau Amarelo ou a mãepreta que nutre e acalenta. Quando bela, possui forte apelo sexual: mulata fogosa, mucama vagabunda, todas estéreis e sem família. Essas mulheres eram: A síntese dos perigos representados pela maciça presença da mulher negra no meio das famílias brancas. A sensualidade extremada, a volubilidade constante e a falta de princípios morais sólidos tornavam-na uma das maiores ameaças à paz doméstica, à unidade das famílias. (FRANÇA, 1998, p. 88) Em textos literários considerados canônicos, predominam, assim, significados de repertórios culturais negros que pouco se relacionam com a alteridade e com a transitoriedade da identidade negra, mas expressam preconceito racial arraigado. Ou o negro é considerado exótico ou ele é a representação do que é ruim. “Seu corpo é negro, sua língua é negra, sua alma também deve ser negra. O negro é o símbolo do mal e do feio” (FANON, 2008, p. 154). 25 As personagens negras surgem estereotipadas em concordância com a maneira como o negro é percebido pela sociedade. Não há uma ausência do negro e da cultura negra nos textos literários brasileiros. O que existe é uma representação deprimente sobre nós negros. Nesse sentido, é preciso pensar que a cultura dominante tem o poder de se representar e de representar as outras culturas circundantes. (EVARISTO, 2007, p. 2) Narrativas e poemas sobre o negro focalizam, de modo geral, os temas da escravidão e de uma cultura negra cujos membros são destituídos de individualidade. Recorre-se ao conceito de Brookshaw sobre estereótipo: Um estereótipo pode ser inicialmente definido como sendo a causa quanto o efeito de um pré-julgamento de um indivíduo em relação a outro devido à categoria a que ele ou ela pertence. Geralmente, esta categoria é étnica. Na verdade, poder-se-ia ir mais longe e dizer-se que todos os grupos étnicos são estereótipos para a conveniência de outros. (BROOKSHAW, 1983, p. 9) Essa visão plural dos afrodescendentes está estabelecida a partir de uma série de estereótipos que recebem a “marca do plural”, conforme relata Albert Memmi, em sua obra O retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador (1967). O olhar do colonizador converteu as “diferenças culturais em fator biológico” (p. 70), que o autor denominou de despersonalização, impedindo, assim, que o colonizado seja visto de forma individualizada: O colonizado jamais é caracterizado de maneira diferencial: só tem direito ao afogamento no coletivo anônimo (“Eles são isso... Eles são todos os mesmos”). Se a doméstica colonizada não vem certa manhã, o colonizador não dirá que ela está doente, ou que ela engana [...]. Afirmará que “não se pode contar com eles”.Recusa-se a encarar os acontecimentos pessoais, particulares, da vida de sua doméstica; essa vida na sua especificidade não o interessa, sua doméstica não existe como indivíduo. (MEMMI, 1967, p. 81-82. Ênfase do autor) 26 Portanto, “o que precisa ser mudada não é a imagem dos negros, mas a imagem negativa que a sociedade criou e fomenta como se fosse própria deles”, segundo a escritora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva6 (2012), em entrevista à Fundação Palmares. A afirmação da identidade e consciência negra propõe tornar positivo o que preconceituosamente fora considerado negativo, com uma nova postura ideológica que levará a uma produção literária marcada por uma fala enfática, denunciadora da condição do negro no Brasil, mas igualmente valorativa, afirmativa do mundo e das coisas negras, fugindo do discurso produzido nas décadas anteriores carregado de lamentos, mágoa e impotência. (EVARISTO, 2009, p. 9) As ideologias dominantes ignoraram por muito tempo obras de escritores negros como Lima Barreto (1881-1922) e Solano Trindade (1908-1974), que se utilizaram da literatura para denunciar os sofrimentos da população negra. Como movimento literário organizado, porém, é necessário ir ao século vinte, quando surge, em 1978, um grupo de escritores que, a partir da militância política, publica um importante veículo de resistência cultural, os Cadernos Negros (CN) apresentando uma criação literária valorativa da etnia e tradições africanas. Segundo o historiador Hugo Ferreira, o nome do periódico foi escolhido para homenagear Maria Carolina de Jesus, falecida em 1977 que, como os demais escritores, registrava suas anotações em cadernos. Não existiam computadores, portanto, era comum à época este tipo de apontamento. 6 Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva integrou como relatora a comissão que elaborou o parecer CNE/CP nº 3/2004. O documento regulamenta a Lei nº 10.639/2003 e estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos termos do art. 26A da Lei nº 9.394/1996 das Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 27 Os escritos dos Cadernos Negros resgatam e valorizam a ancestralidade africana. Uma característica fundante da literatura negra presente nessa publicação é a opção por organizar a voz coletivamente. A primeira edição, em que colaboraram oito autores: Cuti, Hugo Ferreira, Eduardo de Oliveira, Oswaldo de Camargo, Jamu Minka, Ângela Galvão, Henrique Cunha Júnior (Cunha) e Célia Aparecida Pereira (Celinha), apresenta um prefácio já considerado marco histórico da publicação. Estamos no limiar de um novo tempo. Tempo de África, vida nova, mais justa e mais livre e, inspirados por ela, renascemos arrancando as máscaras brancas, pondo fim à imitação. Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos assumindo nossa negrura bela e forte. Estamos limpando nosso espírito das idéias que nos enfraquecem e que só servem aos que querem nos dominar e explorar. (CN1, 1978, p. 2) Os textos dos Cadernos Negros estão comprometidos com a história da população negra, abordando problemas sociais e contestando representações estereotipadas do negro na literatura brasileira considerada canônica. Sobre a importância desses escritos, a pesquisadora Florentina Souza observa: Os textos dos CN podem ser lidos como depoimentos criativos de uma geração de escritores que reivindica um espaço para a voz negra na vida cultural e literária brasileira. Para tanto, tematizam vários aspectos da vida cotidiana do afro-brasileiro em particular, tais como a necessidade de construção de uma auto-imagem positiva, o resgate das tradições de origem africana e o combate às manifestações cotidianas de discriminação e preconceito racial na escola e trabalho – problemas decorrentes da sistemática exclusão do negro do direito de cidadania. (SOUZA, 2005, p. 113) A repercussão de Cadernos Negros ultrapassou as expectativas iniciais de seus autores/colaboradores e tornou-se a antologia do Movimento Negro e, atualmente, é a produção artística negra mais conhecida e utilizada como fonte de 28 pesquisa acadêmica. Até a quinta edição a organização editorial esteve a cargo do poeta Cuti. A partir de 1982, a edição dos Cadernos Negros passa a constituir trabalho efetivo do grupo Quilombhoje, formado por escritores com o objetivo de discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura. O nome quilombhoje não faz apenas referência explícita aos grupos de escravos fugidos no século XIX, como também aos quilombos sociais e raciais existentes até o século XXI. A série Cadernos Negros é geralmente publicada no mês de novembro, em homenagem a Zumbi dos Palmares e para celebrar o dia da consciência negra. Desde o seu lançamento tem tiragem anual ininterrupta, apresentando textos de autores oriundos de vários Estados brasileiros, como também a publicação de autores estrangeiros, a exemplo do poeta e sociólogo congolês Bas’ilele Malomalo. Até o ano de 2014, foram publicados 37 volumes, sendo os anos pares dedicados aos poemas e os anos ímpares, à prosa. O grupo já organizou três volumes sobre sua produção ensaística, intitulados Reflexões sobre literatura afrobrasileira (1985); Criação crioula, nu elefante branco (1986); e Cadernos negros: três décadas (2008). “Esse conjunto de ensaios críticos forma hoje uma bibliografia fundamental para os estudos sobre a literatura negra ou afro-brasileira” (DUARTE, 2011, p. 30-31). A antologia Cadernos Negros: os melhores poemas (2008) foi leitura indicada, nos anos de 2012-2013, para o vestibular da Universidade Federal da Bahia. Os Cadernos Negros adquirem reconhecimento internacional, com publicação nos Estados Unidos, onde foram objeto de estudo em Princeton e em algumas universidades da Califórnia. “Ali no estrangeiro, se vai aceitando estes 29 autores como porta-vozes autênticos da experiência da maior população africana fora da África” (CN 20, 2002, p. 12). Ao longo dessas publicações passaram muitos escritores, alguns de uma única colaboração, outros que continuam enriquecendo o campo da literatura afrobrasileira. Atualmente, os Cadernos Negros estão sob a coordenação de Márcio Barbosa e Esmeralda Ribeiro que publicam ativamente. Entre muitos autores destacam-se Abelardo Rodrigues, Anita Realce, Arnaldo Xavier, Carlos de Assumpção, Conceição Evaristo, Ele Semog, Geni Guimarães, José Abílio Ferreira, José Carlos limeira, José Alberto, José Luanga Barbosa, Landê Onawale, Lia Vieira, Miriam Alves, Oubí Inaê Kibuko, Paulo Colina, Paulo Ricardo Moraes, Ramatis Jacinto, Sônia Fátima da Conceição, Zula Gibi, e tantos outros. A participação da escrita feminina começou pequena, apenas duas autoras na primeira edição, Ângela Galvão e Célia Aparecida Pereira (Celinha). Embora tenha aumentado com o passar dos anos, ainda é menor que a participação masculina. O ato confirma as limitações sociais impostas ao gênero feminino, neste caso aliadas a questões raciais, como se constatou no início deste capítulo. A temática dos Cadernos Negros é variada em razão da diversidade de autores que encaminham seus textos para publicação, mas alguns temas foram se firmando ao longo das edições: religiosidade, protesto contra a discriminação, reflexão sobre a estética corporal e relato da identidade negra como parte da realidade do país, o legado da escravidão e seus efeitos na atualidade. A temática, voltada para a população afro-brasileira e suas raízes apresenta uma escrita divergente dos textos canônicos, pois traz novo olhar sobre a presença do negro na história oficial do Brasil, justificando o valor de uma literatura afro-brasileira que os Cadernos Negros ajudaram a conquistar. No artigo “Remanescentes culturais 30 africanos no Brasil”, Sônia Queiroz refere que seria necessário redescobrir o Brasil. Para afirmar sua hipótese cita Olabiyi babalola Yai7: Seria preciso, como o exige a bela fórmula de Carlos Drummond de Andrade, ‘reinventar os nagôs e os latinos’! Reinventar também os tupis, os guaranis, etc. [...] É, por assim dizer, se não uma exigência, uma ambição de renovação cultural pluralista. Ao invés de ser um cadinho de onde sairia uma cultura nacional às custas de perdas, de assimilação, de intolerância e de menosprezos gratuitos, o Brasil poderia dar ao mundo o exemplo de um pluralismo cultural em que os homens são mais eles mesmos quando vivem plenamente suas culturas próprias e são consequentemente capazes de melhor conhecer e de viver as dos outros. (BABALOLA YAI, citado em QUEIROZ, 2002, p.49) A editoração e circulação do periódico estão estreitamente ligadas aos movimentos nacionais de reivindicação de direitos dos negros, expressos em prosa e verso. A periodicidade dos Cadernos permite ao leitor acompanhar o que há de novo na literatura afro-brasileira e o contato com escritores que se projetam. Paralelamente, a imprensa negra, em vários pontos do país, além de publicar textos de escritores negros, veio a constituir, desde a década de 1930, veículo de pesquisa e registro de perspectivas históricas diferentes da historiografia oficial.Embora fragmentária, a produção jornalística teve papel fundamental na reconstrução da memória de comunidades, afeitas à leitura de jornais. Os movimentos reivindicatórios partem sempre do artista ou do intelectual negro. Oliveira Silveira (1941-2009), pesquisador, poeta e historiador gaúcho, um dos fundadores do Grupo Palmares, foi quem declarou, em 1971, ser o dia 20 de novembro, quando morreu Zumbi dos Palmares, a data máxima da comunidade negra brasileira. Sete anos depois, a data tornou-se oficialmente o Dia Nacional da 7 Foi, nos anos 1970, professor visitante na Universidade Federal da Bahia (Brasil). É embaixador permanente do Benin na Unesco. 31 Consciência Negra. Seu poema “Treze de maio” rejeita a herança cruel da escravidão. Treze de Maio Treze de maio traição, liberdade sem asas e fome sem pão Liberdade de asas quebradas como ........este verso. Liberdade asa sem corpo: sufoca no ar, se afoga no mar. Treze de maio – já dia 14 o Y da encruzilhada: seguir banzar voltar? Treze de maio – já dia 14 a resposta gritante: pedir voltar? nem com pergaminho nem pena de ninho nem cofre de couro nem com lei de ouro. O que fomos de seiva .......................de base ..................... de Atlas o que fomos de vida ........................e luz chama negra em treva branca 32 .......................quem sabe só com isto: que o que temos nós lutamos para sobreviver e também somos esta pátria em nós ela está plantada nela crispamos raízes de enxerto mas sentimos e mutuamente arraigamos ....quem sabe só com isto: que ela é nossa também, sem favor, e sem pedir respiramos seu ar ....a largos narizes livres bebemos à vontade de suas fontes ... a grossas beiçadas fartas tapamos-destapamos horizontes ....com a persiana graúda das pálpebras escutamos seu baita coração ....com nosso ouvido musical e com nossa mão gigante batucamos no seu mapa ....quem sabe nem com isso e então vamos rasgar a máscara do treze para arrancar a dívida real com nossas próprias mãos. (SILVEIRA, 2009) Nesse particular, Conceição Evaristo, motivação e objeto de nosso estudo, é enfática e veemente na afirmação sobre o direito da literatura afro-brasileira de existir paralelamente à literatura brasileira como um todo. Sua escrita preocupa-se em registrar a herança deixada pela diáspora negra, especialmente as vivências e experiências das mulheres negras. Apresenta, também, reflexões sobre o ato de 33 fazer e veicular o texto afro-brasileiro que traz experiências diversificadas, desde o conteúdo até a diferenciação no uso da linguagem. As discussões em torno do tema têm me envolvido como escritora e como pesquisadora. E a partir do exercício de pensar a minha própria escrita, venho afirmando não só a existência de uma literatura afro-brasileira, mas também a presença de uma vertente negra feminina. (EVARISTO, 2009, p. 18. Ênfase acrescentada) A citação de Evaristo resume os tópicos desenvolvidos neste capítulo: breve visão diacrônica da literatura afro-brasileira e da escritura feminina nesse contexto, precedendo a apresentação do objeto central da pesquisa, a obra da escritora, como expressão de sua visão de mundo. Destaca-se o lugar ocupado pelo romance Ponciá Vicêncio, no cômputo geral de sua produção literária. 1.1 ESCRITURA NEGRA FEMININA: DOS PRIMÓRDIOS AO SÉCULO XXI Considerando os quase três séculos da escravidão negra no Brasil, são raras as mulheres negras que conseguiram transpor as barreiras do sistema escravista e do analfabetismo para registrar suas experiências. A maioria dos registros é de autoria masculina, a exemplo de Primeiras trovas burlescas (1859), do poeta abolicionista Luiz Gama (1830-1882), um dos marcos da história da literatura afro-brasileira. Com o célebre poema “A bodarrada”, Gama “tornou-se o primeiro escritor brasileiro a assumir explicitamente sua identidade negra, sendo, portanto, o fundador da literatura de militância negra do Brasil” (LOPES, 2004, p. 291). O poema enaltece a cor negra e a cultura africana, fazendo severa crítica às relações entre senhores e escravos. O poeta faz uso da palavra “bode”, utilizada para ofender os negros, para se referir a todos os segmentos da sociedade: 34 Se negro sou, ou sou bode Pouco importa. O que isto pode? Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muito vasta. Há cinzentos, há rajados, Baios, pampas e malhados, Bodes negros, bodes brancos, E, sejamos todos francos, Uns plebeus, e outros nobres, Bodes ricos, bodes pobres, Bodes sábios, importantes, E também alguns tratantes. (GAMA, 1904) Luiz Gama é figura relevante no contexto histórico do Brasil monárquico, principalmente pela ação relevante nos movimentos abolicionistas que a estratificação social permitia apenas aos homens. A falta de interesse de jornais, revistas e acervos públicos em registrar a produção de mulheres resultou em um quase esquecimento da escrita negra feminina. A publicação, em 1859, do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, sob o pseudônimo de “Uma Maranhense”, vem confirmar a presença da mulher para além dos locais restritos que lhes eram socialmente destinados no espaço majoritariamente masculino da escrita literária. A autoria do romance, em 1975, vem a público mais de cem anos depois de sua publicação, quando é editado um facsímile elaborado por Honório de Almeida. Somente então a obra passa ao conhecimento dos estudiosos, informa Assis Duarte (2004). O crítico Nascimento Morais Filho classifica o livro como “o primeiro romance abolicionista e um dos primeiros escritos por mulher brasileira” (MORAIS FILHO, 1975, p. 310). Nascida em 1825, a autora foi uma mulher à frente de seu tempo: a escola mista que fundou representava ideias avançadas para a época, uma 35 verdadeira “revolução social pela educação e uma revolução educacional pelo ensino” (MORAIS FILHO, 1975, p. 310). Não é de surpreender que suas ideias causassem escândalo na época e o fechamento da escola dois anos mais tarde. O romance foi objeto de estudos da dissertação de Paraguassu de Fátima Rocha, defendida no Centro Universitário Campo de Andrade. Privilegiando a pesquisa comparada, a pesquisadora (2006) analisou “A representação do herói marginal na literatura afro-descendente: uma releitura dos romances Úrsula de Maria Firmina dos Reis e Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo”. O trabalho discute a figura do negro na literatura afro-brasileira e aborda questões do heroísmo marginal característico das relações identitárias no processo de libertação e humanização dos afrodescendentes. Ainda em relação a trabalhos de resgate de textos de autoria feminina negra, pesquisadores concordam que o primeiro documento pertence ao século XVIII. Visto que somente se preservaram fragmentos do livro, não se pode afirmar tratar-se de obra literária e sim de um registro. O texto Sagrada teologia de amor de Deus luz, de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1719-?), registra suas visões e experiências místicas. Por ter sido acusada de heresia e bruxaria, seu confessor destruiu grande parte do texto “para que a Santa Inquisição não tivesse provas contra Rosa” (GUIMARÃES, 2003, p.160). Levada a julgamento, suspeita-se que tenha morrido em Portugal, nas masmorras da Inquisição. Consta também, como registro histórico, uma carta redigida pela escrava Esperança Garcia (sem dados de biografia), enviada ao Presidente da Província do Piauí, datada de 6 de setembro de 1770, pedindo para regressar à fazenda onde morava com o marido, diante da violência a que ela e os seus filhos eram submetidos pelo administrador da fazenda para onde tinham sido levados. 36 Na publicação especial dos trinta anos dos Cadernos Negros (2008), no ensaio intitulado “Carta da escrava Esperança Garcia do Piauí”, Elio Ferreira discorre sobre o quadro de desumanidade descrito por Esperança. O ensaio traça paralelos entre os sofrimentos da mulher escrava descritos na carta e poemas e contos de escritoras negras da contemporaneidade, publicados no periódico. Certamente houve outras escritoras cujas obras não foram impressas, bem como textos que não foram considerados para registro historiográfico. Casos como a poetisa Auta de Souza (1876-1901), que teve seu único livro de poemas Horto (1900) publicado em vida e, embora sua foto apareça na capa do livro, alguns biógrafos não registram o fato de a escritora ser afrodescendente. O Teatro Experimental do Negro (TEN), companhia teatral fundada e dirigida por Abdias do Nascimento (1914-2011), atuou durante os anos de 1944 a 1957, sempre com o objetivo da valorização do negro. O Teatro Experimental do Negro nasceu para contestar a discriminação, formar atores e dramaturgos afro-brasileiros e resgatar uma tradição cultural cujo valor foi sempre negado ou relegado ao ridículo pelos nossos padrões culturais: a herança africana na sua expressão brasileira. (NASCIMENTO, 1982, p. 206) O Teatro Experimental do Negro publicava o informativo Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, que se destinava a combater o racismo e divulgar a cultura negra no Brasil. Três anos após o encerramento das atividades desse informativo é publicado o livro de escritora negra mais comentado e conhecido pelo público brasileiro: Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). A publicação fez enorme sucesso, sendo traduzida para 13 idiomas e editada em cerca de 40 países. Carolina possuía forte senso de observação e anotava as reflexões sobre suas experiências cotidianas em um 37 caderno. “Aqui é assim. Não há ricos, só pobres, uns prejudicando os outros” (JESUS, 1998, p. 171). Carolina foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, durante uma reportagem na favela onde morava. Por esse motivo surgiram controvérsias sobre a autoria do texto, atribuída ao próprio jornalista. Depois do romance de Carolina, foram publicados outros textos de caráter confessional e autobiográfico, escritos em parceria com revisores. Neste particular lembra-se Philippe Lejeune, teórico seminal da autobiografia. O ensaio intitulado Autobiografia dos que não escrevem caracteriza testemunhos colhidos e editados por entrevistadores (LEJEUNE, 1991, p. 47). A partir dos anos 1970, invadiu as livrarias uma verdadeira avalanche de textos autobiográficos em parceria, de pessoas que não dominam o código escrito ou que tinham dificuldade de expressar o pensamento. Nessa mesma época, o movimento feminista recebe novo impulso na luta por melhores condições de trabalho e salário. Com participação majoritária de mulheres brancas, o movimento não contemplava as peculiaridades das mulheres negras que passaram a integrar o movimento negro na luta contra a discriminação racial. A dupla militância, de gênero e de raça, contribuiu para maior visibilidade da mulher negra que reivindica seus direitos de cidadã. Os estudos acadêmicos sobre racismo e sexismo começam a ganhar espaço, com destaque para os trabalhos da antropóloga Lélia Gonzales8 (19351994), que faz importante registro sobre a atuação do Movimento Negro Unificado (MNU), fundado como objetivo de questionar as ações do Estado contra a discriminação racial. O livro Lugar de negro (1982), escrito em parceria com o sociólogo Carlos Hasenblag, apresenta trabalhos sobre racismo e seus problemas. 8 Sobre a obra de Lélia Gonzalez acessar o sítio: www.leliagonzalez.org.br 38 Também dissertou sobre a diáspora africana, que denominou “amefricanidade”, relatando as experiências dos negros nas Américas. Publicou o livro Festas populares no Brasil (1987), premiado na feira de Leipzig. Outro relevante trabalho, que desponta nos anos 1970/80, é o da historiadora Beatriz Nascimento9 (1942-1995), estudos relevantes sobre o quilombo como símbolo de luta e resistência da africanidade. É dela o termo “transmigração” para apresentar estudos sobre a mulher negra e a experiência da diáspora africana na des/reconstrução da identidade feminina. A construção do eu e da identidade da mulher negra, a autoestima, a experiência pessoal do racismo e sexismo, adquirem maior vigor como temas na literatura afrodescendente feminina. O sujeito da enunciação aborda a questão do preconceito pelas vias do feminino, da etnia, e da classe social, com voz própria para representar sua experiência de vida e visão de mundo. As narrativas são apresentadas da perspectiva de quem vivenciou ou assistiu a história de seu povo, com testemunhos memorialísticos que destacam as vozes periféricas e marginalizadas. Segundo a pesquisadora Rita Schimidt, a maneira como elas (escritoras negras) abordam o racismo passa pelo filtro do reconhecimento da existência do sexismo dentro da comunidade ou da família negra. Esse reconhecimento tem ressonâncias profundas na maneira como elas escrevem, na estilística, na estética e na temática, porque a literatura produzida pelas mulheres negras emerge como a expressão de uma cultura feminina negra, desenvolvida à sombra de uma dupla opressão: a racial e a sexual. (SCHIMIDT, 1996, p.159) 9 Sobre Beatriz Nascimento, ler: Eu sou Atlântica, disponível em: <http://www.imprensaoficial.com.br/PortalIO/download/pdf/projetossociais/eusouatlantica> 39 Questões sobre o preconceito racial, de gênero e condição feminina marcada pela discriminação, passam a surgir como assunto recorrente na literatura feminina. Nas palavras da escritora Sônia Fátima da Conceição: Não devemos nos limitar a relatar fatos ou ficar questionando de forma reacionária a situação vigente, mas sim buscarmos formas de, entre os nossos, nos encontrarmos e daí partirmos para uma literatura que vise à transformação social, senão ela para os nossos não terá razão de ser. (CONCEIÇÃO, 1985, p. 88) A produção literária apresenta uma contribuição significativa para as lutas femininas, mitos examinados e estereótipos repensados. Segundo a escritora Maria Izilda Matos, [...] procurou-se recuperar a atuação das mulheres no processo histórico como sujeitos ativos, de modo que as imagens de pacificidade, ociosidade e confinação ao espaço do lar foram questionados, descortinando-se esferas de influência e recuperando os testemunhos femininos. (MATOS, 1998, p. 84) Publicado no ano de 1982, o romance As mulheres de Tijucopapo (1982), da escritora Marilene Felinto, apresenta a protagonista Rísia, uma mulher negra e pobre em busca de sua própria identidade e do resgate do orgulho nordestino. A personagem rememora fatos vividos na família e na comunidade como caminho para a reconstrução de sua identidade. O romance recebeu o Prêmio Jabuti de revelação de autor (1983), e foi traduzido para o inglês, francês, holandês e catalão. Outra escritora premiada, cujas obras refletem a preocupação com a cultura afro-brasileira, é Geni Guimarães, sua obra A cor da ternura (1989), recebeu o prêmio Adolfo Aizen de literatura infanto-juvenil já no ano de publicação e, um ano depois, o Jabuti (1990), de autor revelação. Trata-se de relato autobiográfico poético que descreve a infância da escritora, em uma fazenda de café no interior de São Paulo. Na coletânea de poemas Balé das emoções (1993), Geni Guimarães 40 extravasa os sentimentos de um eu-lírico, que se vale da linguagem figurada para expressar a exclusão de uma sociedade majoritariamente branca, que insiste em ignorar o negro. Quando me vem oferecer uísque aproveita o dedo que segura a taça e me indica a porta, disfarçadamente. Eu consciente do direito a festas, (inclusive a comemorada no mês de maio) bebo. E não saio. (GUIMARÃES, 1993, p. 54) Publicações de outros autores e de textos sobre o afrodescendente ganharam maior espaço a partir da publicação da Lei nº 10.63910, de 09/01/2003, que introduziu o estudo da história e da cultura afro-brasileira e africana no currículo das instituições oficiais de ensino. Desde então, as editoras passaram a publicar, além dos livros didáticos convencionais, obras de literatura afro-brasileira, muitas de autoria feminina, cujas personagens apresentam uma percepção de mundo própria, da perspectiva do olhar provindo do sujeito subalterno, visto até então como objeto do olhar do outro. Este lugar da autoria negra que antes era praticamente invisível e que passou a ter representatividade é conquistado com perseverança pelos escritores. Em entrevista à revista Raça Negra, Evaristo relata sua experiência com a publicação de Ponciá Vicêncio: O problema não termina com a publicação de um livro. Ponciá Vicêncio já esteve em uma livraria grande aqui do Rio, e eu o levei pessoalmente. Só que o livro não foi colocado no sistema de informática da loja e, portanto, era como se ele não 10 Em 2008 foi alterada para Lei nº 11.645, para abranger o ensino da história e da cultura dos povos indígenas. 41 estivesse lá. Dois pesquisadores estrangeiros que vieram ao Brasil foram procurar a obra e tiveram que insistir, pois a livraria afirmava que o livro não existia. (EVARISTO, In FREDERICO, 2006, s/p) A pesquisadora Maria Aparecida Salgueiro (2004) destaca o nome de Evaristo junto a Geni Guimarães, Miriam Alves e Sônia Fátima da Conceição, entre outras escritoras, como representante de um movimento literário feminino que busca resgatar nomes esquecidos da literatura afrodescendente. Também utiliza suas personagens para construir um discurso que se contrapõe à representação do negro na literatura canônica. Assim, o personagem deixa de ser objeto da narrativa – aquele-que-é-olhado ─, para se tornar agente da sua própria história, em contextos que se recusam a conceder-lhe o lugar que lhe cabe. 1.2 CONCEIÇÃO EVARISTO: ESCREVIVÊNCIA E VISÃO DE MUNDO Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 1946, numa favela do Morro do Pindura Saia, em Belo Horizonte. Sua infância foi embalada pelas muitas histórias ouvidas em casa e na vizinhança, onde tudo era motivo para “prosapoesia”. A menina Evaristo, de olhos fechados, ia criando figuras para as palavras que invadiam o seu ser, imaginação que também foi utilizada nas aulas de redação como escape da dura realidade que vivia. Dentro dos meus limites de compreensão, eu já havia entendido a precariedade da vida que nos era oferecida, aos poucos fui ganhando uma consciência. Consciência que compromete a minha escrita como um lugar de auto-afirmação de minhas particularidades, de minhas especificidades como sujeito-mulher-negra. (EVARISTO, 2005, p. 3) Segundo nos relata a escritora, ela não conheceu o pai biológico, sendo sua referência paterna, Aníbal, seu padrasto. A vivência com a mãe e as tias foi 42 influência fundamental na escrevivência de Evaristo. Sua mãe, a exemplo de Carolina de Jesus, registrava em diários os acontecimentos cotidianos, o que certamente inspirou a menina Conceição a registrar por escrito seus contos e fábulas. Esta experiência do escutar enriqueceu sua imaginação. Evaristo, à semelhança do griot, o contador de histórias nas tribos africanas, torna-se ela mesma porta-voz das tradições ancestrais da comunidade, transformando narrativas em texto literário. De mãe O cuidado de minha poesia Aprendi foi de mãe mulher de pôr reparo nas coisas e de assuntar a vida. [...] Foi de mãe esse meio riso dado para esconder alegria inteira e essa fé desconfiada, pois, quando se anda descalço cada dedo olha a estrada. Foi mãe que me fez sentir as flores amassadas debaixo das pedras os corpos vazios rente às calçadas e me ensinou, insisto, foi ela a fazer da palavra artifício arte e ofício do meu canto de minha fala. (EVARISTO: In Cadernos Negros, 2002, p. 34) 43 De seu local de enunciação, a favela, sua escrita abrange os socialmente excluídos ─ favelados paupérrimos, mendigos – sendo privilegiado o universo feminino. O realismo e a violência, a solidariedade e a fortaleza, estampados em sua narrativa, evidenciam o compromisso e a identificação da intelectualidade afrodescendente com aqueles colocados à margem do discurso canônico. Afirma Evaristo: Quando falamos de sujeito na literatura negra, não estamos falando de um sujeito particular, de um sujeito construído segundo uma visão romântico-burguesa, mas de um sujeito que está abraçado ao coletivo. (EVARISTO, 2010, p. 5) A presença de mulheres fortes e corajosas, como a mãe e as tias, com quem conviveu e trabalhou durante a infância, cujas conversas e confissões ─ talvez a única defesa que possuíam contra a opressão da sociedade ─ ouvia calada e marcam profundamente sua produção literária. Suas personagens femininas geralmente aparecem como chefes de família, cuidando dos filhos e lutando pela sobrevivência. Como cabeça da família, (as mulheres) elas construíam um mundo próprio, muitas vezes distantes e independentes de seus homens e mormente para apoiá-los depois. Talvez por isso tantas personagens femininas em meus poemas e em minhas narrativas? Pergunto sobre isto, não afirmo. (EVARISTO, 2005, p. 4) Desde criança Evaristo entendia sua condição social. Recorda que deve a seu tio Osvaldo as primeiras lições sobre negritude e “uma consciência, mesmo que difusa, de nossa condição de pessoas negras, pobres e faveladas” (EVARISTO, 2009, p. 3). Foi no curso primário que ela conheceu o que denominou de apartheid escolar. Os alunos pobres e os negros ficavam em um andar inferior aos demais alunos, “nos porões do navio, nos porões da escola” (EVARISTO, 2009, p. 4). Desde 44 cedo Conceição tinha consciência das lutas de que deveria participar coletivamente, por isso seu engajou-se politicamente. Quando ainda morava em Belo Horizonte participou da Juventude Operária Católica (JOC), movimento de cunho político. Embora, nesse momento, a questão racial ainda fosse discutida pela Igreja, já se ouvia falar do movimento negro, cujo lema Black is beautiful era conhecido pela escritora. Em 1973, quando vai morar no Rio de Janeiro, após aprovação em concurso público para o magistério, passa a integrar movimentos negros que, em virtude dos acontecimentos sociais da época, começavam a se institucionalizar. Participa do grupo Negrícia e, mais tarde, ingressa no Quilombhoje. Importante momento nas suas reflexões sobre a produção literária ocorre em 1976, quando ingressa no curso de Letras. Indignada com textos que apresentam visão estereotipada do negro, desenvolve um contradiscurso com dupla finalidade: denunciar a situação de opressão em que vivem os afrodescendentes e fazer uma revisão histórica para recuperar a identidade e a dignidade do negro no Brasil. Evaristo detém profundo conhecimento da história do sistema escravagista no Brasil, de cujos efeitos deletérios deseja libertar a si própria e aos seus. O aperfeiçoamento acadêmico no campo das Letras confere-lhe prestígio e, consequentemente, relevância a seu discurso sobre a presença e participação do negro na história do país. É neste período de vivência acadêmica que sua produção literária e ensaística começa a ser publicada. “Vozes-mulheres” inaugura uma série de poemas e contos nos Cadernos Negros. Resultado de reflexões acadêmicas sobre a produção dos escritos negros, em 1996, apresenta a dissertação de mestrado: Literatura negra: Uma poética de nossa afro-brasilidade. Outro trabalho acadêmico, que compara processos criativos, 45 temáticos e ideológicos de autores africanos de língua portuguesa com autores de literatura afro-brasileira, foi desenvolvido na tese de doutorado: Poemas malungos: cânticos irmãos. Os textos de Evaristo, para além do sentido estético, transitam entre espaços de movimentos sociais e acadêmicos, apresentando a mulher, negra, brasileira, militante política e pesquisadora, cujas reflexões relacionam-se a etnia e gênero, questionando a representação do negro na história e na literatura. “Toma-se o lugar da escrita, como direito, e ao mesmo tempo se toma o lugar da vida” (EVARISTO, 2005, p. 206). Sendo o nome de Conceição Evaristo reconhecido e prestigiado entre os escritores e intelectuais, suas obras continuam desconhecidas do grande público. A literatura afro-brasileira não ocupa, ainda, lugar de destaque dentro da literatura brasileira. Tampouco as editoras se interessam em publicações de grande escala, embora o incentivo da Lei nº 10.639 já tenha propiciado um avanço neste sentido. Embora a lei fosse sancionada no mesmo ano de publicação do romance Ponciá Vicêncio (2003), Evaristo teve dificuldades para editá-lo e teve que custear a primeira edição. Devido ao sucesso do livro, a mesma editora publicou Becos da memória (2006). Apesar do sucesso editorial dos romances, as produções Poemas de recordações e outros movimentos (2008) e Insubmissas lágrimas (2011) foram novamente total ou parcialmente patrocinadas pela autora. A literatura considerada de minorias está à margem do mercado editorial. Evaristo publicou seus dois romances pela editora Mazza e as coletâneas na Nandyala, editoras administradas por mulheres negras, que condizem com a concepção ideológica da autora. 46 1.2.1 Contradiscurso em prosa e verso As palavras foram sempre a paixão tanto da menina Conceição, como de seu alter ego, a personagem Maria Nova, do romance Becos da memória, a quem cabe a tarefa de fazer um relato de memória das experiências vividas no seio de uma família extensiva, que abrange avós, tios e tias, primos e primas, “como uma homenagem póstuma” (EVARISTO, 2006, p. 20). Escrevo como uma homenagem póstuma à Vó Rita, que dormia embolada com ela, a ela que nunca consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas, aos malandros, às crianças vadias que habitam os becos de minha memória. Homenagem póstuma às lavadeiras que madrugavam os varais com roupas ao sol. Às pernas cansadas, suadas, negras, aloiradas de poeira do campo aberto onde aconteciam os festivais de bola da favela. Homenagem póstuma ao Bondade, ao Tião Puxa-Faca, à velha Isolina, a D. Anália, ao Tio Totó, ao Pedro Cândido, ao Sô Noronha, à D. Maria, mãe do Aníbal, ao Catarino, à velha Lia, à Terezinha da Oscarlinda, à Mariinha, à Donana do Padin. Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela. (EVARISTO, 2006, p. 20-21) Ela “não sabia bem por que, mas todas as histórias que lhe vieram à mente [...] são as que ela testemunhava no dia-a-dia da favela” (EVARISTO, 2006, p. 67). Embora o texto se pareça muito com a experiência de vida de Conceição, a autora deixa claro que apenas se utiliza de fatos para narrar uma nova história. Este estilo literário é uma característica da literatura afro-brasileira, afirma ela à interlocutora da revista Magazine: Escrevi (Becos da Memória) a partir de situações que vivi e observei enquanto morava no Pindura Saia. Usei daquela realidade para construir um romance. Apesar de trazer situações que testemunhei de fato, não é um livro autobiográfico, apenas utilizo determinados fatos e da experiência de menina criada em favela. (EVARISTO, 2006, s/p) 47 Becos da memória foi escrito entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980e nele está explícita a necessidade de Evaristo de contar a história dos que sempre foram calados, de escrever uma história diferente, voltada para a transformação social. Nossa gente não tem conseguido quase nada. Todos aqueles que morreram sem se realizar, todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de hoje, libertam-se na vida de cada um de nós que consegue viver, que consegue se realizar. A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se realizar por meio de você. Os gemidos são sempre presentes. É preciso ter ouvidos, os olhos e o coração sempre abertos. (EVARISTO, 2006, p.103) Nas páginas iniciais do romance Evaristo afirma tratar-se de uma obra que “pode ser lida como ficções da memória ao narrar a ambiência de uma favela que não existe mais” (EVARISTO, 2006, p. 13). Passa então a narrar situações facilmente identificáveis com as do seu próprio mundo referencial: personagens que compõem o mundo da favela; o processo doloroso do desfavelamento, os tios Filomena e Totó, com quem a protagonista vai viver, para aliviar a pobreza da família. Grande parte das pessoas que viviam na favela era oriunda de zonas rurais, onde o trabalho permanecia quase o mesmo dos tempos da escravidão. Embora o êxodo rural trouxesse essas pessoas para a cidade, a relação de trabalho entre brancos e negros pouco mudou. Evaristo enfatiza em várias passagens a expressão “senzala-favela”, que Maria-Nova observa durante as aulas de história, e nas relações de trabalho entre as mulheres e suas patroas brancas. Assim como ocorre no romance Ponciá Vicêncio a vida não poupa ninguém, todos jogados na “senzala-favela, lutam para “[...] quebrar uma casca, não frágil, 48 como a de um ovo, mas uma casca dura, a da vida, aquela feita de ferro” (EVARISTO, 2006, p. 149). Aparecem também personagens como Cidinha-Codoca, prostituta conhecida como “rabo-de-ouro”, que andava descabelada e suja, sempre olhando o vazio dizendo que “ia morrer de não viver”; Maria-Velha, mulher de tio Totó, taciturna e raciona; Negro Alírio, que sabia ler; Mãe Joana, que carregava uma tristeza e nunca sorria; a mulata Dora, rainha do frevo e do Maracatu; a doméstica Ditinha, que não resiste às joias da patroa; Nazinha que, com 13 anos, é vendida pela mãe para um bandido. Nesse local não havia vida para se viver, ali estavam sobreviventes. Homens e mulheres sofriam as mesmas necessidades, fomes e discriminações (EVARISTO, 2006, p. 297-299). Maria-Nova, como Evaristo, gosta de “pôr o dedo na ferida, não na ferida alheia, mas naquela que ela traz dentro do peito, herdada de Mãe Joana, de MariaVelha, de Tio Totó. Maria Nova-Nova talvez tivesse o banzo no peito. Saudades de um tempo de uma vida que ela nunca vivera” (EVARISTO, 2006, p. 91). Banzo, no dicionário banto, “refere-se à nostalgia mortal que acometia negros africanos. Tristeza, saudade” (LOPES, 2004, p. 39). A menina quer descobrir de que forma um dia poderá contar não apenas as histórias que ouve, mas também aquelas que foram silenciadas. Um dia, durante as aulas de história teve uma ideia: “Quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente” (EVARISTO, 2006, p. 211). O fato de ser mulher e negra autoriza Evaristo a reescrever a vivência coletiva dos afrodescendentes. Daí o termo escrevivência, cunhado pela autora para designar a escrita como fruto tanto de suas próprias experiências como das 49 lembranças dos antepassados, marcadas pelo sofrimento, sob a escravatura e, hoje, no cotidiano difícil da mulher negra. Em entrevista, Evaristo compara o fazer literário, a arte de trabalhar as palavras a um ritual religioso. Atribui a mesma percepção da arte como criação divina a sua personagem Ponciá Vicêncio na moldagem do barro, o mesmo cuidado e esmero. Trabalhar a escrita, como moldar o barro, requer sensibilidade do artista com seu material de trabalho. Com o zelo da arte, atentava para as porções das sobras, a massa excedente, assim como buscava ainda significar as mutilações e as ausências que também conformam um corpo. Suas mãos seguiam reinventando sempre e sempre. E quando quase interrompia o manuseio da arte, era como se perseguisse o manuseio da vida, buscando fundir tudo num ato só, igualando as faces da moeda. (EVARISTO, 2003, p. 127-128) A figura autoral cria imagens das experiências vividas, idealizando-as em suas personagens. Utiliza-se do que Carole Boyce Davies entende por subjetividade autobiográfica, onde “a reescritura do lugar se converte em elo crucial na articulação da identidade. É um jogo de resistência à dominação que identifica de onde viemos, mas também localiza o lugar de origem em experiências transgressivas e disjuntivas” (DAVIES, 2001, p. 115). Tal afirmação vem ao encontro de um dos objetivos da literatura afrobrasileira, que é revisar na história oficial a presença do negro no Brasil, “surge como uma escrita, não sobre o negro, mas como uma produção literária, que explicita a fala do próprio negro enquanto sujeito que demanda a afirmação de sua própria voz” (EVARISTO, 2005, p. 4). A memória é elemento indispensável à reconstrução da história. É através dela que o homem atualiza impressões ou informações passadas e reescreve o 50 passado. Numa civilização oral como a africana, a acumulação de elementos na memória faz parte do cotidiano, como garantia de sua identidade, da transmissão de bens culturais e sabedoria dos ancestrais. Apesar da comunidade negra brasileira ter perdido quase toda a referência das línguas africanas, com exceção de adeptos do candomblé, a produção literária negro-brasileira se aproxima ora mais, ora menos de uma expressividade oral, herança das culturas africanas no solo brasileiro. Oralidade que garantiu a nossa memória e se presentifica na escrita afro-brasileira. (EVARISTO, 2009, p. 4) A herança das culturas africanas é particularmente evidenciada pela sucessão de arquétipos no conto Ayoluwa, a alegria do nosso povo (2005). Evaristo dá vida a uma comunidade negra mítica que se regenera com o nascimento de uma criança após longo período de esterilidade. O comentário de Mail Marques de Azevedo põe em relevo o caráter das personagens como arquétipos. No conto alegórico, não há personagem individualizadas, mas um conjunto de traços e qualificações que caracterizam a comunidade como um todo e fazem dela a protagonista da narrativa. Resiste diante do sofrimento, sábia, forte e paciente, a comunidade enfrenta uma crise de esterilidade da mãe terra, quando se rompe o ciclo de morte e renascimento que comanda a natureza. (FERNANDES, 2012, p. 130-131. Ênfase acrescentada) Afirma ainda a autora que a importância da tradição cultural, evidenciada no texto de Evaristo, é algo em comum com escritores afro-americanos, para quem os membros mais velhos das comunidades fornecem a conexão com as raízes de seu povo, preservam a sabedoria ancestral e instruem as novas gerações (AZEVEDO, citado em FERNANDES, 2012, p. 132). Para Toni Morrison, prêmio Nobel de 1993, um dos traços distintos da literatura afro-americana é a presença de um ancestral, homem ou mulher. “E esses ancestrais não são apenas os pais, são uma espécie de pessoas sem idade, cuja atitude em relação a personagens é benevolente, instrutiva 51 e protetora, e que transmitem uma sabedoria própria” (MORRISON,1986, p. 340). Os anciãos/anciãs em Ayoluwa, acumulados de tanto sofrimento, olham para trás e do passado nada reconheciam no presente, esquecidos da força que traziam em seus próprios nomes (EVARISTO, 2005, p.38). Quando, finalmente, se anuncia a próxima chegada de uma criança, as personagens-arquetípicas assumem o comando. “E no momento exato em que a vida milagrou no ventre de Bamidele, Omolara, aquela que tinha o dom de fazer vir as pessoas ao mundo, a conhecedora de todo ritual do nascimento, acolher a criança de Bamidele” (EVARISTO, 2005, p. 38). O significado de Omolara, o nome da responsável pelo parto de Bamidele, corresponde à sua função de presidir aos nascimentos. Evaristo conduz o leitor da visão arquetípica da comunidade negra para o significado do conto como alegoria da esterilidade da vida do homem negro, que carrega até hoje as marcas da escravidão e da opressão. É dever do escritor preservar a memória do ontem para denunciar as injustiças que se repetem no hoje. A necessidade da preservação da memória está presente no poema A noite não adormece nos olhos das mulheres; a voz poética lembra essa responsabilidade e a necessidade da resistência de forma paciente para se vencer a opressão. À noite, momento de descanso, de recuperação das forças físicas e espirituais, são as mulheres que permanecem em vigília. A noite não adormece nos olhos das mulheres a lua fêmea, semelhante nossa, em vigília atenta vigia a nossa memória. A noite não adormece nos olhos das mulheres, 52 há mais olhos que sono onde lágrimas suspensas virgulam o lapso de nossas molhadas lembranças [...] A noite não adormecerá jamais nos olhos das fêmeas pois do nosso sangue-mulher de nosso líquido lembradiço cada gota que jorra um fio invisível e tônico pacientemente cose a rede de nossa milenar resistência. (EVARISTO, 2008, p. 21) Novamente o tema de resistência que se transfere de geração para geração está presente no conto “Duzu-Querença” (1994). A personagem é uma mendiga que ainda menina vai trabalhar num prostíbulo. Como a maioria dos personagens de Evaristo, idealiza a cidade como local de oportunidades para um futuro promissor. A menina é deixada pelos pais para estudar. Em contraste com o estereótipo da mulher negra como prostituta e estéril, Duzu tem nove filhos. “Todos os filhos tiveram filhos. Nunca menos de dois” (EVARISTO, 1994, p. 33). Quando morre Duzu, permanece em sua neta Querença a luta por condições melhores de vida. No conto “Quantos filhos Natalina teve?” (1999), a escritora aborda o tema da sexualidade feminina na adolescência. Natalina está grávida e a voz do narrador, em terceira pessoa esclarece que desta vez a criança é desejada. Não era a primeira gravidez. Carente de afeto e informação, ainda menina Natalina ficara grávida de Bilico que “crescera com ela” (EVARISTO,1999, p. 33). Num ato de coragem foge para não ser forçada a abortar. Dá à luz o filho, que entrega para adoção “A menina-mãe saiu leve e vazia do hospital” (EVARISTO, 1999, p. 23). 53 Anos mais tarde, Natalina engravida novamente; independente e forte, recusa-se a casar com o namorado. A recusa do lugar socialmente reservado para a mulher, inverte a noção do casamento como caminho da realização feminina. De fato, Evaristo faz do ideal de ter marido, casa e filhos o sonho de Ponciá Vicêncio, que desde pequena observa a própria família: as mulheres trabalham e mandam na casa e os homens são calados. Ela deseja reproduzir este relacionamento da mãe e ter uma família feliz. Em Natalina a autora cria uma personagem carente de afeto, que não queria família alguma (EVARISTO, 1999, p. 24) e tece um desfecho violento para a história. Natalina é estuprada por um bandido da favela. Revoltada acerta um tiro na cabeça do homem, com a arma dele. Guardou mais do que a satisfação de ter conseguido retomar a própria vida. Guardou a semente invasora daquele homem. [...] O filho estava para arrebentar no mundo a qualquer hora. Estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca de ninguém, talvez nem dela. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte. (EVARISTO, 1999, p. 28) Natalina desconstrói a imagem mulher submissa, a heroína romântica. É dona de seu destino e não aceita ter a vida determinada por um homem. A única vez que alguém tentou controlar sua vontade, ela reagiu com violência. A violência das favelas também atinge as crianças. No conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” (2007) Evaristo retrata a vida da periferia de grandes cidades. A menina Zaíta está brincando e descobre que sumiu sua figurinha predileta “a figurinha-flor”. O conto gira em torno da busca dessa figurinha. Zaíta desarruma todos os brinquedos e os espalha pela casa, mas não a encontra. Sai do barraco pobre e caminha pelos becos da favela, à procura de seu tesouro. Absorta 54 na busca não ouve os gritos de alerta, em o ruído do tiroteio. Zaíta não foi a única criança vitimada por balas perdidas, naquele dia. A violência é ainda tema de “Canto 1” (2008), que enfatiza a necessidade de se ouvir a voz dos marginalizados, pois agora “não há mais quem morda a nossa língua”. Na poesia negra, o branco, a luz, o dia podem significar a cor e o tempo da humilhação, da negação. Tempo do branco, do algoz, palavras como “cidade alva” e “imerecido sono” remetem a esse conceito. O silêncio mordido rebela e revela nossos ais e são tantos os gritos que a alva cidade, de seu imerecido sono, desperta em pesadelo. E pedimos que as balas perdidas percam o rumo e não façam do corpo nosso, de nossos filhos, o alvo. O silêncio mordido, antes o pão triturado de nossos desejos, avoluma, avoluma e a massa ganha por inteiro o espaço antes comedido pela ordem. E não há mais quem morda a nossa língua o nosso verbo solto conjugou antes o tempo de todas as dores. 55 E o silêncio escapou ferindo a ordenança e hoje o inverso da mudez é a nudez do nosso gritante verso que se quer livre. (EVARISTO, 2008, p.27) Conceição Evaristo assume que sua escrita é fruto de suas próprias experiências. Afirma no ensaio Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira (2010), que, especialmente para os povos colonizados, a poesia pode configurar um local de manutenção e propagação da memória identitária, por isso é local, também, de contradiscurso. No poema “Eu-mulher” (1990) atesta a importância da mulher que gera a vida, que move o mundo, representado por imagens de sangue e semente. Não deve haver passividade. A voz mesmo baixa precisa continuar a tecer esperança. Eu-mulher Uma gota de leite me escorre entre os seios. Uma mancha de sangue me enfeita entre as pernas Meia palavra mordida me foge da boca. Vagos desejos insinuam esperanças. Eu-mulher em rios vermelhos inauguro a vida. Em baixa voz violento os tímpanos do mundo. Antevejo. Antecipo. Antes-vivo Antes agora o que há de vir. 56 Eu fêmea-matriz. Eu força-motriz. Eu-mulher abrigo da semente moto-contínuo do mundo. (EVARISTO, 1990, p.34) Sua terra natal é lembrada no poema “Mineiridade” (2008). O uso de expressões típicas dialetais de Minas como “trem”, “uai”, remetem a Minas Gerais. A voz do eu-lírico expressa saudades da terra mineira que deixou para trás com pesar. A imagem da cidade maciça, onde construções de cimento se amontoam sem preocupação com a beleza se aplicam à personagem, que se sente machucada e sem jeito. Quando chego de Minas trago sempre na boca um gosto de terra. Chego aqui com o coração fechado, Um “trem” esquisito no peito. Meus olhos chegam divagando saudades, meus pensamentos cheios de “uais” e esta cidade aqui me machuca me deixa maciça, cimento e sem jeito. (EVARISTO, 2008, p.32) A escrita de Conceição Evaristo ajuda a subverter os estereótipos da mulher negra. “A mulher negra não é só pra ser corpo, beleza, dança. Negro é lindo, mas lindo também porque pensa, porque escreve, porque debate, porque luta” (EVARISTO, 2010, p. 3). As personagens de Evaristo apresentam características psicológicas e culturais em vez de aspectos físicos, e desempenham papéis “que a literatura brasileira, no geral, reservou às mulheres brancas, tais como: o de mãe, líder 57 espiritual, detentora do conhecimento e da memória” (PALMEIRA; SOUZA, 2008, citado em MOREIRA, 2010, p. 62). São personagens que compartilham a experiência de quem sente, sofre e vive a experiência da exploração e da discriminação, que gostam de “pôr o dedo na ferida”, como Maria-Nova para revelar a experiência histórica do negro. 1.2.2 Ponciá Vicêncio O romance Ponciá Vicêncio lançado em 2003, ganhou nova edição em 2005, sendo indicado para o vestibular da UFMG em 2008. É a publicação mais elogiada pela crítica literária – possui versão em inglês e francês – e, desde o lançamento, vem sendo objeto de inúmeros estudos acadêmicos. O romance estará na trigésima quinta edição do Salão do Livro de Paris, no mês de março deste ano. A história poética da menina negra, que busca compreender seu pequeno mundo e os que nele vivem, é uma combinação intrincada de mito e fantasia, de dor, violência e injustiça, o que permite diferentes níveis de leitura. Segundo Eduardo de Assis Duarte, O texto (de Ponciá Vicêncio) destaca-se também pelo território feminino de onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado, sim, pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se que no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado em contraponto com a história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito gendrado, tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que, sem descartar a necessidade histórica do testemunho, supera-o para torná-lo perene na ficção. (DUARTE, 2006, p. 308) 58 O romance afro-brasileiro apresenta um discurso vinculado às matrizes culturais africanas ─ marcado no romance de Evaristo pela necessidade de recuperar a memória ancestral ─ num “discurso revelador de um processo de conscientização do ser negro entre brancos” (BERND, 1988, p. 48). A trajetória de Ponciá é representativa da inferiorização da mulher negra em nossa sociedade, o que inclui a própria autora. “Há uma relação muito grande entre o sujeito autoral com a ficção na literatura afro-brasileira. Mas Ponciá tem uma história própria, embora eu parta da vivência na comunidade negra para tirar os elementos da ficção” (EVARISTO, 2007, p. 1). A autora admite que se utiliza de memórias pessoais, acumuladas durante toda a vida, para descrever o sofrimento de seus antepassados na diáspora negra e o martírio da escravidão: Ponciá Vicêncio nasceu talvez de um acúmulo de memória, de palavras, de situações vividas e testemunhadas por mim. [...] É uma escrita realista, na medida em que é a narrativa de fatos relacionados à trajetória dos africanos e seus descendentes no Brasil. (EVARISTO, 2007, p. 4) O romance é estruturado como narrativa de memória, em que o narrador adulto resgata reminiscências. A personagem-título é perseguida pelo passado, que procura desvendar em constante fusão com o presente. As lembranças de cenas cotidianas da infância e da adolescência, envolvendo sua família e a comunidade, são apresentadas de forma fragmentada e em contraposição a reflexões de vida de uma Ponciá já adulta. Desse modo, a personagem busca unir os recortes que compõem a sua história, a fim de reconstruir o passado e buscar compreender quem ela é realmente na cadeia de seres humanos que a precederam. 59 A narrativa configura-se como um Bildungsroman feminino e negro ao dramatizar a busca quase intemporal da protagonista, a fim de recuperar e reconstituir família, memória, identidade. No entanto, o ímpeto antropofágico se faz presente na postura de rasurar o modelo europeu para conformá-lo às peculiaridades da matéria representada. Assim, a apropriação feita por Conceição Evaristo ganha contornos paródicos, pois em lugar da trajetória ascendente do personagem em formação, oriunda de Goethe e tantos mais, o que se tem é um percurso de perdas materiais, familiares e culturais. E, em lugar da linearidade triunfante do herói romanesco, temos uma narrativa complexa e entrecortada, a mesclar de forma tensa passado e presente, recordação e devaneio. (DUARTE, 2006, p. 308) Em resumo, o enredo do romance é a reconstrução de lembranças do passado que leva Ponciá da infância na Vila Vicêncio à partida em busca de vida melhor na cidade grande; ao grande vazio em que se transformaria sua existência, e, finalmente, à descoberta do que “devia fazer. Ia tomar o trem, voltar ao povoado, voltar ao rio” (EVARISTO, 2003, p. 123). A estrutura circular da narrativa é evidenciada pela repetição, nas frases de abertura e fechamento, de referências ao arco-íris, símbolo dos mistérios da natureza, recorrente no enredo. A professora Maria José Somerlate Barbosa, da University of Iowa, que prefaciou o livro, aponta as questões formais e temáticas na construção do romance: A repetição intencional de certas frases tem o efeito de ligar os fatos, de conectar passado e presente e de enfatizar certas facetas do mundo interior das personagens. As diversas partes do texto (cada uma enfocando um dos personagens) vão se intercalando, como peças de um jogo ou de um quebracabeça. As frases curtas, quase secas, o uso de poucos adjetivos e de poucas conjunções aditivas contrastam claramente com a quantidade de emoções e de sentimentos que escorrem pelas entrelinhas”. (BARBOSA, 2003, apud: EVARISTO, 2003, p. 5) 60 Para Assis Duarte, o livro, exemplo de romance afro-brasileiro, surge para polemizar a tese segundo a qual a escrita dos descendentes de escravos estaria restrita ao conto e à poesia. Se entendido como texto de autoria afrodescendente, tratando de tema vinculado à presença desse segmento nas relações sociais vividas no país, a partir de uma perspectiva identificada politicamente com as demandas e com o universo cultural afro-brasileiro e destacando ainda o protagonismo negro nas ações, em especial aquelas em que se defronta com o poder e com seus donos, não há dúvida de que Ponciá Vicêncio não só preenche tais requisitos, como ocupa o lugar supostamente vazio do romance afro-brasileiro. (DUARTE, 2006, p. 309) Grande parte da narrativa é construída por analepses11, a personagem relembra a sua infância na vila em que morava com a família. É através das lembranças de Ponciá Vicêncio que se estabelece um diálogo com o passado. Ponciá vai abandonando o mundo presente e mergulhando em suas memórias, indo do mundo que a cerca para entrar em um mundo interior. Conceição Evaristo reúne passado e presente para resgatar a infância de Ponciá e contar a história de seu povo. Para Somerlate Barbosa, Conceição Evaristo traça a trajetória da personagem da infância à idade adulta, analisando seus afetos e desafetos e seu envolvimento com a família e os amigos. Discute a questão da identidade de Ponciá, centrada na herança identitária do avô e estabelece um diálogo entre o passado e o presente, entre a lembrança e a vivência, entre o real e o imaginado. Ponciá é uma pessoa que, como o avô, foi acumulando partidas e vazios até culminar numa grande ausência. (BARBOSA,2003, apud EVARISTO, 2003, p. 5) Marcadores temporais como, por exemplo, “Nos tempos da roça” (EVARISTO, 2003, p. 27), “No dia em que...” (p. 5), “Numa tarde clara” (p. 30), “No tempo do fato acontecido” (p. 51), levam o leitor a conhecer o passado da 11 Recuo com relação ao tempo da narrativa, segundo Gerard Genette. 61 personagem, pelos processos de recordar de Ponciá, um processo que Evaristo define como característico de sua escrita. E desse assuntar a vida [...] ficou essa minha mania de buscar a alma, o íntimo das coisas. De recolher os restos, os pedaços, os vestígios, pois creio que a escrita, pelo menos para mim, é o pretensioso desejo de recuperar o vivido. [...] E na tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo. Escrevo sabendo que estou perseguindo uma sombra, um vestígio talvez. (EVARISTO, 2010, p. 4) A narrativa em terceira pessoa é interrompida por digressões e reflexões da personagem: “O que acontecera com os sonhos tão certos de uma vida melhor?” (EVARISTO, 2003, p. 55). “Foi bom os filhos terem morrido. Nascer, crescer, viver para quê?” (p. 82), “De que valia ler? De que valia ter aprendido a ler?” (p. 91), “Seria isso vida, meu Deus?“ (p. 33). Ponciá viaja pelo espaço temporal e físico em busca de sua ancestralidade e identidade. Está consciente da vida miserável que os afrodescendentes viviam ali na Vila Vicêncio: mulheres e crianças plantavam para sobrevivência, e os homens para enriquecer o dono das terras. Segundo a pesquisadora Renata Costa, Evaristo consegue, por meio da personagem Ponciá, dar voz aos vencidos, que encontram na literatura um dos poucos caminhos possíveis para a construção de um mundo seu, onde os compassos que dão vida a esse universo foram delineados a partir de suas próprias experiências. Neste sentido, a fala de Ponciá simboliza, parafraseando Jim Sharpe (1992), “novas perspectivas de se explorar o passado”, nas quais o discurso dos grandes homens da história cede lugar ao dos oprimidos. (COSTA, 2007, p. 58. Ênfase original) A pesquisadora Aline Arruda considera o romance uma espécie de diáspora interna, ou seja, a viagem de Ponciá como paradigma das migrações de tantos brasileiros em busca de uma vida melhor. 62 Longe de fixar o sujeito feminino negro em esquemas rígidos de representação, que pressupõem uma autenticidade ou pureza como marcas identitárias, a autora de Ponciá Vicêncio explora, ao longo da narrativa, os espaços migratórios percorridos pela protagonista em busca de sua própria história, revelando, desta forma, uma construção identitária em incessante processo. (ARRUDA, 2007, p. 95) Na história de Ponciá Vicêncio encontramos um sujeito étnico marcado pela exclusão, que utiliza a memória e o testemunho para reescrever a história dos afrodescendentes sob a ótica da mulher negra. 63 2 MITO E ARQUÉTIPOS Graças ao mito, o Mundo pode ser discernido como Cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo. Mircea Eliade12 Em pleno século XXI o homem se deleita com narrativas fantásticas nas mais diversas formas – quadrinhos, mangas, filmes, animações ─, povoadas por hobbits, seres mutantes, robôs, monstros cibernéticos, em um número infinito de variações. A explicação talvez esteja na ânsia por segurança e estabilidade, o que é próprio do mundo da fantasia, onde o herói sempre derrota o dragão e restaura a paz no reino. A fantasia responde, assim, à necessidade humana de segurança, mesmo que em um mundo alternativo, onde problemas, muitas vezes ocultos no mundo factual, são solucionados magicamente. Com o avanço da civilização, o mito perde a característica de verdade, de que gozava nas sociedades primitivas, e o termo passa a sinônimo de fábula, invenção, ficção. Em meados do século XX, porém, como ressalta Mircea Eliade, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde designa uma história verdadeira, “extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo” (ELIADE, 2006, p. 7-9). Compreender a estrutura e a função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos. (ELIADE, 2006, p. 8) A função do mito consiste, portanto, em revelar modelos que fornecem significado ao mundo e à existência humana, ajudando-nos a perceber o que está além do cotidiano, a interpretar a razão de nossas motivações últimas. Trata-se de 12 ELIADE (2006, p. 128). 64 material coletivo, cujos temas se repetem de forma quase idêntica, na mitologia e no folclore de diversos povos, como imagens simbólicas que pertencem a qualquer tempo e lugar. São mitos que variam muito nos seus detalhes, mas quanto mais os examinamos mais percebemos quanto se assemelham estruturalmente. Isso quer dizer que guardam uma forma universal mesmo quando desenvolvidos por grupos ou indivíduos sem qualquer contato cultural entre si. (JUNG, 2008, p. 142) A psicologia analítica desenvolvida por Jung define essas imagens como parte do inconsciente coletivo, comuns a todos os seres humanos, a que denominou arquétipos. No pensamento junguiano, o inconsciente coletivo guarda os símbolos e arquétipos de uma civilização que, através dos sonhos e delírios, fornecem imagens utilizadas nas artes, na cultura e nas religiões. Do mesmo modo que os sonhos são constituídos de um material preponderantemente coletivo, assim também na mitologia e no folclore dos diversos povos certos temas se repetem de forma quase idêntica. A estes temas dei o nome de arquétipos, designação com a qual indico certas formas e imagens de natureza coletiva, que surgem por toda a parte como elementos constitutivos dos mitos e ao mesmo tempo como produtos autóctones individuais de origem inconsciente. (JUNG, 1978, p. 55-56. Ênfase acrescentada) A respeito da recorrência de imagens arquetípicas em diversos povos, Joseph Campbell que, junto a Eliade e Jung, fez parte do Círculo de Eranos13, ressalta que há, sem dúvida, diferenças entre as inúmeras religiões e mitologias da humanidade, mas percebidas as semelhanças, constata-se que as diferenças não 13 Grupo de estudiosos de vários países das mais diversas áreas, interessados na hermenêutica das imagens, dos símbolos, do sagrado e dos mitos no imaginário das culturas. (Também fizeram parte do grupo: Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Henri Corbin, Rudolf Otto, Walter Otto, Ernst Cassirer, George Dumézil, Raffaele Pettazzoni, Claude Lévi-Strauss, Kurt Hubner, Manfred Frank, entre outros.) (Ascona – Suíça,1933-1988). 65 são muito amplas (CAMPBELL, 1995). Reforça o argumento com uma citação do livro dos Vedas: “a verdade é uma só, mas os sábios falam dela sob muitos nomes” (CAMPBELL, 1995, p. 12). Assim como os arquétipos, os sonhos são constituídos de material preponderantemente coletivo. Em O herói de mil faces, Joseph Campbell aponta que as revelações manifestadas nos sonhos: “assim como os símbolos da mitologia não são fabricados, não podem ser ordenados e nem inventados, ou ainda suprimidos de forma definitiva [...], os símbolos do sonho são produções espontâneas da psique” (CAMPBELL, 1995, p. 15). É preciso ficar atento à ciência que interpreta os sonhos, pois ela “desempenha a função e o papel de um antigo mistagogo, ou guia dos espíritos, o curandeiro iniciador dos primitivos santuários florestais das provas e iniciações” (CAMPBELL, 1995, p. 19). Tem significado modelar o mito do herói, cuja figura povoa desde sempre o imaginário da humanidade. Seja na literatura ou no cotidiano, o herói nos fascina por representar a superação dos limites do homem comum. O herói não se abate diante de provações e obstáculos, mas permanece firme e vitorioso, e recebe, ao final da jornada, a recompensa que poderá transformar sua própria vida e a vida de muitos. Conforme estudos da psicanálise, a lógica do herói e os feitos dos mitos permanecem vivos até hoje e, “na ausência de uma efetiva mitologia geral, cada um de nós tem seu próprio panteão de sonhos, privado, não reconhecido, rudimentar e, não obstante, secretamente rigoroso” (CAMPBELL, 1995, p. 16). O termo herói designa o protagonista de uma narrativa mitológica, ou, nos tempos helênicos, da epopeia e da tragédia. A representação do herói varia consoante as épocas, as correntes estético-literárias, os gêneros e subgêneros, mas não foge a uma projeção ambígua: “por um lado, representa a condição humana, na 66 sua complexidade psicológica, social e ética; por outro, transcende a mesma condição, na medida em que representa facetas e virtudes que o homem comum gostaria de atingir”, embora isto lhe seja impossível (CEIA14, 2010). Sua figura aparece desde a antiguidade clássica, quando os heróis estavam numa posição intermediária entre os deuses e os homens, os primeiros retratados com vícios e virtudes humanas, e os segundos, embora sendo mortais, possuíam poderes especiais. São desta fase Hércules, Ulisses e Aquiles, exemplos cujos feitos de vitórias e atitudes de coragem, astúcia e persistência representam os valores que o povo grego cultuava. A tragédia é também deste período, caracterizada pela liberdade de ação e desfecho catastrófico como a do herói Édipo, de Sófocles. Uma alternativa a este herói clássico surge muitos séculos depois, o romântico, que vai utilizar o drama para expressar o sofrimento, tema característico da escola literária romântica, do século XIX. Ainda há o herói naturalista, fruto da hereditariedade, da educação e espelho dos conflitos psicossociais, que representavam a sociedade em crise. É nesta fase que surge o anti-herói, personagens como Leonardo, do romance Memórias de um sargento de milícias (1852), de Manuel Antônio de Almeida. É também nesse momento que a figura do negro ou mestiço desponta na literatura como personagem principal e, embora seja apresentada como virtuoso, mantém-se no papel de vítima, como a personagem homônima da obra Escrava Isaura (1872), de Bernardo Guimarães, e a exemplo do poema Navio negreiro (1883), de Castro Alves. O poeta denuncia com veemência o tráfico de escravos, mas, embora crie impressionantes, não faz qualquer menção sobre revolta ou reação dos escravos. 14 CEIA, C. Dicionário de termos literários. 67 No século XX o romance e o teatro existencialistas põem em xeque o conceito de herói. O homem surge como um ser sem sentido, num mundo absurdo (Sartre, Beckett), enquanto o realismo socialista promove um novo tipo de herói: operário, sindicalista, comprometido no campo social e no político, denunciador da corrupção e da opressão, empenhado na sua transformação. Essa nova visão do herói, voltado à realidade, preocupado com as questões sociais distancia-se cada vez mais dos heróis clássicos e é nessa perspectiva que a literatura apresenta maior quantidade de textos voltados às questões sociais. Movimentos sociais reivindicam direitos para as minorias, e na literatura questiona-se o cânone, valorizando questões sociais e culturais e não apenas a questão estética das obras. Uma das temáticas que afloram é a revisão da personagem negra na literatura, da qual permaneceu uma caracterização negativa e folclórica, com raras exceções, em nossa literatura até meados do século XX. A posição de subalternidade que o relegou a invisibilidade e que durante séculos, teve um representante que falava por ele, reforçou seu silenciamento. Personagens descritos com estereótipos, que em nada valorizam ou ressaltam a importância da cultura africana na formação da cultura popular brasileira. Surge uma literatura caracterizada pela presença de personagens negros cuja marca é a experiência do sujeito negro que reivindica seu espaço na sociedade brasileira, passa a ter sua própria voz, sujeito ativo no processo de construção e reconstrução da imagem do negro na literatura brasileira. Todo ser humano nasce com a marca do herói e tem uma jornada a seguir. Embora o processo seja universal, pode ocorrer de várias maneiras, dependendo da cultura de cada povo. Este herói é projetado nas figuras míticas, como metáfora de 68 algo que ocorre no sujeito, as quais Campbell agrupa segundo o critério da similaridade. Há, sem dúvida, diferenças entre as inúmeras religiões e mitologias da humanidade, mas este livro trata das semelhanças; uma vez compreendidas as semelhanças, descobriremos que as diferenças são muito menos amplas do que se supõe popularmente (bem como politicamente). (CAMPBELL, 1995, p. 12) Qualquer que seja essa categorização existe nelas um eixo comum, que Campbell denomina estrutura central do monomito15 ─ termo tomado de empréstimo a James Joyce, que o utiliza em Finnegans Wake ─ que abrangeria as fases de separação-iniciação-retorno, próprias dos ritos de passagem nas sociedades primitivas. Essa é também a estrutura que organiza a análise do romance de Conceição Evaristo, em consonância com as características arcaicas de Vila Vicêncio e de seus personagens. Isolada do mundo, a comunidade exemplifica os enclaves tribais em que se constituem os indivíduos da diáspora negra, com práticas culturais próprias: crenças, costumes, curandeirismo, medicina, manejo do solo, relações familiares, enfim a visão de mundo. 2.1 O HERÓI MODERNO O mito vai perdendo o caráter de revelação de uma verdade, para dar origem aos contos populares, folclóricos e contos de fadas, em que uma situação inicial de equilíbrio é quebrada por algum motivo de conflito ou insegurança. Afirma Campbell (1995, p. 138) que “a façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpado alguma coisa, ou que sente estar faltando 15 No ensaio “Uma Chave-Mestra para o Finnegans Wake”, Joseph Campbell e Henry Morton Robinson expressam a ideia do herói de mil faces: “Finn tipifica todos os heróis – Thor, Prometeu, Osíris, Cristo, Buda – em cuja vida e através de cuja inspiração a raça humana se alimenta. E é porque Finn volta de novo (Finn-again) – em outras palavras, pela reaparição do herói – que a força e a esperança são devolvidas à humanidade” (CAMPBELL; ROBINSON, 1971, p. 107-108). 69 algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade”. Este é um dos sinais do chamado do herói, que pode ocorrer de várias maneiras. Seja qual for a forma do chamamento o “indivíduo entra numa relação com forças que não são plenamente compreendidas [...] produzidas por nascentes inesperadas [...] tão profundas quanto a própria alma” (CAMPBELL, 1995, p. 60) A resposta ao chamamento pode ser voluntária ou provocada por situações alheias à vontade do herói. Este pode ser arrebatado por forças desconhecidas e irresistíveis; atraído por algum fenômeno estranho ou, ainda, enfeitiçado por seres sobrenaturais, detentores de poderes mágicos. Conceição Evaristo coloca sua personagem, Ponciá, em situação de desequilíbrio e desconforto: a família paupérrima, as ausências do pai, o isolamento de qualquer contato com outras pessoas, e, como fator decisivo para a separação de Ponciá de seu próprio mundo, o sentimento de incompletude da heroína, que não reconhece sequer seu próprio nome. Mas compete ao herói aceitar ou recusar o chamado, que constitui a primeira etapa, a separação. Se aceitar, perceberá que não está só: contará com o auxílio de um ajudante, com frequência, um ancião ou anciã detentor de sabedoria, que irá ajudá-lo a entender e aceitar o auxílio sobrenatural para enfrentar obstáculos na jornada. Se recusar, poderá ficar enfeitiçado para sempre ou depender, para ser salvo, da intervenção de outros heróis (CAMPBELL, 1995, p. 39). O herói difere dos outros membros da comunidade por aceitar o convite e ser compelido a ultrapassar o limiar do mundo conhecido, para tomar o caminho da aventura. Já as pessoas comuns preferem permanecer dentro do limiar da prudência, onde se sentem seguras e protegidas pelo meio social, receosas de se aventurar por lugares desconhecidos e perigosos. 70 O herói que falha na missão de conquistar ou aplacar a força do limiar é jogado no desconhecido, metaforizado por Campbell como o ventre da baleia, dando a impressão de que morreu. A região desconhecida pode ser uma terra distante ou um profundo estado onírico, mas pode ser também uma floresta, um mundo subterrâneo: “os exemplos podem ser multiplicados, ad infinitum, vindos de todas as partes do planeta” (CAMPBELL, 1995, p. 66). Quando ultrapassar o limiar, o herói está pronto para a iniciação que se constitui em percorrer o caminho do aprendizado, ponteado de provações, rumo à apoteose. Na superação dos obstáculos, o herói descobre um poder que o sustenta em sua jornada sobre-humana, auxiliado pelos agentes sobrenaturais que havia encontrado logo ao aceitar o chamado. Na fase do retorno, o herói poderá encontrar ainda algumas dificuldades e mesmo recusar-se a regressar a seu mundo. Se assim acontecer, receberá novamente um auxílio externo, para que possa cumprir a jornada. A circularidade do enredo do romance Ponciá Vicêncio, que postulamos acompanhar em paralelo as fases do monomito, bem como os significados subjacentes à personagem como elo mítico entre as gerações, justificam a leitura arquetípica do romance. O aspecto mitológico é de total relevância no romance de Evaristo, cuja personagem título, Ponciá Vicêncio, encarna à perfeição o herói ou heroína dos contos folclóricos e populares que deve afastar-se dos seus, em busca da benesse final. 71 3 A TRAJETÓRIA CÍCLICA DO MOMONITO EM PONCIÁ VICÊNCIO Não há nenhum fenômeno natural e nenhum fenômeno da vida humana, que não seja passível de uma interpretação mítica e que não peça uma tal interpretação. Ernst Cassirer16 Dedicado à análise do romance, o terceiro capítulo acompanha a jornada mítica da heroína, cujo ponto de partida é também o ponto de chegada, de onde o título “trajetória cíclica”. Estruturou-se a análise da personagem, Ponciá, conforme reorganização das fases do monomito, indicadas por Campbell: separação, iniciação e retorno. No estudo meticuloso dos mitos heroicos de diversos povos e períodos da história da humanidade, na obra seminal O herói de mil faces, Campbell subdivide as três fases da aventura do herói em 17 etapas descritivas. A AVENTURA DO HERÓI A partida 1. O chamado da aventura 2. A recusa do chamado 3. O auxílio sobrenatural 4. A passagem pelo primeiro limiar 5. O ventre da baleia A iniciação 1. O caminho de provas 2. O encontro com a deusa 3. A mulher como tentação 4. A sintonia com o pai 5. A apoteose 6. A bênção última O retorno 1. A recusa do retorno 16 CASSIRER (1994, p. 123). 72 2. A fuga mágica 3. O resgate com auxílio externo 4. A passagem pelo limiar do retorno 5. Senhor dos dois mundos 6. Liberdade para viver (CAMPBELL, 1995, p. 5-6) Considerando a proposta mais restrita desta pesquisa, algumas subdivisões foram conjugadas ou, no caso de pouca aplicabilidade ao texto de Evaristo, eliminadas. Para tornar mais efetiva a utilização do modelo de Campbell, tomaramse as etapas selecionadas como pontos de análise, identificados por referências ao romance. Na primeira fase, denominada o mundo conhecido, analisou-se a estranheza com o próprio nome, a semelhança com Vô Vicêncio e a ausência do pai. No caminho de provas que constituem a iniciação da heroína, são comentados, a passagem pelo primeiro limiar, a cidade estranha, o primeiro retorno e o silenciamento. Para fechar a trajetória na fase do retorno, foram considerados: a recusa do chamado, a fuga mágica, o resgate com auxílio externo, a herança de Vô Vicêncio e a liberdade para viver. Como em toda narrativa em prosa ─ especificamente, neste caso, nos mitos e contos populares─ a trama se desenvolve a partir da ruptura da situação inicial de equilíbrio por conflitos internos ou externos ao personagem: morte na família; falha das colheitas; desastres naturais, ataques de animais ou violência dos próprios homens. Entre a ruptura ─ ou separação, ou afastamento ─ e a iniciação, indica Campbell, o herói pode hesitar e adiar o início da jornada. Seria a recusa ao primeiro chamado, por covardia ou medo. O processo de iniciação dos meninos nas sociedades tribais é traumático: separação da mãe, testes de coragem, provas de vigor físico e de resistência à dor. A iniciação das meninas ─ nos cuidados da casa e no cultivo da terra; no preparo de 73 remédios e trato dos doentes; na confecção de roupas e utensílios domésticos, e na alimentação da família ─ dispensa afastamento. É feita em casa no convívio diário com a mãe. Ponciá é submetida a todos os rituais da iniciação feminina, com o acréscimo do aprendizado da arte de modelar o barro, que faz dela testemunha da existência de seu avô, “o homem que ela havia copiado de sua memória para o barro” (EVARISTO, 2003, p. 29). De acréscimo, Ponciá é escolhida também para desempenhar o papel do herói masculino e ingressar no caminho das provas. As características que aproximam Ponciá de mundos que vão além dos limites do factual ─ a visão da misteriosa mulher transparente no milharal, a reprodução no próprio corpo da postura do avô ─ justificam a escolha da abordagem arquetípica, especificamente do modelo do monomito de Joseph Campbell, para a análise da personagem. Parece-nos a mais adequada para os propósitos deste trabalho: verificar no romance de Evaristo seu objetivo como escritora negra engajada na tarefa de dar voz a seu povo, mediante o emprego de imagens, personagens, desenhos narrativos, temas e outros recursos literários característicos da cultura negra. A narrativa é feita da perspectiva de uma voz onisciente, em terceira pessoa, que se desloca no tempo para acompanhar o pensamento da personagem, e iniciase em media res: “Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda a sua infância. Diziam que menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino” (EVARISTO, 2003, p. 13). A visão do arco-íris tem mais de uma função no romance, desde a passagem de abertura, na qual esclarece a sequência temporal e identifica o espaço da narrativa. Naquela tarde, Ponciá Vicêncio olhava o arco-íris e sentia um certo temor. Fazia tanto tempo que ela não via a cobra celeste. Na cidade, depois de tantos anos fora 74 da terra, até se esquecia de contemplar o céu. (EVARISTO, 2013, p. 14. Ênfase acrescentada) A percepção de que está há anos fora da terra, provocada pelo arco-íris, informa ao leitor o esquema espaço-temporal da narrativa e os sentimentos da personagem: a cidade que não é a terra, a sua terra, aquela que lhe pertence, mas um espaço neutro, onde o tempo se mede em número de anos não definido. É a aparição de um enorme e multicolorido angorô, no vocabulário banto, que encerra o ciclo e, na frase final, a narrativa em si. Lá fora, no céu cor de íris, um enorme angorô multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio. (EVARISTO, 2003, p. 128) Ponciá está de volta à terra, mas sua imagem não é a do herói vitorioso: Luandi José Vicêncio, o irmão, olha com tristeza o rosto conturbado de Ponciá, que caminhava em círculos “enquanto todo o seu corpo estremecia num choro doloroso e confuso” (EVARISTO, 2003, p. 127). No retorno, dependendo das escolhas feitas e ensinamentos conquistados na jornada, poderá ocorrer um processo interno de transformação do herói. Campbell expande a explicação: O trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoaram o herói, ele agora retorna sob sua proteção (emissário); se não for este o caso, ele empreende fuga. No limiar do retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói emerge do reino do terror (retorno, ressurreição). (CAMPBELL, 1995, p. 242) Ao emergir do reino do terror ─ a cidade inóspita e o barraco miserável na favela, onde o amor se transformara em repulsa e indiferença ─ Ponciá isola-se dentro de si mesma. Foge do mundo das coisas materiais para o mundo mítico, com que sempre se identificou. Lá encontraria refúgio nas águas do rio, que a guardariam 75 na segurança do ventre materno. Não sem antes deixar aos seus a herança de uma memória redentora. 3.1 O MUNDO CONHECIDO Um dos fatos do enredo que nos leva a relacionar a trajetória de Ponciá com a jornada do herói, descrita por Campbell, ocorre antes de seu nascimento para o mundo factual: o bebê, no ventre da mãe já apresentava sinais de que seria diferente, pois ria e chorava. “O aviso de que a menina estava apenas emprestada no seu ventre foi dado ali pelos sete meses” (EVARISTO, 2003, p. 124). Ponciá Vicêncio menina chorou três dias seguidos na barriga da mãe [...] e, para acalmar a menina, a mãe intuitivamente caminhou para o rio e à medida que adentrava nas águas a filha ia se acalmando. [...] Quatro luas depois, nasceu gargalhando um riso miúdo, mas profundo, de criança bem pequena. Maria Vicêncio guardou o segredo de todos, sabia que sua filha seria diferente de todos os outros moradores. [...] Nem para o marido falou, só para Nêngua Kainda, aquela que tudo sabia, mesmo se não lhe dissessem nada. (EVARISTO, 2003, p. 125) Capaz de enxergar de olhos abertos e fechados, desde pequena “assistia a coisas que muita gente não percebia” (EVARISTO, 2003, p. 42). O ser diferente, porém, não impede a menina de ter uma infância feliz. Do presente da narrativa, na favela da cidade grande, em meio aos obstáculos do caminho de provas, Ponciá reconstrói de memória seu mundo conhecido, a Vila Vicêncio. Naquela época Ponciá gostava de ser menina. Gostava de ser ela mesma. Gostava de tudo. Gostava. Gostava da roça, do rio que corria entre as pedras, gostava dos pés de pequi, dos pés de coco-de-catarro, das canas e do milharal. Divertia-se brincando com as bonecas de milho, ainda em pé. Elas eram altas e, quando dava o vento, dançavam. Ponciá corria e brincava entre elas. O tempo corria também. Ela nem via. O vento soprava no milharal, as bonecas dobravam até o chão. Ponciá Vicêncio ria. Tudo era tão bom! (EVARISTO, 2003, p. 13) 76 Os aspectos físicos desse mundo idílico foram agrupados em torno dos quatro elementos da natureza, apontados pelos filósofos pré-socráticos: água, terra, fogo, e ar. O elemento água é inerente à natureza da personagem, cujas ações no enredo estão intimamente ligadas às águas-mãe, o rio, o centro do mundo conhecido de sua infância. No seio das águas, o elemento de que a vida se alimenta, Ponciá, ainda no ventre materno, deixa de chorar. É no rio que Ponciámenina apanha água e argila para a modelagem das peças que ela e a mãe criavam. Nesses tempos de roça, de casa de pau-a-pique, de chão de barro batido, de bonecas de espigas de milho, a menina gostava de ser mulher e de aprender as tarefas que lhe competem. Não se considerava necessário aprender a ler. Na roça, outro saber se fazia necessário. O importante na roça era conhecer as fases da lua, o tempo de plantio e de colheita o tempo das águas e das secas. A garrafada para o mal da pele, do estômago, do intestino e para as excelências das mulheres. Saber a benzedura para o cobreiro, para o osso quebrado ou rendido, para o vento virado das crianças. (EVARISTO, 2003, p. 28) Da mãe, soberana, forte e serena, Ponciá recebe, além da instrução nos deveres de mulher e mãe, o respeito pela natureza: amar a terra dadivosa; servir-se da água pura do rio; deleitar-se com o vento que agita as plantações; resguardar a brasa que reacenderá o fogo. Das mulheres da vila ouve as lendas e “causos” que atravessam as gerações: menina que passasse debaixo do arco-íris virava menino. Cheia de medo, Ponciá ficava horas e horas na margem do rio, esperando a cobra celeste beber água, para que ela pudesse apanhar o barro. A crença de que o arco-íris bebe água é disseminada entre os sertanejos, resquício dos temores do homem primitivo diante dos fenômenos da natureza. A crença popular foi registrada por Câmara Cascudo no livro Tradição, ciência do 77 povo. Pesquisas na cultura popular do Brasil (1971), onde informa que os agricultores não gostam do arco-íris por beber a água dos rios, açudes e lagoas. O sertanejo não gosta do arco-íris porque furta a água. No litoral se distrai bebendo água nos rios, lagoas, fontes. Ao principio da sucção é fino, transparente, incolor. Depois fica largo, colorido, radioso. Farto, desaparece. Quando se dissipa, deixa o céu limpo de névoas, de nuvens anunciando chuvas. (CASCUDO, 1971, p. 34) Em várias civilizações, como as dos gregos, chineses, egípcios e africanos, o arco-íris tem diversos significados, mas em todas elas é comum o conceito de ser “o caminho e mediação entre o céu e a terra. É a ponte de que se servem deuses e heróis, entre o outro-mundo e o nosso” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 77). Segundo o conceito banto17, é uma divindade que se relaciona com o equilíbrio do próprio planeta, fazendo a ligação energética entre céu e terra. No candomblé está relacionado ao orixá Oxumaré, que se manifesta alternadamente com aspecto feminino e masculino, e pode ser representado como uma cobra colorida. É também às margens deste rio que se percebe o crescimento da menina Ponciá que nunca deixa de ter medo de passar debaixo do angorô e expor-se aos malefícios da cobra colorida. Ela ia buscar o barro na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água [...] Às vezes, ficava horas e horas na beira do rio esperando a colorida cobra do ar desaparecer [...]O arco-íris era teimoso! [...] Juntava, então, as saias entre as pernas tampando o sexo e, num pulo, com o coração aos saltos, passava por debaixo do angorô. Depois se apalpava toda. Lá estavam os seinhos, que começavam a crescer. Lá estava o púbis bem plano, sem nenhuma saliência a não ser os pelos. Ponciá sentia um alívio imenso. (EVARISTO, 2003, p. 13) A água é para Ponciá o elemento salvador, profundamente imbricado em sua relação com o mundo e indicativo de seu estado interior, quando percorre o 17 banto e não bantu, conforme definição de Nei Lopes (2003, p. 39). 78 caminho das provas. O dizer de Bachelard ─ “O ser ligado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente” (BACHELARD, 1998, p. 7) ─ aplica-se apropriadamente à Ponciá adulta, que se afasta do mundo à sua volta por longos períodos de ausência “na qual se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia de seu próprio eu” (EVARISTO, 2003, p. 45). Nesse mundo perfeito, que Ponciá reconstrói de memória, já se notam sinais de instabilidade, que se pode interpretar como prenúncio do chamado da aventura (CAMPBELL, 1995, p. 7), a que o herói/heroína poderá atender ou não: a estranheza com o próprio nome “Ponciá Vicêncio”; a reprodução da aparência física de Vô Vicêncio; as repetidas ausências do pai, cuja morte sinaliza o ápice da crise e a decisão súbita de Ponciá de partir para a aventura. Em Morfologia do conto maravilhoso, Vladmir Propp aponta que a morte do pai ou da mãe é o elemento determinante do afastamento do herói/heroína dos contos populares, em busca de algo que possa suprir essa falta: a conquista de um tesouro em pedras preciosas e ouro, ou do tesouro metafórico do conhecimento das próprias forças para enfrentar o mundo. É divulgada a notícia do dano ou da carência, faz-se um pedido ao herói ou lhe é dada uma ordem, mandam-no embora ou deixam-no ir [...]. Esta é a função que introduz o herói no conto [...]. O herói-buscador aceita ou decide agir [...]. Às vezes, este momento não é mencionado com palavras, mas a decisão de vontade precede evidentemente a procura. O herói deixa a casa. (PROPP, 2010, p. 36-38) Ponciá Vicêncio é versão feminina do herói-buscador, definido por Propp, que é chamado à aventura porque tem qualidades excepcionais. Ponciá é predestinada a grandes realizações desde o útero materno. Só estará pronta para 79 aludir ao chamado, porém, na passagem para a adolescência, à medida que seu mundo conhecido mostra sinais de instabilidade. 3.1.1 A estranheza com o próprio nome No seu mundo conhecido, mesmo paupérrimo, Ponciá era feliz. No entanto, os sinais de instabilidade se multiplicam. Desde menina, sentia certa inquietude que se manifesta na estranheza com o próprio nome. Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava outros Pandá, Malenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela inominada, tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. Tinha, então, vontade de choros e risos. (EVARISTO, 2003, p.19) Mais tarde, quando aprendeu a escrever, descobriu no acento agudo de Ponciá um exercício de autoflagelo, “como se estivesse lançando sobre si mesma uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo” (EVARISTO, 2003, p. 29). O sobrenome é conhecido, tem procedência europeia e pertence àquele que é o dono das terras e da vida das pessoas que moram na vila. É o símbolo da escravização e objetificação a que seu povo foi submetido. Vicêncio, que em latim significa aquele que vence, é uma metáfora da relação entre o poderio do senhor e a submissão dolorida do escravo, cujas consequências seus descendentes carregam até o dia de hoje. Essa marca de subalternidade, para Assis Duarte, denuncia a negação dos requisitos mínimos de cidadania e “estende-se pelo penoso circuito de vazios e derrotas” (DUARTE, 2006, p. 307). O nome Vicêncio substitui o ferro que marcava os corpos de negros escravizados. 80 O vazio existente em Ponciá, referido inúmeras vezes no decorrer da história, toma diversas configurações: perda de contato com sobrenatural (a mulher alta), o modo de olhar o vazio. O “sentir-se ninguém” equivale em Ponciá ao sentimento do homem negro de ser desprovido de história e de subjetivação própria, resultante, como informa Albert Memmi, do processo de desumanização a que foi submetido o colonizado e mais cruelmente o negro escravizado (MEMMI, 1967, p. 82-86). Uma das tarefas que Ponciá desempenha com a mãe é a arte de moldar o barro que, segundo Bachelard, representa a maleabilidade própria do feminino e da maternidade refletida na arte. No contexto do romance, o barro do fundo das águas é o material a ser trabalhado pelas duas artífices e remodelado como forma de recuperação da ancestralidade e da identidade negra. É o elo entre os membros da família. As peças eram cozidas e saíam duras, difíceis de quebrar, como elas mesmas, mulheres resistentes. “Eram trabalhos que contavam partes de uma história. A história dos negros talvez” (EVARISTO, 2003, p. 126). Representam a preservação de uma cultura e de um modo de vida. “Criações feitas, como se as duas quisessem miniaturar a vida, para que ela coubesse e eternizasse sobre o olhar de todos, em qualquer lugar” (EVARISTO, 2003, p. 105). A criação artística permite a Ponciá identificar-se como membro de seu grupo ancestral. Os estudos de Paul Gilroy apresentam a expressão artística como mediação do sofrimento causado pelo intenso processo de perdas a que foram submetidos os povos da diáspora negra. O sofrimento é o ingrediente que impulsiona a arte, em busca de fragmentos da história. Esta junção está representada na figurinha de barro de Vô Vicêncio que Ponciá molda, na tentativa de reaproximar-se de sua história familiar. “Um homem baixinho, curvado, magrinho feito graveto e com o 81 bracinho cotoco para trás [...]. O pouco tempo em que conviveu com o avô, bastou para que ela guardasse as marcas dele” (EVARISTO, 2003, p. 21). Maria Vicêncio, assustada com a fixação da filha com a imagem do avô, cujos trejeitos reproduzia no próprio corpo, sente vontade de quebrar a figurinha. A mãe pegou o trabalho e teve vontade de espatifá-lo, mas se conteve, como também conteve o grito. Passados uns dias, o pai veio da terra dos brancos trazendo os mantimentos. A mãe andava com o coração aflito e indagador. O que havia com aquela menina? Primeiro andou de repente e com todo o jeito do avô... Agora havia feito aquele homenzinho de barro, tão igual ao velho. (EVARISTO, 2003, p. 21) Mais tarde, no caminho das provas, a escultura de Vô Vicêncio será o amuleto que põe Ponciá em contato com os ancestrais mortos e reacende a esperança de reencontrar vivos a mãe e o irmão (EVARISTO, 2003, p. 73-75). A menina Ponciá recebe o auxílio externo, que Campbell destaca na jornada do herói mítico. O auxílio sobrenatural do mito assume no romance a forma da vinda de padres missionários para Vila Vicêncio que oferece a Ponciá a oportunidade de aprender a ler. Quando já conseguia formar palavras, a missão e as aulas acabam, mas Ponciá não desiste: “Foi avançando sozinha e pertinaz pelas folhas da cartilha. E em poucos meses já sabia ler” (EVARISTO, 2003, p. 28). Acentuam-se ainda mais as características que tornam Ponciá diferente, que a preparam para tornar-se a heroína da jornada mítica. Maria Vicêncio reconhece as qualidades excepcionais da filha: “Era melhor deixar a menina aprender a ler. Quem sabe, a estrada da menina seria outra” (EVARISTO, 2003, p.25). A palavra “estrada” é sinônimo de “caminho” e torna concreta a possibilidade de afastamento de Ponciá do lugar onde nascera, se não 82 fisicamente, ao menos espiritualmente, negando-se a viver submissa ao poder do branco. Por algum tempo Ponciá hesita. Recorda-se de histórias de muitos que haviam partido para a cidade e, como tudo deu errado, tornaram-se mendigos. Mas acreditava que para ela as oportunidades seriam diferentes, “haveria de ser uma história de final feliz” (EVARISTO, 2003, p. 37). Como todo herói, Ponciá é corajosa, determinada e persistente, alguém que não desiste de seus objetivos. Ponciá tem dons que transcendem o humano, capaz de “enxergar de olhos fechados” e tem visões sobrenaturais: Um dia ela viu uma mulher alta, muito alta que chegava ao céu. Primeiro ela viu os pés da mulher, depois as pernas, que eram longas e finas, depois o corpo, que transparente e vazio. Sorriu para a mulher, que lhe correspondeu o sorriso. (EVARISTO, 2003, p. 13-14) Maria Vicêncio fez com que o marido derrubasse o milharal. Ponciá chorou, mas não viu mais a mulher alta. “Tudo era um só vazio”. A sensação de vazio vai se perpetuar na trajetória de Ponciá, o ser escolhido para tarefas excepcionais o que nos reporta a Joseph Campbell: O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. (CAMPBELL, 1995, p. 28) 3.1.2 A semelhança com Vô Vicêncio À medida que Ponciá crescia a semelhança com Vô Vicêncio se acentuava. Além do hábito de andar com um dos braços escondido às costas e a mão fechada 83 como se fosse cotó, Ponciá herdara do avô o modo de olhar o vazio: “Diziam que ela, assim como ele gostava de olhar o vazio” (EVARISTO, 2003, p. 29). Para pôr em relevo os traços que aproximam a heroína de seu ancestral, listamos características paralelas das duas personagens. QUADRO 1 – CARACTERÍSTICAS PARALELAS DAS DUAS PERSONAGENS18 VÔ VICÊNCIO Ex-escravo PONCIÁ Nasce livre. Três ou quatro filhos são vendidos em pleno vigor da Lei do Ventre Livre. Revolta e desespero. Mata a mulher com uma foice e tenta o suicídio. Relação de violência com o filho. Bate-lhe com o braço cotoco que “pesava como se fosse de ferro”. Sofre 7 abortos por problemas sanguíneos. Queima jornais e revistas para fugir à realidade aviltante. Sofre violência do marido. “Deu-lhe um soco violento nas costas, gritando pelo seu nome. Ela lhe devolveu um olhar de ódio.” Rasga o documento de posse das terras. Parte para a cidade. Decepa a própria mão. Imita o braço cotoco do avô. As mãos sangram quando não trabalham o barro. Choro e riso (loucura). Choro e riso (loucura) Escravidão física, econômica e social do nascimento à morte. Anda em círculos, agitando as mãos. Vive a olhar o vazio. Escravidão física, econômica e social no século XX. Insatisfação com a vida miserável. Insatisfação com a vida miserável. Resistência à opressão. Resistência à opressão. Anda sem rumo, contemplando o vazio. Cenas que remetem à presença quase física do avô é parte de uma revelação que se dará ao final do romance, sobre a herança de Vô Vicêncio, da qual Ponciá ouve falar desde criança. Ela não sabe o significado da palavra e tem receio de perguntar, pois percebe que as pessoas param de falar sobre o assunto quando ela se aproxima. A menina ouvira dizer algumas vezes que Vô Vicêncio havia deixado uma herança para ela. Não sabia o que era herança, tinha vontade de perguntar e não sabia como. Sempre que falavam dele (falavam pouco, muito pouco) a conversa era 18 Ponciá Vicêncio, 2003. 84 baixa, quase cochichada e quando ela se aproximava, calavam. (EVARISTO, 2003, p. 29) A perda do avô, que se isola no seu mundo de risos e choros, afeta profundamente os parentes e a comunidade. Vô Vicêncio morre rindo e chorando, sem ter atingido o sonho de liberdade. O filho continua semiescravo do “coronelzinho,” filho do patrão e submisso a este último no trabalho da lavoura. Legalmente livre, continua escravo de sua condição social, até a morte súbita que a mulher e a filha não conseguem aceitar. Ponciá ficou muito tempo, anos talvez, esperando que o pai pudesse surgir retornar a qualquer hora e por qualquer motivo. A mãe, talvez, partilhasse desta mesma sensação, pois sempre conservou as coisas do homem no mesmo lugar [...] caminhava para frente cinco passos e com um gesto longo e firme abraçava o vazio. A mulher não acreditava que seu homem tivesse apartado de vez. (EVARISTO, 2003, p. 31-32) Passa para a próxima geração, Ponciá e Luandi, a tarefa de buscar a herança de Vô Vicêncio. 3.1.3 A ausência do pai A menina convivera pouco com o pai, constantemente no trabalho da roça na terra dos brancos. A vida dele repetia em muito a vida de Vô Vicêncio, marcada por humilhações e perdas. O pai de Ponciá nascera livre, mas vivera como escravo desde a infância. Ainda criança acompanhava os pais no trabalho rude na lavoura do homem branco. Cabia a ele ser pajem do sinhozinho. Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava sonhando conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu. A urina do outro caia escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca. 85 Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas. (EVARISTO, 2003, p. 17) Indignado, o menino questiona o pai. Se eram livres, por que os negros não iam embora à procura de outros lugares e trabalhos? A resposta do pai foi uma gargalhada rouca de meio riso e de meio pranto. “O homem não encarou o menino. Olhou o tempo como se buscasse no passado, no presente e no futuro uma resposta precisa, mas que estava a lhe fugir sempre” (EVARISTO, 2003, p. 17-18). A vida do pai de Ponciá reflete a época da pós-abolição da escravatura. Muitos ex-escravos e suas famílias foram abandonados à própria sorte, tendo que mendigar nas ruas ou continuar trabalhando como escravos. A família de Vô Vicêncio permaneceu na fazenda. Segundo a antropóloga Olívia Maria Gomes da Cunha, as relações de sujeição desumanizadora, próprias do cativeiro, foram apenas requalificadas depois da abolição. A sujeição, a subordinação e a desumanização, que davam inteligibilidade à experiência do cativeiro, foram requalificadas num contexto posterior ao término formal da escravidão, no qual relações de trabalho, de hierarquias e de poder abrigaram identidades sociais se não idênticas similares àquelas que determinada historiografia qualificou como exclusivas ou características das relações senhor – escravo. (CUNHA; GOMES, 2007, p. 11) O pai de Ponciá era revoltado; não entendia porque ainda permaneciam nas terras do coronel se eram livres. Com o passar dos anos, as marcas da humilhação e a conscientização de uma falsa alforria transformaram revolta em silêncio, “aprendendo a disfarçar o que lá de dentro vinha. Não chorava e também guardava o riso [...] os resmungos caíam para si próprio, numa discordância funda e nula” (EVARISTO, 2003, p. 30). O homem percebia que a situação na Vila Vicêncio não mudara e não mudaria. “E quem mudaria?” pergunta-se Negro Alírio, em Becos da 86 memória. “Quem mudaria seria quem estivesse no sofrimento. Quem arreda a pedra não é aquele que sufoca o outro, mas justo aquele que sufocado está” (EVARISTO, 2013, p.191). A personagem do mundo referencial, recriada por Evaristo em seu livro de memórias, emite julgamentos que se repetem na mente do pai de Ponciá, a personagem de ficção. A situação opressiva continuaria a mesma dos tempos de seu pai, nos tempos futuros do filho Luandi. E numa tarde clara, em que o sol cozinhava a terra e os homens trabalhavam na colheita, enquanto todos entoavam cantigas ritmadas com o movimento do corpo na função do trabalho, naquela tarde, o pai de Ponciá Vicêncio foi se curvando, se curvando ao ritmo da música, mas não colheu o fruto da terra, apenas à terra se deu. (EVARISTO, 2003, p. 30) O retorno solitário de Luandi José Vicêncio, o irmão de Ponciá, anuncia o desenlace fatal. O susto de Ponciá “talvez tivesse sido maior que a dor” (EVARISTO, 2003, p. 30). Maria Vicêncio não perguntou nada. Sabia de tudo. Naqueles dias sonhara várias vezes com o seu homem. Só não conseguia ver rosto dele. Ora ele estava de costas, ora com o chapéu tão afundado na cabeça que chegava a lhe cobrir a face. E numa tarde, em que o tempo estava claro e quente, ela escutou cantiga, choros e lamentos. Nos lamentos reconheceu a voz do filho. (EVARISTO, 2003, p. 31) Mãe e filha são incapazes de aceitar a morte não anunciada. Ponciá ficou muito tempo, anos talvez, esperando que o pai pudesse retornar. A mãe sequer se desfez das coisas do marido. Predomina nas duas mulheres a sensação de vazio. Ponciá precisava encontrar um caminho diferente. “Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres. Acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova” (EVARISTO, 2003, p. 33). 87 Ponciá num impulso sai da vila para a cidade. É o momento da separação e da partida. Continuar na Vila Vicêncio significa morrer sem lutar, sem buscar um novo caminho. Por isso parte repentinamente, sem se despedir do irmão. Ela sabe os perigos que vai enfrentar. Algumas pessoas saíam e ficavam bem; entretanto, eles só relembravam, só repetiam os casos infelizes, as histórias de fracasso [...]. Outros e outros casos de conhecidos que saíam do povoado a caminho da cidade e eram roubados na estação de chegada. Perdiam o pouco que tinham e ali mesmo viraram mendigos. Outros não conseguiam trabalho ou ganhavam pouquíssimo e não tinham como viver. Procurou se lembrar de algum que tivesse tido um final feliz. Não lembrou. Esforçou mais e não atinou com nenhum [...]. Não tinha importância. O caso dela, quando voltasse para buscar os seus, haveria de ser uma história de final feliz. (EVARISTO, 2003, p. 37) Ponciá, de fato, é a heroína que detém dons excepcionais, para enfrentar o caminho de provas, já ultrapassou também o horizonte da vida familiar: “os velhos conceitos, ideais e padrões emocionais já não são adequados; está próximo o momento da passagem por um limiar (CAMPBELL, 1995, p. 60). A chegada à cidade marcaria o primeiro passo na fase da iniciação, caso seguíssemos ponto a ponto o esquema do monomito, proposto por Campbell. Optou-se por começar a discutir o processo de iniciação ainda na fase do mundo conhecido,por ser mais adequado para a análise do romance de Evaristo. Substituiu-se, então, na segunda fase da estrutura, o título iniciação por caminho de provas que leva diretamente à análise dos obstáculos no trajeto da heroína. 3.2 O CAMINHO DE PROVAS Campbell afirma que toda trajetória humana é sempre uma jornada em que o indivíduo participa de uma ordem maior que ele: “Os mitos nos guiam por meio dos 88 rituais, dos ritos de iniciação, de fertilidade, de puberdade e fúnebres. Eles guiam o indivíduo pelo curso inevitável da vida (CAMPBELL, 1995, p. 193). A partida original para a terra das provas representou, tão-somente, o início da trilha, longa e verdadeiramente perigosa, das conquistas da iniciação e dos momentos de iluminação. Cumpre agora matar dragões e ultrapassar surpreendentes barreiras — repetidas vezes. (CAMPBELL, 1995, p. 62) As provas que se apresentam são de natureza diversa. No romance Ponciá Vicêncio, os dragões que devem ser enfrentados representam metaforicamente os atos de violência praticados contra o povo negro, através de séculos de escravização: separação do mundo conhecido; crueldade física e mental; perda da identidade como ser humano; reificação. Diferentemente de seus ancestrais africanos, a decisão de Ponciá de abandonar o mundo conhecido é voluntária. Ela precisa fugir da pobreza em que haviam vivido pais e avós, sujeitos a servir até a morte os donos da terra, fugir de um mundo em que os negros eram donos apenas da miséria, da fome e do sofrimento. Atende, portanto, ao chamado da aventura. 3.2.1 Passagem pelo primeiro limiar A passagem pelo limiar é o primeiro passo no desconhecido (CAMPBELL, 1995, p. 91). Ao cruzar a fronteira, a heroína deixa para trás a vida anterior e caminha rumo a uma nova etapa. A partir desse momento, tem início o processo de renascimento e despertar para uma aventura existencial desconhecida, ainda não explorada. Conforme nos informa Campbell: Se, no entanto, o chamado é levado em consideração, o indivíduo é instado a engajar-se numa aventura perigosa. É sempre perigosa porque ele sai da esfera familiar da comunidade. Nos mitos, a representação disso é afastar-se da esfera 89 conhecida em direção ao grande desconhecido. A isso chamo a travessia do limiar. (CAMPBELL, 1990, p. 138) A decisão de partir é repentina. Nem sequer se despede do irmão para não perder a coragem. Sabe que está atendendo ao chamado de uma aventura muito perigosa. Resolvera tudo tão rápido. Havia arrumado suas poucas coisas de sopetão e, num repente, comunicou logo a mãe a decisão de partir. Tinha de ser breve, muito breve. Não podia ficar ensaiando despedidas. O trem partiria no outro dia cedo. Se perdesse aquele, só daí alguns tantos dias, quase um mês. Deixava um abraço para o irmão, não poderia ir às terras dos brancos procurar por ele. (EVARISTO, 2003, p. 38) Ponciá dirige-se à única estação de trem do vilarejo, onde um trem solitário passava a cada mês. A viagem de trem dura três dias e três noites de desconforto, fome e solidão. A broa de fubá acabara no primeiro dia, então precisava lamber os pedaços de rapadura “para que eles durassem até ao final do trajeto” (EVARISTO, 2003, p. 35). Carrega uma trouxa que acomoda desajeitadamente no colo. O medo do desconhecido, o desejo de romper com as amarras do passado e ao mesmo tempo a coragem de buscar o novo, “trazia a esperança como bilhete de passagem. Haveria, sim, de traçar o seu destino” (EVARISTO, 2003, p. 36). A inquietação da viagem está relacionada com a “imagem realista e cruel de uma certa pobreza na vida material, apesar das ilusões” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 897). Ponciá Vicêncio é a primeira pessoa da família a se aventurar fora de casa, nenhum parente havia ousado tamanha aventura. E quem aceita o desafio é uma mulher. 90 A criação de uma personagem feminina, imbuída da coragem e decisão de traçar o próprio destino, reporta-nos às hipóteses levantadas inicialmente neste trabalho: A riqueza da dicção poética de Conceição Evaristo ─ como é conhecida nos meios literários – torna mais enfático o protesto contra o aviltamento da mulher negra e a necessidade de se fazer ouvir a sua voz como “eco da vida-liberdade”.19 Ultrapassado o primeiro limiar, o herói sofre uma dilaceração, etapa necessária da jornada. É o que Campbell denomina de o ventre da baleia, uma referência à saga do profeta Jonas, no Velho Testamento: “A ideia de que a passagem do limiar mágico é uma passagem para uma esfera de renascimento é simbolizada na imagem mundial do útero, ou ventre da baleia” (CAMPBELL, 1995, p. 91). Ponciá emerge da escuridão do ventre da baleia – o trem de ferro – convicta de que poderá traçar o seu destino. Difere, assim, do pai e de Vô Vicêncio que se sujeitaram às imposições do mais forte. Para seguir em frente, a heroína deve voltar as costas ao mundo de onde provém. Mircea Eliade observa que é indispensável a destruição simbólica do velho mundo, a fim de que o herói mitológico possa regenerar-se e recuperar a plenitude essencial (ELIADE, 2006, p. 51). Campbell especifica: “Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem [...] na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas” (1995, p. 102). O sentimento de solidão e abandono a envolve quando chega à plataforma de desembarque, mas Ponciá caminha sem olhar para trás, pois teme o desejo do recuo. É preciso enfrentar o que está por vir. Não há saída. É uma espécie de teste final que exige sacrifícios e provações. “O herói sabe quando tem que se render e a 19 Ver p. 11. 91 que se render” (CAMPBELL, 1995, p. 189), sujeitando-se a algo maior que a sua imensa ilusão. 3.2.2 A cidade estranha Aflita e desesperada no ambiente desconhecido, Ponciá caminha rapidamente para fora da estação até uma igreja, cujo relógio enorme apontava para as seis horas: “Ponciá tinha, então, dezenove anos, sendo capaz ainda de inventar sentimentos de segurança” (EVARISTO, 2003, p. 35). São duas das raras referências ao tempo cronológico no romance, que trazem o leitor do mundo onírico de Ponciá para a concretude do mundo ficcional onde passará a viver. Na igreja, admira os santos limpos e penteados. Eles deveriam ser mais poderosos que os da capelinha do lugarejo onde ela havia nascido. Os de lá eram minguadinhos e malvestidos como todo mundo. Quando as luzes das velas iluminavam os rostos deles podia-se ver que eles tinham o olhar aflito, desesperado, como os pecadores ali postados em ladainha. (EVARISTO, 2003, p. 35) A comparação entre as imagens dos santos estende-se às pessoas que frequentam os dois locais. Na igreja, as pessoas “combinavam com os santos, são limpas e com os terços brilhantes nas mãos” (EVARISTO, 2003, p. 35), os moradores da Vila Vicêncio eram minguadinhos e mal vestidos como os santos de sua capelinha. Ponciá sente vergonha do terço de lágrimas de Maria, usado no pescoço como proteção. Com um movimento rápido enfia o terço na trouxinha. Não consegue, porém, acompanhar as mulheres na oração da Ave-Maria. Os adjetivos aflita (os) e desesperada (os), aplicados a Ponciá e aos santinhos da roça, definem a situação de impotência e estranhamento do negro em ambientes hostis. 92 A dificuldade de comunicação e a indiferença das pessoas configuram mais uma dura prova que enfrenta na cidade. A primeira noite é lenta e friorenta. A personificação transfere para a noite as sensações de Ponciá para quem a noite fria demora muito a passar. Dorme na praça em frente à igreja junto com outros pedintes; embora cercada de pessoas sentia-se só, “já havia passado a noite em claro, em festa ou velório, mas nunca sozinha” (EVARISTO, 2003, p. 40). Na roça nunca havia se sentido só. O peso da solidão só encontra paralelo na indiferença das pessoas, que deixam a igreja depois da missa matinal, cujo olhar evita o de uma Ponciá ansiosa, que tenta comunicar-se. Essa indiferença e desvio de olhar gerado pela presença e pelas atitudes de Ponciá, reforça as palavras de Homi Bhabha sobre a condição de alguém que é renegado pela sociedade que o rodeia: Sempre que “negro sujo” ou “olha, um negro!” não são ditas, mas aparecem em um olhar, ou são ouvidas no solecismo de um silêncio profundo [...] lembro-me do que significa ser não apenas um negro, mas um membro dos marginalizados, dos deslocados, dos diaspóricos. Estar entre aqueles cuja própria presença é “vigiada” – no sentido de controle social – e “ignorada” – no sentido da recusa psíquica – e, ao mesmo tempo, sobre determinada – projetada psiquicamente, tornada estereotípica e sintomática. (BHABHA, 1998, p. 326-327) Ponciá chegara à cidade certa de que, por saber ler e escrever, sua vida seria mais fácil. Mal consegue, porém, expressar-se oralmente. Para abordar as pessoas, que saem da igreja, precisa ensaiar o que dizer: “Decidiu, então, esperar com as palavras arrumadas” (EVARISTO, 2003, p. 42). A pessoa que finalmente lhe dá atenção olha “para ela de cima a baixo”, escreve um endereço em um pedacinho de papel e depois “leu bem alto para Ponciá Vicêncio” (EVARISTO, 2003, p. 43). Mal vestida e molambenta, a figura de Ponciá 93 corresponde à imagem estereotipada do negro analfabeto, que dificulta uma existência plena. A forma como nos assumimos ou como os outros nos assumem no âmbito das relações sociais produzem, segundo Stuart Hall, uma diferença material nas nossas vidas (HALL, 2003, p. 284). Mas Ponciá traz consigo outro bilhete, “o bilhete da esperança”, e não se deixa abater. Lê e relê o que está escrito no papelzinho, antes de buscar a maneira de chegar ao endereço. “Estava feliz, sabia ler” (EVARISTO, 2003, p. 43). O emprego de doméstica se concretiza e Ponciá continua feliz. Errava muito, mas ia aprendendo muito também. Estava de coração leve, achava que a vida tinha uma saída. Trabalharia, juntaria dinheiro, compraria uma casinha e voltaria para buscar sua mãe e seu irmão. A vida lhe parecia possível e fácil. (EVARISTO, 2003, p. 43, Ênfase acrescentada) Reunir sob o mesmo teto a mãe e o irmão é a bênção última que a heroína pretende conquistar no final de sua trajetória. Acostumada a poucas coisas, Ponciá consegue comprar um barraco. Mas falta ainda cumprir a promessa que fizera à mãe de que “um dia voltaria para buscá-la e ao irmão também. E que, juntos, todos seriam felizes” (EVARISTO, 2003, p. 36). Grandes provações, porém, aguardam a heroína. Sabedora de que o irmão Luandi viera para a cidade, procura-o em vão pela emissora de rádio. O irmão havia partido por causa dela e se perdera na cidade. Ponciá ganha um aflitivo remorso no peito. Resta-lhe procurar pela mãe. Ponciá interrompe a jornada para voltar ao seio materno ─ a terra natal, as águas-mãe, a comunidade de mulheres sábias ─ em busca do auxílio externo que lhe permita prosseguir. 94 3.2.3 O primeiro retorno No regresso ao vilarejo fica sabendo que a mãe saíra em andanças. Mesmo assim sente-se acolhida pela comunidade de mulheres e pela casinha de pau-apique da infância. Empurrou a porta, que abriu doce e lentamente, como se casa estivesse também a aguardar por ela o chão de barro batido continuava limpo, as vasilhas de barro que a mãe fazia estavam arrumadas na prateleira. Em cima do fogão a lenha estavam as canecas de café, do pai, da mãe, dela e do irmão. Esquecidas de que a vida era outra no momento, teimosamente se postavam como se estivessem à espera do líquido, Ponciá correu e abriu a janela de madeira. Um cheiro bom de mato, terra e chuva invadiu a casa. Com o coração aos pulos, reconciliou-se como lugar. (EVARISTO, 2003, p. 49) Movimentos e sons pela casa transportam Ponciá ao passado. Durante a noite, pai, mãe e irmão vêm habitar seus sonhos. “Quando o sonho se apodera de nós”, diz Bachelard em A terra e os devaneios do repouso, “temos a impressão de habitar uma imagem” (1990, p. 76). É o nosso “país de Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial” (p. 25). Ponciá lembra as conversas da mãe com o pai, que balbuciava respostas à mulher; lembra o irmão Luandi, a quem raramente encontrava, adormecido no jirau. Pai, mãe e irmão estiveram com ela o tempo todo durante a noite. De volta ao presente, ao acordar, Ponciá percebe que “tudo estava vazio” (EVARISTO, 2003, p. 58). Bachelard relaciona espaço e memória “o espaço é tudo, pois o tempo já não anima a memória. A memória – coisa estranha! – não registra a duração concreta. O inconsciente permanece nos locais” (2008, p. 28-29). A casa da infância embora paupérrima é um local de doces lembranças. “A casa está inscrita no corpo, não como traço mnêmico, mas como imagem de intimidade, como imagem que busca um centro, que instaura um centro, que cria um universo” (ELIADE, 1991, p. 95 30). Na concepção junguiana, o que acontece dentro de uma casa, acontece dentro de nós mesmos. Habitamos o nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num “canto do mundo” (JUNG, 2002, p. 128). O lar está associado ao conceito de família e à figura da mulher e mãe que, tradicionalmente, cuida, limpa e organiza. Na casinha impecável, há um detalhe discordante: dentro do fogão, no lugar de brasas, uma cobra enrodilhada. À vista da cobra, Ponciá acorda para o momento presente e só então percebe que a casa estava vazia. “A dor da ausência da mãe e do irmão aconteceu mais forte ainda” (EVARISTO, 2003, p. 57). A imagem da serpente multiplica-se no romance de Evaristo. A serpente colorida do angorô simboliza simultaneamente vida e morte: a união entre o céu e a terra e o esgotamento das águas. Chevalier e Gheerbrant enfatizam dois pontos na simbologia da serpente: sua ligação com o “primordial indiferenciado, reservatório de todas as tendências, subjacente à terra manifestada” e a dupla encarnação do masculino e do feminino (1982, p. 815). Da exposição abrangente dos autores no verbete selecionamos aspectos que nos parecem relevantes para a leitura do romance. Rápida como um relâmpago, a serpente visível sempre surge de uma abertura escura, fenda ou rachadura, para cuspir morte ou vida antes de retornar ao invisível. Ou então abandona os ímpetos masculinos para fazer-se feminina: enrosca-se, beija, abraça, sufoca, engole, digere e dorme. Esta serpente fêmea é a invisível serpente-princípio que mora nas profundas camadas da consciência e nas profundas camadas da terra. Ela é enigmática, secreta; é impossível prever-lhe as decisões, que são tão súbitas quanto as suas metamorfoses. Ela brinca com os sexos como com os opostos: é fêmea e macho; gêmea em si mesma, como tantos deuses criadores que em suas primeiras representações sempre aparecem como serpentes cósmicas. A serpente não apresenta, portanto, um arquétipo, mas um 96 complexo de arquétipos ligado à noite fria, pegajosa e subterrânea das origens. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 815. Ênfase no original) A serpente está na origem de muitas religiões primitivas. No plano humano, é o símbolo duplo da alma e da libido: “A serpente,” escreve Bachelard, “é um dos mais importantes arquétipos da alma humana” (1990, p. 212). Ponciá-personagem é, ela própria, um complexo de arquétipos: a mulher natural, a mulher visionária, a mulher criadora, a mulher coragem, a mulher heroína. Em momentos diferentes, Ponciá, Maria Vicêncio e Luandi voltam a casa, onde encontram vestígios dos outros dois: o corte do mato em volta da casa e a remoção da figurinha de Vô Vicêncio. A cobra no fogão presentifica o passado e reconforta Ponciá que sente renascer a esperança de reencontrar a família. A mãe e o irmão encontram apenas a pele ressecada da cobra. O primeiro observa que “no fogão apagado [...] uma cobra deixara sua casca ou secara por ali” (EVARISTO, 2003, p. 87). Maria Vicêncio regressa várias vezes “para visitar a casa, espantar o vazio e sentir a presença dos mortos. Mais (de) uma vez encontrou a casca vazia de uma cobra e cortou o mato lá fora” (EVARISTO, 2003, p. 114). A troca de pele indica não só um renascimento, mas o transcorrer do tempo, cuja circularidade, discutida anteriormente, é confirmada pelo próprio formado da serpente. Ponciá ainda não cumpriu sua trajetória e deve retomá-la. Enquanto espera o trem que a levará de volta à cidade, caminha pelo local, à medida que imagens do passado ─ crianças, jovens, mulheres, homens, velhos e velhas ─ se presentificam a seus olhos. “Ela não tinha percebido que já vinha padecendo de uma saudade que era de muito e muito tempo” (EVARISTO, 2003, p. 59). O sentimento de nostalgia não oblitera a observação de que Vila Vicêncio permanece a mesma, nas mesmas condições que a fizeram partir. 97 Havia ali um pulso de ferro a segurar o tempo. Uma soberana mão que eternizava uma condição antiga. Várias vezes seus olhos bisaram a imagem de uma mãe negra rodeada de filhos. De velhas e de velhos sentados no tempo passado e presente de um sofrimento antigo. (EVARISTO, 2003, p. 48) Visita a velha sábia Nêngua Kainda, aquela que “tinha o olhar enxergador de tudo” (EVARISTO, 2003, p. 60). O dicionário de termos da língua banto, usados no Brasil, indica que “nêngua é um cargo hierárquico dos cultos de origem angoloconguesa, correspondente ao da ialorixá20 nagô (YP). Do quicongo némgwa, mãe, mamãe” (LOPES, 2003, p. 165). A figura da anciã representa o conhecimento, o misticismo, o respeito e a sabedoria. Nêngua Kainda é, portanto, guia e mãe espiritual da comunidade, a quem todos na Vila Vicêncio pedem bênçãos e conselhos, e cujas palavras não devem ser ignoradas. Em várias passagens no romance, é Nêngua quem lembra Ponciá de que “em qualquer lugar, em qualquer tempo, a herança que Vô Vicêncio tinha deixado para ela seria recebida” (EVARISTO, 2003, p. 61). Ponciá deve, portanto, continuar a busca e “se dispôs a continuar a vida” (EVARISTO, 2003, p. 60). A viagem de volta se realiza em condições diferentes: tinha trabalho garantido na cidade, breve seria dona de uma casinha no morro e estava apaixonada. Mas, “a viagem lhe pareceu mais longa e mais dolorosa do que a primeira” (EVARISTO, 2003, p. 64). A heroína falhara no objetivo de reencontrar a mãe e sente maus presságios. 3.2.4 O silenciamento Ponciá sente reavivar o sonho de ter um marido e um lar, onde reinasse soberana, à semelhança de sua mãe. Seu homem, trabalhador na construção civil, 20 Mãe de santo – FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 98 também estava enamorado: gostava da tenacidade dela, de seu olhar adiante, de sua “voz de ninar crianças e deixar homem feliz” (EVARISTO, 2003, p. 65). Em contraposição, observa que ela tinha um jeito estranho que ele não sabia bem o que era: “às vezes, era como se o espírito dela fugisse e ficasse só o corpo. Ele respeitava, tinha medo. Não indagava nada” (EVARISTO, 2003, p. 65). De volta à cidade e ao trabalho, Ponciá luta para não desistir, devia esperar que chegasse o tempo de tudo acontecer para serem novamente os três, ela, a mãe e o irmão. Sofre torturas de corpo e espírito. As mãos coçam e sangram entre os dedos; sente um vazio que lhe enche a cabeça e a afasta do mundo, várias vezes ao dia. Sente uma saudade imensa de trabalhar com o barro, “imaginando a massa entre as mãos, ouvindo lamentos e risos, era Vô Vicêncio” (EVARISTO, 2003, p. 75). A vida a dois não traz as realizações esperadas, Ponciá Vicêncio sofre sete abortos consecutivos e a incapacidade de manter um diálogo com o marido, de confiar-lhe o que sente, afasta-os cada vez mais. Muitas vezes quis dizer das tonturas e do desejo de comer estrelas de que era acometida todas as vezes que ficava grávida. Quis confidenciar a respeito do medo antigo que sentia, às vezes. Quis saber se ele também sofria do medo do mal, se ele vivia também agonias. Quis que o homem lhe falasse dos sonhos, dos planos, das esperanças que ele depositava na vida. Mas ele era quase mudo. Não chorava, não ria. (EVARISTO, 2003, p. 67) A expressão “não chorava nem ria” lembra o pai de Ponciá, que, depois de anos de muito sofrimento e humilhações, acaba por emudecer. “Pelo menos para os homens que ela conhecera a vida era tão difícil quanto para a mulher” (EVARISTO, 2003, p. 55). O marido também falava pouco, não havia diálogo entre os dois: [O marido] falava o necessário. Só que o necessário dele era bem pouco, bem menos do que a precisão dela. Quantas vezes quis saber, por exemplo, se o dia 99 dele tinha sido difícil, se o pequeno machucado que ele trazia na testa tinha sido causado por algum tijolo, ou mesmo saber quando começaria a nova obra. (EVARISTO, 2003, p. 67) Ponciá encontra refúgio no silenciamento e na ausência. A realidade não lhe interessa mais; vive o passado no presente. Lembranças da infância, do irmão, da mãe, um eterno recordar. “Ela gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar. Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro” (EVARISTO, 2003, p. 19). Quando os filhos de Ponciá Vicêncio, sete, nasceram e morreram, nas primeiras perdas elas sofreu muito. Depois, com o correr do tempo, a cada gravidez, a cada parto, ela chegava mesmo a desejar que a criança não sobrevivesse. Valeria a pena pôr um filho no mundo [...] Crescera na pobreza. Os pais, os avós, os bisavós sempre trabalhando nas terras dos senhores. A cana, o café, toda a lavoura, o gado, as terras, tudo tinha dono, os brancos. Os negros eram donos da miséria, da fome, do sofrimento, da revolta suicida. (EVARISTO, 2003, p. 82) À medida que as frustrações se acumulam, Ponciá torna-se apática e descuidada dos afazeres. O marido, que a considerava uma formiga laboriosa, não entende as atitudes da mulher. A incompreensão inicial do companheiro que bate na mulher para trazê-la à realidade, a falta de diálogo entre os dois, os sete abortos que sofreu, por problemas sanguíneos, acabam por minar os sonhos de Ponciá. Quando menina, admirava profundamente a mãe e desejava ter uma família semelhante à dela: “Um dia também ela teria um homem que, mesmo brigando, haveria de fazer tudo que ela quisesse e teria filhos também” (EVARISTO, 2003, p. 27). Sem saber como lidar com os alheamentos cada vez mais frequentes da protagonista, o marido transforma seu “medo de abeirar-se num vazio que era só dela” (EVARISTO, 2003, p. 66) em agressividade: “Quando viu Ponciá parada, 100 alheia, morta-viva, longe de tudo, precisou fazê-la doer também e começou a agredila. Batia-lhe, chutava-lhe, puxava-lhe os cabelos. Ela não tinha um gesto de defesa” (EVARISTO, 2003, p. 96). O marido de Ponciá, brutalizado também pela vida difícil, não sabe lidar com a situação. Apenas quando o pensamento de matar a mulher lhe ocorre é que o homem caiu em si assustado: “Ele ficou com remorso guardado no peito. A mulher devia estar doente, devia estar com algum encosto” (EVARISTO, 2003, p. 97). O romance de Evaristo explora personagens complexas ou mesmo contraditórias, sem sugerir oposições maniqueístas: bom, mau; herói, vilão. A par da violência, o narrador confere ao marido de Ponciá sentimentos de ternura que podem redimi-lo. [...] nunca mais ele a agrediu. Foi tanto pavor, tanto sofrimento, tanta dor que ele leu nos olhos dela, enquanto lhe limpava o sangue, que descobriu não só o desamparo dela, mas também o dele. Descobriu como eram sós. (EVARISTO, 2003, p. 109) Sua atividade econômica é a única aberta a pessoas de seu sexo e cor de pele: o trabalho rude e braçal. O estereótipo do negro como serviçal sem qualificação, incapaz e pouco confiável corresponde a outro tipo de escravidão na massa anônima da cidade. O romance de Evaristo destaca as relações sociais de desigualdade vistas da perspectiva do negro excluído. O Movimento Negro Unificado (MNU21) acusa com veemência a lógica racista que preside as relações sociais no Brasil. O regime escravista durou quatro séculos e na sua essência foi violento, desumano e racista. Com o encerramento oficial da escravidão em 1888, os negros não 21 Organização fundada em 18 de julho de 1978 em São Paulo para denunciar as desigualdades raciais e criar um projeto político para o negro no Brasil. Ver p. 37. 101 tiveram direito a terra, a uma educação pública de qualidade e nem tampouco a empregos decentes. Entregues à própria sorte, foram submetidos a uma lógica racista que regula a distribuição de riquezas e poder em âmbito nacional e mantém a desigualdade social. (MNU, 06/08/2006) Num Brasil pós-abolição, o sentimento de exclusão corresponde ao que Du Bois relata em As almas de gente negra sobre o sentir-se “diferente dos outros ou talvez semelhante no coração, na vida e nos anseios, mas isolado do mundo deles por um imenso véu” (DU BOIS, 1999, p. 53). O destino das personagens secundárias femininas é igualmente desolador. A jovem Bilisa, “estrela no peito de Luandi,” é forçada a prostituição, onde imagina que ganhará dinheiro de maneira rápida e fácil, depois de ser explorada sexualmente pelo filho do patrão e ter roubadas suas economias. Ponciá não se prostitui, mas não escapa ao destino imposto à mulher negra: o trabalho doméstico em casa de brancos. Para uma mulher negra, semianalfabeta e pobre restam os espaços periféricos demarcados ideologicamente. Ao caminhar pela cidade Ponciá sente-se como se fosse invisível. A escritora Gizelda Melo do Nascimento afirma que a discriminação da mulher negra, em nossa sociedade, é apenas camuflada. A prática camuflada da discriminação, ao lado de um discurso democrático racial, insere a mulher negra num contexto que denominaríamos aqui como espaço de falta. Sofrendo uma tripla discriminação – racial, social e sexual ─, a mulher negra, numa sociedade racista e discriminadora, nada mais faz que acumular perdas no que se refere à dificuldade de sua inserção nos quadros sociais representativos do país. O silêncio em que vem envolvida sua figura e a ausência quase toda de sua representação social evidenciam a perversão e/ou hipocrisia em que está assentada nossa sociedade. (NASCIMENTO, 2008, p. 50) 102 Conceição Evaristo, fiel aos objetivos de sua arte, confere à voz da mulher negra o poder de alardear as desigualdades de tratamento, e de protestar contra as injustiças de que é vítima. O silêncio do subalterno é o ponto-chave de teorização de Gayatri Spivak sobre as relações colonizador-colonizado e patrão-servo, subsequentes ao colonialismo europeu. O subalterno pouco ou nada participa do sistema colonial e a ausência de voz autoriza outros a representá-lo. As camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante. (SPIVAK, 2010, p. 12) Evaristo apresenta, em Ponciá Vicêncio, um cenário chocante de miséria, onde os negros são vítimas do sistema social. Causas sociais, históricas e emocionais explicam o comportamento tanto do núcleo de protagonistas como dos personagens periféricos. Chega ao fim o caminho de provas da heroína, sem que seja possível vislumbrar o seu desfecho: a conquista de qualidades que transcendem o humano. 3.3 O RETORNO Depois de ter aceitado o chamado da aventura e enfrentado os desafios e perigos do caminho de provas, o herói/heroína chega finalmente à última etapa de sua jornada. Ali recebe a recompensa ambicionada, que, segundo Campbell, pode constituir-se de sua própria divinização, da expansão da consciência ou da obtenção da benesse objeto de sua busca. Terminada a busca do herói [...] o aventureiro deve ainda retornar com o seu troféu transmutador da vida. O círculo completo, a norma do monomito, requer que o herói inicie agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria de volta ao reino 103 humano, onde a bênção alcançada pode servir à renovação da comunidade, da nação, do planeta ou dos dez mil mundos. (CAMPBELL, 1995, p. 195) O retorno do herói completa o ciclo do monomito com a volta à comunidade de origem e a partilha da sabedoria alcançada, que vem renovar os liames entre seus componentes, quer se trate do vilarejo minúsculo de Vila Vicêncio ou do universo como um todo. 3.3.1 A recusa do retorno A hesitação que invadiu Ponciá, antes de atender ao chamado da aventura, repete-se no momento de retornar aos seus. O desejo do retorno e a saudade da terra povoam a mente de Ponciá, que vive de recordar o passado. As ausências, que já se anunciavam desde a primeira tentativa de retorno à Vila Vicêncio, tornamse cada vez mais frequentes. O desejo intenso de retornar, não à Vila Vicêncio que fica a três dias de distância de trem da cidade grande, mas a uma Vila Vicêncio idealizada e ao sonho da reconstituição da família, constitui paradoxalmente um obstáculo intransponível. A heroína está presa, irremediavelmente, no túnel escuro de sua mente perturbada. Ponciá Vicêncio gostava de ficar sentada perto da janela olhando o nada [...]. Ela gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar. Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro. O amanhã de Ponciá era feita de esquecimento. (EVARISTO, 2003, p. 19) Quando as memórias passam a ocupar todo o espaço da consciência, ela se transporta para a terra natal. O desejo de tocar o barro faz com que coce as mãos até sangrar. O ritual sangrento prossegue na modelagem imaginária do barro. O cheiro das mãos era o mesmo cheiro do barro encontrado nas margens do rio de sua infância. Então, lembra-se do homem-barro: Era o Vô Vicêncio que tinha 104 deixado aquele cheiro. Era de Vô Vicêncio aquele odor de barro! “E, num ritual, beijou a estátua com respeito. Sentiu saudade de trabalhar o barro, e por alguns instantes imaginou a massa entre as mãos, ouvindo lamentos e risos... Era Vô Vicêncio” (EVARISTO, 2003, p. 75). Às sensações tácteis acrescentam-se imagens vívidas visuais, olfativas e gustativas, próprias de um bebê que busca o contato quente de braços acolhedores e o alimento que lhe satisfaz a fome. Ponciá recorda o cheiro do café, o gosto das broas de fubá e a visão assustadora do angorô colorido. O olhar de Ponciá atravessava a janela do barraco para se perder no tempo lá fora. A recusa do retorno é acompanhada pelo distanciamento progressivo da ambientação na favela e na cidade grande. Um de seus últimos movimentos conscientes é queimar revistas e jornais ─ De que lhe adiantava saber ler? ─ para se libertar do mundo em que vivia. Repete, portanto, o impulso de Vô Vicêncio, para fugir da realidade. Vô Vicêncio, num gesto extremado de ira e revolta contra a opressão sofrida ao longo de tantos anos, matara a esposa e decepara a própria mão, na tentativa frustrada de suicidar-se. 3.3.2 A fuga mágica Joseph Campbell serve-se do conhecimento de mitos heroicos de diversos povos e do conto folclórico para comentar o episódio da fuga, que é desenvolvida sob muitas formas. Se o herói obtiver, em seu triunfo, a bênção da deusa ou do deus e for explicitamente encarregado de retornar ao mundo com algum elixir destinado à restauração da sociedade, o estágio final de sua aventura será apoiado por todos os poderes do seu patrono sobrenatural. Por outro lado, se o troféu tiver sido obtido com a oposição de seu guardião, ou se o desejo do herói no sentido de retornar para o mundo não tiver agradado aos deuses ou demônios, o último estágio do 105 ciclo mitológico será uma viva, e com frequência cômica, perseguição. Essa fuga pode ser complicada por prodígios de obstrução e evasão mágicas. (CAMPBELL, 1995, p. 198) A fuga de Ponciá não se enquadra nesse esquema. Sua negação total da realidade, como vimos, faz-se por um mergulho dentro de si mesma e pelo isolamento completo do mundo exterior. Ponciá Vicêncio é a heroína marcada desde o nascimento para um destino excepcional ─ o riso e o choro no ventre da mãe, a comunhão com os mistérios da natureza, a empatia com as águas da criação que a faz também artista e criadora na modelagem do barro. A heroína do romance, a quem se atribuiu a tarefa de restituir a seu povo a dignidade que permite ao homem “a liberdade para viver” na expressão de Campbell, aparentemente falhou em sua missão redentora, pois sucumbiu às provas cruéis a que foi submetida longe de sua terra. Que espécie de heroína é essa que sucumbe diante de obstáculos? Campbell enfatiza que tanto o sucesso como o fracasso do herói indicam sua humanidade. O herói não é um ser sobrenatural. Os mitos do fracasso nos tocam com a tragédia da vida, mas os do sucesso o fazem, tão somente, com seu próprio caráter de incredibilidade. No entanto, se o monomito deve cumprir sua promessa não é o fracasso humano, nem o sucesso sobre-humano, mas o sucesso humano, o que nos deve ser mostrado. (CAMPBELL, 1995, p. 205-206) 3.3.3 O resgate com auxílio externo: A herança de Vô Vicêncio Os auxiliares externos que resgatam Ponciá vêm do mundo dos homens. O primeiro deles, Luandi José Vicêncio, seguira o caminho aberto pela irmã e viera para a cidade há alguns anos. A mãe que se afastara de Vila Vicêncio, logo depois 106 da partida dos filhos, recebe de Nêngua Kainda o aviso de que “o tempo já permitia e abria os caminhos para que a mãe fosse encontrar os filhos” (EVARISTO, 2003, p. 115). Maria Vicêncio soubera esperar pacientemente vários e vários anos. Sofrera muito, mas aprendera que era impossível ir à dianteira do tempo. Agora sabia que “era preciso tomar o trem e ir de encontro aos filhos para trazê-los novamente à terra” (EVARISTO, 2003, p. 114). A mudança da focalização de Ponciá para o irmão e a mãe faz crescer a importância de seu papel na narrativa. Desse modo, o narrador prepara o leitor para aceitar o desfecho da jornada mítica da heroína. Luandi José Vicêncio não tem as características excepcionais de Ponciá e nem tivera com ela relacionamento próximo na infância. As memórias de Ponciá informam que não tivera grande convivência com ele, mas quando se encontravam gostavam muito um do outro. “Eram secos de carinhos explícitos; entretanto, mesmo sem se tocarem nem se abraçarem sequer, se amavam muito” (EVARISTO, 2003, p. 25-26). Por duas vezes Luandi exerce o papel de arauto na narrativa: é ele o portador da notícia de que o pai estava morto; é ele quem conta a Ponciá a história trágica que deixara Vô Vicêncio com o braço cotó, levando-o a refugiar-se em um mundo interior de choros e risos. Sua chegada à cidade tem características cômicas. A chuva torrencial derrete sua mala de papelão e ele recolhe com dificuldade as coisas que trouxera, roupas que tinham sido do pai, canivete, fumo de rolo e palha. Traz consigo tudo o que faz parte do seu mundo na Vila Vicêncio e que entende ser apropriado para conquistar seu espaço na cidade. A perda da bagagem é significativa, pois nossa 107 bagagem representa os elementos que julgamos indispensáveis “à vida material, psíquica, espiritual: é o equivalente ao equipamento mental” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 897). A viagem de trem para a cidade grande é traumática para as três personagens, Ponciá, Luandi e Maria Vicêncio, que se sentem perdidas na chegada à estação. Esta representa um local de refúgio, após a passagem pelo primeiro limiar. Da estação Ponciá parte para enfrentar os monstros do medo, da fome e da solidão. Na estação, Luandi é preso pelo soldador Nestor que o leva para a delegacia. Tem início a saga de Luandi e o papel do soldado Nestor como auxíliar externo. É na estação, também, que Maria Vicêncio, anos mais tarde, aborda o soldado Nestor em busca de informações. Apresenta-lhe o pedacinho de papel, dado por Nêngua Kainda, em que o próprio soldado Nestor escrevera seu endereço. A série de coincidências configura uma intervenção mágica em que os deuses se mostram favoráveis, como no mito ou como no conto de fadas. Agora os três juntos, Luandi, a mãe e Ponciá regressariam à Vila Vicêncio, onde ela “não mais se perderia” (EVARISTO, 2003, p.128). Seja resgatado com ajuda externa, orientado por forças internas ou carinhosamente conduzido pelas divindades orientadoras, o herói tem de penetrar outra vez, trazendo a bênção obtida, na atmosfera há muito esquecida na qual os homens, que não passam de frações, imaginam ser completos. (CAMPBELL, 1995, p. 213) Ponciá Vicêncio, a heroína mitológica, é incapaz de cumprir a tarefa final de penetrar outra vez no mundo superior, para obter a benção que deve partilhar com os seus: a completude do ser humano. Neste ponto da narrativa, Evaristo concede a Luandi José Vicêncio as virtudes do herói, percepção, compreensão, compaixão, perseverança, lealdade e, sobretudo, coragem física e espiritual que lhe permitem 108 concluir a jornada. Ele passa a perceber a dor e o sofrimento dos antepassados, impressos indelevelmente nas feições de Ponciá. A irmã tinha os traços e os modos de Vô Vicêncio não estranhou a semelhança que se fazia cada vez maior. Bom que se fizesse reveladora, se fizesse herdeira de uma história tão sofrida, porque enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de todos, quem sabe não procurariam nem que fosse pela força do desejo, a criação de outro destino. [...] Foi preciso que a herança de Vô Vicêncio se realizasse, se cumprisse na irmã para que ele entendesse tudo. (EVARISTO, 2003, p. 126) Sua própria jornada no caminho de provas fora cruel e marcada pelas perdas. Parece-lhe viver um sonho quando avista a mãe, e uma confusão de sentimentos e imagens toma conta dele. Luandi não conseguia distinguir se estava vivendo um sonho ou uma profunda realidade em que tudo se misturava. A mãe, Ponciá, Bilisa-estrela, a mulher que até pouco tempo enfeitava a noite escura que ele trazia no peito, Vó Vicência, pessoa que ele nem tinha conhecido e que tinha encontrado a morte pelas mãos de Vô Vicêncio. E ainda outras mulheres da família e do povoado, muitas que ele nunca vira e que apenas ouvira falar delas. Eram só mulheres que naquele momento se acercavam de Luandi. E, dentre elas, uma orientando os passos das demais. Uma era guia de todas, a velha Nêngua Kainda. E era ela que entregava Maria Vicêncio para ele. (EVARISTO, 2003, p. 119) Os arquétipos da mulher como mãe, heroína, amante, ancestral e guia identificam as imagens femininas relevantes no romance, entre outras de mulheres da família e do povoado. São as mulheres que lhe trazem a redenção. A mãe consola Luandi da perda de Bilisa. O sonho da casinha que abrigaria a ele e Bilisaestrela transforma-se, agora, no desejo de encontrar um lugar para abrigar a mãe e a irmã, que haveria de chegar um dia. No entanto, a percepção da tarefa que lhe cabe concretiza-se apenas quando olha o rosto conturbado da irmã, em quem se cumpria a herança de Vô 109 Vicêncio: conservar viva na memória de todos a história sofrida dos negros, a fim de que se criasse um novo destino. Ele que desejara tanto ser soldado como a única e melhor maneira de ser, tinha feito agora uma nova descoberta. “Compreendera que sua vida, um grão de areia lá no fundo do rio, só tomaria corpo, só engrandeceria, se se tornasse matéria argamassa de outras vidas” (EVARISTO, 2003, p. 127). Das brumas do esquecimento, a herança de Vô Vicêncio se presentifica também para Ponciá, pela força do talismã que ela mesma esculpira: a estatueta do homem-barro. Das mãos de Ponciá, apoiadas no peitoril da pequena janela, a imagem de Vô Vicêncio “olhava meio para fora, meio para dentro também chorando rindo assistia a tudo” (EVARISTO, 2003, p. 128). 3.3.4 Liberdade para viver Luandi José Vicêncio, ainda atraído pela ideia de ser soldado, para o que teria de aprender a ler e escrever, descobre que, além de assinar o próprio nome, era preciso tirar da leitura outra sabedoria. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que, por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um tempo misturado do antes-agora-depois-e-do-depois-ainda.A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser. (EVARISTO, 2003, p. 127) 110 CONSIDERAÇÕES FINAIS Mitos e símbolos primitivos não desapareceram, apenas mudaram de aspecto, nas diversas fases da evolução humana e das civilizações. Mircea Eliade22 A focalização sobre o mito e o transcendental, no romance de Conceição Evaristo, é sugerida pelo próprio texto: Ponciá Vicêncio, aquela que havia pranteado no ventre materno e que gargalhava nenéns sorrisos ao nascer, tinha risos nos lábios enquanto todo o seu corpo estremecia num choro doloroso e confuso. Chorava, ria, resmungava. Desfiava fios retorcidos de uma longa história. Andava em círculos, ora com a mão fechada e com o braço pra trás, como se fosse cotoco, ora com as duas palmas abertas, executando calmo e ritmados movimentos, como se estivesse moldando alguma matéria viva. Todo cuidado Ponciá Vicêncio punha nesse imaginário ato de fazer. Com o zelo da arte, atentava para as porções das sobras, a massa excedente, assim como buscava ainda significar as mutilações e as ausências que também conformam um corpo. Suas mãos seguiam reinventando sempre e sempre. E quando quase interrompia o manuseio da arte, era como se perseguisse o manuseio da vida, buscando fundir tudo num ato só... [...] Andava como se quisesse emendar um tempo ao outro, seguia agarrando tudo, o passadopresente-e-o-que-há-de vir. (EVARISTO, 2003, p.127. Ênfase acrescentada) O artista é um ser privilegiado capaz de transformar o manuseio da arte em manuseio da vida, unindo passado, presente e futuro. Do interior do túnel escuro de sua psique, Ponciá Vicêncio continua a perseguir os objetivos da missão que recebeu ao nascer: buscar a herança de Vô Vicêncio e trazê-la de volta para seu povo. O fato de não conseguir fazê-lo sozinha não nega a propriedade do esquema de Campbell para estruturar a análise do romance. Com a estatueta de Vô Vicêncio a artista Ponciá expõe a fortaleza do povo negro que, mesmo debaixo de forte opressão, reconhece sua força e mantém suas 22 Eliade (2006, p.17). 111 tradições. Por outro lado, expressa a difícil convivência do povo negro com o dominador branco que, por não respeitá-lo, busca formas de mantê-lo à margem. No cenário rural do romance, Conceição Evaristo, artista da palavra, evoca todo o sofrimento do povo negro nesse lugar, desde o período da escravidão. Em contraste, é nesse lugar também que se criam os laços familiares e são preservados valores, crenças e saberes que sustentam a força e a resistência dos afrodescendentes. Ponciá Vicêncio é a heroína talhada para percorrer o caminho de provas, em busca da benesse final para sua comunidade. Conceição Evaristo demonstra ser a escritora predestinada a resgatar a dignidade do seu povo e conceder-lhe o lugar merecido, no contexto social e literário brasileiro. Para atingir o duplo objetivo, político e estético deste trabalho, que se julgou consonante com as características do texto de Evaristo, apresenta-se como preâmbulo da análise a contextualização da escritora no seio da literatura afrobrasileira e desta no conjunto da literatura brasileira canônica. Conclui-se que o termo apropriado para descrever a escritura de Evaristo é escrevivência, que a autora utiliza para designar sua escrita como fruto, tanto de suas próprias experiências, como das lembranças dos antepassados. São memórias amargas do sofrimento do seu povo, sob a escravatura e, hoje, no cotidiano difícil da mulher negra. Seu livro de memórias, intitulado Becos da memória, recompõe a vida de Evaristo desde a infância na favela de Pindura Saia. Encontra-se ali o esboço das relações familiares desenvolvidas posteriormente em Ponciá Vicêncio. As figuras centrais arquetípicas do romance estão todas ali: a mãe protetora, os ancestrais detentores do conhecimento, a comunidade de mulheres que aconselha, ajuda e 112 repreende. Contra o pano de fundo da discriminação que relega os alunos negros aos piores lugares na sala de aula da escola comum. Examinamos inicialmente o périplo do afrodescendente no Brasil a partir da escravização e do colonialismo, cujo caráter de violência desumana repercute até hoje na marginalização social do negro. Na breve historiografia da escritura negra no Brasil, concentramo-nos prioritariamente na contribuição da mulher, que conduz a uma revisão biográfica de Conceição Evaristo e do conjunto de sua obra em verso e prosa. A argumentação de pesquisadores sobre a conveniência de se considerar a literatura escrita por negros no Brasil à parte do conjunto maior da literatura brasileira, bem como sobre a denominação a lhe ser dada, conduziu este estudo a algumas conclusões. Não basta escrever novos compêndios em que Cruz e Souza, Machado de Assis, Lima Barreto e outros sejam transladados do panteão da literatura brasileira para o seio de uma literatura negra brasileira. Faz sentido a colocação de Eduardo Assis Duarte de que é necessário construir operadores teóricos eficientes para avaliar os conceitos de literatura negra e literatura afro-brasileira. Acrescenta-se, de nossa própria lavra, operadores teóricos que se concentrem sobre fatores linguísticos capazes de identificar textos de uma ou outra procedência, literatura brasileira ou literatura afro-brasileira. Proença Filho diz o mesmo em outras palavras: “Lato sensu, será negra a arte literária feita por quem quer que seja, desde que centrada em dimensões peculiares aos negros ou aos descendentes de negros” (PROENÇA FILHO, 2004, p. 185). 113 É ponto de concordância, especificamente entre Conceição Evaristo e Assis Duarte, definir a especificidade da literatura negra, em contraposição ao conjunto da literatura brasileira, considerando-se temática (a vivência negra), um discurso outro (diferente do discurso institucionalizado), o negro como sujeito da enunciação e linguagem (marcas da herança linguístico-cultural africana). Para dar a este trabalho um toque de originalidade, posto que existem inúmeras pesquisas sobre o aspecto sociopolítico da literatura afro-brasileira, optouse desenvolver a pesquisa sob a perspectiva dos aspetos mitológicos no texto. Adaptou-se para isso a estrutura nuclear do monomito, que acompanha as fases da iniciação nas tribos primitivas, separação-iniciação-retorno, proposta por Joseph Campbell. Reestruturou-se, assim, a trajetória da heroína mitológica colocando como primeiro subitem do capítulo de análise, intitulado “A trajetória cíclica do monomito em Ponciá Vicêncio”, a descrição do mundo conhecido de Ponciá. Apresentam-se ali as personagens principais da trama e enfatizam-se as características da protagonista, que fazem dela um ser excepcional, cuja visão transcende a dos seres comuns do mundo factual. A interação com os elementos masculinos do clã, a memória do avô Vicêncio e o pai anônimo, sempre ausente, colocam Ponciá no caminho de provas que afasta a heroína do mundo conhecido. Como representação ficcional da passagem pelo primeiro limiar e da imersão no ventre da baleia, etapas propostas por Campbell, sugerimos a traumática viagem de trem da heroína. Ponciá emerge do trem desconfortável, aflita e desesperada à semelhança do herói que retorna das profundezas. 114 A cidade estranha e o afastamento das raízes naturais do seu modo de ser primitivo conduzem Ponciá ao silenciamento e à ausência, isolando-se em um mundo interior de choros e risos. Na terceira fase da aventura mítica, o retorno, o silenciamento a e ausência de Ponciá sinalizam a recusa do chamado para retornar e a imersão no seu mundo interior. Correspondem à fuga mágica do herói que receia voltar ao mundo dos deuses para apanhar a grande revelação que deveria partilhar, na volta ao clã, com os que estão à espera da benesse prometida. Luandi José Vicêncio, o irmão, e Maria Vicêncio, a mãe, correm em socorro da heroína. A mãe pensa apenas em proteger a sua menina “única e múltipla” em cujo rosto reconhece outras faces mesmo aquelas que chegavam de um outro tempo-espaço. “Maria Vicêncio se alegrou, o tempo de reconduzir a filha à casa, à beira do rio estava acontecendo” (EVARISTO, 2003, p. 125. Ênfase acrescentada). Luandi José Vicêncio compreende que a transmissão da herança de Vô Vicêncio agora é tarefa sua. Cabe a ele assumir o papel do herói que retorna como portador de boas novas para o seu povo, renunciando a quaisquer conquistas no mundo estranho a suas raízes. A leitura do romance de Evaristo conduz à reflexão sobre o mundo e a existência humana, o que nos reporta ao pensamento de Omar Khayyâm sobre a felicidade: “Limite os desejos pelas coisas deste mundo e viva feliz”. 115 REFERÊNCIAS ARAÚJO, F. S. de. Uma memória reencontrada: os (des)caminhos na trajetória de Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. 2007 UEPB. Disponível em: <http://www.uesc.br/seminariomulher/anais/PDF/>. 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Eu não abro mão de pensar que essa literatura afro-brasileira tem a ver com a experiência do negro brasileiro. 2 – É conhecida sua frase "não nasci rodeada de livros, mas de palavras". Comente como essa sua vivência com as palavras influencia sua literatura. Essa minha experiência com as palavras me acumulou as histórias. Certamente ela me ajudou a trabalhar minha sensibilidade diante das narrativas. Isso me provocou um certo encantamento, uma certa curiosidade em querer ouvir mais. Hoje tenho consciência de que quando ouço tais narrativas de familiares ou amigos, já preparo meu ouvido para o que poderei aproveitar dali, antes era inconsciente. Meu texto não é somente intuitivo, eu o trabalho, escolho as palavras, leio-o em voz alta, choro com o texto. Essa experimentação me trouxe o encantamento pelos sons das palavras. Gosto de ficar testando-as. É nesse sentido que afirmo não ser intuitivo. Se é intuição, há um trabalho com ela. Eu costumo ficar meses com o texto na cabeça, experimentando-o. 3 – A escolha dos nomes dos personagens são exemplos dessa intuição? Sim, eu não sei, por exemplo, de onde veio o nome Ponciá. O nome Nêngua foi intuitivo, sonoro. Só depois de muito tempo, descobri que o significado se encaixava, como está escrito no dicionário de Nei Lopes. Gosto também de inventar nomes. Fico procurando aqueles que me lembram a sonoridade das línguas africanas, como Ponciá, Nêngua e Luandi. O prazer que o som da palavra me dá, me ajuda na escolha dos nomes. 4 – E os personagens masculinos? Alguns não têm nome como o pai e o marido de Ponciá... Me preocupou muito também porque não dei nome para esses dois, e coincidentemente são personagens masculinos. Não quis dar invisibilidade a eles... E existem no romance os personagens Luandi, Soldado Nestor, Negro Climério... 130 Quanto a este último nome, gosto da sonoridade, assim como gosto de Alírio, personagem de Becos da Memória. Já o nome Davenga, personagem do conto “Ana Davenga”, surgiu assim: eu estava em algum lugar quando alguém contou de um Davenga que dançava jongo. Achei na hora o nome bonito. Agora, em Ponciá Vicêncio, fui ao dicionário banto para escolher palavras como “angorô”. Eu sabia que as pessoas associariam o arco-íris ao mito de Oxumaré, mas quis valorizar a cultura banto. 5 – O que personagens como Nêngua Kainda e Vô Vicêncio representaram na criação do romance, já que elas estão tão ligadas à memória coletiva? Algumas vezes crio primeiro os personagens e depois o enredo do romance. Não me lembro se foi assim com Ponciá Vicêncio, porque o escrevi há muito tempo. Quando criei a personagem Nêngua, achei-a parecida com o personagem velho e sábio que dá nome ao romance Jubiabá, de Jorge Amado. Se foi uma influência, não sei. Lembro pouco do personagem, mas sua imagem de conselheiro ficou na minha memória. Quando escrevi “Ana Davenga”, a primeira imagem que me veio na cabeça foi a de “Meu guri”, de Chico Buarque. Com isso quero dizer que há interferências, intertextos. Isso para explicar que eu realmente não sabia o significado de Nêngua, mas pode ter havido certa influência intuitivamente, inconscientemente. A escrita tem muito disso. Às vezes me dá uma certa insatisfação por ser Vô Vicêncio. Eu acho que eu queria que fosse uma avó. Depois que reli o texto fiquei pensando: porque eu não coloquei uma mulher? Também outro aspecto que chama a atenção no romance é que a esperança e a resolução do enredo vêm através de Luandi, pela sua retomada de consciência. 6 – Em Ponciá Vicêncio, a questão da arte é fundamental para a estrutura do romance. Como você vê o trabalho do barro feito por sua protagonista? O barro pra Ponciá é a arte. E eu acho que a arte é uma forma de escapatória. Como foi para Bispo do Rosário. A arte te dá a possibilidade de viver no meio de tudo sem enlouquecer de vez. Ela permite suportar o mundo. O ser humano tem essa necessidade. O que mantinha Ponciá viva e o que possibilitou o reencontro com sua família foi o barro. No final, quando ela anda em círculos é como se estivesse trabalhando uma massa imaginária. Ela cuida das ausências porque estas se percebem e se transferem para o corpo, como com Vô Vicêncio, com o braço cotó. A ausência de sua mão é que o faz reconhecido, percebido. Eu trabalhei bastante o texto final do livro. Eu queria falar da própria arte da literatura. Quando construo o texto e trabalho as palavras, é como Ponciá trabalha o barro. Aquele cuidado dela é como o que a escritora tem com a feitura do texto. No final, são passado e presente se juntando. Há um trecho que ilustra isso [a escritora abre 131 o livro e lê em voz alta]: “com o zelo da arte, atentava para as porções das sobras, a massa excedente, assim como buscava ainda significar as mutilações e as ausências que também conformam um corpo. Suas mãos seguiam reinventando sempre e sempre. E quando quase interrompia o manuseio da arte, era como se perseguisse o manuseio da vida, buscando fundir tudo num ato só, igualando as faces da moeda (PV, 131)”. Essa arte é a escrevivência. 7 – E sobre o orixá Nanã e sua relação com o barro no romance? Quanto ao mito de Nanã, eu não me lembrei dele quando escrevi o romance. Eu sabia do mito de Oxumaré, embora não tenha me vindo à cabeça quando escrevi o livro. O arco-íris veio de minhas lembranças de menina. 8 – Sobre o final do romance, há algumas interpretações que o consideram triste, com a protagonista terminando louca. O que você acha? Acho que no final Ponciá se apazigua, porque se viver a loucura até as últimas consequências é uma forma de apaziguamento, ela se apazigua. Em seu momento de ausência, no olhar vazio, ela via muito mais do que outras pessoas. Mas há muitas interpretações, como a morte de Ponciá, um afogamento... Já me pediram que escrevesse outro romance a partir do final deste, mas acho que nunca será Ponciá novamente. Admito que há uma tristeza que persegue a personagem e acredito que essa tristeza é a própria solidão do ser humano. 9 – Sabemos que seus dois romances demoraram a chegar ao público. Como é seu tempo de elaboração da escrita? Eu demoro a escrever. Não acho que preciso correr. Tenho dificuldade para cumprir os prazos [risos], meu tempo é outro. Mas essa demora ocorre primeiro, porque tem a questão da insegurança: “Será que esse texto está bom mesmo? Será que já posso mostrá-lo?”. Aí se junta a dificuldade de publicar um livro também. Ponciá só foi publicado porque a professora Maria José Somerlate, depois de tomar conhecimento do livro, insistiu que eu o publicasse, mas apesar da vontade, eu tinha inibição. Então Maria José me apresentou a Mazza, que publicou o livro através de sua editora. 10 – Na Literatura Afro-brasileira são comuns as apropriações e as paródias. Como é o caso de Oliveira Silveira e a "Outra Nega Fulô", também "Licença, meu branco", de Márcio Barbosa, que parodia Manuel Bandeira. Esses são exemplos de poemas, mas, no seu caso, podemos considerar Ponciá Vicêncio uma apropriação do gênero "romance de formação"? Olha, quando li seu texto e o de Eduardo percebi que a trajetória de Ponciá Vicêncio não é uma trajetória do herói clássico, parece que ela chega ao final sem nada. E Luandi joga fora aquela vitória, aquela farda e vai começar por outro 132 caminho, que não seria o chamado “vitorioso”. Em Becos da Memória, temos Vó Rita, que também não tinha bens materiais, e sua trajetória no final ganha outros contornos. Zilá Bernd, por exemplo, afirma que Zumbi representa esse grande herói porque, além de ser um escravo, ele era um escravo fugido. Em Salvador, nas comemorações dos 300 anos de Zumbi, foi declamada uma frase que ficou entre nós: “estamos comemorando 300 anos da imortalidade de Zumbi”. Fiquei pensando nessa trajetória de heróis que a gente conhece e fiquei pensando nesse Zumbi cuja vitória nós ali ainda comemorávamos 300 anos depois. Sua heroicidade vem da resistência e persistência. Por isso foi um herói negro, embora hoje seja considerado um herói nacional. Quando Solano Trindade canta que sua voz é a voz de Zumbi, ele se sente seu herdeiro. Então, a heroicidade de Zumbi não se completa nele, ela se faz ao longo dos anos na própria coletividade que ele representa. Daí fico pensando: será que os textos Ponciá Vicêncio e Becos da Memória não apontariam uma forma diferente de desenrolar a história? O que indica que Ponciá perdeu? Será que encontrar sua ancestralidade é uma perda? Será que Vó Rita continuando todo trabalho dela, saiu sem nada? A narradora de Becos tem a certeza, desde o início, que um dia escreveria aquela história. Essa forma de escrever ou reescrever apresenta sim uma paródia, mas não explícita. Uma vez ouvi Marina Colasanti lendo um conto seu lindíssimo que se chama “Menina de vermelho a caminho da lua”. Quando ela acabou a leitura, alguma coisa me incomodou. Em conversas com Miriam Alves, tentava descobrir o que era, pensei que se fosse uma de nós escrevendo aquela história, seria diferente. Porque a personagem que faz uma prostituta era culpada e algoz ao mesmo tempo, não é uma prostituta Bilisa. Então se nós tivéssemos escrito “Menina de vermelho a caminho da lua”, seria de outra forma, talvez aí esteja a paródia. (Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/ECAP76RF2H/1/alinearruda-texto.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2009). Entrevista concedia a Carol Frederico – Revista Raça Brasil 1. Em obras como A escrava Isaura, uma visão deturpada da mulher negra, embranquece a heroína e lhe confere características positivas por não ter os traços negros. Quais são as consequências disso? Quando a mulher negra passa por esse processo, continua sendo desvalorizada na sua condição de mulher. Ainda se espera que determinadas funções ou lugares não sejam propícios para as mulheres negras. É muito mais fácil para a sociedade 133 brasileira aceitar uma negra rebolando com a bunda de fora do que reconhecer a competência de uma negra professora, de uma negra médica. Eu não sei até que ponto essas mulheres eram realmente fogosas, ou se isso era atribuído a elas. O fato é que a sociedade espera que você cumpra determinadas funções e tenha determinadas características que vêm sendo coladas à imagem das mulheres negras há anos e anos. 2. Para a senhora, qual é a diferença entre ser mulher negra e simplesmente mulher? É muito diferente. A questão étnica pode ter um peso bem grande, mas vai depender muito da situação em que se está. Na questão do feminismo, por exemplo, enquanto as mulheres brancas precisaram sair às ruas para ficar livres da tutela do pai, do marido ou do irmão, esse não foi o nosso caso. Não precisamos lutar para ficar livre da dominação e querer trabalhar. A gente sempre precisou trabalhar. O nosso feminismo vem para a gente se afirmar como pessoa. Eu acho que a nossa primeira luta feminista não foi contra o homem negro, mas contra os nossos patrões e patroas. Enquanto a primeira luta da mulher branca e da mulher de classe média foi contra os homens de sua própria família – e eu não estou dizendo que o homem negro não seja machista –, nós nos posicionamos primeiro contra o sistema representado, principalmente, pelo homem branco e pela mulher branca. 3. A Senhora acredita que o discurso dos negros está mudando, no sentido de fugir do discurso produzido nas décadas anteriores, carregado de lamentos, mágoa e impotência? Há uma mudança, sim, e sempre tenho exposto isso. Há alguns anos, nossa afirmação étnica era uma de lamento, depois passou a uma de orgulho e hoje é de reivindicação. 4. E como essa reivindicação vem? Essa reivindicação vem justamente porque nós estamos fazendo questão de estar em todos os espaços, nas universidades, na vida pública, nos meios de comunicação. Por isso acredito que hoje há uma afirmação que reivindica. Mas eu também acho que a gente não deve esquecer o passado, pois ainda precisamos exorcizar essa nossa dor. Creio que não esquecer impulsiona você a cobrar, porque nada que a sociedade está nos oferecendo é de graça. Então vale relembrar o passado. Estão nos devolvendo tardiamente o pouco do muito que nos tomaram. Essa lembrança deve ser fortalecida para sabermos sempre por que estamos cobrando. Não é um muro de lamentações. Eles nos roubaram e a gente não pode perder essa perspectiva do passado – mas olhando sempre para o futuro. 134 5. Entre os escravos e quilombolas não havia registro escrito porque a maioria era analfabeta. Qual é a importância da história oral? A maior importância é essa fonte de possibilidades que a história oral revela, na medida em que ela me dá um conhecimento que foi negado ou disfarçado. Nossos antepassados vêm de uma cultura oral e o que poderia ter sido escrito não foi. A literatura, quando escreve a nosso respeito, o faz de outro modo. A oralidade é uma forma de dialogar com muita coisa que se desconhece. Quando paro a fim de escutar a história das pessoas, principalmente daquelas com mais idade, vejo quanta coisa a gente não sabe, que um livro não traz, e que só eles mesmos, com a sua sabedoria, podem nos contar. Uma coisa que também gosto de dizer é que eu não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras. Os escritores que conheço, que vêm de uma classe média, dizem “eu nasci rodeado de livros”. E eu digo: “Eu não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras, num ambiente onde contar histórias era uma coisa natural”. "A PRIMEIRA LUTA FEMINISTA DAS MULHERES NEGRAS NÃO FOI CONTRA O HOMEM NEGRO, MAS CONTRA OS NOSSOS PATRÕES E PATROAS" 6. A mulher negra está entre os maiores índices de pobreza. Elas não vão deixar de ser negras, mas como deixar de ser pobres? Deixar de ser pobre é uma coisa mais complicada, mas penso que você pode conseguir uma vida um pouco mais digna. Quando olho para trás e vejo que não moro mais numa favela, é porque consegui estudar, tenho uma profissão. Mas deixar de ser pobre implica ter uma estrutura sedimentada que ainda não possuímos. Não temos herança econômica. Poucos negros hoje na sociedade brasileira têm uma casa própria. Dificilmente você encontra um negro que tenha herdado uma casa na Tijuca [bairro carioca de classe média]. Portanto, deixar de ser pobre é uma luta que requer a acumulação de bens econômicos, propriedades, uma herança. Isso já acontece em termos individuais, mas não com a coletividade, pois você ainda não tem uma maioria em profissões liberais, em cargos privilegiados. Estamos saindo de um estado de miséria, só que não é uma conquista coletiva. Apenas o estudo abre essa perspectiva, mas também não podemos pensar que a educação faz milagre, porque há muitos negros formados e sem emprego, por uma questão social. (Disponível em: <http://racabrasil.uol.com.br/Edicoes/96/artigo15620-1.asp>. Acesso em: 12 dez. 2013). 135 Entrevista concedida a Giselle Araújo – revista D+ A autora Conceição Evaristo, nascida e criada numa favela de Belo Horizonte, trabalhou como doméstica, estudou magistério e só conseguiu emprego no Rio de Janeiro, onde consolidou a carreira de professora. Escreveu Ponciá Vicêncio na década de 1990 e deixou na gaveta, até que decidiu bancar os primeiros mil exemplares, em 2003. Com textos publicados nos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, além da coletânea Cadernos negros, do grupo paulista Quilombhoje, Conceição Evaristo revela em entrevista ao D+, a riqueza do universo feminino desvendado na literatura afro-brasileira. 1- Como você ingressou na literatura? Escrevo desde a infância, guardando os textos, sem saber se tinham valor literário. Sempre encontrei na escrita uma maneira de suportar o mundo. Era o que me permitia viver, questionar, buscar respostas. Ganhei um prêmio de literatura, por volta dos 10 anos, quando terminei o primário, na Escola Estadual Barão do Rio Branco, em Belo Horizonte. Nos anos 1990, tive poemas e contos publicados pela primeira vez, na coletânea Caderno Negros, do grupo Quilombhoje, de São Paulo. Em 2003, banquei a publicação de Ponciá Vicêncio, pela Mazza Edições, obra que escrevi na década de 1990. Mas meu primeiro livro foi Becos da memória, escrito em 1988 e publicado em 2006. 2- Você enfrentou muita resistência do mercado editorial? Deixei os livros na gaveta até que resolvi bancar as primeiras edições, porque, como nova escritora, não conseguia chegar a nenhuma editora, e me entristeci com isso. Um autor já consagrado ou com presença na mídia tem mais acesso, ainda que escreva uma baboseira. Mas a situação é mais complicada para quem não está na mídia e ainda é negro e mulher. Se eu disser: fale cinco nomes de escritores brasileiros, todo mundo lembra rápido. Para citar mulheres escritoras, será preciso um esforço de memória. E se eu pedir o nome de uma escritora negra brasileira, o exercício será bem maior. Minha experiência traz à cena, sem sombra de dúvidas, grandes escritoras afro-brasileiras, como Geni, Guimarães, Lia Vieira, Míriam Alves, Maria Helena Vargas, Ana Cruz, entre outras. Infelizmente, as pessoas ainda esperam que a mulher negra se mantenha em determinados espaços, cumprindo funções como cozinhar, cantar, dançar. 3- Nessas condições, o que representa ter um livro na lista do vestibular de uma grande universidade? Tenho recebido e-mails de jovens, negros e brancos, que leem o livro e se identificam com a história. Percebo que, num mundo tão seco de emoções, a 136 palavra literária ainda pode criar possibilidades de pessoas diferentes se encontrarem. Tem sido uma experiência muito gratificante ter tanto retorno de jovens de outras realidades, além da classe de onde saem os elementos do romance. Vejo que estando na lista do vestibular, chegando a escolas públicas, o livro encontra a possibilidade de retornar à sua origem. Ponciá Vicêncio é centrado numa comunidade afro-brasileira e, ao ser alçado por jovens das escolas públicas, onde há muitos afrodescendentes, possibilita a identificação desses leitores com elementos da sua cultura sendo romanceados e valorizados, numa obra indicada para reflexão no vestibular. 4- Como os estudantes devem ler Ponciá Vicêncio para conseguir bons resultados na prova? Não tenho a mínima noção do que será cobrado no vestibular. Acho que os estudantes deveriam observar a maneira de construção das memórias de Ponciá. Em determinados momentos, a fala do narrador se confunde com a fala da personagem, que segue retomando suas memórias. Também é interessante observar que o texto tem uma marca de oralidade muito grande. Estou há mais de 30 anos no Rio de Janeiro, mas a linguagem mineira não deixa de me atrair. As marcas de linguagem apontam para as culturas africanas, revelando a influência da etnia bantu na cultura negra do Brasil. Em muitos momentos, a narrativa de Ponciá se estabelece como um monólogo, expressando a intensidade interior da personagem. Para além da estrutura do texto, eu, como leitora, fico muito tocada com a afirmação de humanidade, não só de Ponciá, como de todos os personagens, como a prostituta Biliza e a velha Néngua Kainda, que representa o respeito que as culturas africanas têm pelos mais velhos e sua sabedoria adquirida pela vivência. 5- A vida de Ponciá expressa a história de Conceição Evaristo? Há uma relação muito grande entre o sujeito autoral com a ficção na literatura afrobrasileira. Mas Ponciá tem uma história própria, embora eu parta da vivência na comunidade negra para tirar os elementos da ficção. Começando minha história pelo lado feliz, digo que voltar a Belo Horizonte como escritora, com um livro indicado pela UFMG, consagra uma vida vitoriosa. Nasci e fui criada na cidade, em situação de extrema pobreza, numa favela no Bairro Cruzeiro. Em 1971, ainda morava na favela, que foi desapropriada, nos causando muita dor. Atravessei o chão da cidade com trouxas de roupa na cabeça para trabalhar na casa das patroas, ajudando minha mãe a catar papel para completar a renda. No entanto, a cidade me deu régua e compasso, e eu sai traçando meus caminhos. Tive muito apoio da família, especialmente da minha mãe e tia, para mudar o destino que as 137 pessoas queriam que ficasse estabelecido para mim. Lembro-me que a professora de biblioteca Luiza Machado Brandão saiu em minha defesa quando outros professores se posicionaram contra o resultado do concurso de redação. Como prêmio, ganhei um missal, um livro para acompanhar as missas, que tenho até hoje, com dedicatória dessa professora, de quem eu gostaria de ter notícias. (Disponível em: <www.santaluzianet.com/modules/news/article.php?storyid=674> Acesso em: 12 dez. 2013). Entrevista concedida ao Laboratório de Políticas Públicas da UERJ 1 – Ainda hoje são pouco conhecidas personalidades que fazem parte do histórico de luta da população negra no Brasil ao longo dos séculos. Na literatura brasileira também é possível perceber a influência de escritores negros na luta contra a discriminação? Sim, sem qualquer dúvida. Creio que uma leitura mais atenta de vários textos de escritores negros ao longo da literatura brasileira nos fornece essa resposta. Alguns conseguiram criar um discurso literário marcadamente opositor à mentalidade da época. Por exemplo, Caldas Barbosa (1738-1800), famoso por seus lundus, ainda no Brasil Colônia, tenta responder, por meio de versos, aos vários insultos que recebia, como o de ser descendente da “nojenta prole da rainha ginga”, dirigido contra ele pelo poeta português Bocage (1765-1805). Poetas, romancistas como Luiz Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, Lino Guedes, Solano Trindade e muitos dos escritores contemporâneos, incansavelmente, produzem obras que auxiliam e que valem mesmo como discurso contra o racismo. 2 – Quais são os autores ou obras brasileiras que a senhora destacaria em função da presença da discussão racial ou outras manifestações de luta da população negra? E que autores foram esquecidos por nossa literatura? O primeiro que eu destacaria seria Luiz Gama (1830-1882). Com seus poemas satíricos, aponta na sociedade da época a pretensão racista de se constituir e de se apresentar como uma sociedade branca. Cruz e Souza (1861-1898), com a sua negritude angustiada. O grande poeta simbolista do Brasil morre em estado total de miséria, esquecido pela crítica da época. E quando recuperado, é apontado como um poeta que tenta escapar de sua condição étnica – conclusão tirada a partir de certas metáforas que Cruz e Souza utilizava nas construções de seus versos –. Criações importantes do poeta foram deixadas no esquecimento, ou melhor, no desconhecimento, como “Núbia” e o poema em prosa “Emparedado”, em que a voz 138 autoral negra do poeta se faz ouvir. Referência maior talvez seja a de Lima Barreto (1881-1922). Desprezado por muito tempo pela crítica literária, mas nas últimas décadas já se encontra plenamente recuperado pelas pesquisas acadêmicas. Lima Barreto, segundo o seu biógrafo Regis de Morais, denominava o espaço familiar em que vivia como “Vila Quilombo”. Ao meu ver, ele é o escritor que mais contundentemente coloca o dedo na ferida do racismo brasileiro. Sua obra, notadamente em Recordações do Escrivão Isaias Caminha e em Clara dos Anjos, proporciona várias discussões sobre os modos das relações raciais da sociedade brasileira. Em 1903, em seu Diário Íntimo, Lima Barreto relatava o desejo de escrever sobre a escravidão no Brasil, e a influência desse processo na nacionalidade brasileira. Em 1905, o escritor volta a registrar a mesma ideia. Queria escrever um romance que falasse da vida e do trabalho dos negros em uma fazenda. E não podemos esquecer a escritora maranhense, Maria Firmina dos Reis, (1825-1917) também muito pouco conhecida. Os compêndios tradicionais da historiografia da literatura brasileira não citam a escritora. Há, entretanto, estudos que apontam Maria Firmina como a autora do primeiro romance abolicionista, Úrsula, escrito por uma mulher. Registros comprovam a presença dela em jornais maranhenses publicando poesias, contos, crônicas e também como compositora de um hino para a abolição da escravatura, segundo informações do pesquisador de literatura afro-brasileira, Prof. Eduardo de Assis da UFMG. 3 – Ao longo do processo histórico e social de constituição da nossa sociedade, em muitas áreas, o negro foi invisibilizado. A senhora percebe este processo de invisibilidade do negro nas obras de Literatura Brasileira, assim como na área acadêmica? Como isso acontece? Se a pergunta for sobre o negro como personagem, eu me arriscaria a dizer que nesse sentido não pesa uma invisibilidade sobre o negro, mas sim estereotipia. A literatura brasileira está repleta de personagens negras, tanto no verso, como na prosa. O que há é uma estereotipia do negro nos textos literários. Gregório de Matos (1623-1696) já compõe uma representação da mulher africana escravizada em seus poemas. De seus versos afloram o desprezo pelos mestiços e o apetite sexual que os portugueses tinham pelas mulatas. A literatura brasileira segue ao longo do tempo difundindo estereótipos de negros em várias obras. Textos escritos no passado e na contemporaneidade repetem, revitalizam, reatualizam estereótipos tais como: o do negro Pai-João, o da Mãe-Preta, o do negro preguiçoso, libidinoso, o do negro infantilizado, o da mulher negra boa de cama, o da mulata fogosa, permissiva, etc., etc. É só atentarmos para personagens como: Pai Benedito, em Tronco do Ipê, de José de Alencar (1829-1877), infantilizado pela incompetência 139 linguística para articular a “língua de branco”. O mesmo estereótipo aparece na obra São Bernardo, de Graciliano Ramos (1892-1953). A personagem Casemiro, aliás, uma retomada do estereótipo do escravo fiel, aparece retratada como alguém possuidor de uma dificuldade de linguagem. Na narrativa, se lê que Casimiro mal articulava poucas palavras, e quando estava contente “aboiava”. Rita Bahiana e Bertoleza, em O Cortiço, de Aluisio de Azevedo, (1857-1913) são imagens estereotipadas de mulheres negras. A primeira é desenhada como a mulata em que tudo nela é sexualizado, do corpo à voz. A segunda surge idiotizada, animalizada e “morre focinhando”, segundo a narrativa. Por sua vez, Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, (1912-2001) representa uma mulher-natureza, incapaz de entender qualquer norma social. Nessas e outras obras da literatura brasileira, normalmente, as personagens negras surgem estereotipadas em concordância com a maneira como o negro é percebido pela sociedade. Não há uma ausência do negro e da cultura negra nos textos literários brasileiros. O que existe é uma representação deprimente sobre nós negros. Nesse sentido, é preciso pensar que a cultura dominante tem o poder de se representar e de representar as outras culturas circundantes.Se pensarmos na invisibilidade do escritor negro, temos de levantar ainda uma outra questão: a do processo de branqueamento que certos indivíduos sofrem quando circulam; quando vivem em espaços sociais tidos como “lugares de branco”. A instituição literária é lugar de uma maioria branca e do sexo masculino. O processo de branqueamento que Machado de Assis sofreu é exemplar. Desde a transfiguração de seus retratos, como a pouca circulação dos textos em que Machado traz a questão da escravidão. Por isso, esperamos com muita ansiedade um trabalho de pesquisa, feito por um professor da Federal de Minas, já citado nessa entrevista. Esse estudo pretende trazer textos jornalísticos de Machado assinado por pseudônimo, em que o fundador da Academia Brasileira de Letras, se coloca diante da questão escravocrata. Mas, os críticos literários, até hoje, optam por apontar um Machado de Assis branco. Há uma gama de escritores negros, e aqui eu estou incluindo os mestiços, que nós desconhecemos. Castro Alves, Manuel da Silva Alvarenga, Gonçalves Dias, Teixeira e Souza – autor do primeiro romance brasileiro –, Gonçalves Crespo, a poetisa Auta de Souza, Paula Brito, poeta, contista, novelista, tradutor e iniciador do movimento editorial no Brasil. Foi ele o primeiro editor de Machado de Assis. Paula Brito e outros trazem uma ascendência africana ou indígena que raramente aparece destacada. O modernista Mário de Andrade era mulato. Reafirmo que, se procurarmos somente a afrodescendência, vários autores tiveram papel marcante na literatura brasileira. Entretanto, quando pensamos na assunção dessa ascendência, como um dado 140 para a própria escrita, nomeamos aqueles/as, cuja referência de datação se coloca a partir dos anos 20 até a contemporaneidade. São escritores/as que trazem uma escrita profundamente marcada por suas experiências de afrodescendente. Começamos por Lino Guedes que assume uma “negritude” em seus textos, mesmo que de forma lamentosa. Solano Lopes, por declamar: “negros que exploram negros não são meus irmãos”. Abdias do Nascimento, pela contundência de seu discurso poético em consonância com o seu discurso político. Adão Ventura, um dos primeiros que conheci no exercício de poetar as dores do negro mineiro. Edimilson de Almeida, Ricardo Aleixo, Waldemar Euzébio, poetas mineiros de agora. Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira, Marcio Barbosa, Jamu Minka, Oubi Inaê Kibuco, José Carlos Limeira, Landê Onawale, Semog, Salgado Mariano, Nei Lopes, dentre outros, contistas, poetas e também estudiosos, pesquisadores da cultura afro-brasileira. As mulheres, Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de Yemonjá, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Maria Helena Vargas da Silveira e outras, contistas, poetisas, romancistas, cronistas, nomes, que aparecerão com mais vigor na cena literária, quando estudiosos atentos às diversidades da cultura e da literatura brasileira se debruçarem sobre o novo. Uma geração novíssima vem despontando em Cadernos Negros, cito alguns nomes: Andréia Lisboa de Souza, Atiely Santos, Cristiane Sobral, Allan da Rosa. E não posso deixar de citar aqui o nome de Carolina Maria de Jesus que, audaciosamente, a partir de restos de papel e lixo, feriu a pretensão brasileira que procura fazer uma “assepsia” na literatura, tanto do ponto de vista da temática, como no da linguagem. 4 – Quais as contribuições, na sua opinião, que a Lei nº 10.639/2003 pode exercer no ensino de Literatura e Língua Portuguesa na educação brasileira? Existe material didático com abordagem sobre essa questão nesta área? – A obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no Ensino Fundamental e Médio, oficial e particular, sem dúvida alguma abre um espaço de visibilidade aos aspectos poucos difundidos das culturas africanas e afro-brasileira. É preciso forjar um reconhecimento de que as culturas africanas, aqui aportadas, são formadoras da nacionalidade brasileira e não meras contribuições. A presença do negro na cultura e no pensamento nacional extrapola o espaço da arte relacionada ao canto, à dança, à culinária. Creio que a Lei nº 10.639/2003 proporciona, ou melhor, exige que se tenha um olhar mais diversificado sobre literatura brasileira. Há autores e textos negros que são estudados, mas a partir de uma ótica eurocêntrica. Procura-se, inventa-se um lado branco para esses autores, assim como para os seus trabalhos. Hoje, novos textos estão chegando ao 141 mercado, e uma nova maneira de lidar com esses textos está sendo levada (ainda em pequena escala, reconheço) aos professores. Uma escrita que trata dignamente o universo histórico, cultural, político e religioso negro pede e força passagem. É lógico que o mercado editorial e livreiro é impulsionado pelo lucro, pelo retorno e não pela questão ideológica, mas no momento, abre-se uma brecha. As editoras estão hoje mais propensas a investir em obras que desenvolvem temáticas relativas às culturas africanas e afro-brasileiras. Quanto à divulgação dos textos afrobrasileiros em grande escala, temos algumas novidades. Cadernos Negros – melhores poemas foi uma das obras selecionadas no vestibular da UFBA, desse ano. Anteriormente, um livro de poesia de Edimilson de Almeida e de Ricardo Aleixo, Roda do Mundo, apareceu incluído no vestibular da UFMG. Ano passado, foi o livro de Waldemar Euzébio, Achados, que foi incluído no vestibular da cidade de Montes Claros. E em 2008, o vestibular da UFMG trará o romance Ponciá Vicêncio, de minha autoria. A presença de obras como essas no vestibular, penso eu, ecoa os efeitos da 10.639. E quais as significações e quais efeitos da inclusão de um desses livros no vestibular? Várias. Uma delas, sem dúvida, é a possibilidade de ampliação do universo de leitores, entre alunos e professores. 5 – Qual a importância da Literatura Africana na Língua Portuguesa e na Literatura Brasileira? – Creio que essa pergunta coloca dois níveis de questões distintas. Eu diria que a importância das Literaturas Africanas na Língua Portuguesa estaria na possibilidade de ampliação de sentidos da própria língua portuguesa. Os escritores africanos que herdaram da colonização portuguesa, como nós herdamos, o idioma português, fazem “maravilhas”, produzem novos efeitos estéticos com uma língua que, desde que emigrou da metrópole para as suas antigas colônias, deixou de ser só a língua de Camões. Transformou-se em uma língua que ganhou novos donos, novas marcas culturais, diversificou-se, enriqueceu-se ao misturar-se com locais falares, por onde ela aportava. Falamos, todos nós, uma mesma língua. Falamos e não falamos... E do ponto de vista da linguagem, nesse falar e não falar a mesma língua portuguesa reside, muitas vezes, o fundamento estético dos textos africanos. A segunda pergunta, talvez seja preciso inverter. Seria qual a importância da literatura brasileira nas literaturas africanas? Interessante observar que os escritores brasileiros, notadamente os modernistas, tiveram uma grande influência nas literaturas africanas de língua portuguesa. Jorge Amado, Guimarães Rosa, o poeta Manuel Bandeira e outros marcaram a escrita de escritores africanos. Há vários textos africanos que dialogam com uma escrita brasileira. Só para exemplificar, 142 podemos pensar na escrita do angolano Luandino Vieira e do moçambicano Mia Couto. (Disponível em: <http://www.lppuerj.net/olped/acoesafirmativas/boletim/31/entrevista.htm>. Acesso em: 23 ago.2014). Entrevista concedida a Edimilson de Almeida Pereira. PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na escola – questões sobre culturas afrodescendentes e educação. São Paulo: Paulinas, 2007. EAP: Em suas palestras, você costuma dizer que a convivência em família, especialmente com sua mãe, foi decisiva para lhe despertar o gosto pela arte de contar histórias. Como foi essa convivência? E que histórias você ouviu de sua mãe? Sim e gosto de afirmar, eu não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras. Na minha casa, sempre falamos muito, parece que falar tinha efeito diluidor da pobreza, a miséria material que nos cercava. Minha mãe, mulher de silêncio, para as suas dores íntimas, nos contava histórias, cantava conosco, fazia brincadeiras, construía nossas bonecas, bruxas de pano e de capim. Não tínhamos rádio e a televisão, acho que nem existia naquele tempo. Essas brincadeiras, que aconteceram ainda na minha primeira infância, mas são tão vivas em minha recordação. E foi ela também que me despertou para a maravilha do mundo impresso, folheando revistas, nos mostrando gravuras, rindo das imagens e nos colocando na escola, desde o jardim. Lembro-me que a primeira vez que ouvi a história da “Galinha Ruiva”, foi ela nos contando, para mim e minhas três irmãs, meninas. Aos sete anos fui morar com minha tia, irmã de minha mãe, essa tia tinha histórias familiares que guardavam uma memória da escravidão. Conheci então outras histórias, por meio dela e do marido dela. Meu tio velhinho que morreu com quase 93 anos finais dos anos de 1960 e que curiosamente sabia ler e escrever. Dele escutei uma história várias e várias vezes, que eu hoje reconheço como sendo a do “Barba Azul”, era uma versão imensa. Acrescente-se a isso as histórias de assombrações, de almas penadas e a própria maneira de expressar, uma linguagem profundamente metafórica com os seus ditados, seus versinhos, suas advinhas... EAP: Em que medida a experiência com as histórias orais, em família, influencia o seu processo de criação literária? Primeiro, creio que o ato de contação de histórias despertou em mim o gosto pelas palavras, pela melodia, pelos sons da fala, da linguagem. Meu tio, principalmente, fazia os gestos, emitia ruídos, batia os pés no chão, estalava as palmas, batia nas portas vivenciando os atos dos personagens. 143 Eu sentia, vivia cada história intensamente. Eu sentia que meu tio brincava com as palavras, abusava dos sons, me metia medo ou prazer, não só pelo fato narrado, mas pelos gestos e entonação da voz. Acho que da fala de minha mãe, de minha tia, do meu tio, das falantes brincadeiras com minhas irmãs, das conversas escutadas dos vizinhos, acho que daí aprendi a amar as palavras e ao silêncio que me leva a buscar por elas e a encontrá-las. EAP: Recentemente, vieram a público dois livros de prosa, de sua autoria: Ponciá Vicêncio e Becos da memória. Quais são as tramas e as intenções dessas obras? Em Ponciá Vicêncio, a trama gira em torno de uma mulher, aparentemente apática, lidando intensamente com a sua memória pessoal e profundamente marcada pela solidão. A solidão de Ponciá dói no leitor, tenho ouvido esse comentário. A trama vai se construindo pelo rememorar da personagem central, por uma espécie de monólogo carregado de lembranças familiares, que implica em lembrar, ou melhor, que se estende como memória de uma comunidade, de um povo. E assim outras personagens vão surgindo ao longo da história com seus destinos cruzados com o de Ponciá. Em Becos da Memória, a trama é marcadamente coletiva e se constrói com um emaranhado de personagens, de histórias que vão sendo filtradas pelo olhar de uma menina, inserida em uma favela que em que os moradores estão sendo expulsos de suas moradias. A intenção das duas obras, e quem sabe de toda a minha escrita é tentar escrever uma ficção, como se estivesse escrevendo a realidade. Às vezes, fico pensando no privilégio do ficcionista, seja ele poeta ou prosador, pela ficção conseguimos transformar a dor, a carência, a ausência, a solidão, a alegria, o encontro, o prazer, enfim a vida e a morte em letras e em exercícios de fala. Digo isso pensando principalmente nos jovens desesperançados das grandes cidades, naqueles a quem nada foi ofertado, a não ser a desesperança. E não conseguem avacalhar com essa desesperança, isto é, fingir que é esperança e sair bem contando, bem cantando, bem escrevendo... Vejo meninos com metralhadoras nas mãos, nos olhos, nas mentes... EAP: A memória se apresenta como um dos eixos de sua obra em prosa. Que memória é esta? Quando ela é ativada, que personagens elas trazem ao nosso presente? Acho que a minha memória é ativada sempre, ou pelo menos está em constante estado de alerta, embora eu tenha lapsos frequentes de esquecimento. Que dia é hoje, onde deixei minha bolsa, o que eu estava falando, para que horas ficou marcada a reunião... Gosto de rememorar, gosto de viver outra vez. Às vezes rememoro para entender o que vivi antes e não entendo. Esta limitação acaba me pedindo um rememorar sempre. E isto seve para os personagens que crio. Ponciá 144 Vicêncio queria entender o seu passado e o de sua família, queria entender a herança deixada por um de seus ancestrais. A narradora de Becos da Memória, já adulta, um dia lançando um olhar para o passado reencontra o seu eu-menina. Escreve então a partir da visão que lhe era própria naquele momento de vida. E afirma que está escrevendo como se fosse uma homenagem póstuma às pessoas que ela havia perdido na infância e a tudo que ela guardava nos becos de sua memória. Acho ainda que em alguns poemas trago também um trabalho com a memória, por exemplo: “Vozes-mulheres” (CN13) “Meu Rosário” (CN15) dentre outros; e contos como “Duzu-Querênça” (CN16) e “Olhos d’água” (CN28) trazem também a inscrição de uma memória. Entretanto, são memórias que transitam insistentemente pelo presente. Não escrevo sobre um passado acabado, resolvido, sobre um episódio que tenha finalizado, mas sim, um passado que incomoda o presente. Retomo memórias de uma história que ecoa ainda as suas consequências no “aqui e agora”. Por isso Ponciá Vicêncio pode ser uma mulher de ontem, que tenha chegado a uma cidade grande, no início do século passado, como pode ser aquela moça, que nesse exato momento esteja saindo do interior para uma metrópole, em busca de melhoria de vida. EAP: Sua obra poética tem sido interpretada como um diálogo entre a linguagem lírica (que tenta decifrar os enigmas do indivíduo) e a linguagem de cunho social (que denuncia o racismo, a violência contra a mulher, etc.). Como você pensa a sua criação poética? Penso e desejo que a minha criação poética circule mesmo entre esses dois polos. Estou pensando no conto “Ana Davenga” (CN18) em que os dois personagens centrais são uma mulher e um homem, habitantes de qualquer favela do Rio, de Minas, do Brasil, do mundo. No conto estão denunciadas as condições sociais de uma grande parte da população brasileira nas grandes cidades. Mas no conto se lê o amor dos dois. Desenho a mulher, Ana Davenga escolhendo seu homem, o marginal, que é descrito como sujeito humano e que encontra essa humanidade no amor de Ana, na relação a dois. Alguém leu esse conto e disse que eu fazia a apologia do bandido. No conto “Maria” (CN14) também ocorre o mesmo. Maria, uma mulher pobre, uma doméstica, ao voltar do trabalho e no itinerário de volta para casa, o ônibus em que ela se encontra sofre um assalto. O assaltante era o pai de um de seus filhos. E, durante os momentos que antecedem ao assalto, o assaltante declara o seu amor pela mulher e pelo seu filho. Temos o rememorar dessa relação nesse desesperado encontro. O final do conto é doloridíssimo. Ainda em “Quantos filhos Natalina teve” (CN, 22) uma mulher depois de ter tido 3 ou 4 filhos e ter rejeitado a todos é vítima de um estupro e se descobre grávida. E, é 145 justamente essa gravidez que ela assume, esse filho símbolo de sua solidão, que ela compreende como sendo seu. Essas e outras personagens estão sempre centradas em lugares de exclusão e além de suas carências materiais, seus dramas existenciais afloram e não são construídas aleatoriamente, existem motivos, intenções. EAP: Sua obra de ficção tem sido, por várias vezes, comparada à da escritora afroamericana Alice Walker. Em que medida essas comparações são justificáveis? Tem sido comparada também a de Toni Morrison. Para mim, um fator importante de aproximação de nossos textos é o aproveitamento que fazemos do passado, um esgravatar da memória compõe muito da matéria de nossa ficção. Lidamos com um passado histórico comum – a escravidão. E, apesar de nossas histórias nacionais serem diferentes, como mulheres inseridas em sociedades patriarcais e brancas, vivenciamos situações muitas vezes semelhantes. Entre o lembrar e o esquecer transitam os nossos personagens que em grande parte é formada por mulheres. O tema da loucura é uma recorrência em nossos trabalhos. Pecolla, do livro O olho mais azul, e Sula, personagem de Amada, enlouquecem nos livros de Morrison. Duzu, Ponciá Vicêncio, Cidinha-Cidoca são personagens insanas em meus textos. Herança cultural, maternidade, família, condição de vida das mulheres negras, a vulnerabilidade a que estão sujeitas, assim como a capacidade de inventarem formas de sobrevivência se constituem como temas de nossas escritas. Os nossos textos carregados de experiências específicas de mulheres negras postadas em sociedades diferentes permitem vislumbrar, entretanto, uma memória coletiva compartilhada e que extrapola as fronteiras nacionais. EAP: Você é professora da rede pública de ensino, no Rio de Janeiro. Em sala de aula, há espaço para a convivência entre a poeta, a ficcionista e a professora? Fui, acabo de me aposentar. A escola, os alunos, a possibilidade e a impossibilidade do dia a dia de quem lida com a educação podem ser motivo de desespero e de poesia. Ensinar é uma profissão que coloca a pessoa o tempo todo em uma relação direta com a outra, principalmente se tratando de crianças e jovens, mesmo que seja em uma relação de fuga. Correr do aluno, correr da escola, correr da educação... Tenho uma preocupação imensa com o ato, com o direito e com a necessidade da alfabetização para todas as pessoas que vivem em uma sociedade letrada. Sabemos que a ausência do conhecimento da leitura e da escrita significa exclusão para muitos. No livro Ponciá Vicêncio, a personagem, que dá título ao livro, acreditava que a leitura lhe abria “meio mundo, ou melhor, o mundo inteiro”. O desejo maior de Luandi, irmão de Ponciá, era aprender a ler e a escrever para ser soldado. No conto, Duzu-Querença, a neta estudava e a sua avó, 146 Querença, quando ainda pequena, ao ir para a cidade, fora com a promessa de que a patroa lhe deixaria estudar. Como professora tive em meu tempo de magistério a oportunidade de ser responsável pela biblioteca, de trabalhar em sala de leitura, de ser a responsável por multimeios, tendo a liberdade de selecionar livros, textos, vídeos para professores e alunos. Ah, então eu fazia a festa... EAP: De que maneira a literatura pode contribuir para a apresentação de temas das culturas africanas e afro-brasileiras em nossas escolas? Sendo em princípio textos que despertem nos alunos o desejo de adentrar no mundo da leitura, no mundo da literatura. Se o professor pretende usar o texto literário para a apresentação de um tema novo, ou como uma nova maneira de colocação de uma determinada temática, o texto em si tem de ser algo desejado pelo aluno. E há diversas maneiras de despertar a atenção do aluno para um texto, vários jogos podem ser produzidos antes do texto cair na mão do leitor. É Interessante observar que os textos direcionados ao público adulto, ou aqueles que mesmo sendo para crianças e jovens e que aparecem para um consumo fora da escola, uma mídia é produzida antes até o lançamento do livro. Tudo visando despertar a curiosidade e o desejo do leitor em obter a obra. Por que não descobrir formas de preparar o aluno para o recebimento do texto? Jogos instigativos relacionados ao título do podem ser feitos, como: o que o título do livro sugere para você? Se você tivesse de escrever ou contar uma história a partir desse título, como seria o seu texto? Uma pesquisa em torno do autor do livro pode ser proposta anteriormente à leitura do livro. Pode ser apresentado um capítulo ou fragmentos do texto ou ainda determinada estrofe, caso seja um poema e incentivar os alunos para que eles completem o texto como se fossem coautores da criação que lhes foi apresentada. No caso das crianças menores, ainda não alfabetizadas, o livro pode ser oferecido a elas para ser manuseado, para que observem o desenho, criem a sua história e só depois o professor entra apresentando a história. Essas e outras formas instigam o desejo do leitor em conhecer o livro, o texto. O professor deve estar sempre alerta para o tipo de leitura, que está sendo levada para a sala de aula. E em se tratando das culturas africanas e afro-brasileiras o mercado, aos poucos, vem oferecendo materiais excelentes, obras que procuram inclusive atender às exigências da 10.639. A literatura, talvez mais até do que a História, pois o texto literário primeiramente fala à emoção do sujeito, permite não só a introdução dos temas das culturas africanas e afro-brasileira nas escolas e muito mais do que isso. Ela propicia a assunção e o respeito por uma afro-brasilidade, tanto para o aluno como para o professor, permite o reconhecimento do multifacetado rosto de nossa identidade nacional. 147 EAP: Em que medida se pode falar da existência de uma literatura afro-brasileira? Qual a importância de se delinear esta linha literária e quais são os seus traços característicos? Para mim, a aceitação da existência da literatura afro-brasileira pressupõe reflexões tanto em torno da estética, como da ideologia do texto. Eu não tenho nenhum temor, não sinto nenhum mal-estar em não só afirmar a existência de uma literatura afro-brasileira, como ainda me encaixar no grupo de autoras/es que cria um texto afro-brasileiro. E diria até mais, os meus textos e de outras escritoras afirmam a existência de um texto feminino negro, ou afro-brasileiro, como queiram. Como? O meu texto se apresenta sob a perspectiva, sob o ponto de vista de uma mulher negra inserida na sociedade brasileira. É exatamente nessa afirmativa que coloco algumas indagações, pois tenho ouvido várias defesas em torno do ponto de vista, da perspectiva negra do texto, como se esse dado se realizasse sozinho, independente do autor. Ora, sei que esse ponto de vista pode ser procurado, tentado, ensaiado por mãos que não sejam necessariamente negras, como sei também que existem mãos negras desinteressadas e que se negam produzir qualquer texto sobre essa perspectiva. Concordo com a afirmação bastante lúcida de muitos, e reafirmo que não basta ao escritor/a ser negro/a para se fazer uma literatura negra. Nos últimos dez anos talvez, as discussões em torno da existência ou não de uma literatura afro-brasileira têm sido levantadas com mais frequência e não podemos nos esquecer de que a expressão afro-brasileira substitui a nomenclatura anterior, literatura negra, usada com frequência até os anos 1990. Em meio às reflexões que têm sido levadas por pesquisadores, nacionais e estrangeiros, escritores, leitores, homens e mulheres, negros e brancos, lá estamos nós, os produtores dessa literatura. Minha reflexão gira em torno de uma indagação simples. Quem constrói, quem inventa, quem cria o ponto de vista do texto? Ora se a literatura afro-brasileira, como tem se apresentado em algumas discussões, se atualiza, se identifica a partir do ponto de vista do texto, a partir da perspectiva da escrita que se realizaria sob a ótica de um olhar negro conferido à escritura, pergunto: o sujeito autoral da escrita é isento de qualquer participação nesse mesmo texto. O texto nasce de quem? O texto não é uma criação de um sujeito? Explicando melhor: para mim, a autonomia do texto em relação ao seu autor é relativa e muito. O ponto de vista que atravessa o texto e que o texto sustenta foi criado por alguém. Alguém que é o sujeito autoral. Sujeito da criação do texto e que pode, inclusive, criar uma personagem que finge ser o autor e que faz parte da própria ficção do texto. Alguém, entretanto criou esse fingidor que finge ser o autor e esse alguém é o autor concreto, o fulano ou a fulana de tal criador/a da obra. E 148 nesse sentido afirmo que quando escrevo, sou eu Conceição Evaristo. Uma cidadã brasileira, negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares, mãe de uma especial menina, Ainá, etc., que está a criar personagens, enredos, a escolher modos de trabalhar com linguagem, a partir de uma história, de uma experiência pessoal, intransferível. Afirmo que a minha condição étnica e de gênero, ainda acrescida de outras marcas identitárias, me permite uma experiência diferenciada do homem branco, da mulher branca e mesmo do homem negro e que tudo isso influência a minha escrita conduzindo o ponto de vista, a perspectiva, o olhar que habita em meu texto. Será que alguém escreve o texto do outro? Eu não me acredito capaz de criar no meu texto uma perspectiva, um modo de olhar indígena ou cigano, por mais que eu me compactue, me comprometa com as lutas desses povos. Como eles, experimento uma história de exclusão, mas de um outro lugar. Posso tentar e criar um arremedo talvez. Retomando a segunda parte da pergunta, creio que um dos aspectos da importância em se delinear a linha literária afro-brasileira está na imposição que se coloca diante da Literatura Brasileira como um todo. Necessário se torna reconhecer a potencialidade criativa, no campo da literatura, de uma categoria étnica, social e de gênero (pensando aqui nas escritoras), que vem a longo dos anos recebendo um olhar desvalorizativo da sociedade brasileira. Um outro aspecto também a considerar é que ao delinear esta linha literária, forçosamente se impõe a reescrita e a crítica da História da Literatura Brasileira. Novos nomes terão de ser incorporados desde a formação da Literatura Brasileira à contemporaneidade. E, talvez antes de tudo, visibiliza um discurso literário, que se apresenta como uma fala desestabilizadora de um discurso produzido pelas elites e que pretende ser hegemônico e representativo da nação brasileira. Como principais traços característicos do discurso literário afro-brasileiro, destaco os seguintes: – a afirmação de um pertencimento étnico; a busca e a valorização de uma ancestralidade africana; a intenção de se construir como um contradiscurso literário a uma literatura que estereotipiza o negro; a cobrança da reescrita da Historia Brasileira no que tange a saga dos africanos e seus descendentes no Brasil; enfática denúncia contra o racismo e as injustiças sociais que pesam sobre o negro na sociedade brasileira. EAP: A título de exemplo, numa oficina sobre a literatura afro-brasileira direcionada à atualização de professores, que temas e autores você indicaria como referências? Temas como: Que imagens de negros, a escrita afro-brasileira pode desconstruir? 149 Textos paróticos da Literatura Afro-Brasileira: Outra Nega Fulô, de Oliveira Silveira, (Cadernos Negros, 11) e O que não dizia o poeminha de Bandeira, de Marcio Barbosa (Cadernos Negros, 15) apresentados juntos aos textos inspiradores, Essa Nega Fulô, de Jorge de Lima, e Irene Boa, de Manuel Bandeira, geram discussões em torno das intenções da escrita afro-brasileira. Poemas da África e da diáspora. Apresentação de poemas de autoria africana e afro-brasileira promovendo uma leitura comparativa entre os textos, buscando sinais de parentesco e distanciamento. Diálogos: Literatura e Cinema Leitura de textos como o livro A Cor de Ternura de Geni Guimarães em diálogo com o filme As filhas do Vento, de Joel Zito Araújo. Apresentação de poemas de Edimilson de Almeida Pereira do livro Corpo Vivido e de outros em diálogo com vídeos sobre Festas do Rosário, congadas, etc. Pedagogia da Oralidade, palavras de sabedoria – Leituras de histórias sobre os griots, como o livro Os comedores de Palavras, de Edimilson de Almeida Pereira e Rosa Margarida de Carvalho Rocha. Apresentação de provérbios africanos procurando ditos semelhantes, ou reminiscências desses que circulam na linguagem brasileira. Apresentação de poemas afro-brasileiros que apropriam de determinados signos das culturas africanas e afro-brasileira como matéria poética. Por entre a Literatura e a História – Apresentação de textos literários afrobrasileiros promovendo uma leitura que tenha como contraponto texto da História cuja versão não contemple ou distorce a saga histórica do negro brasileiro. Apresentação de poemas que cante heróis e heroínas afro-brasileiros. Tenho como sugestão uma lista de autores extensa, cito alguns que estão mais próximos de nosso no tempo: Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Jônatas da Conceição, Waldemar Euzébio, Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Solano Trindade, Adão Ventura, Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira, Marcio Barbosa, Semog, Salgado Mariano, Nei Lopes, Jamu Minka, Allan Santa Rosa, Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de Yemonjá, Jussara Freire, Leda Martins, Cidinha, Celinha, Maria Helena Vargas da Silveira. Conceição Evaristo.