MARA BILK DE ATHAYDE
MITO, ARQUÉTIPOS E ESTEREÓTIPOS EM PONCIÁ VICÊNCIO
DE CONCEIÇÃO EVARISTO
CURITIBA
2015
MARA BILK DE ATHAYDE
MITO, ARQUÉTIPOS E ESTEREÓTIPOS EM PONCIÁ VICÊNCIO
DE CONCEIÇÃO EVARISTO
Dissertação apresentada como requisito
para a obtenção do Grau de Mestre ao
Curso de Mestrado em Teoria Literária do
Centro Universitário Campos de Andrade –
UNIANDRADE.
Orientadora: Profa. Dra. Mail Marques de
Azevedo
CURITIBA
2015
AGRADECIMENTOS
Agradeço
À minha orientadora, profa. Dra. Mail Marques de Azevedo, os apontamentos
certeiros, o aprendizado que ganhei com suas orientações, a generosidade,
segurança, disponibilidade e, sobretudo, a apresentação à literatura afro-brasileira,
especialmente a Conceição Evaristo;
Aos professores Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado e Dr. Edson Ribeiro da Silva, as
orientações transmitidas por ocasião do exame de qualificação;
Às professoras do mestrado, os conhecimentos transmitidos;
Aos colegas do mestrado, o compartilhamento de dúvidas, alegrias e conquistas;
Ao colega de mestrado Josiel, a amizade, apoio e sugestões.
Dedico este trabalho a meu pai (in memoriam) e a minha mãe;
A Maristela, Mário e Marcio;
Ao Amilton.
SUMÁRIO
RESUMO ..................................................................................................................... vii
ABSTRAT ................................................................................................................... viii
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
1 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA ......................................................................... 19
1.1 ESCRITURA NEGRA FEMININA: DOS PRIMÓRDIOS AO SÉCULO XXI ............. 33
1.2 CONCEIÇÃO EVARISTO: ESCREVIVÊNCIA E VISÃO DE MUNDO .................... 41
1.2.1 Contradiscurso em prosa e verso ................................................................... 46
1.2.2 Ponciá Vicêncio ................................................................................................ 57
2 MITO E ARQUÉTIPOS ............................................................................................. 63
2.1 O HERÓI MODERNO ............................................................................................ 68
3 A TRAJETÓRIA CÍCLICA DO MONOMITO EM PONCIÁ VICÊNCIO ...................... 71
3.1 O MUNDO CONHECIDO ....................................................................................... 75
3.1.1 A estranheza com o próprio nome .................................................................. 79
3.1.2 A semelhança com Vô Vicêncio....................................................................... 82
3.1.3 A ausência do pai ............................................................................................. 84
3.2 O CAMINHO DE PROVAS .................................................................................... 87
3.2.1 Passagem pelo primeiro limiar ........................................................................ 88
3.2.2 A cidade estranha ............................................................................................. 91
3.2.3 Primeiro retorno ................................................................................................ 94
3.2.4 Silenciamento.................................................................................................... 97
3.3 O RETORNO ......................................................................................................... 102
3.3.1 A recusa do retorno .......................................................................................... 103
3.3.2 A fuga mágica ................................................................................................... 104
3.3.3 O resgate com auxílio externo: A herança de Vô Vicêncio ............................ 105
3.3.4 Liberdade para viver ......................................................................................... 109
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................... 110
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 115
ANEXOS...................................................................................................................... 121
ESTUDOS ACADÊMICOS SOBRE O LIVRO PONCIÁ VICÊNCIO ............................. 121
BIBLIOGRAFIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO ............................................................. 126
ENTREVISTAS ............................................................................................................ 129
vi
RESUMO
Esta dissertação analisa a trajetória da personagem-título do romance Ponciá
Vicêncio, de Conceição Evaristo, em paralelo à jornada do herói mitológico, que
busca o conhecimento de si próprio e do mundo. O emprego da abordagem
arquetípica para o estudo da personagem, e da sua ambientação física e espiritual,
objetiva conduzir à compreensão do drama do negro retratado por Evaristo, como
exemplo representativo da literatura afro-brasileira. Adapta-se para a análise a
estrutura nuclear do monomito, a jornada exemplar do herói, separação-iniciaçãoretorno, proposta por Joseph Campbell, na obra seminal O herói de mil faces,
complementada com a conceituação de mito de Mircea Eliade. Na análise da busca
individual enfatiza-se o retorno às raízes e o resgate da memória ancestral, tema
recorrente na literatura de escritores negros brasileiros, que visam a dignificar seu
grupo étnico. Para o levantamento diacrônico da escritura negra no Brasil utilizam-se
os trabalhos de Eduardo de Assis Duarte, Zilá Bernd, Domício Proença Filho, que
balizam as pesquisas no campo. O suporte teórico para a questão de identidades
diaspóricas provém de Frantz Fanon, Homi Bhabha, Stuart Hall e Paul Gilroy.
Palavras-chave: Políticas da Subjetividade. Literatura Afro-brasileira. Conceição
Evaristo. Monomito. Joseph Campbell.
vii
ABSTRACT
This dissertation analyzes the transcendental journey of the title-character Ponciá
Vicêncio, in Conceição Evaristo´s novel, as a parallel to the mythological adventure
of the hero, in search of self-knowledge and wisdom. The archetypical approach for
the study of the protagonist, as well as of her physical and spiritual ambiance, aims
to reach an extensive comprehension of the plight of the Negro, the black woman´s
particularly, as depicted by Evaristo in her exemplary text of African-Brazilian
literature. Joseph Campbell´s structure of the nuclear unit of the monomyth ─
separation-initiation-return, in his seminal work The hero with a thousand faces ─ is
adapted as analytical instrument of this study, complemented by Mircea Eliade´s
conceptualization of myth. An initial diachronic survey of black writings in Brazil is
based mainly on studies by leading researchers Eduardo de Assis Duarte, Zilá Bernd
and Domício Proença Filho. Theoretical support for the issue of diasporic identities
comes from Frantz Fanon, Homi Bhabha, Stuart Hall, and Paul Gilroy.
Keywords: Políticas da Subjetividade. African-Brazilian Literature. Conceição
Evaristo. Myth. Joseph Campbell.
viii
9
INTRODUÇÃO
É preciso comprometer a vida com a escrita ou é o
inverso? Comprometer a escrita com a vida?
Conceição Evaristo1
Maria da Conceição Evaristo de Brito (1946-) ocupa hoje lugar de destaque
no cânone da literatura brasileira, consolidando sua reputação como artista do verso
e da prosa por apresentar uma escrita que busca reconstruir a história do
afrodescendente sob um olhar feminino e negro. Seus primeiros poemas, publicados
na série nº 13 dos Cadernos Negros, em 1990, revelam ao mundo seu projeto
literário e a intenção de dar voz às mulheres negras relegadas ao mutismo em uma
sociedade que não tem interesse em ouvi-las.
Seu poema “Vozes-Mulheres” reconstrói, no paralelismo das vozes que
ecoam de uma geração para outra, a longa história de sofrimentos da mulher
escrava. Dos lamentos de uma infância perdida, ainda no porão de um navio, a VozMulher lembra com profunda revolta a obediência passiva aos “brancos-donos de
tudo”, prossegue para a revolta contra as condições de vida escrava que se
perpetuam, mas, na última estrofe, faz ressoar a esperança da liberdade, na voz da
filha, que se ouve no “hoje”, no “agora”.
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
1
Evaristo (2009, p.2).
10
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
(EVARISTO, 1990, p. 32-33. Ênfase acrescentada)
A voz do eu lírico, perplexa diante de uma situação que se perpetua, ecoa
rimas de sangue. É somente a voz da última geração que se faz ouvir e faz ouvir as
vozes sufocadas das ancestrais.
“Vozes-Mulheres” é considerado, pelo pesquisador e ensaísta Eduardo de
Assis Duarte, o manifesto-síntese da criação literária de Evaristo, que se propõe a
retirar o povo negro da condição de escravo, mudo e alienado, para torná-lo sujeito
de sua própria escritura.
11
Os versos enfatizam a necessidade do eu poético de falar por si e pelos seus. Esse
sujeito de enunciação, ao mesmo tempo individual e coletivo, caracteriza não
apenas os escritos de Conceição Evaristo, mas da grande maioria dos autores afrobrasileiros, voltados para a construção de uma imagem do povo negro infensa dos
estereótipos e empenhada em não deixar esquecer o passado de sofrimentos, mas,
igualmente de resistência à opressão. (DUARTE, 2006, p. 25).
A pesquisadora Florentina Souza destaca, ademais, a consciência de um
fazer poético, marcado pelo inconformismo e pelo sonho de liberdade, que
rememora as vozes ancestrais e pretende participar ativamente da construção de
uma identidade afro-brasileira.
Da bisavó à filha, institui-se um circuito criado pelas vozes da memória, e as vozes
atualizadas pelas histórias do presente, viabilizando o redesenho de práticas,
permitem a construção de um potente trânsito criativo que se constituirá, nos vários
campos, como características de afrodescendência. (SOUZA, 2007, p. 33)
A riqueza da dicção poética de Conceição Evaristo ─ como é conhecida nos
meios literários – torna mais enfático o protesto contra o aviltamento da mulher
negra e a necessidade de se fazer ouvir a sua voz como “eco da vida-liberdade”.
Conceição Evaristo admite que, para ela, escrever pode ser uma espécie de
vingança. “Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir um silêncio
imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosa esperança [...] é a senha pela qual
eu acesso o mundo” (EVARISTO, 2005, p. 202).
Poesia e protesto alinham-se no romance Ponciá Vicêncio2, sua obra mais
conhecida, objeto de numerosos estudos acadêmicos que compõem larga variedade
de leituras. O texto já foi explicado da perspectiva crítica das teorias feministas e
como veículo estético da tradição negra; analisado em comparação a outras obras
da escritora; objeto de tese de literatura comparada que relaciona a obra de Evaristo
2
Nos anexos, relação de trabalhos acadêmicos sobre o livro.
12
à de Toni Morrison; examinado como bildungsroman feminino negro e como
narrativa de memória sobre a herança da escravidão.
Assis Duarte ressalta na obra de Conceição Evaristo a junção de forma
poética e denúncia.
Os escritos de Conceição Evaristo se destacam pela forma poética com que
representa a crueldade do cotidiano dos excluídos. A mescla de violência e
sentimento, de realismo cru e ternura revela o compromisso e a identificação da
intelectual
afrodescendente
com
os
irmãos
colocados
à
margem
do
desenvolvimento [...]filia-se, portanto, a esse veio afrodescendente que mescla
história não-oficial, memória individual e coletiva com invenção literária. (DUARTE,
2006, p.1)
Dentre inúmeras interpretações, dois pontos básicos para a compreensão do
trabalho de Evaristo são a importância de dar voz ao seu povo para superar os
empecilhos do status social e psicológico dos negros, bem como o emprego de
imagens típicas, personagens, desenhos narrativos, temas e outros fenômenos
literários característicos da cultura negra ─ a oralidade, o mito, crenças e
superstições. Para embasar este estudo, portanto, escolheu-se uma abordagem
híbrida que contemplasse as duas faces do romance. Nos estudos de Frantz Fanon,
Homi Bhabha, Stuart Hall e Albert Memmi busca-se o suporte histórico-social e
literário para discutir as consequências da escravidão negra na literatura de Evaristo,
corolário cruel do processo de colonização.
Para aprofundar a face mítica, simbólica e poética do romance optou-se por
uma abordagem arquetípica, baseada nos arquétipos ou imagens recorrentes na
psique humana e em toda a literatura. A crítica arquetípica tem fonte extraliterária na
antropologia cultural e nas teorias de Jung sobre o inconsciente coletivo, subjacente
à produção de mitos, visões, ideias religiosas e certos tipos de sonhos, comuns a
13
numerosas culturas e períodos da história. Para Jung, como informa Irene Makaryk,
“um produto maior do inconsciente é o mito do herói, a exposição na linguagem de
contos de fadas do desenvolvimento da criança, da infância à idade adulta”
(MAKARYK, 1993, p. 3).
Utilizando como referência os estudos de Carl Jung sobre o sonho, o
inconsciente coletivo e os arquétipos, Joseph Campbell enfatiza que o mito é
produto do inconsciente humano, ligado à psique.
O mito é o sonho público e o sonho é o mito privado. Se o seu mito privado, seu
sonho coincide com o da sociedade, você está em bom estado com seu grupo. Se
não, a aventura o aguarda na densa floresta a sua frente. (CAMPBELL, 1990, p.52).
A esta aventura Campbell denominou jornada do herói mitológico ou
monomito3, descrita na obra O herói de mil faces (1949). Parte-se do mundo
conhecido para um mundo desconhecido, no qual o herói enfrentará desafios para
mudar seu destino. A função primária da mitologia e dos ritos, afirma Campbell,
“sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar,
opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para
trás” (CAMPBELL, 1990, p.21).
As etapas desta trajetória, que são representadas pela aventura mitológica
dos rituais de passagem −separação, iniciação e retorno − podem ser aplicadas ao
objeto deste estudo, bem como a qualquer obra literária, cujo tema central seja o
heroísmo, com o objetivo último de conquistar a sabedoria e o poder de servir aos
outros.
Como afirmado, este trabalho objetiva a análise compósita do romance
Ponciá Vicêncio: da perspectiva arquetípica e de rememoração, expressa pela “Voz-
3
Termo tomado de empréstimo a James Joyce, em Finnegans Wake.
14
Mulher”; do ponto de vista sociocultural e de protesto contra a situação de
inferioridade do povo negro, que inspira a obra de Conceição Evaristo.
O traço principal da personagem título do romance, Ponciá, que vive com a
mãe, em uma casinha paupérrima, é a estranheza: um bebê estranho, que chora e ri
ainda no ventre materno; uma menina estranha que considera estranho o seu
próprio nome. “Menina tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas,
gritava o próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se
estivesse chamando outra pessoa” (EVARISTO, 2003, p. 19). Mesmo com o passar
do tempo, não se acostuma com o próprio nome, que achava “vazio, distante”
(EVARISTO, 2003, p. 19). Desconhece a origem de Ponciá, enquanto o sobrenome
Vicêncio lembra-lhe “um tal coronel Vicêncio” dono da terra e dos homens
(EVARISTO, 2003, p. 29).A insatisfação com o próprio nome é o primeiro sinal de
não pertencimento.
Stuart Hall assinala que a perda do sentido estável de si é chamada,
algumas vezes, de deslocamento – descentração– dos indivíduos tanto de seu lugar
no mundo social e cultural quanto de si mesmos; em outras palavras, constitui uma
crise de identidade. “Toda identidade tem necessidade daquilo que lhe ‘falta’–
mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inarticulado” (HALL,
2003, p.110).
A busca da identidade e do autoconhecimento, portanto, é o objetivo a ser
atingido na jornada mítica que Ponciá empreende a partir da terra natal, levada pelo
desejo de preencher os espaços vazios em sua existência. Vemos na determinação
de Ponciá as características de coragem e resiliência que informam a mitologia do
herói, comum a todos os povos, primitivos ou clássicos, e que sobrevive no culto a
músicos, artistas, atletas e outros heróis, hoje endeusados pela mídia. Considerando
15
a recorrência universal do mito do herói é que Joseph Campbell lhe atribui a
denominação de monomito, descrito como:
Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios
sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói
retorna de sua misteriosa aventura como poder de trazer benefícios aos seus
semelhantes. (CAMPBELL, 1995, p. 36. Ênfase no original)
Para entender o périplo do afrodescendente volta-se às raízes da
escravização dos povos e à escravidão econômica e social (sem direito à terra, a
nome e à própria história) enfatizada na narrativa pelos sofrimentos do pai e do avô
de Ponciá. Busca-se nos teóricos dos estudos pós-coloniais – Albert Memmi, Stuart
Hall, Frantz Fanon e Homi Bhabha – subsídios para apontar o caráter violento do
colonialismo, sofrido, a princípio, pelo avô Vicêncio, que se revolta contra a situação
de permanecer escravo quando já está liberto, e do pai de Ponciá, pajem do SinhôMoço, sujeito às piores humilhações, embora tivesse nascido após a promulgação
da Lei do Ventre Livre4.
Estruturalmente, este trabalho constitui-se de três capítulos. No primeiro, “A
literatura afro-brasileira”, discutem-se inicialmente os termos descritivos da literatura
negra no contexto literário do país: “literatura afro-brasileira”, “literatura negra”,
“literatura negro-brasileira”, ou, ainda, “literatura negra-brasileira”. Para justificar
nossa escolha para o trabalho, examinam-se denominações usadas por Assis
Duarte, Proença Filho, Octavio Ianni, Cuti e pela própria Conceição Evaristo.
A caracterização estereotipada atribuída aos personagens negros parte da
hipótese de Albert Memmi, que atribui ao processo de colonização a relação de
4
Lei do Ventre Livre ou“ Lei Rio Branco”, de 1871, considerava livre todos os filhos de mulheres
escravas nascidos a partir da data da lei. As crianças ficariam sob a custódia dos seus donos ou do
Estado até os seus 21 anos, depois desta idade poderiam ficar livres. Esta lei não chegou a beneficiar
ninguém, pois em 1888 (17 anos depois) foi promulgada a Lei Áurea.
16
desigualdade, de outremização, estabelecida entre brancos e negros, que prevalece
ainda hoje.
Apresenta-se, a seguir, breve historiografia literária, que inclui o nome de
algumas escritoras negras que, mesmo silenciadas ao longo dos séculos, tiveram a
ousadia de registrar suas experiências existenciais. Dedica-se a Conceição Evaristo
espaço para uma revisão biográfica que contempla o conjunto de sua obra e
estabelece relações com sua temática principal.
O segundo capítulo, intitulado “Mito e arquétipos”, apresenta as perspectivas
teóricas da pesquisa, com uma discussão dos conceitos e da representação literária
do herói para estabelecer paralelos entre as qualidades antológicas de coragem e
fortaleza e sua reprodução nos protagonistas de narrativas de hoje. A abordagem
básica é a dos estudos sobre arquétipos segundo Jung, relacionados ao conceito
de monomito adotado por Joseph Campbell. A obra seminal Mito e realidade, de
Mircea Eliade, complementa as bases do estudo das origens e do prestígio do mito
como explicação cosmogônica.
O terceiro capítulo, “A trajetória cíclica do monomito em Ponciá Vicêncio”,
engloba a análise do romance, que segue basicamente a estrutura nuclear do
monomito proposta por Campbell: separação-iniciação-retorno. A modificação
principal no modelo, que serve de metáfora para o caminho das provas, é a
substituição do herói mitológico por seu conterpart feminino, o que põe em evidência
o papel heroico da mulher negra na sobrevivência física e espiritual das
comunidades afrodescendentes em vários estágios da história política e cultural.
Na
primeira
fase,
da
separação
ou
afastamento,
analisa-se
o
desenvolvimento da personagem-heroína até o momento de sua partida do
povoado, que denominamos o mundo conhecido, cuja descrição concentra-se em
17
alguns aspectos físicos: a casa, o rio, o barro e o arco-íris e sua relação coma
cultura banto. Para análise das imagens utilizam-se as configurações da imaginação
poética de Gaston Bachelard, relacionando-as com os quatro elementos: terra, ar,
água e fogo. As circunstâncias em que se dá o chamado remetem a problemas da
estrutura social escravagista que sobrevive na vila Vicêncio.
Como nos ritos de passagem das sociedades tribais, a iniciação da heroína
inclui inúmeros obstáculos, no caminho de provas que deve percorrer. A vida de
Ponciá na cidade grande caracteriza-se pela exclusão social, pelo abandono e pela
frustração dos sonhos de conquistar um lar e uma família. Assim, o retorno à vila
Vicêncio não significa a volta triunfal do herói que traz nas mãos o item mágico que
libertará seu povo, mas um pedido de socorro aos seus. O encontro posterior com a
mãe e o irmão, Luandi, corresponde ao que Joseph Campbell denomina resgate
com auxílio externo. A passagem pelo limiar, que caracterizaria a volta triunfal do
herói, conduz Ponciá a um nível de reencontro que denominamos “negação da
liberdade”. Ponciá refugia-se em si mesma, isolando-se do mundo, mas sua jornada
mítica tem o efeito de transferir a Luandi, que sai fortalecido do enfrentamento dos
perigos da cidade grande, a recompensa da liberdade para viver.
Nas “Considerações finais” justifica-se a relevância de utilizar a abordagem
arquetípica para o estudo do romance, ao reconhecer Ponciá Vicêncio como heroína
em sua trajetória, tanto para dentro como para fora de si mesma. Percorre o
caminho interior para atingir autoconhecimento e estabelecer sua identidade. O
caminho para fora deve partilhar com a comunidade a herança ancestral do povo
negro.
Apresenta-se, assim, novo olhar, que se julga relevante, sobre o romance,
embora sua riqueza textual tenha permitido inúmeras possibilidades de leitura.
18
Faz-se, ainda, a conexão entre os capítulos um e dois ─ sobre a literatura
afro-brasileira, a escrevivência de Conceição Evaristo e sua relação com as
narrativas das origens do homem – para ilustrar os dois pontos básicos apontados
para a compreensão do trabalho de Evaristo: a importância de dar voz ao seu povo
para superar os empecilhos do status social e psicológico dos negros, como
consequência, ainda hoje, da diáspora negra; em segundo lugar, o emprego de
imagens, personagens, desenhos narrativos e temas característicos da cultura negra
que aprofundam a face mítica, simbólica e poética do romance.
19
1 A LITERATURA AFRO-BRASILEIRA
Em se tratando de um ato empreendido por
mulheres negras [...] escrever adquire um sentido
de insubordinação.
Conceição Evaristo5
Os primeiros estudos acadêmicos de relevância sobre a literatura negra no
Brasil foram feitos por pesquisadores estrangeiros, como Roger Bastide e David
Brookshaw. Os Estudos afro-brasileiros, de Bastide, abrangem temas variados no
campo das relações étnicas e da cultura folclorizada: religião, medicina popular,
imagens, narrativas orais ou escritas e outros. A obra em três volumes foi publicada
de 1946 a 1953.
O livro Raça e cor na literatura brasileira (1983), do inglês David Brookshaw,
publicado trinta anos mais tarde, interessa pela representação e autoria de
escritores negros, que agrupa em três categorias: 1) de tradição erudita –
caracterizada pelo recalque da condição afro-brasileira; 2) popular – cuja
característica é o humor e a assunção da africanidade; e 3) de protesto e sátira.
Relevantes entre os teóricos brasileiros são os estudos da pesquisadora Zilá
Bernd, Negritude e literatura na América Latina (1987) e Introdução à literatura negra
(1988) que nortearam prioritariamente as pesquisas no Brasil. Bernd discorda da
visão de Brookshaw, que focaliza os autores negros obedecendo apenas ao critério
da cor da pele. A pesquisadora prefere observar as características textuais das
obras que constituiriam a literatura negra, denominação que escolhe “por ser menos
limitadora e por transcender os limites de nacionalidade, época, idioma, geografia,
etc.” (BERND, 1987, p. 80).
5
EVARISTO (2009, p. 3).
20
Paralelamente, surge entre teóricos da literatura, bem como entre escritores,
a discussão sobre a denominação desta vertente na literatura brasileira: literatura
afro-brasileira, literatura negra ou literatura negro-brasileira. Examina-se a seguir a
escolha da denominação por alguns estudiosos.
O sociólogo Octavio Ianni utiliza a mesma denominação de Bernd, literatura
negra, destacando o processo constante de articulação e transformação dessa
literatura:
Não surge de um momento para outro, nem é autônoma desde o primeiro instante.
Sua história está assinalada por autores, obras, temas, invenções literárias. É um
imaginário que se articula aqui e ali, conforme o diálogo de autores, obras, temas,
invenções literárias. É um movimento, um devir, no sentido de que se forma e
transforma. Aos poucos, por dentro e por fora da literatura brasileira, surge a
literatura negra, como um todo com perfil próprio, um sistema significativo. (IANNI,
1988, p. 97)
Nesse sentido, Eduardo Assis Duarte aponta a necessidade de construir
operadores teóricos eficientes para ampliar a reflexão crítica, a partir da avaliação do
“estado da arte” dos conceitos de literatura negra e de literatura afro-brasileira
(DUARTE, 2006, p. 2. Ênfase no original).
Prendendo-se ao conceito benjaminiano de literatura, Domício Proença
Filho, pesquisador e autor de um clássico da poesia negra, Dionísio esfacelado
(1984), entende que o uso do termo literatura negra ou afro-brasileira corre o risco
de reproduzir estereótipos, fazendo o jogo do preconceito velado. Adverte ele que
literatura não tem cor e não deve, portanto, receber a denominação de negra,
tampouco de afrodescendente.
É preciso, entretanto, ter sempre em mente que a arte literária compromissada
precisa ser arte literária antes de ser compromissada, sob pena de descaracterizarse e perder seu poder de repercussão mobilizadora. Essa posição benjaminiana
21
não pode ser desprezada, quando consideramos a contribuição literária dos negros
e dos descendentes de negros que trazem para seus textos a preocupação com a
etnia. Há que considerar a literatura como lugar de afirmação e singularização de
identidades múltiplas e várias, mas integradas no tecido da arte literária brasileira e
universal. (PROENÇA FILHO, 2004, p. 187)
Proença Filho é bastante claro ao enfatizar a relevância da literatura
engajada em sua preocupação com a etnia negra, desde que integrada na “arte
literária brasileira e universal”. Quanto à denominação, o autor tem visão bastante
ampla e, neste ponto, semelhante ao pensamento de Bernd: considera negra tanto a
literatura feita por negros, de propósitos ideológicos específicos, como, lato sensu, a
arte literária praticada não especificamente por negros, mas centrada em patamares
característicos dos negros e seus descendentes.
Em sentido restrito, considera-se negra uma literatura feita por negros ou por
descendentes assumidos de negros e, como tal, reveladora de visões de mundo, de
ideologias e de modos de realização que, por força de condições atávicas, sociais,
e históricas condicionadoras, caracteriza-se por uma certa especificidade, ligada a
um intuito claro de singularidade cultural. Lato sensu, será negra a arte literária feita
por quem quer que seja, desde que centrada em dimensões peculiares aos negros
ou aos descendentes de negros. (PROENÇA FILHO, 2004, p. 185. Ênfase
acrescentada)
No artigo “Literatura negra, literatura afro-brasileira: como responder à
polêmica?”, Maria Nazareth Soares Fonseca assinala que atualmente são mais
utilizadas as expressões literatura afro-brasileira e literatura afrodescendente.
Entretanto, o emprego dessas expressões não põe fim às “complexas questões que
circulam em torno de seus significados”, embora possa revelar “um modo de se
considerar a pluralidade como um traço importante da cultura brasileira” (FONSECA,
2006, p. 12).
22
No livro Literatura negro-brasileira (2010), Luiz Silva, o poeta Cuti faz uma
opção estética, política e ideológica pela palavra “negro”. Para o escritor, os termos
“afro-brasileira” ou “afrodescendente” acabam por escamotear a questão negra, que
se perderia na diversidade subjacente ao prefixo afro, que abrange mestiços e
brancos a quem o racismo não atinge.
A literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da
África, e de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo,
brasileira, pois a palavra “negro” aponta para um processo de luta participativa nos
destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa
brancura que a englobaria como um todo a receber daqui e dali, elementos negros
e indígenas para se fortalecer. Por se tratar de participação na vida nacional, o
realce a essa vertente literária deve estar referenciado à sua gênese social ativa. O
que há de manifestações reivindicatórias apoia-se na palavra “negro”. (CUTI, 2010,
p. 44)
O uso da palavra negro expressaria, segundo Cuti, uma visão da
experiência, no Brasil, dos africanos escravizados e de seus descendentes. Esse
ponto de vista, diferenciado, a partir do olhar negro, é o mesmo que Conceição
Evaristo utiliza para definir a sua escrita, que denominou de escrevivência, sendo
este o ponto que distingue o fazer literário negro, o comprometimento do escritor
com o constructo social e não somente com a cor da pele, ou etnia assumida:
A maneira como ele vai viver em si a condição e a aventura de ser um negro
escritor. [...] E, se há um comprometimento entre o fazer literário do escritor e essa
experiência pessoal, singular, única, se ele se faz enunciar enunciando essa
vivência negra, marcando ideologicamente o seu espaço, a sua presença, a sua
escolha por uma fala afirmativa, de um discurso outro – diferente e diferenciador do
discurso institucionalizado sobre o negro – podemos ler em sua criação referências
de uma literatura negra. (EVARISTO, 2010, p. 5)
23
Assis Duarte amplia essa noção ao afirmar que a especificidade da literatura
negra, em contraposição ao conjunto da literatura brasileira, baseia-se em quatro
aspectos: 1) temática ─ incorporação da experiência do negro ao texto literário; 2)
autoria ─ o negro é sujeito da enunciação, destacando sua maneira de entender, ver
e sentir o mundo; 3) ponto de vista ─ prevalecem a história e as tradições negras; 4)
linguagem ─ marcas da herança linguístico-cultural africana.
Considerando a exposição acima, optou-se por utilizar nesta dissertação o
termo literatura afro-brasileira. Para justificar a escolha, tomaram-se, ainda uma
vez, os argumentos de Assis Duarte.
Acredito, pois, na maior pertinência do conceito de literatura afro-brasileira,
presente em nossos estudos literários desde o livro pioneiro de Roger Bastide
(1943), com os equívocos, é certo, que aquele momento não permitia a ele superar
[...]. E também presente nas reflexões de Moema Augel e, mais enfaticamente, de
Luiza Lobo (1993, 2007). Adotado, enfim, por praticamente todos os que lidam com
a questão nos dias de hoje, inclusive pelos próprios autores do Quilombhoje, seja
nos subtítulos dos Cadernos Negros, seja no próprio volume teórico-crítico lançado
pelo grupo, em 1985, com o título de Reflexões sobre a literatura afro-brasileira.
(DUARTE, 2014, p. 28. Ênfase acrescentada)
A citação de Assis Duarte põe em relevo dois aspectos seminais da literatura
afro-brasileira: a contribuição da escritora negra, a exemplo de Moema Augel e Luiza
Lobo, na crítica e teorização; e a criação de um veículo destinado a disseminar a
obra discursiva ou de ficção de escritores negros, os Cadernos Negros, com o intuito
de marcar a presença do negro na literatura brasileira.
Segundo Proença Filho, o negro na literatura brasileira não escapa ao
tratamento marginalizado a que é submetido, desde as instâncias fundadoras, no
processo de construção da nossa sociedade. É fácil encontrar textos em que o
negro aparece estereotipado como preguiçoso, malandro, macumbeiro ou
24
vagabundo, sendo um mero ornamento do cenário. Em contraposição, tem-se no
personagem Henrique Dias, retratado no livro Caramuru, de Santa Rita Durão, a
figura do herói negro que luta corajosamente contra a dominação holandesa para
defender os interesses da coroa de Portugal. No livro Imagens do negro na literatura
brasileira (1998), o historiador Jean Carvalho França aponta que na construção dos
personagens negros prevalecia
uma distinção que foi fartamente explorada pelos nossos ficcionistas do oitocentos:
as mulheres eram mais arrebatadas pela sensibilidade e os homens mais
razoáveis. Todavia, um traço comum tornava os dois sexos da raça negra muito
próximos: a animalidade e a sensualidade extremada. (FRANÇA, 1998, p. 73)
Estereótipos da mulher negra são ainda mais recorrentes na literatura
canônica, em que é admitida como personagem secundária: a cozinheira de mão
cheia, como, por exemplo, tia Nastácia, do Sitio do Pica-pau Amarelo ou a mãepreta que nutre e acalenta. Quando bela, possui forte apelo sexual: mulata fogosa,
mucama vagabunda, todas estéreis e sem família. Essas mulheres eram:
A síntese dos perigos representados pela maciça presença da mulher negra no
meio das famílias brancas. A sensualidade extremada, a volubilidade constante e a
falta de princípios morais sólidos tornavam-na uma das maiores ameaças à paz
doméstica, à unidade das famílias. (FRANÇA, 1998, p. 88)
Em
textos
literários
considerados
canônicos,
predominam,
assim,
significados de repertórios culturais negros que pouco se relacionam com a
alteridade e com a transitoriedade da identidade negra, mas expressam preconceito
racial arraigado. Ou o negro é considerado exótico ou ele é a representação do que
é ruim. “Seu corpo é negro, sua língua é negra, sua alma também deve ser negra. O
negro é o símbolo do mal e do feio” (FANON, 2008, p. 154).
25
As personagens negras surgem estereotipadas em concordância com a maneira
como o negro é percebido pela sociedade. Não há uma ausência do negro e da
cultura negra nos textos literários brasileiros. O que existe é uma representação
deprimente sobre nós negros. Nesse sentido, é preciso pensar que a cultura
dominante tem o poder de se representar e de representar as outras culturas
circundantes. (EVARISTO, 2007, p. 2)
Narrativas e poemas sobre o negro focalizam, de modo geral, os temas da
escravidão e de uma cultura negra cujos membros são destituídos de
individualidade. Recorre-se ao conceito de Brookshaw sobre estereótipo:
Um estereótipo pode ser inicialmente definido como sendo a causa quanto o efeito
de um pré-julgamento de um indivíduo em relação a outro devido à categoria a que
ele ou ela pertence. Geralmente, esta categoria é étnica. Na verdade, poder-se-ia ir
mais longe e dizer-se que todos os grupos étnicos são estereótipos para a
conveniência de outros. (BROOKSHAW, 1983, p. 9)
Essa visão plural dos afrodescendentes está estabelecida a partir de uma
série de estereótipos que recebem a “marca do plural”, conforme relata Albert
Memmi, em sua obra O retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador
(1967). O olhar do colonizador converteu as “diferenças culturais em fator biológico”
(p. 70), que o autor denominou de despersonalização, impedindo, assim, que o
colonizado seja visto de forma individualizada:
O colonizado jamais é caracterizado de maneira diferencial: só tem direito ao
afogamento no coletivo anônimo (“Eles são isso... Eles são todos os mesmos”). Se
a doméstica colonizada não vem certa manhã, o colonizador não dirá que ela está
doente, ou que ela engana [...]. Afirmará que “não se pode contar com
eles”.Recusa-se a encarar os acontecimentos pessoais, particulares, da vida de sua
doméstica; essa vida na sua especificidade não o interessa, sua doméstica não
existe como indivíduo. (MEMMI, 1967, p. 81-82. Ênfase do autor)
26
Portanto, “o que precisa ser mudada não é a imagem dos negros, mas a
imagem negativa que a sociedade criou e fomenta como se fosse própria deles”,
segundo a escritora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva6 (2012), em entrevista à
Fundação Palmares.
A afirmação da identidade e consciência negra propõe tornar positivo o que
preconceituosamente fora considerado negativo, com uma nova postura ideológica
que
levará a uma produção literária marcada por uma fala enfática, denunciadora da
condição do negro no Brasil, mas igualmente valorativa, afirmativa do mundo e das
coisas negras, fugindo do discurso produzido nas décadas anteriores carregado de
lamentos, mágoa e impotência. (EVARISTO, 2009, p. 9)
As ideologias dominantes ignoraram por muito tempo obras de escritores
negros como Lima Barreto (1881-1922) e Solano Trindade (1908-1974), que se
utilizaram da literatura para denunciar os sofrimentos da população negra.
Como movimento literário organizado, porém, é necessário ir ao século
vinte, quando surge, em 1978, um grupo de escritores que, a partir da militância
política, publica um importante veículo de resistência cultural, os Cadernos Negros
(CN) apresentando uma criação literária valorativa da etnia e tradições africanas.
Segundo o historiador Hugo Ferreira, o nome do periódico foi escolhido para
homenagear Maria Carolina de Jesus, falecida em 1977 que, como os demais
escritores, registrava suas anotações em cadernos. Não existiam computadores,
portanto, era comum à época este tipo de apontamento.
6
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva integrou como relatora a comissão que elaborou o parecer
CNE/CP nº 3/2004. O documento regulamenta a Lei nº 10.639/2003 e estabelece as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana nos termos do art. 26A da Lei nº 9.394/1996 das Diretrizes e Bases
da Educação Nacional.
27
Os escritos dos Cadernos Negros resgatam e valorizam a ancestralidade
africana. Uma característica fundante da literatura negra presente nessa publicação
é a opção por organizar a voz coletivamente. A primeira edição, em que colaboraram
oito autores: Cuti, Hugo Ferreira, Eduardo de Oliveira, Oswaldo de Camargo, Jamu
Minka, Ângela Galvão, Henrique Cunha Júnior (Cunha) e Célia Aparecida Pereira
(Celinha), apresenta um prefácio já considerado marco histórico da publicação.
Estamos no limiar de um novo tempo. Tempo de África, vida nova, mais justa e
mais livre e, inspirados por ela, renascemos arrancando as máscaras brancas,
pondo fim à imitação. Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos
assumindo nossa negrura bela e forte. Estamos limpando nosso espírito das idéias
que nos enfraquecem e que só servem aos que querem nos dominar e explorar.
(CN1, 1978, p. 2)
Os textos dos Cadernos Negros estão comprometidos com a história da
população negra, abordando problemas sociais e contestando representações
estereotipadas do negro na literatura brasileira considerada canônica. Sobre a
importância desses escritos, a pesquisadora Florentina Souza observa:
Os textos dos CN podem ser lidos como depoimentos criativos de uma geração de
escritores que reivindica um espaço para a voz negra na vida cultural e literária
brasileira. Para tanto, tematizam vários aspectos da vida cotidiana do afro-brasileiro
em particular, tais como a necessidade de construção de uma auto-imagem
positiva, o resgate das tradições de origem africana e o combate às manifestações
cotidianas de discriminação e preconceito racial na escola e trabalho – problemas
decorrentes da sistemática exclusão do negro do direito de cidadania. (SOUZA,
2005, p. 113)
A repercussão de Cadernos Negros ultrapassou as expectativas iniciais de
seus autores/colaboradores e tornou-se a antologia do Movimento Negro e,
atualmente, é a produção artística negra mais conhecida e utilizada como fonte de
28
pesquisa acadêmica. Até a quinta edição a organização editorial esteve a cargo do
poeta Cuti.
A partir de 1982, a edição dos Cadernos Negros passa a constituir trabalho
efetivo do grupo Quilombhoje, formado por escritores com o objetivo de discutir e
aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura. O nome quilombhoje não faz
apenas referência explícita aos grupos de escravos fugidos no século XIX, como
também aos quilombos sociais e raciais existentes até o século XXI.
A série Cadernos Negros é geralmente publicada no mês de novembro, em
homenagem a Zumbi dos Palmares e para celebrar o dia da consciência negra.
Desde o seu lançamento tem tiragem anual ininterrupta, apresentando textos de
autores oriundos de vários Estados brasileiros, como também a publicação de
autores estrangeiros, a exemplo do poeta e sociólogo congolês Bas’ilele Malomalo.
Até o ano de 2014, foram publicados 37 volumes, sendo os anos pares
dedicados aos poemas e os anos ímpares, à prosa. O grupo já organizou três
volumes sobre sua produção ensaística, intitulados Reflexões sobre literatura afrobrasileira (1985); Criação crioula, nu elefante branco (1986); e Cadernos negros: três
décadas (2008). “Esse conjunto de ensaios críticos forma hoje uma bibliografia
fundamental para os estudos sobre a literatura negra ou afro-brasileira” (DUARTE,
2011, p. 30-31).
A antologia Cadernos Negros: os melhores poemas (2008) foi leitura
indicada, nos anos de 2012-2013, para o vestibular da Universidade Federal da
Bahia. Os
Cadernos
Negros
adquirem reconhecimento
internacional,
com
publicação nos Estados Unidos, onde foram objeto de estudo em Princeton e em
algumas universidades da Califórnia. “Ali no estrangeiro, se vai aceitando estes
29
autores como porta-vozes autênticos da experiência da maior população africana
fora da África” (CN 20, 2002, p. 12).
Ao longo dessas publicações passaram muitos escritores, alguns de uma
única colaboração, outros que continuam enriquecendo o campo da literatura afrobrasileira. Atualmente, os Cadernos Negros estão sob a coordenação de Márcio
Barbosa e Esmeralda Ribeiro que publicam ativamente. Entre muitos autores
destacam-se Abelardo Rodrigues, Anita Realce, Arnaldo Xavier, Carlos de
Assumpção, Conceição Evaristo, Ele Semog, Geni Guimarães, José Abílio Ferreira,
José Carlos limeira, José Alberto, José Luanga Barbosa, Landê Onawale, Lia Vieira,
Miriam Alves, Oubí Inaê Kibuko, Paulo Colina, Paulo Ricardo Moraes, Ramatis
Jacinto, Sônia Fátima da Conceição, Zula Gibi, e tantos outros.
A participação da escrita feminina começou pequena, apenas duas autoras
na primeira edição, Ângela Galvão e Célia Aparecida Pereira (Celinha). Embora
tenha aumentado com o passar dos anos, ainda é menor que a participação
masculina. O ato confirma as limitações sociais impostas ao gênero feminino, neste
caso aliadas a questões raciais, como se constatou no início deste capítulo.
A temática dos Cadernos Negros é variada em razão da diversidade de
autores que encaminham seus textos para publicação, mas alguns temas foram se
firmando ao longo das edições: religiosidade, protesto contra a discriminação,
reflexão sobre a estética corporal e relato da identidade negra como parte da
realidade do país, o legado da escravidão e seus efeitos na atualidade. A temática,
voltada para a população afro-brasileira e suas raízes apresenta uma escrita
divergente dos textos canônicos, pois traz novo olhar sobre a presença do negro na
história oficial do Brasil, justificando o valor de uma literatura afro-brasileira que os
Cadernos Negros ajudaram a conquistar. No artigo “Remanescentes culturais
30
africanos no Brasil”, Sônia Queiroz refere que seria necessário redescobrir o Brasil.
Para afirmar sua hipótese cita Olabiyi babalola Yai7:
Seria preciso, como o exige a bela fórmula de Carlos Drummond de Andrade,
‘reinventar os nagôs e os latinos’! Reinventar também os tupis, os guaranis, etc. [...]
É, por assim dizer, se não uma exigência, uma ambição de renovação cultural
pluralista. Ao invés de ser um cadinho de onde sairia uma cultura nacional às
custas de perdas, de assimilação, de intolerância e de menosprezos gratuitos, o
Brasil poderia dar ao mundo o exemplo de um pluralismo cultural em que os
homens são mais eles mesmos quando vivem plenamente suas culturas próprias e
são consequentemente capazes de melhor conhecer e de viver as dos outros.
(BABALOLA YAI, citado em QUEIROZ, 2002, p.49)
A editoração e circulação do periódico estão estreitamente ligadas aos
movimentos nacionais de reivindicação de direitos dos negros, expressos em prosa
e verso. A periodicidade dos Cadernos permite ao leitor acompanhar o que há de
novo na literatura afro-brasileira e o contato com escritores que se projetam.
Paralelamente, a imprensa negra, em vários pontos do país, além de
publicar textos de escritores negros, veio a constituir, desde a década de 1930,
veículo de pesquisa e registro de perspectivas históricas diferentes da historiografia
oficial.Embora fragmentária, a produção jornalística teve papel fundamental na
reconstrução da memória de comunidades, afeitas à leitura de jornais.
Os movimentos reivindicatórios partem sempre do artista ou do intelectual
negro. Oliveira Silveira (1941-2009), pesquisador, poeta e historiador gaúcho, um
dos fundadores do Grupo Palmares, foi quem declarou, em 1971, ser o dia 20 de
novembro, quando morreu Zumbi dos Palmares, a data máxima da comunidade
negra brasileira. Sete anos depois, a data tornou-se oficialmente o Dia Nacional da
7
Foi, nos anos 1970, professor visitante na Universidade Federal da Bahia (Brasil). É embaixador
permanente do Benin na Unesco.
31
Consciência Negra. Seu poema “Treze de maio” rejeita a herança cruel da
escravidão.
Treze de Maio
Treze de maio traição,
liberdade sem asas
e fome sem pão
Liberdade de asas quebradas
como
........este verso.
Liberdade asa sem corpo:
sufoca no ar,
se afoga no mar.
Treze de maio – já dia 14
o Y da encruzilhada:
seguir
banzar
voltar?
Treze de maio – já dia 14
a resposta gritante:
pedir voltar?
nem com pergaminho
nem pena de ninho
nem cofre de couro
nem com lei de ouro.
O que fomos de seiva
.......................de base
..................... de Atlas
o que fomos de vida
........................e luz
chama negra em treva branca
32
.......................quem sabe só com isto:
que o que temos nós lutamos
para sobreviver
e também somos esta pátria
em nós ela está plantada
nela crispamos raízes
de enxerto mas sentimos
e mutuamente arraigamos
....quem sabe só com isto:
que ela é nossa também, sem favor,
e sem pedir respiramos seu ar
....a largos narizes livres
bebemos à vontade de suas fontes
... a grossas beiçadas fartas
tapamos-destapamos horizontes
....com a persiana graúda das pálpebras
escutamos seu baita coração
....com nosso ouvido musical
e com nossa mão gigante
batucamos no seu mapa
....quem sabe nem com isso
e então vamos rasgar
a máscara do treze
para arrancar a dívida real
com nossas próprias mãos.
(SILVEIRA, 2009)
Nesse particular, Conceição Evaristo, motivação e objeto de nosso estudo, é
enfática e veemente na afirmação sobre o direito da literatura afro-brasileira de
existir paralelamente à literatura brasileira como um todo. Sua escrita preocupa-se
em registrar a herança deixada pela diáspora negra, especialmente as vivências e
experiências das mulheres negras. Apresenta, também, reflexões sobre o ato de
33
fazer e veicular o texto afro-brasileiro que traz experiências diversificadas, desde o
conteúdo até a diferenciação no uso da linguagem.
As discussões em torno do tema têm me envolvido como escritora e como
pesquisadora. E a partir do exercício de pensar a minha própria escrita, venho
afirmando não só a existência de uma literatura afro-brasileira, mas também a
presença de uma vertente negra feminina. (EVARISTO, 2009, p. 18. Ênfase
acrescentada)
A citação de Evaristo resume os tópicos desenvolvidos neste capítulo: breve
visão diacrônica da literatura afro-brasileira e da escritura feminina nesse contexto,
precedendo a apresentação do objeto central da pesquisa, a obra da escritora, como
expressão de sua visão de mundo. Destaca-se o lugar ocupado pelo romance
Ponciá Vicêncio, no cômputo geral de sua produção literária.
1.1 ESCRITURA NEGRA FEMININA: DOS PRIMÓRDIOS AO SÉCULO XXI
Considerando os quase três séculos da escravidão negra no Brasil, são
raras as mulheres negras que conseguiram transpor as barreiras do sistema
escravista e do analfabetismo para registrar suas experiências. A maioria dos
registros é de autoria masculina, a exemplo de Primeiras trovas burlescas (1859), do
poeta abolicionista Luiz Gama (1830-1882), um dos marcos da história da literatura
afro-brasileira.
Com o célebre poema “A bodarrada”, Gama “tornou-se o primeiro escritor
brasileiro a assumir explicitamente sua identidade negra, sendo, portanto, o
fundador da literatura de militância negra do Brasil” (LOPES, 2004, p. 291). O poema
enaltece a cor negra e a cultura africana, fazendo severa crítica às relações entre
senhores e escravos. O poeta faz uso da palavra “bode”, utilizada para ofender os
negros, para se referir a todos os segmentos da sociedade:
34
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta.
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes.
(GAMA, 1904)
Luiz Gama é figura relevante no contexto histórico do Brasil monárquico,
principalmente pela ação relevante nos movimentos abolicionistas que a
estratificação social permitia apenas aos homens. A falta de interesse de jornais,
revistas e acervos públicos em registrar a produção de mulheres resultou em um
quase esquecimento da escrita negra feminina.
A publicação, em 1859, do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, sob
o pseudônimo de “Uma Maranhense”, vem confirmar a presença da mulher para
além dos locais restritos que lhes eram socialmente destinados no espaço
majoritariamente masculino da escrita literária. A autoria do romance, em 1975, vem
a público mais de cem anos depois de sua publicação, quando é editado um facsímile elaborado por Honório de Almeida. Somente então a obra passa ao
conhecimento dos estudiosos, informa Assis Duarte (2004).
O crítico Nascimento Morais Filho classifica o livro como “o primeiro romance
abolicionista e um dos primeiros escritos por mulher brasileira” (MORAIS FILHO,
1975, p. 310). Nascida em 1825, a autora foi uma mulher à frente de seu tempo: a
escola mista que fundou representava ideias avançadas para a época, uma
35
verdadeira “revolução social pela educação e uma revolução educacional pelo
ensino” (MORAIS FILHO, 1975, p. 310). Não é de surpreender que suas ideias
causassem escândalo na época e o fechamento da escola dois anos mais tarde.
O romance foi objeto de estudos da dissertação de Paraguassu de Fátima
Rocha, defendida no Centro Universitário Campo de Andrade. Privilegiando a
pesquisa comparada, a pesquisadora (2006) analisou “A representação do herói
marginal na literatura afro-descendente: uma releitura dos romances Úrsula de Maria
Firmina dos Reis e Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo”. O trabalho discute a
figura do negro na literatura afro-brasileira e aborda questões do heroísmo marginal
característico das relações identitárias no processo de libertação e humanização dos
afrodescendentes.
Ainda em relação a trabalhos de resgate de textos de autoria feminina negra,
pesquisadores concordam que o primeiro documento pertence ao século XVIII. Visto
que somente se preservaram fragmentos do livro, não se pode afirmar tratar-se de
obra literária e sim de um registro. O texto Sagrada teologia de amor de Deus luz, de
Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1719-?), registra suas visões e experiências
místicas. Por ter sido acusada de heresia e bruxaria, seu confessor destruiu grande
parte do texto “para que a Santa Inquisição não tivesse provas contra Rosa”
(GUIMARÃES, 2003, p.160). Levada a julgamento, suspeita-se que tenha morrido
em Portugal, nas masmorras da Inquisição.
Consta também, como registro histórico, uma carta redigida pela escrava
Esperança Garcia (sem dados de biografia), enviada ao Presidente da Província do
Piauí, datada de 6 de setembro de 1770, pedindo para regressar à fazenda onde
morava com o marido, diante da violência a que ela e os seus filhos eram
submetidos pelo administrador da fazenda para onde tinham sido levados.
36
Na publicação especial dos trinta anos dos Cadernos Negros (2008), no
ensaio intitulado “Carta da escrava Esperança Garcia do Piauí”, Elio Ferreira
discorre sobre o quadro de desumanidade descrito por Esperança. O ensaio traça
paralelos entre os sofrimentos da mulher escrava descritos na carta e poemas e
contos de escritoras negras da contemporaneidade, publicados no periódico.
Certamente houve outras escritoras cujas obras não foram impressas, bem
como textos que não foram considerados para registro historiográfico. Casos como a
poetisa Auta de Souza (1876-1901), que teve seu único livro de poemas Horto
(1900) publicado em vida e, embora sua foto apareça na capa do livro, alguns
biógrafos não registram o fato de a escritora ser afrodescendente.
O Teatro Experimental do Negro (TEN), companhia teatral fundada e dirigida
por Abdias do Nascimento (1914-2011), atuou durante os anos de 1944 a 1957,
sempre com o objetivo da valorização do negro.
O Teatro Experimental do Negro nasceu para contestar a discriminação, formar
atores e dramaturgos afro-brasileiros e resgatar uma tradição cultural cujo valor foi
sempre negado ou relegado ao ridículo pelos nossos padrões culturais: a herança
africana na sua expressão brasileira. (NASCIMENTO, 1982, p. 206)
O Teatro Experimental do Negro publicava o informativo Quilombo: vida,
problemas e aspirações do negro, que se destinava a combater o racismo e divulgar
a cultura negra no Brasil.
Três anos após o encerramento das atividades desse informativo é
publicado o livro de escritora negra mais comentado e conhecido pelo público
brasileiro: Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de
Jesus (1914-1977). A publicação fez enorme sucesso, sendo traduzida para 13
idiomas e editada em cerca de 40 países. Carolina possuía forte senso de
observação e anotava as reflexões sobre suas experiências cotidianas em um
37
caderno. “Aqui é assim. Não há ricos, só pobres, uns prejudicando os outros”
(JESUS, 1998, p. 171). Carolina foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas,
durante uma reportagem na favela onde morava. Por esse motivo surgiram
controvérsias sobre a autoria do texto, atribuída ao próprio jornalista. Depois do
romance de Carolina, foram publicados outros textos de caráter confessional e
autobiográfico, escritos em parceria com revisores.
Neste
particular
lembra-se
Philippe
Lejeune,
teórico
seminal
da
autobiografia. O ensaio intitulado Autobiografia dos que não escrevem caracteriza
testemunhos colhidos e editados por entrevistadores (LEJEUNE, 1991, p. 47). A
partir dos anos 1970, invadiu as livrarias uma verdadeira avalanche de textos
autobiográficos em parceria, de pessoas que não dominam o código escrito ou que
tinham dificuldade de expressar o pensamento.
Nessa mesma época, o movimento feminista recebe novo impulso na luta
por melhores condições de trabalho e salário. Com participação majoritária de
mulheres brancas, o movimento não contemplava as peculiaridades das mulheres
negras que passaram a integrar o movimento negro na luta contra a discriminação
racial. A dupla militância, de gênero e de raça, contribuiu para maior visibilidade da
mulher negra que reivindica seus direitos de cidadã.
Os estudos acadêmicos sobre racismo e sexismo começam a ganhar
espaço, com destaque para os trabalhos da antropóloga Lélia Gonzales8 (19351994), que faz importante registro sobre a atuação do Movimento Negro Unificado
(MNU), fundado como objetivo de questionar as ações do Estado contra a
discriminação racial. O livro Lugar de negro (1982), escrito em parceria com o
sociólogo Carlos Hasenblag, apresenta trabalhos sobre racismo e seus problemas.
8
Sobre a obra de Lélia Gonzalez acessar o sítio: www.leliagonzalez.org.br
38
Também dissertou sobre a diáspora africana, que denominou “amefricanidade”,
relatando as experiências dos negros nas Américas. Publicou o livro Festas
populares no Brasil (1987), premiado na feira de Leipzig.
Outro relevante trabalho, que desponta nos anos 1970/80, é o da historiadora
Beatriz Nascimento9 (1942-1995), estudos relevantes sobre o quilombo como
símbolo de luta e resistência da africanidade. É dela o termo “transmigração” para
apresentar estudos sobre a mulher negra e a experiência da diáspora africana na
des/reconstrução da identidade feminina.
A construção do eu e da identidade da mulher negra, a autoestima, a
experiência pessoal do racismo e sexismo, adquirem maior vigor como temas na
literatura afrodescendente feminina. O sujeito da enunciação aborda a questão do
preconceito pelas vias do feminino, da etnia, e da classe social, com voz própria
para representar sua experiência de vida e visão de mundo. As narrativas são
apresentadas da perspectiva de quem vivenciou ou assistiu a história de seu povo,
com
testemunhos
memorialísticos
que
destacam
as
vozes
periféricas
e
marginalizadas. Segundo a pesquisadora Rita Schimidt,
a maneira como elas (escritoras negras) abordam o racismo passa pelo filtro do
reconhecimento da existência do sexismo dentro da comunidade ou da família
negra. Esse reconhecimento tem ressonâncias profundas na maneira como elas
escrevem, na estilística, na estética e na temática, porque a literatura produzida
pelas mulheres negras emerge como a expressão de uma cultura feminina negra,
desenvolvida à sombra de uma dupla opressão: a racial e a sexual. (SCHIMIDT,
1996, p.159)
9
Sobre Beatriz Nascimento, ler: Eu sou Atlântica, disponível em:
<http://www.imprensaoficial.com.br/PortalIO/download/pdf/projetossociais/eusouatlantica>
39
Questões sobre o preconceito racial, de gênero e condição feminina marcada pela
discriminação, passam a surgir como assunto recorrente na literatura feminina. Nas palavras
da escritora Sônia Fátima da Conceição:
Não devemos nos limitar a relatar fatos ou ficar questionando de forma reacionária
a situação vigente, mas sim buscarmos formas de, entre os nossos, nos
encontrarmos e daí partirmos para uma literatura que vise à transformação social,
senão ela para os nossos não terá razão de ser. (CONCEIÇÃO, 1985, p. 88)
A produção literária apresenta uma contribuição significativa para as lutas
femininas, mitos examinados e estereótipos repensados. Segundo a escritora Maria
Izilda Matos,
[...] procurou-se recuperar a atuação das mulheres no processo histórico como
sujeitos ativos, de modo que as imagens de pacificidade, ociosidade e confinação
ao espaço do lar foram questionados, descortinando-se esferas de influência e
recuperando os testemunhos femininos. (MATOS, 1998, p. 84)
Publicado no ano de 1982, o romance As mulheres de Tijucopapo (1982), da
escritora Marilene Felinto, apresenta a protagonista Rísia, uma mulher negra e pobre
em busca de sua própria identidade e do resgate do orgulho nordestino. A
personagem rememora fatos vividos na família e na comunidade como caminho
para a reconstrução de sua identidade. O romance recebeu o Prêmio Jabuti de
revelação de autor (1983), e foi traduzido para o inglês, francês, holandês e catalão.
Outra escritora premiada, cujas obras refletem a preocupação com a cultura
afro-brasileira, é Geni Guimarães, sua obra A cor da ternura (1989), recebeu o
prêmio Adolfo Aizen de literatura infanto-juvenil já no ano de publicação e, um ano
depois, o Jabuti (1990), de autor revelação. Trata-se de relato autobiográfico poético
que descreve a infância da escritora, em uma fazenda de café no interior de São
Paulo. Na coletânea de poemas Balé das emoções (1993), Geni Guimarães
40
extravasa os sentimentos de um eu-lírico, que se vale da linguagem figurada para
expressar a exclusão de uma sociedade majoritariamente branca, que insiste em
ignorar o negro.
Quando me vem oferecer uísque
aproveita o dedo que segura a taça
e me indica a porta, disfarçadamente.
Eu consciente
do direito a festas,
(inclusive a comemorada no mês de maio)
bebo. E não saio.
(GUIMARÃES, 1993, p. 54)
Publicações de outros autores e de textos sobre o afrodescendente
ganharam maior espaço a partir da publicação da Lei nº 10.63910, de 09/01/2003,
que introduziu o estudo da história e da cultura afro-brasileira e africana no currículo
das instituições oficiais de ensino. Desde então, as editoras passaram a publicar,
além dos livros didáticos convencionais, obras de literatura afro-brasileira, muitas de
autoria feminina, cujas personagens apresentam uma percepção de mundo própria,
da perspectiva do olhar provindo do sujeito subalterno, visto até então como objeto
do olhar do outro.
Este lugar da autoria negra que antes era praticamente invisível e que
passou a ter representatividade é conquistado com perseverança pelos escritores.
Em entrevista à revista Raça Negra, Evaristo relata sua experiência com a
publicação de Ponciá Vicêncio:
O problema não termina com a publicação de um livro. Ponciá Vicêncio já esteve
em uma livraria grande aqui do Rio, e eu o levei pessoalmente. Só que o livro não
foi colocado no sistema de informática da loja e, portanto, era como se ele não
10
Em 2008 foi alterada para Lei nº 11.645, para abranger o ensino da história e da cultura dos povos
indígenas.
41
estivesse lá. Dois pesquisadores estrangeiros que vieram ao Brasil foram procurar
a obra e tiveram que insistir, pois a livraria afirmava que o livro não existia.
(EVARISTO, In FREDERICO, 2006, s/p)
A pesquisadora Maria Aparecida Salgueiro (2004) destaca o nome de
Evaristo junto a Geni Guimarães, Miriam Alves e Sônia Fátima da Conceição, entre
outras escritoras, como representante de um movimento literário feminino que busca
resgatar nomes esquecidos da literatura afrodescendente. Também utiliza suas
personagens para construir um discurso que se contrapõe à representação do negro
na literatura canônica. Assim, o personagem deixa de ser objeto da narrativa –
aquele-que-é-olhado ─, para se tornar agente da sua própria história, em contextos
que se recusam a conceder-lhe o lugar que lhe cabe.
1.2 CONCEIÇÃO EVARISTO: ESCREVIVÊNCIA E VISÃO DE MUNDO
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 1946, numa favela do
Morro do Pindura Saia, em Belo Horizonte. Sua infância foi embalada pelas muitas
histórias ouvidas em casa e na vizinhança, onde tudo era motivo para “prosapoesia”. A menina Evaristo, de olhos fechados, ia criando figuras para as palavras
que invadiam o seu ser, imaginação que também foi utilizada nas aulas de redação
como escape da dura realidade que vivia.
Dentro dos meus limites de compreensão, eu já havia entendido a precariedade da
vida que nos era oferecida, aos poucos fui ganhando uma consciência. Consciência
que compromete a minha escrita como um lugar de auto-afirmação de minhas
particularidades,
de
minhas
especificidades
como
sujeito-mulher-negra.
(EVARISTO, 2005, p. 3)
Segundo nos relata a escritora, ela não conheceu o pai biológico, sendo sua
referência paterna, Aníbal, seu padrasto. A vivência com a mãe e as tias foi
42
influência fundamental na escrevivência de Evaristo. Sua mãe, a exemplo de
Carolina de Jesus, registrava em diários os acontecimentos cotidianos, o que
certamente inspirou a menina Conceição a registrar por escrito seus contos e
fábulas. Esta experiência do escutar enriqueceu sua imaginação. Evaristo, à
semelhança do griot, o contador de histórias nas tribos africanas, torna-se ela
mesma porta-voz das tradições ancestrais da comunidade, transformando narrativas
em texto literário.
De mãe
O cuidado de minha poesia
Aprendi foi de mãe
mulher de pôr reparo nas coisas
e de assuntar a vida.
[...]
Foi de mãe esse meio riso
dado para esconder
alegria inteira
e essa fé desconfiada,
pois, quando se anda descalço
cada dedo olha a estrada.
Foi mãe que me fez sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou,
insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
de minha fala.
(EVARISTO: In Cadernos Negros, 2002, p. 34)
43
De seu local de enunciação, a favela, sua escrita abrange os socialmente
excluídos ─ favelados paupérrimos, mendigos – sendo privilegiado o universo
feminino. O realismo e a violência, a solidariedade e a fortaleza, estampados em sua
narrativa, evidenciam o compromisso e a identificação da intelectualidade
afrodescendente com aqueles colocados à margem do discurso canônico. Afirma
Evaristo:
Quando falamos de sujeito na literatura negra, não estamos falando de um sujeito
particular, de um sujeito construído segundo uma visão romântico-burguesa, mas
de um sujeito que está abraçado ao coletivo. (EVARISTO, 2010, p. 5)
A presença de mulheres fortes e corajosas, como a mãe e as tias, com
quem conviveu e trabalhou durante a infância, cujas conversas e confissões ─ talvez
a única defesa que possuíam contra a opressão da sociedade ─ ouvia calada e
marcam profundamente sua produção literária. Suas personagens femininas
geralmente aparecem como chefes de família, cuidando dos filhos e lutando pela
sobrevivência.
Como cabeça da família, (as mulheres) elas construíam um mundo próprio, muitas
vezes distantes e independentes de seus homens e mormente para apoiá-los
depois. Talvez por isso tantas personagens femininas em meus poemas e em
minhas narrativas? Pergunto sobre isto, não afirmo. (EVARISTO, 2005, p. 4)
Desde criança Evaristo entendia sua condição social. Recorda que deve a
seu tio Osvaldo as primeiras lições sobre negritude e “uma consciência, mesmo que
difusa, de nossa condição de pessoas negras, pobres e faveladas” (EVARISTO,
2009, p. 3). Foi no curso primário que ela conheceu o que denominou de apartheid
escolar. Os alunos pobres e os negros ficavam em um andar inferior aos demais
alunos, “nos porões do navio, nos porões da escola” (EVARISTO, 2009, p. 4). Desde
44
cedo Conceição tinha consciência das lutas de que deveria participar coletivamente,
por isso seu engajou-se politicamente. Quando ainda morava em Belo Horizonte
participou da Juventude Operária Católica (JOC), movimento de cunho político.
Embora, nesse momento, a questão racial ainda fosse discutida pela Igreja, já se
ouvia falar do movimento negro, cujo lema Black is beautiful era conhecido pela
escritora.
Em 1973, quando vai morar no Rio de Janeiro, após aprovação em concurso
público para o magistério, passa a integrar movimentos negros que, em virtude dos
acontecimentos sociais da época, começavam a se institucionalizar. Participa do
grupo Negrícia e, mais tarde, ingressa no Quilombhoje.
Importante momento nas suas reflexões sobre a produção literária ocorre em
1976, quando ingressa no curso de Letras. Indignada com textos que apresentam
visão estereotipada do negro, desenvolve um contradiscurso com dupla finalidade:
denunciar a situação de opressão em que vivem os afrodescendentes e fazer uma
revisão histórica para recuperar a identidade e a dignidade do negro no Brasil.
Evaristo detém profundo conhecimento da história do sistema escravagista no Brasil,
de cujos efeitos deletérios deseja libertar a si própria e aos seus.
O aperfeiçoamento acadêmico no campo das Letras confere-lhe prestígio e,
consequentemente, relevância a seu discurso sobre a presença e participação do
negro na história do país. É neste período de vivência acadêmica que sua produção
literária e ensaística começa a ser publicada. “Vozes-mulheres” inaugura uma série
de poemas e contos nos Cadernos Negros.
Resultado de reflexões acadêmicas sobre a produção dos escritos negros,
em 1996, apresenta a dissertação de mestrado: Literatura negra: Uma poética de
nossa afro-brasilidade. Outro trabalho acadêmico, que compara processos criativos,
45
temáticos e ideológicos de autores africanos de língua portuguesa com autores de
literatura afro-brasileira, foi desenvolvido na tese de doutorado: Poemas malungos:
cânticos irmãos.
Os textos de Evaristo, para além do sentido estético, transitam entre
espaços de movimentos sociais e acadêmicos, apresentando a mulher, negra,
brasileira, militante política e pesquisadora, cujas reflexões relacionam-se a etnia e
gênero, questionando a representação do negro na história e na literatura. “Toma-se
o lugar da escrita, como direito, e ao mesmo tempo se toma o lugar da vida”
(EVARISTO, 2005, p. 206).
Sendo o nome de Conceição Evaristo reconhecido e prestigiado entre os
escritores e intelectuais, suas obras continuam desconhecidas do grande público. A
literatura afro-brasileira não ocupa, ainda, lugar de destaque dentro da literatura
brasileira. Tampouco as editoras se interessam em publicações de grande escala,
embora o incentivo da Lei nº 10.639 já tenha propiciado um avanço neste sentido.
Embora a lei fosse sancionada no mesmo ano de publicação do romance
Ponciá Vicêncio (2003), Evaristo teve dificuldades para editá-lo e teve que custear a
primeira edição. Devido ao sucesso do livro, a mesma editora publicou Becos da
memória (2006). Apesar do sucesso editorial dos romances, as produções Poemas
de recordações e outros movimentos (2008) e Insubmissas lágrimas (2011) foram
novamente total ou parcialmente patrocinadas pela autora.
A literatura considerada de minorias está à margem do mercado editorial.
Evaristo publicou seus dois romances pela editora Mazza e as coletâneas na
Nandyala, editoras administradas por mulheres negras, que condizem com a
concepção ideológica da autora.
46
1.2.1 Contradiscurso em prosa e verso
As palavras foram sempre a paixão tanto da menina Conceição, como de
seu alter ego, a personagem Maria Nova, do romance Becos da memória, a quem
cabe a tarefa de fazer um relato de memória das experiências vividas no seio de
uma família extensiva, que abrange avós, tios e tias, primos e primas, “como uma
homenagem póstuma” (EVARISTO, 2006, p. 20).
Escrevo como uma homenagem póstuma à Vó Rita, que dormia embolada com ela,
a ela que nunca consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas, aos malandros,
às crianças vadias que habitam os becos de minha memória. Homenagem póstuma
às lavadeiras que madrugavam os varais com roupas ao sol. Às pernas cansadas,
suadas, negras, aloiradas de poeira do campo aberto onde aconteciam os festivais
de bola da favela. Homenagem póstuma ao Bondade, ao Tião Puxa-Faca, à velha
Isolina, a D. Anália, ao Tio Totó, ao Pedro Cândido, ao Sô Noronha, à D. Maria,
mãe do Aníbal, ao Catarino, à velha Lia, à Terezinha da Oscarlinda, à Mariinha, à
Donana do Padin. Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim,
como amontoados eram os barracos de minha favela. (EVARISTO, 2006, p. 20-21)
Ela “não sabia bem por que, mas todas as histórias que lhe vieram à mente
[...] são as que ela testemunhava no dia-a-dia da favela” (EVARISTO, 2006, p. 67).
Embora o texto se pareça muito com a experiência de vida de Conceição, a autora
deixa claro que apenas se utiliza de fatos para narrar uma nova história. Este estilo
literário é uma característica da literatura afro-brasileira, afirma ela à interlocutora da
revista Magazine:
Escrevi (Becos da Memória) a partir de situações que vivi e observei enquanto
morava no Pindura Saia. Usei daquela realidade para construir um romance.
Apesar de trazer situações que testemunhei de fato, não é um livro autobiográfico,
apenas utilizo determinados fatos e da experiência de menina criada em favela.
(EVARISTO, 2006, s/p)
47
Becos da memória foi escrito entre o final dos anos 1970 e início dos anos
1980e nele está explícita a necessidade de Evaristo de contar a história dos que
sempre foram calados, de escrever uma história diferente, voltada para a
transformação social.
Nossa gente não tem conseguido quase nada. Todos aqueles que morreram sem
se realizar, todos os negros escravizados de ontem, os supostamente livres de
hoje, libertam-se na vida de cada um de nós que consegue viver, que consegue se
realizar. A sua vida, menina, não pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se
realizar por meio de você. Os gemidos são sempre presentes. É preciso ter
ouvidos, os olhos e o coração sempre abertos. (EVARISTO, 2006, p.103)
Nas páginas iniciais do romance Evaristo afirma tratar-se de uma obra que
“pode ser lida como ficções da memória ao narrar a ambiência de uma favela que
não existe mais” (EVARISTO, 2006, p. 13). Passa então a narrar situações
facilmente identificáveis com as do seu próprio mundo referencial: personagens que
compõem o mundo da favela; o processo doloroso do desfavelamento, os tios
Filomena e Totó, com quem a protagonista vai viver, para aliviar a pobreza da
família.
Grande parte das pessoas que viviam na favela era oriunda de zonas rurais,
onde o trabalho permanecia quase o mesmo dos tempos da escravidão. Embora o
êxodo rural trouxesse essas pessoas para a cidade, a relação de trabalho entre
brancos e negros pouco mudou. Evaristo enfatiza em várias passagens a expressão
“senzala-favela”, que Maria-Nova observa durante as aulas de história, e nas
relações de trabalho entre as mulheres e suas patroas brancas.
Assim como ocorre no romance Ponciá Vicêncio a vida não poupa ninguém,
todos jogados na “senzala-favela, lutam para “[...] quebrar uma casca, não frágil,
48
como a de um ovo, mas uma casca dura, a da vida, aquela feita de ferro”
(EVARISTO, 2006, p. 149).
Aparecem também personagens como Cidinha-Codoca, prostituta conhecida
como “rabo-de-ouro”, que andava descabelada e suja, sempre olhando o vazio
dizendo que “ia morrer de não viver”; Maria-Velha, mulher de tio Totó, taciturna e
raciona; Negro Alírio, que sabia ler; Mãe Joana, que carregava uma tristeza e nunca
sorria; a mulata Dora, rainha do frevo e do Maracatu; a doméstica Ditinha, que não
resiste às joias da patroa; Nazinha que, com 13 anos, é vendida pela mãe para um
bandido. Nesse local não havia vida para se viver, ali estavam sobreviventes.
Homens e mulheres sofriam as mesmas necessidades, fomes e discriminações
(EVARISTO, 2006, p. 297-299).
Maria-Nova, como Evaristo, gosta de “pôr o dedo na ferida, não na ferida
alheia, mas naquela que ela traz dentro do peito, herdada de Mãe Joana, de MariaVelha, de Tio Totó. Maria Nova-Nova talvez tivesse o banzo no peito. Saudades de
um tempo de uma vida que ela nunca vivera” (EVARISTO, 2006, p. 91). Banzo, no
dicionário banto, “refere-se à nostalgia mortal que acometia negros africanos.
Tristeza, saudade” (LOPES, 2004, p. 39).
A menina quer descobrir de que forma um dia poderá contar não apenas as
histórias que ouve, mas também aquelas que foram silenciadas. Um dia, durante as
aulas de história teve uma ideia: “Quem sabe escreveria esta história um dia? Quem
sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo,
na sua alma, na sua mente” (EVARISTO, 2006, p. 211).
O fato de ser mulher e negra autoriza Evaristo a reescrever a vivência
coletiva dos afrodescendentes. Daí o termo escrevivência, cunhado pela autora
para designar a escrita como fruto tanto de suas próprias experiências como das
49
lembranças dos antepassados, marcadas pelo sofrimento, sob a escravatura e, hoje,
no cotidiano difícil da mulher negra.
Em entrevista, Evaristo compara o fazer literário, a arte de trabalhar as
palavras a um ritual religioso. Atribui a mesma percepção da arte como criação
divina a sua personagem Ponciá Vicêncio na moldagem do barro, o mesmo cuidado
e esmero. Trabalhar a escrita, como moldar o barro, requer sensibilidade do artista
com seu material de trabalho.
Com o zelo da arte, atentava para as porções das sobras, a massa excedente,
assim como buscava ainda significar as mutilações e as ausências que também
conformam um corpo. Suas mãos seguiam reinventando sempre e sempre. E
quando quase interrompia o manuseio da arte, era como se perseguisse o
manuseio da vida, buscando fundir tudo num ato só, igualando as faces da moeda.
(EVARISTO, 2003, p. 127-128)
A figura autoral cria imagens das experiências vividas, idealizando-as em
suas personagens. Utiliza-se do que Carole Boyce Davies entende por subjetividade
autobiográfica, onde “a reescritura do lugar se converte em elo crucial na articulação
da identidade. É um jogo de resistência à dominação que identifica de onde viemos,
mas também localiza o lugar de origem em experiências transgressivas e
disjuntivas” (DAVIES, 2001, p. 115).
Tal afirmação vem ao encontro de um dos objetivos da literatura afrobrasileira, que é revisar na história oficial a presença do negro no Brasil, “surge
como uma escrita, não sobre o negro, mas como uma produção literária, que
explicita a fala do próprio negro enquanto sujeito que demanda a afirmação de sua
própria voz” (EVARISTO, 2005, p. 4).
A memória é elemento indispensável à reconstrução da história. É através
dela que o homem atualiza impressões ou informações passadas e reescreve o
50
passado. Numa civilização oral como a africana, a acumulação de elementos na
memória faz parte do cotidiano, como garantia de sua identidade, da transmissão de
bens culturais e sabedoria dos ancestrais.
Apesar da comunidade negra brasileira ter perdido quase toda a referência das
línguas africanas, com exceção de adeptos do candomblé, a produção literária
negro-brasileira se aproxima ora mais, ora menos de uma expressividade oral,
herança das culturas africanas no solo brasileiro. Oralidade que garantiu a nossa
memória e se presentifica na escrita afro-brasileira. (EVARISTO, 2009, p. 4)
A herança das culturas africanas é particularmente evidenciada pela
sucessão de arquétipos no conto Ayoluwa, a alegria do nosso povo (2005). Evaristo
dá vida a uma comunidade negra mítica que se regenera com o nascimento de uma
criança após longo período de esterilidade. O comentário de Mail Marques de
Azevedo põe em relevo o caráter das personagens como arquétipos.
No conto alegórico, não há personagem individualizadas, mas um conjunto de
traços e qualificações que caracterizam a comunidade como um todo e fazem dela
a protagonista da narrativa. Resiste diante do sofrimento, sábia, forte e paciente,
a comunidade enfrenta uma crise de esterilidade da mãe terra, quando se rompe o
ciclo de morte e renascimento que comanda a natureza. (FERNANDES, 2012, p.
130-131. Ênfase acrescentada)
Afirma ainda a autora que a importância da tradição cultural, evidenciada no
texto de Evaristo, é algo em comum com escritores afro-americanos, para quem os
membros mais velhos das comunidades fornecem a conexão com as raízes de seu
povo, preservam a sabedoria ancestral e instruem as novas gerações (AZEVEDO,
citado em FERNANDES, 2012, p. 132). Para Toni Morrison, prêmio Nobel de 1993,
um dos traços distintos da literatura afro-americana é a presença de um ancestral,
homem ou mulher. “E esses ancestrais não são apenas os pais, são uma espécie de
pessoas sem idade, cuja atitude em relação a personagens é benevolente, instrutiva
51
e protetora, e que transmitem uma sabedoria própria” (MORRISON,1986, p. 340).
Os anciãos/anciãs em Ayoluwa, acumulados de tanto sofrimento, olham para trás e
do passado nada reconheciam no presente, esquecidos da força que traziam em
seus próprios nomes (EVARISTO, 2005, p.38).
Quando, finalmente, se anuncia a próxima chegada de uma criança, as
personagens-arquetípicas assumem o comando. “E no momento exato em que a
vida milagrou no ventre de Bamidele, Omolara, aquela que tinha o dom de fazer vir
as pessoas ao mundo, a conhecedora de todo ritual do nascimento, acolher a
criança de Bamidele” (EVARISTO, 2005, p. 38). O significado de Omolara, o nome
da responsável pelo parto de Bamidele, corresponde à sua função de presidir aos
nascimentos. Evaristo conduz o leitor da visão arquetípica da comunidade negra
para o significado do conto como alegoria da esterilidade da vida do homem negro,
que carrega até hoje as marcas da escravidão e da opressão. É dever do escritor
preservar a memória do ontem para denunciar as injustiças que se repetem no hoje.
A necessidade da preservação da memória está presente no poema A noite
não adormece nos olhos das mulheres; a voz poética lembra essa responsabilidade
e a necessidade da resistência de forma paciente para se vencer a opressão. À
noite, momento de descanso, de recuperação das forças físicas e espirituais, são as
mulheres que permanecem em vigília.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
52
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças
[...]
A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
(EVARISTO, 2008, p. 21)
Novamente o tema de resistência que se transfere de geração para geração
está presente no conto “Duzu-Querença” (1994). A personagem é uma mendiga que
ainda menina vai trabalhar num prostíbulo. Como a maioria dos personagens de
Evaristo, idealiza a cidade como local de oportunidades para um futuro promissor. A
menina é deixada pelos pais para estudar. Em contraste com o estereótipo da
mulher negra como prostituta e estéril, Duzu tem nove filhos. “Todos os filhos
tiveram filhos. Nunca menos de dois” (EVARISTO, 1994, p. 33). Quando morre
Duzu, permanece em sua neta Querença a luta por condições melhores de vida.
No conto “Quantos filhos Natalina teve?” (1999), a escritora aborda o tema
da sexualidade feminina na adolescência. Natalina está grávida e a voz do narrador,
em terceira pessoa esclarece que desta vez a criança é desejada. Não era a
primeira gravidez. Carente de afeto e informação, ainda menina Natalina ficara
grávida de Bilico que “crescera com ela” (EVARISTO,1999, p. 33). Num ato de
coragem foge para não ser forçada a abortar. Dá à luz o filho, que entrega para
adoção “A menina-mãe saiu leve e vazia do hospital” (EVARISTO, 1999, p. 23).
53
Anos mais tarde, Natalina engravida novamente; independente e forte,
recusa-se a casar com o namorado. A recusa do lugar socialmente reservado para a
mulher, inverte a noção do casamento como caminho da realização feminina.
De fato, Evaristo faz do ideal de ter marido, casa e filhos o sonho de Ponciá
Vicêncio, que desde pequena observa a própria família: as mulheres trabalham e
mandam na casa e os homens são calados. Ela deseja reproduzir este
relacionamento da mãe e ter uma família feliz.
Em Natalina a autora cria uma personagem carente de afeto, que não queria
família alguma (EVARISTO, 1999, p. 24) e tece um desfecho violento para a história.
Natalina é estuprada por um bandido da favela. Revoltada acerta um tiro na cabeça
do homem, com a arma dele.
Guardou mais do que a satisfação de ter conseguido retomar a própria vida.
Guardou a semente invasora daquele homem. [...] O filho estava para arrebentar no
mundo a qualquer hora. Estava ansiosa para olhar aquele filho e não ver a marca
de ninguém, talvez nem dela. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da
vida e da morte. (EVARISTO, 1999, p. 28)
Natalina desconstrói a imagem mulher submissa, a heroína romântica. É
dona de seu destino e não aceita ter a vida determinada por um homem. A única vez
que alguém tentou controlar sua vontade, ela reagiu com violência.
A violência das favelas também atinge as crianças. No conto “Zaíta
esqueceu de guardar os brinquedos” (2007) Evaristo retrata a vida da periferia de
grandes cidades. A menina Zaíta está brincando e descobre que sumiu sua figurinha
predileta “a figurinha-flor”. O conto gira em torno da busca dessa figurinha. Zaíta
desarruma todos os brinquedos e os espalha pela casa, mas não a encontra. Sai do
barraco pobre e caminha pelos becos da favela, à procura de seu tesouro. Absorta
54
na busca não ouve os gritos de alerta, em o ruído do tiroteio. Zaíta não foi a única
criança vitimada por balas perdidas, naquele dia.
A violência é ainda tema de “Canto 1” (2008), que enfatiza a necessidade de
se ouvir a voz dos marginalizados, pois agora “não há mais quem morda a nossa
língua”.
Na poesia negra, o branco, a luz, o dia podem significar a cor e o tempo da
humilhação, da negação. Tempo do branco, do algoz, palavras como “cidade alva” e
“imerecido sono” remetem a esse conceito.
O silêncio mordido
rebela e revela
nossos ais
e são tantos os gritos
que a alva cidade,
de seu imerecido sono,
desperta em pesadelo.
E pedimos
que as balas perdidas
percam o rumo
e não façam do corpo nosso,
de nossos filhos, o alvo.
O silêncio mordido,
antes o pão triturado
de nossos desejos,
avoluma, avoluma
e a massa ganha por inteiro
o espaço antes comedido
pela ordem.
E não há mais
quem morda a nossa língua
o nosso verbo solto
conjugou antes
o tempo de todas as dores.
55
E o silêncio escapou
ferindo a ordenança
e hoje o inverso
da mudez é a nudez
do nosso gritante verso
que se quer livre.
(EVARISTO, 2008, p.27)
Conceição Evaristo assume que sua escrita é fruto de suas próprias
experiências. Afirma no ensaio Literatura negra: uma voz quilombola na literatura
brasileira (2010), que, especialmente para os povos colonizados, a poesia pode
configurar um local de manutenção e propagação da memória identitária, por isso é
local, também, de contradiscurso.
No poema “Eu-mulher” (1990) atesta a importância da mulher que gera a
vida, que move o mundo, representado por imagens de sangue e semente. Não
deve haver passividade. A voz mesmo baixa precisa continuar a tecer esperança.
Eu-mulher
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes agora o que há de vir.
56
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo do mundo.
(EVARISTO, 1990, p.34)
Sua terra natal é lembrada no poema “Mineiridade” (2008). O uso de
expressões típicas dialetais de Minas como “trem”, “uai”, remetem a Minas Gerais. A
voz do eu-lírico expressa saudades da terra mineira que deixou para trás com pesar.
A imagem da cidade maciça, onde construções de cimento se amontoam sem
preocupação com a beleza se aplicam à personagem, que se sente machucada e
sem jeito.
Quando chego de Minas
trago sempre na boca um gosto de terra.
Chego aqui com o coração fechado,
Um “trem” esquisito no peito.
Meus olhos chegam divagando saudades,
meus pensamentos cheios de “uais”
e esta cidade aqui me machuca
me deixa maciça, cimento
e sem jeito.
(EVARISTO, 2008, p.32)
A escrita de Conceição Evaristo ajuda a subverter os estereótipos da mulher
negra. “A mulher negra não é só pra ser corpo, beleza, dança. Negro é lindo, mas
lindo também porque pensa, porque escreve, porque debate, porque luta”
(EVARISTO, 2010, p. 3).
As personagens de Evaristo apresentam características psicológicas e
culturais em vez de aspectos físicos, e desempenham papéis “que a literatura
brasileira, no geral, reservou às mulheres brancas, tais como: o de mãe, líder
57
espiritual, detentora do conhecimento e da memória” (PALMEIRA; SOUZA, 2008,
citado em MOREIRA, 2010, p. 62). São personagens que compartilham a experiência
de quem sente, sofre e vive a experiência da exploração e da discriminação, que
gostam de “pôr o dedo na ferida”, como Maria-Nova para revelar a experiência
histórica do negro.
1.2.2 Ponciá Vicêncio
O romance Ponciá Vicêncio lançado em 2003, ganhou nova edição em
2005, sendo indicado para o vestibular da UFMG em 2008. É a publicação mais
elogiada pela crítica literária – possui versão em inglês e francês – e, desde o
lançamento, vem sendo objeto de inúmeros estudos acadêmicos. O romance estará
na trigésima quinta edição do Salão do Livro de Paris, no mês de março deste ano.
A história poética da menina negra, que busca compreender seu pequeno
mundo e os que nele vivem, é uma combinação intrincada de mito e fantasia, de dor,
violência e injustiça, o que permite diferentes níveis de leitura. Segundo Eduardo de
Assis Duarte,
O texto (de Ponciá Vicêncio) destaca-se também pelo território feminino de onde
emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado,
sim, pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas.
Vê-se que no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas
na pele, a percorrer nosso passado em contraponto com a história dos vencedores
e seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito
gendrado, tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima
de olhares e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações
de gênero se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que,
sem descartar a necessidade histórica do testemunho, supera-o para torná-lo
perene na ficção. (DUARTE, 2006, p. 308)
58
O romance afro-brasileiro apresenta um discurso vinculado às matrizes
culturais africanas ─ marcado no romance de Evaristo pela necessidade de
recuperar a memória ancestral ─ num “discurso revelador de um processo de
conscientização do ser negro entre brancos” (BERND, 1988, p. 48).
A trajetória de Ponciá é representativa da inferiorização da mulher negra em
nossa sociedade, o que inclui a própria autora. “Há uma relação muito grande entre
o sujeito autoral com a ficção na literatura afro-brasileira. Mas Ponciá tem uma
história própria, embora eu parta da vivência na comunidade negra para tirar os
elementos da ficção” (EVARISTO, 2007, p. 1).
A autora admite que se utiliza de memórias pessoais, acumuladas durante
toda a vida, para descrever o sofrimento de seus antepassados na diáspora negra e
o martírio da escravidão:
Ponciá Vicêncio nasceu talvez de um acúmulo de memória, de palavras, de
situações vividas e testemunhadas por mim. [...] É uma escrita realista, na medida
em que é a narrativa de fatos relacionados à trajetória dos africanos e seus
descendentes no Brasil. (EVARISTO, 2007, p. 4)
O romance é estruturado como narrativa de memória, em que o narrador
adulto resgata reminiscências. A personagem-título é perseguida pelo passado, que
procura desvendar em constante fusão com o presente. As lembranças de cenas
cotidianas da infância e da adolescência, envolvendo sua família e a comunidade,
são apresentadas de forma fragmentada e em contraposição a reflexões de vida de
uma Ponciá já adulta. Desse modo, a personagem busca unir os recortes que
compõem a sua história, a fim de reconstruir o passado e buscar compreender quem
ela é realmente na cadeia de seres humanos que a precederam.
59
A narrativa configura-se como um Bildungsroman feminino e negro ao dramatizar a
busca quase intemporal da protagonista, a fim de recuperar e reconstituir família,
memória, identidade. No entanto, o ímpeto antropofágico se faz presente na
postura de rasurar o modelo europeu para conformá-lo às peculiaridades da
matéria representada. Assim, a apropriação feita por Conceição Evaristo ganha
contornos paródicos, pois em lugar da trajetória ascendente do personagem em
formação, oriunda de Goethe e tantos mais, o que se tem é um percurso de perdas
materiais, familiares e culturais. E, em lugar da linearidade triunfante do herói
romanesco, temos uma narrativa complexa e entrecortada, a mesclar de forma
tensa passado e presente, recordação e devaneio. (DUARTE, 2006, p. 308)
Em resumo, o enredo do romance é a reconstrução de lembranças do
passado que leva Ponciá da infância na Vila Vicêncio à partida em busca de vida
melhor na cidade grande; ao grande vazio em que se transformaria sua existência,
e, finalmente, à descoberta do que “devia fazer. Ia tomar o trem, voltar ao povoado,
voltar ao rio” (EVARISTO, 2003, p. 123). A estrutura circular da narrativa é
evidenciada pela repetição, nas frases de abertura e fechamento, de referências ao
arco-íris, símbolo dos mistérios da natureza, recorrente no enredo. A professora
Maria José Somerlate Barbosa, da University of Iowa, que prefaciou o livro, aponta
as questões formais e temáticas na construção do romance:
A repetição intencional de certas frases tem o efeito de ligar os fatos, de conectar
passado e presente e de enfatizar certas facetas do mundo interior das
personagens. As diversas partes do texto (cada uma enfocando um dos
personagens) vão se intercalando, como peças de um jogo ou de um quebracabeça. As frases curtas, quase secas, o uso de poucos adjetivos e de poucas
conjunções aditivas contrastam claramente com a quantidade de emoções e de
sentimentos que escorrem pelas entrelinhas”. (BARBOSA, 2003, apud: EVARISTO,
2003, p. 5)
60
Para Assis Duarte, o livro, exemplo de romance afro-brasileiro, surge para
polemizar a tese segundo a qual a escrita dos descendentes de escravos estaria
restrita ao conto e à poesia.
Se entendido como texto de autoria afrodescendente, tratando de tema vinculado à
presença desse segmento nas relações sociais vividas no país, a partir de uma
perspectiva identificada politicamente com as demandas e com o universo cultural
afro-brasileiro e destacando ainda o protagonismo negro nas ações, em especial
aquelas em que se defronta com o poder e com seus donos, não há dúvida de que
Ponciá Vicêncio não só preenche tais requisitos, como ocupa o lugar supostamente
vazio do romance afro-brasileiro. (DUARTE, 2006, p. 309)
Grande parte da narrativa é construída por analepses11, a personagem
relembra a sua infância na vila em que morava com a família. É através das
lembranças de Ponciá Vicêncio que se estabelece um diálogo com o passado.
Ponciá vai abandonando o mundo presente e mergulhando em suas memórias, indo
do mundo que a cerca para entrar em um mundo interior. Conceição Evaristo reúne
passado e presente para resgatar a infância de Ponciá e contar a história de seu
povo. Para Somerlate Barbosa,
Conceição Evaristo traça a trajetória da personagem da infância à idade adulta,
analisando seus afetos e desafetos e seu envolvimento com a família e os amigos.
Discute a questão da identidade de Ponciá, centrada na herança identitária do avô
e estabelece um diálogo entre o passado e o presente, entre a lembrança e a
vivência, entre o real e o imaginado. Ponciá é uma pessoa que, como o avô, foi
acumulando
partidas
e
vazios
até
culminar
numa
grande
ausência.
(BARBOSA,2003, apud EVARISTO, 2003, p. 5)
Marcadores temporais como, por exemplo, “Nos tempos da roça”
(EVARISTO, 2003, p. 27), “No dia em que...” (p. 5), “Numa tarde clara” (p. 30), “No
tempo do fato acontecido” (p. 51), levam o leitor a conhecer o passado da
11
Recuo com relação ao tempo da narrativa, segundo Gerard Genette.
61
personagem, pelos processos de recordar de Ponciá, um processo que Evaristo
define como característico de sua escrita.
E desse assuntar a vida [...] ficou essa minha mania de buscar a alma, o íntimo das
coisas. De recolher os restos, os pedaços, os vestígios, pois creio que a escrita,
pelo menos para mim, é o pretensioso desejo de recuperar o vivido. [...] E na
tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo. Escrevo
sabendo que estou perseguindo uma sombra, um vestígio talvez. (EVARISTO,
2010, p. 4)
A narrativa em terceira pessoa é interrompida por digressões e reflexões da
personagem: “O que acontecera com os sonhos tão certos de uma vida melhor?”
(EVARISTO, 2003, p. 55). “Foi bom os filhos terem morrido. Nascer, crescer, viver
para quê?” (p. 82), “De que valia ler? De que valia ter aprendido a ler?” (p. 91),
“Seria isso vida, meu Deus?“ (p. 33).
Ponciá viaja pelo espaço temporal e físico em busca de sua ancestralidade e
identidade. Está consciente da vida miserável que os afrodescendentes viviam ali na
Vila Vicêncio: mulheres e crianças plantavam para sobrevivência, e os homens para
enriquecer o dono das terras. Segundo a pesquisadora Renata Costa,
Evaristo consegue, por meio da personagem Ponciá, dar voz aos vencidos, que
encontram na literatura um dos poucos caminhos possíveis para a construção de
um mundo seu, onde os compassos que dão vida a esse universo foram delineados
a partir de suas próprias experiências. Neste sentido, a fala de Ponciá simboliza,
parafraseando Jim Sharpe (1992), “novas perspectivas de se explorar o passado”,
nas quais o discurso dos grandes homens da história cede lugar ao dos oprimidos.
(COSTA, 2007, p. 58. Ênfase original)
A pesquisadora Aline Arruda considera o romance uma espécie de diáspora
interna, ou seja, a viagem de Ponciá como paradigma das migrações de tantos
brasileiros em busca de uma vida melhor.
62
Longe de fixar o sujeito feminino negro em esquemas rígidos de representação, que
pressupõem uma autenticidade ou pureza como marcas identitárias, a autora de
Ponciá Vicêncio explora, ao longo da narrativa, os espaços migratórios percorridos
pela protagonista em busca de sua própria história, revelando, desta forma, uma
construção identitária em incessante processo. (ARRUDA, 2007, p. 95)
Na história de Ponciá Vicêncio encontramos um sujeito étnico marcado pela
exclusão, que utiliza a memória e o testemunho para reescrever a história dos
afrodescendentes sob a ótica da mulher negra.
63
2 MITO E ARQUÉTIPOS
Graças ao mito, o Mundo pode ser discernido como
Cosmo perfeitamente articulado, inteligível e
significativo.
Mircea Eliade12
Em pleno século XXI o homem se deleita com narrativas fantásticas nas
mais diversas formas – quadrinhos, mangas, filmes, animações ─, povoadas por
hobbits, seres mutantes, robôs, monstros cibernéticos, em um número infinito de
variações. A explicação talvez esteja na ânsia por segurança e estabilidade, o que é
próprio do mundo da fantasia, onde o herói sempre derrota o dragão e restaura a
paz no reino. A fantasia responde, assim, à necessidade humana de segurança,
mesmo que em um mundo alternativo, onde problemas, muitas vezes ocultos no
mundo factual, são solucionados magicamente. Com o avanço da civilização, o mito
perde a característica de verdade, de que gozava nas sociedades primitivas, e o
termo passa a sinônimo de fábula, invenção, ficção. Em meados do século XX,
porém, como ressalta Mircea Eliade, os eruditos ocidentais passaram a estudar o
mito tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde designa uma
história verdadeira, “extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e
significativo” (ELIADE, 2006, p. 7-9).
Compreender a estrutura e a função dos mitos nas sociedades tradicionais não
significa apenas elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas
também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos.
(ELIADE, 2006, p. 8)
A função do mito consiste, portanto, em revelar modelos que fornecem
significado ao mundo e à existência humana, ajudando-nos a perceber o que está
além do cotidiano, a interpretar a razão de nossas motivações últimas. Trata-se de
12
ELIADE (2006, p. 128).
64
material coletivo, cujos temas se repetem de forma quase idêntica, na mitologia e no
folclore de diversos povos, como imagens simbólicas que pertencem a qualquer
tempo e lugar.
São mitos que variam muito nos seus detalhes, mas quanto mais os examinamos
mais percebemos quanto se assemelham estruturalmente. Isso quer dizer que
guardam uma forma universal mesmo quando desenvolvidos por grupos ou
indivíduos sem qualquer contato cultural entre si. (JUNG, 2008, p. 142)
A psicologia analítica desenvolvida por Jung define essas imagens como
parte do inconsciente coletivo, comuns a todos os seres humanos, a que denominou
arquétipos. No pensamento junguiano, o inconsciente coletivo guarda os símbolos
e arquétipos de uma civilização que, através dos sonhos e delírios, fornecem
imagens utilizadas nas artes, na cultura e nas religiões.
Do
mesmo
modo
que
os
sonhos
são
constituídos
de
um
material
preponderantemente coletivo, assim também na mitologia e no folclore dos diversos
povos certos temas se repetem de forma quase idêntica. A estes temas dei o nome
de arquétipos, designação com a qual indico certas formas e imagens de natureza
coletiva, que surgem por toda a parte como elementos constitutivos dos mitos e ao
mesmo tempo como produtos autóctones individuais de origem inconsciente.
(JUNG, 1978, p. 55-56. Ênfase acrescentada)
A respeito da recorrência de imagens arquetípicas em diversos povos,
Joseph Campbell que, junto a Eliade e Jung, fez parte do Círculo de Eranos13,
ressalta que há, sem dúvida, diferenças entre as inúmeras religiões e mitologias da
humanidade, mas percebidas as semelhanças, constata-se que as diferenças não
13
Grupo de estudiosos de vários países das mais diversas áreas, interessados na hermenêutica das
imagens, dos símbolos, do sagrado e dos mitos no imaginário das culturas. (Também fizeram parte
do grupo: Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Henri Corbin, Rudolf Otto, Walter Otto, Ernst Cassirer,
George Dumézil, Raffaele Pettazzoni, Claude Lévi-Strauss, Kurt Hubner, Manfred Frank, entre
outros.) (Ascona – Suíça,1933-1988).
65
são muito amplas (CAMPBELL, 1995). Reforça o argumento com uma citação do
livro dos Vedas: “a verdade é uma só, mas os sábios falam dela sob muitos nomes”
(CAMPBELL, 1995, p. 12).
Assim como os arquétipos, os sonhos são constituídos de material
preponderantemente coletivo. Em O herói de mil faces, Joseph Campbell aponta que
as revelações manifestadas nos sonhos: “assim como os símbolos da mitologia não
são fabricados, não podem ser ordenados e nem inventados, ou ainda suprimidos
de forma definitiva [...], os símbolos do sonho são produções espontâneas da
psique” (CAMPBELL, 1995, p. 15). É preciso ficar atento à ciência que interpreta os
sonhos, pois ela “desempenha a função e o papel de um antigo mistagogo, ou guia
dos espíritos, o curandeiro iniciador dos primitivos santuários florestais das provas e
iniciações” (CAMPBELL, 1995, p. 19).
Tem significado modelar o mito do herói, cuja figura povoa desde sempre o
imaginário da humanidade. Seja na literatura ou no cotidiano, o herói nos fascina por
representar a superação dos limites do homem comum. O herói não se abate diante
de provações e obstáculos, mas permanece firme e vitorioso, e recebe, ao final da
jornada, a recompensa que poderá transformar sua própria vida e a vida de muitos.
Conforme estudos da psicanálise, a lógica do herói e os feitos dos mitos
permanecem vivos até hoje e, “na ausência de uma efetiva mitologia geral, cada um
de nós tem seu próprio panteão de sonhos, privado, não reconhecido, rudimentar e,
não obstante, secretamente rigoroso” (CAMPBELL, 1995, p. 16).
O termo herói designa o protagonista de uma narrativa mitológica, ou, nos
tempos helênicos, da epopeia e da tragédia. A representação do herói varia
consoante as épocas, as correntes estético-literárias, os gêneros e subgêneros, mas
não foge a uma projeção ambígua: “por um lado, representa a condição humana, na
66
sua complexidade psicológica, social e ética; por outro, transcende a mesma
condição, na medida em que representa facetas e virtudes que o homem comum
gostaria de atingir”, embora isto lhe seja impossível (CEIA14, 2010).
Sua figura aparece desde a antiguidade clássica, quando os heróis estavam
numa posição intermediária entre os deuses e os homens, os primeiros retratados
com vícios e virtudes humanas, e os segundos, embora sendo mortais, possuíam
poderes especiais. São desta fase Hércules, Ulisses e Aquiles, exemplos cujos
feitos de vitórias e atitudes de coragem, astúcia e persistência representam os
valores que o povo grego cultuava. A tragédia é também deste período,
caracterizada pela liberdade de ação e desfecho catastrófico como a do herói Édipo,
de Sófocles.
Uma alternativa a este herói clássico surge muitos séculos depois, o
romântico, que vai utilizar o drama para expressar o sofrimento, tema característico
da escola literária romântica, do século XIX. Ainda há o herói naturalista, fruto da
hereditariedade, da educação e espelho dos conflitos psicossociais, que
representavam a sociedade em crise. É nesta fase que surge o anti-herói,
personagens como Leonardo, do romance Memórias de um sargento de milícias
(1852), de Manuel Antônio de Almeida. É também nesse momento que a figura do
negro ou mestiço desponta na literatura como personagem principal e, embora seja
apresentada como virtuoso, mantém-se no papel de vítima, como a personagem
homônima da obra Escrava Isaura (1872), de Bernardo Guimarães, e a exemplo do
poema Navio negreiro (1883), de Castro Alves. O poeta denuncia com veemência o
tráfico de escravos, mas, embora crie impressionantes, não faz qualquer menção
sobre revolta ou reação dos escravos.
14
CEIA, C. Dicionário de termos literários.
67
No século XX o romance e o teatro existencialistas põem em xeque o
conceito de herói. O homem surge como um ser sem sentido, num mundo absurdo
(Sartre, Beckett), enquanto o realismo socialista promove um novo tipo de herói:
operário, sindicalista, comprometido no campo social e no político, denunciador da
corrupção e da opressão, empenhado na sua transformação.
Essa nova visão do herói, voltado à realidade, preocupado com as questões
sociais distancia-se cada vez mais dos heróis clássicos e é nessa perspectiva que a
literatura apresenta maior quantidade de textos voltados às questões sociais.
Movimentos sociais reivindicam direitos para as minorias, e na literatura
questiona-se o cânone, valorizando questões sociais e culturais e não apenas a
questão estética das obras. Uma das temáticas que afloram é a revisão da
personagem negra na literatura, da qual permaneceu uma caracterização negativa e
folclórica, com raras exceções, em nossa literatura até meados do século XX. A
posição de subalternidade que o relegou a invisibilidade e que durante séculos, teve
um representante que falava por ele, reforçou seu silenciamento. Personagens
descritos com estereótipos, que em nada valorizam ou ressaltam a importância da
cultura africana na formação da cultura popular brasileira.
Surge uma literatura caracterizada pela presença de personagens negros
cuja marca é a experiência do sujeito negro que reivindica seu espaço na sociedade
brasileira, passa a ter sua própria voz, sujeito ativo no processo de construção e
reconstrução da imagem do negro na literatura brasileira.
Todo ser humano nasce com a marca do herói e tem uma jornada a seguir.
Embora o processo seja universal, pode ocorrer de várias maneiras, dependendo da
cultura de cada povo. Este herói é projetado nas figuras míticas, como metáfora de
68
algo que ocorre no sujeito, as quais Campbell agrupa segundo o critério da
similaridade.
Há, sem dúvida, diferenças entre as inúmeras religiões e mitologias da
humanidade, mas este livro trata das semelhanças; uma vez compreendidas as
semelhanças, descobriremos que as diferenças são muito menos amplas do que se
supõe popularmente (bem como politicamente). (CAMPBELL, 1995, p. 12)
Qualquer que seja essa categorização existe nelas um eixo comum, que
Campbell denomina estrutura central do monomito15 ─ termo tomado de
empréstimo a James Joyce, que o utiliza em Finnegans Wake ─ que abrangeria as
fases de separação-iniciação-retorno, próprias dos ritos de passagem nas
sociedades primitivas. Essa é também a estrutura que organiza a análise do
romance de Conceição Evaristo, em consonância com as características arcaicas de
Vila Vicêncio e de seus personagens. Isolada do mundo, a comunidade exemplifica
os enclaves tribais em que se constituem os indivíduos da diáspora negra, com
práticas culturais próprias: crenças, costumes, curandeirismo, medicina, manejo do
solo, relações familiares, enfim a visão de mundo.
2.1 O HERÓI MODERNO
O mito vai perdendo o caráter de revelação de uma verdade, para dar
origem aos contos populares, folclóricos e contos de fadas, em que uma situação
inicial de equilíbrio é quebrada por algum motivo de conflito ou insegurança.
Afirma Campbell (1995, p. 138) que “a façanha convencional do herói
começa com alguém a quem foi usurpado alguma coisa, ou que sente estar faltando
15
No ensaio “Uma Chave-Mestra para o Finnegans Wake”, Joseph Campbell e Henry Morton
Robinson expressam a ideia do herói de mil faces: “Finn tipifica todos os heróis – Thor, Prometeu,
Osíris, Cristo, Buda – em cuja vida e através de cuja inspiração a raça humana se alimenta. E é
porque Finn volta de novo (Finn-again) – em outras palavras, pela reaparição do herói – que a força e
a esperança são devolvidas à humanidade” (CAMPBELL; ROBINSON, 1971, p. 107-108).
69
algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da
sociedade”. Este é um dos sinais do chamado do herói, que pode ocorrer de várias
maneiras. Seja qual for a forma do chamamento o “indivíduo entra numa relação
com forças que não são plenamente compreendidas [...] produzidas por nascentes
inesperadas [...] tão profundas quanto a própria alma” (CAMPBELL, 1995, p. 60)
A resposta ao chamamento pode ser voluntária ou provocada por situações
alheias à vontade do herói. Este pode ser arrebatado por forças desconhecidas e
irresistíveis; atraído por algum fenômeno estranho ou, ainda, enfeitiçado por seres
sobrenaturais, detentores de poderes mágicos. Conceição Evaristo coloca sua
personagem, Ponciá, em situação de desequilíbrio e desconforto: a família
paupérrima, as ausências do pai, o isolamento de qualquer contato com outras
pessoas, e, como fator decisivo para a separação de Ponciá de seu próprio mundo,
o sentimento de incompletude da heroína, que não reconhece sequer seu próprio
nome.
Mas compete ao herói aceitar ou recusar o chamado, que constitui a
primeira etapa, a separação. Se aceitar, perceberá que não está só: contará com o
auxílio de um ajudante, com frequência, um ancião ou anciã detentor de sabedoria,
que irá ajudá-lo a entender e aceitar o auxílio sobrenatural para enfrentar obstáculos
na jornada. Se recusar, poderá ficar enfeitiçado para sempre ou depender, para ser
salvo, da intervenção de outros heróis (CAMPBELL, 1995, p. 39). O herói difere dos
outros membros da comunidade por aceitar o convite e ser compelido a ultrapassar
o limiar do mundo conhecido, para tomar o caminho da aventura. Já as pessoas
comuns preferem permanecer dentro do limiar da prudência, onde se sentem
seguras e protegidas pelo meio social, receosas de se aventurar por lugares
desconhecidos e perigosos.
70
O herói que falha na missão de conquistar ou aplacar a força do limiar é
jogado no desconhecido, metaforizado por Campbell como o ventre da baleia, dando
a impressão de que morreu. A região desconhecida pode ser uma terra distante ou
um profundo estado onírico, mas pode ser também uma floresta, um mundo
subterrâneo: “os exemplos podem ser multiplicados, ad infinitum, vindos de todas as
partes do planeta” (CAMPBELL, 1995, p. 66).
Quando ultrapassar o limiar, o herói está pronto para a iniciação que se
constitui em percorrer o caminho do aprendizado, ponteado de provações, rumo à
apoteose. Na superação dos obstáculos, o herói descobre um poder que o sustenta
em sua jornada sobre-humana, auxiliado pelos agentes sobrenaturais que havia
encontrado logo ao aceitar o chamado.
Na fase do retorno, o herói poderá encontrar ainda algumas dificuldades e
mesmo recusar-se a regressar a seu mundo. Se assim acontecer, receberá
novamente um auxílio externo, para que possa cumprir a jornada.
A circularidade do enredo do romance Ponciá Vicêncio, que postulamos
acompanhar em paralelo as fases do monomito, bem como os significados
subjacentes à personagem como elo mítico entre as gerações, justificam a leitura
arquetípica do romance. O aspecto mitológico é de total relevância no romance de
Evaristo, cuja personagem título, Ponciá Vicêncio, encarna à perfeição o herói ou
heroína dos contos folclóricos e populares que deve afastar-se dos seus, em busca
da benesse final.
71
3 A TRAJETÓRIA CÍCLICA DO MOMONITO EM PONCIÁ VICÊNCIO
Não há nenhum fenômeno natural e nenhum
fenômeno da vida humana, que não seja passível
de uma interpretação mítica e que não peça uma tal
interpretação.
Ernst Cassirer16
Dedicado à análise do romance, o terceiro capítulo acompanha a jornada
mítica da heroína, cujo ponto de partida é também o ponto de chegada, de onde o
título “trajetória cíclica”. Estruturou-se a análise da personagem, Ponciá, conforme
reorganização das fases do monomito, indicadas por Campbell: separação,
iniciação e retorno. No estudo meticuloso dos mitos heroicos de diversos povos e
períodos da história da humanidade, na obra seminal O herói de mil faces, Campbell
subdivide as três fases da aventura do herói em 17 etapas descritivas.
A AVENTURA DO HERÓI
A partida
1. O chamado da aventura
2. A recusa do chamado
3. O auxílio sobrenatural
4. A passagem pelo primeiro limiar
5. O ventre da baleia
A iniciação
1. O caminho de provas
2. O encontro com a deusa
3. A mulher como tentação
4. A sintonia com o pai
5. A apoteose
6. A bênção última
O retorno
1. A recusa do retorno
16
CASSIRER (1994, p. 123).
72
2. A fuga mágica
3. O resgate com auxílio externo
4. A passagem pelo limiar do retorno
5. Senhor dos dois mundos
6. Liberdade para viver
(CAMPBELL, 1995, p. 5-6)
Considerando a proposta mais restrita desta pesquisa, algumas subdivisões
foram conjugadas ou, no caso de pouca aplicabilidade ao texto de Evaristo,
eliminadas. Para tornar mais efetiva a utilização do modelo de Campbell, tomaramse as etapas selecionadas como pontos de análise, identificados por referências ao
romance. Na primeira fase, denominada o mundo conhecido, analisou-se a
estranheza com o próprio nome, a semelhança com Vô Vicêncio e a ausência do
pai. No caminho de provas que constituem a iniciação da heroína, são comentados,
a passagem pelo primeiro limiar, a cidade estranha, o primeiro retorno e o
silenciamento. Para fechar a trajetória na fase do retorno, foram considerados: a
recusa do chamado, a fuga mágica, o resgate com auxílio externo, a herança de Vô
Vicêncio e a liberdade para viver.
Como em toda narrativa em prosa ─ especificamente, neste caso, nos mitos
e contos populares─ a trama se desenvolve a partir da ruptura da situação inicial de
equilíbrio por conflitos internos ou externos ao personagem: morte na família; falha
das colheitas; desastres naturais, ataques de animais ou violência dos próprios
homens. Entre a ruptura ─ ou separação, ou afastamento ─ e a iniciação, indica
Campbell, o herói pode hesitar e adiar o início da jornada. Seria a recusa ao primeiro
chamado, por covardia ou medo.
O processo de iniciação dos meninos nas sociedades tribais é traumático:
separação da mãe, testes de coragem, provas de vigor físico e de resistência à dor.
A iniciação das meninas ─ nos cuidados da casa e no cultivo da terra; no preparo de
73
remédios e trato dos doentes; na confecção de roupas e utensílios domésticos, e na
alimentação da família ─ dispensa afastamento. É feita em casa no convívio diário
com a mãe. Ponciá é submetida a todos os rituais da iniciação feminina, com o
acréscimo do aprendizado da arte de modelar o barro, que faz dela testemunha da
existência de seu avô, “o homem que ela havia copiado de sua memória para o
barro” (EVARISTO, 2003, p. 29). De acréscimo, Ponciá é escolhida também para
desempenhar o papel do herói masculino e ingressar no caminho das provas.
As características que aproximam Ponciá de mundos que vão além dos
limites do factual ─ a visão da misteriosa mulher transparente no milharal, a
reprodução no próprio corpo da postura do avô ─ justificam a escolha da abordagem
arquetípica, especificamente do modelo do monomito de Joseph Campbell, para a
análise da personagem. Parece-nos a mais adequada para os propósitos deste
trabalho: verificar no romance de Evaristo seu objetivo como escritora negra
engajada na tarefa de dar voz a seu povo, mediante o emprego de imagens,
personagens, desenhos narrativos, temas e outros recursos literários característicos
da cultura negra.
A narrativa é feita da perspectiva de uma voz onisciente, em terceira pessoa,
que se desloca no tempo para acompanhar o pensamento da personagem, e iniciase em media res: “Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio.
Recordou o medo que tivera durante toda a sua infância. Diziam que menina que
passasse por debaixo do arco-íris virava menino” (EVARISTO, 2003, p. 13). A visão
do arco-íris tem mais de uma função no romance, desde a passagem de abertura,
na qual esclarece a sequência temporal e identifica o espaço da narrativa.
Naquela tarde, Ponciá Vicêncio olhava o arco-íris e sentia um certo temor. Fazia
tanto tempo que ela não via a cobra celeste. Na cidade, depois de tantos anos fora
74
da terra, até se esquecia de contemplar o céu. (EVARISTO, 2013, p. 14. Ênfase
acrescentada)
A percepção de que está há anos fora da terra, provocada pelo arco-íris,
informa ao leitor o esquema espaço-temporal da narrativa e os sentimentos da
personagem: a cidade que não é a terra, a sua terra, aquela que lhe pertence, mas
um espaço neutro, onde o tempo se mede em número de anos não definido. É a
aparição de um enorme e multicolorido angorô, no vocabulário banto, que encerra o
ciclo e, na frase final, a narrativa em si.
Lá fora, no céu cor de íris, um enorme angorô multicolorido se diluía lentamente,
enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança de uma memória reencontrada pelos
seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio. (EVARISTO, 2003, p.
128)
Ponciá está de volta à terra, mas sua imagem não é a do herói vitorioso:
Luandi José Vicêncio, o irmão, olha com tristeza o rosto conturbado de Ponciá, que
caminhava em círculos “enquanto todo o seu corpo estremecia num choro doloroso
e confuso” (EVARISTO, 2003, p. 127). No retorno, dependendo das escolhas feitas
e ensinamentos conquistados na jornada, poderá ocorrer um processo interno de
transformação do herói. Campbell expande a explicação:
O trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoaram o herói, ele agora retorna
sob sua proteção (emissário); se não for este o caso, ele empreende fuga. No limiar
do retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói emerge do reino
do terror (retorno, ressurreição). (CAMPBELL, 1995, p. 242)
Ao emergir do reino do terror ─ a cidade inóspita e o barraco miserável na
favela, onde o amor se transformara em repulsa e indiferença ─ Ponciá isola-se
dentro de si mesma. Foge do mundo das coisas materiais para o mundo mítico, com
que sempre se identificou. Lá encontraria refúgio nas águas do rio, que a guardariam
75
na segurança do ventre materno. Não sem antes deixar aos seus a herança de uma
memória redentora.
3.1 O MUNDO CONHECIDO
Um dos fatos do enredo que nos leva a relacionar a trajetória de Ponciá com
a jornada do herói, descrita por Campbell, ocorre antes de seu nascimento para o
mundo factual: o bebê, no ventre da mãe já apresentava sinais de que seria
diferente, pois ria e chorava. “O aviso de que a menina estava apenas emprestada
no seu ventre foi dado ali pelos sete meses” (EVARISTO, 2003, p. 124).
Ponciá Vicêncio menina chorou três dias seguidos na barriga da mãe [...] e, para
acalmar a menina, a mãe intuitivamente caminhou para o rio e à medida que
adentrava nas águas a filha ia se acalmando. [...] Quatro luas depois, nasceu
gargalhando um riso miúdo, mas profundo, de criança bem pequena. Maria
Vicêncio guardou o segredo de todos, sabia que sua filha seria diferente de todos
os outros moradores. [...] Nem para o marido falou, só para Nêngua Kainda, aquela
que tudo sabia, mesmo se não lhe dissessem nada. (EVARISTO, 2003, p. 125)
Capaz de enxergar de olhos abertos e fechados, desde pequena “assistia a
coisas que muita gente não percebia” (EVARISTO, 2003, p. 42). O ser diferente,
porém, não impede a menina de ter uma infância feliz. Do presente da narrativa, na
favela da cidade grande, em meio aos obstáculos do caminho de provas, Ponciá
reconstrói de memória seu mundo conhecido, a Vila Vicêncio.
Naquela época Ponciá gostava de ser menina. Gostava de ser ela mesma. Gostava
de tudo. Gostava. Gostava da roça, do rio que corria entre as pedras, gostava dos
pés de pequi, dos pés de coco-de-catarro, das canas e do milharal. Divertia-se
brincando com as bonecas de milho, ainda em pé. Elas eram altas e, quando dava
o vento, dançavam. Ponciá corria e brincava entre elas. O tempo corria também.
Ela nem via. O vento soprava no milharal, as bonecas dobravam até o chão. Ponciá
Vicêncio ria. Tudo era tão bom! (EVARISTO, 2003, p. 13)
76
Os aspectos físicos desse mundo idílico foram agrupados em torno dos
quatro elementos da natureza, apontados pelos filósofos pré-socráticos: água, terra,
fogo, e ar. O elemento água é inerente à natureza da personagem, cujas ações no
enredo estão intimamente ligadas às águas-mãe, o rio, o centro do mundo
conhecido de sua infância. No seio das águas, o elemento de que a vida se
alimenta, Ponciá, ainda no ventre materno, deixa de chorar. É no rio que Ponciámenina apanha água e argila para a modelagem das peças que ela e a mãe
criavam. Nesses tempos de roça, de casa de pau-a-pique, de chão de barro batido,
de bonecas de espigas de milho, a menina gostava de ser mulher e de aprender as
tarefas que lhe competem. Não se considerava necessário aprender a ler.
Na roça, outro saber se fazia necessário. O importante na roça era conhecer as
fases da lua, o tempo de plantio e de colheita o tempo das águas e das secas. A
garrafada para o mal da pele, do estômago, do intestino e para as excelências das
mulheres. Saber a benzedura para o cobreiro, para o osso quebrado ou rendido,
para o vento virado das crianças. (EVARISTO, 2003, p. 28)
Da mãe, soberana, forte e serena, Ponciá recebe, além da instrução nos
deveres de mulher e mãe, o respeito pela natureza: amar a terra dadivosa; servir-se
da água pura do rio; deleitar-se com o vento que agita as plantações; resguardar a
brasa que reacenderá o fogo. Das mulheres da vila ouve as lendas e “causos” que
atravessam as gerações: menina que passasse debaixo do arco-íris virava menino.
Cheia de medo, Ponciá ficava horas e horas na margem do rio, esperando a cobra
celeste beber água, para que ela pudesse apanhar o barro.
A crença de que o arco-íris bebe água é disseminada entre os sertanejos,
resquício dos temores do homem primitivo diante dos fenômenos da natureza. A
crença popular foi registrada por Câmara Cascudo no livro Tradição, ciência do
77
povo. Pesquisas na cultura popular do Brasil (1971), onde informa que os
agricultores não gostam do arco-íris por beber a água dos rios, açudes e lagoas.
O sertanejo não gosta do arco-íris porque furta a água. No litoral se distrai bebendo
água nos rios, lagoas, fontes. Ao principio da sucção é fino, transparente, incolor.
Depois fica largo, colorido, radioso. Farto, desaparece. Quando se dissipa, deixa o
céu limpo de névoas, de nuvens anunciando chuvas. (CASCUDO, 1971, p. 34)
Em várias civilizações, como as dos gregos, chineses, egípcios e africanos,
o arco-íris tem diversos significados, mas em todas elas é comum o conceito de ser
“o caminho e mediação entre o céu e a terra. É a ponte de que se servem deuses e
heróis, entre o outro-mundo e o nosso” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 77).
Segundo o conceito banto17, é uma divindade que se relaciona com o equilíbrio do
próprio planeta, fazendo a ligação energética entre céu e terra. No candomblé está
relacionado ao orixá Oxumaré, que se manifesta alternadamente com aspecto
feminino e masculino, e pode ser representado como uma cobra colorida. É também
às margens deste rio que se percebe o crescimento da menina Ponciá que nunca
deixa de ter medo de passar debaixo do angorô e expor-se aos malefícios da cobra
colorida.
Ela ia buscar o barro na beira do rio e lá estava a cobra celeste bebendo água [...]
Às vezes, ficava horas e horas na beira do rio esperando a colorida cobra do ar
desaparecer [...]O arco-íris era teimoso! [...] Juntava, então, as saias entre as
pernas tampando o sexo e, num pulo, com o coração aos saltos, passava por
debaixo do angorô. Depois se apalpava toda. Lá estavam os seinhos, que
começavam a crescer. Lá estava o púbis bem plano, sem nenhuma saliência a não
ser os pelos. Ponciá sentia um alívio imenso. (EVARISTO, 2003, p. 13)
A água é para Ponciá o elemento salvador, profundamente imbricado em
sua relação com o mundo e indicativo de seu estado interior, quando percorre o
17
banto e não bantu, conforme definição de Nei Lopes (2003, p. 39).
78
caminho das provas. O dizer de Bachelard ─ “O ser ligado à água é um ser em
vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona
constantemente” (BACHELARD, 1998, p. 7) ─ aplica-se apropriadamente à Ponciá
adulta, que se afasta do mundo à sua volta por longos períodos de ausência “na
qual se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia de seu próprio eu”
(EVARISTO, 2003, p. 45).
Nesse mundo perfeito, que Ponciá reconstrói de memória, já se notam sinais
de instabilidade, que se pode interpretar como prenúncio do chamado da aventura
(CAMPBELL, 1995, p. 7), a que o herói/heroína poderá atender ou não: a
estranheza com o próprio nome “Ponciá Vicêncio”; a reprodução da aparência física
de Vô Vicêncio; as repetidas ausências do pai, cuja morte sinaliza o ápice da crise e
a decisão súbita de Ponciá de partir para a aventura.
Em Morfologia do conto maravilhoso, Vladmir Propp aponta que a morte do
pai ou da mãe é o elemento determinante do afastamento do herói/heroína dos
contos populares, em busca de algo que possa suprir essa falta: a conquista de um
tesouro em pedras preciosas e ouro, ou do tesouro metafórico do conhecimento das
próprias forças para enfrentar o mundo.
É divulgada a notícia do dano ou da carência, faz-se um pedido ao herói ou lhe é
dada uma ordem, mandam-no embora ou deixam-no ir [...]. Esta é a função que
introduz o herói no conto [...]. O herói-buscador aceita ou decide agir [...]. Às vezes,
este momento não é mencionado com palavras, mas a decisão de vontade precede
evidentemente a procura. O herói deixa a casa. (PROPP, 2010, p. 36-38)
Ponciá Vicêncio é versão feminina do herói-buscador, definido por Propp,
que é chamado à aventura porque tem qualidades excepcionais. Ponciá é
predestinada a grandes realizações desde o útero materno. Só estará pronta para
79
aludir ao chamado, porém, na passagem para a adolescência, à medida que seu
mundo conhecido mostra sinais de instabilidade.
3.1.1 A estranheza com o próprio nome
No seu mundo conhecido, mesmo paupérrimo, Ponciá era feliz. No entanto,
os sinais de instabilidade se multiplicam. Desde menina, sentia certa inquietude que
se manifesta na estranheza com o próprio nome.
Menina, tinha o hábito de ir à beira do rio e lá, se mirando nas águas, gritava o
próprio nome: Ponciá Vicêncio! Ponciá Vicêncio! Sentia-se como se estivesse
chamando outra pessoa. Não ouvia o seu nome responder dentro de si. Inventava
outros Pandá, Malenga, Quieti, nenhum lhe pertencia também. Ela inominada,
tremendo de medo, temia a brincadeira, mas insistia. A cabeça rodava no vazio, ela
vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. Tinha, então, vontade de choros e
risos. (EVARISTO, 2003, p.19)
Mais tarde, quando aprendeu a escrever, descobriu no acento agudo de
Ponciá um exercício de autoflagelo, “como se estivesse lançando sobre si mesma
uma lâmina afiada a torturar-lhe o corpo” (EVARISTO, 2003, p. 29).
O sobrenome é conhecido, tem procedência europeia e pertence àquele que
é o dono das terras e da vida das pessoas que moram na vila. É o símbolo da
escravização e objetificação a que seu povo foi submetido. Vicêncio, que em latim
significa aquele que vence, é uma metáfora da relação entre o poderio do senhor e a
submissão dolorida do escravo, cujas consequências seus descendentes carregam
até o dia de hoje.
Essa marca de subalternidade, para Assis Duarte, denuncia a negação dos
requisitos mínimos de cidadania e “estende-se pelo penoso circuito de vazios e
derrotas” (DUARTE, 2006, p. 307). O nome Vicêncio substitui o ferro que marcava
os corpos de negros escravizados.
80
O vazio existente em Ponciá, referido inúmeras vezes no decorrer da
história, toma diversas configurações: perda de contato com sobrenatural (a mulher
alta), o modo de olhar o vazio.
O “sentir-se ninguém” equivale em Ponciá ao sentimento do homem negro
de ser desprovido de história e de subjetivação própria, resultante, como informa
Albert Memmi, do processo de desumanização a que foi submetido o colonizado e
mais cruelmente o negro escravizado (MEMMI, 1967, p. 82-86).
Uma das tarefas que Ponciá desempenha com a mãe é a arte de moldar o
barro que, segundo Bachelard, representa a maleabilidade própria do feminino e da
maternidade refletida na arte. No contexto do romance, o barro do fundo das águas
é o material a ser trabalhado pelas duas artífices e remodelado como forma de
recuperação da ancestralidade e da identidade negra. É o elo entre os membros da
família. As peças eram cozidas e saíam duras, difíceis de quebrar, como elas
mesmas, mulheres resistentes. “Eram trabalhos que contavam partes de uma
história. A história dos negros talvez” (EVARISTO, 2003, p. 126). Representam a
preservação de uma cultura e de um modo de vida. “Criações feitas, como se as
duas quisessem miniaturar a vida, para que ela coubesse e eternizasse sobre o
olhar de todos, em qualquer lugar” (EVARISTO, 2003, p. 105). A criação artística
permite a Ponciá identificar-se como membro de seu grupo ancestral.
Os estudos de Paul Gilroy apresentam a expressão artística como mediação
do sofrimento causado pelo intenso processo de perdas a que foram submetidos os
povos da diáspora negra. O sofrimento é o ingrediente que impulsiona a arte, em
busca de fragmentos da história. Esta junção está representada na figurinha de
barro de Vô Vicêncio que Ponciá molda, na tentativa de reaproximar-se de sua
história familiar. “Um homem baixinho, curvado, magrinho feito graveto e com o
81
bracinho cotoco para trás [...]. O pouco tempo em que conviveu com o avô, bastou
para que ela guardasse as marcas dele” (EVARISTO, 2003, p. 21).
Maria Vicêncio, assustada com a fixação da filha com a imagem do avô,
cujos trejeitos reproduzia no próprio corpo, sente vontade de quebrar a figurinha.
A mãe pegou o trabalho e teve vontade de espatifá-lo, mas se conteve, como
também conteve o grito. Passados uns dias, o pai veio da terra dos brancos
trazendo os mantimentos. A mãe andava com o coração aflito e indagador. O que
havia com aquela menina? Primeiro andou de repente e com todo o jeito do avô...
Agora havia feito aquele homenzinho de barro, tão igual ao velho. (EVARISTO,
2003, p. 21)
Mais tarde, no caminho das provas, a escultura de Vô Vicêncio será o
amuleto que põe Ponciá em contato com os ancestrais mortos e reacende a
esperança de reencontrar vivos a mãe e o irmão (EVARISTO, 2003, p. 73-75).
A menina Ponciá recebe o auxílio externo, que Campbell destaca na jornada
do herói mítico. O auxílio sobrenatural do mito assume no romance a forma da vinda
de padres missionários para Vila Vicêncio que oferece a Ponciá a oportunidade de
aprender a ler. Quando já conseguia formar palavras, a missão e as aulas acabam,
mas Ponciá não desiste: “Foi avançando sozinha e pertinaz pelas folhas da cartilha.
E em poucos meses já sabia ler” (EVARISTO, 2003, p. 28). Acentuam-se ainda mais
as características que tornam Ponciá diferente, que a preparam para tornar-se a
heroína da jornada mítica.
Maria Vicêncio reconhece as qualidades excepcionais da filha: “Era melhor
deixar a menina aprender a ler. Quem sabe, a estrada da menina seria outra”
(EVARISTO, 2003, p.25). A palavra “estrada” é sinônimo de “caminho” e torna
concreta a possibilidade de afastamento de Ponciá do lugar onde nascera, se não
82
fisicamente, ao menos espiritualmente, negando-se a viver submissa ao poder do
branco.
Por algum tempo Ponciá hesita. Recorda-se de histórias de muitos que
haviam partido para a cidade e, como tudo deu errado, tornaram-se mendigos. Mas
acreditava que para ela as oportunidades seriam diferentes, “haveria de ser uma
história de final feliz” (EVARISTO, 2003, p. 37).
Como todo herói, Ponciá é corajosa, determinada e persistente, alguém que
não desiste de seus objetivos. Ponciá tem dons que transcendem o humano, capaz
de “enxergar de olhos fechados” e tem visões sobrenaturais:
Um dia ela viu uma mulher alta, muito alta que chegava ao céu. Primeiro ela viu os
pés da mulher, depois as pernas, que eram longas e finas, depois o corpo, que
transparente e vazio. Sorriu para a mulher, que lhe correspondeu o sorriso.
(EVARISTO, 2003, p. 13-14)
Maria Vicêncio fez com que o marido derrubasse o milharal. Ponciá chorou,
mas não viu mais a mulher alta. “Tudo era um só vazio”. A sensação de vazio vai se
perpetuar na trajetória de Ponciá, o ser escolhido para tarefas excepcionais o que
nos reporta a Joseph Campbell:
O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas
limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas,
humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das
fontes primárias da vida e do pensamento humanos. (CAMPBELL, 1995, p. 28)
3.1.2 A semelhança com Vô Vicêncio
À medida que Ponciá crescia a semelhança com Vô Vicêncio se acentuava.
Além do hábito de andar com um dos braços escondido às costas e a mão fechada
83
como se fosse cotó, Ponciá herdara do avô o modo de olhar o vazio: “Diziam que
ela, assim como ele gostava de olhar o vazio” (EVARISTO, 2003, p. 29).
Para pôr em relevo os traços que aproximam a heroína de seu ancestral,
listamos características paralelas das duas personagens.
QUADRO 1 – CARACTERÍSTICAS PARALELAS DAS DUAS PERSONAGENS18
VÔ VICÊNCIO
Ex-escravo
PONCIÁ
Nasce livre.
Três ou quatro filhos são vendidos em
pleno vigor da Lei do Ventre Livre.
Revolta e desespero. Mata a mulher com
uma foice e tenta o suicídio.
Relação de violência com o filho. Bate-lhe
com o braço cotoco que “pesava como se
fosse de ferro”.
Sofre 7 abortos por problemas
sanguíneos.
Queima jornais e revistas para fugir à
realidade aviltante.
Sofre violência do marido. “Deu-lhe um
soco violento nas costas, gritando pelo seu
nome. Ela lhe devolveu um olhar de ódio.”
Rasga o documento de posse das terras.
Parte para a cidade.
Decepa a própria mão.
Imita o braço cotoco do avô. As mãos
sangram quando não trabalham o barro.
Choro e riso (loucura).
Choro e riso (loucura)
Escravidão física, econômica e social do
nascimento à morte.
Anda em círculos, agitando as mãos.
Vive a olhar o vazio.
Escravidão física, econômica e social no
século XX.
Insatisfação com a vida miserável.
Insatisfação com a vida miserável.
Resistência à opressão.
Resistência à opressão.
Anda sem rumo, contemplando o vazio.
Cenas que remetem à presença quase física do avô é parte de uma
revelação que se dará ao final do romance, sobre a herança de Vô Vicêncio, da qual
Ponciá ouve falar desde criança. Ela não sabe o significado da palavra e tem receio
de perguntar, pois percebe que as pessoas param de falar sobre o assunto quando
ela se aproxima.
A menina ouvira dizer algumas vezes que Vô Vicêncio havia deixado uma herança
para ela. Não sabia o que era herança, tinha vontade de perguntar e não sabia
como. Sempre que falavam dele (falavam pouco, muito pouco) a conversa era
18
Ponciá Vicêncio, 2003.
84
baixa, quase cochichada e quando ela se aproximava, calavam. (EVARISTO, 2003,
p. 29)
A perda do avô, que se isola no seu mundo de risos e choros, afeta
profundamente os parentes e a comunidade. Vô Vicêncio morre rindo e chorando,
sem ter atingido o sonho de liberdade. O filho continua semiescravo do
“coronelzinho,” filho do patrão e submisso a este último no trabalho da lavoura.
Legalmente livre, continua escravo de sua condição social, até a morte súbita que a
mulher e a filha não conseguem aceitar.
Ponciá ficou muito tempo, anos talvez, esperando que o pai pudesse surgir retornar
a qualquer hora e por qualquer motivo. A mãe, talvez, partilhasse desta mesma
sensação, pois sempre conservou as coisas do homem no mesmo lugar [...]
caminhava para frente cinco passos e com um gesto longo e firme abraçava o
vazio. A mulher não acreditava que seu homem tivesse apartado de vez.
(EVARISTO, 2003, p. 31-32)
Passa para a próxima geração, Ponciá e Luandi, a tarefa de buscar a
herança de Vô Vicêncio.
3.1.3 A ausência do pai
A menina convivera pouco com o pai, constantemente no trabalho da roça
na terra dos brancos. A vida dele repetia em muito a vida de Vô Vicêncio, marcada
por humilhações e perdas. O pai de Ponciá nascera livre, mas vivera como escravo
desde a infância. Ainda criança acompanhava os pais no trabalho rude na lavoura
do homem branco. Cabia a ele ser pajem do sinhozinho.
Tinha a obrigação de brincar com ele. Era o cavalo onde o mocinho galopava
sonhando conhecer todas as terras do pai. Tinham a mesma idade. Um dia o
coronelzinho exigiu que ele abrisse a boca, pois queria mijar dentro. O pajem abriu.
A urina do outro caia escorrendo quente por sua goela e pelo canto de sua boca.
85
Sinhô-moço ria, ria. Ele chorava e não sabia o que mais lhe salgava a boca, se o
gosto da urina ou se o sabor de suas lágrimas. (EVARISTO, 2003, p. 17)
Indignado, o menino questiona o pai. Se eram livres, por que os negros não
iam embora à procura de outros lugares e trabalhos? A resposta do pai foi uma
gargalhada rouca de meio riso e de meio pranto. “O homem não encarou o menino.
Olhou o tempo como se buscasse no passado, no presente e no futuro uma
resposta precisa, mas que estava a lhe fugir sempre” (EVARISTO, 2003, p. 17-18).
A vida do pai de Ponciá reflete a época da pós-abolição da escravatura.
Muitos ex-escravos e suas famílias foram abandonados à própria sorte, tendo que
mendigar nas ruas ou continuar trabalhando como escravos. A família de Vô
Vicêncio permaneceu na fazenda. Segundo a antropóloga Olívia Maria Gomes da
Cunha, as relações de sujeição desumanizadora, próprias do cativeiro, foram
apenas requalificadas depois da abolição.
A sujeição, a subordinação e a desumanização, que davam inteligibilidade à
experiência do cativeiro, foram requalificadas num contexto posterior ao término
formal da escravidão, no qual relações de trabalho, de hierarquias e de poder
abrigaram identidades sociais se não idênticas similares àquelas que determinada
historiografia qualificou como exclusivas ou características das relações senhor –
escravo. (CUNHA; GOMES, 2007, p. 11)
O pai de Ponciá era revoltado; não entendia porque ainda permaneciam nas
terras do coronel se eram livres. Com o passar dos anos, as marcas da humilhação
e a conscientização de uma falsa alforria transformaram revolta em silêncio,
“aprendendo a disfarçar o que lá de dentro vinha. Não chorava e também guardava
o riso [...] os resmungos caíam para si próprio, numa discordância funda e nula”
(EVARISTO, 2003, p. 30). O homem percebia que a situação na Vila Vicêncio não
mudara e não mudaria. “E quem mudaria?” pergunta-se Negro Alírio, em Becos da
86
memória. “Quem mudaria seria quem estivesse no sofrimento. Quem arreda a pedra
não é aquele que sufoca o outro, mas justo aquele que sufocado está” (EVARISTO,
2013, p.191). A personagem do mundo referencial, recriada por Evaristo em seu
livro de memórias, emite julgamentos que se repetem na mente do pai de Ponciá, a
personagem de ficção. A situação opressiva continuaria a mesma dos tempos de
seu pai, nos tempos futuros do filho Luandi.
E numa tarde clara, em que o sol cozinhava a terra e os homens trabalhavam na
colheita, enquanto todos entoavam cantigas ritmadas com o movimento do corpo
na função do trabalho, naquela tarde, o pai de Ponciá Vicêncio foi se curvando, se
curvando ao ritmo da música, mas não colheu o fruto da terra, apenas à terra se
deu. (EVARISTO, 2003, p. 30)
O retorno solitário de Luandi José Vicêncio, o irmão de Ponciá, anuncia o
desenlace fatal. O susto de Ponciá “talvez tivesse sido maior que a dor” (EVARISTO,
2003, p. 30). Maria Vicêncio não perguntou nada. Sabia de tudo.
Naqueles dias sonhara várias vezes com o seu homem. Só não conseguia ver rosto
dele. Ora ele estava de costas, ora com o chapéu tão afundado na cabeça que
chegava a lhe cobrir a face. E numa tarde, em que o tempo estava claro e quente,
ela escutou cantiga, choros e lamentos. Nos lamentos reconheceu a voz do filho.
(EVARISTO, 2003, p. 31)
Mãe e filha são incapazes de aceitar a morte não anunciada. Ponciá ficou
muito tempo, anos talvez, esperando que o pai pudesse retornar. A mãe sequer se
desfez das coisas do marido. Predomina nas duas mulheres a sensação de vazio.
Ponciá precisava encontrar um caminho diferente. “Cansada da luta insana, sem
glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres. Acreditava
que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova” (EVARISTO, 2003, p.
33).
87
Ponciá num impulso sai da vila para a cidade. É o momento da separação e
da partida. Continuar na Vila Vicêncio significa morrer sem lutar, sem buscar um
novo caminho. Por isso parte repentinamente, sem se despedir do irmão. Ela sabe
os perigos que vai enfrentar.
Algumas pessoas saíam e ficavam bem; entretanto, eles só relembravam, só
repetiam os casos infelizes, as histórias de fracasso [...]. Outros e outros casos de
conhecidos que saíam do povoado a caminho da cidade e eram roubados na
estação de chegada. Perdiam o pouco que tinham e ali mesmo viraram mendigos.
Outros não conseguiam trabalho ou ganhavam pouquíssimo e não tinham como
viver. Procurou se lembrar de algum que tivesse tido um final feliz. Não lembrou.
Esforçou mais e não atinou com nenhum [...]. Não tinha importância. O caso dela,
quando voltasse para buscar os seus, haveria de ser uma história de final feliz.
(EVARISTO, 2003, p. 37)
Ponciá, de fato, é a heroína que detém dons excepcionais, para enfrentar o
caminho de provas, já ultrapassou também o horizonte da vida familiar: “os velhos
conceitos, ideais e padrões emocionais já não são adequados; está próximo o
momento da passagem por um limiar (CAMPBELL, 1995, p. 60).
A chegada à cidade marcaria o primeiro passo na fase da iniciação, caso
seguíssemos ponto a ponto o esquema do monomito, proposto por Campbell.
Optou-se por começar a discutir o processo de iniciação ainda na fase do mundo
conhecido,por ser mais adequado para a análise do romance de Evaristo.
Substituiu-se, então, na segunda fase da estrutura, o título iniciação por caminho
de provas que leva diretamente à análise dos obstáculos no trajeto da heroína.
3.2 O CAMINHO DE PROVAS
Campbell afirma que toda trajetória humana é sempre uma jornada em que o
indivíduo participa de uma ordem maior que ele: “Os mitos nos guiam por meio dos
88
rituais, dos ritos de iniciação, de fertilidade, de puberdade e fúnebres. Eles guiam o
indivíduo pelo curso inevitável da vida (CAMPBELL, 1995, p. 193).
A partida original para a terra das provas representou, tão-somente, o início da
trilha, longa e verdadeiramente perigosa, das conquistas da iniciação e dos
momentos
de
iluminação.
Cumpre
agora
matar
dragões
e
ultrapassar
surpreendentes barreiras — repetidas vezes. (CAMPBELL, 1995, p. 62)
As provas que se apresentam são de natureza diversa. No romance Ponciá
Vicêncio, os dragões que devem ser enfrentados representam metaforicamente os
atos de violência praticados contra o povo negro, através de séculos de
escravização: separação do mundo conhecido; crueldade física e mental; perda da
identidade como ser humano; reificação.
Diferentemente de seus ancestrais africanos, a decisão de Ponciá de
abandonar o mundo conhecido é voluntária. Ela precisa fugir da pobreza em que
haviam vivido pais e avós, sujeitos a servir até a morte os donos da terra, fugir de
um mundo em que os negros eram donos apenas da miséria, da fome e do
sofrimento. Atende, portanto, ao chamado da aventura.
3.2.1 Passagem pelo primeiro limiar
A passagem pelo limiar é o primeiro passo no desconhecido (CAMPBELL,
1995, p. 91). Ao cruzar a fronteira, a heroína deixa para trás a vida anterior e
caminha rumo a uma nova etapa. A partir desse momento, tem início o processo de
renascimento e despertar para uma aventura existencial desconhecida, ainda não
explorada. Conforme nos informa Campbell:
Se, no entanto, o chamado é levado em consideração, o indivíduo é instado a
engajar-se numa aventura perigosa. É sempre perigosa porque ele sai da esfera
familiar da comunidade. Nos mitos, a representação disso é afastar-se da esfera
89
conhecida em direção ao grande desconhecido. A isso chamo a travessia do limiar.
(CAMPBELL, 1990, p. 138)
A decisão de partir é repentina. Nem sequer se despede do irmão para não
perder a coragem. Sabe que está atendendo ao chamado de uma aventura muito
perigosa.
Resolvera tudo tão rápido. Havia arrumado suas poucas coisas de sopetão e, num
repente, comunicou logo a mãe a decisão de partir. Tinha de ser breve, muito
breve. Não podia ficar ensaiando despedidas. O trem partiria no outro dia cedo. Se
perdesse aquele, só daí alguns tantos dias, quase um mês. Deixava um abraço
para o irmão, não poderia ir às terras dos brancos procurar por ele. (EVARISTO,
2003, p. 38)
Ponciá dirige-se à única estação de trem do vilarejo, onde um trem solitário
passava a cada mês.
A viagem de trem dura três dias e três noites de desconforto, fome e solidão.
A broa de fubá acabara no primeiro dia, então precisava lamber os pedaços de
rapadura “para que eles durassem até ao final do trajeto” (EVARISTO, 2003, p. 35).
Carrega uma trouxa que acomoda desajeitadamente no colo. O medo do
desconhecido, o desejo de romper com as amarras do passado e ao mesmo tempo
a coragem de buscar o novo, “trazia a esperança como bilhete de passagem.
Haveria, sim, de traçar o seu destino” (EVARISTO, 2003, p. 36). A inquietação da
viagem está relacionada com a “imagem realista e cruel de uma certa pobreza na
vida material, apesar das ilusões” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 897).
Ponciá Vicêncio é a primeira pessoa da família a se aventurar fora de casa,
nenhum parente havia ousado tamanha aventura. E quem aceita o desafio é uma
mulher.
90
A criação de uma personagem feminina, imbuída da coragem e decisão de
traçar o próprio destino, reporta-nos às hipóteses levantadas inicialmente neste
trabalho:
A riqueza da dicção poética de Conceição Evaristo ─ como é conhecida nos meios
literários – torna mais enfático o protesto contra o aviltamento da mulher negra e a
necessidade de se fazer ouvir a sua voz como “eco da vida-liberdade”.19
Ultrapassado o primeiro limiar, o herói sofre uma dilaceração, etapa
necessária da jornada. É o que Campbell denomina de o ventre da baleia, uma
referência à saga do profeta Jonas, no Velho Testamento: “A ideia de que a
passagem do limiar mágico é uma passagem para uma esfera de renascimento é
simbolizada na imagem mundial do útero, ou ventre da baleia” (CAMPBELL, 1995, p.
91).
Ponciá emerge da escuridão do ventre da baleia – o trem de ferro – convicta
de que poderá traçar o seu destino. Difere, assim, do pai e de Vô Vicêncio que se
sujeitaram às imposições do mais forte. Para seguir em frente, a heroína deve voltar
as costas ao mundo de onde provém. Mircea Eliade observa que é indispensável a
destruição simbólica do velho mundo, a fim de que o herói mitológico possa
regenerar-se e recuperar a plenitude essencial (ELIADE, 2006, p. 51). Campbell
especifica: “Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem [...] na qual
deve sobreviver a uma sucessão de provas” (1995, p. 102).
O sentimento de solidão e abandono a envolve quando chega à plataforma
de desembarque, mas Ponciá caminha sem olhar para trás, pois teme o desejo do
recuo. É preciso enfrentar o que está por vir. Não há saída. É uma espécie de teste
final que exige sacrifícios e provações. “O herói sabe quando tem que se render e a
19
Ver p. 11.
91
que se render” (CAMPBELL, 1995, p. 189), sujeitando-se a algo maior que a sua
imensa ilusão.
3.2.2 A cidade estranha
Aflita
e
desesperada
no
ambiente
desconhecido,
Ponciá
caminha
rapidamente para fora da estação até uma igreja, cujo relógio enorme apontava para
as seis horas: “Ponciá tinha, então, dezenove anos, sendo capaz ainda de inventar
sentimentos de segurança” (EVARISTO, 2003, p. 35). São duas das raras
referências ao tempo cronológico no romance, que trazem o leitor do mundo onírico
de Ponciá para a concretude do mundo ficcional onde passará a viver.
Na igreja, admira os santos limpos e penteados. Eles deveriam ser mais
poderosos que os da capelinha do lugarejo onde ela havia nascido.
Os de lá eram minguadinhos e malvestidos como todo mundo. Quando as luzes
das velas iluminavam os rostos deles podia-se ver que eles tinham o olhar aflito,
desesperado, como os pecadores ali postados em ladainha. (EVARISTO, 2003, p.
35)
A comparação entre as imagens dos santos estende-se às pessoas que
frequentam os dois locais. Na igreja, as pessoas “combinavam com os santos, são
limpas e com os terços brilhantes nas mãos” (EVARISTO, 2003, p. 35), os
moradores da Vila Vicêncio eram minguadinhos e mal vestidos como os santos de
sua capelinha.
Ponciá sente vergonha do terço de lágrimas de Maria, usado no pescoço
como proteção. Com um movimento rápido enfia o terço na trouxinha. Não
consegue, porém, acompanhar as mulheres na oração da Ave-Maria. Os adjetivos
aflita (os) e desesperada (os), aplicados a Ponciá e aos santinhos da roça, definem
a situação de impotência e estranhamento do negro em ambientes hostis.
92
A dificuldade de comunicação e a indiferença das pessoas configuram mais
uma dura prova que enfrenta na cidade.
A primeira noite é lenta e friorenta. A personificação transfere para a noite as
sensações de Ponciá para quem a noite fria demora muito a passar. Dorme na praça
em frente à igreja junto com outros pedintes; embora cercada de pessoas sentia-se
só, “já havia passado a noite em claro, em festa ou velório, mas nunca sozinha”
(EVARISTO, 2003, p. 40). Na roça nunca havia se sentido só.
O peso da solidão só encontra paralelo na indiferença das pessoas, que
deixam a igreja depois da missa matinal, cujo olhar evita o de uma Ponciá ansiosa,
que tenta comunicar-se. Essa indiferença e desvio de olhar gerado pela presença e
pelas atitudes de Ponciá, reforça as palavras de Homi Bhabha sobre a condição de
alguém que é renegado pela sociedade que o rodeia:
Sempre que “negro sujo” ou “olha, um negro!” não são ditas, mas aparecem em um
olhar, ou são ouvidas no solecismo de um silêncio profundo [...] lembro-me do que
significa ser não apenas um negro, mas um membro dos marginalizados, dos
deslocados, dos diaspóricos. Estar entre aqueles cuja própria presença é “vigiada”
– no sentido de controle social – e “ignorada” – no sentido da recusa psíquica – e,
ao mesmo tempo, sobre determinada – projetada psiquicamente, tornada
estereotípica e sintomática. (BHABHA, 1998, p. 326-327)
Ponciá chegara à cidade certa de que, por saber ler e escrever, sua vida
seria mais fácil. Mal consegue, porém, expressar-se oralmente. Para abordar as
pessoas, que saem da igreja, precisa ensaiar o que dizer: “Decidiu, então, esperar
com as palavras arrumadas” (EVARISTO, 2003, p. 42).
A pessoa que finalmente lhe dá atenção olha “para ela de cima a baixo”,
escreve um endereço em um pedacinho de papel e depois “leu bem alto para Ponciá
Vicêncio” (EVARISTO, 2003, p. 43). Mal vestida e molambenta, a figura de Ponciá
93
corresponde à imagem estereotipada do negro analfabeto, que dificulta uma
existência plena. A forma como nos assumimos ou como os outros nos assumem no
âmbito das relações sociais produzem, segundo Stuart Hall, uma diferença material
nas nossas vidas (HALL, 2003, p. 284). Mas Ponciá traz consigo outro bilhete, “o
bilhete da esperança”, e não se deixa abater. Lê e relê o que está escrito no
papelzinho, antes de buscar a maneira de chegar ao endereço. “Estava feliz, sabia
ler” (EVARISTO, 2003, p. 43). O emprego de doméstica se concretiza e Ponciá
continua feliz.
Errava muito, mas ia aprendendo muito também. Estava de coração leve, achava
que a vida tinha uma saída. Trabalharia, juntaria dinheiro, compraria uma casinha
e voltaria para buscar sua mãe e seu irmão. A vida lhe parecia possível e fácil.
(EVARISTO, 2003, p. 43, Ênfase acrescentada)
Reunir sob o mesmo teto a mãe e o irmão é a bênção última que a heroína
pretende conquistar no final de sua trajetória. Acostumada a poucas coisas, Ponciá
consegue comprar um barraco. Mas falta ainda cumprir a promessa que fizera à mãe
de que “um dia voltaria para buscá-la e ao irmão também. E que, juntos, todos
seriam felizes” (EVARISTO, 2003, p. 36).
Grandes provações, porém, aguardam a heroína. Sabedora de que o irmão
Luandi viera para a cidade, procura-o em vão pela emissora de rádio. O irmão havia
partido por causa dela e se perdera na cidade. Ponciá ganha um aflitivo remorso no
peito. Resta-lhe procurar pela mãe. Ponciá interrompe a jornada para voltar ao seio
materno ─ a terra natal, as águas-mãe, a comunidade de mulheres sábias ─ em
busca do auxílio externo que lhe permita prosseguir.
94
3.2.3 O primeiro retorno
No regresso ao vilarejo fica sabendo que a mãe saíra em andanças. Mesmo
assim sente-se acolhida pela comunidade de mulheres e pela casinha de pau-apique da infância.
Empurrou a porta, que abriu doce e lentamente, como se casa estivesse também a
aguardar por ela o chão de barro batido continuava limpo, as vasilhas de barro que
a mãe fazia estavam arrumadas na prateleira. Em cima do fogão a lenha estavam
as canecas de café, do pai, da mãe, dela e do irmão. Esquecidas de que a vida era
outra no momento, teimosamente se postavam como se estivessem à espera do
líquido, Ponciá correu e abriu a janela de madeira. Um cheiro bom de mato, terra e
chuva invadiu a casa. Com o coração aos pulos, reconciliou-se como lugar.
(EVARISTO, 2003, p. 49)
Movimentos e sons pela casa transportam Ponciá ao passado. Durante a
noite, pai, mãe e irmão vêm habitar seus sonhos. “Quando o sonho se apodera de
nós”, diz Bachelard em A terra e os devaneios do repouso, “temos a impressão de
habitar uma imagem” (1990, p. 76). É o nosso “país de Infância Imóvel, imóvel como
o Imemorial” (p. 25). Ponciá lembra as conversas da mãe com o pai, que balbuciava
respostas à mulher; lembra o irmão Luandi, a quem raramente encontrava,
adormecido no jirau. Pai, mãe e irmão estiveram com ela o tempo todo durante a
noite. De volta ao presente, ao acordar, Ponciá percebe que “tudo estava vazio”
(EVARISTO, 2003, p. 58).
Bachelard relaciona espaço e memória “o espaço é tudo, pois o tempo já
não anima a memória. A memória – coisa estranha! – não registra a duração
concreta. O inconsciente permanece nos locais” (2008, p. 28-29). A casa da infância
embora paupérrima é um local de doces lembranças. “A casa está inscrita no corpo,
não como traço mnêmico, mas como imagem de intimidade, como imagem que
busca um centro, que instaura um centro, que cria um universo” (ELIADE, 1991, p.
95
30). Na concepção junguiana, o que acontece dentro de uma casa, acontece dentro
de nós mesmos. Habitamos o nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas
da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num “canto do mundo” (JUNG, 2002, p.
128).
O lar está associado ao conceito de família e à figura da mulher e mãe que,
tradicionalmente, cuida, limpa e organiza. Na casinha impecável, há um detalhe
discordante: dentro do fogão, no lugar de brasas, uma cobra enrodilhada. À vista da
cobra, Ponciá acorda para o momento presente e só então percebe que a casa
estava vazia. “A dor da ausência da mãe e do irmão aconteceu mais forte ainda”
(EVARISTO, 2003, p. 57).
A imagem da serpente multiplica-se no romance de Evaristo. A serpente
colorida do angorô simboliza simultaneamente vida e morte: a união entre o céu e a
terra e o esgotamento das águas. Chevalier e Gheerbrant enfatizam dois pontos na
simbologia da serpente: sua ligação com o “primordial indiferenciado, reservatório de
todas as tendências, subjacente à terra manifestada” e a dupla encarnação do
masculino e do feminino (1982, p. 815). Da exposição abrangente dos autores no
verbete selecionamos aspectos que nos parecem relevantes para a leitura do
romance.
Rápida como um relâmpago, a serpente visível sempre surge de uma abertura
escura, fenda ou rachadura, para cuspir morte ou vida antes de retornar ao
invisível. Ou então abandona os ímpetos masculinos para fazer-se feminina:
enrosca-se, beija, abraça, sufoca, engole, digere e dorme. Esta serpente fêmea é a
invisível serpente-princípio que mora nas profundas camadas da consciência e nas
profundas camadas da terra. Ela é enigmática, secreta; é impossível prever-lhe as
decisões, que são tão súbitas quanto as suas metamorfoses. Ela brinca com os
sexos como com os opostos: é fêmea e macho; gêmea em si mesma, como tantos
deuses criadores que em suas primeiras representações sempre aparecem como
serpentes cósmicas. A serpente não apresenta, portanto, um arquétipo, mas um
96
complexo de arquétipos ligado à noite fria, pegajosa e subterrânea das origens.
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 815. Ênfase no original)
A serpente está na origem de muitas religiões primitivas. No plano humano,
é o símbolo duplo da alma e da libido: “A serpente,” escreve Bachelard, “é um dos
mais importantes arquétipos da alma humana” (1990, p. 212). Ponciá-personagem é,
ela própria, um complexo de arquétipos: a mulher natural, a mulher visionária, a
mulher criadora, a mulher coragem, a mulher heroína.
Em momentos diferentes, Ponciá, Maria Vicêncio e Luandi voltam a casa,
onde encontram vestígios dos outros dois: o corte do mato em volta da casa e a
remoção da figurinha de Vô Vicêncio. A cobra no fogão presentifica o passado e
reconforta Ponciá que sente renascer a esperança de reencontrar a família. A mãe e
o irmão encontram apenas a pele ressecada da cobra. O primeiro observa que “no
fogão apagado [...] uma cobra deixara sua casca ou secara por ali” (EVARISTO,
2003, p. 87). Maria Vicêncio regressa várias vezes “para visitar a casa, espantar o
vazio e sentir a presença dos mortos. Mais (de) uma vez encontrou a casca vazia de
uma cobra e cortou o mato lá fora” (EVARISTO, 2003, p. 114). A troca de pele indica
não só um renascimento, mas o transcorrer do tempo, cuja circularidade, discutida
anteriormente, é confirmada pelo próprio formado da serpente.
Ponciá ainda não cumpriu sua trajetória e deve retomá-la. Enquanto espera
o trem que a levará de volta à cidade, caminha pelo local, à medida que imagens do
passado ─ crianças, jovens, mulheres, homens, velhos e velhas ─ se presentificam
a seus olhos. “Ela não tinha percebido que já vinha padecendo de uma saudade que
era de muito e muito tempo” (EVARISTO, 2003, p. 59). O sentimento de nostalgia
não oblitera a observação de que Vila Vicêncio permanece a mesma, nas mesmas
condições que a fizeram partir.
97
Havia ali um pulso de ferro a segurar o tempo. Uma soberana mão que eternizava
uma condição antiga. Várias vezes seus olhos bisaram a imagem de uma mãe
negra rodeada de filhos. De velhas e de velhos sentados no tempo passado e
presente de um sofrimento antigo. (EVARISTO, 2003, p. 48)
Visita a velha sábia Nêngua Kainda, aquela que “tinha o olhar enxergador de
tudo” (EVARISTO, 2003, p. 60). O dicionário de termos da língua banto, usados no
Brasil, indica que “nêngua é um cargo hierárquico dos cultos de origem angoloconguesa, correspondente ao da ialorixá20 nagô (YP). Do quicongo némgwa, mãe,
mamãe” (LOPES, 2003, p. 165).
A figura da anciã representa o conhecimento, o misticismo, o respeito e a
sabedoria. Nêngua Kainda é, portanto, guia e mãe espiritual da comunidade, a quem
todos na Vila Vicêncio pedem bênçãos e conselhos, e cujas palavras não devem ser
ignoradas. Em várias passagens no romance, é Nêngua quem lembra Ponciá de que
“em qualquer lugar, em qualquer tempo, a herança que Vô Vicêncio tinha deixado
para ela seria recebida” (EVARISTO, 2003, p. 61). Ponciá deve, portanto, continuar
a busca e “se dispôs a continuar a vida” (EVARISTO, 2003, p. 60).
A viagem de volta se realiza em condições diferentes: tinha trabalho
garantido na cidade, breve seria dona de uma casinha no morro e estava
apaixonada. Mas, “a viagem lhe pareceu mais longa e mais dolorosa do que a
primeira” (EVARISTO, 2003, p. 64). A heroína falhara no objetivo de reencontrar a
mãe e sente maus presságios.
3.2.4 O silenciamento
Ponciá sente reavivar o sonho de ter um marido e um lar, onde reinasse
soberana, à semelhança de sua mãe. Seu homem, trabalhador na construção civil,
20
Mãe de santo – FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.
98
também estava enamorado: gostava da tenacidade dela, de seu olhar adiante, de
sua “voz de ninar crianças e deixar homem feliz” (EVARISTO, 2003, p. 65). Em
contraposição, observa que ela tinha um jeito estranho que ele não sabia bem o que
era: “às vezes, era como se o espírito dela fugisse e ficasse só o corpo. Ele
respeitava, tinha medo. Não indagava nada” (EVARISTO, 2003, p. 65).
De volta à cidade e ao trabalho, Ponciá luta para não desistir, devia esperar
que chegasse o tempo de tudo acontecer para serem novamente os três, ela, a mãe
e o irmão. Sofre torturas de corpo e espírito. As mãos coçam e sangram entre os
dedos; sente um vazio que lhe enche a cabeça e a afasta do mundo, várias vezes
ao dia. Sente uma saudade imensa de trabalhar com o barro, “imaginando a massa
entre as mãos, ouvindo lamentos e risos, era Vô Vicêncio” (EVARISTO, 2003, p. 75).
A vida a dois não traz as realizações esperadas, Ponciá Vicêncio sofre sete
abortos consecutivos e a incapacidade de manter um diálogo com o marido, de
confiar-lhe o que sente, afasta-os cada vez mais.
Muitas vezes quis dizer das tonturas e do desejo de comer estrelas de que era
acometida todas as vezes que ficava grávida. Quis confidenciar a respeito do medo
antigo que sentia, às vezes. Quis saber se ele também sofria do medo do mal, se
ele vivia também agonias. Quis que o homem lhe falasse dos sonhos, dos planos,
das esperanças que ele depositava na vida. Mas ele era quase mudo. Não chorava,
não ria. (EVARISTO, 2003, p. 67)
A expressão “não chorava nem ria” lembra o pai de Ponciá, que, depois de
anos de muito sofrimento e humilhações, acaba por emudecer. “Pelo menos para os
homens que ela conhecera a vida era tão difícil quanto para a mulher” (EVARISTO,
2003, p. 55). O marido também falava pouco, não havia diálogo entre os dois:
[O marido] falava o necessário. Só que o necessário dele era bem pouco, bem
menos do que a precisão dela. Quantas vezes quis saber, por exemplo, se o dia
99
dele tinha sido difícil, se o pequeno machucado que ele trazia na testa tinha sido
causado por algum tijolo, ou mesmo saber quando começaria a nova obra.
(EVARISTO, 2003, p. 67)
Ponciá encontra refúgio no silenciamento e na ausência. A realidade não lhe
interessa mais; vive o passado no presente. Lembranças da infância, do irmão, da
mãe, um eterno recordar. “Ela gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar.
Relembrava a vida passada, pensava no presente, mas não sonhava e nem
inventava nada para o futuro” (EVARISTO, 2003, p. 19).
Quando os filhos de Ponciá Vicêncio, sete, nasceram e morreram, nas primeiras
perdas elas sofreu muito. Depois, com o correr do tempo, a cada gravidez, a cada
parto, ela chegava mesmo a desejar que a criança não sobrevivesse. Valeria a
pena pôr um filho no mundo [...] Crescera na pobreza. Os pais, os avós, os bisavós
sempre trabalhando nas terras dos senhores. A cana, o café, toda a lavoura, o
gado, as terras, tudo tinha dono, os brancos. Os negros eram donos da miséria, da
fome, do sofrimento, da revolta suicida. (EVARISTO, 2003, p. 82)
À medida que as frustrações se acumulam, Ponciá torna-se apática e
descuidada dos afazeres. O marido, que a considerava uma formiga laboriosa, não
entende as atitudes da mulher.
A incompreensão inicial do companheiro que bate na mulher para trazê-la à
realidade, a falta de diálogo entre os dois, os sete abortos que sofreu, por problemas
sanguíneos, acabam por minar os sonhos de Ponciá. Quando menina, admirava
profundamente a mãe e desejava ter uma família semelhante à dela: “Um dia
também ela teria um homem que, mesmo brigando, haveria de fazer tudo que ela
quisesse e teria filhos também” (EVARISTO, 2003, p. 27).
Sem saber como lidar com os alheamentos cada vez mais frequentes da
protagonista, o marido transforma seu “medo de abeirar-se num vazio que era só
dela” (EVARISTO, 2003, p. 66) em agressividade: “Quando viu Ponciá parada,
100
alheia, morta-viva, longe de tudo, precisou fazê-la doer também e começou a agredila. Batia-lhe, chutava-lhe, puxava-lhe os cabelos. Ela não tinha um gesto de defesa”
(EVARISTO, 2003, p. 96). O marido de Ponciá, brutalizado também pela vida difícil,
não sabe lidar com a situação. Apenas quando o pensamento de matar a mulher lhe
ocorre é que o homem caiu em si assustado: “Ele ficou com remorso guardado no
peito. A mulher devia estar doente, devia estar com algum encosto” (EVARISTO,
2003, p. 97).
O romance de Evaristo explora personagens complexas ou mesmo
contraditórias, sem sugerir oposições maniqueístas: bom, mau; herói, vilão. A par da
violência, o narrador confere ao marido de Ponciá sentimentos de ternura que
podem redimi-lo.
[...] nunca mais ele a agrediu. Foi tanto pavor, tanto sofrimento, tanta dor que ele
leu nos olhos dela, enquanto lhe limpava o sangue, que descobriu não só o
desamparo dela, mas também o dele. Descobriu como eram sós. (EVARISTO,
2003, p. 109)
Sua atividade econômica é a única aberta a pessoas de seu sexo e cor de
pele: o trabalho rude e braçal. O estereótipo do negro como serviçal sem
qualificação, incapaz e pouco confiável corresponde a outro tipo de escravidão na
massa anônima da cidade. O romance de Evaristo destaca as relações sociais de
desigualdade vistas da perspectiva do negro excluído. O Movimento Negro Unificado
(MNU21) acusa com veemência a lógica racista que preside as relações sociais no
Brasil.
O regime escravista durou quatro séculos e na sua essência foi violento, desumano
e racista. Com o encerramento oficial da escravidão em 1888, os negros não
21
Organização fundada em 18 de julho de 1978 em São Paulo para denunciar as desigualdades
raciais e criar um projeto político para o negro no Brasil. Ver p. 37.
101
tiveram direito a terra, a uma educação pública de qualidade e nem tampouco a
empregos decentes. Entregues à própria sorte, foram submetidos a uma lógica
racista que regula a distribuição de riquezas e poder em âmbito nacional e mantém
a desigualdade social. (MNU, 06/08/2006)
Num Brasil pós-abolição, o sentimento de exclusão corresponde ao que Du
Bois relata em As almas de gente negra sobre o sentir-se “diferente dos outros ou
talvez semelhante no coração, na vida e nos anseios, mas isolado do mundo deles
por um imenso véu” (DU BOIS, 1999, p. 53).
O destino das personagens secundárias femininas é igualmente desolador.
A jovem Bilisa, “estrela no peito de Luandi,” é forçada a prostituição, onde imagina
que ganhará dinheiro de maneira rápida e fácil, depois de ser explorada
sexualmente pelo filho do patrão e ter roubadas suas economias. Ponciá não se
prostitui, mas não escapa ao destino imposto à mulher negra: o trabalho doméstico
em casa de brancos.
Para uma mulher negra, semianalfabeta e pobre restam os espaços
periféricos demarcados ideologicamente. Ao caminhar pela cidade Ponciá sente-se
como se fosse invisível. A escritora Gizelda Melo do Nascimento afirma que a
discriminação da mulher negra, em nossa sociedade, é apenas camuflada.
A prática camuflada da discriminação, ao lado de um discurso democrático racial,
insere a mulher negra num contexto que denominaríamos aqui como espaço de
falta. Sofrendo uma tripla discriminação – racial, social e sexual ─, a mulher negra,
numa sociedade racista e discriminadora, nada mais faz que acumular perdas no
que se refere à dificuldade de sua inserção nos quadros sociais representativos do
país. O silêncio em que vem envolvida sua figura e a ausência quase toda de sua
representação social evidenciam a perversão e/ou hipocrisia em que está
assentada nossa sociedade. (NASCIMENTO, 2008, p. 50)
102
Conceição Evaristo, fiel aos objetivos de sua arte, confere à voz da mulher
negra o poder de alardear as desigualdades de tratamento, e de protestar contra as
injustiças de que é vítima.
O silêncio do subalterno é o ponto-chave de teorização de Gayatri Spivak
sobre as relações colonizador-colonizado e patrão-servo, subsequentes ao
colonialismo europeu. O subalterno pouco ou nada participa do sistema colonial e a
ausência de voz autoriza outros a representá-lo.
As camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de
exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se
tornarem membros plenos no estrato social dominante. (SPIVAK, 2010, p. 12)
Evaristo apresenta, em Ponciá Vicêncio, um cenário chocante de miséria,
onde os negros são vítimas do sistema social. Causas sociais, históricas e
emocionais explicam o comportamento tanto do núcleo de protagonistas como dos
personagens periféricos. Chega ao fim o caminho de provas da heroína, sem que
seja possível vislumbrar o seu desfecho: a conquista de qualidades que
transcendem o humano.
3.3 O RETORNO
Depois de ter aceitado o chamado da aventura e enfrentado os desafios e
perigos do caminho de provas, o herói/heroína chega finalmente à última etapa de
sua jornada. Ali recebe a recompensa ambicionada, que, segundo Campbell, pode
constituir-se de sua própria divinização, da expansão da consciência ou da obtenção
da benesse objeto de sua busca.
Terminada a busca do herói [...] o aventureiro deve ainda retornar com o seu troféu
transmutador da vida. O círculo completo, a norma do monomito, requer que o herói
inicie agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria de volta ao reino
103
humano, onde a bênção alcançada pode servir à renovação da comunidade, da
nação, do planeta ou dos dez mil mundos. (CAMPBELL, 1995, p. 195)
O retorno do herói completa o ciclo do monomito com a volta à comunidade
de origem e a partilha da sabedoria alcançada, que vem renovar os liames entre
seus componentes, quer se trate do vilarejo minúsculo de Vila Vicêncio ou do
universo como um todo.
3.3.1 A recusa do retorno
A hesitação que invadiu Ponciá, antes de atender ao chamado da aventura,
repete-se no momento de retornar aos seus. O desejo do retorno e a saudade da
terra povoam a mente de Ponciá, que vive de recordar o passado. As ausências,
que já se anunciavam desde a primeira tentativa de retorno à Vila Vicêncio, tornamse cada vez mais frequentes. O desejo intenso de retornar, não à Vila Vicêncio que
fica a três dias de distância de trem da cidade grande, mas a uma Vila Vicêncio
idealizada e ao sonho da reconstituição da família, constitui paradoxalmente um
obstáculo intransponível. A heroína está presa, irremediavelmente, no túnel escuro
de sua mente perturbada.
Ponciá Vicêncio gostava de ficar sentada perto da janela olhando o nada [...]. Ela
gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar. Relembrava a vida passada,
pensava no presente, mas não sonhava e nem inventava nada para o futuro. O
amanhã de Ponciá era feita de esquecimento. (EVARISTO, 2003, p. 19)
Quando as memórias passam a ocupar todo o espaço da consciência, ela se
transporta para a terra natal. O desejo de tocar o barro faz com que coce as mãos
até sangrar. O ritual sangrento prossegue na modelagem imaginária do barro. O
cheiro das mãos era o mesmo cheiro do barro encontrado nas margens do rio de
sua infância. Então, lembra-se do homem-barro: Era o Vô Vicêncio que tinha
104
deixado aquele cheiro. Era de Vô Vicêncio aquele odor de barro! “E, num ritual,
beijou a estátua com respeito. Sentiu saudade de trabalhar o barro, e por alguns
instantes imaginou a massa entre as mãos, ouvindo lamentos e risos... Era Vô
Vicêncio” (EVARISTO, 2003, p. 75).
Às sensações tácteis acrescentam-se imagens vívidas visuais, olfativas e
gustativas, próprias de um bebê que busca o contato quente de braços acolhedores
e o alimento que lhe satisfaz a fome. Ponciá recorda o cheiro do café, o gosto das
broas de fubá e a visão assustadora do angorô colorido. O olhar de Ponciá
atravessava a janela do barraco para se perder no tempo lá fora. A recusa do
retorno é acompanhada pelo distanciamento progressivo da ambientação na favela
e na cidade grande. Um de seus últimos movimentos conscientes é queimar revistas
e jornais ─ De que lhe adiantava saber ler? ─ para se libertar do mundo em que
vivia. Repete, portanto, o impulso de Vô Vicêncio, para fugir da realidade. Vô
Vicêncio, num gesto extremado de ira e revolta contra a opressão sofrida ao longo
de tantos anos, matara a esposa e decepara a própria mão, na tentativa frustrada de
suicidar-se.
3.3.2 A fuga mágica
Joseph Campbell serve-se do conhecimento de mitos heroicos de diversos
povos e do conto folclórico para comentar o episódio da fuga, que é desenvolvida
sob muitas formas.
Se o herói obtiver, em seu triunfo, a bênção da deusa ou do deus e for
explicitamente encarregado de retornar ao mundo com algum elixir destinado à
restauração da sociedade, o estágio final de sua aventura será apoiado por todos
os poderes do seu patrono sobrenatural. Por outro lado, se o troféu tiver sido obtido
com a oposição de seu guardião, ou se o desejo do herói no sentido de retornar
para o mundo não tiver agradado aos deuses ou demônios, o último estágio do
105
ciclo mitológico será uma viva, e com frequência cômica, perseguição. Essa fuga
pode ser complicada por prodígios de obstrução e evasão mágicas. (CAMPBELL,
1995, p. 198)
A fuga de Ponciá não se enquadra nesse esquema. Sua negação total da
realidade, como vimos, faz-se por um mergulho dentro de si mesma e pelo
isolamento completo do mundo exterior.
Ponciá Vicêncio é a heroína marcada desde o nascimento para um destino
excepcional ─ o riso e o choro no ventre da mãe, a comunhão com os mistérios da
natureza, a empatia com as águas da criação que a faz também artista e criadora na
modelagem do barro. A heroína do romance, a quem se atribuiu a tarefa de restituir
a seu povo a dignidade que permite ao homem “a liberdade para viver” na expressão
de Campbell, aparentemente falhou em sua missão redentora, pois sucumbiu às
provas cruéis a que foi submetida longe de sua terra.
Que espécie de heroína é essa que sucumbe diante de obstáculos?
Campbell enfatiza que tanto o sucesso como o fracasso do herói indicam sua
humanidade. O herói não é um ser sobrenatural.
Os mitos do fracasso nos tocam com a tragédia da vida, mas os do sucesso o
fazem, tão somente, com seu próprio caráter de incredibilidade. No entanto, se o
monomito deve cumprir sua promessa não é o fracasso humano, nem o sucesso
sobre-humano, mas o sucesso humano, o que nos deve ser mostrado.
(CAMPBELL, 1995, p. 205-206)
3.3.3 O resgate com auxílio externo: A herança de Vô Vicêncio
Os auxiliares externos que resgatam Ponciá vêm do mundo dos homens. O
primeiro deles, Luandi José Vicêncio, seguira o caminho aberto pela irmã e viera
para a cidade há alguns anos. A mãe que se afastara de Vila Vicêncio, logo depois
106
da partida dos filhos, recebe de Nêngua Kainda o aviso de que “o tempo já permitia
e abria os caminhos para que a mãe fosse encontrar os filhos” (EVARISTO, 2003, p.
115).
Maria Vicêncio soubera esperar pacientemente vários e vários anos. Sofrera
muito, mas aprendera que era impossível ir à dianteira do tempo. Agora sabia que
“era preciso tomar o trem e ir de encontro aos filhos para trazê-los novamente à
terra” (EVARISTO, 2003, p. 114).
A mudança da focalização de Ponciá para o irmão e a mãe faz crescer a
importância de seu papel na narrativa. Desse modo, o narrador prepara o leitor para
aceitar o desfecho da jornada mítica da heroína.
Luandi José Vicêncio não tem as características excepcionais de Ponciá e
nem tivera com ela relacionamento próximo na infância. As memórias de Ponciá
informam que não tivera grande convivência com ele, mas quando se encontravam
gostavam muito um do outro. “Eram secos de carinhos explícitos; entretanto, mesmo
sem se tocarem nem se abraçarem sequer, se amavam muito” (EVARISTO, 2003, p.
25-26).
Por duas vezes Luandi exerce o papel de arauto na narrativa: é ele o
portador da notícia de que o pai estava morto; é ele quem conta a Ponciá a história
trágica que deixara Vô Vicêncio com o braço cotó, levando-o a refugiar-se em um
mundo interior de choros e risos.
Sua chegada à cidade tem características cômicas. A chuva torrencial
derrete sua mala de papelão e ele recolhe com dificuldade as coisas que trouxera,
roupas que tinham sido do pai, canivete, fumo de rolo e palha. Traz consigo tudo o
que faz parte do seu mundo na Vila Vicêncio e que entende ser apropriado para
conquistar seu espaço na cidade. A perda da bagagem é significativa, pois nossa
107
bagagem representa os elementos que julgamos indispensáveis “à vida material,
psíquica, espiritual: é o equivalente ao equipamento mental” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1990, p. 897).
A viagem de trem para a cidade grande é traumática para as três
personagens, Ponciá, Luandi e Maria Vicêncio, que se sentem perdidas na chegada
à estação. Esta representa um local de refúgio, após a passagem pelo primeiro
limiar. Da estação Ponciá parte para enfrentar os monstros do medo, da fome e da
solidão. Na estação, Luandi é preso pelo soldador Nestor que o leva para a
delegacia. Tem início a saga de Luandi e o papel do soldado Nestor como auxíliar
externo. É na estação, também, que Maria Vicêncio, anos mais tarde, aborda o
soldado Nestor em busca de informações. Apresenta-lhe o pedacinho de papel,
dado por Nêngua Kainda, em que o próprio soldado Nestor escrevera seu endereço.
A série de coincidências configura uma intervenção mágica em que os
deuses se mostram favoráveis, como no mito ou como no conto de fadas.
Agora os três juntos, Luandi, a mãe e Ponciá regressariam à Vila Vicêncio,
onde ela “não mais se perderia” (EVARISTO, 2003, p.128).
Seja resgatado com ajuda externa, orientado por forças internas ou carinhosamente
conduzido pelas divindades orientadoras, o herói tem de penetrar outra vez,
trazendo a bênção obtida, na atmosfera há muito esquecida na qual os homens,
que não passam de frações, imaginam ser completos. (CAMPBELL, 1995, p. 213)
Ponciá Vicêncio, a heroína mitológica, é incapaz de cumprir a tarefa final de
penetrar outra vez no mundo superior, para obter a benção que deve partilhar com
os seus: a completude do ser humano. Neste ponto da narrativa, Evaristo concede a
Luandi José Vicêncio as virtudes do herói, percepção, compreensão, compaixão,
perseverança, lealdade e, sobretudo, coragem física e espiritual que lhe permitem
108
concluir a jornada. Ele passa a perceber a dor e o sofrimento dos antepassados,
impressos indelevelmente nas feições de Ponciá.
A irmã tinha os traços e os modos de Vô Vicêncio não estranhou a semelhança que
se fazia cada vez maior. Bom que se fizesse reveladora, se fizesse herdeira de uma
história tão sofrida, porque enquanto o sofrimento estivesse vivo na memória de
todos, quem sabe não procurariam nem que fosse pela força do desejo, a criação
de outro destino. [...] Foi preciso que a herança de Vô Vicêncio se realizasse, se
cumprisse na irmã para que ele entendesse tudo. (EVARISTO, 2003, p. 126)
Sua própria jornada no caminho de provas fora cruel e marcada pelas
perdas. Parece-lhe viver um sonho quando avista a mãe, e uma confusão de
sentimentos e imagens toma conta dele.
Luandi não conseguia distinguir se estava vivendo um sonho ou uma profunda
realidade em que tudo se misturava. A mãe, Ponciá, Bilisa-estrela, a mulher que até
pouco tempo enfeitava a noite escura que ele trazia no peito, Vó Vicência, pessoa
que ele nem tinha conhecido e que tinha encontrado a morte pelas mãos de Vô
Vicêncio. E ainda outras mulheres da família e do povoado, muitas que ele nunca
vira e que apenas ouvira falar delas. Eram só mulheres que naquele momento se
acercavam de Luandi. E, dentre elas, uma orientando os passos das demais. Uma
era guia de todas, a velha Nêngua Kainda. E era ela que entregava Maria Vicêncio
para ele. (EVARISTO, 2003, p. 119)
Os arquétipos da mulher como mãe, heroína, amante, ancestral e guia
identificam as imagens femininas relevantes no romance, entre outras de mulheres
da família e do povoado. São as mulheres que lhe trazem a redenção. A mãe
consola Luandi da perda de Bilisa. O sonho da casinha que abrigaria a ele e Bilisaestrela transforma-se, agora, no desejo de encontrar um lugar para abrigar a mãe e
a irmã, que haveria de chegar um dia.
No entanto, a percepção da tarefa que lhe cabe concretiza-se apenas
quando olha o rosto conturbado da irmã, em quem se cumpria a herança de Vô
109
Vicêncio: conservar viva na memória de todos a história sofrida dos negros, a fim de
que se criasse um novo destino. Ele que desejara tanto ser soldado como a única e
melhor maneira de ser, tinha feito agora uma nova descoberta. “Compreendera que
sua vida, um grão de areia lá no fundo do rio, só tomaria corpo, só engrandeceria, se
se tornasse matéria argamassa de outras vidas” (EVARISTO, 2003, p. 127).
Das brumas do esquecimento, a herança de Vô Vicêncio se presentifica
também para Ponciá, pela força do talismã que ela mesma esculpira: a estatueta do
homem-barro. Das mãos de Ponciá, apoiadas no peitoril da pequena janela, a
imagem de Vô Vicêncio “olhava meio para fora, meio para dentro também chorando
rindo assistia a tudo” (EVARISTO, 2003, p. 128).
3.3.4 Liberdade para viver
Luandi José Vicêncio, ainda atraído pela ideia de ser soldado, para o que
teria de aprender a ler e escrever, descobre que, além de assinar o próprio nome,
era preciso tirar da leitura outra sabedoria.
Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso ajudar a construir a história
dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os
sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que, por baixo da assinatura do
próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um tempo misturado do
antes-agora-depois-e-do-depois-ainda.A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos
que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser. (EVARISTO, 2003, p.
127)
110
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mitos e símbolos primitivos não desapareceram,
apenas mudaram de aspecto, nas diversas fases da
evolução humana e das civilizações.
Mircea Eliade22
A focalização sobre o mito e o transcendental, no romance de Conceição
Evaristo, é sugerida pelo próprio texto:
Ponciá Vicêncio, aquela que havia pranteado no ventre materno e que gargalhava
nenéns sorrisos ao nascer, tinha risos nos lábios enquanto todo o seu corpo
estremecia num choro doloroso e confuso. Chorava, ria, resmungava. Desfiava fios
retorcidos de uma longa história. Andava em círculos, ora com a mão fechada e
com o braço pra trás, como se fosse cotoco, ora com as duas palmas abertas,
executando calmo e ritmados movimentos, como se estivesse moldando alguma
matéria viva. Todo cuidado Ponciá Vicêncio punha nesse imaginário ato de fazer.
Com o zelo da arte, atentava para as porções das sobras, a massa excedente,
assim como buscava ainda significar as mutilações e as ausências que também
conformam um corpo. Suas mãos seguiam reinventando sempre e sempre. E
quando quase interrompia o manuseio da arte, era como se perseguisse o
manuseio da vida, buscando fundir tudo num ato só... [...] Andava como se
quisesse emendar um tempo ao outro, seguia agarrando tudo, o passadopresente-e-o-que-há-de vir. (EVARISTO, 2003, p.127. Ênfase acrescentada)
O artista é um ser privilegiado capaz de transformar o manuseio da arte em
manuseio da vida, unindo passado, presente e futuro. Do interior do túnel escuro de
sua psique, Ponciá Vicêncio continua a perseguir os objetivos da missão que
recebeu ao nascer: buscar a herança de Vô Vicêncio e trazê-la de volta para seu
povo. O fato de não conseguir fazê-lo sozinha não nega a propriedade do esquema
de Campbell para estruturar a análise do romance.
Com a estatueta de Vô Vicêncio a artista Ponciá expõe a fortaleza do povo
negro que, mesmo debaixo de forte opressão, reconhece sua força e mantém suas
22
Eliade (2006, p.17).
111
tradições. Por outro lado, expressa a difícil convivência do povo negro com o
dominador branco que, por não respeitá-lo, busca formas de mantê-lo à margem.
No cenário rural do romance, Conceição Evaristo, artista da palavra, evoca
todo o sofrimento do povo negro nesse lugar, desde o período da escravidão. Em
contraste, é nesse lugar também que se criam os laços familiares e são preservados
valores, crenças e saberes que sustentam a força e a resistência dos
afrodescendentes.
Ponciá Vicêncio é a heroína talhada para percorrer o caminho de provas, em
busca da benesse final para sua comunidade. Conceição Evaristo demonstra ser a
escritora predestinada a resgatar a dignidade do seu povo e conceder-lhe o lugar
merecido, no contexto social e literário brasileiro.
Para atingir o duplo objetivo, político e estético deste trabalho, que se julgou
consonante com as características do texto de Evaristo, apresenta-se como
preâmbulo da análise a contextualização da escritora no seio da literatura afrobrasileira e desta no conjunto da literatura brasileira canônica.
Conclui-se que o termo apropriado para descrever a escritura de Evaristo é
escrevivência, que a autora utiliza para designar sua escrita como fruto, tanto de
suas próprias experiências, como das lembranças dos antepassados. São memórias
amargas do sofrimento do seu povo, sob a escravatura e, hoje, no cotidiano difícil da
mulher negra. Seu livro de memórias, intitulado Becos da memória, recompõe a vida
de Evaristo desde a infância na favela de Pindura Saia. Encontra-se ali o esboço das
relações familiares desenvolvidas posteriormente em Ponciá Vicêncio. As figuras
centrais arquetípicas do romance estão todas ali: a mãe protetora, os ancestrais
detentores do conhecimento, a comunidade de mulheres que aconselha, ajuda e
112
repreende. Contra o pano de fundo da discriminação que relega os alunos negros
aos piores lugares na sala de aula da escola comum.
Examinamos inicialmente o périplo do afrodescendente no Brasil a partir da
escravização e do colonialismo, cujo caráter de violência desumana repercute até
hoje na marginalização social do negro. Na breve historiografia da escritura negra no
Brasil, concentramo-nos prioritariamente na contribuição da mulher, que conduz a
uma revisão biográfica de Conceição Evaristo e do conjunto de sua obra em verso e
prosa.
A argumentação de pesquisadores sobre a conveniência de se considerar a
literatura escrita por negros no Brasil à parte do conjunto maior da literatura
brasileira, bem como sobre a denominação a lhe ser dada, conduziu este estudo a
algumas conclusões.
Não basta escrever novos compêndios em que Cruz e Souza, Machado de
Assis, Lima Barreto e outros sejam transladados do panteão da literatura brasileira
para o seio de uma literatura negra brasileira. Faz sentido a colocação de Eduardo
Assis Duarte de que é necessário construir operadores teóricos eficientes para
avaliar os conceitos de literatura negra e literatura afro-brasileira. Acrescenta-se, de
nossa própria lavra, operadores teóricos que se concentrem sobre fatores
linguísticos capazes de identificar textos de uma ou outra procedência, literatura
brasileira ou literatura afro-brasileira.
Proença Filho diz o mesmo em outras palavras: “Lato sensu, será negra a
arte literária feita por quem quer que seja, desde que centrada em dimensões
peculiares aos negros ou aos descendentes de negros” (PROENÇA FILHO, 2004, p.
185).
113
É ponto de concordância, especificamente entre Conceição Evaristo e Assis
Duarte, definir a especificidade da literatura negra, em contraposição ao conjunto da
literatura brasileira, considerando-se temática (a vivência negra), um discurso outro
(diferente do discurso institucionalizado), o negro como sujeito da enunciação e
linguagem (marcas da herança linguístico-cultural africana).
Para dar a este trabalho um toque de originalidade, posto que existem
inúmeras pesquisas sobre o aspecto sociopolítico da literatura afro-brasileira, optouse desenvolver a pesquisa sob a perspectiva dos aspetos mitológicos no texto.
Adaptou-se para isso a estrutura nuclear do monomito, que acompanha as fases da
iniciação nas tribos primitivas, separação-iniciação-retorno, proposta por Joseph
Campbell.
Reestruturou-se, assim, a trajetória da heroína mitológica colocando como
primeiro subitem do capítulo de análise, intitulado “A trajetória cíclica do monomito
em Ponciá Vicêncio”, a descrição do mundo conhecido de Ponciá. Apresentam-se
ali as personagens principais da trama e enfatizam-se as características da
protagonista, que fazem dela um ser excepcional, cuja visão transcende a dos seres
comuns do mundo factual.
A interação com os elementos masculinos do clã, a memória do avô
Vicêncio e o pai anônimo, sempre ausente, colocam Ponciá no caminho de provas
que afasta a heroína do mundo conhecido. Como representação ficcional da
passagem pelo primeiro limiar e da imersão no ventre da baleia, etapas propostas
por Campbell, sugerimos a traumática viagem de trem da heroína. Ponciá emerge
do trem desconfortável, aflita e desesperada à semelhança do herói que retorna das
profundezas.
114
A cidade estranha e o afastamento das raízes naturais do seu modo de ser
primitivo conduzem Ponciá ao silenciamento e à ausência, isolando-se em um
mundo interior de choros e risos. Na terceira fase da aventura mítica, o retorno, o
silenciamento a e ausência de Ponciá sinalizam a recusa do chamado para retornar
e a imersão no seu mundo interior. Correspondem à fuga mágica do herói que receia
voltar ao mundo dos deuses para apanhar a grande revelação que deveria partilhar,
na volta ao clã, com os que estão à espera da benesse prometida.
Luandi José Vicêncio, o irmão, e Maria Vicêncio, a mãe, correm em socorro
da heroína. A mãe pensa apenas em proteger a sua menina “única e múltipla” em
cujo rosto reconhece outras faces mesmo aquelas que chegavam de um outro
tempo-espaço. “Maria Vicêncio se alegrou, o tempo de reconduzir a filha à casa,
à beira do rio estava acontecendo” (EVARISTO, 2003, p. 125. Ênfase
acrescentada).
Luandi José Vicêncio compreende que a transmissão da herança de Vô
Vicêncio agora é tarefa sua. Cabe a ele assumir o papel do herói que retorna como
portador de boas novas para o seu povo, renunciando a quaisquer conquistas no
mundo estranho a suas raízes.
A leitura do romance de Evaristo conduz à reflexão sobre o mundo e a
existência humana, o que nos reporta ao pensamento de Omar Khayyâm sobre a
felicidade: “Limite os desejos pelas coisas deste mundo e viva feliz”.
115
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L'histoire de Ponciá. Trad. Patrick Schmitt. éditions Anacaona, 2015.
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ENTREVISTAS
Entrevista concedia a Aline Arruda
1 – Sei que o conceito de literatura afro-brasileira ainda é difícil de se fechar.
Muito temos discutido sobre o assunto, mas, para você, em poucas palavras,
em que consiste essa literatura?
Para mim a literatura afro-brasileira é uma produção literária nascida da experiência
de vida do sujeito negro na sociedade brasileira. Refiro-me agora às palavras de
Eduardo de Assis Duarte e de Cuti quando dizem que essa experiência negra se
apresenta no texto de maneira consciente ou inconsciente. Ou seja, se o sujeito se
resguarda no tempo com essa experiência negra, o ato de ele se resguardar é um
indicativo. Eu não abro mão de pensar que essa literatura afro-brasileira tem a ver
com a experiência do negro brasileiro.
2 – É conhecida sua frase "não nasci rodeada de livros, mas de palavras".
Comente como essa sua vivência com as palavras influencia sua literatura.
Essa minha experiência com as palavras me acumulou as histórias. Certamente ela
me ajudou a trabalhar minha sensibilidade diante das narrativas. Isso me provocou
um certo encantamento, uma certa curiosidade em querer ouvir mais. Hoje tenho
consciência de que quando ouço tais narrativas de familiares ou amigos, já preparo
meu ouvido para o que poderei aproveitar dali, antes era inconsciente. Meu texto
não é somente intuitivo, eu o trabalho, escolho as palavras, leio-o em voz alta,
choro com o texto. Essa experimentação me trouxe o encantamento pelos sons das
palavras. Gosto de ficar testando-as. É nesse sentido que afirmo não ser intuitivo.
Se é intuição, há um trabalho com ela. Eu costumo ficar meses com o texto na
cabeça, experimentando-o.
3 – A escolha dos nomes dos personagens são exemplos dessa intuição?
Sim, eu não sei, por exemplo, de onde veio o nome Ponciá. O nome Nêngua foi
intuitivo, sonoro. Só depois de muito tempo, descobri que o significado se
encaixava, como está escrito no dicionário de Nei Lopes. Gosto também de inventar
nomes. Fico procurando aqueles que me lembram a sonoridade das línguas
africanas, como Ponciá, Nêngua e Luandi. O prazer que o som da palavra me dá,
me ajuda na escolha dos nomes.
4 – E os personagens masculinos? Alguns não têm nome como o pai e o
marido de Ponciá...
Me preocupou muito também porque não dei nome para esses dois, e
coincidentemente são personagens masculinos. Não quis dar invisibilidade a eles...
E existem no romance os personagens Luandi, Soldado Nestor, Negro Climério...
130
Quanto a este último nome, gosto da sonoridade, assim como gosto de Alírio,
personagem de Becos da Memória. Já o nome Davenga, personagem do conto
“Ana Davenga”, surgiu assim: eu estava em algum lugar quando alguém contou de
um Davenga que dançava jongo. Achei na hora o nome bonito. Agora, em Ponciá
Vicêncio, fui ao dicionário banto para escolher palavras como “angorô”. Eu sabia
que as pessoas associariam o arco-íris ao mito de Oxumaré, mas quis valorizar a
cultura banto.
5 – O que personagens como Nêngua Kainda e Vô Vicêncio representaram na
criação do romance, já que elas estão tão ligadas à memória coletiva?
Algumas vezes crio primeiro os personagens e depois o enredo do romance. Não
me lembro se foi assim com Ponciá Vicêncio, porque o escrevi há muito tempo.
Quando criei a personagem Nêngua, achei-a parecida com o personagem velho e
sábio que dá nome ao romance Jubiabá, de Jorge Amado. Se foi uma influência,
não sei. Lembro pouco do personagem, mas sua imagem de conselheiro ficou na
minha memória. Quando escrevi “Ana Davenga”, a primeira imagem que me veio
na cabeça foi a de “Meu guri”, de Chico Buarque. Com isso quero dizer que há
interferências, intertextos. Isso para explicar que eu realmente não sabia o
significado de Nêngua, mas pode ter havido certa influência intuitivamente,
inconscientemente. A escrita tem muito disso. Às vezes me dá uma certa
insatisfação por ser Vô Vicêncio. Eu acho que eu queria que fosse uma avó. Depois
que reli o texto fiquei pensando: porque eu não coloquei uma mulher? Também
outro aspecto que chama a atenção no romance é que a esperança e a resolução
do enredo vêm através de Luandi, pela sua retomada de consciência.
6 – Em Ponciá Vicêncio, a questão da arte é fundamental para a estrutura do
romance. Como você vê o trabalho do barro feito por sua protagonista?
O barro pra Ponciá é a arte. E eu acho que a arte é uma forma de escapatória.
Como foi para Bispo do Rosário. A arte te dá a possibilidade de viver no meio de
tudo sem enlouquecer de vez. Ela permite suportar o mundo. O ser humano tem
essa necessidade. O que mantinha Ponciá viva e o que possibilitou o reencontro
com sua família foi o barro. No final, quando ela anda em círculos é como se
estivesse trabalhando uma massa imaginária. Ela cuida das ausências porque
estas se percebem e se transferem para o corpo, como com Vô Vicêncio, com o
braço cotó. A ausência de sua mão é que o faz reconhecido, percebido. Eu
trabalhei bastante o texto final do livro. Eu queria falar da própria arte da literatura.
Quando construo o texto e trabalho as palavras, é como Ponciá trabalha o barro.
Aquele cuidado dela é como o que a escritora tem com a feitura do texto. No final,
são passado e presente se juntando. Há um trecho que ilustra isso [a escritora abre
131
o livro e lê em voz alta]: “com o zelo da arte, atentava para as porções das sobras,
a massa excedente, assim como buscava ainda significar as mutilações e as
ausências que também conformam um corpo. Suas mãos seguiam reinventando
sempre e sempre. E quando quase interrompia o manuseio da arte, era como se
perseguisse o manuseio da vida, buscando fundir tudo num ato só, igualando as
faces da moeda (PV, 131)”. Essa arte é a escrevivência.
7 – E sobre o orixá Nanã e sua relação com o barro no romance?
Quanto ao mito de Nanã, eu não me lembrei dele quando escrevi o romance. Eu
sabia do mito de Oxumaré, embora não tenha me vindo à cabeça quando escrevi o
livro. O arco-íris veio de minhas lembranças de menina.
8 – Sobre o final do romance, há algumas interpretações que o consideram
triste, com a protagonista terminando louca. O que você acha?
Acho que no final Ponciá se apazigua, porque se viver a loucura até as últimas
consequências é uma forma de apaziguamento, ela se apazigua. Em seu momento
de ausência, no olhar vazio, ela via muito mais do que outras pessoas. Mas há
muitas interpretações, como a morte de Ponciá, um afogamento... Já me pediram
que escrevesse outro romance a partir do final deste, mas acho que nunca será
Ponciá novamente. Admito que há uma tristeza que persegue a personagem e
acredito que essa tristeza é a própria solidão do ser humano.
9 – Sabemos que seus dois romances demoraram a chegar ao público. Como
é seu tempo de elaboração da escrita?
Eu demoro a escrever. Não acho que preciso correr. Tenho dificuldade para cumprir
os prazos [risos], meu tempo é outro. Mas essa demora ocorre primeiro, porque tem
a questão da insegurança: “Será que esse texto está bom mesmo? Será que já
posso mostrá-lo?”. Aí se junta a dificuldade de publicar um livro também. Ponciá só
foi publicado porque a professora Maria José Somerlate, depois de tomar
conhecimento do livro, insistiu que eu o publicasse, mas apesar da vontade, eu
tinha inibição. Então Maria José me apresentou a Mazza, que publicou o livro
através de sua editora.
10 – Na Literatura Afro-brasileira são comuns as apropriações e as paródias.
Como é o caso de Oliveira Silveira e a "Outra Nega Fulô", também "Licença,
meu branco", de Márcio Barbosa, que parodia Manuel Bandeira. Esses são
exemplos de poemas, mas, no seu caso, podemos considerar Ponciá Vicêncio
uma apropriação do gênero "romance de formação"?
Olha, quando li seu texto e o de Eduardo percebi que a trajetória de Ponciá
Vicêncio não é uma trajetória do herói clássico, parece que ela chega ao final sem
nada. E Luandi joga fora aquela vitória, aquela farda e vai começar por outro
132
caminho, que não seria o chamado “vitorioso”. Em Becos da Memória, temos Vó
Rita, que também não tinha bens materiais, e sua trajetória no final ganha outros
contornos. Zilá Bernd, por exemplo, afirma que Zumbi representa esse grande herói
porque, além de ser um escravo, ele era um escravo fugido. Em Salvador, nas
comemorações dos 300 anos de Zumbi, foi declamada uma frase que ficou entre
nós: “estamos comemorando 300 anos da imortalidade de Zumbi”. Fiquei pensando
nessa trajetória de heróis que a gente conhece e fiquei pensando nesse Zumbi cuja
vitória nós ali ainda comemorávamos 300 anos depois. Sua heroicidade vem da
resistência e persistência. Por isso foi um herói negro, embora hoje seja
considerado um herói nacional. Quando Solano Trindade canta que sua voz é a voz
de Zumbi, ele se sente seu herdeiro. Então, a heroicidade de Zumbi não se
completa nele, ela se faz ao longo dos anos na própria coletividade que ele
representa. Daí fico pensando: será que os textos Ponciá Vicêncio e Becos da
Memória não apontariam uma forma diferente de desenrolar a história? O que
indica que Ponciá perdeu? Será que encontrar sua ancestralidade é uma perda?
Será que Vó Rita continuando todo trabalho dela, saiu sem nada? A narradora de
Becos tem a certeza, desde o início, que um dia escreveria aquela história. Essa
forma de escrever ou reescrever apresenta sim uma paródia, mas não explícita.
Uma vez ouvi Marina Colasanti lendo um conto seu lindíssimo que se chama
“Menina de vermelho a caminho da lua”. Quando ela acabou a leitura, alguma coisa
me incomodou. Em conversas com Miriam Alves, tentava descobrir o que era,
pensei que se fosse uma de nós escrevendo aquela história, seria diferente. Porque
a personagem que faz uma prostituta era culpada e algoz ao mesmo tempo, não é
uma prostituta Bilisa. Então se nós tivéssemos escrito “Menina de vermelho a
caminho da lua”, seria de outra forma, talvez aí esteja a paródia. (Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/ECAP76RF2H/1/alinearruda-texto.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2009).
Entrevista concedia a Carol Frederico – Revista Raça Brasil
1. Em obras como A escrava Isaura, uma visão deturpada da mulher negra,
embranquece a heroína e lhe confere características positivas por não ter
os traços negros. Quais são as consequências disso?
Quando a mulher negra passa por esse processo, continua sendo desvalorizada na
sua condição de mulher. Ainda se espera que determinadas funções ou lugares não
sejam propícios para as mulheres negras. É muito mais fácil para a sociedade
133
brasileira aceitar uma negra rebolando com a bunda de fora do que reconhecer a
competência de uma negra professora, de uma negra médica. Eu não sei até que
ponto essas mulheres eram realmente fogosas, ou se isso era atribuído a elas. O
fato é que a sociedade espera que você cumpra determinadas funções e tenha
determinadas características que vêm sendo coladas à imagem das mulheres
negras há anos e anos.
2. Para a senhora, qual é a diferença entre ser mulher negra e simplesmente
mulher?
É muito diferente. A questão étnica pode ter um peso bem grande, mas vai
depender muito da situação em que se está. Na questão do feminismo, por
exemplo, enquanto as mulheres brancas precisaram sair às ruas para ficar livres da
tutela do pai, do marido ou do irmão, esse não foi o nosso caso. Não precisamos
lutar para ficar livre da dominação e querer trabalhar. A gente sempre precisou
trabalhar. O nosso feminismo vem para a gente se afirmar como pessoa. Eu acho
que a nossa primeira luta feminista não foi contra o homem negro, mas contra os
nossos patrões e patroas. Enquanto a primeira luta da mulher branca e da mulher
de classe média foi contra os homens de sua própria família – e eu não estou
dizendo que o homem negro não seja machista –, nós nos posicionamos primeiro
contra o sistema representado, principalmente, pelo homem branco e pela mulher
branca.
3. A Senhora acredita que o discurso dos negros está mudando, no sentido
de fugir do discurso produzido nas décadas anteriores, carregado de
lamentos, mágoa e impotência?
Há uma mudança, sim, e sempre tenho exposto isso. Há alguns anos, nossa
afirmação étnica era uma de lamento, depois passou a uma de orgulho e hoje é de
reivindicação.
4. E como essa reivindicação vem?
Essa reivindicação vem justamente porque nós estamos fazendo questão de estar
em todos os espaços, nas universidades, na vida pública, nos meios de
comunicação. Por isso acredito que hoje há uma afirmação que reivindica. Mas eu
também acho que a gente não deve esquecer o passado, pois ainda precisamos
exorcizar essa nossa dor. Creio que não esquecer impulsiona você a cobrar,
porque nada que a sociedade está nos oferecendo é de graça. Então vale
relembrar o passado. Estão nos devolvendo tardiamente o pouco do muito que nos
tomaram. Essa lembrança deve ser fortalecida para sabermos sempre por que
estamos cobrando. Não é um muro de lamentações. Eles nos roubaram e a gente
não pode perder essa perspectiva do passado – mas olhando sempre para o futuro.
134
5. Entre os escravos e quilombolas não havia registro escrito porque a
maioria era analfabeta. Qual é a importância da história oral?
A maior importância é essa fonte de possibilidades que a história oral revela, na
medida em que ela me dá um conhecimento que foi negado ou disfarçado. Nossos
antepassados vêm de uma cultura oral e o que poderia ter sido escrito não foi. A
literatura, quando escreve a nosso respeito, o faz de outro modo. A oralidade é uma
forma de dialogar com muita coisa que se desconhece.
Quando paro a fim de escutar a história das pessoas, principalmente daquelas com
mais idade, vejo quanta coisa a gente não sabe, que um livro não traz, e que só
eles mesmos, com a sua sabedoria, podem nos contar. Uma coisa que também
gosto de dizer é que eu não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras. Os
escritores que conheço, que vêm de uma classe média, dizem “eu nasci rodeado de
livros”. E eu digo: “Eu não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras, num
ambiente onde contar histórias era uma coisa natural”. "A PRIMEIRA LUTA
FEMINISTA DAS MULHERES NEGRAS NÃO FOI CONTRA O HOMEM NEGRO,
MAS CONTRA OS NOSSOS PATRÕES E PATROAS"
6. A mulher negra está entre os maiores índices de pobreza. Elas não vão
deixar de ser negras, mas como deixar de ser pobres?
Deixar de ser pobre é uma coisa mais complicada, mas penso que você pode
conseguir uma vida um pouco mais digna. Quando olho para trás e vejo que não
moro mais numa favela, é porque consegui estudar, tenho uma profissão. Mas
deixar de ser pobre implica ter uma estrutura sedimentada que ainda não
possuímos. Não temos herança econômica. Poucos negros hoje na sociedade
brasileira têm uma casa própria.
Dificilmente você encontra um negro que tenha herdado uma casa na Tijuca [bairro
carioca de classe média]. Portanto, deixar de ser pobre é uma luta que requer a
acumulação de bens econômicos, propriedades, uma herança. Isso já acontece em
termos individuais, mas não com a coletividade, pois você ainda não tem uma
maioria em profissões liberais, em cargos privilegiados.
Estamos saindo de um estado de miséria, só que não é uma conquista coletiva.
Apenas o estudo abre essa perspectiva, mas também não podemos pensar que a
educação faz milagre, porque há muitos negros formados e sem emprego, por uma
questão social. (Disponível em:
<http://racabrasil.uol.com.br/Edicoes/96/artigo15620-1.asp>. Acesso em: 12 dez.
2013).
135
Entrevista concedida a Giselle Araújo – revista D+
A autora Conceição Evaristo, nascida e criada numa favela de Belo Horizonte,
trabalhou como doméstica, estudou magistério e só conseguiu emprego no Rio de
Janeiro, onde consolidou a carreira de professora. Escreveu Ponciá Vicêncio na
década de 1990 e deixou na gaveta, até que decidiu bancar os primeiros mil
exemplares, em 2003. Com textos publicados nos Estados Unidos, Inglaterra e
Alemanha, além da coletânea Cadernos negros, do grupo paulista Quilombhoje,
Conceição Evaristo revela em entrevista ao D+, a riqueza do universo feminino
desvendado na literatura afro-brasileira.
1- Como você ingressou na literatura?
Escrevo desde a infância, guardando os textos, sem saber se tinham valor literário.
Sempre encontrei na escrita uma maneira de suportar o mundo. Era o que me
permitia viver, questionar, buscar respostas. Ganhei um prêmio de literatura, por
volta dos 10 anos, quando terminei o primário, na Escola Estadual Barão do Rio
Branco, em Belo Horizonte. Nos anos 1990, tive poemas e contos publicados pela
primeira vez, na coletânea Caderno Negros, do grupo Quilombhoje, de São Paulo.
Em 2003, banquei a publicação de Ponciá Vicêncio, pela Mazza Edições, obra que
escrevi na década de 1990. Mas meu primeiro livro foi Becos da memória, escrito
em 1988 e publicado em 2006.
2- Você enfrentou muita resistência do mercado editorial?
Deixei os livros na gaveta até que resolvi bancar as primeiras edições, porque,
como nova escritora, não conseguia chegar a nenhuma editora, e me entristeci com
isso. Um autor já consagrado ou com presença na mídia tem mais acesso, ainda
que escreva uma baboseira. Mas a situação é mais complicada para quem não está
na mídia e ainda é negro e mulher. Se eu disser: fale cinco nomes de escritores
brasileiros, todo mundo lembra rápido. Para citar mulheres escritoras, será preciso
um esforço de memória. E se eu pedir o nome de uma escritora negra brasileira, o
exercício será bem maior. Minha experiência traz à cena, sem sombra de dúvidas,
grandes escritoras afro-brasileiras, como Geni, Guimarães, Lia Vieira, Míriam Alves,
Maria Helena Vargas, Ana Cruz, entre outras. Infelizmente, as pessoas ainda
esperam que a mulher negra se mantenha em determinados espaços, cumprindo
funções como cozinhar, cantar, dançar.
3- Nessas condições, o que representa ter um livro na lista do vestibular de
uma grande universidade?
Tenho recebido e-mails de jovens, negros e brancos, que leem o livro e se
identificam com a história. Percebo que, num mundo tão seco de emoções, a
136
palavra literária ainda pode criar possibilidades de pessoas diferentes se
encontrarem. Tem sido uma experiência muito gratificante ter tanto retorno de
jovens de outras realidades, além da classe de onde saem os elementos do
romance. Vejo que estando na lista do vestibular, chegando a escolas públicas, o
livro encontra a possibilidade de retornar à sua origem. Ponciá Vicêncio é centrado
numa comunidade afro-brasileira e, ao ser alçado por jovens das escolas públicas,
onde há muitos afrodescendentes, possibilita a identificação desses leitores com
elementos da sua cultura sendo romanceados e valorizados, numa obra indicada
para reflexão no vestibular.
4- Como os estudantes devem ler Ponciá Vicêncio para conseguir bons
resultados na prova?
Não tenho a mínima noção do que será cobrado no vestibular. Acho que os
estudantes deveriam observar a maneira de construção das memórias de Ponciá.
Em determinados momentos, a fala do narrador se confunde com a fala da
personagem, que segue retomando suas memórias. Também é interessante
observar que o texto tem uma marca de oralidade muito grande. Estou há mais de
30 anos no Rio de Janeiro, mas a linguagem mineira não deixa de me atrair. As
marcas de linguagem apontam para as culturas africanas, revelando a influência da
etnia bantu na cultura negra do Brasil. Em muitos momentos, a narrativa de Ponciá
se estabelece como um monólogo, expressando a intensidade interior da
personagem. Para além da estrutura do texto, eu, como leitora, fico muito tocada
com a afirmação de humanidade, não só de Ponciá, como de todos os
personagens, como a prostituta Biliza e a velha Néngua Kainda, que representa o
respeito que as culturas africanas têm pelos mais velhos e sua sabedoria adquirida
pela vivência.
5- A vida de Ponciá expressa a história de Conceição Evaristo?
Há uma relação muito grande entre o sujeito autoral com a ficção na literatura afrobrasileira. Mas Ponciá tem uma história própria, embora eu parta da vivência na
comunidade negra para tirar os elementos da ficção. Começando minha história
pelo lado feliz, digo que voltar a Belo Horizonte como escritora, com um livro
indicado pela UFMG, consagra uma vida vitoriosa. Nasci e fui criada na cidade, em
situação de extrema pobreza, numa favela no Bairro Cruzeiro. Em 1971, ainda
morava na favela, que foi desapropriada, nos causando muita dor. Atravessei o
chão da cidade com trouxas de roupa na cabeça para trabalhar na casa das
patroas, ajudando minha mãe a catar papel para completar a renda. No entanto, a
cidade me deu régua e compasso, e eu sai traçando meus caminhos. Tive muito
apoio da família, especialmente da minha mãe e tia, para mudar o destino que as
137
pessoas queriam que ficasse estabelecido para mim. Lembro-me que a professora
de biblioteca Luiza Machado Brandão saiu em minha defesa quando outros
professores se posicionaram contra o resultado do concurso de redação. Como
prêmio, ganhei um missal, um livro para acompanhar as missas, que tenho até
hoje, com dedicatória dessa professora, de quem eu gostaria de ter notícias.
(Disponível em: <www.santaluzianet.com/modules/news/article.php?storyid=674>
Acesso em: 12 dez. 2013).
Entrevista concedida ao Laboratório de Políticas Públicas da UERJ
1 – Ainda hoje são pouco conhecidas personalidades que fazem parte do
histórico de luta da população negra no Brasil ao longo dos séculos. Na
literatura brasileira também é possível perceber a influência de escritores
negros na luta contra a discriminação?
Sim, sem qualquer dúvida. Creio que uma leitura mais atenta de vários textos de
escritores negros ao longo da literatura brasileira nos fornece essa resposta. Alguns
conseguiram criar um discurso literário marcadamente opositor à mentalidade da
época. Por exemplo, Caldas Barbosa (1738-1800), famoso por seus lundus, ainda
no Brasil Colônia, tenta responder, por meio de versos, aos vários insultos que
recebia, como o de ser descendente da “nojenta prole da rainha ginga”, dirigido
contra ele pelo poeta português Bocage (1765-1805). Poetas, romancistas como
Luiz Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, Lino Guedes, Solano Trindade e muitos
dos escritores contemporâneos, incansavelmente, produzem obras que auxiliam e
que valem mesmo como discurso contra o racismo.
2 – Quais são os autores ou obras brasileiras que a senhora destacaria em
função da presença da discussão racial ou outras manifestações de luta da
população negra? E que autores foram esquecidos por nossa literatura?
O primeiro que eu destacaria seria Luiz Gama (1830-1882). Com seus poemas
satíricos, aponta na sociedade da época a pretensão racista de se constituir e de se
apresentar como uma sociedade branca. Cruz e Souza (1861-1898), com a sua
negritude angustiada. O grande poeta simbolista do Brasil morre em estado total de
miséria, esquecido pela crítica da época. E quando recuperado, é apontado como
um poeta que tenta escapar de sua condição étnica – conclusão tirada a partir de
certas metáforas que Cruz e Souza utilizava nas construções de seus versos –.
Criações importantes do poeta foram deixadas no esquecimento, ou melhor, no
desconhecimento, como “Núbia” e o poema em prosa “Emparedado”, em que a voz
138
autoral negra do poeta se faz ouvir. Referência maior talvez seja a de Lima Barreto
(1881-1922). Desprezado por muito tempo pela crítica literária, mas nas últimas
décadas já se encontra plenamente recuperado pelas pesquisas acadêmicas. Lima
Barreto, segundo o seu biógrafo Regis de Morais, denominava o espaço familiar em
que vivia como “Vila Quilombo”. Ao meu ver, ele é o escritor que mais
contundentemente coloca o dedo na ferida do racismo brasileiro. Sua obra,
notadamente em Recordações do Escrivão Isaias Caminha e em Clara dos Anjos,
proporciona várias discussões sobre os modos das relações raciais da sociedade
brasileira. Em 1903, em seu Diário Íntimo, Lima Barreto relatava o desejo de
escrever sobre a escravidão no Brasil, e a influência desse processo na
nacionalidade brasileira. Em 1905, o escritor volta a registrar a mesma ideia. Queria
escrever um romance que falasse da vida e do trabalho dos negros em uma
fazenda. E não podemos esquecer a escritora maranhense, Maria Firmina dos
Reis, (1825-1917) também muito pouco conhecida. Os compêndios tradicionais da
historiografia da literatura brasileira não citam a escritora. Há, entretanto, estudos
que apontam Maria Firmina como a autora do primeiro romance abolicionista,
Úrsula, escrito por uma mulher. Registros comprovam a presença dela em jornais
maranhenses publicando poesias, contos, crônicas e também como compositora de
um hino para a abolição da escravatura, segundo informações do pesquisador de
literatura afro-brasileira, Prof. Eduardo de Assis da UFMG.
3 – Ao longo do processo histórico e social de constituição da nossa
sociedade, em muitas áreas, o negro foi invisibilizado. A senhora percebe
este processo de invisibilidade do negro nas obras de Literatura Brasileira,
assim como na área acadêmica? Como isso acontece?
Se a pergunta for sobre o negro como personagem, eu me arriscaria a dizer que
nesse sentido não pesa uma invisibilidade sobre o negro, mas sim estereotipia. A
literatura brasileira está repleta de personagens negras, tanto no verso, como na
prosa. O que há é uma estereotipia do negro nos textos literários. Gregório de
Matos (1623-1696) já compõe uma representação da mulher africana escravizada
em seus poemas. De seus versos afloram o desprezo pelos mestiços e o apetite
sexual que os portugueses tinham pelas mulatas. A literatura brasileira segue ao
longo do tempo difundindo estereótipos de negros em várias obras. Textos escritos
no passado e na contemporaneidade repetem, revitalizam, reatualizam estereótipos
tais como: o do negro Pai-João, o da Mãe-Preta, o do negro preguiçoso, libidinoso,
o do negro infantilizado, o da mulher negra boa de cama, o da mulata fogosa,
permissiva, etc., etc. É só atentarmos para personagens como: Pai Benedito, em
Tronco do Ipê, de José de Alencar (1829-1877), infantilizado pela incompetência
139
linguística para articular a “língua de branco”. O mesmo estereótipo aparece na
obra São Bernardo, de Graciliano Ramos (1892-1953). A personagem Casemiro,
aliás, uma retomada do estereótipo do escravo fiel, aparece retratada como alguém
possuidor de uma dificuldade de linguagem. Na narrativa, se lê que Casimiro mal
articulava poucas palavras, e quando estava contente “aboiava”. Rita Bahiana e
Bertoleza, em O Cortiço, de Aluisio de Azevedo, (1857-1913) são imagens
estereotipadas de mulheres negras. A primeira é desenhada como a mulata em que
tudo nela é sexualizado, do corpo à voz. A segunda surge idiotizada, animalizada e
“morre focinhando”, segundo a narrativa. Por sua vez, Gabriela, Cravo e Canela, de
Jorge Amado, (1912-2001) representa uma mulher-natureza, incapaz de entender
qualquer norma social. Nessas e outras obras da literatura brasileira, normalmente,
as personagens negras surgem estereotipadas em concordância com a maneira
como o negro é percebido pela sociedade. Não há uma ausência do negro e da
cultura negra nos textos literários brasileiros. O que existe é uma representação
deprimente sobre nós negros. Nesse sentido, é preciso pensar que a cultura
dominante tem o poder de se representar e de representar as outras culturas
circundantes.Se pensarmos na invisibilidade do escritor negro, temos de levantar
ainda uma outra questão: a do processo de branqueamento que certos indivíduos
sofrem quando circulam; quando vivem em espaços sociais tidos como “lugares de
branco”. A instituição literária é lugar de uma maioria branca e do sexo masculino.
O processo de branqueamento que Machado de Assis sofreu é exemplar. Desde a
transfiguração de seus retratos, como a pouca circulação dos textos em que
Machado traz a questão da escravidão. Por isso, esperamos com muita ansiedade
um trabalho de pesquisa, feito por um professor da Federal de Minas, já citado
nessa entrevista. Esse estudo pretende trazer textos jornalísticos de Machado
assinado por pseudônimo, em que o fundador da Academia Brasileira de Letras, se
coloca diante da questão escravocrata. Mas, os críticos literários, até hoje, optam
por apontar um Machado de Assis branco. Há uma gama de escritores negros, e
aqui eu estou incluindo os mestiços, que nós desconhecemos. Castro Alves,
Manuel da Silva Alvarenga, Gonçalves Dias, Teixeira e Souza – autor do primeiro
romance brasileiro –, Gonçalves Crespo, a poetisa Auta de Souza, Paula Brito,
poeta, contista, novelista, tradutor e iniciador do movimento editorial no Brasil. Foi
ele o primeiro editor de Machado de Assis. Paula Brito e outros trazem uma
ascendência africana ou indígena que raramente aparece destacada. O modernista
Mário de Andrade era mulato. Reafirmo que, se procurarmos somente a
afrodescendência, vários autores tiveram papel marcante na literatura brasileira.
Entretanto, quando pensamos na assunção dessa ascendência, como um dado
140
para a própria escrita, nomeamos aqueles/as, cuja referência de datação se coloca
a partir dos anos 20 até a contemporaneidade. São escritores/as que trazem uma
escrita profundamente marcada por suas experiências de afrodescendente.
Começamos por Lino Guedes que assume uma “negritude” em seus textos, mesmo
que de forma lamentosa. Solano Lopes, por declamar: “negros que exploram
negros não são meus irmãos”. Abdias do Nascimento, pela contundência de seu
discurso poético em consonância com o seu discurso político. Adão Ventura, um
dos primeiros que conheci no exercício de poetar as dores do negro mineiro.
Edimilson de Almeida, Ricardo Aleixo, Waldemar Euzébio, poetas mineiros de
agora. Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira,
Marcio Barbosa, Jamu Minka, Oubi Inaê Kibuco, José Carlos Limeira, Landê
Onawale, Semog, Salgado Mariano, Nei Lopes, dentre outros, contistas, poetas e
também estudiosos, pesquisadores da cultura afro-brasileira. As mulheres, Geni
Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de
Yemonjá, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Maria Helena Vargas da Silveira
e outras, contistas, poetisas, romancistas, cronistas, nomes, que aparecerão com
mais vigor na cena literária, quando estudiosos atentos às diversidades da cultura e
da literatura brasileira se debruçarem sobre o novo. Uma geração novíssima vem
despontando em Cadernos Negros, cito alguns nomes: Andréia Lisboa de Souza,
Atiely Santos, Cristiane Sobral, Allan da Rosa. E não posso deixar de citar aqui o
nome de Carolina Maria de Jesus que, audaciosamente, a partir de restos de papel
e lixo, feriu a pretensão brasileira que procura fazer uma “assepsia” na literatura,
tanto do ponto de vista da temática, como no da linguagem.
4 – Quais as contribuições, na sua opinião, que a Lei nº 10.639/2003 pode
exercer no ensino de Literatura e Língua Portuguesa na educação brasileira?
Existe material didático com abordagem sobre essa questão nesta área?
– A obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no Ensino
Fundamental e Médio, oficial e particular, sem dúvida alguma abre um espaço de
visibilidade aos aspectos poucos difundidos das culturas africanas e afro-brasileira.
É preciso forjar um reconhecimento de que as culturas africanas, aqui aportadas,
são formadoras da nacionalidade brasileira e não meras contribuições. A presença
do negro na cultura e no pensamento nacional extrapola o espaço da arte
relacionada ao canto, à dança, à culinária. Creio que a Lei nº 10.639/2003
proporciona, ou melhor, exige que se tenha um olhar mais diversificado sobre
literatura brasileira. Há autores e textos negros que são estudados, mas a partir de
uma ótica eurocêntrica. Procura-se, inventa-se um lado branco para esses autores,
assim como para os seus trabalhos. Hoje, novos textos estão chegando ao
141
mercado, e uma nova maneira de lidar com esses textos está sendo levada (ainda
em pequena escala, reconheço) aos professores. Uma escrita que trata dignamente
o universo histórico, cultural, político e religioso negro pede e força passagem. É
lógico que o mercado editorial e livreiro é impulsionado pelo lucro, pelo retorno e
não pela questão ideológica, mas no momento, abre-se uma brecha. As editoras
estão hoje mais propensas a investir em obras que desenvolvem temáticas relativas
às culturas africanas e afro-brasileiras. Quanto à divulgação dos textos afrobrasileiros em grande escala, temos algumas novidades. Cadernos Negros –
melhores poemas foi uma das obras selecionadas no vestibular da UFBA, desse
ano. Anteriormente, um livro de poesia de Edimilson de Almeida e de Ricardo
Aleixo, Roda do Mundo, apareceu incluído no vestibular da UFMG. Ano passado,
foi o livro de Waldemar Euzébio, Achados, que foi incluído no vestibular da cidade
de Montes Claros. E em 2008, o vestibular da UFMG trará o romance Ponciá
Vicêncio, de minha autoria. A presença de obras como essas no vestibular, penso
eu, ecoa os efeitos da 10.639. E quais as significações e quais efeitos da inclusão
de um desses livros no vestibular? Várias. Uma delas, sem dúvida, é a
possibilidade de ampliação do universo de leitores, entre alunos e professores.
5 – Qual a importância da Literatura Africana na Língua Portuguesa e na
Literatura Brasileira?
– Creio que essa pergunta coloca dois níveis de questões distintas. Eu diria que a
importância das Literaturas Africanas na Língua Portuguesa estaria na possibilidade
de ampliação de sentidos da própria língua portuguesa. Os escritores africanos que
herdaram da colonização portuguesa, como nós herdamos, o idioma português,
fazem “maravilhas”, produzem novos efeitos estéticos com uma língua que, desde
que emigrou da metrópole para as suas antigas colônias, deixou de ser só a língua
de Camões. Transformou-se em uma língua que ganhou novos donos, novas
marcas culturais, diversificou-se, enriqueceu-se ao misturar-se com locais falares,
por onde ela aportava. Falamos, todos nós, uma mesma língua. Falamos e não
falamos... E do ponto de vista da linguagem, nesse falar e não falar a mesma língua
portuguesa reside, muitas vezes, o fundamento estético dos textos africanos. A
segunda pergunta, talvez seja preciso inverter. Seria qual a importância da literatura
brasileira nas literaturas africanas? Interessante observar que os escritores
brasileiros, notadamente os modernistas, tiveram uma grande influência nas
literaturas africanas de língua portuguesa. Jorge Amado, Guimarães Rosa, o poeta
Manuel Bandeira e outros marcaram a escrita de escritores africanos. Há vários
textos africanos que dialogam com uma escrita brasileira. Só para exemplificar,
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podemos pensar na escrita do angolano Luandino Vieira e do moçambicano Mia
Couto. (Disponível em:
<http://www.lppuerj.net/olped/acoesafirmativas/boletim/31/entrevista.htm>.
Acesso
em: 23 ago.2014).
Entrevista concedida a Edimilson de Almeida Pereira.
PEREIRA, Edimilson de Almeida. Malungos na escola – questões sobre culturas
afrodescendentes e educação. São Paulo: Paulinas, 2007.
EAP: Em suas palestras, você costuma dizer que a convivência em família,
especialmente com sua mãe, foi decisiva para lhe despertar o gosto pela arte de
contar histórias. Como foi essa convivência? E que histórias você ouviu de sua
mãe?
Sim e gosto de afirmar, eu não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras.
Na minha casa, sempre falamos muito, parece que falar tinha efeito diluidor da
pobreza, a miséria material que nos cercava. Minha mãe, mulher de silêncio, para
as suas dores íntimas, nos contava histórias, cantava conosco, fazia brincadeiras,
construía nossas bonecas, bruxas de pano e de capim. Não tínhamos rádio e a
televisão, acho que nem existia naquele tempo. Essas brincadeiras, que
aconteceram ainda na minha primeira infância, mas são tão vivas em minha
recordação. E foi ela também que me despertou para a maravilha do mundo
impresso, folheando revistas, nos mostrando gravuras, rindo das imagens e nos
colocando na escola, desde o jardim. Lembro-me que a primeira vez que ouvi a
história da “Galinha Ruiva”, foi ela nos contando, para mim e minhas três irmãs,
meninas. Aos sete anos fui morar com minha tia, irmã de minha mãe, essa tia tinha
histórias familiares que guardavam uma memória da escravidão. Conheci então
outras histórias, por meio dela e do marido dela. Meu tio velhinho que morreu com
quase 93 anos finais dos anos de 1960 e que curiosamente sabia ler e escrever.
Dele escutei uma história várias e várias vezes, que eu hoje reconheço como sendo
a do “Barba Azul”, era uma versão imensa. Acrescente-se a isso as histórias de
assombrações, de almas penadas e a própria maneira de expressar, uma
linguagem profundamente metafórica com os seus ditados, seus versinhos, suas
advinhas...
EAP: Em que medida a experiência com as histórias orais, em família, influencia o
seu processo de criação literária? Primeiro, creio que o ato de contação de histórias
despertou em mim o gosto pelas palavras, pela melodia, pelos sons da fala, da
linguagem. Meu tio, principalmente, fazia os gestos, emitia ruídos, batia os pés no
chão, estalava as palmas, batia nas portas vivenciando os atos dos personagens.
143
Eu sentia, vivia cada história intensamente. Eu sentia que meu tio brincava com as
palavras, abusava dos sons, me metia medo ou prazer, não só pelo fato narrado,
mas pelos gestos e entonação da voz. Acho que da fala de minha mãe, de minha
tia, do meu tio, das falantes brincadeiras com minhas irmãs, das conversas
escutadas dos vizinhos, acho que daí aprendi a amar as palavras e ao silêncio que
me leva a buscar por elas e a encontrá-las.
EAP: Recentemente, vieram a público dois livros de prosa, de sua autoria: Ponciá
Vicêncio e Becos da memória. Quais são as tramas e as intenções dessas obras?
Em Ponciá Vicêncio, a trama gira em torno de uma mulher, aparentemente apática,
lidando intensamente com a sua memória pessoal e profundamente marcada pela
solidão. A solidão de Ponciá dói no leitor, tenho ouvido esse comentário. A trama
vai se construindo pelo rememorar da personagem central, por uma espécie de
monólogo carregado de lembranças familiares, que implica em lembrar, ou melhor,
que se estende como memória de uma comunidade, de um povo. E assim outras
personagens vão surgindo ao longo da história com seus destinos cruzados com o
de Ponciá. Em Becos da Memória, a trama é marcadamente coletiva e se constrói
com um emaranhado de personagens, de histórias que vão sendo filtradas pelo
olhar de uma menina, inserida em uma favela que em que os moradores estão
sendo expulsos de suas moradias. A intenção das duas obras, e quem sabe de
toda a minha escrita é tentar escrever uma ficção, como se estivesse escrevendo a
realidade. Às vezes, fico pensando no privilégio do ficcionista, seja ele poeta ou
prosador, pela ficção conseguimos transformar a dor, a carência, a ausência, a
solidão, a alegria, o encontro, o prazer, enfim a vida e a morte em letras e em
exercícios de fala. Digo isso pensando principalmente nos jovens desesperançados
das grandes cidades, naqueles a quem nada foi ofertado, a não ser a
desesperança. E não conseguem avacalhar com essa desesperança, isto é, fingir
que é esperança e sair bem contando, bem cantando, bem escrevendo... Vejo
meninos com metralhadoras nas mãos, nos olhos, nas mentes...
EAP: A memória se apresenta como um dos eixos de sua obra em prosa. Que
memória é esta? Quando ela é ativada, que personagens elas trazem ao nosso
presente?
Acho que a minha memória é ativada sempre, ou pelo menos está em constante
estado de alerta, embora eu tenha lapsos frequentes de esquecimento. Que dia é
hoje, onde deixei minha bolsa, o que eu estava falando, para que horas ficou
marcada a reunião... Gosto de rememorar, gosto de viver outra vez. Às vezes
rememoro para entender o que vivi antes e não entendo. Esta limitação acaba me
pedindo um rememorar sempre. E isto seve para os personagens que crio. Ponciá
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Vicêncio queria entender o seu passado e o de sua família, queria entender a
herança deixada por um de seus ancestrais. A narradora de Becos da Memória, já
adulta, um dia lançando um olhar para o passado reencontra o seu eu-menina.
Escreve então a partir da visão que lhe era própria naquele momento de vida. E
afirma que está escrevendo como se fosse uma homenagem póstuma às pessoas
que ela havia perdido na infância e a tudo que ela guardava nos becos de sua
memória. Acho ainda que em alguns poemas trago também um trabalho com a
memória, por exemplo: “Vozes-mulheres” (CN13) “Meu Rosário” (CN15) dentre
outros; e contos como “Duzu-Querênça” (CN16) e “Olhos d’água” (CN28) trazem
também a inscrição de uma memória. Entretanto, são memórias que transitam
insistentemente pelo presente. Não escrevo sobre um passado acabado, resolvido,
sobre um episódio que tenha finalizado, mas sim, um passado que incomoda o
presente. Retomo memórias de uma história que ecoa ainda as suas
consequências no “aqui e agora”. Por isso Ponciá Vicêncio pode ser uma mulher de
ontem, que tenha chegado a uma cidade grande, no início do século passado,
como pode ser aquela moça, que nesse exato momento esteja saindo do interior
para uma metrópole, em busca de melhoria de vida.
EAP: Sua obra poética tem sido interpretada como um diálogo entre a linguagem
lírica (que tenta decifrar os enigmas do indivíduo) e a linguagem de cunho social
(que denuncia o racismo, a violência contra a mulher, etc.). Como você pensa a sua
criação poética?
Penso e desejo que a minha criação poética circule mesmo entre esses dois polos.
Estou pensando no conto “Ana Davenga” (CN18) em que os dois personagens
centrais são uma mulher e um homem, habitantes de qualquer favela do Rio, de
Minas, do Brasil, do mundo. No conto estão denunciadas as condições sociais de
uma grande parte da população brasileira nas grandes cidades. Mas no conto se lê
o amor dos dois. Desenho a mulher, Ana Davenga escolhendo seu homem, o
marginal, que é descrito como sujeito humano e que encontra essa humanidade no
amor de Ana, na relação a dois. Alguém leu esse conto e disse que eu fazia a
apologia do bandido. No conto “Maria” (CN14) também ocorre o mesmo. Maria,
uma mulher pobre, uma doméstica, ao voltar do trabalho e no itinerário de volta
para casa, o ônibus em que ela se encontra sofre um assalto. O assaltante era o
pai de um de seus filhos. E, durante os momentos que antecedem ao assalto, o
assaltante declara o seu amor pela mulher e pelo seu filho. Temos o rememorar
dessa relação nesse desesperado encontro. O final do conto é doloridíssimo. Ainda
em “Quantos filhos Natalina teve” (CN, 22) uma mulher depois de ter tido 3 ou 4
filhos e ter rejeitado a todos é vítima de um estupro e se descobre grávida. E, é
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justamente essa gravidez que ela assume, esse filho símbolo de sua solidão, que
ela compreende como sendo seu. Essas e outras personagens estão sempre
centradas em lugares de exclusão e além de suas carências materiais, seus
dramas existenciais afloram e não são construídas aleatoriamente, existem
motivos, intenções.
EAP: Sua obra de ficção tem sido, por várias vezes, comparada à da escritora afroamericana Alice Walker. Em que medida essas comparações são justificáveis?
Tem sido comparada também a de Toni Morrison. Para mim, um fator importante de
aproximação de nossos textos é o aproveitamento que fazemos do passado, um
esgravatar da memória compõe muito da matéria de nossa ficção. Lidamos com um
passado histórico comum – a escravidão. E, apesar de nossas histórias nacionais
serem diferentes, como mulheres inseridas em sociedades patriarcais e brancas,
vivenciamos situações muitas vezes semelhantes. Entre o lembrar e o esquecer
transitam os nossos personagens que em grande parte é formada por mulheres. O
tema da loucura é uma recorrência em nossos trabalhos. Pecolla, do livro O olho
mais azul, e Sula, personagem de Amada, enlouquecem nos livros de Morrison.
Duzu, Ponciá Vicêncio, Cidinha-Cidoca são personagens insanas em meus textos.
Herança cultural, maternidade, família, condição de vida das mulheres negras, a
vulnerabilidade a que estão sujeitas, assim como a capacidade de inventarem
formas de sobrevivência se constituem como temas de nossas escritas. Os nossos
textos carregados de experiências específicas de mulheres negras postadas em
sociedades diferentes permitem vislumbrar, entretanto, uma memória coletiva
compartilhada e que extrapola as fronteiras nacionais.
EAP: Você é professora da rede pública de ensino, no Rio de Janeiro. Em sala de
aula, há espaço para a convivência entre a poeta, a ficcionista e a professora?
Fui, acabo de me aposentar. A escola, os alunos, a possibilidade e a
impossibilidade do dia a dia de quem lida com a educação podem ser motivo de
desespero e de poesia. Ensinar é uma profissão que coloca a pessoa o tempo todo
em uma relação direta com a outra, principalmente se tratando de crianças e
jovens, mesmo que seja em uma relação de fuga. Correr do aluno, correr da escola,
correr da educação... Tenho uma preocupação imensa com o ato, com o direito e
com a necessidade da alfabetização para todas as pessoas que vivem em uma
sociedade letrada. Sabemos que a ausência do conhecimento da leitura e da
escrita significa exclusão para muitos. No livro Ponciá Vicêncio, a personagem, que
dá título ao livro, acreditava que a leitura lhe abria “meio mundo, ou melhor, o
mundo inteiro”. O desejo maior de Luandi, irmão de Ponciá, era aprender a ler e a
escrever para ser soldado. No conto, Duzu-Querença, a neta estudava e a sua avó,
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Querença, quando ainda pequena, ao ir para a cidade, fora com a promessa de que
a patroa lhe deixaria estudar. Como professora tive em meu tempo de magistério a
oportunidade de ser responsável pela biblioteca, de trabalhar em sala de leitura, de
ser a responsável por multimeios, tendo a liberdade de selecionar livros, textos,
vídeos para professores e alunos. Ah, então eu fazia a festa...
EAP: De que maneira a literatura pode contribuir para a apresentação de temas
das culturas africanas e afro-brasileiras em nossas escolas?
Sendo em princípio textos que despertem nos alunos o desejo de adentrar no
mundo da leitura, no mundo da literatura. Se o professor pretende usar o texto
literário para a apresentação de um tema novo, ou como uma nova maneira de
colocação de uma determinada temática, o texto em si tem de ser algo desejado
pelo aluno. E há diversas maneiras de despertar a atenção do aluno para um texto,
vários jogos podem ser produzidos antes do texto cair na mão do leitor. É
Interessante observar que os textos direcionados ao público adulto, ou aqueles que
mesmo sendo para crianças e jovens e que aparecem para um consumo fora da
escola, uma mídia é produzida antes até o lançamento do livro. Tudo visando
despertar a curiosidade e o desejo do leitor em obter a obra. Por que não descobrir
formas de preparar o aluno para o recebimento do texto? Jogos instigativos
relacionados ao título do podem ser feitos, como: o que o título do livro sugere para
você? Se você tivesse de escrever ou contar uma história a partir desse título,
como seria o seu texto? Uma pesquisa em torno do autor do livro pode ser proposta
anteriormente à leitura do livro. Pode ser apresentado um capítulo ou fragmentos
do texto ou ainda determinada estrofe, caso seja um poema e incentivar os alunos
para que eles completem o texto como se fossem coautores da criação que lhes foi
apresentada. No caso das crianças menores, ainda não alfabetizadas, o livro pode
ser oferecido a elas para ser manuseado, para que observem o desenho, criem a
sua história e só depois o professor entra apresentando a história. Essas e outras
formas instigam o desejo do leitor em conhecer o livro, o texto. O professor deve
estar sempre alerta para o tipo de leitura, que está sendo levada para a sala de
aula. E em se tratando das culturas africanas e afro-brasileiras o mercado, aos
poucos, vem oferecendo materiais excelentes, obras que procuram inclusive
atender às exigências da 10.639. A literatura, talvez mais até do que a História, pois
o texto literário primeiramente fala à emoção do sujeito, permite não só a introdução
dos temas das culturas africanas e afro-brasileira nas escolas e muito mais do que
isso. Ela propicia a assunção e o respeito por uma afro-brasilidade, tanto para o
aluno como para o professor, permite o reconhecimento do multifacetado rosto de
nossa identidade nacional.
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EAP: Em que medida se pode falar da existência de uma literatura afro-brasileira?
Qual a importância de se delinear esta linha literária e quais são os seus traços
característicos?
Para mim, a aceitação da existência da literatura afro-brasileira pressupõe reflexões
tanto em torno da estética, como da ideologia do texto. Eu não tenho nenhum
temor, não sinto nenhum mal-estar em não só afirmar a existência de uma literatura
afro-brasileira, como ainda me encaixar no grupo de autoras/es que cria um texto
afro-brasileiro. E diria até mais, os meus textos e de outras escritoras afirmam a
existência de um texto feminino negro, ou afro-brasileiro, como queiram. Como? O
meu texto se apresenta sob a perspectiva, sob o ponto de vista de uma mulher
negra inserida na sociedade brasileira. É exatamente nessa afirmativa que coloco
algumas indagações, pois tenho ouvido várias defesas em torno do ponto de vista,
da perspectiva negra do texto, como se esse dado se realizasse sozinho,
independente do autor. Ora, sei que esse ponto de vista pode ser procurado,
tentado, ensaiado por mãos que não sejam necessariamente negras, como sei
também que existem mãos negras desinteressadas e que se negam produzir
qualquer texto sobre essa perspectiva. Concordo com a afirmação bastante lúcida
de muitos, e reafirmo que não basta ao escritor/a ser negro/a para se fazer uma
literatura negra. Nos últimos dez anos talvez, as discussões em torno da existência
ou não de uma literatura afro-brasileira têm sido levantadas com mais frequência e
não podemos nos esquecer de que a expressão afro-brasileira substitui a
nomenclatura anterior, literatura negra, usada com frequência até os anos 1990.
Em meio às reflexões que têm sido levadas por pesquisadores, nacionais e
estrangeiros, escritores, leitores, homens e mulheres, negros e brancos, lá estamos
nós, os produtores dessa literatura. Minha reflexão gira em torno de uma indagação
simples. Quem constrói, quem inventa, quem cria o ponto de vista do texto? Ora se
a literatura afro-brasileira, como tem se apresentado em algumas discussões, se
atualiza, se identifica a partir do ponto de vista do texto, a partir da perspectiva da
escrita que se realizaria sob a ótica de um olhar negro conferido à escritura,
pergunto: o sujeito autoral da escrita é isento de qualquer participação nesse
mesmo texto. O texto nasce de quem? O texto não é uma criação de um sujeito?
Explicando melhor: para mim, a autonomia do texto em relação ao seu autor é
relativa e muito. O ponto de vista que atravessa o texto e que o texto sustenta foi
criado por alguém. Alguém que é o sujeito autoral. Sujeito da criação do texto e que
pode, inclusive, criar uma personagem que finge ser o autor e que faz parte da
própria ficção do texto. Alguém, entretanto criou esse fingidor que finge ser o autor
e esse alguém é o autor concreto, o fulano ou a fulana de tal criador/a da obra. E
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nesse sentido afirmo que quando escrevo, sou eu Conceição Evaristo. Uma cidadã
brasileira, negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares, mãe de
uma especial menina, Ainá, etc., que está a criar personagens, enredos, a escolher
modos de trabalhar com linguagem, a partir de uma história, de uma experiência
pessoal, intransferível. Afirmo que a minha condição étnica e de gênero, ainda
acrescida de outras marcas identitárias, me permite uma experiência diferenciada
do homem branco, da mulher branca e mesmo do homem negro e que tudo isso
influência a minha escrita conduzindo o ponto de vista, a perspectiva, o olhar que
habita em meu texto. Será que alguém escreve o texto do outro? Eu não me
acredito capaz de criar no meu texto uma perspectiva, um modo de olhar indígena
ou cigano, por mais que eu me compactue, me comprometa com as lutas desses
povos. Como eles, experimento uma história de exclusão, mas de um outro lugar.
Posso tentar e criar um arremedo talvez.
Retomando a segunda parte da pergunta, creio que um dos aspectos da
importância em se delinear a linha literária afro-brasileira está na imposição que se
coloca diante da Literatura Brasileira como um todo. Necessário se torna
reconhecer a potencialidade criativa, no campo da literatura, de uma categoria
étnica, social e de gênero (pensando aqui nas escritoras), que vem a longo dos
anos recebendo um olhar desvalorizativo da sociedade brasileira. Um outro aspecto
também a considerar é que ao delinear esta linha literária, forçosamente se impõe a
reescrita e a crítica da História da Literatura Brasileira. Novos nomes terão de ser
incorporados desde a formação da Literatura Brasileira à contemporaneidade. E,
talvez antes de tudo, visibiliza um discurso literário, que se apresenta como uma
fala desestabilizadora de um discurso produzido pelas elites e que pretende ser
hegemônico e representativo da nação brasileira. Como principais traços
característicos do discurso literário afro-brasileiro, destaco os seguintes: – a
afirmação de um pertencimento étnico; a busca e a valorização de uma
ancestralidade africana; a intenção de se construir como um contradiscurso literário
a uma literatura que estereotipiza o negro; a cobrança da reescrita da Historia
Brasileira no que tange a saga dos africanos e seus descendentes no Brasil;
enfática denúncia contra o racismo e as injustiças sociais que pesam sobre o negro
na sociedade brasileira.
EAP: A título de exemplo, numa oficina sobre a literatura afro-brasileira direcionada
à atualização de professores, que temas e autores você indicaria como referências?
Temas como:
Que imagens de negros, a escrita afro-brasileira pode desconstruir?
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Textos paróticos da Literatura Afro-Brasileira: Outra Nega Fulô, de Oliveira Silveira,
(Cadernos Negros, 11) e O que não dizia o poeminha de Bandeira, de Marcio
Barbosa (Cadernos Negros, 15) apresentados juntos aos textos inspiradores, Essa
Nega Fulô, de Jorge de Lima, e Irene Boa, de Manuel Bandeira, geram discussões
em torno das intenções da escrita afro-brasileira.
Poemas da África e da diáspora. Apresentação de poemas de autoria africana e
afro-brasileira promovendo uma leitura comparativa entre os textos, buscando
sinais de parentesco e distanciamento.
Diálogos: Literatura e Cinema Leitura de textos como o livro A Cor de Ternura de
Geni Guimarães em diálogo com o filme As filhas do Vento, de Joel Zito Araújo.
Apresentação de poemas de Edimilson de Almeida Pereira do livro Corpo Vivido e
de outros em diálogo com vídeos sobre Festas do Rosário, congadas, etc.
Pedagogia da Oralidade, palavras de sabedoria – Leituras de histórias sobre os
griots, como o livro Os comedores de Palavras, de Edimilson de Almeida Pereira e
Rosa Margarida de Carvalho Rocha. Apresentação de provérbios africanos
procurando ditos semelhantes, ou reminiscências desses que circulam na
linguagem brasileira. Apresentação de poemas afro-brasileiros que apropriam de
determinados signos das culturas africanas e afro-brasileira como matéria poética.
Por entre a Literatura e a História – Apresentação de textos literários afrobrasileiros promovendo uma leitura que tenha como contraponto texto da História
cuja versão não contemple ou distorce a saga histórica do negro brasileiro.
Apresentação de poemas que cante heróis e heroínas afro-brasileiros.
Tenho como sugestão uma lista de autores extensa, cito alguns que estão mais
próximos de nosso no tempo:
Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Jônatas da Conceição, Waldemar
Euzébio, Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Solano Trindade, Adão Ventura,
Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira, Marcio Barbosa, Semog, Salgado Mariano, Nei
Lopes, Jamu Minka, Allan Santa Rosa, Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda
Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de Yemonjá, Jussara Freire, Leda Martins,
Cidinha, Celinha, Maria Helena Vargas da Silveira. Conceição Evaristo.
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mara bilk de athayde título: "mito, arquétipos e