ENSINO FUNDAMENTAL: TRAJETÓRIA HISTÓRICA E PANORAMA ATUAL
Prof. Dr. Silvio Cesar Nunes Militão
Docente do Departamento de Educação da UNESP/Presidente Prudente
[email protected]
Mayara Faria Miralha
Discente do 5º semestre do curso de Pedagogia da UNESP/Presidente Prudente
[email protected]
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo precípuo analisar o ensino fundamental
brasileiro, até pouco tempo atrás a única etapa escolar obrigatória do país. Assim,
recupera e apresenta a sua história e legislação, bem como revela a sua situação no
tempo presente, cuja duração foi recentemente ampliada. Para tanto, valeu-se de
levantamento e análise bibliográfica acerca da temática em tela. Os resultados
parciais da pesquisa demonstraram que o atualmente denominado ensino
fundamental, após superar uma histórica situação de abandono quase total,
encontra-se hoje praticamente universalizado e com duração de nove anos. Tal
avanço é resultado, em grande medida, do esforço dos mais de 5560 municípios do
Brasil, crescentemente sobrecarregados pelas demandas de acesso à educação
básica, notadamente nos anos iniciais do ensino fundamental. Entretanto, os
resultados mostram também que os municípios brasileiros, numa realidade múltipla
e díspar, desprovidos dos recursos financeiros necessários para o cumprimento das
suas atribuições educacionais, ainda não conseguem construir/ofertar um ensino
fundamental municipal de qualidade para todos.
Palavras-chave: ensino fundamental; história e legislação da educação; qualidade
do ensino.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ensino Fundamental: um pouco de história
A história da educação escolar (formal) no Brasil tem inicio em 1549,
quando aqui chegam os padres da Companhia de Jesus (ordem religiosa católica),
incumbidos de comandar a educação brasileira. Na época, nosso país era uma
colônia portuguesa organizada sob a égide da monocultura da cana-de-açúcar para
exportação, baseada no latifúndio e no trabalho escravo.
Segundo Romanelli (1992), como a educação escolar não se fazia
necessária para o desenvolvimento das atividades de produção, no período colonial
ela permaneceu à margem e serviu mais como um mero símbolo de status para um
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limitado grupo de pessoas pertencentes à classe dominante (donos de terra e
senhores de engenho).
Contando com o incentivo e o subsídio da coroa portuguesa, os
jesuítas dominaram a educação brasileira por mais de dois séculos (1549-1759),
criando assim as nossas primeiras escolas, dentre elas as de primeiras letras,
correspondentes ao ensino fundamental de hoje
Durante esse longo período, os padres jesuítas não descuidaram da
catequese (objetivo principal da presença da Companhia de Jesus) e acabaram
ministrando também educação elementar para a população índia e branca em geral
(salvo as mulheres) nas criadas escolas de primeiras letras.
Contudo, a educação dada pelos jesuítas foi direcionando-se cada
vez mais para a formação das elites, dando inicio assim ao caráter de classes que
marca educação brasileira até os dias de hoje.
Conforme revela Romanelli (1992, p. 35), os colégios instalados
pelos jesuítas destinavam-se à educação média para os homens da classe
dominante, parte da qual continuou nos colégios preparando-se para o ingresso na
classe sacerdotal”. Tais colégios “[...] também preparavam para os estudos
superiores, em universidades européias, os jovens que não buscavam a vida
sacerdotal” (HAIDAR; TANURI, 1998, p. 59).
Entendendo que o sistema jesuítico estava mais articulado aos
interesses da própria Companhia de Jesus que àqueles da Coroa, o rei influenciado
por seu primeiro-ministro, o Marques de Pombal, expulsou os padres jesuítas de
Portugal e seus domínios em 1759.
Durante os mais de dois séculos (1549-1759) que dominaram a
educação brasileira, os jesuítas fundaram 17 colégios secundários e, “ao redor de
cada um ou em locais avançados do interior, dezenas de escolas de primeiras letras”
(MONLEVADE, 1997, p. 22). Assim, a partir de 1759, quando o sistema de ensino
montado pelos padres jesuítas no Brasil caiu por terra, o Estado passou a assumir,
pela primeira vez, a organização e os encargos da educação.
O orgânico (embora conservador e elitista) sistema jesuítico foi
substituído pelas aulas régias, um sistema não seriado de aulas avulsas, com
professores mal-remunerados e vitalícios no cargo, custeado por um novo tributo
colonial instituído somente em 1772, o subsidio literário, que incidia sobre a venda
de carne nos açougues e aguardente.
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Ao final do século XVIII a Colônia brasileira apresentava um quadro
educacional deplorável: além de “algumas aulas régias criadas com a reforma
pombalina”, possuía “algumas escolas primárias e secundárias, em mãos de
eclesiásticos” (ROMANELLI, 1992, p. 38).
No inicio do século XIX, o Brasil passou por importantes mudanças
políticas, sem que o modelo agro-exportador baseado na monocultura, no latifúndio
e no trabalho escravo sofresse alterações de monta.
Como revela Gadotti (1993, p. 18), a partir de 1808, com a vinda da
família real portuguesa para o Brasil, fugindo da invasão napoleônica, são criados os
primeiros cursos superiores (não-teológicos) na Colônia. Na avaliação do autor
supracitado, a preocupação educacional da monarquia portuguesa aqui instalada
restringiu-se à formação de quadros militares e administrativos de que necessitava,
bem como das elites governantes.
Infelizmente, a presença da família real no Brasil trouxe sensíveis
mudanças apenas para o ensino superior, ficando “os demais níveis de ensino em
situação de abandono total” (ROMANELLI, 1992, p. 38).
A Independência política, proclamada em 1822, também não veio
alterar, pelo menos de imediato, o quadro da situação educacional do país.
A Constituição do Império, outorgada em 1824, mesmo contendo
poucas indicações sobre educação, estabeleceu um importante principio: “a
instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”.
Entretanto, no Império, “o analfabetismo era a condição de instrução
da maioria da população e o Poder Público não desenvolveu esforços para
transformar a educação em política pública. Alem disso, a maioria da população era
constituída por escravos (não cidadãos)” (OLIVEIRA, 2007, p. 17).
Conforme aponta Saviani (1996, p. 26-27), “nossa primeira lei
nacional sobre instrução pública” data de 15 de outubro de 1827, a qual determinou
a criação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares
populosos. Entretanto, como a Lei de 15 de outubro de 1827 nada dispunha sobre
as condições materiais de sua implantação, ela acabou fracassando e a instrução
pública no país permaneceu em estado de abandono total.
O golpe de misericórdia no quadro da instrução pública brasileira veio
com o Ato Adicional de 1834, uma emenda à Constituição de 1824.
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Mediante a edição de tal Ato, o poder central se reservou o direito de
promover a educação superior em todo o Império e a educação no Município da
Corte, delegando às Províncias a incumbência de promover a educação primária e
secundária em suas jurisdições.
Como se vê, essa descentralização trazida pelo Ato Adicional de
1834 acabou por colocar a educação da elite a cargo do poder central e a do povo a
cargo das Províncias que, “inteiramente entregues a si mesmas, desamparadas
financeiramente pelo governo central, pouco puderam fazer em benefício da”
educação primária e secundária. (HAIDAR; TANURI, 1998, p. 64).
A partir de então foram criados nas capitais os liceus provinciais, na
tentativa de reunir antigas aulas régias em liceus, sem muita organização. Em
função da falta de recursos das províncias, “o ensino, sobretudo o secundário,
acabou ficando nas mãos da iniciativa privada e o ensino primário foi relegado ao
abandono, acentuando ainda mais o caráter classista e acadêmico do ensino”
(ROMANELLI, 1992, p. 40).
Assim, ao final do Império, o quadro geral da educação brasileira
pouco diferia da situação herdada do período colonial: “poucas escolas primárias, os
liceus provinciais, em cada capital de província, colégios particulares, em algumas
cidades importantes, e alguns cursos superiores” (ROMANELLI, 1992, p. 40).
Com a queda da monarquia, em 1889, começa o período conhecido
como Primeira República (1889-1930). Contudo, no que se refere especificamente
ao campo educacional, a instauração do novo regime político não trouxe alterações
significativas para a instrução pública brasileira, visto que a primeira Constituição da
República
pouco
modificou
a
divisão
de
responsabilidades
educacionais
estabelecida pelo Ato Adicional de 1834.
A Constituição da República de 1891, que consagrou também a descentralização
do ensino, ou melhor, reservou ao governo central o direito de “criar instituições de ensino superior e
secundário nos Estados” e “prover a instrução secundária no Distrito Federal”, delegando aos
Estados competência para prover e legislar sobre educação primária (ROMANELLI, 1992, p. 41).
Assim, mesmo com a queda do Império, continuaram a persistir o
dualismo educacional e a ausência de uma coordenação central e de uma política
nacional de educação que abrangesse todos os níveis de ensino (HAIDAR; TANURI,
1998). Na prática, isso significou a permanência da precariedade da instrução
primária durante a Primeira República, que subordinada “[...] inteiramente à iniciativa
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e às possibilidades financeiras dos Estados” (HAIDAR; TANURI, 1998, p. 78), pouco
avanço registrou.
Durante toda a Primeira República, uma série de reformas
educacionais foram tentadas no país, destacando: a Reforma Benjamin Constant
(1890), a Reforma Epitácio Pessoa (1901), a Reforma Rivadávia Corrêa (1911), a
Reforma Carlos Maximiliano (1915) e a Reforma João Luis Alves (1925). Sem
validade nacional, todas elas não lograram acarretar nenhuma mudança substancial
na educação brasileira (ROMANELLI, 1992, p. 42). Todas as reformas efetuadas
pelo poder central, limitaram-se quase exclusivamente ao Distrito Federal, que as
apresentava como “modelo” aos Estados, sem, contudo, obrigá-los a adotá-las
(ROMANELLI, 1992, p. 131).
Como bem lembra Gadotti (1993, p. 20), na década final da Primeira
República “os estados também realizaram várias reformas, destacando-se a de
Sampaio Dória, em São Paulo (1920), a de Lourenço Filho, no Ceará (1923), a de
Anísio Teixeira, na Bahia (1925, a de Francisco Campos, em Minas Gerais (1927), e
a de Fernando de Azevedo, no Distrito Federal (1928)”.
Contudo, a educação confiada aos entes federados permaneceu sem
profundas transformações na maior parte dos Estados do país durante a Primeira
República, tomando impulso apenas “[...] em determinadas regiões do sudeste do
Brasil, sobretudo em São Paulo” (ROMANELLI, 1992, p. 43).
A Revolução de 1930 marca o inicio da era Vargas (1930-1945) e
também de importantes transformações no campo educacional brasileiro. De inicio, o
governo provisório cria o Ministério da Educação e Saúde Pública, que tem como
seu primeiro Ministro Francisco Campos.
Já em 1931, o governo provisório baixou uma série de decretos
dispondo sobre a organização do ensino superior, secundário e comercial, que se
constituíram na chamada Reforma Francisco Campos.
Tal
Reforma,
contudo,
pecou
por
tratar
“de
organizar
preferencialmente o sistema educacional das elites”, deixando “completamente
marginalizados os ensino primário e os vários ramos do ensino secundário
profissional” (salvo o comercial) (ROMANELLI,1992, p. 134).
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Em 16 de julho de 1934 uma nova Constituição Federal foi
promulgada em nosso país. Em relação à educação, especificamente, muitas das
idéias defendidas pelos educadores da Associação Brasileira de Educação (ABE), e
que mais tarde foram traduzidas no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
tornaram-se preceitos constitucionais a partir da Carta de 1934.
Segundo Romanelli (1992, p. 151), a Constituição de 1934
representa uma vitória do movimento renovador, uma vez que quase todo texto
constitucional “referente à educação denuncia uma influencia bastante pronunciada
do Manifesto”.
Além de estabelecer a que a educação é direito de todos, a
Constituição de 1934 determinou a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino
primário e estabeleceu, pela primeira vez no país, a vinculação de mínimos
percentuais orçamentários para a educação, devendo a União e os Municípios
aplicar nunca menos de 10% e os Estados e Distrito Federal pelo menos 20% da
renda resultante dos impostos, no ensino.
Contudo, com o golpe que instalou o Estado Novo (1937-1945) a
Carta de 1934 logo foi substituída pela Constituição outorgada em 1937, a qual
tratou a educação muito restritivamente.
A partir de 1942, o Ministro da Educação Gustavo Capanema deu
inicio, ainda que de maneira parcial, a reforma de todos os ramos do ensino primário
e secundário. Entre 1942 e 1946, oito decretos-lei foram postos em execução
visando tal reforma, os quais tomaram o nome de Leis Orgânicas do Ensino.
O ensino primário, até então, praticamente não tinha recebido
qualquer atenção do governo central e ainda não havia diretrizes lançadas pelo
governo central para esse nível de ensino. Como era a administração dos Estados
que cuidava do ensino primário, as reformas referentes a este nível de ensino foram
todas feitas pelos Estados, mas de maneira isolada e sem muita continuidade
(ROMANELLI, 1992, p. 160).
Com a Lei Orgânica do Ensino Primário, enfim, o governo central
cuida de traçar diretrizes para o ensino primário, validas para todo o país. A partir de
então, tal nível de ensino ficou assim estruturado:
- ensino primário fundamental, destinado a crianças de 7 a 12 anos,
subdividido em:
841
-primário elementar (de 4 anos); e
- primário complementar (de 1 ano).
- ensino primário supletivo, de 2 anos, para adolescentes e adultos
que não receberam esse nível de educação na idade adequada.
Contudo, como ressalta Romanelli (1992, p. 163), na prática “o
ensino primário fundamental acabou por resumir-se no ensino primário elementar,
por falta de condições objetivas de funcionamento do ensino complementar”.
O regime instalado com o golpe militar de 1964 veio alterar
“sensivelmente a estrutura do ensino até então em vigor” no país (SAVIANI, 1997, p.
31).
Mediante a Lei nº 5.692/71 (fixa diretrizes e bases para o ensino de
1º e 2º graus), o governo militar reformou o ensino primário e secundário. A lei
supracitada criou o ensino de 1º grau, com duração de 8 anos, mediante a junção do
antigo curso primário e do ciclo ginasial do ensino médio.
Segundo Romanelli (1992, p. 237), assim, “eliminou-se um dos
pontos de estrangulamento do nosso antigo sistema representado pela passagem
do primário ao ginasial, passagem que era feita mediante os chamados exames de
admissão”.
A referida lei transformou, ainda, o ciclo colegial do ensino médio em
ensino de 2º grau, de caráter profissionalizante, abrangendo dois níveis de
habilitação profissional: auxiliar (3 anos de duração) e técnico (4 anos de duração),
cujos desdobramentos não se constituem em objetivo deste trabalho.
Ensino Fundamental: panorama atual e o desafio da qualidade
Com o fim do regime militar (1985), o Congresso Nacional deu inicio
ao processo de elaboração da nova Constituição Federal. Na Constituinte, instalada
em fevereiro de 1987, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública teve uma
participação de destaque ao defender que suas propostas fossem incorporadas no
“capítulo da Constituição referente à educação […], o que se conseguiu quase
totalmente” (SAVIANI, 1997, p. 35).
842
A Constituição Federal de 1988 (CF/88), chamada por Ulysses
Guimarães de “Constituição Cidadã”, “reconheceu vários direitos sociais”, com
consequentes ganhos para o campo da educação.
No caso do ensino fundamental, particularmente, o texto de 1988,
além de atribuir-lhe nova nomenclatura, explicita, no inciso I do artigo 208, o direito
de todos os brasileiros a este nível de ensino, ao afirmar que “o dever do Estado
com a educação será efetivado mediante a garantia de: “I – ensino fundamental,
obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade
própria”.
Conforme o entendimento de Oliveira (2007, p. 24), tal dispositivo
constitucional avança em relação ao “texto que 1967-1969, que especificava a
gratuidade e o obrigatoriedade apenas dos 7 aos 14 anos”, estendendo o dever do
Estado também àqueles que não tiveram acesso ao ensino fundamental na idade
própria.
Tal obrigatoriedade implica em duplo dever: primeiro, o dever do
Estado de garantir vagas em número suficiente para todos no ensino fundamental
obrigatório; segundo, o dever dos pais ou responsáveis de matricular seus filhos em
tal nível de ensino, pois trata-se de um direito da criança e não dos pais (BRANDÃO,
2007; OLIVEIRA, 2007).
Cabe destacar que a CF/88 manteve apenas o ensino fundamental
como obrigatório para o aluno, tal qual o ensino de primeiro grau nos marcos da Lei
nº 5.692/71. Contudo, as outras etapas da educação básica são de oferta obrigatória
por parte do Poder Público.
Outro aspecto relevante apresentado pela CF/88 refere-se ao contido
no §1 do artigo 208, que afirma que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é
direito público subjetivo”. Trata-se do direito de qualquer cidadão brasileiro exigir do
Estado o cumprimento da prestação educacional, ou seja, “exigir vagas suficientes
para que ocorra efetivamente o acesso ao ensino fundamental” (BRANDÃO, 2007, p,
33). Se não houver vagas na escola pública, o Estado deve providenciá-las nas
escolas privadas, mediante o pagamento de bolsas aos estudantes.
Com relação à divisão de responsabilidades na oferta dos níveis de
ensino, o artigo 211 da CF/88, já alterado pela Emenda Constitucional nº 14 de
1996, deixa claro que Estados e Municípios são co-responsáveis pelo ensino
fundamental.
843
Os preceitos educacionais contidos no texto da CF/88 foram
detalhados de maneira mais sistemática na legislação complementar conhecida
como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/96), lei educacional
imediatamente abaixo da Lei Maior do país.
A LDB/96, embora na visão de renomados estudiosos da questão
(DEMO, 1997; SAVIANI, 1997) não tenha regulamentado a contento os pontos do
capítulo sobre educação da CF/88, destinou importantes artigos relativos ao ensino
fundamental.1
Reafirmando o disposto no artigo 208 da CF/88, a LDB/96 especifica
no artigo 4º quais são os deveres do Estado para com seus cidadãos no que se
refere à oferta da educação escolar pública. Sobre o ensino fundamental,
especificamente, seu inciso I repete o contido na redação original da CF/88: “o dever
do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de” […]
“ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram
acesso na idade própria” (inciso I, artigo 4º, da LDB/96).
O artigo 5º da LDB/96 detalha o disposto no §1º do artigo 208 da
CF/88, especificando que “o acesso ao ensino fundamental é direito público
subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária,
organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o
Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo.
O §2º do artigo 5º da LDB/96 reafirma que a prioridade de
atendimento das esferas administrativas é o ensino fundamental, único nível
obrigatório, podendo contemplar “em seguida os demais níveis e modalidades de
ensino, conforme as prioridades constitucionais e legais”.
Em sintonia com o disposto no artigo 211 da CF/88, a LDB/96 ao
definir as incumbências das esferas administrativas na organização da educação
nacional (Título IV), afirma que os Estados devem “assegurar o ensino fundamental
e oferecer, com prioridade, o ensino médio” (inciso VI, artigo 10), e os Municípios
devem “oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o
ensino fundamental [...]” (inciso V, artigo 11).
1
Na avaliação de Saviani (1997), a LDB/96, apesar do seu espírito flexibilizador, é uma lei genérica e
minimalista, em estreita sintonia com os pressupostos neoliberais.
844
Percebe-se, claramente, que a primazia do atendimento recai mais
uma vez no ensino fundamental, nível de ensino obrigatório, devendo vir em seguida
a oferta dos demais níveis de ensino que compõem a educação básica.
Ao definir a composição dos sistemas de ensino federal (artigo 16),
estadual (artigo 17) e municipal (artigo 18), a LDB/96 estabelece que a supervisão
das instituições de ensino fundamental caberá: aos Estados, quando se tratar de
“instituições de ensino mantidas pelo Poder Público estadual” (inciso I) e de
instituições de ensino “criadas e mantidas pela iniciativa privada” (inciso III); à União,
no caso de instituições de ensino fundamental mantidas por tal esfera administrativa
(inciso I); e aos municípios, quando se tratar de instituições de ensino fundamental
“mantidas pelo Poder Público municipal” (inciso I).
Após as duas alterações sofridas (Leis nº 11.114/05 e 11.274/06), a
LDB/96, no seu artigo 32, definiu o ensino fundamental como obrigatório, com
duração de nove anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos seis anos de
idade, cujo prazo (2010) concedido aos sistemas de ensino para se adaptarem a
esta recente orientação legal já expirou.2
Etapa gratuita e obrigatória da educação básica e com duração de
nove anos, iniciando-se aos seis anos de idade, o ensino fundamental tem por
objetivo a formação básica do cidadão, mediante: o desenvolvimento da capacidade
de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do
cálculo (inciso I), a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político,
da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade (inciso II),
o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de
conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores (inciso III), e o
fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de
tolerância recíproca em que se assenta a vida social (inciso IV).
Ainda que com um atraso de quase um século em relação aos países
desenvolvidos, o Brasil praticamente universalizou o acesso ao nível obrigatório de
ensino, chegando-se ao final do ano 2000 aos significativos índices no ensino
fundamental: taxa de matrícula bruta (TMB) de 131,7% e taxa de matrícula líquida
(TML) de 97,1%.
2
A Lei nº 11.114/05 tornou obrigatório o início do ensino fundamental aos seis anos de idade. A Lei nº
11.274/06, por sua vez, ampliou de oito para nove anos a duração deste nível de ensino.
845
A TMB apresentada revela, claramente, que há um elevado número
de alunos matriculados no EF com idade acima de 14 anos. Essa situação de
inchaço nas matriculas do EF decorre basicamente da distorção idade-série, a qual,
por sua vez, é consequência dos elevados índices de reprovação, fazendo com que
os alunos levem muito mais tempo para concluir tal nível de ensino (em 1998, a
média era de 10,4 anos). Conforme a análise de Adrião e Oliveira (2007, p. 31),
devido à implementação generalizada de processos para regularização do fluxo
escolar no EF (ciclos, progressão continuada, classes de aceleração, etc) pelos
sistemas de ensino, a tendência é que a matricula decresça e passe a “corresponder
à população na faixa etária, o que evidenciaria um fluxo perfeitamente regular, com
matrícula bruta e líquida em torno de 100%.
Tanto em termos de educação básica, no geral, quanto em relação
ao ensino fundamental, particularmente, a esfera de governo mais díspar e múltipla
– a municipal – é a grande responsável pela prestação educacional.
Do total de 43.053.942 matriculas públicas registradas na educação
básica em 2011, os municípios brasileiros responderam por 23.312.980 (54,1%)
delas, contra 19.483.910 (45,3%) da esfera estadual. Do montante de 26.256.179
matrículas no ensino fundamental público em 2011, os municípios atenderam
16.526.069 (63%) alunos e os estados 9.705.014 (37%). Se tomarmos apenas os
anos iniciais, os números são mais incríveis ainda: das 14.017.749 matrículas
públicas no primeiro segmento do ensino fundamental, 11.138.287 (79,5%) delas
foram atendidas pela esfera municipal, ao passo que outras 2.872.378 (20,5%)
foram cobertas pela estadual. Com relação aos anos finais, das 12.238.430
matriculas públicas, 6.832.636 (56%) foram cobertas pela rede estadual, contra
5.387.440 (44%) da rede municipal.
A concentração da maior parte das matriculas do ensino fundamental
nas redes municipais de ensino é resultado da implantação do Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério (FUNDEF) que, pelo seu caráter confiscatório e indutor à municipalização
deste nível de ensino, fez com que os municípios cada vez mais ampliassem sua
responsabilidade pelo ensino fundamental na sua vigência (1997-2006), com a
correspondente diminuição por parte das redes estaduais. Tal fenômeno, ao
contrário do que se esperava, não foi efetivamente estancado pelo Fundo de
Manutenção
e Desenvolvimento
da
Educação
Básica
e
Valorização
dos
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Profissionais da Educação (FUNDEB), cuja vigência iniciou-se em 2007 e está
prevista para findar em 2020.
Depreende-se, então, que “os avanços brasileiros na efetivação do
direito público à educação têm sido obtido num contexto de aumento da participação
municipal” (FREITAS; FERNANDES, 2011, p. 555).
Não obstante os avanços registrados, a educação municipal ainda se
vê diante de grandes desafios em termos de ampliação da prestação educacional.
Conforme observam Freitas e Fernandes (2011, p. 557), “ao município cabe,
atualmente, a responsabilidade principal da oferta de 11 dos 14 anos de
escolarização obrigatória fixada constitucionalmente”.
Recentemente, a Emenda Constitucional nº. 59/09 estendeu a
obrigatoriedade escolar – até então restrita ao ensino fundamental – para a faixa
etária de quatro a dezessete anos de idade, abarcando quase toda a educação
básica (educação infantil na etapa da pré-escola, ensino fundamental e médio). O
cumprimento dessa determinação foi aprazado para 2016.
Diante dos avanços registrados e da notável ampliação da matrícula,
no ensino fundamental – diferentemente de outros níveis de ensino – o grande
impasse passou do acesso para a qualidade.
Ainda que o acesso ao ensino fundamental,
prioridade dos
sistemas/redes municipais de ensino, esteja (praticamente) universalizado, o
insucesso escolar em face da repetência e da evasão é bastante frequente no nível
de ensino supracitado. Assim, a melhoria da qualidade do ensino fundamental
ofertado se coloca como crucial desafio à educação municipal na atualidade.
Conforme
entendem
alguns
especialistas,
a
expansão
e
democratização do ensino fundamental, sobretudo a partir da década de 1970, foi
acompanhada por uma perda da sua qualidade, claramente retratada no tempo
presente pelos baixos resultados obtidos pelos alunos nas avaliações externas de
desempenho escolar, como as do Sistema Nacional do Ensino Básico (SAEB) e do
Programa Internacional de Acompanhamento de Aquisições dos Alunos (PISA).
Atualmente o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)
– criado em 2007, calculado bienalmente com base no desempenho do estudante
em avaliações do Inep e em taxas de aprovação e cujo objetivo final é que o país
tenha nota 6 em 2022 – também dimensiona tal desafio mediante a projeção de
847
metas de melhoria da qualidade a serem perseguidas/cumpridas pelos municípios
brasileiros.
Em 2009, o Ideb municipal observado para os anos iniciais do ensino
fundamental (4,4), ainda que tenha superado a meta projetada (3,8) para tal período,
ficou abaixo do índice registrado pelas redes estadual (4,9) e privada (6,4). Com
relação aos anos finais da referida etapa escolar, o Ideb municipal observado de 3,6
(acima da projeção de 3,3) foi também superado pelo atingido pelas redes estadual
(3,8) e privada (6,0). O Ideb municipal observado denota, claramente, as dificuldades
desta esfera governamental para atingir patamares mais elevados de qualidade do
ensino ou mesmo se equipar ao alcançado pelas demais redes de ensino.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se o histórico desafio da exclusão “da” escola foi praticamente
superado, resta envidar esforços para a superação da exclusão “na” escola, que
passa necessariamente pela melhoria da qualidade.
Não se pode perder de vista que o direito ao ensino fundamental não
se refere apenas à matrícula, mas ao ensino de qualidade, até a conclusão. Deste
modo, a universalização do atendimento ao ensino fundamental, considerando o
princípio da indissociabilidade entre acesso, permanência e qualidade, configura-se
atualmente como o grande impasse a ser superado pela nossa política educacional.
Tamanho desafio requer, certamente, um esforço adicional da esfera
municipal que, mesmo sem a devida/significativa contrapartida financeira, é a
principal responsável pela escolarização obrigatória fixada constitucionalmente no
tempo presente.
REFERÊNCIAS
ADRIÃO, Theresa; OLIVEIRA, Romualdo Portela. O ensino fundamental. In:
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ENSINO FUNDAMENTAL: TRAJETÓRIA HISTÓRICA E