O recurso extraordinário, a repercussão geral, e a mula de Tales Sérgio Sérvulo da Cunha 1. Introdução Debruço-me sobre o recurso extraordinário como um médico, à cabeceira de um doente terminal. E, bem observando suas funções, quem vejo por trás delas, agonizante, é na verdade a democracia. Excetuados o habeas-corpus e o mandado de segurança, nenhum instrumento se forjou neste país, para defesa da democracia, mais hábil do que o recurso extraordinário. Entretanto, houve uma diferença no tratamento que esse instituto recebeu dos constituintes e dos legisladores: sendo sua normatividade constantemente modificada, não há como desenhar o perfil do recurso extraordinário desde sua criação, tal como acontece com os dois primeiros. Criado de início para a defesa da União, com o tempo o recurso extraordinário assumiu o papel de principal meio de controle da constitucionalidade e afirmação dos direitos da cidadania; essas duas finalidades emprestavam-lhe duas perspectivas distintas e muitas vezes opostas: a que tinha de um lado o recorrente, em defesa do seu direito subjetivo; e a que tinha de outro lado o Supremo Tribunal Federal, como tutor do Direito objetivo, e, mais especificamente, da Constituição. Mas isso viria a se alterar radicalmente com as disposições que criaram o incidente de repercussão geral (v. a emenda constitucional n° 45/2004, a lei n° 11.418/2006 e a emenda regimental n° 21/2007, do Supremo Tribunal Federal). Diz a lei n° 11.418/2006 que só será admitido o recurso extraordinário se, nele, se discutirem “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.” 2. Breve história do recurso extraordinário No Direito brasileiro, a decisão de segundo grau (proferida por tribunal de justiça, tribunal regional federal, tribunal regional do trabalho, tribunal regional eleitoral, turma recursal de juizado especial), e até mesmo a de tribunal superior, estando presentes os respectivos requisitos legais, pode ser impugnada mediante recurso extraordinário. Consideram-se “ordinários” quase todos os recursos que podem ser interpostos das sentenças judiciais, e a seu respeito dispõem as leis processuais. Com o recurso extraordinário é diferente: chamou-se a princípio de “extraordinário” o recurso que, mediante permissão constitucional, poderia em alguns casos ser interposto, para o Supremo Tribunal Federal (STF), de decisões judiciais definitivas proferidas por juízes e tribunais federais e pela justiça dos Estados (v. a Constituição de 1891). Ao tratar do poder judiciário, a Constituição de 1891 criou o Supremo Tribunal Federal, discriminando as causas de sua competência originária (art. 59, 1) e atribuindo-lhe o poder de julgar os recursos interpostos contra decisões proferidas por juízes e tribunais federais (art. 59, 2), assim como os recursos interpostos contra as decisões proferidas pelas “justiças dos Estados”, em última instância. Embora inexistisse disposição expressa a esse respeito, jamais se pôs em dúvida que o julgamento se faria à luz das leis e da Constituição (compreendendo pois os controles de legalidade e de constitucionalidade). Havia portanto uma jurisdição constitucional difusa, exercida por todos os juízes e tribunais juntamente com a jurisdição comum (melhor dizendo, ínsita na jurisdição comum). Acentuou-se o controle de constitucionalidade com a entrega, ao Supremo Tribunal Federal, da competência para julgar recursos contra decisões da justiça dos Estados “quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.” (art. 59§1°-b). Situava-se assim o Supremo Tribunal Federal como uma espécie de terceira instância, encarregada do controle da legalidade e, simultaneamente, do controle da constitucionalidade das decisões da justiça federal e das justiças dos Estados. A mesma Constituição, em seu art. 60, inscrevia na competência dos juízes e tribunais federais processar e julgar “as causas em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, em disposição da Constituição Federal; b) todas as causas propostas contra o Governo da União ou Fazenda Nacional, fundadas em disposições da Constituição, leis e regulamentos do Poder Executivo, ou em contratos celebrados com o mesmo governo.” 1 Consagrava-se portanto, expressamente, a supremacia da lei magna. E se permitia que o titular de um direito por ela assegurado o pleiteasse perante o juiz do lugar. Essa a essência do chamado “controle difuso” (ou incidental) de constitucionalidade. Eram seu objeto todos os atos jurídicos que pudessem conter ofensa à Constituição, praticados seja por particulares seja pelo governo, e, por parte deste, inclusive os atos legislativos; quanto a estes, seu exame era feito incidentalmente (no curso de uma ação em que se discutiam direitos subjetivos) e não em tese, como viria a acontecer, posteriormente, no chamado “controle abstrato”. Com a Constituição de 1988, que criou o Superior Tribunal de Justiça (STJ), cindiu-se o recurso extraordinário; o que havia nele para o controle da legalidade acabou transferido para o STJ, mediante o que se designou como “recurso especial”; na competência do 1 A Constituição provisória da República brasileira (decreto 510, de 22.6.1890), em seu art. 90, incumbia aos juízes ou tribunais federais decidir “as causas em que alguma das partes estribar a ação, ou defesa, em disposição da Constituição Federal” . Supremo Tribunal Federal, como objeto dessa via, mantiveram-se apenas as questões de inconstitucionalidade. 2 Ao julgar recurso extraordinário, o Supremo Tribunal Federal pode cassar a decisão recorrida e pôr outra em seu lugar. Trata-se, por isso, de poderoso instrumento, que se inscreve no sistema do controle difuso e incidental de constitucionalidade. Entretanto, à medida que se aperfeiçoava sua disciplina, a prática judiciária buscava restringir seu uso, seja mediante a jurisprudência do STF, seja mediante óbices processuais. 3. O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade Não obstante inspirado na Constituição estadunidense, desde o início foi “sui generis” o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Nele, qualquer cidadão podia argüir, no juízo do seu domicílio, o descumprimento, a seu dano, de disposição constitucional; podia recorrer da sentença para um tribunal estadual ou federal; e, por fim, podia recorrer da decisão definitiva para o Supremo Tribunal Federal (mediante o recurso extraordinário). Esse sistema se chama “concreto” (porque o controle se faz tendo-se em vista uma relação jurídica concreta), “incidental” (porque o controle de constitucionalidade se faz incidentalmente, no curso de um processo cuja finalidade principal é a efetivação de um direito subjetivo), ou “difuso” (porque não está concentrado em apenas um órgão do judiciário, distribuindo-se capilarmente por todos os juízos e tribunais). A deficiência principal do sistema decorria menos de sua fórmula legal do que das carências sociais que dificultavam o acesso à justiça; e durante muitos anos não havia queixas, na Suprema Corte, quanto à carga de trabalho dos ministros, ou ao volume dos processos dependentes de sua decisão. Com a Constituição de 1946 o sistema difuso de constitucionalidade alcançou sua plenitude. Suprimida a ressalva pertinente às “questões políticas”, incluída na Constituição de 1934, com ela aconteceram três fatos relevantes: a) a consolidação das garantias do habeas-corpus e do mandado de segurança; b) a constitucionalização do Ministério Público (arts. 125 a 128); c) a exigência de concurso de provas para o ingresso na magistratura vitalícia dos Estados (art. 124-III). Mantidos a dualidade de jurisdição e o controle difuso, afirmava-se dentre a competência do Supremo Tribunal Federal processar e julgar, em recurso extraordinário, “as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais ou juízes: a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou a letra de tratado ou lei federal; b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada; c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face desta Constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou o ato; d) quando na decisão recorrida a interpretação da 2 Essa simetria viria a ser rompida com a emenda constitucional n° 45/2004, que acrescentou a alínea “d” ao inciso III do art. 102 da Constituição (v. adiante). lei federal invocada for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros tribunais ou o próprio Supremo Tribunal Federal.” Foi entretanto sob a mesma Constituição de 1946 que se plantou, no ordenamento brasileiro, a semente do controle “abstrato” de constitucionalidade. 3 À semelhança do que já se via no art. 12§2° da Constituição de 1934 ao dispor sobre a intervenção federal nos Estados, a Constituição de 1946 (art. 8°), mencionou hipótese de intervenção federal por inconstitucionalidade de ato praticado por autoridade estadual; em tal caso, a matéria chegaria ao Supremo Tribunal Federal mediante representação do procurador-geral da República (art. 8°, parágrafo único), que ficou conhecida como “representação interventiva”; a lei n° 2.271, de 22.7.1954, ao implementar essa disposição, falou em “argüição de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”, e a lei n° 4.337, de 1.6.1964, falou em “declaração de inconstitucionalidade”. Por fim, a EC n° 16, de 26.11.1965, deu ao Supremo Tribunal Federal competência para julgar “a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República.” 4 Quando se instalou o Congresso Constituinte de 1987-1988, em meio a um clamor nacional pela extensão da legitimidade para a representação (ou ação) de inconstitucionalidade, a exclusiva legitimação do procurador-geral era vista como parte do “entulho autoritário”. Por fim, ao discriminar a competência do Supremo Tribunal Federal, a Constituição de 1988 instituiu a ação direta de inconstitucionalidade (“adin” ou “adi”): 5 “Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade: I – o Presidente da República; II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV – a Mesa de Assembléia Legislativa; V – o Governador de Estado; VI – o Procurador-Geral da República; VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII – partido político com representação no Congresso Nacional; IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.” 6 3 O controle difuso (ou incidental), tal como existente sob essa Constituição, também poderia ser chamado como controle “concreto”, na medida em que versava questões concretas, envolvendo a aplicação da disposição constitucional a uma determinada controvérsia. Já o controle “abstrato” é aquele em que se discute a constitucionalidade, em tese, de uma determinada prescrição, independentemente de sua aplicação a qualquer caso concreto. Sua criação provém da Constituição alemã de 1919, restrita porém à aferição da constitucionalidade de leis dos Estados-membros: “Se existirem dúvidas ou controvérsias sobre a constitucionalidade de disposição de direito estadual, a autoridade competente da União ou do Estado poderá requerer, nos termos da lei, a manifestação de um tribunal superior do Reich.” (art. 13-II). 4 Gilmar Ferreira Mendes relata que, nessa ocasião, exposição de motivos encaminhada pelo ministro da Justiça ao presidente da República referia-se a sugestão do Supremo Tribunal Federal quanto à adoção de dois novos instrumentos: “a) uma representação de inconstitucionalidade de lei federal, em tese, de exclusiva iniciativa do Procurador-Geral da República, à semelhança do que existe para o direito estadual (art. 8°, parágrafo único, da Constituição Federal); b) uma prejudicial de inconstitucionalidade, a ser suscitada, exclusivamente, pelo próprio Supremo Tribunal Federal ou pelo Procurador-Geral da República, em qualquer processo em curso perante outro juízo.” (in Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes, Controle concentrado de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2001, pp. 40-41). 5 O Supremo Tribunal Federal, que abreviava como “adin” o nome da ação indireta de inconstitucionalidade, passou a designá-la como “adi” a partir da resolução n° 230/2002 (DJU, Seção I, 29.5.2002, p. 1). 6 A redação citada é a original, e não a que recebeu esse artigo após a EC n° 45, de 8.12.2004. Concentrou-se portanto, no Supremo Tribunal Federal, o controle abstrato de constitucionalidade. Logo, o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que era concreto-difuso, com a CB 88 passou a ser um sistema misto, que ao lado do controle concreto-difuso admitia também o controle abstrato-concentrado. Para moldar esse sistema também foram relevantes: a) a criação do Superior Tribunal de Justiça, ao qual se transferiu parte da anterior competência do Supremo Tribunal Federal, notadamente com o deslocamento, para o “recurso especial”, do controle de legalidade antes realizado via recurso extraordinário; b) a criação de ações contra a omissão do governo, ou seja, o mandado de injunção e a ação de inconstitucionalidade por omissão; c) a exigência de maioria absoluta para a declaração de inconstitucionalidade, quando proferida por tribunal. 7 É importante relembrar também que o Congresso Constituinte repeliu duas figuras que haviam sido inscritas, no ordenamento, pela ditadura militar, a saber: a “avocatória” 8 e a “argüição de relevância”. Na vigência da Ordenação de 1967-1969, esses institutos haviam sido consagrados pela “emenda constitucional” n° 7, de 13 de abril de 1977, promulgada pelo general Ernesto Geisel, e que ficou conhecida como “pacote de abril”. 9 Essa a configuração, “grosso modo”, do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, ao ser promulgada a Constituição de 1988. Esse sistema viria a ser profundamente modificado por força das seguintes alterações: - criação da ação declaratória de constitucionalidade (introduzida pela emenda constitucional n° 3, de 17.3.1993; 7 Assim dispôs o art. 97 da Constituição de 1988: “Somente pelo voto da maioria absoluta dos seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público.” Essa disposição, que repetia a constante do art. 116 da Ordenação de 19671969, tinha raiz no art. 111 da Ordenação de 1967. 8 Mediante a avocatória entregava-se ao Supremo Tribunal Federal a faculdade de atrair, para seu julgamento, causas processadas perante quaisquer juízes e tribunais. De um só golpe, feria-se a independência da magistratura, o princípio do juiz natural e a garantia dos jurisdicionados. O pacote de abril transformava o Supremo em tribunal de exceção que, para prevenir “imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas”, poderia suspender os efeitos de qualquer decisão judicial proferida no país e avocar o respectivo processo. 9 V. Maria Celina D’Araújo e Celso Castro: Ernesto Geisel (Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 3 a. ed., 1997, p. 392). Com a redação que lhe foi dada pelo “pacote de abril”, o art. 119 da Ordenação de 1967-1969, passara a conferir, ao Supremo Tribunal Federal, competência para julgar: “...... o) as causas processadas perante quaisquer juízos ou Tribunais, cuja avocação deferir, a pedido do Procurador Geral da República, quando decorrer imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas, para que se suspendam os efeitos de decisão proferida e para que o conhecimento integral da lide lhe seja devolvido.” O § 1° desse artigo 119, por sua vez, recebera esta redação: § 1° - As causas a que se refere o item III, alíneas „a‟ e „d‟ deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal.” Segundo o disposto no § 3° desse artigo, o regimento interno do STF ficou encarregado de estabelecer “o processo e o julgamento dos feitos de sua competência originária ou recursal e da argüição de relevância da questão federal.” - explicitação do efeito vinculante das decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade (emenda constitucional n° 45, de 18.12.2004); - criação da súmula vinculante de jurisprudência (emenda constitucional n° 45, de 18.12.2004). - criação do incidente de repercussão geral, no recurso extraordinário (emenda constitucional n° 45, de 18.12.2004); 4. A antiga argüição de relevância Sob a ditadura militar, entregaram-se ao Supremo Tribunal Federal poderes legislativos, permitindo-lhe fixar a própria competência, além dos casos já discriminados no art. 119-III da Ordenação de 1969. 10 Alterando o regimento interno daquela Corte, a emenda regimental n° 3, de 12.6.1975, modificou seu art. 308, vedando o cabimento do recurso extraordinário em vários tipos de ação, que discriminou. 11 O Supremo Tribunal Federal, portanto, não considerava essas matérias como suficientemente relevantes, para que pudessem reclamar sua atenção mediante recurso extraordinário. Entretanto, mesmo essas matérias seriam apreciadas pelo STF se o recorrente demonstrasse, no caso, a relevância da questão federal. Sublinhe-se: a argüição de relevância era exigível apenas em casos de controle de legalidade; tratando-se de ofensa à Constituição, ela não seria necessária. Reputou-se portanto implicitamente, como relevante, toda questão constitucional. Com o “pacote de abril” – a assim chamada emenda constitucional n° 7, de 13 de abril de 1977, promulgada pelo general Ernesto Geisel – passou-se a ler no art. 119 da Ordenação de 1969: “§ 1° - As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal.” Em seguida, com a emenda regimental n° 2, de 4.12.1985, em dez incisos de seu art. 325 o STF enumerou as ações em que caberia a interposição de recurso extraordinário; o inciso XI, a seu turno, admitia o recurso extraordinário nos demais feitos, desde que “reconhecida 10 Assim dizia o parágrafo único do art. 119: “As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, deste artigo serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie ou valor pecuniário.” 11 Observe-se que, naquela época, o recurso extraordinário abrangia tanto questões de inconstitucionalidade quanto de ilegalidade (como se viu, foi só com a Constituição de 1988 que se criou o Superior Tribunal de Justiça, ao qual se atribuiu o controle das decisões judiciais irrecorríveis, em face da lei federal). a relevância da questão constitucional”. A argüição de relevância seria apresentada em capítulo destacado da petição de recurso extraordinário. O art. 327, em seu § 1°, considerava como relevante “a questão federal que, pelos reflexos na ordem jurídica, e considerados os aspectos morais, econômicos, políticos ou sociais da causa, exigir a apreciação do recurso extraordinário pelo Tribunal.” Para apreciar as argüições de relevância – o que fazia discricionariamente – reunia-se o plenário do Supremo Tribunal Federal em sessão secreta. Theotonio Negrão teve a pachorra de radiografar a sessão secreta realizada no dia 12.8.1987, a cujo respeito registrou: “começou às 17.30 e „julgou‟ 419 argüições de relevância. Se a sessão terminou às 19 horas e não teve interrupção, cada argüição foi, em média, julgada em 12 segundos e 88 centésimos de segundo. Experimente ler o número da argüição, o nome do relator e as partes.....fiz a experiência, cronometrando: deu 19 segundos e 8 décimos.” 12 A Constituinte de 1987-1988 sepultou a “argüição de relevância”, considerada como parte do assim chamado “entulho autoritário”. Tendo-se incumbido uma nova corte – o Superior Tribunal de Justiça – de efetuar o controle da legalidade, mostrou-se desnecessária sua manutenção. Entretanto, em pleno regime democrático, renasce a argüição de relevância sob o nome de “repercussão geral”. E agravada pelo fato de que se aplica ao controle de constitucionalidade. 12 Na 16a. edição de seu “Código de Processo Civil e legislação processual em vigor”, Theotonio Negrão indicou alguns casos de argüição de relevância acolhidos anteriormente à vigência da emenda regimental n° 2, de 1985 (v. p. 886). E na 17 a. edição, à p. 926, relacionou as teses tidas como relevantes pelo STF até o encerramento do ano judiciário de 1986. 5. O incidente de repercussão geral O que agora se designa como “repercussão geral” é aquilo que, durante a ditadura, se designava como “argüição de relevância”. O recorrente precisava demonstrar ao Tribunal que a matéria tratada no recurso extraordinário era relevante, e o tribunal decidia discricionariamente o que entendia como relevante. Importante observar o seguinte: a argüição de relevância era necessária apenas em casos de controle de legalidade; mas a “repercussão geral” se aplica no controle de constitucionalidade. Em seu § 1°, o art. 543-A do código de processo civil (introduzido pela lei n° 11.418/2006) dá uma indicação a respeito do que se pode considerar como tendo repercussão geral: 13 é a questão relevante do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapasse os interesses subjetivos da causa. Ao redigir a petição de recurso extraordinário o recorrente deve incluir um item preliminar, em que se empenhará por demonstrar que a controvérsia tem repercussão geral. Se a petição de recurso extraordinário não contiver esse item, será recusada já ao chegar ao STF, pelo seu presidente. A petição também será recusada se o presidente entender que não está devidamente formalizada ou fundamentada. Na verdade, à semelhança do que a presidente Ellen Gracie criou com relação aos agravos de instrumento, haverá no STF um grupo de funcionários encarregado de fazer essa filtragem. Se a petição conseguir ultrapassar essa primeira triagem, sendo distribuída a um relator, o relator também poderá recusar a petição de recurso extraordinário, por falta da preliminar ou por insuficiente formalização ou fundamentação. Nesse exame prévio também se verifica se o recurso contraria a jurisprudência do STF. Da decisão que recuse liminarmente o recurso cabe agravo. Superada essa fase prévia abre-se uma outra, quanto à existência ou não de repercussão geral. Essa nova fase também se bifurca, havendo primeiro uma decisão a cargo do relator. Se o recurso combater decisão contrária à jurisprudência do STF, ou se versar sobre matéria já reconhecida como sendo de repercussão geral, passará essa nova barreira. Se o recurso não ultrapassar de pronto essa barreira, o relator emitirá um parecer, que submeterá aos demais ministros por via eletrônica, e só depois de receber a manifestação dos demais ministros proferirá sua decisão; se ela for contrária ao recebimento do recurso o relator a formalizará, recusando o recurso; essa decisão é irrecorrível. Se o relator entender que cabe o recurso, pedirá dia para seu julgamento, não sem colher antes, se for o caso, a manifestação de “amici curiae” ou da Procuradoria Geral da República. Tanto o código de processo civil (em sua nova redação a partir da lei n° 11.418/2006) quanto a emenda regimental n° 21, contêm disposições sobre o represamento (nos tribunais 13 Copiou-se aqui o que já estava no § 1° do art. 327 do RISTF. de origem ou nas turmas dos juizados especiais) dos recursos extraordinários, que aí deverão ficar aguardando a decisão do STF a ser tomada em um recurso “representativo da questão” (isto é, paradigmático) sobre idêntica matéria. A emenda n° 21 manda que o STF, após selecionar o recurso ou recursos que entenda paradigmáticos, devolva os demais à sua origem. Resumindo: o recurso extraordinário primeiro precisa ser admitido, no tribunal ou turma de origem; mesmo que seja admitido, poderá ficar retido na origem, aguardando decisão do STF sobre a tese respectiva, em outro processo que discuta matéria idêntica. Ao chegar no STF, todo recurso extraordinário será submetido a uma primeira triagem (a cargo do presidente e, em seguida, do relator) e poderá ser recusado “in limine” se a respectiva petição não contiver um item sobre a repercussão geral, ou, mesmo que o contenha, se este não estiver bem formalizado ou fundamentado. Se o recurso ultrapassar essa barreira enfrentará uma outra, em que se aprecia se a sua tese possui ou não repercussão geral. Ele ultrapassará facilmente essa nova barreira se a sua tese for no mesmo sentido da jurisprudência do STF. Mas será recusado se o relator – depois de ouvir os demais ministros, e, se for o caso, a Procuradoria Geral da República e os “amici curiae” – entender que sua matéria não é de repercussão geral. Só depois de julgada a preliminar de repercussão geral é que será submetido a julgamento o recurso extraordinário propriamente dito. 6. Conclusão O apogeu do recurso extraordinário, como eixo do sistema difuso de jurisdição constitucional, mostrou-se sob a Constituição de 1946. Em 1958, com a lei n° 3.396, teve início a prática de se criarem óbices, dificuldades postas pelo legislador a fim de diminuir o número de processos que chegavam ao Supremo Tribunal Federal. Paralelamente, essa Corte alimentava uma jurisprudência restritiva, como se observa, por exemplo, com as exigências de prequestionamento e de contrariedade frontal e direta à Constituição. Com essa jurisprudência criativa, o STF não traduzia o que estava na Constituição, mas desenhava a Constituição dos seus desejos. Esta não era a que garantisse os direitos da União e dos cidadãos, mas a que mantivesse, em níveis suportáveis, o volume do seu serviço. Sob a ditadura militar, e após a Constituição de 1988 com as emendas constitucionais restauradoras das concepções autoritárias, o tratamento processualístico que foi dado ao recurso extraordinário – ao invés do tratamento político que sua natureza reclamava – iniciou o processo do seu progressivo esvaziamento. A partir da EC n° 45/2004, o sistema sofreu uma guinada fatal: a restauração da argüição de relevância (agora com o nome de incidente de “repercussão geral”) feriu profundamente o controle difuso; e a instituição da “súmula vinculante” o transformou, de sistema misto, em sistema hiperconcentrado. Aí, o controle de constitucionalidade deixa de ser controle do governo por parte do cidadão, e assume uma incestuosa feição de controle do governo por parte dos órgãos do próprio governo, mediado por agência que não detém representação política. Significa portanto a extensão, ao judiciário, das concepções oligárquicas dominantes na demoelitecracia. A Corte que tem o poder de acolher ou não um recurso, segundo seu arbítrio, não é republicana: quem não tem o direito de recorrer, e o que faz é apenas suplicar, não é cidadão, mas súdito. Se o constituinte indicou o Supremo Tribunal Federal como “guardião da Constituição” (Constituição de 1988, art. 102, caput) é porque pretendeu incluir, em sua competência, todos os casos de contrariedade à lei magna. Esta não se fez para que, em alguns casos, se dispense o controle da efetividade de suas disposições; nela tudo é relevante, e nela inexiste disposição cuja contrariedade deixe de ter repercussão geral. Hoje entretanto, em alguns casos (contrariedade a princípio implícito, contrariedade a conjunto de disposições constitucionais), assim como em todas as hipóteses que não venham a ser consideradas como de repercussão geral, o controle de constitucionalidade estará restrito, praticamente, aos tribunais estaduais ou aos tribunais federais, de modo que, quanto a esses tópicos, a eles – e não ao Supremo Tribunal Federal – é que caberia designar como guardiões da Constituição. Por isso assim explicava Pontes de Miranda a função do recurso extraordinário: “A simples apelação, qualquer que seja o nome que se lhe dê, com o exame do negócio „in facto‟ e „in iure‟, não poderia satisfazer as exigências da política judiciária da unidade das decisões no tocante à inteligência das leis. A gravidade do problema cresce de ponto quando, nos Estados federais, há a dualidade de justiça – justiça local e justiça federal – ainda que só de última instância, pois que morreria a contenda nos tribunais locais de apelação ou de agravo, com as possibilidades de diferente interpretação da Constituição federal e das leis federais.” 14 Isso vem ao encontro do que dizia Alberto Torres em 1914, ao comparar o recurso extraordinário brasileiro com o “judiciary act” norte-americano: “Entre nós, a lei de direito comum e, em geral, toda a legislação destinada a assegurar a efetividade das garantias dos direitos de liberdade, segurança e propriedade são leis federais, cuja execução é apenas delegada aos tribunais dos Estados; de forma que, ou se as tem de considerar como pertencentes ao número das leis federais que, uma vez violadas pelos tribunais locais, permitem o emprego do recurso, ou se tem de admitir a hipótese da existência de leis federais, destinadas a desenvolver princípios capitais da Constituição, e justamente aqueles que contêm seu objetivo final, entregues ao arbítrio dos juízes locais, sem que o Supremo Tribunal exerça a mínima parcela de fiscalização.” 15 E indicava a segunda alternativa como absurda, contrária ao espírito, à essência e aos fins da Constituição. Ao invés do acesso amplo à justiça – previsto como direito fundamental pela Constituição de 1988 – e da coextensão entre o processo constitucional e os direitos e garantias 14 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946 (Rio de Janeiro, Henrique Cahen, 1947, vol. II, p. 226). 15 Alberto Torres, A organização nacional (Brasília-São Paulo, UnB-Cia. Editora Nacional, 1982, pp. 84-85). constitucionais, passou-se a adotar, como princípio fundamental na organização judiciária, a diminuição do volume dos processos submetidos à sua apreciação. Eliminar os processos, ao invés de decidir os litígios, transformou-se na preocupação predominante, principalmente nas cortes superiores. Passaram-se a louvar, como comportamento virtuoso, técnicas para eliminar processos tidos como repetitivos ou mal concebidos. 16 O direito das partes? Ora o direito das partes. Estas passaram a ser presumidas como litigantes de má-fé, seus advogados como escroques. Com o que ganharam, os pretórios, o suporte moral de que precisavam para se comportarem como a mula de Tales. Situou-se no grande número de recursos a responsabilidade pela morosidade da justiça. Como se não fosse o Supremo Tribunal Federal, via poder legislativo, o responsável pela criação de novos e arrevezados recursos, a cada vez que se inventava um novo óbice ao recurso extraordinário. Eis que agora, com as sinuosidades da repercussão geral, alcança-se a perfeição, a apoteose da irracionalidade. 16 “Em maio de 2006 entrou em ação, no Supremo Tribunal Federal, o Grupo de Trabalho – formado por servidores e estagiários e subordinados à Presidência – para análise prévia de agravos de instrumento (este recurso foi responsável no ano passado por 56,2% dos processos distribuídos no STF). Entre 29 de maio e 31 de julho, analisou 11.834 processos desse tipo. Do total foram arquivados 2.420 agravos por falta de peças ou porque foram apresentados fora do prazo processual. Isso representa 20,44% de todos os recursos de agravo analisados.” Consultor Jurídico, 2.8.2006 “Fazer como a mula de Tales é querer desfazer-se de suas responsabilidades, aliviar-se de qualquer modo de tarefas que parecem incômodas. A mula de Tales é um exemplo de malícia, mas essa malícia não fica sem castigo. Trata-se de uma fábula narrada por Plutarco e repetida por Montaigne, no capítulo XII do volume segundo dos Ensaios. A história era narrada pelo filósofo grego Tales de Mileto. Uma mula, carregada de sal, atravessara um rio, e tendo tropeçado e caído, observou que o peso de sua carga diminuíra consideravelmente. A água dissolvera grande parte do sal que ela transportava. Desde então`sempre que encontrava qualquer curso de água, a mula se apressava a deitar-se nele com a sua carga. E tantas vezes o fez que o seu dono, descobrindo-lhe a malícia, ordenou que substituíssem as cargas de sal por cargas de lã. O resultado passou a ser o contrário: a lã, molhada, pesava mais. Corrigiu-se então a mula do seu mau costume. O sentido moral da fábula é o de que os homens que sabotam o seu trabalho acabam em apuros ainda maiores, pois um dia terão lã em vez de sal para conduzir às costas. La Fontaine tratou do assunto em O asno carregado de esponjas e o asno carregado de sal (Fábulas, livro II).” (R. Magalhães Jr., Dicionário de provérbios e curiosidades).