No 8.237/2015-AsJConst/SAJ/PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
Relator:
Ministro Ricardo Lewandowski
Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul
Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul
CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TEMA 220. SISTEMA PRISIONAL. RESPEITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL
DOS PRESOS. DIREITO FUNDAMENTAL. APLICABILIDADE IMEDIATA. RESERVA DO POSSÍVEL. DEVER DE
O ESTADO GARANTIR O MÍNIMO EXISTENCIAL. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM POLÍTICAS
PÚBLICAS. OMISSÃO ESTATAL. DETERMINAÇÃO AO
EXECUTIVO DE OBRAS EM ESTABELECIMENTOS
PRISIONAIS.
1. A designação do problema como “controle judicial de políticas públicas” pode levar à conclusão da ilicitude de intervenção
judicial no caso, sem se demonstrar antes a premissa de que o
tema não é jurídico, mas político, e, portanto, entregue apenas
aos órgãos de representação popular. Existência de direito fundamental eventualmente desrespeitado por ação ou omissão estatal
torna jurídica a questão.
2. É impossível adotar soluções absolutas em todas as questões
atinentes a direitos fundamentais. A diferença de densidade dos
programas e dos domínios normativos dos direitos fundamentais
brasileiros é obstáculo à generalização de conclusões para sua
concretização, por meio da transposição de precedentes. É necessário construir casuística graduada e adequada à espécie de
direito fundamental em causa.
3. Há equívoco em subsumir o direito a integridade física e moral dos presos, previsto no art. 5o, XLIX, da Constituição da República, à categoria dos direitos sociais, a cuja realização se
opõem restrições de discricionariedade política e de reserva do
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possível. Esse direito fundamental é direito de defesa, malgrado
eventualmente uma de suas consequências jurídicas – secundárias – seja o deferimento de prestação estatal. Deve preponderar
o critério material, em detrimento do formal, na classificação
dos direitos fundamentais brasileiros: direito de defesa visam à
garantia jurídica da liberdade, mediante omissões do Estado, ao
passo que direitos sociais promovem igualdade de fato entre pessoas, para que as menos aquinhoadas possam desfrutar de liberdade jurídica, por meio de prestações jurídicas ou materiais do
Estado.
4. Uma vez que os presos não possuem, por definição, liberdade
de fato, mas apenas limitado raio de liberdade jurídica, sua integridade recai no âmbito dos direitos de defesa.
5. Ao contrário dos direitos a prestações, cuja implementação
estatal se satisfaz por qualquer das opções adequadas adotadas
pelo legislador ou pelo administrador, direitos de defesa somente
são respeitados caso o Estado se abstenha de todos os comportamentos capazes de suprimi-los ou de lesá-los. Não cabe falar, aí,
de discricionariedade legislativa ou executiva no fornecimento
de condições materiais que atendam ao art. 5o, XLIX, da CR.
6. Possui aplicabilidade imediata o direito fundamental ao respeito à integridade física e moral dos cidadãos presos (art. 5o,
XLIX e § 1o). O estado do sistema carcerário brasileiro fere a ordem constitucional e deveres convencionais e legais do Brasil.
7. Não cabe aplicação da cláusula da reserva do possível que resulte em negativa de vigência de núcleo essencial de direito fundamental. O Estado deve garantir proteção do mínimo
existencial do direito fundamental de respeito à integridade física e moral dos presos. Núcleo essencial intangível a ser assegurado, independentemente de condições adversas, limites
financeiros ou colisão com outros direitos fundamentais.
8. Tem legitimidade o Poder Judiciário para determinar adoção
de políticas públicas que garantam intangibilidade do mínimo
existencial do direito fundamental ao respeito à integridade física e moral dos presos, como reforma, ampliação e construção
de estabelecimentos prisionais, em caso de omissão dos entes estatais. Precedentes.
9. Parecer pelo provimento do recurso extraordinário.
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I. RELATÓRIO
Trata-se de recurso extraordinário interposto pelo Ministério
Público do Estado do Rio Grande do Sul contra acórdão do
Tribunal de Justiça gaúcho (folhas 377-387), que julgou
improcedente ação civil pública proposta pelo recorrente, nos
seguintes termos (sic):
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DETERMINAÇÃO AO PODER EXECUTIVO DE REALIZAÇÃO DE OBRAS EM PRESIDIO. DESCABIMENTO.
PODER DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO.
Preliminar:
O pedido não é juridicamente impossível, porquanto não
lhe veda expressamente a ordem jurídica.
Mérito:
O texto constitucional dispõe sobre os direitos fundamentais
do preso, sendo certo que as precárias condições dos estabelecimentos prisionais importam ofensa à sua integridade física e moral. A dificuldade está na técnica da efetivação
desses direitos fundamentais.
É que diversa a carga de eficácia quando se trata de direito
fundamental prestacional proclamado em norma de natureza
eminentemente programática, ou quando sob forma que
permita, de logo, com ou sem interposição legislativa, o reconhecimento de direito subjetivo do particular (no caso do
preso), como titular do direito fundamental.
Aqui o ponto: saber se a obrigação imposta ao Estado atende
norma constitucional programática, ou norma de natureza
impositiva.
Vê-se às claras, que mesmo não tivesse ficado no texto constitucional senão que também na Lei das Execuções Criminais, cuida-se de norma de cunho programático. Não se trata
de disposição auto-executável, apenas traça linha geral de
ação ditada ao poder público.
Para além disso, sua efetiva realização apresenta dimensão
econômica que faz depender da conjuntura; em outras pala-
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vras, das condições que o Poder Público, como destinatário
da norma, tenha de prestar. Daí que a limitação de recursos
constitui, na opinião de muitos, no limite fático à efetivação
das normas de natureza programática. É a denominada “reserva do possível”.
Pois a “reserva do possível”, no que respeita aos direitos de
natureza programática, tem a ver não apenas com a possibilidade material para sua efetivação (econômica, financeira, orçamentária), mas também, e por consequência, com o poder
de disposição de parte do Administrador, o que imbrica na
discricionariedade, tanto mais que não se trata de atividade
vinculada.
Ao Judiciário não cabe determinar ao Poder Executivo a realização de obras, como pretende o Autor Civil, mesmo pleiteadas a título de direito constitucional do preso, pena de
fazer as vezes de administrador, imiscuindo-se indevidamente em seara reservada à Administração.
Falta aos Juízos, porque situados fora do processo político-administrativo, capacidade funcional de garantir a efetivação de direitos sociais prestacionais, sempre dependentes
de condições de natureza econômica ou financeira que
longe estão dos fundamentos jurídicos.
Preliminar rejeitada. Apelo provido. Unânime.
O acórdão recorrido desobrigou o Estado do Rio Grande do
Sul de realizar obras de reforma geral do Albergue Estadual de
Uruguaiana, necessárias à adequação do estabelecimento prisional
a condições mínimas de habitabilidade e salubridade, com o
fundamento de não caber ao Poder Judiciário interferir em seara
reservada à administração pública e de o art. 5o, XLIX, da
Constituição da República, que garante integridade física e moral
dos presos, constituir norma programática, a ser executada de
acordo com a cláusula da reserva do possível.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul, no recurso
4
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extraordinário, sustenta violação à dignidade dos presos, assegurada
pelo art. 1o, III, e pelo art. 5o, XLIX, da Constituição da República.
Afirma que o direito fundamental dos presos ao respeito à
integridade física e moral constitui norma de aplicabilidade
imediata, de forma que sua observância não pode ser postergada
com base em alegação de restrições orçamentárias e que é dever
do poder público a implantação imediata de políticas públicas que
efetivem essa garantia constitucional indisponível (fls. 393-411).
A PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, em parecer da lavra da
Subprocuradora-Geral da República ELA WIECKO V.
DE
CASTILHO,
opinou pelo provimento do recurso extraordinário, com o
fundamento de que a cláusula da reserva do possível não pode ser
aplicada como forma de o Estado se eximir de proteger o núcleo
essencial do direito fundamental violado (fls. 420-423).
Essa Corte reconheceu repercussão geral da matéria (fl. 435),
cuja controvérsia constitucional ficou assim definida pelo tema
220:
Competência do Poder Judiciário para determinar ao Poder
Executivo a realização de obras em estabelecimentos prisionais com o objetivo de assegurar a observância de direitos
fundamentais dos presos.
A UNIÃO solicitou ingresso no feito na condição de terceira
interessada (fls. 442-443), pleito deferido pelo Ministro RICARDO
LEWANDOWSKI (fls. 446-447). Na manifestação de fls. 455-485,
alegou que o acórdão recorrido não avaliou o contexto fático da
questão posta nos autos, de maneira que a devolutividade do
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recurso extraordinário estaria limitada. Aduziu que o direito
fundamental do preso à integridade física encontra limite na
reserva do possível e que apenas os Poderes Legislativo e Executivo
possuem legitimidade para interpretar a dimensão positiva dos
direitos fundamentais. Apontou ineficiência das políticas de
construção
e
ampliação
de
presídios
para
solucionar
definitivamente os problemas do sistema carcerário. Por fim,
asseverou que o Estado do Rio Grande do Sul tem se dedicado a
solucionar o problema, o que impediria interferência do Poder
Judiciário.
Os ESTADOS
DO
ACRE, AMAZONAS, ESPÍRITO SANTO, MINAS
GERAIS, PIAUÍ, RONDÔNIA, BAHIA, RORAIMA, AMAPÁ, SANTA CATARINA,
MATO GROSSO DO SUL e RIO GRANDE
DO
SUL e o DISTRITO FEDERAL
requereram admissão no processo na qualidade de terceiros
interessados e manifestaram-se pelo não provimento do recurso
(fls. 488-507). Com exceção do RIO GRANDE
DO
SUL, o Ministro
RICARDO LEWANDOWSKI deferiu os pedidos (fls. 511-513).
Posteriormente, admitiu ingresso dos ESTADOS
DE
RIO
DE
JANEIRO
(fls. 524-526), SÃO PAULO (fls. 558-560) e PARÁ (fls. 563-564).
O PROCURADOR-GERAL
DA
REPÚBLICA pediu vista dos autos a
fim de pronunciar-se acerca da questão constitucional, tendo em
vista que a manifestação do Ministério Público é anterior ao
reconhecimento da repercussão geral pelo Plenário virtual (fl.
574).
Vieram os autos à Procuradoria-Geral da República em 28
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de outubro de 2014.
É o relatório.
II. MÉRITO
II.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A despeito das normas constitucionais e da Lei de Execução
Penal, é sabido que o sistema prisional brasileiro se encontra em
notória situação de falência quase generalizada, o que, entre outras
consequências que se verão, gerou a instauração de comissão
parlamentar de inquérito para investigar a realidade carcerária no
Brasil.1 Grande número – talvez a maioria – dos estabelecimentos
penitenciários existentes não atende às condições mínimas de
habitabilidade, salubridade, higiene, segurança e dignidade, o
mínimo exigido pelas normas em vigor para o respeito à
dignidade dos cidadãos condenados e até para tornar mais eficaz o
sistema criminal, em prol da sociedade.
A situação é tão desumana e degradante que já houve quem
comparasse as prisões brasileiras a campos de concentração:
A conclusão é que, apesar das previsões legais e constitucionais, o sistema carcerário nacional é, seguramente, um campo
de torturas físicas e psicológicas. Do ponto de vista psicológico, basta referir as celas superlotadas; a falta de espaço fí1 A chamada “CPI do Sistema Carcerário”. Disponível em:
< http://zip.net/bhp77l >
ou
< http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/2701 >. Acesso em: 7
nov. 2014.
7
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sico; a inexistência de água, luz, material higiênico, banho de
sol; a existência de lixo, esgotos, ratos, baratas e porcos misturados com os encarcerados; presos doentes, sem atendimento médico, amontoados em celas imundas, e outras
situações descritas nas diligências, fotografadas e filmadas
pela CPI.
Em todos os estabelecimentos penais diligenciados, representantes da CPI ouviram dos presos e parentes denúncias de
torturas e maus tratos. Em algumas unidades prisionais diligenciadas, a CPI constatou marcas de torturas nos presos. Os
presos são intimidados permanentemente. Boa parte das unidades é comandada por ex-delegados da Polícia Federal, militares da ativa ou reformados, ou ainda por Policiais
Militares, levando à militarização do ambiente carcerário. De
fato, a maioria dos estabelecimentos penais no Brasil pode
ser caracterizada como verdadeiros campos de concentração.2
A história do sistema carcerário brasileiro é de violência e
ineficiência. Longe de funcionar como elo útil do sistema de
justiça criminal, tem sido palco de larga e incontável série de
massacres e violações de todo gênero à integridade, à dignidade e
aos direitos dos cidadãos privados de liberdade. Não é possível
deixar de mencionar os casos trágicos e emblemáticos dos
massacres na Casa de Detenção de São Paulo (conhecida como
Carandiru, com 111 vítimas), na Casa de Detenção José Mário
Alves (em Porto Velho, Rondônia, conhecida como Penitenciária
Urso Branco, com pelo menos 27 vítimas – que gerou medidas
cautelares da Corte Interamericana de Direitos Humanos) e a
2 POZZEBON, FABRÍCIO DREYER DE ÁVILA; AZEVEDO, RODRIGO
GHIRINGHELLI DE. Comentário ao art. 5o, XLIX. In: CANOTILHO, J. J.
GOMES; MENDES, GILMAR F.; SARLET, INGO W.; STRECK, LENIO L. (coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina,
2013, p. 417.
8
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sequência de assassinatos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas
(em São Luís, Maranhão, com cerca de 20 mortes apenas em
2014). Lamentavelmente, porém, os mortos do sistema carcerário
brasileiro compõem número ainda muitíssimo superior a esse
somatório de massacres.
Recentemente, a Corte de Apelação de Bolonha, Itália,
negou pedido do Brasil de extradição de HENRIQUE PIZZOLATO,
ex-diretor do Banco do Brasil condenado pelo Supremo Tribunal
Federal na ação penal 470/MG. O fundamento central para a
negativa consistiu no reconhecimento de que o sistema carcerário
brasileiro não oferece condições seguras e que respeitem os
direitos fundamentais dos presos no cumprimento da pena.3 Muito
provavelmente, esse precedente (mas, principalmente, a situação
geral do sistema penitenciário brasileiro) dificultará ou obstará
futuros requerimentos de extradição formulados pelo Brasil,
devido à possibilidade de responsabilização dos países requeridos,
com base na teoria da responsabilização por ricochete, adotada
pela Corte Europeia de Direitos Humanos, com base na
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, particularmente
em seu art. 3o.4 A Áustria, por exemplo, já recusou extradição para
3 Confira-se “Negativa de extradição de Pizzolato é derrota para Justiça do
Brasil, diz PGR”, disponível em: < http://zip.net/bkp8jP > ou
< http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/10/negativa-de-extradicaode-pizzolato-e-derrota-para-justica-do-brasil-diz-pgr.html > Acesso em: 7
nov. 2014.
4 Diz o art. 3o da Convenção: “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem
a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes.” Disponível em
< http://bit.ly/CEDHport >
ou
< http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf >; acesso
em 11 nov. 2014.
9
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o Brasil em 2004, por causa da situação do sistema carcerário,
pondo o país ao lado de outros aos quais recusou extradição por
esse fundamento, como
Usbequistão, Geórgia, Azerbaijão,
Cazaquistão, Bielorrússia, Rússia e Sérvia.5
O estado do sistema carcerário no Brasil descumpre diversos
instrumentos internacionais a que o país aderiu e que nele estão
em vigor, como a Convenção contra a Tortura e outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes
(promulgada pelo Decreto 40, de 15 de fevereiro de 1991), o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (promulgado pelo
Decreto 592, de 6 de julho de 1992, em particular seu art. 7o), a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José
da Costa Rica – promulgada pelo Decreto 678, de 6 de novembro
de 1992 –, em especial seu art. 5) e o Protocolo Facultativo à
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes (promulgado pelo Decreto 6.085, de
19 de abril de 2007).6
Não se pode esquecer, além disso, a Declaração Universal dos
5 Vide relatório do Estado-parte (State party's report) Áustria de 2009 à
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes (Convention against Torture and Other Cruel,
Inhuman or Degrading Treatment or Punishment), documento CAT/C/AUT/45, p. 9, § 28. Disponível em < http://zip.net/bxp9PM > ou
< http://tbinternet.ohchr.org/_layouts/TreatyBodyExternal/Countries.as
px?CountryCode=AUT&Lang=EN >; acesso em 11 nov. 2014.
6 Esses e outros instrumentos internacionais firmados pelo Brasil podem ser
encontrados na página da Divisão de Atos Internacionais (DAI) do
Ministério das Relações Exteriores (MRE): disponível em
< http://is.gd/SZeq7d >
ou
< http://www.itamaraty.gov.br/temas/divisao-de-atos-internacionais >;
acesso em 11 nov. 2014.
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Direitos Humanos, cujo artigo 5o estabelece: “Ninguém será
submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano
ou degradante.” Pessoas condenadas a pena privativa de liberdade
não estão compelidas a perder a dignidade nem a vida.
Ainda que reforma profunda desse sistema (e igualmente do
sistema de medidas socioeducativas) não fosse urgente para
cumprimento das normas constitucionais, convencionais e legais
aplicáveis, a sociedade deveria exigi-la, quando mais não fosse, até
mesmo por um raciocínio puramente utilitário: dar aos
estabelecimentos prisionais e às carceragens condições compatíveis
com a humanidade (o que a maioria deles hoje não tem) surtiria
efeitos altamente positivos na redução de crimes, ou seja, para
diminuição da violência que a própria sociedade sofre dos seres
embrutecidos, violentados, sem
qualificação
profissional
e
recidivistas que o sistema despeja nas ruas diariamente.
O Conselho Nacional de Justiça, particularmente por meio
de seu Departamento de Monitoramento e Fiscalização do
Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas
Socioeducativas (DMF), tem realizado valioso trabalho de
diagnóstico, acompanhamento e proposição relativamente ao
sistema carcerário e ao de medidas socioeducativas. Boa parte de
suas constatações podem ser encontradas em sua página
eletrônica.7
7 Disponível
em:
< http://bit.ly/cnjsistcarcere >
< http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/sistema-carcerario-eexecucao-penal >; acesso em 11 nov. 2014.
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ou
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Ali se vê, por exemplo, que o último levantamento do CNJ
revelou população carcerária no Brasil de 711.463 pessoas, das
quais 147.937 em prisão domiciliar.8 O cálculo anterior, de
563.526 pessoas, não levava em conta a prisão domiciliar. De
acordo com o Conselho, o Brasil ultrapassou a Rússia e tem hoje a
terceira maior população carcerária do mundo. Para o International
Centre for Prison Studies, o Brasil estaria em quarto lugar em termos
de número total de pessoas presas.9 Há déficit estimado de 354 mil
vagas no sistema carcerário brasileiro e existem 373.991 mandados
de prisão não cumpridos. O CNJ tem apontado, em seus
relatórios, ano após ano, inumeráveis e gravíssimas deficiências do
sistema carcerário, fonte permanente de reincidência e de
violência em detrimento da sociedade.
Nesse contexto, consoante se analisará nesta manifestação, é
imperiosa a intervenção do Poder Judiciário para garantia de
direitos fundamentais explícitos na Constituição da República e, se
se preferir, para implantação de políticas públicas voltadas a
reforma, ampliação e construção de estabelecimentos prisionais, a
fim de que sejam respeitados e garantidos os direitos fundamentais
dos cidadãos presos e que acontecimentos como os citados acima
não se repitam.
8 Vide notícia “CNJ divulga dados sobre nova população carcerária
brasileira”,
disponível
em
< www.cnj.jus.br/qk2d >
ou
< http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/28746-cnj-divulga-dados-sobrenova-populacao-carceraria-brasileira >; acesso em 11 nov. 2014.
9 Disponível
em
< http://bit.ly/icpstotal >
ou
< http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-populationtotal >; acesso em 11 nov. 2014.
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II.2 CUIDADOS INICIAIS NA DISCUSSÃO
Alguns cuidados preliminares são relevantes para a correta
condução do debate neste processo.
II.2.1 A Armadilha Terminológica
Inicie-se pela observação da impropriedade da denominação
corrente no Brasil do tema deste processo, como sendo “controle
judicial de políticas públicas”. Malgrado seu emprego na praxe
forense e na doutrina permita individualizar o assunto, não parece
ser a melhor designação do problema. Não se trata apenas de
discussão em torno de palavras.
O aparente caráter anódino dessa nomenclatura dá de barato
que o tema pertence, com exclusividade, ao âmbito da política, do
qual o Ministério Público e Judiciário se devem afastar, porque
dotados de legitimidade técnica, mas não da eleitoral.10
Imperceptivelmente se transmite a ideia de que essa espécie de
discussão pertenceria apenas ao Executivo e ao Legislativo.
O erro lógico implícito a tal designação da controvérsia é
claro: tem-se aí petição de princípio, pois o caráter político – e não
jurídico – de determinado tema só pode resultar de sua análise, e
não ser seu ponto de partida.
10 Para a distinção entre ambas, cf. LUIS PRIETO SANCHIS apud INOCÊNCIO
MÁRTIRES COELHO (Interpretação constitucional. 2. ed., Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 2003, p. 86), acerca da legitimidade judicial como
aquisição decorrente do modo pelo qual se exerce a jurisdição e dos
mecanismos de controle.
13
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Decorre daí necessidade de estabelecer critério por cujo
meio se delimitem os campos do direito e da política. Além de
escrito forense não ser local para resolver problema de tal
complexidade, o caráter prático da jurisdição indica necessidade de
fixar o parâmetro referido apenas no que diz respeito às exigências
do caso, isto é, de demarcar a licitude do controle judicial das
condições materiais de presídio.
II.2.2 Necessidade de Critério para Evitar
o Impasse da Nomenclatura
O pedido formulado na ação felizmente recorta, no extenso
domínio dos programas condicionais e dos finalísticos da
Constituição de 1988, o âmbito do debate e sua causa de pedir.
Com isso se tem definida a espécie de título jurídico capaz de
legitimar a iniciativa do Ministério Público e a decisão judicial
neste âmbito.
A configuração de casos desta espécie dispensa indagar se as
normas relativas aos fins estatais e aos objetivos da República,
assim como se as impositivas do dever de legislar, permitem que o
comportamento do Executivo e do Legislativo seja avaliado pela
revisão judicial clássica, isto é, realizada fora do controle abstrato de
inconstitucionalidade por omissão.11
11 Para tipologias, vejam-se, por exemplo, ROBERT ALEXY, Theorie der
Grundrechte, 1. Aufl., Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1994, p. 456-457; e J. J.
GOMES CANOTILHO, Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra:
Coimbra Editora, 1982, p. 374-375.
14
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À solução do problema, basta verificar se direito fundamental
incide na situação de fato. A incidência de direito fundamental no
domínio examinado tem como consequência direta transformar a
discussão em jurídica, não mais submetida apenas – ou nem
preponderantemente – ao domínio da política. Entendimento
contrário privaria os direitos fundamentais do caráter de direitos
subjetivos e, portanto, do sentido imposto pelo art. 5 o, § 1o, da CR.
Em termos históricos, a alternativa implicaria regresso a momento
anterior ao séc. XIX, quando os direitos fundamentais eram
oponíveis, ao menos, à administração pública, na forma da lei. 12 Na
prática, a opção privaria tais direitos até dessa qualidade.13
Ainda que merecesse ser reconduzido à lógica dos direitos
12 Entre tantos, cf. RALF ALLEWELDT. Bundesverfassungsgericht und
Fachgerichtsbarkeit. 1. Aufl. Tübingen: Mohr, 2006, p. 35.
13 KRELL, ANDREAS J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha:
os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 23.
LUÍS ROBERTO BARROSO rememora a exigibilidade judicial da pretensão
como elemento definidor dos direitos fundamentais e prossegue:
“modernamente já não cabe negar o caráter jurídico e, pois, a
exigibilidade e a acionabilidade dos direitos fundamentais, na sua múltipla
tipologia. É puramente ideológica, e não científica, a resistência que ainda
hoje se opõe à efetivação, por via coercitiva, dos chamados direitos sociais.
Também os direitos políticos e individuais enfrentaram [...] a reação
conservadora, até sua final consolidação” (O direito constitucional e a
efetividade de suas normas. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 100-101 e
102).
Após criticar as categorias de normas programáticas como o “limbo
constitucional”, CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA observa: “[...] sendo o
Estado um dos maiores agressores aos direitos fundamentais haveria uma
antinomia em deixar que apenas ele definisse quando e como cumprir as
normas constitucionais nas quais eles são declarados e segundo as quais
têm que ser assegurados” (O constitucionalismo contemporâneo e a
instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais. In: Revista
trimestral de Direito Público. Malheiros, 1996, v. 16, p. 38-58, p. 46 e 54).
15
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sociais a prestações, como advoga a entidade pública, não se
poderia opor à ação do MP e à sentença o obstáculo da intrusão
na seara política.Vale, para a Constituição brasileira, a conclusão de
CANOTILHO a respeito da homóloga portuguesa: “é líquido que as
normas consagradoras de direitos sociais, econômicos e culturais
da Constituição Portuguesa de 1976 individualizam e impõem
políticas públicas socialmente activas”.14
Tal entendimento vige no Brasil, por força do art. 5 o, § 1o, da
CR, apesar de sua inserção no capítulo dos direitos individuais,
aparentemente sugestiva de restrição que, contudo, destoa do teor
do enunciado; do sistema constitucional, tendo em vista que os
direitos políticos e os relativos à cidadania seriam assim privados
de efeito imediatos;15 e, afinal, parece dever-se apenas ao fato de a
Constituição não possuir normas gerais sobre o regime dos
direitos e garantias fundamentais, ao contrário do que ocorre no
direito comparado.16
O Ministro CELSO
DE
MELLO bem ponderou em ação de
descumprimento de preceito fundamental:
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das
funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Su14 Cf. J. J. GOMES CANOTILHO (Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 409), ainda que o autor mencionado sublinhe
o caráter discutível, na ordem lusa, da exigibilidade direta de tais direitos, a
partir da Constituição (p. 408).
15 SARLET, INGO WOLFGANG, A eficácia dos direitos fundamentais, 12. ed., Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 215, p. 269.
16 Citem-se, por exemplo, as Constituições de Portugal (arts. 16-18) e da
Espanha (art. 53) e, apenas em relação às limitações dos direitos
fundamentais, a Lei Fundamental alemã (art. 1o e 19).
16
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prema Corte, em especial – a atribuição de formular e de
implementar políticas públicas [...] pois, nesse domínio, o
encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e
Executivo. Impende assinalar, contudo, que a incumbência
de fazer implementar políticas públicas fundadas na Constituição poderá atribuir-se, ainda que excepcionalmente, ao
Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por
descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles
incidem em caráter vinculante, vierem a comprometer, com
tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.17
II.2.3 Impossibilidade de Soluções Absolutas
em Toda Revisão Judicial sobre Direitos Fundamentais
O terceiro cuidado a tomar consiste em não ceder à tentação
de simplificar artificialmente o problema, oferecendo-lhe solução
de caráter disjuntivo absoluto: ou o Judiciário sempre pode
determinar ao Estado a adoção de todas as providências para o
cumprimento de direitos em todas as suas virtualidades ou, ao
reverso, nunca pode fazê-lo.
Muito embora um acórdão do STF, sobretudo se proferido
em processo dotado de repercussão geral, tenda naturalmente a ser
norte nos casos a respeito da licitude da atuação do Ministério
Público e do Judiciário para compelir o Executivo a providências
alheias àquilo que para si traçou, o resultado a que se chegar neste
debate tem raio de ação limitado a processos relativos ao sistema
17 STF. Plenário. MC na ADPF 45/DF. Rel.: Min. CELSO DE MELLO. Decisão
monocrática, 29/4/2004. DJ, 4 maio 2004, p. 12; RTJ, vol. 200(1), p. 191;
Informativo STF, 345/2004.
17
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
prisional, ainda assim nos aspectos versados no caso.
Tal é a amplitude da gama de normas constitucionais
brasileiras em que se estabelecem programas condicionais e
finalísticos, de variadas densidades normativas, que seria arriscado
transpor, sem mais, entendimento firmado a respeito de um
domínio da Constituição para outro de seus campos. Ela regula,
nem sempre apenas em traços elementares, áreas tão diversas como,
de um lado, aspectos da execução penal e, de outro, os direitos
sociais de “educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer,
segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância,
assistência aos desamparados”, para ficar apenas nas grandes áreas
temáticas do art. 6o da CR.18
Especificidades normativas e mesmo dos diversos domínios
constitucionais podem determinar soluções diferentes. Recorde-se,
apenas exemplificativamente, a diferença estrutural entre o art. 3 o,
III, que fixa a erradicação da pobreza como objetivo da República,
e o art. 208, §§ 1o e 2o, da CR, que qualifica o acesso ao ensino
obrigatório e gratuito como “direito público subjetivo”, e cujo
descumprimento sanciona com responsabilidade da autoridade
obrigada a fornecê-lo. O problema destes autos oferece, aliás, boa
18 Para classificação da diversidade estrutural dos direitos sociais da Lei
Fundamental, ALEXY, ob. cit. na nota 11, p. 456-457. Entre nós, cf., por
exemplo, KRELL, ob. cit. na nota 13, p. 54, e SARLET, especificamente sobre a
impossibilidade de generalização de conclusões combatida no texto: “o
objeto dos direitos sociais a prestações (em última análise, o conteúdo da
prestação) dificilmente poderá ser estabelecido e definido de formal geral e
abstrata, necessitando de análise calcada nas circunstâncias específicas de
cada direito fundamental que se enquadre no grupo em exame” (ob. cit. na
nota 15, p. 292).
18
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
amostra de como as características de determinadas normas
influem na possibilidade e na intensidade da intervenção de ambas
as instituições, em temas da espécie.
Daí, por exemplo, os rumos da jurisprudência alemã retratada
por KRELL: “ao mesmo tempo [em que reconheceu o direito
fundamental ao mínimo existencial], a Corte [Constitucional
Federal] deixou claro que esse ‘padrão mínimo indispensável’ não
poderia ser desenvolvido pelo Judiciário como ‘sistema acabado de
solução’, mas através de uma ‘casuística gradual e cautelosa’”.19
II.3 A ÓTICA DOS DIREITOS SOCIAIS
O pedido formulado nesta ação requer realização de obras de
índole civil em estabelecimento penal, porque seria a forma de
garantir até a integridade física dos cidadãos que ali se encontram
presos.
Algumas manifestações jurídicas sobre o tema dispensam
tratamento dogmático equivocado ao objeto do processo: utilizam
instrumental teórico dos direitos fundamentais sociais, embora, na
verdade, disso não se cuide aqui.
II.3.1 Crítica à Estrutura das Teses de Defesa
A estrutura da defesa revela que sua premissa maior é a
suposta disputa, no caso, por direito social. Congruentemente com
19 Ob. cit. na nota 13, p. 61-62.
19
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
isso, invocam-se os dois argumentos típicos a respeito das
dificuldades
na
implementação
dos
direitos
a
prestações,
sintetizados no art. 6o da Constituição e desenvolvidos em outras
de suas normas. Assevera-se, de um lado, que a tarefa de estipular
alocação de recursos públicos por meio dos quais se satisfazem
prestações estatais representaria espaço de discricionariedade
legislativa no orçamento e executiva em seu implemento. De
outro lado, tais prestações encontrariam limite material na “reserva
do possível”. Desse modo, apenas órgãos investidos de legitimidade
eletiva poderiam fazer as supostas opções requeridas pelos diversos
interesses em causa.
Esse modo de raciocinar corresponde, por inteiro, àquilo que
a doutrina tem assinalado como as objeções mais complexas aos
direitos sociais.20 Ilustrativa é a seguinte passagem de CANOTILHO
acerca dos aspectos gerais, mas não inexoráveis, das duas grandes
categorias de direitos fundamentais:
Concretamente, o problema das relações da lei e dos direitos
fundamentais reconduz-se a dois esquemas nucleares:
1 – Direitos de liberdade = direitos de defesa → pretensão a
omissão dos poderes públicos.
2 – Direitos sociais, econômicos e culturais → pretensão a
uma acção legislativa (ou de outros poderes públicos).21
Se, no exterior, tais problemas desaconselharam a inclusão
expressa de direitos sociais em diversas constituições, semelhantes
argumentos são muitas vezes declinados, no Brasil, como meio de
20 Cf., por exemplo, ALEXY, ob. cit. na nota 11, p. 461 e segs.
21 Ob. cit. na nota 14, p. 364.
20
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
paralisação da atividade de seu controle pelo Judiciário, apesar de
sua positivação inequívoca, cujas consequências jurídicas, é certo,
podem ser discutidas.22 A recepção incondicional dos óbices
estrangeiros em nossa ordem reflete recepção acrítica de
pressupostos normativos alheios.23
Independentemente da transposição inadequada de premissas
mal colhidas no direito estrangeiro para esta espécie de caso,
interessa verificar se este envolve direito fundamental a prestações
e se as objeções mais gerais relativas à concretização de direitos
sociais têm pertinência estrita à discussão.
II.3.2 Premissa Maior Equivocada: Direito de Defesa,
Não Direito Fundamental a Prestações
O problema comum às teses do poder público em causas
relativas a melhoras do sistema prisional está no engano de sua
premissa maior: o caso não põe em pauta direitos fundamentais a
prestações, mas especialmente um direito de defesa.
A assimilação do litígio à busca do implemento de políticas
públicas tendentes à outorga de prestações sociais a pessoas
encarceradas está equivocada, pois se trata – antes de mais nada –
da proteção do clássico direito de defesa do art. 5 o, XLIX, da
Constituição, que assegura aos presos respeito à integridade física e
22 Cf., por todos, NEVES, MARCELO. A constitucionalização simbólica. São Paulo:
Acadêmica, 1994, p. 83, 92, 110 e 153 e segs.
23 A demonstração pormenorizada desse erro de suposto direito comparado,
inclusive nos pressupostos sociais diversos entre o Brasil e a Alemanha, por
exemplo, é o tema da monografia de KRELL, ob. cit. na nota 13.
21
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
moral. Isso, como se verá, faz toda a diferença no tratamento da
questão, que não se reconduz primordialmente à estrutura e aos
problemas postos pelos direitos sociais do texto de 1988.
A demonstração de que se controverte acerca de direito de
defesa deve principiar pelo afastamento do erro de supor que a
mera presença de prestações estatais, como melhora das condições
de prisões, implique sempre presença de direitos sociais.
Tampouco, ao reverso, é acertada a equiparação de direitos de
defesa a meras omissões estatais. Embora tal esquema reproduza o
núcleo dessas definições,24 subsistem exceções. “Ocasionalmente
um direito fundamental parece deferir um direito a prestação, no
qual, entretanto, o direito à prestação é, na realidade, apenas uma
consequência jurídica do direito de defesa”, notam PIEROTH e
SCHLINK,25 Exemplo corrente na doutrina comparada é a
expedição de autorização administrativa para certas atividades:
embora o exercício do direito fundamental de liberdade
econômica requeira eventualmente algum ato do Estado, sob a
forma da autorização, não é o aspecto juridicamente decisivo.26
24 Cf. a nota 21.
25 PIEROTH, BODO; SCHLINK, BERNHARD, Grundrechte Staatsrecht II, 26. ed.,
Heidelberg: Müller, 2010, p. 23, n o 80: “Gelegentlich scheint ein
Grundrecht ein Leistungsrecht zu geben, wobei aber das Leistungsrecht
nur eine Rechtsfolge des Abwehrrechts ist”. Daí a doutrina diferenciar
entre as funções primárias e secundárias ou principais e auxiliares dos
direitos fundamentais; nesse sentido, por exemplo, JARASS, HANS D.
Funktionen und Dimensionen der Grundrechte. In: MERTEN, DETLEF;
PAPIER, HANS-JÜRGEN. Handbuch der Grundrechte. Heidelberg: CF Müller,
2006, Band 2, § 38, p. 625-654 (627, n o 6); e SACHS, MICHAEL.
Abwehrrecht. In: MERTEN & PAPIER, Handbuch der Grundrechte. ob. cit.,
Band 2, § 39, p. 655-659 (659, no 8).
26 PIEROTH & SCHLINK, ob. cit. na nota 25, p. 23, no 81, e BOROWSKI,
22
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
Ao menos dois critérios podem ser declinados para
classificação
da
função
preponderante
de
certo
direito
fundamental: o parâmetro material e o formal, como esclarece
BOROWSKI.27 O critério material decorre da diferença entre a
liberdade natural das pessoas e as demais situações jurídicas
asseguradas pelos direitos fundamentais.28 Já o padrão formal
considera apenas a espécie de pretensão exercitável, não seu
fundamento, de modo que os direitos de defesa garantem
abstenções, enquanto
os
direitos
a
prestações
asseguram
comportamento positivo do Estado.29
Esse autor defende a prevalência do critério material, porque
assim a “argumentação substancial” ocupa o primeiro plano, em
detrimento da consideração da “consequência jurídica aleatória”
desencadeada pelo direito em causa.30 Acresça-se que o sentido
histórico
e
teleológico
dos
direitos
individuais
é
o
reconhecimento da liberdade dos seres humanos, desdobrada em
suas diversas facetas de defesa. Nessa perspectiva, a função de
anteparo da esfera individual contra agressões difere-a das
prestações historicamente ligadas ao Estado de bem-estar social ou,
pelo menos, às nações comprometidas com garantias do mínimo
existencial a seus integrantes em situação econômica aflitiva.
Recupere-se, por
isso, a
ideia
central
dos
direitos
MARTIN, Grundrechte als Prinzipien, 2. Aufl., Baden-Baden: Nomos, 2007, p.
213.
27 Ob. cit. na nota 26, p. 213-214.
28 Idem, p. 213-214.
29 Idem, p. 222.
30 Idem, p. 224.
23
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
contrapostos, na síntese de BOROWSKI: “enquanto direitos de defesa
no sentido clássico garantem liberdade jurídica, os sociais visam à
liberdade fática. [...] Direitos fundamentais sociais dirigem-se a
prestações financeiras ou materiais, que possibilitam gozo das
liberdades jurídicas como liberdade fática”.31
Por definição, indivíduos presos são titulares de diminuta
liberdade jurídica, mas nula de fato. Portanto, não faz sentido dizer
que a melhora das condições materiais de estabelecimentos
penitenciários se reconduz à categoria dos direitos sociais. Por
meio do aperfeiçoamento do sistema prisional, não se aumenta
nenhuma liberdade, mas apenas se aprimoram as condições sob as
quais alguém é custodiado pelo Estado, por decisão deste. Logo, de
direito social não se pode cuidar. Trata-se, antes, do direito de
defesa dos detentos de não serem encarcerados em condições
atentatórias a sua integridade moral e física. Tem-se aí, na verdade,
curto raio de liberdade jurídica, a ser respeitado pela clássica
omissão estatal, como é típico dos direitos clássicos de defesa: não
ser preso em condições lesivas.
A redação do art. 5o, XLIX, da CR pode dificultar sua visão
como direito de defesa, porquanto nele se dispõe que “é
assegurado aos presos respeito à integridade física e moral”, ao
invés de determinar que o Estado não atentará contra a
31 BOROWSKI, ob. cit. na nota 26, p. 341: “Während Abwehrrechte in
klassischen Sinne rechtliche Freiheit gewähren, zielen soziale Grundrechtte
auf faktische Freiheit. [...]. Soziale Grundrechte zielen auf finanzielle oder
sachliche Leistungen, die dem einzelnen die Wahrnehmung rechtlicher
Freiheiten, faktische Freiheit ermöglichen”.
24
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
integridade dos detentos. A diferença de redação não implica
transformação da índole do direito. Parece hoje assentado que
norma jurídica não se confunde com seu enunciado.32 Daí ser
indiferente que o enunciado do inc. XLIX tenha sido concebido
em termos positivos, ao invés de negativos. Nem sempre um
direito de defesa se expressa por meio de enunciado que imponha
abstenções estatais; também pode resultar de proibições33 ou até do
emprego de fórmulas similares às das ciências naturais para
descrição de evidências denotadas pelo presente durativo, como se
vê no art. 5o, I, da CR. Além de essa norma se inscrever entre os
direitos individuais do art. 5o e não nos direitos sociais do art. 6o e
encontráveis em outros tópicos da Constituição, o principal está na
função desse direito. Não há, aí, ordem para que se prendam
pessoas e, depois, passe o Estado a aportar-lhes prestações diversas,
32 Tal conclusão se lê em ALEXY e em FRIEDRICH MÜLLER, aqui lembrados
exemplificativamente, porque nem a disparidade de seus modelos lhes
impede de ver essa realidade. Mesmo alinhado à corrente mais
conservadora no particular, ALEXY, ob. cit. na nota 11, p. 43, recorda: “que
se deve distinguir entre enunciado normativo e norma, já que se pode
reconhecer no fato de que a mesma norma se deixa exprimir por
diferentes enunciados” (“Daß zwischen Normsatz und Norm zu
unterscheiden ist, läßt sich daran erkennen, daß dieselbe Norm durch
verschiedene Normsätze ausgedrückt werden kann”). Também MÜLLER
nota: “já se demonstrou de muitas formas que uma norma jurídica é mais
do que o texto normativo. [...]. Apenas [...] do trabalho com todos os
dados linguísticos [do texto normativo] o operador do direito obtém
inicialmente o programa normativo, tradicionalmente entendido como
‘comando jurídico’” (“Es hat sich mehrfach gezeigt, daß eine Rechtsnorm
mehr ist als der Normtext. [...]. Erst aus der Bearbeitung des Normtextes,
mehr noch: aus der Verarbeitung sämtlicher Sprachdaten gewinnt der
Rechtsarbeiter zunächst das Normprogramm, den herkömmlich so
verstandenen ‘Rechtsbefehl’” - Juristische Methodik, 7. Aufl., Berlin:
Duncker & Humblot, 1997, p. 172 e 173, no 230 e 232.
33 Exemplificativamente no direito comparado, SACHS, ob. cit. na nota 25, p.
659, no 8).
25
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
como se tratasse de oferecer aos presos direitos sociais similares aos
devidos a quem esteja em liberdade. A diferença reside, antes de
tudo, na ausência completa do propósito de aumentar a liberdade
fática dos presos, para que possam gozar seus direitos de liberdade
jurídica, como é típico dos direitos sociais à saúde e ao trabalho,
por exemplo.
Em adição aos elementos estruturais e sistemáticos desse
direito, invoque-se ainda o critério histórico da sedimentação dele,
para se perceber ser típico exemplar da categoria de defesa.
Examinando os pactos ingleses, KRIELE escreveu: “a proteção contra
a detenção e a persecução penal arbitrárias é o direito fundamental
originário, a raiz da liberdade. Pois sem esse direito fundamental o
homem está permanentemente ameaçado; todo tipo de expressão
ou atividade espiritual, política, religiosa ou de outro tipo pode
custar-lhe a liberdade pessoal; o medo obriga-o a fechar a boca.
[...] A proteção contra detenção arbitrária é, pois, não só
historicamente, mas também materialmente, a mãe de todos os
direitos fundamentais”34. Já no plano do direito nacional, basta
lembrar que o direito em causa tem antecedente no art. 179, XXI,
da Constituição de 1824, da qual estavam ausentes direitos sociais:
“as cadeias serão seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas
34 KRIELE, MARTIN, Introducción a la teoria del Estado. Buenos Aires: Depalma,
1980, p. 209; entre nós, cf., por todos, ORLANDO BITAR, para demonstração
analítica da síntese de KRIELE, com base em estudos da Magna Carta e de
outros documentos ingleses da liberdade (A lei e a constituição. In: _____.
Obras completas. Conselho Federal de Cultura, v. 2, p. 13-209 (p. 110-111); e
Fontes e essência da Constituição britânica. In: _____. Obras completas.
Conselho Federal de Cultura, vol. 2, p. 259-316 (266 e segs.).
26
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias, e
natureza dos seus crimes”. Em suma, o direito a não ser submetido
a situações atentatórias à integridade física e moral em
estabelecimentos penais tem estrutura aproximada ao direito a não
ser preso por motivo arbitrário, de que, aliás, constitui
desdobramento humanitário.
Resta ver o que juridicamente decorre de litigar-se aqui
sobre direito fundamental de defesa, em termos de sua
exigibilidade por meio judicial.
II.3.3 Consequências do Direito Fundamental de Defesa
à Integridade Física e Moral de Cidadãos Presos
Após recordar que a exigibilidade judicial dos direitos de
defesa, por implicarem atos negativos, sempre oferece menos
problemas do que os postos pelos direitos a prestações, ALEXY
explica o motivo disso, em termos de estrutura dos direitos
contrastados. “Enquanto para satisfação de mandados de proteção
ou de fomento, como de modo geral de todos os direitos a
prestações, a adoção de apenas uma ação protetiva ou de fomento
é suficiente”, a abstenção de cada comportamento de supressão ou
de constrição dos direitos de defesa é condição necessária a seu
respeito, mas apenas a omissão de todas as condutas dessa espécie
se mostra suficiente para atender à proibição de sua destruição ou
constrição.35
35 ALEXY, ob cit. na nota 11, p. 421: “Der Grund für den Unterschied liegt tiefer.
Er besteht darin, daß die Unterlassung jeder einzelnen Zerstörungs- und
27
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
As implicações da diferença estrutural entre direitos de defesa
e direitos sociais no caso são importantes. É equivocado enquadrar
a causa como avanço do Ministério Público e do Judiciário no
campo das opções legislativas e executivas para concretizar direitos
fundamentais sociais, pois aos órgãos da representação popular
cabe a escolha de meio adequado para resolução do impasse. O
motivo do engano está em que a função principal do direito de
defesa discutido impõe total abstenção da manutenção de
condições lesivas à integridade física e moral de pessoas presas. O
Estado não se desincumbe de seus deveres constitucionais por
satisfação parcial, isto é, pela omissão de um ou de alguns dos
vários meios de se prejudicarem os bens protegidos pelo art. 5o,
XLIX, da CR, mas apenas quando se omitir em todas as
modalidades agressivas das faculdades dele decorrentes.
Segue-se disso o erro do ponto de vista de que o direito em
causa não seria exigível em juízo, por depender de opções
interditadas ao Ministério Público e ao Judiciário. Especialmente
por se tratar de direito fundamental de defesa, não existe opção
legislativa ou executiva de omissão parcial de comportamentos
danosos à integridade dos detentos. Presos têm direito a obter do
Estado comportamento negativo, em relação a todas as omissões
Beeinträchtigungshandlungen eine notwendige Bedingung und erst die
Unterlassung aller Zerstörungs- und Beeinträchtigungshandlungen eine
hinreichende Bedingung für die Erfüllung des Zerstörungs- und
Beeinträchtigungsverbot und damit für die Erfüllung des Abwehrrechts ist, während
zur Erfüllung von Schutz- oder Förderungsgeboten, wie ganz allgemein für die
Erfüllung von Leistungsrechten, die Vornahme nur einer geeigneten Schutz- oder
Förderungshandlung hinreichend ist”.
28
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
nesse campo de defesa: se o Estado deseja encarcerar alguém, deve
fazê-lo de modo que não afete aquele direito subjetivo
fundamental, em todas as suas facetas.
Talvez em função das limitações processuais do recurso
extraordinário, o tema tem sido discutido no Supremo Tribunal
Federal sob o aspecto da responsabilidade civil das entidades de
direito público em decorrência de lesões a direitos de detentos. O
Tribunal tem garantido em todos os casos indenizações; em alguns
deles como decorrência do direito fundamental aqui discutido.
Quer em casos nos quais se configuram agressões de determinado
preso por outro, quer até nos de suicídio, o reconhecimento da
responsabilidade civil pelo STF parece pressupor o direito
subjetivo incontrastável de integridade física e moral.36
II.3.4 Análise do Caso à Luz da Premissa Correta
O acórdão recorrido merece ser reformado, porque
encampou tese nula, qual seja, da impossibilidade de o Judiciário
verificar se o comportamento do Estado ofende o direito
fundamental de integridade dos presos, determinando que se
adotem as medidas necessárias à superação de estado de
36 STF. RE 215.981. Rel.: Min. NÉRI DA SILVEIRA; AI 603.865, rel.: Min.
CÁRMEN LÚCIA; RE 458.618 AgRg, rel.: Min. RICARDO LEWANDOWSKI; ARE
700.927 AgR, rel.: Min. GILMAR MENDES. A conclusão defendida no texto
parece válida mesmo em relação aos julgados em temas processuais, como
os da súmula 279 do STF, pois eventual inexistência do direito em causa e,
sobretudo, do dever estatal excluiria a responsabilidade nestes casos, ainda
que indiscutível a existência da lesão, a qual não se poderia reputar dano
jurídico.
29
PGR
Recurso extraordinário 592.581/RS
desrespeito dos deveres públicos dele decorrentes.
A sentença da Juíza de Direito CRISTINA LOPES NOGUEIRA,
aliás, chegou a considerar a ótica aqui exposta, ao registrar, por
exemplo, que “não se pode consentir que o Estado, que deveria ser
o maior guardião de nossos direitos constitucionais, quede-se
inerte diante de situação tão crítica, na qual o direito à vida e à
saúde de presos e dos funcionários resta ameaçado” (volume 2,
folha 332).
II.4 INADEQUAÇÃO DA CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL
Ainda que se examine o problema prevalentemente sob o
prisma do dever estatal de implantação de políticas públicas,
também deve ser o recurso provido, até porque, neste caso, se trata
de desdobramento do dever estatal de respeito aos direitos
fundamentais, de que até aqui se tratou.
O artigo 1o da Constituição Federal estabelece que a
República
Federativa
do
Brasil
constitui-se
em
Estado
Democrático de Direito e possui como um de seus fundamentos a
dignidade do ser humano.37 Significa isso que o poder constituinte
originário elegeu a dignidade da pessoa como finalidade e a
própria razão de existir do Estado Brasileiro. Trata-se de “princípio
(e valor) fundamental, que deve servir de norte ao intérprete, ao
37 “Art. 1o. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]
III – a dignidade da pessoa humana; [...]”.
30
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qual incumbe a missão de assegurar-lhe a necessária força
normativa”.38
A dignidade do ser humano possui dupla dimensão, negativa
e positiva, as quais impõem, ao mesmo tempo, limitações e tarefas
ao Estado e à sociedade, conforme bem explica INGO SARLET:
Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa
não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação
própria e de terceiros, como também o fato de que a dignidade gera direitos fundamentais (negativos) contra atos que a
violem ou a exponham a graves ameaças, sejam tais atos
oriundos do Estado, sejam provenientes de atores privados.
Como tarefa, a dignidade implica deveres vinculativos de tutela por parte dos órgãos estatais, com o objetivo de proteger
a dignidade de todos, assegurando-lhes, também por meio de
medidas positivas (prestações), o devido respeito e promoção,
assim como decorrem deveres fundamentais (inclusive de tutela) por parte de outras pessoas.39
Proteção e promoção da dignidade do ser humano norteiam,
portanto, todo o ordenamento constitucional, e servem de guia
para a atuação estatal e para concretização de diversos direitos
fundamentais, entre os quais se encontra o direito dos presos ao
respeito à integridade física e moral, segundo a previsão explícita
da Carta Política:
Art. 5o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: [...]
38 SARLET, INGO W. Comentário ao artigo 1o, III. In: CANOTILHO, MENDES & STRECK. Comentários à Constituição do Brasil. Obra citada, p. 124.
39 SARLET, INGO W. Idem, p. 125.
31
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XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; [...].
O art. 5o, XLIX, da Constituição da República consubstancia
direito fundamental e, como tal, possui aplicabilidade imediata, nos
termos do § 1o do mesmo dispositivo,40 isto é, independentemente
de lei.41 É certo que a diversidade de direitos fundamentais e seus
diferentes níveis de complexidade resultam, no plano da realidade,
em graus distintos de aplicabilidade das normas. Mesmo os direitos
fundamentais que demandam prestação do Estado, contudo, devem
ser protegidos e garantidos pelos entes estatais sempre no sentido
de atribuir-lhes máxima eficácia e efetividade:
[...] Nesta perspectiva, por terem direta aplicabilidade, as
normas de direitos fundamentais terão a seu favor pelo menos uma presunção de serem sempre também de eficácia
plena, portanto, não dependentes de uma prévia regulamentação legal, destacando-se, por oportuno, que a plena eficácia
aqui não vai tomada no sentido da impossibilidade de serem
estabelecidos limites aos direitos fundamentais. Em termos
pragmáticos, um direito fundamental não poderá ter sua
fruição negada pura e simplesmente por conta do argumento de que se trata de direito positivado como norma programática e de eficácia meramente limitada, pelo menos não no
sentido de que o reconhecimento de uma posição subjetiva
se encontra na completa dependência de uma interposição
legislativa.42
40 “Art. 5o. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]
§ 1o. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
41 CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7
ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1.178.
32
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Desse
modo,
direitos
fundamentais
de
conteúdo
programático também são de observância obrigatória e possuem
eficácia vinculante, não contêm meras promessas ou declarações.
GOMES CANOTILHO, aliás, defende que se deve abolir a ideia
tradicional de normas constitucionais meramente programáticas:
Precisamente por isso, e marcando uma decidida ruptura em
relação à doutrina clássica, pode e deve falar-se da “morte”
das normas constitucionais programáticas. Existem, é certo,
normas-fim, normas-tarefa, normas-programa que impõem,
uma actividade e dirigem materialmente a concretização
constitucional. O sentido destas normas não é, porém, o assinalado pela doutrina tradicional: simples programas, exortações morais, declarações, sentenças políticas, aforismos
políticos, promessas, apelos ao legislador, programas futuros,
juridicamente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às
normas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico
constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da
constituição. Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante quaisquer órgãos
do poder político (CRISAFULLI). Mais do que isso: a eventual
mediação concretizadora, pela instância legiferante, das nor mas programáticas, não significa que este tipo de normas careça de positividade jurídica autónoma, isto é, que a sua
normatividade seja apenas gerada pela interpositio do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade da intervenção dos órgãos
legiferantes. Concretizando melhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: (1) vinculação do legislador, de forma
permanente, à sua realização (imposição constitucional); (2) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo
estes tomá-las em consideração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação, na
42 SARLET, INGO W. Comentário ao artigo 1o, III. In: CANOTILHO, MENDES & STRECK. Comentários à Constituição do Brasil. Ob. cit., p. 515.
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qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam. 43
Foi nesse sentido, igualmente, a orientação firmada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de
agravo regimental no RE 271.286/RS:
PACIENTE COM HIV/AIDS – PESSOA DESTITUÍDA
DE RECURSOS FINANCEIROS – DIREITO À VIDA E
À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS – DEVER CONSTITUCIONAL DO
PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5o, CAPUT, E 196) –
PRECEDENTES (STF) – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA
CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. – O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição
da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira
responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e
implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do
vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. – O direito à saúde – além de
qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as
pessoas – representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a
esfera institucional de sua atuação no plano da organização
federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que
por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM
PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. – O caráter programático da regra inscrita no
art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários
43 CANOTILHO, J. J. GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Ob.
cit., p. 1.176-1.177.
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Recurso extraordinário 592.581/RS
todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público,
fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto
irresponsável de infidelidade governamental ao que
determina a própria Lei Fundamental do Estado.
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A
PESSOAS CARENTES. – O reconhecimento judicial da
validade jurídica de programas de distribuição gratuita de
medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5o, caput, e 196)
e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a
consciência de sua própria humanidade e de sua essencial
dignidade. Precedentes do STF.44
Portanto, ainda que se considere como de caráter
programático a norma insculpida no art. 5o, XLIX, da Constituição
da República, possui o Estado dever de conferir-lhe máxima
eficácia e efetividade. Visa ela a garantir, com fundamento no
princípio da dignidade do ser humano, condições minimamente
dignas (e nem isso hoje há, em muitos casos) de tratamento
àqueles que se encontrem privados de liberdade, tanto no aspecto
negativo, de limitação, quanto no positivo, de prestação. Não
bastasse a norma do art. 5o, III, da Constituição, que veda
tratamento desumano ou degradante a qualquer pessoa, o
constituinte originário instituiu
preceito com destinatário
específico, o preso, a fim de assegurar-lhe efetivo respeito à
44 STF, 2a T., RE 271.286 AgR/RS. Rel.: Min. CELSO DE MELLO, 12/9/2000,
unânime, DJ, 24 nov. 2000, sem destaque no original.
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Recurso extraordinário 592.581/RS
integridade física e moral.
Entende-se por esse direito não só proteção contra violência
praticada por outros detentos e por agentes públicos quaisquer,
mas também prestação mínima de assistência material, sanitária,
jurídica, educacional, religiosa, social e psicológica. É certo que a
observância desse direito fundamental impõe gastos ao poder
público, o qual, muitas vezes, por limitação orçamentária, não
possui condições de destinar recursos suficientes a suprir todas as
demandas decorrentes do sistema prisional. Com não pouca
frequência, entes federativos invocam a reserva do possível para se
eximir dos deveres impostos pela ordem constitucional.
Todavia, dita cláusula não se pode aplicar, no caso.
Reconhece a doutrina constitucional que os direitos
fundamentais possuem núcleo intangível, que deve ser assegurado,
protegido e promovido pelos entes estatais. A repercussão disso é
que, mesmo diante de condições adversas, de limites financeiros ou
de colisão com outros direitos fundamentais, o conteúdo essencial
do direito fundamental deve ser preservado, sendo inaceitável sua
redução ou ponderação, pois isso significaria nulificar a própria
eficácia desse direito.
RICARDO LOBO TORRES, em obra específica dedicada ao
direito ao mínimo existencial, esclarece:
Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade
de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um
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Recurso extraordinário 592.581/RS
mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e
os indigentes podem ser privados.
O mínimo existencial não tem dicção constitucional própria. Deve-se procurá-lo na ideia de liberdade, nos princípios
constitucionais da dignidade humana, da igualdade, do devido processo legal e da livre iniciativa, na Declaração dos
Direitos Humanos e nas imunidades e privilégios do cidadão.45
Não se trata, portanto, de pretender regalias e privilégios para
pessoas presas, mas de assegurar-lhes o mínimo necessário à
manutenção da dignidade e de condições de sobrevida. Se o
Estado avoca exclusividade da aplicação legítima de sanção pelo
cometimento de infrações penais, como verdadeiro apanágio
civilizatório, não pode ao mesmo tempo afirmar não possuir
condições de ensejar condições básicas de dignidade àqueles aos
quais a privação de liberdade seja imposta.
De resto, o cumprimento desses deveres redunda não apenas
em benefício dos presos, mas no da própria sociedade, pois a
erradicação das condições degradantes de boa parte do sistema
carcerário brasileiro tende a reduzir a geração de violência, de
criminalidade e de reincidência nos egressos das unidades
penitenciárias.
II.5 NECESSIDADE E LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO NA ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
A proteção do mínimo essencial dos direitos fundamentais
45 TORRES, RICARDO LOBO. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro:
Renovar, 2009, p. 36.
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Recurso extraordinário 592.581/RS
implica observância dos direitos básicos à vida, à liberdade, à
igualdade e à dignidade humana. Cabe ao poder público a
efetivação do padrão mínimo dos direitos fundamentais, de seu
conteúdo essencial e intangível, missão que não se encontra no
campo da discricionariedade do Executivo ou do Legislativo,
muito menos pode ser limitada pela cláusula da reserva do possível.
Repita-se: trata-se aqui do mínimo indispensável ao respeito da
vida, da integridade e da dignidade dos presos no sistema
carcerário brasileiro. Cuida-se de assegurar o mínimo para o
cumprimento da Constituição, das leis e dos compromissos
internacionais do país e para que este se possa considerar em
patamar civilizatório compatível com sua grandeza.
Acerca do tema da intervenção judicial na implantação de
políticas públicas, o Ministro CELSO
DE
MELLO, em decisão
monocrática na ADPF 45, bem observou:
Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal
hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade
financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento
e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir,
desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” –
ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado,
com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de
suas
obrigações
constitucionais, notadamente
quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação
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Recurso extraordinário 592.581/RS
de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.46
Dessa maneira, respeitados certos limites e certo grau, é
cabível e pode ser até recomendável intervenção do Poder
Judiciário para adoção de políticas públicas que garantam a
intangibilidade do mínimo existencial dos direitos fundamentais,
de forma que a Carta Constitucional não se torne documento
inócuo, para que a força normativa da Constituição seja preservada
e para que o princípio da dignidade humana seja observado.47
RICARDO LOBO TORRES reconhece a relevância da atuação do
Poder Judiciário na garantia do direito ao mínimo existencial, sem
que isso implique violação ao princípio da divisão funcional do
poder, também conhecido como da separação dos poderes:48
46 STF, ADPF 45, rel.: Min. CELSO DE MELLO, 29/4/2004, decisão monocrática, DJ, 4 maio 2004, sem destaque no original.
47 Sobre o fenômeno da judicialização de políticas públicas, LUIZA CRISTINA
FRISCHEISEN esclarece: “Esse processo de judicialização das demandas coletivas, que antes eram veiculadas tão somente pela via política através, por
exemplo, das eleições e consequente atividade do Poder Legislativo, é consequência natural da positivação pelas Constituições dos direitos sociais.
[...]
Não se trata, portanto, de um Juiz Legislador ou da substituição do Executivo pelo Judiciário, mas sim de um Juiz intérprete da Constituição Federal,
que deve estar em sintonia com as demandas dos diversos setores da sociedade em que vive e trabalha.” FRISCHEISEN, LUIZA CRISTINA FONSECA.
Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e o Ministério Público. São
Paulo: Max Limonad, 2000, p. 103.
48 É preferível denominá-lo de princípio da divisão funcional do poder, em
lugar de “separação”, pois esta na realidade não há. Como disse o Ministro
EROS GRAU em julgamento dessa Corte, “a separação dos poderes constitui
um dos mitos mais eficazes do Estado liberal” (STF. Plenário. ADI
3.367/DF. Rel.: Min. CEZAR PELUSO. 13/4/2005, maioria quanto ao mérito.
DJ, 17 mar. 2006, p. 4; republ. DJ, 22 set. 2006, p. 29; v. voto na fl. 269 dos
autos). Em outro ponto, cita feliz consideração de Carlos Maximiliano em
seus Comentários à Constituição brasileira: “Como no corpo do homem, não
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Recurso extraordinário 592.581/RS
A superação da omissão do legislador ou da lacuna orçamentária se realiza por instrumentos orçamentários, e jamais
à margem das regras constitucionais que regulam o orçamento. Se, por absurdo, não houver dotação orçamentária, a
abertura dos créditos adicionais cabe aos poderes políticos
(Administração e Legislativo), e não ao Judiciário, que apenas reconhece a intangibilidade do mínimo existencial e determina aos demais poderes a prática dos atos orçamentários
cabíveis. Na insuficiência da verba, o Executivo, desde que
autorizado pelo Legislativo (art. 167, V, da CF), deve suplementá-la pressionado pelo Judiciário; não havendo dotação
necessária à garantia do direito, o Legislativo deve abrir crédito especial, providenciando a anulação das despesas correspondentes aos recursos necessários (art.166, § 3o, II e 167, V,
da CF). O STF já decidiu assim diversas vezes.49
Também ANA PAULA
DE
BARCELLOS defende a possibilidade de
controle jurisdicional da observância pelo Executivo e pelo
Legislativo do mínimo existencial:
Desse modo, há, de um lado, um espaço normativo da dignidade do que diz respeito àquele consenso mínimo e que, por
isso mesmo, poderá ser objeto de amplo controle judicial.
Controle esse – repita-se – cujo propósito não é apenas impedir que os enunciados normativos em questão sejam violados, mas assegurar a produção dos efeitos por ele
pretendidos. Esse é o campo de trabalho do direito e da Justiça Constitucional, não estando tais regras à disposição da
deliberação política.50
Destaque-se, a esse respeito, trecho do voto do Ministro
CELSO
DE
MELLO no julgamento de agravo regimental no RE
há no Estado isolamento de órgãos, e, sim, especialização de funções” (3.
ed. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1929, p. 304, citado na fl. 278 dos
autos).
49 TORRES, RICARDO LOBO. O direito ao mínimo existencial. Ob. cit., p. 95-96.
50 BARCELLOS, ANA PAULA DE. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 257.
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Recurso extraordinário 592.581/RS
410.715/SP, em que se discutiu a obrigatoriedade de o poder
público prestar educação infantil por meio de creches e
pré-escolas:
É certo – tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel.
Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF no 345/2004) – que
não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em
especial – a atribuição de formular e de implementar políticas públicas [...], pois nesse domínio, como adverte a doutrina, o encargo reside, primariamente, nos Poderes
Legislativo e Executivo.
Impende assinalar, no entanto, que tal incumbência poderá
atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se
e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem
os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou
coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.
[...]
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade
de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às
possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que,
comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material
referida, a imediata efetivação do comando fundado no
texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou
político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável
propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos,
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de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF,
Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF no 345/2004).51
Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal possui inúmeros
julgados nos quais reconhece possibilidade de interferência do
Poder Judiciário para implementação de políticas públicas, quando
houver inadmissível inércia governamental, a enfraquecer a
supremacia da Constituição.52
No julgamento do agravo regimental no agravo de
instrumento 810.410/GO, relatado pelo Ministro DIAS TOFFOLI, a
Primeira Turma do STF confirmou atuação do Poder Judiciário
do Estado de Goiás para garantir segurança em estabelecimento de
custódia de menores:
Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional. Poder Judiciário. Determinação para implementação de
políticas públicas. Segurança pública. Destacamento de policiais para garantia de segurança em estabelecimento de custódia de menores infratores. Violação do princípio da
separação dos Poderes. Não ocorrência. Precedentes. 1. O
Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode
determinar que a Administração pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais sem que isso configure
violação do princípio da separação dos poderes. 2.
Agravo regimental não provido.53
51 STF. 2a T. RE 410.715 AgR/SP. Rel.: Min. CELSO DE MELLO. 22/11/2005,
un. DJ, 3 fev. 2006.
52 STF. 1a T. RE 628.159 AgR/MA. Rel.: Min. ROSA WEBER. 25/6/2013, un.
DJ eletrônico 159, 14 ago. 2013; STF. 1a T. AI 810.410 AgR/GO. Rel.: Min.
DIAS TOFFOLI. 28/5/2013, un. DJe 154, 7 ago. 2013; STF. 1a T. AI 829.984
AgR/RO. Rel.: Min. DIAS TOFFOLI. 14/5/2013, un. DJe 154, 7 ago. 2013;
STF. 2a T. RE 581.352. AgR/AM. Rel.: Min. CELSO DE MELLO.
29/10/2013. DJe 230, 21 nov. 2013.
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Recentemente, a Segunda Turma do STF firmou legitimidade do Poder Judiciário para determinar aplicação de políticas
públicas relacionadas à instalação de defensoria pública estadual na
Comarca de Apucarana (PR). Confira-se trecho do acórdão:
[...] É lícito ao Poder Judiciário, em face do princípio da supremacia da Constituição, adotar, em sede jurisdicional, medidas destinadas a tornar efetiva a implementação de
políticas públicas, se e quando se registrar situação configuradora de inescusável omissão estatal, que se qualifica como
comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se
fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência)
de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. Precedentes. Doutrina. – A função constitucional da Defensoria Pública e a
essencialidade dessa Instituição da República: a transgressão
da ordem constitucional – porque consumada mediante
inércia (violação negativa) derivada da inexecução de programa constitucional destinado a viabilizar o acesso dos necessitados à orientação jurídica integral e à assistência
judiciária gratuitas (CF, art. 5o, LXXIV, e art. 134) – autoriza
o controle jurisdicional de legitimidade da omissão do Estado e permite aos juízes e Tribunais que determinem a implementação, pelo Estado, de políticas públicas previstas na
própria Constituição da República, sem que isso configure
ofensa ao postulado da divisão funcional do Poder. Precedentes: RTJ 162/877-879 – RTJ 164/158-161 – RTJ
174/687 – RTJ 183/818-819 – RTJ 185/794-796, v.g.. Doutrina.54
Em outra decisão (conquanto monocrática), o Ministro
GILMAR MENDES traçou ricas considerações acerca da possibilidade
53 STF. 1a T. AI 810.410 AgR/GO. Rel. Min. DIAS TOFFOLI. 28/5/2013, un.
DJe 154, 7 ago. 2013, sem grifo no original.
54 STF. 2a T. AI 598.212 ED/PR. Rel.: Min. CELSO DE MELLO. 25/3/2014, un.
DJe 77, 23 abr. 2014.
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de o Poder Judiciário expedir ordem para que o Executivo
concretize determinadas políticas públicas, quando houver
mandamento constitucional expresso e se constatar inércia estatal
injustificada que ponha sob risco direitos fundamentais de especial
relevância.55 É certo que nesse caso se tratava de assegurar eficácia
a comandos constitucionais pertinentes à proteção integral da
55 Na suspensão de liminar 235/TO, sustentou o então Presidente da Corte:
“[...] Nesse sentido, destaca-se a determinação constitucional de absoluta
prioridade na concretização desses comandos normativos, em razão da alta
significação de proteção aos direitos da criança e do adolescente. Tem
relevância, na espécie, a dimensão objetiva do direito fundamental à
proteção da criança e do adolescente.
Segundo esse aspecto objetivo, o Estado está obrigado a criar os
pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo deste direito.
Como tenho analisado em estudos doutrinários, os direitos fundamentais
não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote),
expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria,
assim, para utilizar uma expressão de CANARIS, não apenas uma proibição
de excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de proteção
insuficiente
(Untermassverbot)
(CLAUS-WILHELM
CANARIS,
Grundrechtswirkungen um Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen
Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts, JuS, 1989, p. 161).
Nessa dimensão objetiva, também assume relevo a perspectiva dos direitos
à organização e ao procedimento (Recht auf Organization und auf Verfahren),
que são aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realização, de
providências estatais com vistas à criação e conformação de órgãos e
procedimentos indispensáveis à sua efetivação.
Parece lógico, portanto, que a efetividade desse direito fundamental à
proteção da criança e do adolescente não prescinde da ação estatal positiva
no sentido da criação de certas condições fáticas, sempre dependentes dos
recursos financeiros de que dispõe o Estado, e de sistemas de órgãos e
procedimentos voltados a essa finalidade.
De outro modo, estar-se-ia a blindar, por meio de um espaço amplo de
discricionariedade estatal, situação fática indiscutivelmente repugnada pela
sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção insuficiente por
parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais
específico.
[...]
Nesse sentido, o argumento central apontado pelo Estado do Tocantins
reside na violação ao princípio da separação de poderes (art. 2o, CF/88),
44
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criança e do adolescente, cuja realidade e cujas normas,
naturalmente, não são as mesmas aplicáveis ao indivíduo preso.
Sem embargo das diferenças essenciais, há importante similitude
entre esses dois subsistemas, no que tange à existência de certos
direitos fundamentais a ambos aplicáveis e que são igualmente
beneficiários dos influxos do princípio da máxima efetividade das
formulado em sentido forte, que veda intromissão do Poder Judiciário no
âmbito de discricionariedade do Poder Executivo estadual.
Contudo, nos dias atuais, tal princípio, para ser compreendido de modo
constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz da
realidade constitucional brasileira, num círculo em que a teoria da
constituição e a experiência constitucional mutuamente se completam.
[...]
Ademais, a decisão impugnada está em consonância com a jurisprudência
dessa Corte, a qual firmou entendimento, em casos como o presente, de
que se impõe ao Estado a obrigação constitucional de criar condições
objetivas que possibilitem, de maneira concreta, a efetiva proteção de
direitos constitucionalmente assegurados, com alta prioridade, tais como: o
direito à educação infantil e os direitos da criança e do adolescente. Nesse
sentido, destacam-se os seguintes julgados: RE-AgR 410.715/SP, 2a T. Rel.
CELSO DE MELLO, DJ 03.02.2006; RE 431.773/SP, rel. MARCO AURÉLIO, DJ
22.10.2004.
Do julgamento do RE-AgR 410.715/SP, 2a T. Rel. CELSO DE MELLO, DJ
03.02.2006, destaca-se o seguinte trecho:
[...]
A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda
criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações
meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a
razões de puro pragmatismo governamental. Os Municípios – que atuarão,
prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art.
211, § 2o) – não poderão demitir-se do mandato constitucional,
juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei
Fundamental da República, e que representa fator de limitação da
discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas
opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208,
IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em
juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse
direito básico de índole social. – Embora resida, primariamente, nos
Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar
políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário,
45
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normas constitucionais.
II.6 A EXPERIÊNCIA ESTADUNIDENSE
A imposição de políticas públicas pelo Poder Judiciário
mostrou-se essencial para transformação e reestruturação de
penitenciárias e até de sistemas prisionais estaduais nos Estados
determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses
de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas
implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por
importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre
eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a
eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de
estatura constitucional.
[...]’
No presente caso, vislumbra-se possível proteção insuficiente dos direitos
da criança e do adolescente pelo Estado, que deve ser coibida, conforme já
destacado. O Poder Judiciário não está a criar políticas públicas, nem
usurpa a iniciativa do Poder Executivo.
A decisão impugnada apenas determina o cumprimento de política
pública constitucionalmente definida (art. 227, caput, e § 3o) e especificada
de maneira clara e concreta no ECA, inclusive quanto à forma de executála. Nesse sentido é a lição de CHRISTIAN COURTIS e VICTOR ABRAMOVICH
(ABRAMOVICH, VICTOR; COURTS, CHRISTIAN, Los derechos sociales como
derechos exigibles, Trotta, 2004, p. 251):
‘Por ello, el Poder Judicial no tiene la tarea de diseñar políticas públicas, sino la
de confrontar el diseño de políticas asumidas con los estándares jurídicos
aplicables y – en caso de hallar divergencias – reenviar la cuestión a los poderes
pertinentes para que ellos reaccionen ajustando su actividad en consecuencia.
Cuando las normas constitucionales o legales fijen pautas para el diseño de
políticas públicas y los poderes respectivos no hayan adoptado ninguna medida,
corresponderá al Poder Judicial reprochar esa omisión y reenviarles la cuestión
para que elaboren alguna medida. Esta dimensión de la actuación judicial puede
ser conceptualizada como la participación en un <> entre los distintos poderes
del Estado para la concreción del programa jurídico-político establecido por la
constitución o por los pactos de derechos humanos.’ (sem grifo no original)
[...].
Portanto, a determinação constitucional de absoluta prioridade na
proteção dos direitos da criança e do adolescente (art. 227, CF/88)
evidencia tanto a dimensão objetiva de proteção destes direitos
fundamentais, quanto a proibição de sua proteção insuficiente pelo Estado
46
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Recurso extraordinário 592.581/RS
Unidos da América. Na obra Judicial Policy Making and the Modern
State – How the Courts Reformed America's Prisons, MALCOLM M.
FEELEY e EDWARD L. RUBIN analisam o protagonismo das cortes
estadunidenses na transformação dos sistemas prisionais estaduais.
Na década de 1960, iniciou-se uma onda de reformas de
estabelecimentos prisionais de diferentes estados norte-americanos.
de Tocantins, por impossibilitar condições fáticas e concretas de
implantação de programa de internação e semiliberdade na Comarca de
Araguaína/TO.
Não há violação ao princípio da separação dos Poderes quando o Poder
Judiciário determina ao Poder Executivo estadual o cumprimento do
dever constitucional específico de proteção adequada dos adolescentes
infratores, em unidade especializada, pois a determinação é da própria
Constituição, em razão da condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento (art. 227, § 1o,V, CF/88).
A proibição da proteção insuficiente exige do Estado a proibição de
inércia e omissão na proteção aos adolescentes infratores, com primazia,
com preferencial formulação e execução de políticas públicas de valores
que a própria Constituição define como de absoluta prioridade.
Essa política prioritária e constitucionalmente definida deve ser levada em
conta pelas previsões orçamentárias, como forma de aproximar a atuação
administrativa e legislativa (Annäherungstheorie) às determinações
constitucionais que concretizam o direito fundamental de proteção da
criança e do adolescente.
Assim, não vislumbro grave lesão à ordem e economia públicas, com
exceção da fixação de multa por não construção, em doze meses, de
unidade especializada para abrigar adolescentes infratores na Comarca de
Araguaína/TO.
Diante o exposto, defiro parcialmente o pedido de suspensão, tão-somente
quanto à fixação de multa diária por descumprimento da ordem judicial
de construção de unidade especializada, em doze meses, na comarca de
Araguaína/TO.
Dessa forma, diante da determinação da Constituição e do Estatuto da
Criança e do Adolescente, mantenho os efeitos da decisão impugnada
quanto à (1) implantação, em doze meses, de programa de internação e
semiliberdade de adolescentes infratores, na comarca de Araguaína/TO e
(2) de proibição, sob pena de multa diária, de abrigar adolescentes
infratores em outra unidade que não seja uma unidade especializada (nos
termos do ECA). [...]” (STF. Presidência. Suspensão de liminar 235/TO.
Rel.: Min. GILMAR MENDES. 8/7/2008, decisão monocrática. DJe 143, 4
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O que começou com reconhecimento de direitos aos presos
transformou-se em efetiva reformulação de todo o sistema
prisional de diversos estados. O primeiro caso emblemático foi o
do sistema prisional do Arkansas (nos casos TALLEY versus STEPHENS,
JACKSON vs. BISHOP, COURTNEY vs. BISHOP, HOLT vs. SARVER, HOLT vs.
HUTTO e FINNEY vs. HUTTO), que influenciou a atuação judicial em
outros estados, como Mississípi, Oklahoma, Flórida, Louisiana e
Alabama.56
As decisões do Judiciário dos EUA abrangeram ampla gama
de atividades, tais como visitas constantes às prisões, negociações
com os órgãos estatais responsáveis, estipulação de gastos, fixação
de multas, recomendações de diferentes modalidades, entre elas
sobre limitação do número de detentos, determinação de soltura
de presos, reformas de celas, treinamento de agentes, demissão de
funcionários violentos, fechamento de estabelecimentos e até
construção de novas unidades penitenciárias.
Após analisarem a evolução do comportamento dos tribunais
estadunidenses, os autores concluem que a vassalagem exacerbada
a princípios como o do federalismo e da divisão funcional do
poder é inadequada e insuficiente para tratar de temas que
envolvam proteção da liberdade:57
ago. 2008; RTJ, vol. 210(3), p. 1.236).
56 FEELEY, MALCOLM M.; RUBIN, EDWARD L. Judicial Policy Making and the
Modern State: How the Courts Reformed America's Prisons. Nova York: Cambridge University Press, 2000. Cambridge Criminology Series. p. 39-40.
57 Em português:
“Deve reconhecer-se que a separação dos poderes possui um precursor
pré-moderno que é tão newtoniano em conceito quanto a separação dos
poderes – a teoria inglesa do século XVII de uma constituição equilibrada.
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To be sure, separation of powers possesses a premodern precursor
that is every bit as Newtonian in concept as the separation of powers – the seventeenth-century English theory of a balanced constitution. But governmental mechanisms do not become obsolete merely
on the basis of their ancient lineage. The point, rather, is that they
do not become relevant and usable in a modern administrative state
by virtue of that lineage. Each mechanism must be judged by its
contemporary performance; if one is beginning with the governmental furniture delivered by tradition, each inherited item must be
judged by its ability to fit the place we currently inhabit. Separation
of powers translates into the empirical necessity of governmental
specialization, but provides no useful method for protecting liberty;
checks and balances, however, translates into supervision and redunMas, mecanismos de governo não se tornam obsoletos meramente por
causa de sua antiga linhagem. O ponto, antes, é que eles não se tornam relevantes e utilizáveis em um estado administrativo moderno em virtude
dessa linhagem. Cada mecanismo deve ser julgado por seu desempenho
contemporâneo; se se começa com o aparato governamental fornecido
pela tradição, cada item herdado deve ser julgado por sua habilidade para
encaixar-se no lugar em que atualmente vivemos. A separação dos poderes
traduz-se na necessidade empírica de especialização governamental, mas
não fornece método útil para proteger a liberdade; os freios e contrapesos,
contudo, traduzem-se em supervisão e redundância, o mecanismo dominante pelo qual as burocracias modernas são refreadas e pelo qual a liberdade das pessoas sujeitas a essas burocracias é preservada. Para atingir essa
tradução, porém, o discurso newtoniano deve ser desprezado, e o conceito
deve ser reconfigurado nos termos dinâmicos e interativos da moderna governança.
Nos casos de reforma de prisões, os tribunais não agiram como déspotas,
mas como amigos da liberdade e como agentes de nossa comunidade nacional. Eles ignoraram o federalismo e a separação dos poderes – e os freios e
contrapesos existentes – ao impor o poder federal nos estados e o poder
judicial sobre os órgãos administrativos. Eles desse modo restringiram e
controlaram órgãos estaduais que poderiam de outra forma ter continuado
a perpetrar tiranias obscuras mas opressoras sobre um grupo de pessoas que
estavam sujeitas a controle sem supervisão. Os tribunais federais eram ao
revés controlados pela existência contínua desses estados e órgãos; eles “assumiram” as prisões, em um sentido muito real, mas o fizeram apenas
como supervisores, não como autoridades absolutas e descontroladas. Eles
controlaram, e foram controlados em contrapartida, e desse modo impuseram a dinâmica essencial do governo democrático moderno.” FEELEY &
RUBIN. Judicial Policy Making and the Modern State: How the Courts Reformed America's Prisons. Ob. cit., p. 345-346.
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dancy, the dominant mechanism by which modern bureaucracies are
restrained, and by which the liberty of the people who are subject to
these bureaucracies is preserved. To achieve this translation, however,
the Newtonian discourse must be jettisoned, and the concept must
be reconfigured in the dynamic, interactive terms of modern governance.
In the prison reform cases, the courts did not act as despots but as
friends of liberty and as agents of our national community. They ignored federalism and the separation of powers – and provided
checks and balances – by imposing federal power on the states and
judicial power on administrative agencies. They thus restrained and
controlled state agencies that might otherwise have continued to perpetrate obscure but grinding tyrannies on a group of people who
were subject to unsupervised control. The federal courts were controlled in turn by the continued existence of those states and agencies; they “took over” the prisons, in a very real sense, but they did
so only as supervisors, not as absolute and unconstrained authorities.
They checked, and they were checked in turn, and thus enacted the
essential dynamic of modern democratic government.
Não há dúvida de que o tema é complexo e admite múltiplas
abordagens, que não cabe aqui exaurir. Obviamente, não se
defende assunção irrestrita de funções do Executivo e do
Legislativo por parte do Judiciário, o que levaria a decisões
ilegítimas, por indevida superação da vontade popular expressa no
sufrágio, e a desequilíbrio institucional. Em casos limítrofes,
contudo, em virtude de mandados constitucionais expressos58 e
observada madura e cautelosa autocontenção por parte dos órgãos
58 Na citada obra, LUIZA FRISCHEISEN pondera, com acerto: “[...] as normas
constitucionais criam vinculação para a administração e para o legislador,
pois a Constituição Federal estabelece claramente políticas públicas, que
foram explicitadas em leis integradoras, a serem cumpridas para
implementação dos direitos estabelecidos no título da ordem social e em
outros dispositivos já mencionados [...]” (FRISCHEISEN, Luiza Cristina
Fonseca. Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e o Ministério
Público. Ob. cit., p. 93).
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jurisdicionais competentes, pode – e deve – o Judiciário, de forma
legítima, impor adoção de políticas e medidas administrativas a
órgãos executivos. Isso sobremodo se justifica quando se constata
crônico desprezo por parte de autoridades estaduais a direitos
fundamentais de extração constitucional e a mandamentos legais
que impõem padrões mínimos de salubridade em instalações
prisionais.
III. CONCLUSÃO
As condições do Albergue Estadual de Uruguaiana não
diferem de grande parte do contexto nacional. Informam os autos
que o estabelecimento não atende a requisitos básicos de
habitabilidade e salubridade, o que levou à situação extrema de
morte de um detentos por eletrocussão. O princípio da dignidade
do ser humano e o direito dos presos ao respeito à integridade
física e moral não são minimamente garantidos pelo Estado do
Rio Grande do Sul.
Justifica-se, portanto, intervenção do Poder Judiciário. É
evidente que o núcleo essencial do direito fundamental dos presos
ao respeito à integridade física e moral é objeto de crônica e
continuada violação.
Constatado desrespeito ao mínimo essencial de direitos
fundamentais diretamente ligados à preservação da vida, da
integridade física e da dignidade, não há espaço para acatar a tese a
defesa de cunho orçamentário manifestada pelo ente federativo.
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Cabe aos entes e órgãos estatais garantir eficácia mínima dos
direitos fundamentais, em respeito à força normativa da
Constituição e ao princípio da dignidade do ser humano.
Nesse contexto, não há discricionariedade dos Poderes
Executivo e Legislativo, de forma que, na ausência de observância
das garantias fundamentais pelo Estado, deve o Poder Judiciário e,
sobretudo, o Supremo Tribunal Federal, garantir respeito à
Constituição do Brasil, no interesse da própria sociedade em que
esse componente essencial do sistema de segurança funcione a
contento.
Ante todo o exposto, o recurso extraordinário deve ser
totalmente provido.
Brasília (DF), 4 de fevereiro de 2015.
Rodrigo Janot Monteiro de Barros
Procurador-Geral da República
RJMB/WS/OBF/CCC-Par.PGR/1.872/2014
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RE 592.581 - Procuradoria