UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
CURSO DE PEDAGOGIA – LICENCIATURA
BENISIA GROSSER FERREIRA
A CONSTRUÇÃO DOS LIMITES DAS CRIANÇAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Porto Alegre
2° semestre
2009
2
BENISIA GROSSER FERREIRA
A CONSTRUÇÃO DOS LIMITES DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Trabalho de Conclusão apresentado à
Comissão de Graduação do Curso de
Pedagogia – Licenciatura, da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, como requisito parcial e
obrigatório
para
obtenção
do
título
Licenciatura em Pedagogia.
Orientadora: Profª Drª Luciane M. Corte Real
Porto Alegre
2° semestre
2009
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Reitor: Prof. Dr. Carlos Alexandre Netto
Vice-Reitor: Prof. Dr. Rui Vicente Oppermann
FACULDADE DE PEDAGOGIA
Diretor: Johannes Doll
Vice-diretora: Denise Maria Comerlato
COMISSÃO DE GRADUAÇÃO
Coordenadora: Maria Bernadete Castro Rodrigues
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4
Benisia Grosser Ferreira
A CONSTRUÇÃO DOS LIMITES DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Trabalho de Conclusão apresentado à
Comissão de Graduação do Curso de
Pedagogia – Licenciatura, da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, como requisito parcial e
obrigatório
para
obtenção
do
título
Licenciatura em Pedagogia.
Orientadora: Profª Drª Luciane M. Corte Real
5
Ao concluir este trabalho, gostaria de agradecer...
... à Deus, por sempre iluminar meu caminho e me dar as forças necessárias para
enfrentar os obstáculos da vida;
... à minha mãe, Angela, pelo amor, carinho, dedicação e educação que sempre me
deu, por tudo que me ensinou, por toda a força, todo o apoio e incentivo que sempre
me deu, e por me ouvir e me confortar nos momentos de angústias e incertezas;
... aos meus filhos, Manuela e Bruno, que tiveram uma mãe um pouco atrapalhada e
estressada nos últimos tempos, mas que sempre sorriram, me fazendo a mãe mais
feliz do mundo;
... ao meu marido, Preto, por toda a ajuda que me deu, com a casa, com as
crianças, e por agüentar e compreender meus momentos de stress e aflição;
... aos meus irmãos, Catarino, Alinsue, Luciano e Adriano, por todo o apoio e ajuda
que me deram ao longo de todo o curso;
... ao meu sogro Eli que, em momentos difíceis, me incentivou a não desistir dos
meus sonhos;
... à minha querida amiga Dani, pela parceria ao longo do curso e por todo o apoio e
carinho que sempre me deu;
... às colegas Jaque e Clarice, por dividirem comigo as angústias durante o estágio e
a elaboração deste TCC;
... à professora Leda de Albuquerque Maffioletti, minha orientadora de estágio, que
me apoiou e me incentivou nas horas mais difíceis;
... à professora Luciane Corte Real, minha orientadora de TCC, que acreditou nas
minhas idéias, que refletiu junto comigo sobre este trabalho e que, com toda a sua
calma, sempre me deixou tranqüila e confiante;
... à todos que, de alguma forma, contribuíram para a concretização deste sonho...
... Muito Obrigada!
6
Dedico este trabalho às pessoas mais
importantes da minha vida, as quais amo
acima de tudo: minha mãe e meus filhos.
À minha mãe, Angela, mulher guerreira,
lutadora, pessoa maravilhosa na qual me
espelho, e com quem aprendi a batalhar e
lutar pelos meus sonhos e objetivos.
Aos meus filhos, Manuela e Bruno, que
me dão toda a inspiração necessária para
continuar lutando pela conquista de meus
objetivos, os quais são sempre pensando
no futuro deles.
7
Nossa sociedade precisa de cidadãos
autônomos capazes de pensar, e não
apenas de obedecer a regras préestabelecidas. (PIAGET, 1996, p. 32)
8
RESUMO
O presente trabalho reflete o significado do termo ‘limite’ e como ocorre o processo
de construção do mesmo pelas crianças. Investiga como os professores da
educação infantil auxiliam — ou não — seus alunos nesse processo. Para alcançar
tais objetivos, reporta aos estudos de Jean Piaget, principalmente quanto ao
processo de desenvolvimento moral da criança. A metodologia utilizada foram
observações realizadas com crianças de educação infantil, em duas escolas de
Porto Alegre/RS. Os dados coletados foram registrados em diários de campo e
sujeitos à análise e reflexão. A partir da pesquisa de campo, foram levantadas
categorias de intervenções das educadoras no espaço escolar. Analisando tais
categorias e refletindo sobre as intervenções das professoras, conclui-se que a
professora ‘1’ não auxilia seus alunos na construção dos limites, pois estabelece
uma relação de coação com os mesmos, prevalecendo o respeito unilateral. Já a
professora ‘2’ tenta promover uma relação de cooperação com seus alunos, na qual
prevalece o respeito mútuo, favorecendo, assim, o desenvolvimento da autonomia
das crianças.
Palavras-chave: Educação infantil. Construção dos limites. Desenvolvimento moral.
9
SUMÁRIO
1
QUE TRABALHO É ESTE? ...........................................................
10
2
O QUE É ESSE TAL DE ‘LIMITE’? ...............................................
12
3
O QUE A FAMÍLIA E A ESCOLA TÊM A VER COM ISSO? ........
15
4
MAS, AFINAL, COMO OCORRE ESSE PROCESSO? ................
19
5
CONHECENDO A PESQUISA ......................................................
30
5.1
Aspectos Metodológicos .............................................................
30
5.2
Contextualizando os locais de observação ...............................
31
5.2.1
Escola ‘1’: instituição de educação infantil particular .....................
32
5.2.2
Escola ‘2’: escola municipal de educação infantil ...........................
32
6
ANALISANDO OS DADOS COLETADOS ....................................
34
7
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES .....................................................
44
APÊNDICE A — CARTA DE APRESENTAÇÃO DA
UNIVERSIDADE ............................................................................
50
APÊNDICE B — AUTORIZAÇÃO DAS EDUCADORAS ..............
51
APÊNDICE C — AUTORIZAÇÃO DOS PAIS ...............................
52
10
1 QUE TRABALHO É ESTE?
O presente trabalho consistiu em uma pesquisa qualitativa e teve como
objetivo refletir sobre o significado da noção de limites no comportamento e na
educação infantil, bem como refletir sobre como se constroem esses limites.
Também se pretendeu perceber como os educadores da educação infantil auxiliam
— ou não — as crianças nessa construção.
Para alcançar tais objetivos, este trabalho se baseou em pesquisa
bibliográfica e pesquisa de campo. A pesquisa bibliográfica teve como referencial
teórico os estudos de Jean Piaget e Yves De La Taille sobre o desenvolvimento
moral na criança. A pesquisa de campo utilizou como técnica de coleta de dados as
observações, realizadas em duas escolas de educação infantil, sendo uma
particular, que atende a crianças de classe média e uma pertencente à rede
municipal de ensino, que atende crianças de famílias de baixa renda. As
observações foram realizadas em turmas de jardim, que atendem à faixa etária de
quatro a seis anos. Como técnica de registro de dados, utilizei o Diário de Campo.
Os dados coletados foram sujeitos à análise e reflexão.
Considero este tema bastante relevante para pais e educadores na medida
em que, atualmente, vivenciam-se grandes mudanças na nossa sociedade e,
conseqüentemente, nas maneiras de se educar nossas crianças. A partir de minhas
experiências como educadora e, também como mãe, percebo como existem
diferentes pontos de vista sobre o que é ter limites e como se chega a eles. Entendo
‘limites’ como sendo um processo de construção da criança, que se desenvolve a
partir das relações que esta vivencia.
Com base nos estudos de Piaget, vejo este processo como sendo o
desenvolvimento moral na criança, o qual passa por diferentes fases e deve buscar
alcançar o objetivo de formação da autonomia moral na criança.
Primeiramente, após pesquisa bibliográfica, apresento as reflexões acerca do
significado do termo ‘limites’, bem como uma breve reflexão sobre o papel da família
e da escola na construção dos limites pela criança. Em seguida, procuro descrever
sobre como ocorre o processo de desenvolvimento moral na criança, com base nos
estudos de Jean Piaget e Yves De La Taille.
11
Mais adiante, apresento os dados coletados e faço as análises, procurando
perceber e refletir como os profissionais auxiliam, ou não, seus alunos no processo
de construção dos limites. E, finalmente, trago algumas considerações e as
referências utilizadas ao longo da pesquisa.
12
2 O QUE É ESSE TAL DE ‘LIMITE’?
Atualmente, a questão dos limites é um assunto que provoca grandes
reflexões, em especial entre pais e educadores. Mas, afinal, o que são limites? O
verdadeiro significado da palavra limites vem motivando e intrigando muitos
pensadores e críticos em educação sobre o seu verdadeiro conceito e suas
transformações no decorrer dos tempos.
Segundo o dicionário Aurélio, limite significa:
a) linha de demarcação;
b) divisa, fronteira;
c) extremo, fim;
d) ponto que não se deve ultrapassar.
De algumas gerações para cá, verifica-se uma mudança radical e significativa
na posição dos pais quanto à colocação dos limites e das regras disciplinares em
seus filhos.
Antigamente, a maneira de educar os filhos seguia uma direção vertical, onde
os pais exerciam sua autoridade — de cima para baixo — sem maiores
questionamentos. Algum tempo depois, aquela geração — massacrada pelo
autoritarismo — quando assumiu o lugar dos pais, agiu no extremo oposto, sendo
que ocorreu em alguns casos a ausência de regras e limites. Chegou-se, inclusive,
em alguns casos, a afirmar que não se podia dizer ‘não’ à criança, pois isso poderia
ocasionar traumas à mesma. As conseqüências disso puderam ser sentidas em
comportamentos anti-sociais vistos atualmente. Percebeu-se, então, que os limites
são necessários para a existência humana, embora, segundo Freud (1986), a
repressão seja a causa da neurose. Em função da constatação de que a neurose é
resultado da repressão, Freud (1986) sugeriu que, se a repressão fosse suprimida,
não haveria neurose. Ele não tardou a dar-se conta de que essa ausência poderia,
até, ser interessante para o estudioso do desenvolvimento infantil, mas que,
conforme ele mesmo, a civilização é construída com base na repressão: sem ela a
vida social seria impensável. A frustração causada pelo ‘não’ é necessária ao
13
adequado desenvolvimento psicológico. Frustração não é sinônimo de trauma. Ao
contrário, ela é imprescindível, desde que dentro dos limites de tolerância já
construídos pela criança. O que é traumático é a frustração que está além da
capacidade de tolerância já construída pela criança. Já o que causa dano é o
exagero no ‘sim’ ou no ‘não’.
Segundo Felipe (2004, p. 29):
As famílias, com sua importante função na educação dos filhos, não se
sentem em condições de trabalhar limites com os filhos, ou por não saber
como orientá-los, ou por não querer educá-los como fora antigamente por
seus pais. Muitos acabam permitindo tudo, sem regras ou combinações,
deixando as crianças a sua própria vontade [ . . . ] afinal, qual é a
importância para as crianças de construírem limites?
Segundo Outeiral (1994), limite significa a criação de um espaço protegido, no
qual a criança poderá exercer sua criatividade e espontaneidade sem receios e
riscos. Por isso, segundo o autor, os filhos esperam dos pais limites claros e bem
definidos. Ao passo em que, La Taille (1999) observa que, com freqüência, limite é
um termo associado à obediência, ao respeito, à retidão moral e à cidadania. Para
ele, a palavra sugere, de um lado, fronteira, delimitação entre territórios; e, de outro,
a possibilidade de transpor e ir além.
Com base nos estudos de Piaget (1994), entendo que a questão dos limites
está relacionada ao desenvolvimento da moralidade na criança, sendo que este
depende das relações sociais vivenciadas pela criança.
De acordo com Piaget (1994, p .298):
As relações de respeito unilateral e de coação, que se estabelecem
espontaneamente entre o adulto e a criança, contribuem para a
constituição de um primeiro tipo de controle lógico e moral [ . . . ] Do
ponto de vista intelectual, o respeito que a criança tem pelo adulto
tem por efeito provocar o aparecimento de uma concepção
anunciadora da noção de verdade: o pensamento deixa de afirmar
simplesmente o que lhe agrada para se conformar com a opinião do
ambiente.
Com base nas afirmações dos autores supracitados, podemos perceber que
quando pensamos na questão dos limites, inicialmente se fala no termo mais
associado a regras e normas, permissões ou proibições, apresentadas às crianças
de maneira externa, como imposições.
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Penso que a questão dos limites deve ser entendida como um processo de
construção na criança, processo este que, na visão de Piaget (1996), nada mais é
senão o desenvolvimento moral da criança. Para o autor, o desenvolvimento moral
depende das relações sociais que a criança estabelece.
Nossa sociedade tem-se caracterizado, nos últimos anos, por estar em
constantes mudanças. Vejo a necessidade da capacidade de pensar, de refletir
sobre o mundo, pois corremos o risco de que os indivíduos não consigam
acompanhar esse ritmo. Por isso, penso que a educação moral deve pretender
formar futuros cidadãos capazes de enfrentar desafios e mudanças na sociedade de
forma ética e consciente. Para Piaget (1996, p. 32), a “nossa sociedade precisa de
cidadãos autônomos capazes de pensar, não apenas de obedecer a regras préestabelecidas”.
Nas próximas páginas, faço uma breve reflexão sobre o papel da família e o
papel da escola no processo de construção dos limites e, em seguida, procuro
explicar sobre como ocorre esse processo.
15
3 O QUE A FAMÍLIA E A ESCOLA TÊM A VER COM ISSO?
O estabelecimento de limites é, nos dias de hoje, uma das mais inquietantes
questões discutidas por profissionais da área da educação e do desenvolvimento
infantil. Assunto este, que também aflige muitos pais e mães.
Embora a definição de limites vinculada a um marcador moral envolva a
obediência a regras e normas, em um primeiro momento, o significado da
moralidade é muito mais amplo.
De acordo com Cortella e La Taille (2005), uma atitude moral implica o
respeito ao outro, respeito às necessidades e particularidades do outro, respeito
aos demais pontos de vista; implica, também, na capacidade de pensar no bem
comum. A construção de limites está, portanto, diretamente implicada na
capacidade da criança de socialização e convivência bem-sucedidas, de forma que
ela possa reconhecer e considerar os próprios limites e os dos demais.
Acredito que, como espaços de convívio social, a família e a escola
desempenham papéis fundamentais no processo de construção dos limites
infantis. Papéis estes compartilhados, porém distintos.
De acordo com Donatelli (2006), autor de ‘A Vida em Família: as novas
formas de tirania’, as mudanças sociais e econômicas das últimas décadas
levaram a uma mudança na estrutura familiar em que pais e mães estão ausentes
e as crianças perderam referências, pois não há mais nem a figura materna e nem
a paterna no cotidiano dos filhos.
Concordo com Donatelli (2006), quando diz que nas últimas décadas nossa
sociedade passou por inúmeras mudanças. As questões econômicas e sociais,
como o processo de industrialização, a conquista dos direitos da mulher e sua
participação crescente no mercado de trabalho, têm gerado mudanças
significativas nas configurações familiares, nas relações entre crianças e adultos e
nas práticas educacionais. Estratégias educativas consideradas adequadas em
épocas anteriores são questionadas na atualidade.
Uma das principais mudanças que influenciam na questão dos limites foi a
entrada da mulher no mercado de trabalho. Com isso, muitas crianças são, agora,
criadas por babás, avós, ou passam o dia inteiro em uma instituição educacional, e
isso faz com que os pais sintam-se culpados por estarem. Assim, para
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compensarem sua falta na vida diária da criança, fazem todas as suas vontades,
compram tudo o que podem para elas ou, mesmo por estarem cansados ao final
do dia, preferem deixar a criança fazer o que bem entende, assistir muita televisão
ou desenhos em DVDs, jogar no computador... Ao invés de estabelecer algumas
regras e combinações que poderiam agradar e serem mais saudáveis a todos.
Segundo Benchaya (2003), a falta de tempo dos pais ou responsáveis e a
rotina e correria do dia-a-dia acabam deixando os filhos mais livres, tornando-os
mais solitários e à mercê da falta de limites. Isso pode gerar crianças sem limites,
agressivas e egoístas que, quando adultas, têm dificuldades e mudam seus
comportamentos ao viverem em sociedade, pois esta acaba discriminando e
impondo seus deveres e o respeito com o próximo.
Outros autores que fala sobre as relações familiares, e que considero
importante citar neste trabalho, são os psicólogos Weber e Brandenburg (2005).
Em sua pesquisa, ela tenta mostrar algumas relações entre os estilos parentais e a
depressão de crianças e adolescentes. Para isso, na pesquisa, apresenta quatro
tipos de relações familiares: as negligentes, as autoritárias, as indulgentes e as
participativas.
As famílias negligentes são aquelas que não dão afeto nem impõem limites
aos seus filhos. Neste tipo de família, ocorre depressão em 28% das crianças.
Ocorrem, também, dificuldades de socialização e problemas na escola.
As famílias autoritárias são aquelas que estabelecem muitas regras, mas
não oferecem afeto. A depressão ocorre em 21% dos filhos. Estas crianças
geralmente apresentam bom desempenho escolar, porém, demonstram um
excesso de timidez.
As famílias indulgentes, por outro lado, são carinhosas, mas não sabem
estabelecer limites. Neste tipo de família, ocorre o menor índice de depressão:
3,5%. Estas crianças apresentam habilidades para a socialização, porém, maior
risco de envolvimento com drogas na adolescência.
Por fim, as famílias participativas são as que conseguem um equilíbrio entre
afetos e limites. São afetuosos e determinam limites claros. Nestas famílias, o
índice de depressão é de 6%. Essas crianças e jovens tendem a apresentar
segurança, bom desempenho escolar e afetividade.
Vejo a família como a sede da socialização. Por ser a primeira instituição
social com a qual a criança tem contato, ela acaba sendo o espaço no qual os
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valores e as normas sociais devem ser repassados às gerações mais novas. É na
relação da criança com os adultos mais significativos em sua vida que,
primeiramente, se estabelece a noção de limites, o respeito à autoridade e a
capacidade de se colocar no lugar do outro.
A escola, por sua vez, além de ser uma instituição responsável pelo
desenvolvimento do conhecimento formal, também desempenha um papel
importante no estabelecimento dos limites infantis. Penso que a aprendizagem
escolar deve passar pela constituição social e pela preparação para o exercício da
cidadania. Estas realizações envolvem não apenas o estabelecimento de limites,
mas também a reflexão acerca desses limites.
Partindo do pressuposto de que as interações sociais vividas pelo sujeito
podem favorecer tanto o desenvolvimento de valores éticos quanto a sua
degradação social e moral, penso que a escola tem um papel fundamental no
processo de desenvolvimento moral nas crianças, pois é uma instituição, por si só,
socializadora. Outrossim, a escola deve ter cuidado com a escolha e utilização de
métodos, pois estes podem contribuir positiva ou negativamente nos tipos de
relações e, conseqüentemente, na formação moral dos sujeitos envolvidos.
Acredito que a questão dos limites deve, permanentemente, ser discutida
entre família e escola. A participação da família é muito importante para o melhor
entendimento das crianças no espaço escolar. É necessário, também, que haja um
consenso entre família e escola, adotando-se posturas semelhantes em relação a
determinadas situações, como, por exemplo, quando ocorrem transgressões de
regras.
Vejo a necessidade de que o tema ‘Limites/Desenvolvimento Moral’ esteja
presente nos cursos de formação de professores, bem como, de que as escolas
promovam uma formação continuada de seus funcionários abordando este
assunto. A escola poderia promover palestras e seminários relacionados a este
tema, para professores e também para os pais e demais comunidade escolar.
Acredito ser necessário também haver uma boa relação entre famílias e escola,
relação esta em que deve existir respeito e valorização. A família precisa valorizar
mais o trabalho da escola, principalmente na educação infantil, área em que os
profissionais, com freqüência, ainda não são vistos como tal. A escola, por sua vez,
precisa valorizar e respeitar mais os valores e culturas de cada criança/família.
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Segundo Zabalza (2000, p. 22), “os valores que possuímos nem sempre são
coincidentes com os de outras pessoas e, em muitos casos, podem dar lugar a
divisões e controvérsias na comunidade educativa”.
Em face da configuração social em que as crianças ingressam cada vez
mais cedo na escola, é difícil pensar que família e escola não exerçam, ambas,
papeis preponderantes na construção dos limites. Cortella e La Taille (2005)
observam que a escola completa a socialização que começa no ambiente familiar,
onde a criança tem o primeiro contato com o mundo das regras e dos valores. Para
os autores, a escola — por se constituir em importante espaço para trocas sociais
— deve preparar os alunos para o convívio, para a adaptação ao espaço público e
para o exercício da cidadania.
No próximo capítulo, procuro explicar como ocorre o processo de
construção dos limites.
19
4 MAS, AFINAL, COMO OCORRE ESSE PROCESSO?
A moralidade tem sido estudada por psicólogos do ponto de vista afetivo
(psicanálise), do ponto de vista comportamental (behaviorismo, teoria de
aprendizagem social) e do ponto de vista cognitivista (Piaget e Kohlberg). Uma
apresentação
dessas
teorias
está
publicada
no
livro
‘Psicologia
do
Desenvolvimento’, de Biaggio (1975).
Conheço os diferentes trabalhos realizados a cerca do desenvolvimento
moral, reconhecendo sua importância; porém, neste trabalho, minha orientadora e
eu, escolhemos trabalhar o tema fundamentando a teoria a partir dos estudos de
Jean Piaget, acerca do desenvolvimento moral na criança.
Sobre a importância da repressão e da necessidade de limites há quase um
consenso, entretanto, há divergências em relação ao que eles signifiquem e como
se estabelecem. É muito freqüente nos depararmos com a expressão ‘impor limites’.
O termo ‘impor’ é carregado do sentido de algo que é determinado externamente.
Segundo o dicionário Aurélio: “[ . . . ] tornar obrigatório ou indispensável, forçar a
observar. Estabelecer, determinar, fixar”.
Para pensar melhor esse assunto, trago um exemplo: uma criança de
aproximadamente um ano de idade. Uma de suas principais conquistas, nesta faixa
etária, é a locomoção. Com essa recém adquirida capacidade, acontecem
modificações em sua conduta. Ela adquire as condições necessárias para mexer em
tudo, experimentar, tocar... Alguns objetos poderão machucá-la; outros não a
machucarão, porém, não se quer que sejam destruídos. Logo, o que fazer para que
não mexa nesses objetos?
Alguns diriam que a alternativa seria afastar tais objetos, colocando-os em
locais inacessíveis à criança. Outros diriam que se deveria dizer não à criança cada
vez que ela pegar tal objeto. Outros, ainda, poderiam dizer que a alternativa
adequada seria dar tapas nas mãos da criança, quando esta pegasse tais objetos.
Embora tais alternativas sejam tão diferentes entre si, o que há em comum entre
elas? Diria que é o fato de, em todas elas, haver a necessidade de se ter um
elemento externo ao lado da criança, controlando permanentemente suas atitudes,
seja para dizer não, para tirar os objetos de perto ou para dar-lhe tapas. Neste caso
— censura — o limite é externo. A criança não se limita sozinha, o que a impede de
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fazer certas coisas são limites externos a ela, que ela não entende e não conhece.
Ela está limitada por forças externas, não por determinações internas. Aí se pode
falar, realmente, de impor limites.
Mas, seria possível que, por toda a vida, tenhamos alguém ao nosso lado
indicando o que é certo ou errado, o que podemos ou não fazer, dizendo sim ou não,
punindo-nos ou não de acordo com nossas atitudes? Teríamos de ter um fiscal 24h
por dia conosco. Todos teriam de ter um fiscal. Ora, isto é inviável.
O que ocorre, então, para que possamos viver em sociedade, para que
possamos viver de acordo com regras, mesmo que não haja uma vigilância
constante?
Pensando nisso e, considerando os avanços da sociedade, acredito que, mais
e mais, se faz necessário que as regras, as censuras e os limites sejam cada vez
mais resultantes de processos construtivos e não meras imposições. Vejo uma
grande contradição naquelas pessoas que dizem que não querem voltar aos
padrões de repressão que imperavam antigamente, mas que sentem, por outro lado,
uma necessidade de se impor limites.
La Taille (2006), percebe o limite como algo a ser construído pelo sujeito
através do processo de formação da moralidade. É a partir de suas aprendizagens,
que o sujeito vai formando sua capacidade de respeitar e superar limites. Segundo o
autor, “as pessoas que não transpõem limites a serem superados é que atravessam
os limites a serem respeitados” (LA TAILLE, 2006, p. 51).
Para La Taille (1999), os limites podem ser pensados a partir de três
dimensões educacionais: como barreiras a serem transpostas, como fronteiras a
serem respeitadas e como fronteiras a serem construídas.
A primeira dimensão, na qual os limites são vistos como barreiras a serem
transpostas, consiste em trabalhar os limites como linhas a serem superadas, tanto
para a maturidade como para a excelência. Temos de dar-nos conta de que ainda
não conseguimos fazer tal coisa para que possamos, então, tomar coragem para
fazê-la.
A segunda dimensão diz respeito aos limites como fronteiras a serem
respeitadas, ou seja, aquelas coisas que precisam ser obedecidas, como os limites
da realidade. Por exemplo, o ser humano não pode voar, por mais que queira, por
isso não se pode saltar da janela de um prédio com muitos andares. Segundo La
Taiile (1999), os limites físicos são os que o ser humano aceita com maior facilidade.
21
No que se refere aos limites físicos, o que não se pode fazer dizemos que é
impossível. Quanto aos limites normativos, que são aqueles criados e impostos pela
sociedade, quando não se pode fazer algo, dizemos que é proibido.
A terceira dimensão está ligada aos limites como fronteiras que a criança ou o
adolescente constroem para se proteger, bem como proteger sua intimidade e sua
privacidade.
Para pensarmos um pouco mais na questão do processo de construção dos
limites, busquemos apoio em Piaget (1994), que chama este processo de
desenvolvimento moral da criança. Vejamos o quadro abaixo, o qual traz alguns
conceitos utilizados por Piaget, que serão então abordados:
ANOMIA
A: negação
NOMIA: regra, lei.
HETERONOMIA
A lei, a regra vem do
exterior, do outro.
AUTONOMIA
Capacidade de governar a si
mesmo.
Quadro 1: Conceitos utilizados por Piaget (ano): anomia, heteronomia, autonomia.
Na fase de anomia, natural na criança pequena (ainda no egocentrismo), não
existem regras e normas. O bebê, por exemplo, quando está com fome, chora e
quer ser alimentado na hora. As necessidades básicas determinam as normas de
conduta.
Na moralidade heretônoma, os deveres são vistos como externos e impostos
coercitivamente, e não como obrigações elaboradas pela consciência. O certo é a
observância da regra e o cumprimento das normas. A responsabilidade pelos atos é
avaliada de acordo com as conseqüências objetivas das ações e não pelas
intenções. O indivíduo obedece às normas por medo da punição. Na ausência da
autoridade ocorre desordem e indisciplina.
Na moralidade autônoma, o indivíduo adquire a consciência moral. Os
deveres são cumpridos com consciência de sua necessidade e significação. Possui
princípios éticos e morais. Na ausência da autoridade continua o mesmo. É
responsável, autodisciplinado e justo. A responsabilidade pelos atos é proporcional à
intenção e não apenas pelas conseqüências do ato.
A moralidade, na criança, vai desenvolvendo-se aos poucos, a partir da sua
interação com o meio. A consciência moral da criança não é herdada, não nasce
pronta, acabada. Os estudos realizados por Piaget (1977), demonstram a existência
de um processo de construção da moralidade, em “estágios” universais e
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organizados hierarquicamente. Na realidade, não são propriamente estádios de
desenvolvimento moral, mas atitudes dominantes que foram encontradas em
determinadas idades. O autor considera serem três os estágios de julgamento moral
nas crianças: a pré-moralidade, em que o indivíduo carece de todo sentido de
obrigação para com as regras sociais; a heteronomia ou o realismo moral, em que
há uma relação de submissão ao poder, ou seja, o certo é obedecer às ordens da
pessoa que detém a autoridade; e, por último, a autonomia moral, que é
caracterizada por um novo sentido dado às normas, já que o sentimento de
aceitação ou de obrigação para com estas normas está fundamentado nas relações
de trocas mútuas e de reciprocidade.
Sabemos que a moral da criança pequena é heterônoma, caracterizada pela
egocentricidade e pela dependência a uma vontade exterior, ou melhor, pela
obediência às pessoas com poder, como os seus pais e professores. A heteronomia
moral é resultante das relações de respeito unilateral, que é o respeito que a criança
pequena sente pelo adulto, fonte de obediência e de submissão, pois, para a
criança, o bem, o justo, define-se pela obediência. Segundo Piaget (1977), o
respeito unilateral é misto de amor e temor, sendo um instrumento de submissão a
regras pré-estabelecidas e a regras cuja origem permanece exterior ao sujeito que
as aceita. É importante ressaltar que esse temor que a criança sente, naturalmente
procedente do respeito unilateral, é resultante de uma relação desigual, havendo da
parte ‘mais fraca’ o medo de receber uma punição, censura, desaprovação, perda do
amor do adulto, etc.
A moral heterônoma, ou seja, a obrigatoriedade ou aceitação das normas
exteriores provém das relações de coação do adulto sobre a criança. Todavia, essa
coação não significa, necessariamente, um despotismo, mas sim uma relação
assimétrica entre os adultos e as crianças, já que a criança nunca verá os pais ou
professores como a um igual, havendo, portanto, uma desigualdade de fato (LA
TAILLE, 1996). A heteronomia é a moral da obediência às pessoas com poder, com
autoridade. E para as crianças quem detém essa autoridade? Os pais, professores,
parentes, irmão mais velho, etc. São aquelas pessoas que a criança admira, que
considera como mais fortes, mais inteligentes, que sabem tudo, que detém o poder.
Além do que, em geral, o adulto utiliza-se de ameaças, de sanções, punições físicas
ou psicológicas, para fazer com que a criança aja de maneira a seguir as regras,
reforçando essa idéia espontânea, de que as leis e a autoridade provêm dele,
23
alimentando as relações de respeito unilateral e, conseqüentemente, a heteronomia.
No sujeito heterônomo, a fonte da obediência é exterior, pois são os outros que
sabem o que é bom ou mal.
Se em um extremo das relações entre as pessoas formadoras dos
sentimentos morais está o respeito unilateral, no outro extremo está o respeito
mútuo. Este respeito constitui-se entre iguais, sendo feita a abstração de qualquer
autoridade (PIAGET, 1973). Se na moral heterônoma a lei é externa, o adulto detém
a autoridade e a criança possui o medo da perda de amor. Com o tempo, a partir
das interações sociais estabelecidas, vai ocorrendo uma desmistificação do adulto,
ela vai aos poucos percebendo que ele falha e, assim, diminui o temor pela perda do
amor do adulto, e ela começa a querer o respeito por si, dando início ao respeito
mútuo, o qual ainda é uma mistura de afeição e medo. Todavia, esse medo não é o
de vir a ser punido ou repreendido, nem medo de ameaças com sanções físicas ou
psicológicas e sim um temor de decair aos olhos do outro.
Com o respeito mútuo, aos poucos, a criança vai substituindo suas relações
embasadas unicamente na obediência, passando a fundamentá-las também na
reciprocidade. Esse respeito é considerado por Piaget (1996) como a segunda
possibilidade de socialização. Da mesma forma que a heteronomia é característica
do respeito unilateral, o respeito mútuo leva à moral autônoma. A partir dos sete, oito
anos de idade, ao tornar-se operatória, a criança já possui as condições intelectuais
de tornar-se autônoma, não mais legitimando uma regra pela simples autoridade em
si, passando a entendê-la como um contrato entre os iguais. Ou seja, antes o adulto
era visto como alguém superior às regras, portanto, não precisava cumpri-las, e a
justiça, ou o que era considerado certo ou errado, procedia dele; com o respeito
mútuo, o outro passa a ter os mesmos direitos e deveres que a criança, a regra e a
justiça passam a ser as mesmas para ambos. Assim, ainda segundo Piaget (1996),
no respeito mútuo, a ação das pessoas é orientada pela legalidade de fato ou de
direito.
É importante lembrar que autonomia não é o mesmo que individualismo ou
liberdade para fazer o que se quer, mas significa coordenar os diferentes fatores
relevantes, para decidir agir da melhor maneira para todos os envolvidos. O sujeito
racionalmente decide qual o melhor procedimento, o que é certo ou errado, mas leva
em consideração, ao tomar decisões, os direitos, o ponto de vista do outro. Para
Piaget (1996), a pessoa autônoma considera, por decisão própria, o outro além de
24
si. Dessa forma, o autor não fala em autonomia como uma simples independência
em fazer coisas sem o auxílio de alguém. Ao contrário, o indivíduo, que é autônomo
moralmente, segue um código de ética interno, regras morais próprias, regras que
emergem dos sentimentos internos da necessidade em como tratar os outros.
Kamii (1991, p. 108), concordando com a idéia de Piaget sobre autonomia,
afirma que “não se pode haver moralidade quando se considera apenas o próprio
ponto de vista. Quando uma pessoa leva em consideração os pontos de vista das
outras, não está mais livre para mentir, quebrar promessas e ser leviano”. De acordo
com esta perspectiva, espera-se que as crianças tornem-se, aos poucos, aptas para
tomar decisões por si mesmas. A fonte das regras não está mais nos outros ou em
uma autoridade, como ocorre com a moral heterônoma, mas no próprio indivíduo.
Segundo Piaget (1996), a autonomia do indivíduo não se desenvolverá em uma
atmosfera de autoridade e opressões intelectuais e morais, pelo contrário, é
fundamental para a própria formação, a liberdade de vivências e experiências de
vida.
Desse modo, para Piaget (1996), não há apenas uma moral, mas duas. A
moral heterônoma, oriunda das relações de respeito unilateral; e a moral autônoma,
proveniente das relações fundamentadas no respeito mútuo.
A formação dos sentimentos morais depende da ênfase colocada pelo adulto
ao relacionar-se com a criança, em uma das principais tendências afetivas que nos
interessa no estudo da moral. São três: amor, temor ou respeito. Uma educação que
tende a fundamentar-se principalmente no temor causa a obediência exterior e
interessada, e na ausência deste, a criança não mais obedece, pois, não sente
aceitação interna pela norma. O mesmo ocorre com uma relação embasada
somente no amor. Não raro, ouve-se uma mãe ou professora afirmar que conversa,
conversa e conversa com a criança, mas que ela não ouve o que é recomendado,
não a obedece. Analisando as relações entre esse adulto e a criança, muitas vezes,
percebe-se que ao interagir nas situações em que havia a necessidade de limites,
essa criança foi, como todas as outras, verificando a necessidade destes. Porém, ao
testá-los, na forma de exigências, desobediências, ‘birras’, desafio às ‘ameaças’
feitas, e perceber que nada acontece, ou seja, que o adulto não toma nenhuma
atitude quando as regras não são respeitadas, os limites dessa criança ampliam-se
consideravelmente. Diante da permissividade do adulto perante tais condutas da
criança, as normas vão sendo, aos poucos, desvalidadas. Assim, a criança vai,
25
pouco a pouco, perdendo o temor característico do sentimento de respeito. Dessa
forma, vai-se diminuindo significativamente o medo: da desaprovação do adulto, de
ser repreendida, de ser punida, ou da perda do amor, característicos do respeito
unilateral; não havendo também, o temor de decair perante os olhos do outro,
decorrente do respeito mútuo. Sem dúvida alguma, permaneceu a afeição, mas,
com a diminuição do temor, reduziu-se também o respeito. Possuir somente uma
dessas duas tendências afetivas que formam o respeito não é suficiente para causar
o sentimento de aceitação interior às regras; portanto, apenas o amor ou só o temor
não bastam para fazer com que apareça o sentimento de obrigação às
recomendações dadas. Com a ausência do temor, não há a aceitação interna pelas
recomendações do adulto. Contudo, não estou querendo dizer que sou a favor da
punição ou do reforço ao sentimento de temor característico do respeito unilateral. O
que estou questionando é o excesso de autoritarismo (relação embasada
principalmente no medo) ou a permissividade (evidenciada na ausência de qualquer
limite), já que nenhuma dessas relações leva à autonomia. O sentimento de temor
espontâneo característico do respeito unilateral não deve ser extinto, pois, se isso
ocorrer, não existe mais respeito algum. O temor deve ser substituído por aquele
oriundo das relações entre as pessoas que se respeitam como iguais.
Ao crescer, a criança heterônoma — que possui um respeito todo unilateral
pelo adulto — vai descobrindo, pouco a pouco, que o próprio adulto se submete, ou,
pelo menos, procura submeter-se, às recomendações que ele mesmo faz às
crianças. Então, desse modo, a lei ou a regra é sentida como superior aos seres
respeitados. Pouco a pouco, ela vai percebendo, também, a incoerência dos adultos,
as recomendações dadas por eles são, não raro, diferentes e contraditórias: ora
permite-se que a criança faça algo, ora já não mais é autorizado; por exemplo, ela
percebe que num dia é repreendida por ter tido uma determinada ação e, no outro,
repete a ação e não é mais censurada. Assim, a criança é levada a efetuar opções e
estabelecer hierarquias. Então, esses sentimentos iniciais começam a transformarse, vai havendo a ‘desmistificação do adulto’, seguindo em direção à busca do
respeito de si, dando início ao respeito mútuo.
Com o respeito mútuo, a criança vai substituindo, progressivamente, suas
relações embasadas tão somente na submissão à autoridade, passando a
fundamentá-las também na reciprocidade. La Taille (2006), esclarece que, no
respeito mútuo, a interiorização das regras corresponde a uma forma racional e
26
crítica destas e uma nova exigência moral: a reciprocidade, respeitar e ser
respeitado. Para esse autor, a exigência de ser respeitado é a exigência de ser
reconhecido como pessoa de valor.
O respeito mútuo também é fonte de obrigações, mas um novo tipo de
obrigação, o qual não mais impõe propriamente regras pré-estabelecidas,
regulamentações externas ao sujeito. A pessoa vale-se da reciprocidade, que é a
mútua coordenação dos diferentes pontos de vista e das ações, para elaborar suas
próprias normas de conduta. Antes, a criança pré-operatória já conseguia perceber
que o outro tem idéias e desejos diferentes dos dela, mas ainda não conseguia
conciliar o seu ponto de vista com o do outro. Com a reciprocidade, isso se torna
possível. A compreensão recíproca é assegurada quando a criança já é capaz de
pensar considerando as opiniões, os desejos e os sentimentos do outro, substituindo
o egocentrismo do seu pensamento e da imposição verbal, por relações baseadas
no respeito mútuo.
É necessário ressaltar que a imposição de regras, crenças e verdades
prontas e completamente elaboradas dificultam a descentração da criança,
favorecendo seu egocentrismo natural, auxiliando a manutenção do pensamento
heterônomo, pois a conduz a uma obediência pura e simples, sem a necessária
reflexão. Com o respeito mútuo, essa imposição desaparece em proveito da
cooperação. Piaget (1977, p. 348) afirma que a cooperação conduz “não
simplesmente à obediência das regras impostas, quaisquer que elas sejam, mas sim
a uma ética de solidariedade e reciprocidade”. Com a cooperação entre iguais,
aparece os sentimentos de justiça, daquilo que é justo e injusto e o sentimento de
um bem interior.
Para Piaget (1977), só a cooperação leva à autonomia. Por isso, é importante
favorecê-la no ambiente educacional, não restringindo as interações sociais apenas
aos professores e alunos, mas propiciando, nas palavras do próprio autor:
[ . . . ] trocas entre os pares, visto que, a crítica nasce da discussão e a
discussão só é possível entre iguais: portanto, só a cooperação realizará o
que a coação intelectual é incapaz de realizar. [ . . . ] A discussão produz
assim, a reflexão e a verificação objetiva. Mas pelo mesmo fato, a
cooperação é fonte de valores construtivos”. (PIAGET, 1977, p. 350-351).
Em concordância com essa idéia, Menin (1996) esclarece que cooperação
não significa consenso ou acordo. Muitas vezes, a cooperação quer dizer discussão,
27
“mas uma discussão equilibrada de forma que cada pessoa possa colocar seus
argumentos, rebater o dos outros, examinar suas posições e as dos outros,
conhecer, considerar, negar ou afirmar outros pontos de vista que não só os
próprios” (MENIN, 1996, p. 52).
As oportunidades de cooperar são necessárias para o indivíduo ir
transformando o sentimento de respeito unilateral em respeito mútuo. Essa
cooperação não deve acontecer apenas externamente, mas sim se originar de um
desejo interno e voluntário de cooperar. Para isso, reafirmamos que a criança
precisa vivenciar situações de interação com seus pares e com o adulto, as quais
suscitam a cooperação espontânea. Essas situações contribuem para que as
crianças saiam do seu egocentrismo e comecem a colaborar entre si, submetendose a regras comuns, elaboradas por todos os membros do grupo.
Infelizmente, o mais comum no relacionamento adulto-criança é a
manutenção, por parte dos mais velhos, de altos níveis de egocentrismo
infantil. Isso é conseguido por meio de modalidades de interação que
dificultam o despertar da autonomia e da responsabilidade da criança,
mantendo-a sob determinadas formas de governo heterônomo.
(DOMINGUES DE CASTRO, 1993, p. 19).
Segundo essa autora, faz-se necessário introduzir a cooperação na relação
entre o adulto e a criança, visando superar o respeito unilateral, isto é, “a relação
primitiva de amor-temor que o adulto inspira à criança e assumir a nível do respeito
mútuo” (DOMINGUES DE CASTRO, 1993, p. 20). Ambos não estão em um mesmo
nível, “não são iguais, nem intelectualmente, nem na vivência e experiência: mas
cooperação não significa igualdade forçada que infantiliza o adulto ou espera da
criança uma absurda sisudez”. Cooperar é realizar trocas, de pontos de vistas,
idéias, informações, opiniões, atitudes, “num clima tal em que as regras valham
democraticamente para ambas as partes, adultos e crianças, e os valores possam
ser esclarecidos".
Somente quando as obrigações são baseadas na reciprocidade e nas trocas
cooperativas, e quando a pessoa já considera o propósito e as conseqüências da
obediência às regras, é que o indivíduo encontra-se no terceiro estágio de raciocínio
moral, que pode ter início entre os oito e 13 anos, que é a autonomia moral. A moral
da consciência autônoma, não tende a submeter às personalidades, a regras
comuns em seu próprio conteúdo: “[ . . . ] limita-se a obrigar os indivíduos a se
28
situarem uns em relação aos outros, sem que as leis de perspectiva resultantes
desta reciprocidade suprimam os pontos de vista particulares”. (PIAGET, 1977, p.
345).
O desenvolvimento da autonomia moral é uma meta importante para a
educação e a escola constitui local ideal para o desenvolvimento das diversas
relações de colaboração e cooperação. Para Piaget (1996), a educação moral supõe
que a criança possa fazer experiências morais e a escola constitui um meio propício
para tais experiências, visto que, para aprender a viver em grupo, é necessário ter
experiências de vida em comum. De acordo com esse ponto de vista, a justiça, por
exemplo, não se aprende com lições ou teorias sobre o assunto, mas vivenciando-se
relações em que as regras são realmente necessárias e valem para todos, em que
há a vivência de situações de justiça. O mesmo é válido para a cooperação, a
igualdade, o respeito mútuo, etc.
Piaget (1996) considera que o objetivo principal da educação voltada às
questões da moralidade é o de formar personalidades autônomas e aptas a
cooperar. Quando o autor refere-se à cooperação, não significa uma conduta
exterior, como, por exemplo, por solicitação externa, por obediência. Refere-se a
uma cooperação voluntária, espontânea, que emerge da necessidade interior e do
desejo de cooperar. Assim, Piaget (1996) pretende, com a educação moral, formar
personalidades tão livres quanto responsáveis.
Piaget (1994) considera que, os aspectos da personalidade moral, são a
autonomia e a reciprocidade. Os dois problemas essenciais da educação moral
consistem em assegurar a descentralização do eu e estabelecer uma disciplina
autônoma. Todavia, quais são os meios que dispõe o educador para alcançar esses
dois objetivos? Para Piaget (1994), esses meios são proporcionados quer pela
natureza psicológica da criança, quer pelas relações que serão estabelecidas entre
a criança e as diversas pessoas com as quais se relacionará durante a sua vida.
Assim sendo, fica evidente a importância dada, no processo de construção de sua
autonomia, ao ambiente em que a criança vive e as trocas sociais que serão
estabelecidas durante seu desenvolvimento.
Assim sendo, em resumo, para Piaget (1996), as fontes da autonomia seriam
as relações de respeito mútuo, de reciprocidade e de cooperação. Para a criança ter
a possibilidade de ir construindo gradualmente sua autonomia moral (governar a si
mesma), faz-se necessário que ela conviva com adultos, num ambiente em que
29
exista o respeito mútuo e, portanto, a autoridade do adulto seja mínima. Visto que as
raízes da autonomia moral encontram-se nas relações democráticas, esse ambiente
deve, também, propiciar trocas sociais entre pares, oportunidades de crianças
assumirem pequenas responsabilidades e de tomar decisões, discutir seus pontos
de vista, expressarem livremente seus pensamentos e desejos, investigar e
estabelecer relações. Assim, não há respeito mútuo se a criança não vivenciar
relações de cooperação, sendo que a cooperação ocorre necessariamente a partir
da convivência da criança com seus pares.
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5 CONHECENDO A PESQUISA
Neste capítulo, introduzo, no primeiro item os aspectos metodológicos que
guiaram minha pesquisa; para, no segundo item, contextualizar os locais de
observação.
5.1 Aspectos metodológicos
A pesquisa aqui apresentada é de cunho qualitativo e consiste em refletir
sobre como os educadores auxiliam — ou não — seus alunos na construção dos
limites na educação infantil. Para alcançar tal objetivo, foi realizada uma pesquisa de
campo.
Na pesquisa de campo, utilizei como técnica de coleta de dados, as
observações. Segundo Victora (2000, p. 62):
Observar, na pesquisa qualitativa, significa examinar com todos os sentidos
um evento, um grupo de pessoas, um indivíduo dentro de um contexto,
com o objetivo de descrevê-lo. [ . . . ] Ocorre que a observação na pesquisa
qualitativa não é uma observação comum, mas voltada para a descrição de
uma problemática previamente definida.
Por isso, durante as observações, procurei ter um olhar voltado às situações
em que se manifestavam questões relacionadas ao tema “limites”.
As observações foram realizadas em duas escolas de educação infantil, na
cidade de Porto Alegre/RS, sendo uma particular e uma pertencente à rede
municipal de ensino, em turmas de jardim, mediante carta de apresentação da
universidade (APÊNDICE A) e com autorização da direção das escolas. A faixa
etária das crianças observadas é de quatro a seis anos. Recebi autorização das
educadoras (APÊNDICE B) e dos pais das crianças envolvidas na pesquisa
(APÊNDICE C) para uso e divulgação dos dados coletados durante a pesquisa.
Porém, por uma questão de ética na pesquisa, as escolas e os sujeitos envolvidos
não tiveram seus nomes e imagens divulgados. Por este motivo, as escolas foram
denominadas escola ‘1’ (particular) e escola ‘2’ (municipal), bem como as
31
professoras de cada escola foram identificadas como professora ‘1’ (escola
particular) e professora ‘2’ (escola municipal). As crianças foram citadas utilizandose a primeira letra do nome, ou a primeira e última letra do nome, para crianças que
têm nomes que iniciam com a mesma letra.
Como técnica de registro dos dados, utilizei o diário de campo. Segundo
Bogdan e Biklen (1994, p. 50): “As notas de campo são: o relato escrito daquilo que o
investigador ouve, vê, experiencia e pensa no decurso da recolha refletindo sobre os dados de
um estudo qualitativo”. O conteúdo das notas de campo são descritivos e reflexivos. A parte
descritiva representa o esforço do investigador para registrar objetivamente os detalhes que
ocorreram no campo. A parte reflexiva é onde aparece o ponto de vista do observador, são as
reflexões do observador sobre os acontecimentos, suas idéias, preocupações e emoções
geradas na experiência.
O diário de campo contém, então, os registros das observações que foram realizadas
nas duas escolas. Conforme combinados com as professoras das turmas envolvidas com a
pesquisa, realizei as observações da seguinte forma: na escola ‘1’, realizei as observações
durante três manhãs, permanecendo com o grupo das 9h às 11h e na escola ‘2’, realizei as
observações durante três manhãs, permanecendo com o grupo das 8h às 12h.
Os dados coletados foram sujeitos à análise e reflexão, procurando identificar
situações e atitudes das educadoras que proporcionem o auxilio, ou não, na
construção dos limites das crianças.
5.2 Contextualizando os locais de observação
Descrevo,
neste
item,
as
escolas
onde
realizei
minha
pesquisa;
primeiramente, a escola de educação infantil particular e, após a escola pertencente
à rede municipal de educação.
32
5.2.1 Escola ‘1’: instituição de educação infantil particular
A escola fica localizada em um bairro comercial e residencial, na zona sul da
cidade de Porto Alegre. A comunidade atendida é de classe média. A proposta
pedagógica e o PPP da escola estão em processo de elaboração. Os profissionais
da escola são selecionados através de entrevistas e análise do currículo profissional.
A escola atende a um total de 30 crianças. Destas, 15 freqüentam apenas o turno da
tarde. As outras 15 permanecem na escola em turno integral, freqüentando também
o turno da manhã (turno no qual ocorreram as observações).
A turma: Jardim A
A educadora da turma tem 23 anos e possui apenas o curso de educador
assistente. É sua primeira experiência em instituição de educação infantil.
A turma observada possui 12 alunos no total, mas apenas oito freqüentam o
turno da manhã. A faixa etária das crianças é de quatro a seis anos.
Durante o período das observações, apenas seis dos oito alunos
freqüentaram a escola. Das seis crianças observadas, quatro são meninos e duas
são meninas.
Na turma, há gêmeos, ‘P’ e ‘K’ (seis anos), que moram com o pai e a
madrasta e só vêem a mãe duas vezes por mês. ‘M’ (cinco anos), mora com os pais
e a mãe está grávida. ‘B’ (seis anos), mora com os pais e é filho único. ‘A’ (quatro
anos), mora com os pais e tem um irmão de dois anos, que também freqüenta a
mesma instituição, na turma do maternal. ‘L’ (seis anos), mora com os pais e
também é filha única.
5.2.2 Escola ‘2’: escola municipal de educação infantil
A escola localiza-se em uma vila, na zona sul da cidade de Porto Alegre. A
comunidade atendida é de baixa renda. A violência e o tráfico de drogas é algo
considerado normal pela comunidade. A escola atende a um total de 91 crianças,
distribuído em cinco turmas. Todas as crianças freqüentam a escola em turno
33
integral. A escola é mantida pela SMED e segue sua proposta pedagógica, que,
atualmente, é Reggio Emília. O PPP da escola está em processo de elaboração. Os
profissionais da escola são selecionados via concurso público.
A turma: Jardim A
A educadora da turma tem 34 anos, é formada em pedagogia e possui curso
de pós-graduação em Educação Infantil. Ela é concursada e trabalha com educação
infantil há oito anos.
A turma é composta por 23 crianças, sendo 14 meninos e nove meninas.
A faixa etária das crianças é de quatro a cinco anos. Há uma grande
variedade nas constituições familiares destas crianças. Quase a metade das
crianças da turma são filhos de pais separados, a maioria mora com a mãe e tem
pouco ou nenhum contato com o pai, sendo que cinco são filhos únicos. Alguns
moram apenas com a mãe, ou com a mãe e irmãos, outros moram com a mãe,
irmãos e padrasto, outros moram com a mãe e outros familiares. Um menino é
criado pela avó. A outra metade da turma mora com ambos os pais, sendo que a
maioria reside com os pais e irmãos e duas crianças residem apenas com os pais,
sendo filhos únicos.
Analisando as entrevistas da turma, feitas pela professora titular, no início do
ano letivo, encontrei uma questão que considero importante para a pesquisa então
realizada. É uma pergunta sobre como ocorre a colocação dos limites pela família.
14 famílias responderam que usam o castigo (deixam sentados, sem ver televisão
ou jogar vídeo-game, sem brincar), cinco responderam que costumam conversar
com as crianças e quatro responderam que utilizam a palmada como colocação de
limites.
No próximo capítulo, apresento os dados coletados, desenvolvendo a análise
e reflexão a cerca dos mesmos.
6 ANALISANDO OS DADOS COLETADOS
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A partir da pesquisa de campo, foram produzidos seis diários de campo,
contendo a descrição das observações e algumas primeiras impressões sobre o que
foi observado. Os documentos foram analisados objetivando-se perceber como as
atitudes das educadoras auxiliam, ou não, os alunos na construção dos limites.
Todos os documentos foram categorizados sendo, então, levantadas cinco
categorias de intervenção das educadoras no espaço escolar. Cada categoria foi
dividida em duas sub-categorias, que se contrapõe uma à outra. As categorias foram
levantadas pela pesquisadora e corroboradas pelo grupo de orientação da pesquisa
(orientadora e colega). Segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 221, grifo do autor):
À medida que vai lendo os dados, repetem-se ou destacam-se certas
palavras, frases, padrões de comportamento, formas de sujeitos pensarem
e acontecimentos. O desenvolvimento de um sistema de codificação
envolve vários passos: percorre os seus dados na procura de regularidades
e padrões bem como de tópicos presentes nos dados e, em seguida,
escreve palavras e frases que representam estes mesmos tópicos e
padrões. Estas palavras ou frases são categorias de codificação. As
categorias constituem um meio de classificar os dados descritivos que
recolheu [ . . . ] Determinadas questões e preocupações de investigação dão
origem a determinadas categorias.
A seguir, apresento as categorias levantadas:
a) Tomada de decisões
1. Toma as decisões sem a participação das crianças: nesta subcategoria apareceram sete comportamentos observados.
2. Incentiva a participação das crianças nas atividades e tomadas de
decisões: nesta sub-categoria apareceram sete comportamentos
observados.
a) Questionamentos
1. Faz perguntas e responde pelas crianças: nesta sub-categoria
apareceram dois comportamentos observados.
2. Faz perguntas e incentiva as crianças a pensarem a resposta: nesta
sub-categoria apareceram cinco comportamentos observados.
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c) Resolução de conflitos e estabelecimento de regras
1. Utiliza ameaças, punições e chantagens: nesta sub-categoria
apareceram 19 comportamentos observados.
2. Utiliza argumentos e explicações: nesta sub-categoria apareceram 12
comportamentos observados.
d) Interações no espaço pedagógico
1. Impede a interação das crianças entre si, delas com os materiais e
com o espaço pedagógico: nesta sub-categoria apareceram cinco
comportamentos observados.
2. Incentiva/permite a interação entre as crianças, delas com os
materiais e com o espaço pedagógico: nesta sub-categoria
apareceram 10 comportamentos observados.
e) Realização de tarefas
1. Impede que as crianças façam tarefas simples sozinhas: nesta subcategoria apareceram sete comportamentos observados.
2. Permite que as crianças façam tarefas simples sozinhas: nesta subcategoria apareceram 13 comportamentos observados.
Para desenvolver a reflexão acerca de como os educadores auxiliam seus
alunos na construção dos limites, trouxe alguns exemplos, os quais considerei mais
relevantes, que aparecem em cada categoria levantada. Todos os exemplos citados
aqui foram retirados das categorias levantadas a partir da análise dos diários de
campo.
Na categoria a)1, aparece o seguinte comportamento:
Professora ‘1’: O aluno ‘P’ cai e rala o joelho. A professora coloca um
band-aid e sugere que façam outra brincadeira. As crianças dão algumas
sugestões, mas ela decide que a brincadeira agora será a do tubarão. Não
leva em consideração as sugestões das crianças. ‘P’ diz que quer ser o
tubarão e a professora diz que ela é que será o tubarão primeiro.
As crianças dão sugestões de brincadeiras que gostariam de fazer, mas a
educadora simplesmente ignora o interesse das crianças e escolhe uma outra
brincadeira que não havia sido sugerida pelas crianças. Desta forma, ela impede
36
que as crianças tomem a decisão sobre qual brincadeira têm interesse em fazer e
são, assim, obrigadas a fazer o que a educadora decide. A educadora impõe-se
sobre as crianças, não levando em consideração o interesse das mesmas.
Na categoria a)2 aparece o seguinte comportamento:
Professora ‘2’: A menina ‘A’ joga a primeira vez e erra. Joga a segunda e
erra também. Ela pergunta se pode tentar de novo e a professora diz:
“Não sei, o que acham pessoal, ela pode ter outra chance?”. O grupo diz
que sim e a professora fala: “Então tá, já que todos concordaram, ela pode
jogar de novo. Mas e se outro colega errar duas vezes, também poderá
jogar de novo?” As crianças dizem que sim e a professora conclui: Então,
a regra vale para todos”.
A professora consulta as crianças no momento em que tem que tomar uma
decisão quanto a uma regra do jogo que estão jogando. Ela leva em consideração a
decisão das crianças e estimula-os a pensar sobre a regra, fazendo-os perceber que
a regra deve valer para todos.
Os dois comportamentos citados acima deixam claras as diferenças de
comportamentos entre as duas educadoras. Enquanto a professora ‘1’ toma sozinha
as decisões, a professora ‘2’ incentiva a participação das crianças na tomada de
decisões. Estes comportamentos explicitam o tipo de relação estabelecida nas duas
salas de aula.
A professora ‘1’ mantém com seus alunos uma relação de coação, onde ela
toma as decisões e as crianças apenas acatam o que foi por ela decidido.
Piaget (1996) explica que a relação de coação é aquela, na qual, um dos
sujeitos detém o poder e o outro submete-se às leis e regras por este estabelecidas.
A relação de coação geralmente é característica das relações entre adultos e
crianças. Existe, nesta relação, uma obrigatoriedade ou aceitação da regra, por
parte da criança, de forma exterior, ou seja, a criança aceita a regra porque há uma
pessoa com maior poder que ela, dizendo que esta regra deve valer.
Já a professora ‘2’ tenta promover uma relação de cooperação com seus
alunos. Ela dá a oportunidade de seus alunos decidirem junto com ela os
acontecimentos em sala de aula, colocando-se em igualdade com as crianças.
Segundo Piaget (1996), as relações de cooperação são mais comumente
observadas entre crianças ou adolescentes. Na relação de cooperação, os sujeitos
envolvidos tratam-se e respeitam-se como iguais.
37
Piaget (1996, p. 9) diz que “o fim da educação moral, [ . . . ] é o de constituir
personalidades autônomas aptas à cooperação”. Quando o autor refere-se à
cooperação não significa uma conduta exterior, por obediência e sim uma
cooperação voluntária, espontânea, que surge de uma necessidade interior e do
desejo de cooperar.
Na categoria b)1 aparece o seguinte comportamento:
Professora ‘1’: As crianças perguntam se poderão jogar vídeo-game hoje
e a professora diz: “Ninguém vai jogar vídeo-game hoje! Vocês acham que
merecem jogar? Eu acho que ninguém merece! Lembram do que
aconteceu ontem? Deixei jogarem e ficaram conversando e gritando e
avisei que se fosse assim não iam jogar mais.
A educadora acima citada faz perguntas, mas não dá tempo de as crianças
responderem, ela mesma responde. Não permite que as crianças pensem sobre o
fato, que tenham uma opinião sobre o assunto. Ao mesmo tempo em que ela
pergunta o que as crianças acham e se elas lembram do que aconteceu no dia
anterior, sua atitude mostra que não importa o que acham e que não precisam
lembrar do que aconteceu, pois ela diz o que aconteceu antes de as crianças terem
tempo de pensar sobre tal ocorrido. Ela é quem determina o que eles devem pensar
e lembrar sobre o assunto em questão.
Na categoria b)2 aparece o seguinte comportamento:
Professora ‘2’: A professora diz: “Tá, mais todos jogam ao mesmo
tempo?”. As crianças respondem que não, que tem que ser um de cada
vez. A professora pergunta: “E quantas vezes cada um poderá jogar a
bolinha?” ‘TS’ diz: “Joga uma vez e se errar pode jogar de novo”. A
professora fala: “O que acham disso pessoal, pode ser assim?” Eles
dizem que sim.
A educadora, neste exemplo, faz as perguntas e aguarda a resposta das
crianças. Estimula-os a pensar sobre o assunto em questão, que no caso é a
construção das regras do jogo de boliche. A educadora em questão não dá as
regras prontas, ela as constrói junto com as crianças, levando em consideração o
ponto de vista das mesmas.
Pensando nos comportamentos acima citados, podemos dizer que a
professora ‘1’ reforça a heteronomia das crianças, enquanto a atitude da professora
38
‘2’ estimula o desenvolvimento da autonomia, pois esta última, ao fazer perguntas e
permitir que as crianças respondam, está incentivando-os e estimulando-os a
colocarem o seu ponto de vista, a falarem o que pensam sobre o assunto.
Conforme Kamii (1986, p. 70), para Piaget:
Os adultos reforçam a autonomia natural da criança quando usam
recompensa e punição; eles incentivam o desenvolvimento da autonomia
quando trocam pontos de vista com as crianças.
O tipo de relação que a educadora ‘1’ estabelece com seus alunos é uma
relação coercitiva. Nesta relação, o respeito é unilateral, porque a criança deve
respeitar a professora e esta usa a autoridade para conseguir o respeito das
crianças. A professora controla o comportamento e até mesmo o pensamento das
crianças. Sabemos que, de acordo com a concepção behaviorista de ensino, a
aprendizagem se dá a partir do condicionamento e está centrada no professor.
Pensando nisso, eu diria que a professora ‘1’ trabalha a partir desta linha teórica
pois, segundo Devries e Zan (1998, p. 284), “o professor behaviorista preocupa-se
em estruturar as pressões na sala de aula para evocar a mudança no
comportamento, sem uma atenção particular às causas e origens dos maus
comportamentos”.
Na categoria c)1 aparece o seguinte comportamento:
Professora ‘1’: A aluna ‘K’ levanta-se e vai em direção ao banheiro e a
professora diz: “Senta ‘K’, que eu não chamei teu nome ainda”. A menina
diz que quer fazer xixi. A professora diz para ela sentar e esperar ser
chamada. A menina diz que vai fazer xixi nas calças e a professora diz:
“Aí eu vou te levar lá para o maternal, para tu usar fraldas”.
A educadora em questão não respeita a necessidade fisiológica da criança e
ainda ameaça levá-la para a turma onde as crianças usam fraldas. Vejo neste
comportamento uma total falta de respeito para com as crianças e, além de não
respeitar, ela ainda ameaça a criança. Ora, a criança não pode ficar esperando ser
chamada para ir ao banheiro. Eles deveriam e tem idade suficiente para ter livre
acesso ao banheiro, pois penso que para ir ao banheiro não pode existir um horário
pré-estabelecido, em especial na educação infantil. Além disso, a educadora utiliza a
ameaça como forma de controle sobre o comportamento da criança.
39
Na categoria c)2 aparece o seguinte comportamento:
Professora ‘2’: ‘MA’ aproxima-se da educadora chorando e diz que o
colega ‘D’ bateu nela. A professora a abraça e chama o colega dizendo:
“’D’, tu pode vir aqui um pouquinho, por favor”. O menino aproxima-se e a
professora pergunta o que aconteceu. Ele diz que bateu na colega porque
ele queria andar no balanço e ela não deixou. A professora diz: “Se ela
estava andando no balanço, tu podias esperar um pouco, ou talvez se
pedisse para a colega te emprestar o lugar um pouco ela teria deixado tu
andar.” Ele diz: “Ela não ia deixar não, porque ela é uma chata”. A
professora diz: “Olha, eu não acho a ‘MA’ chata, ela sempre te ajuda a
amarrar o tênis, acho isso muito legal, e mesmo assim, acho que tu
poderia conversar com tua colega em vez de bater nela”. “Será que se tu
estivesse no balanço e ela te batesse tu ia gostar, ia achar certo o que ela
fez?” Ele responde que não e a professora diz: “Pois é, ninguém gosta de
que batam na gente, então não deve bater nos teus colegas, pois não vais
gostar se alguém bater em ti, né”. Ele diz: “É, não vou gostar mesmo, e
não vou bater mais, tá, professora”. A professora diz: “Legal ‘D’, e tu quer
dizer alguma coisa pra ‘MA’, acho que tu machucou ela e ela ficou triste.”
O menino olha para a colega e pede desculpas, pergunta se ela quer
andar no balanço e pede que o chame para andar depois. Os dois saem
correndo e a professora sorri.
A educadora acima citada age de forma coerente com a situação. Primeiro,
acalma a menina de forma afetuosa e, em seguida, de maneira educada e sem
utilizar nenhum tipo de autoritarismo, ela chama o aluno para esclarecer a situação.
Conversa com o menino utilizando argumentos e estimulando o mesmo a colocar-se
no lugar da colega. Desta forma, ela estimula o aluno a ter um outro olhar da
situação, fazendo-o pensar que algo que é ruim para ele, também pode ser ruim
para o outro.
Os dois comportamentos citados acima envolvem a maneira como as
educadoras conduzem determinadas situações que, no caso, envolvem o
estabelecimento de regras na rotina e a resolução de um conflito entre os alunos.
Podemos dizer que o comportamento observado na professora ‘1’ é característico do
respeito unilateral, ao passo em que o comportamento observado na professora ‘2’ é
característico do respeito mútuo, pois:
[ . . . ] respeito que chamaremos unilateral, porque ele implica uma
desigualdade entre aquele que respeita e aquele que é respeitado [ . . . ] o
respeito que podemos qualificar de mútuo, porque os indivíduos que estão
em contato se consideram como iguais e se respeitam reciprocamente.
(PIAGET, 1996, p. 4).
40
Vejo a escola como auxiliar na preparação para a cidadania e o
estabelecimento de limites é importante neste processo, porém, não basta
estabelecer limites, impor regras prontas, mas é necessário, acima de tudo, auxiliar
o aluno a refletir sobre as regras e limites a serem seguidos, e isto só é possível em
um ambiente onde existam relações de respeito mútuo.
Na categoria d)1 aparecem os seguintes comportamentos:
Professora ‘1’: As crianças vibram e querem ajudar a arrumar as garrafas.
Ela não deixa e diz que se não ficarem sentados não vão brincar.
Professora ‘1’: As crianças comem e conversam entre elas. A professora
pede silêncio e diz que não é hora de conversar, e sim de comer.
A educadora em questão não permite a interação entre as crianças, bem
como impede a interação das crianças com os materiais pedagógicos.
Ela não os deixa participar da organização da brincadeira e ordena que
fiquem sentados, ameaçando que, se contrariarem sua ordem, não participarão da
atividade proposta. Ela impede a movimentação corporal e como sanção exclui a
criança da brincadeira. No segundo exemplo apresentado, ela impede que as
crianças conversem entre si, quando, ao contrário, poderia incentivar as trocas entre
as crianças neste momento que, na minha opinião, é muito propício para a interação
entre as mesmas. Momento no qual a educadora poderia aproveitar para também
interagir com as crianças de forma menos autoritária.
Na categoria d)2 aparecem os seguintes comportamentos:
Professora ‘2’: A professora diz para descerem para o refeitório. ‘PK’ abre
a porta e as crianças saem caminhando rapidamente, conversando, rindo
e brincando entre si.
Professora ‘2’: A professora explica que podem sentar onde preferirem,
mas que tem que ser dentro da sala e pede para tomarem cuidado para
não derramar as tintas, para não desperdiçar. A maioria das crianças
senta-se nas cadeiras junto às mesas. Alguns preferem sentar-se no
chão. A professora distribui os potes de tinta têmpera para as crianças e
diz que podem usar quantas cores quiserem e para dividirem as cores
com os colegas, pois não tem um pote de cada cor para cada criança. Ela
sugere que eles troquem os potes entre si.
A educadora acima citada permite que as crianças interajam livremente entre
si, bem como permite a interação das crianças com todos os materiais pedagógicos
disponíveis e com o espaço pedagógico em geral. No momento em que ela diz às
41
crianças que podem sentar onde desejarem, ela está proporcionando a essas
crianças que se sintam à vontade para realizar a atividade conforme cada um acha
melhor para si. Ela incentiva a interação entre as crianças e estimula-os a ter uma
convivência em grupo. Ela dá a liberdade de escolha, porém, dentro dos limites
disponíveis.
Durante muito tempo, a escola tinha como única tarefa transmitir às crianças
os conhecimentos adquiridos pelas gerações anteriores, sendo que o professor era
o detentor destes conhecimentos e a criança deveria ser submissa à autoridade do
professor. Qualquer contato das crianças entre si era visto como perda de tempo.
Com o passar dos anos, a partir de observações e estudos de psicologia, chegou-se
à conclusão de que a criança não é um ser passivo cujo cérebro deve ser
preenchido, mas um ser ativo cuja pesquisa espontânea necessita de estímulo.
Piaget (1998, p. 139), diz que “a principal tarefa da educação parece ser cada vez
mais a de formar o pensamento e não o de povoar a memória”.
Segundo Piaget (1998), os profissionais preocupados em respeitar a atividade
espontânea da criança foram levados à idéia do trabalho em grupo, primeiramente
porque a criança, tendo chegado num certo grau de desenvolvimento, tende
espontaneamente à vida coletiva e ao trabalho em comum e, em segundo lugar,
porque a verdade — como todo bem moral — só é conquistada pelo esforço livre e
este tem por condição natural na criança a colaboração e a ajuda recíproca.
Podemos dizer que a vida do grupo é o meio natural da atividade intelectual e a
cooperação é o instrumento necessário para a formação do pensamento racional.
Pensando nisso, acredito que a atitude da professora ‘1’ é inadequada e
incoerente aos dias de hoje, pois ela parece tentar manter um controle total sobre as
crianças, impedindo suas interações e demonstra um desejo de que as crianças
fiquem sentadas e caladas apenas observando-a. Já a atitude da professora ‘2’ está
mais de acordo com o que deveria ser atualmente o objetivo da educação.
Segundo Piaget (1998, p. 149-150):
[ . . . ] a vida em grupo é a condição indispensável para que a atividade
individual se discipline e escape da anarquia: o grupo é, ao mesmo tempo o
estimulador e o órgão de controle [ . . . ] o grupo desenvolve a
independência intelectual de seus membros.
Na categoria e)1 aparecem os seguintes comportamentos:
42
Professora ‘1’: O aluno ‘B’ pega a garrafa de água e serve água em uma
caneca. A professora grita: “Não, ‘B’, eu é que sirvo a água”. Ela manda o
menino sentar e então serve a água e entrega para cada um na mesa.
Professora ‘1’: Às 10h50min, a professora chama as crianças para a sala
e, enquanto as crianças entram correndo e gritando, ela recolhe os
brinquedos e os guarda.
A educadora acima citada não permite que as crianças executem algumas
tarefas, as quais elas já possuem capacidades cognitivas para executar, como se
servir de água e guardar os brinquedos depois que brincam. Ela prefere fazer a
tarefa sozinha, de forma mais rápida e eficiente do que incentivar e auxiliar as
crianças a executarem tais tarefas, pois, segundo um comentário seu, ela acha que
poderia dar mais trabalho se, por exemplo, tivesse que secar o chão se alguma
criança derramasse água, ou tivesse que ficar controlando para ver se todos estão
ajudando a guardar os brinquedos.
Na categoria e)2 aparecem os seguintes comportamentos:
Professora ‘2’: Quando chegamos ao refeitório, a professora pede para
formarem a fila para se servir. As crianças se servem sozinhas no buffet e
sentam-se na mesa. Comem com garfo e faca sem ponta. A professora
entrega uma tesoura sem ponta para cada grupo e, após auxiliar as
crianças a dar os nós nas meias, ela explica: “Agora cortem o que sobrou
da meia, bem pertinho dos nós. Ajudem os colegas segurando a bolinha
para o colega cortar, mas tomem cuidado para não cortar os dedos dos
colegas”.
A educadora acima citada permite e estimula as crianças a executarem
determinadas tarefas e atividades. Ela orienta quanto aos cuidados a serem
tomados, mas permite que as crianças ‘coloquem a mão na massa’, incentivando a
interação entre as mesmas.
Se temos como pressuposto que “o fim da educação moral [ . . . ] é o de
constituir personalidades autônomas aptas a cooperar” (PIAGET, 1996, p. 9) e,
pensando nos comportamentos acima citados, podemos dizer que a professora ‘2’
faz um tipo de intervenção mais coerente com este objetivo, pois sabemos que para
a criança desenvolver sua autonomia moral, é necessário que ela conviva em um
ambiente em que exista o respeito mútuo, e que neste ambiente ela possa exercer
43
trocas sociais entre pares, que tenha a oportunidade de assumir pequenas
responsabilidades e de tomar decisões.
Segundo Piaget (1996, p. 21):
[ . . . ] A classe constitui uma associação de trabalho e evidencia-se que a
vida moral está intimamente ligada a toda a atividade escolar. [ . . . ] na
medida em que o trabalho suscita a iniciativa da criança, torna-se coletivo,
pois, se os pequenos são egocêntricos e inaptos à cooperação, ao
desenvolverem-se as crianças constituem uma vida social cada vez mais
forte. A liberdade do trabalho em classe tem implicado, geralmente, a
cooperação na atividade escolar.
O comportamento da professora ‘1’, ao contrário, impede que as crianças
adquiriram noções de responsabilidade e cooperação. No momento em que ela
prefere fazer pelos alunos aquilo que ela poderia incentivar e auxiliá-los a executar,
ela está impedindo o desenvolvimento da autonomia das crianças.
Segundo Devries e Zan (1998, p. 80): “A cooperação é importante para o
ambiente sócio-moral, porque reflete respeito pela igualdade dos membros da
classe, igualdade nos direitos e responsabilidades”.
Já conforme Piaget (1996, p. 5):
De modo geral se pode afirmar que o respeito unilateral fazendo par com a
relação de coação moral conduz, como Bovet bem notou, a um resultado
específico que é o sentimento de dever. Mas o dever primitivo assim
resultante da pressão do adulto sobre a criança permanece essencialmente
heterônomo. Ao contrário, a moral resultante do respeito mútuo e das
relações de cooperação pode caracterizar-se por um sentimento diferente, o
sentimento do bem, mais interior à consciência e, então, o ideal da
reciprocidade tende a tornar-se inteiramente autônomo.
Com base nas palavras de Piaget, acima citadas, partir da análise das
categorias levantadas e refletindo mais especificamente sobre os comportamentos
observados nas duas professoras, podemos dizer que, em geral, a professora ‘1’
não auxilia seus alunos no processo de construção dos limites, pois esta
estabelece uma relação de coação com os mesmos, na qual prevalece o respeito
unilateral reforçando, assim, a heteronomia infantil. Já a professora ‘2’ auxilia seus
alunos no processo de construção de limites, pois tenta promover uma relação de
cooperação com os mesmos, na qual existe um respeito mútuo, estimulando,
assim, o desenvolvimento da autonomia das crianças.
44
7 Algumas considerações
Ao realizar este trabalho, pude refletir sobre o significado do termo ‘limites’ e
como ocorre o processo de construção dos mesmos pelas crianças. Com base no
estudo bibliográfico, pude perceber que o termo ‘limites’, inicialmente, é pensado de
forma negativa, como, por exemplo: ‘Essas crianças não tem limites’. Para La Taille
(1999), o termo ‘limites’ está geralmente ligado ao respeito e à obediência a regras,
normas e imposições, recebidas pela criança de maneira externa.
Vejo uma necessidade de que a questão dos limites seja pensada de outra
forma, com uma visão mais ampla. Penso que, um ato moral está ligado ao respeito
aos direitos alheios, ao cuidado em levar em conta a singularidade e as
necessidades do outro e a consideração do bem comum. A construção de limites
está, então, diretamente implicada na capacidade da criança de socialização e
convivência bem-sucedidas, de forma que ela possa reconhecer e considerar os
próprios limites e os dos demais.
Refletindo sobre a utilização do termo ‘limites’ e com base nos estudos que
realizei, penso que a questão dos limites deve ser vista como um processo de
construção interna da criança. Como observamos, Piaget (1994) denomina este
processo de desenvolvimento moral na criança e, segundo o autor, o
desenvolvimento moral deve buscar desenvolver a autonomia da criança, o que
depende das relações que se estabelecem durante a vida da mesma.
Por isso, acredito que, como espaços de convívio social, a família e a escola
desempenham papéis fundamentais no processo de construção dos limites infantis.
Papéis estes compartilhados, porém distintos. Digo isso porque, a partir de minhas
experiências, como profissional da área de educação infantil desde o ano de 2003,
percebo que não estão claros os papéis da família e da escola no que concerne à
educação das crianças e a construção de limites. Pais e professores mostram
dificuldades em delimitar seus papéis e ações e apresentam muitas dúvidas em
relação ao que seja dar limites e possibilidades às crianças. Vejo que a tarefa
educativa da família passa, atualmente, por um momento de perda de referenciais.
Os pais apresentam muitas dúvidas sobre qual a melhor forma de educar os filhos, o
que contribui para a dificuldade em construir a noção de limites.
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Com base nos estudos realizados, podemos dizer que, no aspecto moral, a
criança passa por uma fase pré-moral, caracterizada pela anomia (ausência de
regras), e pelo ‘egocentrismo’ infantil. Aos poucos, a criança vai entrando na fase da
moral heterônoma e caminha gradualmente para a fase autônoma.
Na fase de anomia, natural na criança pequena, ainda no egocentrismo, não
existem regras e normas. O bebê, por exemplo, quando está com fome, chora e
quer ser alimentado na hora. As necessidades básicas determinam as normas de
conduta. No indivíduo adulto, caracteriza-se por aquele que não respeita as leis,
pessoas, normas.
Na medida em que a criança cresce, ela vai percebendo que o mundo tem
suas regras. Ela descobre isso também nas brincadeiras com crianças mais velhas,
que são úteis para ajudá-la a entrar na fase de heteronomia. Nesta fase é muito
importante a relação que se estabelece entre o adulto e a criança, mas também se
torna imprescindível uma convivência entre pares e a interação entre as crianças.
Na moralidade heretônoma, os deveres são vistos como externos e impostos
coercitivamente, e não como obrigações elaboradas pela consciência. O certo é a
observância da regra e o cumprimento das normas. A responsabilidade pelos atos é
avaliada de acordo com as conseqüências objetivas das ações e não pelas
intenções. O indivíduo obedece às normas por medo da punição. Na ausência da
autoridade, ocorre desordem e indisciplina.
Na moralidade autônoma, o indivíduo adquire a consciência moral. Os
deveres são cumpridos com consciência de sua necessidade e significação. Possui
princípios éticos e morais. Na ausência da autoridade, continua o mesmo. É
responsável, auto-disciplinado e justo. A responsabilidade pelos atos é proporcional
à intenção e não apenas pelas conseqüências do ato.
Penso que o processo educativo deve conduzir a criança a sair de seu
egocentrismo, natural nos primeiros anos, caracterizado pela anomia, e entrar
gradualmente na heteronomia, encaminhando-se, naturalmente, para a sua própria
autonomia moral e intelectual que deve ser o objetivo final da educação moral.
Esse processo de descentração conduz do egocentrismo (natural na criança
pequena) caracterizado pela anomia, à autonomia moral e intelectual. Do
egocentrismo inicial a criança, gradualmente, vai ‘saindo’ de si mesma, ampliando
sua visão de mundo e percebendo que faz parte de um todo maior. Gradualmente,
aprende a cooperar, a respeitar e a amar o próximo.
46
As atividades de cooperação, num ambiente de respeito mútuo, embasado na
afetividade, preservam do egoísmo e do orgulho, auxiliando a criança no longo
processo de descentração, conduzindo-a gradativamente da heteronomia para a
autonomia moral. Um ambiente de medo, autoritarismo, respeito unilateral tende a
perpetuar a heteronomia.
Neste trabalho, busquei, através da pesquisa de campo, perceber e refletir
sobre como os professores da educação infantil auxiliam, ou não, seus alunos no
processo de construção dos limites. Foram observadas duas professoras que atuam
com crianças de quatro a seis anos, em duas escolas da zona sul de Porto Alegre. A
partir da análise dos diários de campo, foram levantadas categorias de intervenção
das educadoras.
Analisando tais categorias, com base nos estudos bibliográficos realizados e
refletindo sobre os comportamentos e modos de intervenções das educadoras, pude
perceber que a professora ‘1’ mantém uma relação de coação, onde existe um
respeito unilateral, fortalecendo assim a moral heterônoma das crianças. Esta
professora não leva em consideração o interesse das crianças, impede a interação
entre as mesmas e toma todas as decisões sozinha. Utiliza ameaças, chantagens e
punições como forma de controle sobre os comportamentos das crianças e impede
que realizem pequenas tarefas das quais já possuem capacidades para exercer.
Quanto à professora ‘2’, posso dizer que a maneira como ela conduz as
atividades em sala de aula, auxilia seus alunos no processo de construção dos
limites, pois tenta promover uma relação de cooperação com os mesmos, onde
prevalece
o
respeito
mútuo
e
a
reciprocidade,
promovendo,
assim,
o
desenvolvimento da autonomia das crianças. Esta professora permite e incentiva a
interação entre as crianças, dá oportunidade de fazerem escolhas, incentiva as
crianças a exercerem pequenas atividades, dando-lhes responsabilidades de acordo
com suas capacidades, incentiva as crianças a pensarem e refletirem sobre
acontecimentos, bem como utiliza argumentos e explicações claras e objetivas,
levando as crianças a colocarem-se no lugar do outro, promovendo, assim, uma
descentração do pensamento.
Segundo Araújo (1996, p. 111):
[ . . . ] ambiente escolar cooperativo é um ambiente assim denominado
porque nele a opressão do adulto é reduzida o máximo possível, e nele
encontram-se as condições que engendram a cooperação, o respeito
47
mútuo, as atividades grupais que favorecem a reciprocidade, a ausência de
sanções expiatórias e de recompensas, e onde as crianças têm
oportunidade constante de fazer escolhas, tomar decisões e de expressarse livremente[ . . . ].
Penso que, cada vez mais, se faz necessário que as professoras reflitam
constantemente sobre suas práticas, revendo métodos e conceitos sobre o que é
ter um bom comportamento, a fim de permitir um ambiente escolar que dê
possibilidades às crianças de construírem suas próprias noções de limites e
desenvolvam uma autonomia moral. Por isso, ressalto a importância de uma boa
formação, bem como considero essencial a formação continuada, onde devem ser
abordados assuntos relacionados à temática em questão.
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Pedagógica, Porto Alegre, v. 4, n. 13, p. 21-24, maio/jul. 2000.
APÊNDICE A — CARTA DE APRESENTAÇÃO DA UNIVERSIDADE
50
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DEBAS – Departamento de Estudos Básicos
Porto Alegre, ____ de ____________ de ________.
SENHOR/A DIRETOR/A:
Ao cumprimentá-lo/a apresentamos a V.Sa. a/o universitária/o Benisia
Grosser Ferreira, regularmente matriculada/o no Curso de Pedagogia.
Solicitamos permissão para que a/o aluna/o possa realizar trabalho prático de
pesquisa educacional para fins do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
Vale mencionar que o comprometimento tanto da instituição como da/o
aluna/o que ora se apresenta é de respeitar os valores éticos que permeiam esse
tipo de trabalho. Desta forma, informamos que quaisquer dados obtidos junto a esta
instituição estarão sob sigilo ético.
Desde já agradecemos sua atenção e cooperação.
____________________________
Luciane M. Corte Real
Professor/a Orientador/a do TCC
APÊNDICE B — AUTORIZAÇÃO DAS EDUCADORAS
51
AUTORIZAÇÃO
Eu,
________________________________________________,
educadora
de
educação infantil, autorizo a utilização dos dados coletados durante observações e
em outras fontes, para fins de pesquisa sobre a construção dos limites na educação
infantil (trabalho realizado junto à faculdade de educação da UFRGS, como requisito
para a obtenção do título de licenciatura em pedagogia). Por outro lado, a
pesquisadora Benisia Grosser Ferreira, aluna da UFRGS, compromete-se a manter
em sigilo os dados que possam identificar os sujeitos envolvidos, evitando, dessa
forma, qualquer prejuízo que possa advir do uso dos mesmos.
Porto Alegre, outubro de 2009.
Assinatura: _______________________________
APÊNDICE C — AUTORIZAÇÃO DOS PAIS
52
AUTORIZAÇÃO
Eu, ________________________________________________, responsável pelo
aluno ______________________________________________________ autorizo a
utilização dos dados coletados durante observações e em outras fontes, para fins de
pesquisa sobre a construção dos limites na educação infantil (trabalho realizado
junto à faculdade de educação da UFRGS, como requisito para a obtenção do título
de licenciatura em pedagogia). Por outro lado, a pesquisadora Benisia Grosser
Ferreira, aluna da UFRGS, compromete-se a manter em sigilo os dados que possam
identificar os sujeitos envolvidos, evitando, dessa forma, qualquer prejuízo que
possa advir do uso dos mesmos.
Porto Alegre, outubro de 2009.
Assinatura: _______________________________
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