1 P.º n.º R.P. 46/2010 SJC-CT Advertência, pelo Notário, às partes da ineficácia que atinja o acto. Aplicabilidade à inoponibilidade/ineficácia prevista no artigo 819.º do Código Civil. Omissão da referida consignação. Consequências em sede de qualificação registal. DELIBERAÇÃO Em …/…/…, no cartório de que é titular, reduziu o sr. notário recorrente a escritura pública a compra e venda convencionada entre a sociedade “…, Unipessoal, Lda” e ..., pela qual a primeira declarou vender e a segunda comprar o prédio urbano representado na ficha … da freguesia de …, concelho da ... A mais da referência à inscrição de aquisição a favor da vendedora, cuidou-se, no documento, de fazer menção expressa à subsistência, sobre o bem transaccionado, de antecedentes registos de hipoteca e de penhora, devidamente individualizados. Na mesma data, dando cumprimento à obrigação de registar em que legalmente, com a elaboração do título, ficou constituído, o sr. notário submeteu por via electrónica (em www.predialonline.pt) o correspondente pedido, cuja apreciação, sob a ap. …, coube automatizadamente deferida à conservatória de … Frustrado o sub-procedimento de sanação de deficiências que no seu contexto se organizou, o registo de aquisição redundaria efectuado com a natureza de provisório por dúvidas, que o sr. conservador, em despacho de …/…/…, fez radicar na circunstância de na escritura se não haver feito “advertência às partes da ineficácia (ou inoponibilidade em relação à execução) da transmissão”. Invocou, de direito, as normas dos arts. 819.º, do CCivil, e 174.º/2, do CN).1 Inconformado, em …/…/… o sr. notário veio interpor o presente recurso hierárquico, cujos integrais termos aqui damos por reproduzidos. Tirou, em síntese da argumentação que desenvolveu, as seguintes conclusões: A) Não existe no ordenamento jurídico qualquer norma que proíba ou limite a 1 A anotação da notificação da qualificação desfavorável (cfr. art. 71.º/1 CRP) fez-se em .../…/…, data que nela também ficou a constar como correspondendo à da realização da notificação. Trata-se certamente de lapso de escrita; dos autos inequivocamente resulta ter a mesma ocorrido em …/…/… (3.º dia após o registo postal – cfr. ponto II do Despacho n.º 71/2008). 2 disposição dos bens penhorados, pelo que o acto de disposição de bens penhorados é válido e eficaz entre as partes2; B) A disposição de bens penhorados é meramente inoponível à execução; C) O artigo 174.º n.º 2 do Código do Notariado apenas se aplica aos casos de ineficácia que directamente afecte as partes intervenientes no acto notarial, e não aos casos de mera inoponibilidade relativamente a terceiros que não são parte no negócio. D) Não compete ao conservador no âmbito do seu poder de qualificação, ajuizar sobre o cumprimento, pelo notário, de normas que, não estando dirigidas à validade ou regularidade formal (ou substancial) do negócio, antes constituem um comando dirigido à sua actuação como profissional a quem a Lei impõe o cumprimento de determinados deveres (artigo 174 n.º 2, artigo 5º n.º 1 do Código do Notariado e artigo 11.º n.º 2 do Estatuto do Notariado). À luz do que, a final, peticionou a reparação da decisão recorrida. Cumprindo o disposto no art. 142.º-A/1 do CRP, o recorrido exarou despacho no qual enuncia as questões que em seu entender no processo se suscitam e a que urgirá, por isso, responder; são elas: 1) a de saber se a transmissão do direito de propriedade de prédio sobre o qual incidam registos de penhora determina a ineficácia do acto; 2) a de saber se, ocorrendo tal ineficácia, está ou não o notário obrigado à advertência dela; 3) a de saber, por fim, se, no âmbito da qualificação dos títulos que lhe são presentes, compete ao conservador controlar o cumprimento pelo notário do dever de efectuar a referida advertência. Ao que a tudo respondeu afirmativamente. Quanto à primeira questão, remete para o disposto no art. 819.º do CCivil: se se estatui a inoponibilidade em relação à execução dos actos de disposição dos bens penhorado, é porque não produzem tais actos, perante ela, quaisquer efeitos. Quanto à segunda questão, socorre-se dos ensinamentos de MOTA PINTO3 para isolar a noção de ineficácia em sentido estrito, na qual por sua vez se contêm as sub-categorias de ineficácia absoluta (operando erga omnes, invocável por qualquer interessado) e de ineficácia relativa (operando em relação a pessoas determinadas, só elas podendo invocá-la), sendo que é esta segunda modalidade a que na alienação de bens penhorados está em causa. Em sua opinião, a ineficácia a que se reporta o art. 174.º/2 recobre todo o espectro de casos de ineficácia estrita, quer absoluta quer relativa. 2 Sublinhado no original. 3 In “Teoria Geral do Direito Civil”, 1992, págs. 605 a 607. 3 No que toca à terceira e última questão, o problema, tal como o enquadra, é de regularidade formal, inserindo-se a menção da advertência nas formalidades comuns dos actos notariais (arts. 46.º/1/l e 50.º do CN). Assim, ilustra, “Se o negócio celebrado por gestor ou procurador sem poderes para o acto deve ser qualificado como provisório por natureza [art. 92.º/1/f CRP], é porque o conservador deve ajuizar do que o notário disser na escritura a propósito do requisito contido no art. 46.º, n.º 1 al. e) CN. Se o notário faltar ao cumprimento da formalidade, o registo tem de ser qualificado como provisório por dúvidas (art. 70.º CRP), pois o conservador tem de ter elementos que lhe permitam decidir.” Mais diz que vai no sentido de que ao conservador compete fiscalizar o cumprimento, pelo notário, da formalidade da explicação do conteúdo dos actos a posição que vem sendo defendida prelos serviços do IRN, oferecendo como testemunho disso os pareceres tirados nos processos CN 34/2005, RP 131/2006 e CP 81/2009. ***** Expostas as posições em confronto e não se suscitando questões prévias ou prejudiciais que obstem ao conhecimento do mérito, sobre ele cumpre tomar posição. O que se faz adoptando a seguinte Deliberação 1) Nas figuráveis concretizações do conceito de ineficácia jurídica em sentido estrito cuja ocorrência o n.º 1 do art. 174.º do CN diz não constituir causa legítima de recusa de prática do acto deve incluir-se a inoponibilidade com que o art. 819.º do CCivil sanciona os actos de disposição, oneração ou arrendamento que o executado pratique sobre bens penhorados; consequentemente, estando em causa a formalização de um qualquer dos referidos actos, fica o notário obrigado, ex vi do n.º 2 do mesmo art. 174.º, primeiro, e perante as partes, a adverti-las da existência duma tal ineficácia, e segundo, no que toca aos termos do instrumento, a nele incluir a menção de haver efectuado a advertência.4 4 O artigo 174.º do CN, na determinação de cujo alcance toda a discussão se centra, integra o breve capítulo do diploma dedicado às recusas, que se completa com o art. antecedente: neste (art. 173.º) indicamse as situações típicas (mas não taxativas, ao que se crê) em que o notário deve recusar a prática do acto, à cabeça das quais se indica a de o acto enfermar de nulidade; no art. seguinte, em complemento, precisa-se, no n.º 1, que “A intervenção do notário não pode ser recusada com fundamento de o acto ser anulável ou ineficaz”, e, no n.º 2, que o notário em tais casos fica porém obrigado não só a advertir as partes acerca da ocorrência do vício (o que, parece, decorreria já do dever geral de esclarecimento do valor e alcance do acto, a 4 2) Em todo o caso, a falta de consignação daquela advertência, caso aconteça, constituirá mera preterição de formalidade de que se compõe o modelo legal de redacção do documento, cuja verificação por si só não determina que o acto de registo que nele se baseie se tenha que admitir em termos minguantes.5 Termos em que ao recurso se deve conceder provimento. que indeclinavelmente se encontra adstrito, pelo que o ditame, neste aspecto, terá o seu quê de redundante – cfr. CN, arts. 4.º/1, 46.º/1/l, e 50.º), como outrossim a consignar no instrumento essa mesma advertência. O requisito, na parte em que se estende à ineficácia, só obteve consagração na lei notarial com o CN de 1995, aprovado pelo DL n.º 207/95, de 14-8; no Código de 1967, o art. correspondente (191.º) recortava a sua previsão unicamente aos casos de invalidade em razão de anulabilidade (“A intervenção dos notários não pode ser recusada com o simples fundamento de o acto ser anulável”, dizia-se). A alteração mereceu do legislador esta nota explicativa, no exórdio do diploma de aprovação (ponto 11.): “No capítulo das recusas, foi objecto de referência legal expressa, a par da anulabilidade, a circunstância de a ineficácia dos actos não ser motivo de recusa, consagrando-se, assim, uma orientação já há muito adoptada na prática notarial.” Quando de um acto se diz que é ineficaz, não é invariavelmente a mesma realidade que se significa. Se é certo que sempre se designará um fenómeno de não produção de efeitos jurídicos, são contudo muito diferenciadas as situações e os modos por que essa ausência de efeitos se pode manifestar: a diferença residirá umas vezes no facto-causa, outras na ratio que a determina, outras ainda nas esferas jurídicas subjectivamente atingidas. Mesmo afastando do campo útil do conceito a não produção de efeitos provocada pela invalidade do acto, e limitando a sua abrangência ao que MOTA PINTO apelida de ineficácia em sentido estrito (op. cit., p. 605), nele caberão tanto a ineficácia do negócio subordinado a condição suspensiva (CCivil, arts. 270.º e 274.º), como a ineficácia (inoponibilidade) dos actos de disposição dos bens penhorados que o executado pratique (CCivil, art. 819.º), como a ineficácia decorrente da falta de poderes do representante (CCivil, art. 268.º/1). À parte as evidentes especificidades que se surpreendem em cada um dos apontados exemplos de ineficácia, resulta porém claro, como adverte PEDRO PAIS DE VASCONCELOS (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 2007, p. 752), que “A ineficácia não é um vício do negócio [mas sim] simplesmente a sua falta de efeitos próprios, a sua não-eficácia”. Na mesma linha, reflecte MENEZES CORDEIRO (in “Tratado de Direito Civil Português”, I, 2000, p. 654) que “A ineficácia em sentido estrito traduz a situação do negócio jurídico que, não tendo, em si, quaisquer vícios não produza, todavia, todos os seus efeitos, por força de factores extrínsecos”. Peca por conseguinte por falta de rigor conceitual a letra do n.º 2 do art. 174.º do CN ao servir-se da noção de “vício”, indistintamente, quer para a anulabilidade, quer para a ineficácia (em bom rigor, de resto, nem a anulabilidade constitui vício, mas sanção de vício). Mas que situações de ineficácia em sentido estrito afinal cabem na fattispecie do art. 174.º? Cabe decerto, e manifestamente, a ineficácia que no art. 268.º/1 CCivil se estatui para o representante sem poderes (quer actue como procurador, quer como gestor de negócios – cfr. art. 471.º do CCivil), sendo que, aí, é a própria vinculação da parte “representada” que está em causa – em face de quem o acto será portanto res inter alios. O elemento extrínseco impeditivo da plena eficácia do acto na esfera jurídica do “representado” reside, quer na prévia não concessão, por este ao agente, e pelo meio próprio, dos necessários poderes, quer na não sucessiva ratificação, por aquele, do acto praticado em seu nome. A absoluta falta de efeitos do acto em relação à parte “representada”, enquanto ela para si o não quiser assumir, bem justifica o 5 Deliberação aprovada em sessão do Conselho Técnico de 28 de Julho de 2010. António Manuel Fernandes Lopes, relator. Esta deliberação foi homologada pelo Exmo. Senhor Presidente em 16.08.2010. primacial dever de advertência e o secundário dever de consignação. Diferentemente se passam as coisas na ineficácia derivada da aposição de condição ou termo suspensivo (CCivil, arts. 270.º e 278.º). Na verdade, como sublinha H. EWALD HÖRSTER (in “A Parte Geral do Código Civil Português”, 2005, p. 493), “o negócio condicional produz de imediato aqueles efeitos indispensáveis para que, no momento da verificação da condição, se possam produzir os efeitos pretendidos, antes subordinados à condição”, [sendo] “Os efeitos produzidos de imediato… a expressão do facto de o negócio condicional, por ser um negócio validamente concluído, implicar desde já uma vinculação mútua das partes.” A ineficácia, neste âmbito, é directamente imputável à vontade negocial das partes, e constitui ela mesma um efeito negocial – é um efeito do negócio, tal como foi concertado pelas partes, que desde o princípio as vincula, que o surto dum certo conjunto de efeitos fique dependente da verificação dum evento futuro e incerto, ou que se dê a partir dum determinado momento. Ora não foi por certo com uma tal ineficácia, enquanto dispositivo técnico de que as partes conscientemente se socorrem no quadro duma autónoma regulação de interesses, que o legislador particularmente se preocupou e teve em vista na reformulação a que em 1995 submeteu o art. 174.º. Na decisão do legislador de exigir, também para os casos de ineficácia, a advertência e a respectiva consignação, já no entanto cremos que terá pesado a consideração da inoponibilidade a que o art. 819.º do CCivil se reporta, e que atinge os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados efectuados pelo executado, os quais se têm “como válidos e eficazes em todas as direcções menos em relação à execução, para a qual são havidos como se não existissem” (ANSELMO DE CASTRO, in “A Acção Executiva Singular, Comum e Especial”, 1977, p. 156). Na verdade, e ao contrário do que defende o sr. notário impugnante, a referida ineficácia/inoponibilidade é às próprias partes de qualquer daqueles actos jurídicos que muito directamente afecta. Com efeito, como nota LEBRE DE FREITAS (in “A Acção Executiva”, 2009, p. 266), “se… da execução resultar a transmissão do direito do executado, o direito do terceiro que tiver contratado com o exequente caduca … (art. 824 CC).” Ora é de importância crítica que as partes, no momento da contratação, estejam perfeitamente cientes desse possível radical e melindroso desfecho, e que a vontade de contratar sãmente incorpore esse conhecimento. E daí que faça todo o sentido, por via de disposição expressa, impor ao notário a advertência de semelhante ineficácia (com concretização do seu significado, como é óbvio, sob pena de se reduzir a pouco mais do que vazia proclamação), bem como a mencioná-la no texto do acto. 5 A menção, no instrumento, da advertência feita às partes acerca da ineficácia que atinja o acto constitui formalidade cuja omissão, representando incumprimento de obrigação legal que sobre si impende, expõe o notário a diferentes níveis/planos de responsabilidade. Seja como for, não temos dúvidas em afirmar que é a omissão da advertência em si mesma o que será substancialmente censurável, muito mais do que a não inclusão do aviso no acto notarial – e, no entanto, só este aspecto formal do cumprimento da obrigação, porque se manifesta em objectivo desvio do modelo legal especificado, é que está ao alcance do conservador sindicar. Não deixando de ser certo, por outro lado, que a simples falta da consignação da advertência não é 6 Processo RP 46/2010 SJC-CT Súmula das questões tratadas • Ineficácia do acto notarial – dever de advertência e sua consignação no texto do instrumento (art. 174.º do CN): o Inoponibilidade prevista no art. 819.º do CCivil para os actos praticados pelo executado sobre os bens penhorados: sujeição à disciplina daquele art. 174.º o Irrelevância, em sede de qualificação, da falta de consignação da advertência. conclusiva, mas meramente indiciadora, de que a ela, de viva voz, se não procedeu. O que o incumprimento da formalidade não provoca, porém, é a invalidade formal do instrumento. Por um lado, não está em causa a inobservância da forma legal exigível para a válida expressão da vontade negocial (CCivil, art. 220.º), nem o CN, no catálogo de nulidades do acto que prevê (art. 70.º/1), a contempla; por outro lado, também não se descortina na injunção a carga de imperatividade que, preterida, fizesse razoável activar a sanção do art. 294.º do CCivil. Cremos, na verdade, que a razão de ser da exigência da consignação da advertência repousa numa dupla preocupação: primeiro, e em tutela das partes, garantir que o notário se não olvida de fazê-la, com a explicação adicional que cada tipo de ineficácia em concreto reclamar, de maneira a que os outorgantes fiquem completamente esclarecidos quanto ao conteúdo do negócio, e bem assim dos termos em que a esfera jurídica das partes por ele resulta afectada; segundo, e em tutela do próprio notário, defendê-lo contra uma eventual alegação, de que nunca se está livre, de ter incumprido a dita advertência. Ora, por muito ponderosos que estes motivos sejam – que outros não vislumbramos –, em nenhum, ou na soma dos dois, reconhecemos nós aquele grau de importância capaz de imprimir ao art. 174.º/2 do CN o valor de disposição legal imperativa a cuja ofensa o ordenamento drasticamente reage com a sanção da nulidade. Por conseguinte, se a não menção da advertência não prejudica a validade do acto que se apresenta a qualificação, e se não se traduz a omissão em mais do que simples irregularidade (em mera “imperfeição” do instrumento), logo daí decorre que a qualificação não deverá disso, e por causa disso apenas, ressentir-se. Se, por ex., na escritura de compra e venda se declara que “A” intervém como gestor de negócios em representação do comprador “B”, o conservador sabe que o registo de aquisição que a favor “B”, baseado nesse título, sem mais, se promova, terá que ser efectuado nos termos da al. f) do n.º 1 do art. 92.º CRP, conste ou não da escritura a consignação da dita advertência. (De maneira um tanto diferente se passam as coisas no caso do procurador com falta de poderes, dado que, aí, a menção da advertência será em princípio o único meio que o conservador tem de aceder ao conhecimento da ineficácia.) Dir-se-á, por fim, que não encontramos, nos pareceres dos serviços invocados pelo recorrido, abono algum para a posição que sustenta a respeito da sindicabilidade, pelo conservador, do cumprimento, pelo notário, do dever de efectuar a advertência. O que em tais pareceres estava em causa, basicamente, era saber se a feitura de termo de autenticação exige, da parte do autenticador, a prestação de explicação acerca dos efeitos jurídicos decorrentes do acto, para o efeito de apurar da sua delegabilidade (art. 8.º do EN); a temática aí é muito outra: é a da definição dos limites da área reservada de competência absoluta do notário. 7