ESTUDO SOBRE LIMINAR POSSESSÓRIA VIA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA Eulâmpio Rodrigues Filho Já deparamos com processo sobre demanda judicial possessória em que ocorrera perda da possibilidade de se obter liminar, em razão do decurso de mais de ano e dia entre a ocorrência do fato e a postulação. Nesse caso lembrado, houve, então, com base nos arts. 273 e 461-A e parágrafos do CPC, pedido de Antecipação da Tutela visando à obtenção de comando decisório judicial executório “liminar” relativo a cumprimento da obrigação de fazer (retirar cercas e construções) e pedido principal em busca de decisão final “possessória”. Para tanto, a promovente da ação valeu-se de “Enunciado” (nº 238) dito oriundo do Centro de Estudos Jurídicos do Conselho da Justiça Federal, que, se for tal como transcrito, estaria equivocado, assim redigido: “238 - Ainda que a ação possessória seja intentada além de ‘ano e dia’ da turbação ou esbulho, e, em razão disso, tenha seu trâmite regido pelo procedimento ordinário (CPC, art. 924), nada impede que o juiz conceda a tutela possessória liminarmente, mediante antecipação de tutela, desde que presentes os requisitos autorizadores do art. 273, I ou II, bem como aqueles previstos no art. 461-A e parágrafos, todos do CPC.” De fato, tal enunciado, como sói acontecer com brocardos outros, a despeito de expressar através de acanhado resumo quase que uma “ciência toda”, parece portar grave equivocidade, que teria conduzido a própria autora a situação equivalente ao lavrar sua inicial. Realmente, o enunciado estabelece que nada está a impedir o Juiz de conceder tutela em ação possessória de procedimento ordinário (o procedimento sempre é ordinário, apenas havendo mais a fase liminar na possessória de força nova), desde que presentes os requisitos autorizadores do art. 273, I ou II, que se contentam com mera “verossimilhança” e não exigem prova oral a despeito do caráter factual da posse, bem como dos requisitos previstos no art. 461-A e parágrafos, todos do CPC. Pois bem. Deslembrados aí, acredita-se, pressupostos indispensáveis, consagrados no mesmo Código de Processo, definidores do quadro ensejador da liminar, como os dos arts. 924, 927, seus incisos, e 928, que aliás acórdão do TJMG, também citado na petição, evocou com justeza, assim: 1 “Ação de Reintegração de Posse - Força Velha -Antecipação da Tutela Possibilidade - Ante o cunho ordinário que deve ser conferido à ação possessória de força velha, consoante previsto no art. 924 do CPC, cabível é o pedido de antecipação da tutela, cujo êxito depende da comprovação da posse, de sua consequente perda, e também da presença dos requisitos do art. 273 do CPC. Correta é a decisão que, com base na prova até então produzida, defere antecipação de tutela, para que um dos condôminos se abstenha de utilizar, indevidamente, área de uso comum em prejuízo dos demais” (Agravo n° 1.0024.05.846649-1/001 - Comarca de Belo Horizon te - Relator: Desemb. Guilherme Luciano Baeta Nunes - Data da Publicação do Acórdão: 25.05.2006) (grifei). O princípio legal incidente no caso tem sua expressão na forma da doutrina: “Comentário - Ação Possessória - Nos termos do disposto no art. 928 do CPC, a reintegração initio litis, sem citação da parte contrária, só é possível quando a petição inicial for instruída com prova da posse e do esbulho. Como não é fácil instruir a inicial com tal prova, já que fotografias, documentos fornecidos por terceiros, cópias de inquéritos não se prestam a tal propósito, o normal é o juiz designar audiência de justificação, que só pode ser realizada mediante citação do réu, que nessa fase não pode se defender nem produzir provas, podendo através do seu advogado somente inquirir as testemunhas (reperguntar) - art. 928, final, do CPC. Justificados a posse e o esbulho, o juiz concede liminar de reintegração de posse, e a partir da intimação ao réu, do despacho concessivo, passa a correr o prazo de 15 dias para contestação (art. 930, parágrafo único, do CPC), seguindo a ação no procedimento ordinário (art. 931 do CPC)” (Rodrigues Filho, Eulâmpio. Código Civil Anotado. Porto Alegre, S. Paulo, Rio e Recife, 2001, p.580). Sobre o tema, vem a pelo a lição extraordinária ditada pelo Dr. José Augusto César, antigo Professor de Direito das Coisas no Largo S. Francisco: “O domínio é um vínculo invisível. A posse é um fato: prova-se por testemunhas. É uma exterioridade, é uma visibilidade. O domínio precisa provar-se por documentos, porque é um título jurídico apenas. (...) O domínio [ou a propriedade] vincula a nossa vontade à coisa, na sua substância, acidentes e acessórios, como vamos ver” (Preleções de Direito Civil. S. Paulo, [s.d.], p.105, apud Rodrigues Filho, Eulâmpio, cit., p.599). Além disso, o Enunciado em evidência parece ostentar-se de maneira a negar força executória mandamental à decisão possessória quando determina se promova a sua execução na forma do art. 461-A e parágrafos, de molde a renegar a natureza da própria ação, sincrética, pois sua finalidade é manter ou reintegrar o autor na posse, intimando-se o réu disso, e não desalojá-lo ex abrupto antes dessa intimação. 2 Essa ideia afigura-se em harmonia com a posição do Superior Tribunal de Justiça sobre a questão: “Art. 461-A: 2. ‘Nas ações possessórias, a sentença de procedência tem eficácia executiva lato sensu, com execução mediante simples expedição e cumprimento de um mandado’ (RSTJ 17/293). No mesmo sentido: STJ, 4ª T., REsp 14.138-0-MS, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, j. 20.10.93, não conheceram, v. u., DJU 29.11.93, p. 25.882; RT 487/204, 492/171, 494/132, 549/189, 550/166, 653/187, RJTJESP 109/33, Bol. AASP 949/23” (apud Negrão, Theotonio; Gouvêa, José Roberto F. CPC. 39.ed., 2007, p.553). A despeito de existirem lições ensinando que sobre julgamento possessório incide força sentencial a versar obrigação de “entrega de coisa”, tem-se que semelhante raciocínio foge à essência da ação e, a prevalecer, em tese, esse entendimento que parece equivocado, a realidade é a de que, em hipótese assim, lícita seria a abertura de caboucos para oposição de embargos à execução, embargos de retenção, etc., em descompasso com toda a mecânica criada pelo Direito sedimentado e pelo sistema legal. Tanto que o Direito científico revela entrever na lei fácil solução para a hipótese alevantada: “Os interditos possessórios e as ações de despejo constituem procedimentos executivos lato sensu, no entender da doutrina e jurisprudência predominantes. A lei processual prevê embargos de retenção por benfeitorias no processo de execução de sentença condenatória para entrega de coisa certa. Porém, esta é modalidade de execução de sentença que não se estende à ação possessória, eis que é executiva em si mesma - executiva lato sensu -, dispensado o procedimento de execução forçada” (Ac. unân. da 7ª Câm. do 1º TARJ, Apel. 87.905; Adcoas, n. 95.037). Ora, os interditos relativos à manutenção e à reintegração são os propriamente possessórios, em sentido estrito, vez que somente através deles a posse, e unicamente ela, é tutelada de um modo direto, porque tende ao restabelecimento da situação de fato imediatamente anterior à turbação ou ao esbulho. Nesse sentido, a posição doutrinal de Hernández Gil (La Posesión. Madrid: Civitas, 1980, p.700), que, a respeito da reintegração de posse em razão de esbulho, também explicita, p. 705, in verbis: “El despojo constituye la perturbación posesoria tutelada con la acción de recobrar, ejercitable en el proceso especial y sumario de interdicto (del mismo nombre), como médio tendente a hacer efectiva, lo más inmediatamente posible, la tutela jurisdiccional que, no obstante, es alcanzable también a través de un proceso ordinário. Este no ha de ser necesariamente el petitorio, 3 procedente siempre antes o después del interdicto; puede tener también um contenido estrictamente posesorio.” A propósito de semelhantes decretos empobrecedores da ciência jurídica, o saudoso Prof. Vicente Ráo, da USP (Ato Jurídico. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p.166 e s.), lembrava: “(...) De Ruggiero nos adverte que ‘na antiga escolástica e na prática do foro surgiram, aos poucos, inúmeros brocardos e aforismos jurídicos repetidos até hoje pelos práticos e considerados como expressões de regras fixas e princípios absolutos - brocardos e aforismos que soam como provérbios de sabedoria jurídica, mas, na realidade, constituem perigosos instrumentos...; e tendo, embora, a aparência de princípios gerais, deles um só não há que, como máxima geral, não seja falso’. (...). Essas máximas não traduzem princípios absolutos e imperativos de direito, cumprindo, antes, ao juiz e ao intérprete acautelarem-se contra o sentido geral e cogente que se lhes costuma atribuir” (grifei) Em igual senso vem o antigo professor da matéria, Dr. Astolpho Rezende (As Acções Possessórias. Rio de Janeiro e Belo Horizonte: Francisco Alves/ Paris e Lisboa: Aillaud Alves, 1914, p.5): “Há quem entenda que a exclusiva atenção às autoridades propende necessária e quase fatalmente a que o trabalho de interpretação jurídica se converta pura e simplesmente em classificação de antecedentes, em repertório ou manancial de notícias, que podem ser conhecimentos muito úteis, mas certamente não constituem uma obra científica, e antes uma obra de puro empirismo.” De sorte que, além de aparentemente descabido o pedido ora comentado, a tutela que se pretende antecipar (própria do petitório) não guarda qualquer correspondência com o comando da sentença que no caso referido se pretende pelo possessório, caracterizando, imaginamos, impropriedade querer antecipação de resultado em desconcerto com o perseguido resultado da demanda. Melhor talvez seria a lei eliminar logo a possessória de força velha e, aproveitando, excluir de vez, do nosso Direito, a prescrição, a fim de se evitarem contorcionismos como o ora comentado e o outro parecido, a vagar pelo “buraco negro” da monitória. 4