SENTIDO do AFETO Iacy Sillva Rampazzo1 O primeiro aprendizado que sofremos é o sensorial. Nele existe a possibilidade de sermos edificados para direções distintas, dependendo da forma como somos cuidados. E, conforme a forma que sentimos esses mesmos cuidados, somos formatados ou formados. Somos sensações que potencializam nossa presença em nós, no conforto ou desconforto das experiências vividas. Construção infinda a várias mãos, que a linguagem afetiva vai validando ou não nossos entrelaçamentos, conquistas, parcerias, diálogos e ainda o corpo, como único receptor que capta as mesmas sensações, transformando-as em nãos e sins; dando autorização para a sua manutenção. O primeiro papel dos sentidos. Num dia de inverno, fui acordar meu filho para ir à escola, e nada dele reagir. Fui na sua orelha e disse: Alexandre, acorda ! Vem ver um dia que você nunca viu! Imediatamente ele despertou e sentou. Foi um dínamo. E na terça-feira agora, fui acordada com um telefonema e a frase: é terça-feira, acorda e veja uma terça que você nunca viu. Foi muito bom ouvir isso e acordar para um dia que nunca tinha visto. Um dia em branco. Assim, arte no cotidiano é também ver o que nunca foi visto antes, porque é seguinte, é outro. Arte no cotidiano, ao redor, próximo, provocado pela visão de perto. É dinâmica, porque tudo está aqui, ali, aí. Nada lá, nada depois, amanhã, quando eu crescer, quando eu tiver dinheiro, quando eu for... quando?. O quando é agora, fusão dos tempos passado, presente e futuro; tempo de curiosidade e do fazer. Lá, dá ansiedade, é depois...tempo de permanência no sonhar. 1 Médica pediatra cursou técnicas corporais segundo Reich e videoterapia, com o psiquiatra e psicanalista Dr. José Angelo Gaiarsa (SP). Desenvolveu uma técnica baseada na evolução natural da criança, na reeducação dos sentidos e reconstrução da infra-estrutura afetiva, exercícios respiratórios, que denominou: Trabalho Elementar do Corpo (TEC). Acompanhou pesquisas sobre o sentido do tato, no Hôpital Saint-Louis (Paris), com a psiquiatra, psicanalista e dermatologista Danièle Pomey-Rey. Autora do livro infantil O gato Tom e o tigre Tim (3ª ed.)ed. Lamparina. A vida passa a ter sentido, quando você se autoriza a tomar posse do seu modo único de sentir. E a tomada de consciência é sempre essa aquisição, que leva ao envolvimento com pessoas e processos. Os principais sentidos: visão (olhar- ver); audição(ouvir - escutar); olfato(direcionamento- inspiração);paladar(escolha)tato(noção do conjunto pele), propriocepção (sensação centramento(equilíbrio);afeto(síntese- envolvimento) do movimento) Os sentidos são identificações nossas, endossadas pelo sentido do afeto, que coletamos pela vida adentro, como uma colcha de retalhos, em que as escolhas afetivas orientadas pelos cheiros, sabores, toques, olhares, escutas, movimentos dinâmicos, ativos são alicerces nutridores da nossa sustentação de toda uma vida. Andy Wharol tem um olhar que vê. O olhar que vê é dinâmico vê o todo com equilíbrio, porque a pessoa está centrada, e conectada com o universo existente. Valida a existência de pessoas e coisas. Há vida, há movimento, filma, há o momento seguinte que é diferenciado. Quem vê se envolve, se autoriza a mudanças. Há adaptação- que diversifica, inova com diferentes pontos de vista. É onde se constrói Disse aqui do olhar do Andy Wharol e de quem vê. E o olhar de quem olha? É de quem? É de quem não vê. De quem fragmenta, vê como foto. Sempre o mesmo, o que já sabe, que gera ansiedade ao invés da curiosidade existente no olhar que vê. Um olhar desatento, indiferente. Desconectado ou conectado com algo fora de si, sem possibilidade. É´ um não. Nascido do afeto desnutridor de si mesmo e do outro. Sem envolvimento com pessoas e coisas. Não brinca, nem constrói. Quem chega psicologicamente, cego, com olhar que olha, nesse banquete dos sentidos, oferecido por Andy Wharol e o MAES, é tomado por um choque, uma comoção, já que há apenas o excesso de inspiração para manter o medo, lugar conhecido. Não há tentativa para ampliar espaço, na esperança de que algo novo aconteça. E, se nada acontecer, a subexistência dá continuidade a algo que acovarda, paralisa ou agride. Passa a ser desesperador, estar num lugar, onde, não existe troca, entrada e saída de ar; possibilidade de se relacionar consigo mesmo e com o outro. Porém, mesmo ilhados , ao sair para ver algo surpreendente, que os comova, responderão gritando, pulando, ávidos de ar; elemento que autoriza o viver. Sem essa autorização, inspiram e congelam. Peito, tórax, suspensos pelos ombros, para criarem espaço, armazenarem mais ar, material gratuito, generoso. De olhos sobressaltados, desatentos, cansados, não observam. Sem observação, não há calma. Sem a calma, não há visão que vê, audição que escuta; nenhum sentido vivo. Todos embotados. Vida sem sentido. Necessitados de material de custo zero: o afeto. Não é o mar nem o aquário que acalma. O que acalma é o ato de ver. Ver acalma e centra. O olhar de perto, do que fez, concretizou, validou esse artista, que ousou bancar o que era ainda prevalece na idéia de se aproveitar o que está por perto, o que está próximo, economia afetiva. Ao convidar a periferia mais próxima; o gesto suficiente que transforma a existência, pode acontecer algo revolucionário para melhoria de um grupo, de uma pessoa. Sempre alguma melhoria, bem-vinda. No encontro com o grupo, no morro da Piedade, foi interessante a ligação imediata que fiz,com a pediatria ao ouvir os gritos agudos das crianças que deixei entrar na minha orelha ,com prazer. Eu estava lá com outra função, a de observadora do comportamento humano, minha grande paixão. Estava conversando com Sandra, moradora da Piedade, que me relatava com detalhes e interesse, a vida-vivida ou sobrevivida naquele espaço. Os gritos agudos continuaram a me chamar e, quando escutei, sem a superposição da lembrança da pediatria, dirigi-me para o espaço onde estavam todos; os artistas pesquisadores e as crianças. Sentamos no chão e Mariana, pesquisadora, dizia para elas, com calma, o que seria feito ali. Observava as expressões vagas das crianças. Não escutavam, não viam. Eram tomadas provavelmente, por uma fôrma/forma de um cotidiano que se repetia sem alteração interna, portanto sem interação, condição importante para a movimentação/mutante. Ali, vi robotização, crianças imitadoras de si mesmas, áridas, como brinquedos, sem vida própria; somavam sobrevidas. Era um implicando com o outro da mesma maneira, agredindo com socos, rasgando os desenhos, destruindo coisas, ou quietos, indiferentes, com um olhar vago, perdido. Bem diferente, do garoto escolhido para o lambe-lambe, que se sentiu visto, destacado. Na foto, mostra um olhar que vê. Não o conheci antes. Quando lá chegou, com a perna engessada, mesmo assim, chegou com boa postura, alegria, autoridade. Uma presença significativa. Teve a experiência da sensibilidade do cuidar, quando se entristeceu ao ver uma de suas fotos, no morro, rasgada. Morro da Piedade Há proximidade das habitações, que leva à tomada de atitudes decorrente também de uma liberdade elementar do corpo e da necessidade de sobrevivência, como por exemplo: entrar na casa de um vizinho, como extensão da sua. Levar ao médico uma criança doente , cujos pais estão trabalhando, trocar alimentos; favores,etc. .Nessa adaptação contínua, diversificam, inovam e ganham diferentes pontos de vista e constroem aí um afeto nutridor. Assim, a vida na favela preconizou a era da sociedade em rede. Não por uma razão consciente, mas por uma razão estética, em que o corpo se acerta, se alinha como resposta ao imperativo da sobrevivência. Uma inteligência física espantosa. Aprender a aprender depressa- instinto, onde no lugar do encontro com a cultura, acontece o necessário envolvimento no processo de humanização; sendo a linguagem do afeto, universal e fundamental. O que possibilita o despertar do afeto existencial? O que provoca o estado de estar vivo, desembotando os sentidos, dando sentido à vida; possibilitando encontros igualitários e diversificados em que a linguagem do afeto prevaleça numa construção de boas feituras e a possibilidade de sua conservação. Permanecer vivo é dar continuidade, fazer a manutenção do que há de melhor e original em cada um de nós com as parcerias necessárias nos projetos de vida ilimitados, com ampliação de valores, conquistas, concretizações; já que somos seres fisicamente limitados. Dar vazão ao ilimitado do espírito é da ordem da conexão, do ajuntamento e da clareza dada, para que possa haver realizações suficientes. Acredito que com esses gestos, estimuladores da imaginação, lugar que mostra as semelhanças, seja possível acontecer algum movimento interno, mais imediato, mas a longo prazo. Se o projeto continua, a quantidade levará à qualidade capaz de despertar para um olhar diferenciado do mundo. Porque, vindo de e voltando para um lugar onde se é invalidado, não visto, desde sempre se torna desperdício, cuidar de cuidar, sem o afeto nutridor. Cabe perguntar para as crianças do projeto: E agora? O que tem no morro da Piedade?