SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE EDUCAÇÃO
PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA
EDUCAÇÃO BÁSICA - PARFOR
PARFOR/LETRAS
LOCAL: BAIÃO/PA
PERÍODO: 20/01/2014 A 25/01/2014
PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA
DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO
DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO
CH:60h.
PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA
EMENTA FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO
Esta disciplina tem como objetivo ressaltar o que é a Educação, apresentar os seus
fundamentos e as ciências que fornecem conceitos essenciais para o campo educacional.
Serão apresentadas definições e finalidades das cinco ciências fundamentais à
Educação, quais sejam, Filosofia, Psicologia, Sociologia, Antropologia e História.
De cada uma, identificar-se-á os principais conceitos que são pertinentes e
indispensáveis para a compreensão dos fenômenos educativos.
Mostrar-se-á como o diálogo entre as ciências apresentadas, mais do que suas
contribuições isoladas, serve de suporte para a Educação num mundo em que a
interdisciplinaridade, isto é, a religação das ciências.
A educação como direito nas perspectivas filosófico-política.
Educação e sociedade.
O papel da educação na formação do cidadão.
Tendências Pedagógicas na educação.
Competências do educador: ética, política e técnica.
Reflexão sobre a relação dos fundamentos da Educação com a Educação a Distância e
sobre a importância das tecnologias, assinalando seu caráter indispensável nessa modalidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, V. P. O que é história. 2. ed São Paulo: Ed. Brasiliense,1993. (Primeiros Passos).
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 1985
BRASIL, Leis, Decretos, Lei n. 9.394, de 23 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União,
Brasília, v. 134, n. 248, p. 27833-27841, 23 dez. 1987.
DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. 8 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1972.
CARPIGIANI, B. Psicologia: das raízes aos movimentos contemporâneos. São Paulo:
Pioneira, 2002.
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática,1994.
CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002.
FLICKINGER, M. G. Para que filosofia da educação? :1 teses. Perspectiva, v. 16, n. 29, p.
15-22, 1998.
GADOTI, Moacir. Educação e Poder. São Paulo: Cortez, 1985
______________. Organização do trabalho na escola. São Paulo: ática, 1993
GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In: ___.A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
GIDDENS, A. Sociologia: uma breve, porém critica introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1988.
MOORE, Michel G. Educação a distância: uma visão integradora. (trad. Roberto Galman) .
São Paulo: Cengage Learning, 2008.
NÓVOA, A. Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.
PETERS, O. Didática do ensino a distância. São Leopoldo: Unisinos, 2001.
PIAGET, J. Problemas de psicologia genética. Rio de Janeiro: Forense, 1973.
SILVA, Marco; PESCE, Lucila; ZUIN, Antônio (orgs). Educação online : cenário, formação
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TURA, M. L. R. Sociologia para educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2001.
VISCA, J. Psicopedagogia: novas contribuições. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA COMPLEMENTAR
BORGES, Martha Kaschny. MACHADO, Soraya Tonelli. A Evasão em Cursos a Distância
Online: Estudo de um Programa de Educação Empresarial Continuada
Disponivel em:
<http://www.anped.org.br/app/webroot/34reuniao/images/trabalhos/GT16/GT16778%20int.pdf> Acesso em: 18/out/2013.
GADOTTI, Moacir . Perspectivas Atuais da Educação Disponivel em:
<http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf > Acesso em: 20/out/2013.
MIGUEL, A. F.C. O Estudo dos Fundamentos da Educação e sua Influência na Relação
Entre Comunidade e Escola. Disponivel em: <http://www.artigonal.com/ensino-superiorartigos/o-estudo-dos-fundamentos-da-educacao-e-sua-influencia-na-relacao-entrecomunidade-e-escola-5615979.html> Acesso em: 10/dez/2012.
PIAGET, Jean. Psicologia Genética e Educação. Disponivel em:
<http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/141/3/01d08t02.pdf>
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RAMOS, F. P. Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação: problematizações sobre
a ação educativa. Disponivel em:
<http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2011/03/fundamentos-historicos-e-filosoficosda.html> Acesso em: 22/nov/2012.
STIGAR, Robson; SCHUCK, Neivor. Refletindo Sobre a História da Educação no Brasil.
Disponivel em: <http://www.opet.com.br/artigos/pdf-pgartigos/Refletindo%20sobre%20a%20historia%20da%20educacao%20no%20Brasil%20OPE
T.pdf> Acesso em: 03/ago/2013.
DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO
CH:60h.
PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA
ATIVIDADE À DISTÂNCIA
Caro aluno, nesse período de atividade à distância quero proporcionar-lhes uma leitura
de inicialização dessa disciplina.
Faça a leitura do texto Perspectivas Atuais da Educação de Moacir Gadotti,
disponivel em: <http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf>. Acesso em: 20/out/2013.
Após a leitura do mesmo, peço que escreva um resumo explicitando as partes mais
importantes e pertinentes do texto. Deve ser um texto bastante sintético contemplando as
ideias principais que são abordadas pelo autor, permitindo que tenha uma visão sucinta do
todo, principalmente das questões de maior importância e das conclusões alcançadas.
Deverão utilizar as regras básicas da ABNT, sendo texto justificado, fonte times new
roman ou arial, número 12, margem superior e esquerda 3 cm, direita e inferior 2 cm. Com
pontuação correta, coesão, coerência e dentro das normas ortográficas. O título deve ser
centralizado, sem indicativo numérico e deve ser redigido em parágrafo único. As palavraschave devem estar logo abaixo do resumo.
BOM TRABALHO!
PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO
MOACIR GADOTTI1
Resumo: O conhecimento tem presença garantida em qualquer projeção que se faça do futuro.
Por isso há um consenso de que o desenvolvimento de um país está condicionado à qualidade
da sua educação. Nesse contexto, as perspectivas para a educação são otimistas. A pergunta
que se faz é: qual educação, qual escola, qual aluno, qual professor? Este artigo busca
compreender a educação no contexto da globalização e da era da informação, tira
conseqüências desse processo e aponta o que poderá permanecer da "velha" educação,
indicando algumas categorias fundantes da educação do futuro.
Palavras-chave: política educacional; globalização e ensino; educação e sociedade.
Nas últimas duas décadas do século XX assistiuse a grandes mudanças tanto no campo
socioeconômico e político quanto no da cultura, da ciência e da tecnologia. Ocorreram
grandes movimentos sociais, como aqueles no leste europeu, no final dos anos 80,
culminando com a queda do Muro de Berlim. Ainda não se tem idéia clara do que deverá
representar, para todos nós, a globalização capitalista da economia, das comunicações e da
cultura. As transformações tecnológicas tornaram possível o surgimento da era da
informação.
É um tempo de expectativas, de perplexidade e da crise de concepções e paradigmas
não apenas porque iniciase um novo milênio – época de balanço e de reflexão, época em que
o imaginário parece ter um peso maior. O ano 2000 exerceu um fascínio muito grande em
muitas pessoas. Paulo Freire dizia que queria chegar ao ano 2000 (acabou falecendo três anos
antes). É um momento novo e rico de possibilidades.
Por isso, não se pode falar do futuro da educação sem certa dose de cautela. É com
essa cautela que serão examinadas, neste artigo, algumas das perspectivas atuais da teoria e
da prática da educação, apoiando-se naqueles educadores e filósofos que tentaram, em meio a
essa perplexidade, apesar de tudo, apontar algum caminho para o futuro. A perplexidade e a
crise de paradigmas não podem se constituir num álibi para o imobilismo.
No início deste século, H. G. Wells dizia que ―a História da Humanidade é cada vez
mais a disputa de uma corrida entre a educação e a catástrofe‖. A julgar pelas duas grandes
guerras que marcaram a ―História da Humanidade‖, na primeira metade do século XX, a
catástrofe venceu.
1
Professor da Universidade de São Paulo e Diretor do Instituto Paulo Freire. Autor, dentre outras obras, de Perspectivas atuais da
educação.
No início dos anos 50, dizia-se que só havia uma alternativa: ―socialismo ou barbárie‖
(Cornelius Castoriadis), mas chegou-se ao final do século com a derrocada do socialismo
burocrático de tipo soviético e enfraquecimento da ética socialista. E mais: pela primeira vez
na história da humanidade, não por efeito de armas nucleares, mas pelo descontrole da
produção industrial, pode-se destruir toda a vida do planeta. Mais do que a solidariedade,
estamos vendo crescer a competitividade. Venceu a barbárie, de novo? Qual o papel da
educação neste novo contexto político? Qual é o papel da educação na era da informação?
Que perspectivas podemos apontar para a educação nesse início do Terceiro Milênio? Para
onde vamos?
Para iniciar, verifica-se o significado da palavra ―perspectiva‖. A palavra
―perspectiva‖ vem do latim tardio ―perspectivus‖, que deriva de dois verbos: perspecto, que
significa ―olhar até o fim, examinar atentamente‖; e perspicio, que significa ―olhar através,
ver bem, olhar atentamente, examinar com cuidado, reconhecer claramente‖ (Dicionário
Escolar Latino-Português, de Ernesto Faria).
A palavra ―perspectiva‖ é rica de significações. Segundo o Dicionário de filosofia, do
filósofo italiano Nicola Abbagnano, perspectiva seria ―uma antecipação qualquer do futuro:
projeto, esperança, ideal, ilusão, utopia. O termo exprime o mesmo conceito de possibilidade
mas de um ponto de vista mais genérico e que menos compromete,dado que podem aparecer
como perspectivas coisas que não têm suficiente consistência para serem possibilidades
autênticas‖. Para o Dicionário Aurélio, muito conhecido entre nós, brasileiros, perspectiva é
a ―arte de representar os objetos sobre um plano tais como se apresentam à vista; pintura que
representa paisagens e edifícios a distância; aspecto dos objetos vistos de uma certa distância;
panorama; aparência, aspecto; aspecto sob o qual uma coisa se apresenta, ponto de vista;
expectativa, esperança‖. Perspectiva significa ao mesmo tempo enfoque, quando se fala, por
exemplo, em perspectiva política, e possibilidade, crença em acontecimentos considerados
prováveis e bons. Falar em perspectivas é falar de esperança no futuro.
Hoje muitos educadores, perplexos diante das rápidas mudanças na sociedade, na
tecnologia e na economia, perguntam-se sobre o futuro de sua profissão, alguns com medo de
perdê-la sem saber o que devem fazer. Então, aparecem, no pensamento educacional, todas as
palavras citadas por Abbagnano e Aurélio: ―projeto‖ político-pedagógico, pedagogia da
―esperança‖, ―ideal‖ pedagógico, ―ilusão‖ e ―utopia‖ pedagógica, o futuro como
―possibilidade‖.
Fala-se muito hoje em ―cenários‖ possíveispara a educação, portanto, em
―panoramas‖, representação de ―paisagens‖. Para se desenhar uma perspectiva é preciso
―distanciamento‖. É sempre um ―ponto de vista‖. Todas essas palavras entre aspas indicam
uma certa direção ou, pelo menos, um horizonte em direção ao qual se caminha ou se pode
caminhar. Elas designam ―expectativas‖ e anseios que podem ser captados, capturados,
sistematizados e colocados em evidência.
UM PASSADO SEMPRE PRESENTE
A virada do milênio é razão oportuna para um balanço sobre práticas e teorias que
atravessaram os tempos. Falar de ―perspectivas atuais da educação‖ é também falar, discutir,
identificar o ―espírito‖ presente no campo das idéias, dos valores e das práticas educacionais
que as perpassa, marcando o passado, caracterizando o presente e abrindo possibilidades para
o futuro. Algumas perspectivas teóricas que orientaram muitas práticas poderão desaparecer, e
outras permanecerão em sua essência. Quais teorias e práticas fixaram-se no ethos
educacional, criaram raízes, atravessaram o milênio e estão presentes hoje? Para entender o
futuro é preciso revisitar o passado. No cenário da educação atual, podem ser destacados
alguns marcos, algumas pegadas, que persistem e poderão persistir na educação do futuro.
Educação Tradicional
Enraizada na sociedade de classes escravista da Idade Antiga, destinada a uma
pequena minoria, a educação tradicional iniciou seu declínio já no movimento renascentista,
mas ela sobrevive até hoje, apesar da extensão média da escolaridade trazida pela educação
burguesa. A educação nova, que surge de forma mais clara a partir da obra de Rousseau,
desenvolveu-se nesses últimos dois séculos e trouxe consigo numerosas conquistas, sobretudo
no campo das ciências da educação e das metodologias de ensino. O conceito de ―aprender
fazendo‖ de John Dewey e as técnicas Freinet, por exemplo, são aquisições definitivas na
história da pedagogia. Tanto a concepção tradicional de educação quanto a nova, amplamente
consolidadas,
terão um lugar garantido na educação do futuro.
A educação tradicional e a nova têm em comum a concepção da educação como
processo de desenvolvimento individual. Todavia, o traço mais original da educação desse
século é o deslocamento de enfoque do individual para o social, para o político e para o
ideológico. A pedagogia institucional é um exemplo disso. A experiência de mais de meio
século de educação nos países socialistas também o testemunha. A educação, no século XX,
tornou-se permanente e social. É verdade, existem ainda muitos desníveis entre regiões e
países, entre o Norte e o Sul, entre países periféricos e hegemônicos, entre países
globalizadores e globalizados. Entretanto, há idéias universalmente difundidas, entre elas a de
que não há idade para se educar, de que a educação se estende pela vida e que ela não é
neutra.
Educação Internacionalizada
No início da segunda metade deste século, educadores e políticos imaginaram uma
educação internacionalizada, confiada a uma grande organização, a Unesco. Os países
altamente desenvolvidos já haviam universalizado o ensino fundamental e eliminado o
analfabetismo. Os sistemas nacionais de educação trouxeram um grande impulso, desde o
século passado, possibilitando numerosos planos de educação, que diminuíram custos e
elevaram os benefícios.
A tese de uma educação internacional já existia deste 1899, quando foi fundado, em
Bruxelas, o Bureau Internacional de Novas Escolas, por iniciativa do educador Adolphe
Ferrière. Como resultado, tem-se hoje uma grande uniformidade nos sistemas de ensino.
Pode-se dizer que
hoje todos os sistemas educacionais contam com uma estrutura básica muito parecida. No
final do século XX, o fenômeno da globalização deu novo impulso à idéia de uma educação
igual para todos, agora não como princípio de justiça social, mas apenas como parâmetro
curricular comum.
Novas Tecnologias
As conseqüências da evolução das novas tecnologias, centradas na comunicação de massa, na
difusão do conhecimento, ainda não se fizeram sentir plenamente no ensino – como previra
McLuhan já em 1969 –, pelo menos na maioria das nações, mas a aprendizagem a distância,
sobretudo a baseada na Internet, parece ser a grande novidade educacional neste início de
novo milênio. A educação opera com a linguagem escrita e a nossa cultura atual dominante
vive impregnada por uma nova linguagem, a da televisão e a da informática, particularmente
a linguagem da Internet. A cultura do papel representa talvez o maior obstáculo ao uso
intensivo da Internet, em particular da educação a distância com base na Internet.
Por isso, os jovens que ainda não internalizaram inteiramente essa cultura adaptam-se
com mais facilidade do que os adultos ao uso do computador. Eles já estão nascendo com essa
nova cultura, a cultura digital.
Os sistemas educacionais ainda não conseguiram avaliar suficientemente o impacto da
comunicação audiovisual e da informática, seja para informar, seja para bitolar ou controlar
as mentes. Ainda trabalha-se muito com recursos tradicionais que não têm apelo para as
crianças e jovens. Os que defendem a informatização da educação sustentam que é preciso
mudar profundamente os métodos de ensino para reservar ao cérebro humano o que lhe é
peculiar, a capacidade de pensar, em vez de desenvolver a memória. Para ele, a função da
escola será, cada vez mais, a de ensinar a pensar criticamente. Para isso é preciso dominar
mais metodologias e linguagens, inclusive a linguagem eletrônica.
Paradigmas Holonômicos
Entre as novas teorias surgidas nesses últimos anos, despertaram interesse dos
educadores os chamados paradigmas holonômicos, ainda pouco consistentes. Complexidade e
holismo são palavras cada vez mais ouvidas nos debates educacionais. Nesta perspectiva,
pode-se incluir as reflexões de Edgar Morin, que critica a razão produtivista e a racionalização
modernas, propondo uma lógica do vivente. Esses paradigmas sustentam um princípio
unificador do saber, do conhecimento, em torno do ser humano, valorizando o seu cotidiano,
o seu vivido, o pessoal, a singularidade, o entorno, o acaso e outras categorias como: decisão,
projeto, ruído, ambigüidade, finitude, escolha, síntese, vínculo e totalidade.
Essas seriam algumas das categorias dos paradigmas chamados holonômicos.
Etimologicamente, holos, em grego, significa todo e os novos paradigmas procuram centrarse
na totalidade. Mais do que a ideologia, seria a utopia que teria essa força para resgatar a
totalidade do real, totalidade perdida. Para os defensores desses novos paradigmas, os
paradigmas clássicos – identificados no positivismo e no marxismo – seriam marcados pela
ideologia e lidariam com categorias redutoras da totalidade. Ao contrário, os paradigmas
holonômicos pretendem restaurar a totalidade do sujeito, valorizando a sua iniciativa e a sua
criatividade, valorizando o micro, a complementaridade, a convergência e a complexidade.
Para eles, os paradigmas clássicos sustentam o sonho milenarista de uma sociedade plena,
sem arestas, em que nada perturbaria um consenso sem fricções. Ao aceitar como fundamento
da educação uma antropologia que concebe o homem como um ser essencialmente
contraditorial, os paradigmas holonômicos pretendem manter, sem pretender superar, todos os
elementos da complexidade da vida.
Os holistas sustentam que o imaginário e a utopia são os grandes fatores instituintes da
sociedade e recusam uma ordem que aniquila o desejo, a paixão, o olhar e a escuta.
Os enfoques clássicos, segundo eles, banalizam essas dimensões da vida porque
sobrevalorizam o macro-estrutural, o sistema, em que tudo é função ou efeito das
superestruturas socioeconômicas ou epistêmicas, lingüísticas e psíquicas. Para os novos
paradigmas, a história é essencialmente possibilidade, em que o que vale é o imaginário
(Gilbert Durand, Cornelius Castoriadis), o projeto.
Existem tantos mundos quanto nossa capacidade de imaginar. Para eles, ―a imaginação
está no poder‖, como queriam os estudantes em maio de 1968.
Na verdade, essas categorias não são novas na teoria da educação, mas hoje são lidas e
analisadas com mais simpatia do que no passado. Sob diversas formas e com diferentes
significados, essas categorias são encontradas em muitos intelectuais, filósofos e educadores,
de ontem e de hoje: o ―sentido do outro‖, a ―curiosidade‖ (Paulo Freire), a ―tolerância‖ (Karl
Jaspers), a ―estrutura de acolhida‖ (Paul Ricoeur), o ―diálogo‖ (Martin Buber), a ―autogestão‖
(Celestin Freinet, Michel Lobrot), a ―desordem‖ (Edgar Morin), a ―ação comunicativa‖, o
―mundo vivido‖ (Jürgen Habermas), a ―radicalidade‖ (Agnes Heller), a ―empatia‖ (Carl
Rogers), a ―questão de gênero‖ (Moema Viezzer, Nelly Stromquist), o―cuidado‖ (Leonardo
Boff), a ―esperança‖ (Ernest Bloch), a ―alegria‖ (Georges Snyders), a unidade do homem
contra as ―unidimensionalizações‖ (Herbert Marcuse), etc.
Evidentemente, nem todos esses autores aceitariam enquadrar-se nos paradigmas
holonômicos. Todas as classificações e tipologias, no campo das idéias, são necessariamente
reducionistas. Não se pode negar as divergências existentes entre eles. Contudo, as categorias
apontadas anteriormente indicam uma certa tendência, ou melhor, uma perspectiva da
educação. Os que sustentam os paradigmas holonômicos procuram buscar na unidade dos
contrários e na cultura contemporânea um sinal dos tempos, uma direção do futuro, que eles
chamam de pedagogia da unidade.
Educação Popular
O paradigma da educação popular, inspirado originalmente no trabalho de Paulo
Freire nos anos 60, encontrava na conscientização sua categoria fundamental. A prática e a
reflexão sobre a prática levaram a incorporar outra categoria não menos importante: a da
organização. Afinal, não basta estar consciente, é preciso organizar-se para poder
transformar. Nos últimos anos, os educadores que permaneceram fiéis aos princípios da
educação popular atuaram principalmente em duas direções: na educação pública popular –
no espaço conquistado no interior do Estado –; e na educação popular comunitária e na
educação ambiental ou sustentável, predominantemente não governamentais. Durante os
regimes autoritários da América Latina, a educação popular manteve sua unidade,
combatendo as ditaduras e apresentando projetos ―alternativos‖.
Com as conquistas democráticas, ocorreu com a educação popular uma grande
fragmentação em dois sentidos: de um lado ela ganhou uma nova vitalidade no interior do
Estado, diluindo-se em suas políticas públicas; e, de outro, continuou como educação nãoformal, dispersando- se em milhares de pequenas experiências. Perdeu em unidade, ganhou
em diversidade e conseguiu atravessar numerosas fronteiras. Hoje ela incorporou-se ao
pensamento pedagógico universal e orienta a atuação de muitos educadores espalhados pelo
mundo, como o testemunha o Fórum Paulo Freire, que se realiza de dois em dois anos,
reunindo educadores de muitos países.
As práticas de educação popular também constituem-se em mecanismos de
democratização, em que se refletem os valores de solidariedade e de reciprocidade e novas
formas alternativas de produção e de consumo, sobretudo as práticas de educação popular
comunitária, muitas delas voluntárias. O Terceiro Setor está crescendo não apenas como
alternativa entre o Estado burocrático e o mercado insolidário, mas também como espaço de
novas vivências sociais e políticas hoje consolidadas com as organizações nãogovernamentais (ONGs) e as organizações de base comunitária (OBCs). Este está sendo hoje
o campo mais fértil da educação popular.
Diante desse quadro, a educação popular, como modelo teórico reconceituado, tem
oferecido grandes alternativas.
Dentre elas, está a reforma dos sistemas de escolarização pública. A vinculação da
educação popular com o poder local e a economia popular abre, também, novas e inéditas
possibilidades para a prática da educação.
O modelo teórico da educação popular, elaborado na reflexão sobre a prática da
educação durante várias décadas, tornou-se, sem dúvida, uma das grandes contribuições da
América Latina à teoria e à prática educativa em âmbito internacional. A noção de aprender a
partir do conhecimento do sujeito, a noção de ensinar a partir de palavras e temas geradores, a
educação como ato de conhecimento e de transformação social e a politicidade da educação
são apenas alguns dos legados da educação popular à pedagogia crítica universal.
Universalização da Educação Básica e Novas Matrizes Teóricas
Neste começo de um novo milênio, a educação apresenta- se numa dupla
encruzilhada: de um lado, o desempenho do sistema escolar não tem dado conta da
universalização da educação básica de qualidade; de outro, as novas matrizes teóricas não
apresentam ainda a consistência global necessária para indicar caminhos realmente seguros
numa época de profundas e rápidas transformações. Essa é uma das preocupações do Instituto
Paulo Freire, buscando, a partir do legado de Paulo Freire, consolidar o seu ―Projeto da Escola
Cidadã‖, como resposta à crise de paradigmas.
A concepção teórica e as práticas desenvolvidas a partir do conceito de Escola Cidadã
podem constituir-se numa alternativa viável, de um lado, ao projeto neoliberal de educação,
amplamente hegemônico, baseado na ética do mercado, e, de outro lado, à teoria e à prática de
uma educação burocrática, sustentada na ―estadolatria‖ (Antonio Gramsci). É uma escola que
busca fortalecer autonomamente o seu projeto político- pedagógico, relacionando-se
dialeticamente – não mecânica e subordinadamente – com o mercado, o Estado e a sociedade.
Ela visa formar o cidadão para controlar o mercado e o Estado, sendo, ao mesmo tempo,
pública quanto ao seu destino – isto é, para todos – estatal quanto ao financiamento e
democrática e comunitária quanto à sua gestão.
Seja qual for a perspectiva que a educação contemporânea tomar, uma educação
voltada para o futuro será sempre uma educação contestadora, superadora dos limites
impostos pelo Estado e pelo mercado, portanto, uma educação muito mais voltada para a
transformação social do que para a transmissão cultural. Por isso, acredita- se que a
pedagogia da práxis, como uma pedagogia transformadora, em suas várias manifestações,
pode oferecer um referencial geral mais seguro do que as pedagogias centradas na transmissão
cultural, neste momento de perplexidade.
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E EDUCAÇÃO
Costuma-se definir nossa era como a era do conhecimento. Se for pela importância
dada hoje ao conhecimento, em todos os setores, pode-se dizer que se vive mesmo na era do
conhecimento, na sociedade do conhecimento, sobretudo em conseqüência da informatização
e do processo de globalização das telecomunicações a ela associado.
Pode ser que, de fato, já se tenha ingressado na era do conhecimento, mesmo
admitindo que grandes massas da população estejam excluídas dele. Todavia, o que se
constata é a predominância da difusão de dados e informações e não de conhecimentos. Isso
está sendo possível graças às novas tecnologias que estocam o conhecimento, de forma
prática e acessível, em gigantescos volumes de informações, que são armazenadas
inteligentemente, permitindo a pesquisa e o acesso de maneira muito simples, amigável e
flexível. É o que já acontece com a Internet: para ser ―usuário‖, basta dispor de uma linha
telefônica e um computador. ―Usuário‖ não significa aqui apenas receptor de informações,
mas também emissor de informações. Pela Internet, a partir de qualquer sala de aula do
planeta, pode-se acessar inúmeras bibliotecas em muitas partes do mundo. As novas
tecnologias permitem acessar conhecimentos transmitidos não apenas por palavras, mas
também por imagens, sons, fotos, vídeos (hipermídia), etc. Nos últimos anos, a informação
deixou de ser uma área ou especialidade para se tornar uma dimensão de tudo, transformando
profundamente a forma como a sociedade se organiza. Pode-se dizer que está em andamento
uma Revolução da Informação, como ocorreram no passado a Revolução Agrícola e a
Revolução Industrial.
Ladislau Dowbor (1998), após descrever as facilidades que as novas tecnologias
oferecem ao professor, se pergunta: o que eu tenho a ver com tudo isso, se na minha escola
não tem nem biblioteca e com o meu salário eu não posso comprar um computador? Ele
mesmo responde que será preciso trabalhar em dois tempos: o tempo do passado e o tempo do
futuro. Fazer tudo hoje para superar as condições do atraso e, ao mesmo tempo, criar as
condições para aproveitar amanhã as possibilidades das novas tecnologias. As novas
tecnologias criaram novos espaços do conhecimento. Agora, além da escola, também a
empresa, o espaço domiciliar e o espaço social tornaram-se educativos.
Cada dia mais pessoas estudam em casa, pois podem, de casa, acessar o ciberespaço
da formação e da aprendizagem a distância, buscar ―fora‖ – a informação disponível nas
redes de computadores interligados – serviços que respondem às suas demandas de
conhecimento. Por outro lado, a sociedade civil (ONGs, associações, sindicatos, igrejas, etc.)
está se fortalecendo não apenas como espaço de trabalho, em muitos casos, voluntário, mas
também como espaço de difusão de conhecimentos e de formação continuada.
É um espaço potencializado pelas novas tecnologias, inovando constantemente nas
metodologias. Novas oportunidades parecem abrir-se para os educadores. Esses espaços de
formação têm tudo para permitir maior democratização da informação e do conhecimento,
portanto, menos distorção e menos manipulação, menos controle e mais liberdade. É uma
questão de tempo, de políticas públicas adequadas e de iniciativa da sociedade. A tecnologia
não basta. É preciso a participação mais intensa e organizada da sociedade. O acesso à
informação não é apenas um direito. É um direito fundamental, um direito primário, o
primeiro de todos os direitos, pois sem ele não se tem acesso aos outros direitos.
Na formação continuada necessita-se de maior integração entre os espaços sociais
(domiciliar, escolar, empresarial, etc.), visando equipar o aluno para viver melhor na
sociedade do conhecimento. Como previa Herbert McLuhan, o planeta tornou-se a nossa sala
de aula e o nosso endereço. O ciberespaço não está em lugar nenhum, pois está em todo o
lugar o tempo todo. Estar num lugar significaria estar determinado pelo tempo (hoje, ontem,
amanhã). No ciberespaço, a informação está sempre e permanentemente presente e em
renovação constante. O ciberespaço rompeu com a idéia de tempo próprio para a
aprendizagem. Não há tempo e espaço próprios para a aprendizagem. Como ele está todo o
tempo em todo lugar, o espaço da aprendizagem é aqui – em qualquer lugar – e o tempo de
aprender é hoje e sempre. A sociedade do conhecimento se traduz por redes, ―teias‖ (Ivan
Illich), ―árvores do conhecimento‖ (Humberto Maturana), sem hierarquias,
em unidades dinâmicas e criativas, favorecendo a conectividade, o intercâmbio, consultas
entre instituições e pessoas, articulação, contatos e vínculos, interatividade. A conectividade é
a principal característica da Internet.
O conhecimento é o grande capital da humanidade. Não é apenas o capital da
transnacional que precisa dele para a inovação tecnológica. Ele é básico para a sobrevivência
de todos e, por isso, não deve ser vendido ou comprado, mas sim disponibilizado a todos. Esta
é a função de instituições que se dedicam ao conhecimento apoiado nos avanços tecnológicos.
Espera-se que a educação do futuro seja mais democrática, menos excludente. Essa é ao
mesmo tempo nossa causa e nosso desafio. Infelizmente, diante da falta de políticas públicas
no setor, acabaram surgindo ―indústrias do conhecimento‖, prejudicando uma possível visão
humanista, tornando-o instrumento de lucro e de poder econômico.
A educação, em particular a educação a distância, é um bem coletivo e, por isso, não
deve ser regulada pelo jogo do mercado, nem pelos interesses políticos ou pelo furor
legiferante de regulamentar, credenciar, autorizar, reconhecer, avaliar, etc. de muitos
tecnoburocratas. Quem deve decidir sobre a qualidade dos seus certificados não é nem o
Estado e nem o mercado, mas sim a sociedade e o sujeito aprendente. Na era da informação
generalizada, existirá ainda necessidade de diplomas?
O que cabe à escola na sociedade informacional? Cabe a ela organizar um movimento
global de renovação cultural, aproveitando-se de toda essa riqueza de informações. Hoje é a
empresa que está assumindo esse papel inovador.
A escola não pode ficar a reboque das inovações tecnológicas. Ela precisa ser um
centro de inovação. Temos uma tradição de dar pouca importância à educação tecnológica, a
qual deveria começar já na educação infantil.
Na sociedade da informação, a escola deve servir de bússola para navegar nesse mar
do conhecimento, superando a visão utilitarista de só oferecer informações ―úteis‖ para a
competitividade, para obter resultados. Deve oferecer uma formação geral na direção de uma
educação integral. O que significa servir de bússola? Significa orientar criticamente,
sobretudo as crianças e jovens, na busca de uma informação que os faça crescer e não
embrutecer.
Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da ―reciclagem‖ e da atualização de
conhecimentos e muito mais além da ―assimilação‖ de conhecimentos. A sociedade do
conhecimento possui múltiplas oportunidades de aprendizagem: parcerias entre o público e o
privado (família, empresa, associações, etc.); avaliações permanentes; debate público;
autonomia da escola; generalização da inovação.
As conseqüências para a escola e para a educação em geral são enormes: ensinar a
pensar; saber comunicar- se; saber pesquisar; ter raciocínio lógico; fazer sínteses e
elaborações teóricas; saber organizar o seu próprio trabalho; ter disciplina para o trabalho; ser
independente e autônomo; saber articular o conhecimento com a prática; ser aprendiz
autônomo e a distância.
Neste contexto de impregnação do conhecimento, cabe à escola: amar o conhecimento
como espaço de realização humana, de alegria e de contentamento cultural; selecionar e rever
criticamente a informação; formular hipóteses; ser criativa e inventiva (inovar); ser
provocadora
de mensagens e não pura receptora; produzir, construir e reconstruir conhecimento elaborado.
E mais: numa perspectiva emancipadora da educação, a escola tem que fazer tudo isso em
favor dos excluídos, não discriminando o pobre. Ela não pode distribuir poder, mas pode
construir e reconstruir conhecimentos, saber, que é poder.
Numa perspectiva emancipadora da educação, a tecnologia contribui muito pouco para
a emancipação dos excluídos se não for associada ao exercício da cidadania.
Como diz Ladislau Dowbor (1998:259), a escola deixará de ser ―lecionadora‖ para ser
―gestora do conhecimento‖. Segundo o autor, ―pela primeira vez a educação tem a
possibilidade de ser determinante sobre o desenvolvimento‖. A educação tornou-se
estratégica para o desenvolvimento, mas, para isso, não basta ―modernizá-la‖, como querem
alguns. Será preciso transformá-la profundamente.
A escola precisa ter projeto, precisa de dados, precisa fazer sua própria inovação,
planejar-se a médio e a longo prazos, fazer sua própria reestruturação curricular, elaborar seus
parâmetros curriculares, enfim, ser cidadã. As mudanças que vêm de dentro das escolas são
mais duradouras.
Da sua capacidade de inovar, registrar, sistematizar a sua prática/experiência,
dependerá o seu futuro. Nesse contexto, o educador é um mediador do conhecimento, diante
do aluno que é o sujeito da sua própria formação.
Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz e, para isso, também precisa ser
curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para o que fazer dos seus
alunos.
Em geral, temos a tendência de desvalorizar o que fazemos na escola e de buscar
receitas fora dela quando é ela mesma que deveria governar-se. É dever dela ser cidadã e
desenvolver na sociedade a capacidade de governar e controlar o desenvolvimento econômico
e o mercado.
A cidadania precisa controlar o Estado e o mercado, verdadeira alternativa ao
capitalismo neoliberal e ao socialismo burocrático e autoritário. A escola precisa dar o
exemplo, ousar construir o futuro. Inovar é mais importante do que reproduzir com qualidade
o que existe. A matéria-prima da escola é sua visão do futuro.
A escola está desafiada a mudar a lógica da construção do conhecimento, pois
aprendizagem agora ocupa toda a nossa vida. E porque passamos todo o tempo de nossas
vidas na escola – não só nós, professores – devemos ser felizes nela. A felicidade na escola
não é uma questão de opção metodológica ou ideológica, mas sim uma obrigação essencial
dela. Como diz Georges Snyders (1998) no livro A alegria na escola, precisamos de uma
nova ―cultura da satisfação‖, precisamos da ―alegria cultural‖.
O mundo de hoje é ―favorável à satisfação‖ e a escola também pode sê-lo. O que é ser
professor hoje? Ser professor hoje é viver intensamente o seu tempo, conviver; é ter
consciência e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro para a humanidade sem
educadores, assim como não se pode pensar num futuro sem poetas e filósofos. Os
educadores, numa visão emancipadora, não só transformam a informação em conhecimento e
em consciência crítica, mas também formam pessoas. Diante dos falsos pregadores da
palavra, dos marketeiros, eles são os verdadeiros ―amantes da sabedoria‖, os filósofos de que
nos falava Sócrates. Eles fazem fluir o saber (não o dado, a informação e o puro
conhecimento), porque constróem sentido para a vida das pessoas e para a humanidade e
buscam, juntos, um mundo mais justo, mas produtivo e mais saudável para todos. Por isso
eles são imprescindíveis.
PARA PENSAR A EDUCAÇÃO DO FUTURO
Jacques Delors (1998), coordenador do ―Relatório para a Unesco da Comissão
Internacional Sobre Educação para o Século XXI‖, no livro Educação: um tesouro a
descobrir, aponta como principal conseqüência da sociedade do conhecimento a necessidade
de uma aprendizagem ao longo de toda a vida (Lifelong Learning) fundada em quatro pilares
que são ao mesmo tempo pilares do conhecimento e da formação continuada. Esses pilares
podem ser tomados também como bússola para nos orientar rumo ao futuro da educação.
Aprender a conhecer – Prazer de compreender, descobrir, construir e reconstruir o
conhecimento, curiosidade, autonomia, atenção. Inútil tentar conhecer tudo. Isso supõe uma
cultura geral, o que não prejudica o domínio de certos assuntos especializados. Aprender a
conhecer é mais do que aprender a aprender. Aprender mais linguagens e metodologias do
que conteúdos, pois estes envelhecem rapidamente. Não basta aprender a conhecer. É preciso
aprender a pensar, a pensar a realidade e não apenas ―pensar pensamentos‖, pensar o já dito, o
já feito, reproduzir o pensamento. É preciso pensar também o novo, reinventar o pensar,
pensar e reinventar o futuro.
Aprender a fazer – É indissociável do aprender a conhecer. A substituição de certas
atividades humanas por máquinas acentuou o caráter cognitivo do fazer. O fazer deixou de ser
puramente instrumental. Nesse sentido, vale mais hoje a competência pessoal que torna a
pessoa apta a enfrentar novas situações de emprego, mas apta a trabalhar em equipe, do que a
pura qualificação profissional.
Hoje, o importante na formação do trabalhador, também do trabalhador em educação,
é saber trabalhar coletivamente, ter iniciativa, gostar do risco, ter intuição, saber comunicarse, saber resolver conflitos, ter estabilidade emocional. Essas são, acima de tudo, qualidades
humanas que se manifestam nas relações interpessoais mantidas no trabalho. A flexibilidade é
essencial. Existem hoje perto de 11 mil funções na sociedade contra aproximadamente 60
profissões oferecidas pelas universidades. Como as profissões evoluem muito rapidamente,
não basta preparar- se profissionalmente para um trabalho.
Aprender a viver juntos – a viver com os outros. Compreender o outro, desenvolver
a percepção da interdependência, da não-violência, administrar conflitos. Descobrir o outro,
participar em projetos comuns. Ter prazer no esforço comum. Participar de projetos de
cooperação. Essa é a tendência.
No Brasil, como exemplo desta tendência, pode-se citar a inclusão de temas/eixos
transversais (ética, ecologia, cidadania, saúde, diversidade cultural) nos Parâmetros
Curriculares
Nacionais, que exigem equipes interdisciplinares e trabalho em projetos comuns.
Aprender a ser – Desenvolvimento integral da pessoa: inteligência, sensibilidade,
sentido ético e estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade, pensamento autônomo e
crítico, imaginação, criatividade, iniciativa. Para isso não se deve negligenciar nenhuma das
potencialidades de cada indivíduo. A aprendizagem não pode ser apenas lógico-matemática e
lingüística. Precisa ser integral.
Iniciou-se este texto procurando situar o que significa ―perspectiva‖. Sem pretender
fazer qualquer exercício de futurologia e muito mais no sentido de estabelecer pontos para o
debate, serão apontados aqui algumas categorias em torno da educação do futuro, que
indicam o surgimento de temas com importantes conseqüências para a educação.
As categorias ―contradição‖, ―determinação‖, ―reprodução‖, ―mudança‖, ―trabalho‖,
―práxis‖, ―necessidade‖, ―possibilidade‖ aparecem freqüentemente na literatura pedagógica
contemporânea, sinalizando já uma perspectiva da educação, a perspectiva da pedagogia da
práxis.
Essas categorias tornaram-se clássicas na explicação do fenômeno da educação,
principalmente a partir de Hegel e de Marx. A dialética constitui-se, até hoje, no paradigma
mais consistente para analisar o fenômeno da educação.
Pode-se e deve-se estudá-la e estudar todas as categorias anteriormente apontadas.
Elas não podem ser negadas, pois ajudarão muito na leitura do mundo da educação atual. Elas
não podem ser negadas ou desprezadas como categorias ―ultrapassadas‖. Porém, também
podemos nos ocupar mais especificamente de outras, ao pensar a educação do futuro,
categorias nascidas ao mesmo tempo da prática da educação e da reflexão sobre ela. Eis
algumas delas a título de exemplo.
Cidadania – O que implica também tratar do tema da autonomia da escola, de seu
projeto político-pedagógico, da questão da participação, da educação para a cidadania. Dentro
desta categoria, pode-se discutir particularmente o significado da concepção de escola cidadã
e de suas diferentes práticas. Educar para a cidadania ativa tornou-se hoje projeto e programa
de muitas escolas e de sistemas educacionais.
Planetaridade – A Terra é um ―novo paradigma‖ (Leonardo Boff). Que implicações
tem essa visão de mundo sobre a educação? O que seria uma ecopedagogia (Francisco
Gutiérrez) e uma ecoformação (Gaston Pineau)? O tema da cidadania planetária pode ser
discutido a partir desta categoria. Podemos nos perguntar como Milton Nascimento: ―para que
passaporte se fazemos parte de uma única nação?‖ Que conseqüências podemos tirar para
alunos, professores e currículos?
Sustentabilidade – O tema da sustentabilidade originou-se na economia
(―desenvolvimento sustentável‖) e na ecologia, para se inserir definitivamente no campo da
educação, sintetizada no lema ―uma educação sustentável para a sobrevivência do planeta‖. O
que seria uma cultura da sustentabilidade?
Esse tema deverá dominar muitos debates educativos das próximas décadas. O que
estamos estudando nas escolas? Não estaremos construindo uma ciência e uma cultura que
servem para a degradação/deterioração do planeta?
Virtualidade – Esse tema implica toda a discussão atual sobre a educação a distância
e o uso dos computadores nas escolas (Internet). A informática, associada à telefonia, nos
inseriu definitivamente na era da informação.
Quais as conseqüências para a educação, para a escola, para a formação do professor e
para a aprendizagem? Conseqüências da obsolescência do conhecimento. Como fica a escola
diante da pluralidade dos meios de comunicação? Eles abrem os novos espaços da formação
ou irão substituir a escola?
Globalização – O processo da globalização está mudando a política, a economia, a
cultura, a história e, portanto, também a educação. É um tema que deve ser enfocado sob
vários prismas. A globalização remete também ao poder local e às conseqüências locais da
nossa dívida externa global (e dívida interna também, a ela associada). O global e o local se
fundem numa nova realidade: o ―glocal‖. O estudo desta categoria remete à necessária
discussão do papel dos municípios e do ―regime de colaboração‖ entre União, estados,
municípios e comunidade, nas perspectivas atuais da educação básica. Para pensar a educação
do futuro, é necessário refletir sobre o processo de globalização da economia, da cultura e das
comunicações.
Transdisciplinaridade – Embora com significados distintos, certas categorias como
transculturalidade transversalidade, multiculturalidade e outras como complexidade e
holismo também indicam uma nova tendência na educação que será preciso analisar. Como
construir
interdisciplinarmente o projeto pedagógico da escola? Como relacionar
multiculturalidade e currículo? É necessário realizar o debate dos PCN. Como trabalhar com
os ―temas transversais‖? O desafio de uma educação sem discriminação étnica, cultural, de
gênero.
Dialogicidade, dialeticidade – Não se pode negar a atualidade de certas categorias
freireanas e marxistas, a validade de uma pedagogia dialógica ou da práxis. Marx, em O
capital, privilegiou as categorias hegelianas ―determinação‖, ―contradição‖, ―necessidade‖ e
―possibilidade‖.
A fenomenologia hegeliana continua inspirando nossa educação e deverá atravessar o
milênio. A educação popular e a pedagogia da práxis deverão continuar como paradigmas
válidos para além do ano 2000.
A análise dessas categorias e a identificação da sua presença na pedagogia
contemporânea podem constituir-se, sem dúvida, num grande programa a ser desenvolvido
hoje em torno das ―perspectivas atuais da educação‖. Não se pretende aqui dar respostas
definitivas. Com esse pequeno texto introdutório, procurou-se apenas iniciar um debate sobre
as perspetivas atuais da educação, sem a intenção de, com isso, encerrá-lo. Existem muitos
outros desafios para a educação. A reflexão crítica não basta, como também não basta a
prática sem a reflexão sobre ela. Aqui, são indicadas apenas algumas pistas, dentro de uma
visão otimista e crítica – não pessimista e ingênua – para uma análise em profundidade
daqueles que se interessam por uma ―educação voltada para o futuro‖, como dizia o grande
educador polonês, o marxista Bogdan Suchodolski.
TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM:
<http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf >
Carlos Rodrigues Brandão
O Que é Educação
BRANDÃO, Carlos Rodrigues
O que é educação/ Carlos Rodrigues
Brandão
São Paulo: brasiliense, 2007 - (coleção primeiros passos; 20)
49ª reimpr.da 1 ed.de 1981
I. Educação I. titulo II. Série
07- 0589
CDD-370
EDUCAÇÃO? EDUCAÇÕES: APRENDER COM O ÍNDIO
Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem
minha. Buriti quer todo o azul, e não se aparta de sua água — carece de
espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente
aprende.
João Guimarães Rosa/Grande Senão: Veredas
Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou
de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para
aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos
a vida com a educação. Com uma ou com várias: educação? Educações. E já que pelo menos
por isso sempre achamos que temos alguma coisa a dizer sobre a educação que nos invade a
vida, por que não começar a pensar sobre ela com o que uns índios uma vez escreveram?
Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz
com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre
foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes
mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos.
Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns
anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que
nos interessa:
"...Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e
agradecemos de todo o coração.
Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções
diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa
idéia de educação não é a mesma que a nossa.
...Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e
aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus
corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não
sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa
língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros,
como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta
e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres
senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que
sabemos e faremos, deles, homens."
De tudo o que se discute hoje sobre a educação, algumas das questões entre as mais
importantes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma forma única nem um único
modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o
melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único
praticante.
Em mundos diversos a educação existe diferente: em pequenas sociedades tribais de
povos caçadores, agricultores ou pastores nômades; em sociedades camponesas, em países
desenvolvidos e industrializados; em mundos sociais sem classes, de classes, com este ou
aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de sociedades e culturas sem Estado,
com um Estado em formação ou com ele consolidado entre e sobre as pessoas.
Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo,
ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam outros povos,
usando a educação como um recurso a mais de sua dominância. Da família à comunidade, a
educação existe difusa em todos os mundos sociais, entre as incontáveis práticas dos mistérios
do aprender; primeiro, sem classes de alunos, sem livros e sem professores especialistas; mais
adiante com escolas, salas, professores e métodos pedagógicos.
A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas
criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário
como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por um sistema
centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a
desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.
A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a
criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de
educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-eaprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras
do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer
povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos,
através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do
mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar — às vezes a
ocultar, às vezes a inculcar — de geração em geração, a necessidade da existência de sua
ordem.
Por isso mesmo — e os índios sabiam — a educação do colonizador, que contém o
saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domínio,
na verdade não serve para ser a educação do colonizado. Não serve e existe contra uma
educação que ele, não obstante dominado, também possui como um dos seus recursos, em seu
mundo, dentro de sua cultura.
Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas, a educação é um dos meios
de que os homens lançam mão para criar guerreiros ou burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de
homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber
que os constitui e legitima. Mais ainda, a educação participa do processo de produção de
crenças e idéias, de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e
poderes que, em conjunto, constróem tipos de sociedades. E esta é a sua força.
No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o
educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar
servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho, para os usos
escusos que ocultam também na educação — nas suas agências, suas práticas e nas idéias que
ela professa — interesses políticos impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade
que habita. E esta é a sua fraqueza.
Aqui e ali será preciso voltar a estas idéias, e elas podem ser como que um roteiro
daqui para a frente. A educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos
sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz. para fora, que a sua missão é
transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem
de uns e outros: "...e deles faremos homens". Mas, na prática, a mesma educação que ensina
pode deseducar, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que
inventa que pode fazer: "...eles eram, portanto, totalmente inúteis".
QUANDO A ESCOLA É A ALDEIA
A educação existe onde não há a escola e por toda parte podem haver redes e
estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, onde ainda não foi sequer
criada a sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado. Porque a educação aprende
com o homem a continuar o trabalho da vida. A vida que transporta de uma espécie para a
outra, dentro da história da natureza, e de uma geração a outra de viventes, dentro da história
da espécie, os princípios através dos quais a própria vida aprende e ensina a sobreviver e a
evoluir em cada tipo de ser.
Os bichos do mundo aprendem de dentro para fora com as armas naturais do instinto.
Mas a isto eles acrescentam maneiras de aprender de fora para dentro, convivendo com a
espécie, observando a conduta de outros iguais de seu mundo e experimentando repetir muitas
vezes essas condutas da espécie, por conta própria. Entre os que nos rodeiam de perto ou de
longe, não são raros os bichos cujos pais da prole criam e recriam situações, para que o treino
dos filhotes faça e repita os atos da aprendizagem que garante a vida, como a mãe que um dia
expulsa com amor o filho do ninho, para que ele aprenda a arte e a coragem do primeiro vôo.
O homem que transforma, com o trabalho e a consciência, partes da natureza em
invenções de sua cultura, aprendeu com o tempo a transformar partes das trocas feitas no
interior desta cultura em situações sociais de aprender-ensinar-e-aprender: em educação. Na
espécie humana a educação não continua apenas o trabalho da vida. Ela se instala dentro de
um domínio propriamente humano de trocas: de símbolos, de intenções, de padrões de cultura
e de relações de poder. Mas, a seu modo, ela continua no homem o trabalho da natureza de
fazê-lo evoluir, de torná-lo mais humano. É esta a idéia que Werner Jaeger tem na cabeça
quando, num estudo sobre a educação do homem grego, procura explicar o que ela é,afinal:
"A natureza do homem, na sua dupla estrutura corpórea e espiritual, cria condições
especiais para a manutenção e transmissão da sua forma particular e exige organizações
físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educação. Na educação, como o
homem a pratica, atua a mesma força vital, criadora e plástica, que espontaneamente impele
todas as espécies vivas à conservação e à propagação de seu tipo. É nela, porém, que essa
força atinge o seu mais alto grau de intensidade, através do esforço consciente do conhecimento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim."
Quando um povo alcança um estágio complexo de organização da sua sociedade e de
sua cultura; quando ele enfrenta, por exemplo, a questão da divisão social do trabalho e,
portanto, do poder, é que ele começa a viver e a pensar como problema as formas e os
processos de transmissão do saber. É a partir de então que a questão da educação emerge à
consciência e o trabalho de educar acrescenta à sociedade, passo a passo, os espaços,
sistemas, tempos, regras de prática, tipos de profissionais e categorias de educandos
envolvidos nos exercícios de maneiras cada vez menos corriqueiras e menos comunitárias do
ato, afinal tão simples, de ensinar-e-aprender.
No entanto, muito antes que isso aconteça, em qualquer lugar e a qualquer tempo —
entre dez índios remanescentes de alguma tribo do Brasil Central, no centro da cidade de São
Paulo — a educação existe sob tantas formas e é praticada em situações tão diferentes, que
algumas vezes parece ser invisível, a não ser nos lugares onde pendura alguma placa na porta
com o seu nome.
Quando os antropólogos do começo do século saíram pelo mundo pesquisando
"culturas primitivas" de sociedades tribais das Américas, da Ásia, da África e da Oceania, eles
aprenderam a descrever com rigor praticamente todos os recantos da vida destas sociedades e
culturas. No entanto, quase nenhum deles usa a palavra educação, embora quase todos, de
uma forma ou de outra, descrevam relações cotidianas ou cerimônias rituais em que crianças
aprendem e jovens são solenemente admitidos no mundo dos adultos.
De vez em quando, aparece, perdido num mar de outros conceitos, o de educação,
como quando Radcliffe-Brown - um antropólogo inglês que participa da criação da moderna
Antropologia Social - lembra que, entre os andamaneses, um grupo tribal de ilhéus entre
Burma e Sumatra, para se ajustar a criança à sua comunidade "é preciso que ela seja
educada". Parte deste processo consiste em a criança e o adolescente aprenderem aos poucos a
caçar, a fabricar o arco e flecha e assim por diante. Outra parte envolve . a aquisição de
"sentimentos e disposições emocionais" que regulam a conduta dos membros da tribo e
constituem o corpo de suas regras sociais de moralidade.
Quando os antropólogos pouco falam em educação, eles pouco querem falar de
processos formalizados de ensino. Porque, onde os andamaneses, os maori, os apaches ou os
xavantes praticam, e os antropólogos identificam processos sociais de aprendizagem, não
existe ainda nenhuma situação propriamente escolar de transferência do saber tribal que vai
do fabrico do arco e flecha à recitação das rezas sagradas aos deuses da tribo. Ali, a sabedoria
acumulada do grupo social não "dá aulas" e os alunos, que são todos os que aprendem, "não
aprendem na escola". Tudo o que se sabe aos poucos se adquire por viver muitas e diferentes
situações de trocas entre pessoas, com o corpo, com a consciência, com o corpo-e-aconsciência. As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de quem
sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam os
momentos e situações de aprender de crianças e adolescentes, são raros os tempos
especialmente reservados apenas para o ato de ensinar.
Nas aldeias dos grupos tribais mais simples, todas as relações entre a criança e a
natureza, guiadas de mais longe ou mais perto pela presença de "adultos conhecedores, são
situações de aprendizagem. A criança vê, entende, imita e aprende com a sabedoria que existe
no próprio gesto de fazer a coisa. São também situações de aprendizagem aquelas em que as
pessoas do grupo trocam bens materiais entre si ou trocam serviços e significados: a turma de
caçada, no barco de pesca, no canto da cozinha da palhoça, na lavoura familiar ou comunitária
de mandioca, nos grupos de brincadeiras de meninos e meninas, nas cerimônias religiosas.
Émile Durkheim, um dos principais sociólogos da educação, explica isto da seguinte
maneira:
"Sob regime tribal, a característica essencial da educação reside no fato de ser difusa
e administrada indistintamente por todos os elementos o clã. Não há mestres determinados,
nem inspetores especiais para a formação da juventude: esses papéis são desempenhados por
todos os anciãos e pelo conjunto das gerações anteriores."
As meninas aprendem com as companheiras de idade, com as mães, as avós, as irmãs
mais velhas, as velhas sábias da tribo, com esta ou aquela especialista em algum tipo de magia
ou artesanato. Os meninos aprendem entre os jogos e brincadeiras de seus grupos de idade,
aprendem com os pais, os irmãos-da-mãe, os avós, os guerreiros, com algum xamã (mago,
feiticeiro), com os velhos em volta das fogueiras. Todos os agentes desta educação de aldeia
criam de parte a parte as situações que, direta ou indiretamente, forçam iniciativas de
aprendizagem e treinamento. Elas existem misturadas com a vida em momentos de trabalho,
de lazer, de camaradagem ou de mor. Quase sempre não são impostas e não é raro que sejam
os aprendizes os que tomam a seu cargo procurar pessoas e situações de troca que lhes
possam trazer algum aprendizado. Assim, entre os Wogeo, da Nova Guiné, de acordo com o
depoimento de um antropólogo:
"Onde é necessário aprender habilidades especiais as crianças estão, em regra geral,
ansiosas por saber o que os seus pais conhecem. O orgulho do trabalhador e o prestígio do
bom artesão ominam sua vida e elas necessitam de muito pouco estímulo para procurá-los
por si mesmas."
O saber da comunidade, aquilo que todos conhecem de algum modo; o saber próprio
dos homens e das mulheres, de crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos; o saber de
guerreiros e esposas; o saber que faz o artesão, o sacerdote, o feiticeiro, o navegador e outros
tantos especialistas, envolve portanto situações pedagógicas interpessoais, familiares e
comunitárias, onde ainda não surgiram técnicas pedagógicas escolares, acompanhadas de seus
profissionais de aplicação exclusiva. Os que sabem: fazem, ensinam, vigiam, incentivam,
demonstram, corrigem, punem e premiam. Os que não sabem espiam, na vida que há no
cotidiano, o saber que ali existe, vêem fazer e imitam, são instruídos com o exemplo,
incentivados, treinados, corrigidos, punidos, premiados e, enfim, aos poucos aceitos entre os
que sabem fazer e ensinar, com o próprio exercício vivo do fazer. Esparramadas pelos cantos
do cotidiano, todas as situações entre pessoas, e entre pessoas e a natureza — situações
sempre mediadas pelas regras, símbolos e valores da cultura do grupo — têm, em menor ou
maior escala a sua dimensão pedagógica. Ali, todos os que convivem aprendem, aprendem, da
sabedoria do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo, o saber que torna todos
e cada um pessoalmente aptos e socialmente reconhecidos e legitimados para a convivência
social, o trabalho, as artes da guerra e os ofícios, do amor.
"Os meninos observam os homens quando fazem arcos e flechas; o homem os chama
para perto de si e eles se vêem obrigados a observá-lo. As mulheres, por outro lado, levam as
meninas para fora de casa, ensinando-as a conhecer as plantas boas para confeccionar cestos e
a argila que serve para fazer potes. E, em casa, as mulheres tecem os cestos, costuram os
mocassins e curtem a pele de cabrito diante das meninas, dizendo-lhes, enquanto estão
trabalhando, que observem cuidadosamente, para que, quando forem grandes, ninguém as
possa chamar de preguiçosas e ignorantes. Ensinam-nas a cozinhar e aconselham-nas sobre a
busca de bagas e outros frutos, assim como sobre a colheita de alimentos."
Em todos os grupos humanos mais simples, os diversos tipos de treinamento através
das trocas sociais, que socializam crianças e adolescentes, incluem, entre outras, estas
situações pedagógicas:

treinamento direto de habilidades corporais, por meio da prática direta
dos atos que conduzem o corpo ao hábito;

a estimulação dirigida, para que o aprendiz faça e repita, até o acerto,
os atos de saber e habilidade que ignora;

a observação livre e dirigida, do educando, dos procedimentos
daqueles que sabem;

a correção interpessoal, familiar ou comunitária, das práticas ou das
condutas erradas, por meio do castigo, do ridículo ou da admoestação;

a assistência convocada para cerimônias rituais e, aos poucos (ou
depois de uma iniciação), o direito à participação nestas cerimônias (solenidades
religiosas, danças, rituais de passagem);

a inculcação dirigida em situações de quase-ensino, com o uso da
palavra e turmas de ouvintes, dos valores morais, dos mitos histórico-religiosos da
tribo, das regras dos códigos de conduta.
Assim, tudo o que é importante para a comunidade, e existe como algum tipo de saber,
existe também como algum modo de ensinar. Mesmo onde ainda não criaram a escola, ou nos
intervalos dos lugares onde ela existe, cada tipo de grupo humano cria e desenvolve situações,
recursos e métodos empregados para ensinar às crianças, aos adolescentes, e também aos
jovens e mesmo aos adultos, o saber, a crença e os gestos que os tornarão um dia o modelo de
homem ou de mulher que o imaginário de cada sociedade — ou mesmo de cada grupo mais
específico, dentro dela — idealiza, projeta e procura realizar. De duas tribos vizinhas de
pastores do deserto, é possível que se dê franca importância a um artifício pedagógico, em
uma delas, como o castigo corporal, por exemplo, ou a atemorização de crianças, e ele seja
simplesmente rejeitado na outra. Mas em uma e na outra, como em todas do mundo, nunca as
pessoas crescem a esmo e aprendem ao acaso.
O que vimos acontecer até aqui, formas vivas e comunitárias de ensinar-e-aprender,
tem sido chamado com vários nomes. Ao processo global que tudo envolve, é comum que se
dê o nome de socialização. Através dela, ao longo da vida, cada um de nós passa por etapas
sucessivas de inculcação de tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas de saber-ehabilidade. Elas fazem, em conjunto, o contorno da identidade, da ideologia e do modo de
vida de um grupo social. Elas fazem, também, do ponto de vista de cada um de nós, aquilo
que aos poucos somos, sabemos, fazemos e amamos. A socialização realiza em sua esfera as
necessidades e projetos da sociedade, e realiza, em cada um de seus membros, grande parte
daquilo que eles precisam para serem reconhecidos como "seus" e para existirem dentro dela.
Ora, no interior de todos os contextos sociais coletivos de formação do adulto, o
processo de aquisição pessoal de saber-crença-e-hábito de uma cultura, que funciona sobre
educandos como uma situação pedagógica total, pode ser chamado (com algum susto) de
endoculturação. Dentro de sua cultura, em sua sociedade, aprender de maneira mais ou menos
intencional (alguns dirão: "mais ou menos consciente"), através do envolvimento direto do
corpo, da mente e da afetividade, entre as incontáveis situações de relação com a natureza e
de trocas entre os homens, é parte do processo pessoal de endoculturação, e é também parte
da aventura humana do "tornar-se pessoa".
Vista em seu vôo mais livre, a educação é uma fração da experiência endoculturativa.
Ela aparece sempre que há relações entre pessoas e intenções de ensinar-e-aprender.
Intenções, por exemplo, de aos poucos "modelar" a criança, para conduzi-la a ser o "modelo"
social de adolescente e, ao adolescente, para torná-lo mais adiante um jovem e, depois, um
adulto. Todos os povos sempre traduzem de alguma maneira esta lenta transformação que a
aquisição do saber deve operar. Ajudar a crescer, orientar a maturação, transformar em, tornar
capaz, trabalhar sobre, domar, polir, criar, como um sujeito social, a obra, de que o homem
natural é a matéria-prima.
Não é nada raro que tanto na cabeça de um índio quanto na de um de nossos
educadores ocidentais, a melhor imagem de como a educação se idealiza seja a do oleiro que
toma o barro e faz o pote. O trabalho cuidadoso do artesão que age com tempo e sabedoria
sobre a argila viva que é o educando. A argila que resiste às mãos do oleiro, mas que se deixa
conduzir por elas a se transformar na obra feita: o adulto educado. Quando o educador pensa a
educação, ele acredita que, entre homens, ela é o que dá a forma e o polimento. Mas ao fazer
isso na prática, tanto pode ser a mão do artista que guia e ajuda o barro a que se transforme,
quanto a forma que iguala e deforma.
É bom separar agora algumas palavras usadas até aqui e que serão ainda trabalhadas
mais adiante. Tudo o que existe transformado da natureza pelo trabalho do homem e
significado pela sua consciência é uma parte de sua cultura: o pote de barro, as palavras da
tribo, a tecnologia da agricultura, da caça ou da pesca, o estilo dos gestos do corpo nos atos do
amor, o sistema de crenças religiosas, as estórias da história que explica quem aquela gente é
e de onde veio, as técnicas e situações de transmissão do saber. Tudo o que existe disponível e
criado em uma cultura como conhecimento que se adquire através da experiência pessoal com
o mundo ou com o outro; tudo o que se aprende de um modo ou de outro faz parte do
processo de endoculturação, através do qual um grupo social aos poucos socializa, em sua
cultura, os seus membros, como tipos de sujeitos sociais.
Ora, a educação é o território mais motivado deste mapa. Ela existe quando a mãe
corrige o filho para que ele fale direito a língua do grupo, ou quando fala à filha sobre as
normas sociais do modo de "ser mulher" ali. Existe também quando o pai ensina ao filho a
polir a ponta da flecha, ou quando os guerreiros saem com os jovens para ensiná-los a caçar.
A educação aparece sempre que surgem formas sociais de condução e controle da aventura de
ensinar-e-aprender. O ensino formal é o momento em que a educação se sujeita à pedagogia
(a teoria da educação), cria situações próprias para o seu exercício, produz os seus métodos,
estabelece suas regras e tempos, e constitui executores especializados. É quando aparecem a
escola, o aluno e o professor de quem começo a falar daqui para frente.
ENTÃO, SURGE A ESCOLA
Mesmo em algumas sociedades primitivas, quando o trabalho que produz os bens e
quando o poder que reproduz a ordem são divididos e começam a gerar hierarquias sociais,
também o saber comum da tribo se divide, começa a se distribuir desigualmente e pode passar
a servir ao uso político de reforçar a diferença, no lugar de um saber anterior, que afirmava a
comunidade.
Então é o começo de quando a sociedade separa e aos poucos opõe: o que faz, o que se
sabe com o que se faz e o que se faz com o que se sabe. Então é quando, entre outras
categorias de especialidades sociais, aparecem as de saber e de ensinar a saber. Este é o
começo do momento em que a educação vira o ensino, que inventa a pedagogia, reduz a
aldeia à escola e transforma "todos" no educador.
O que é que isto significa? Significa que, para além das fronteiras do saber comum de
todas as pessoas do grupo e transmitido entre todos livre e pessoalmente, para além do saber
dividido dentro do grupo entre categorias naturais de pessoas (homens e mulheres, crianças,
jovens, adultos e velhos) e transferido de uns aos outros segundo suas linhas de sexo ou de
idade, por exemplo, emergem tipos e graus de saber que correspondem desigualmente a
diferentes categorias de sujeitos (o rei, o sacerdote, o guerreiro, o professor, o lavrador), de
acordo com a sua posição social no sistema político de relações do grupo. Onde todos
aprendem para serem "gente", "adulto", "um dos nossos" e, meio a meio, alguns aprendem
para serem "homem" e outros para serem "mulher", outros ainda começam a aprender para
serem "chefe", "feiticeiro", "artista", "professor", "escravo". A diferença que o grupo
reconhece neles por vocação ou por origem, a diferença do que espera de cada um deles como
trabalho social qualificado por um saber, gera o começo da desigualdade da educação de
"homem comum" ou de "iniciado", que cada um deles diferentemente começa a receber.
Uma divisão social do saber e dos agentes e usuários do saber como essa existe
mesmo em sociedades muito simples. Em seu primeiro plano de separação - o mais universal
— numa idade sempre próxima à da adolescência, meninos e meninas são isolados do resto da
tribo. Em alguns casos convivem entre iguais e com adultos por períodos de reclusão e
aprendizagem que envolvem situações de ensino forçado e duras provas de iniciação. Todo o
trabalho pedagógico da formação destes jovens é conduzido por categorias de educadores
escolhidos entre todos para este tipo de ofício, de que os meninos saem jovens-adultos e
guerreiros, por exemplo, e as meninas, moças prontas para a posse de um homem, uma casa e
alguns filhos.
Nas suas formas mais simples, estas situações pedagógicas de ensino especializado
que apressa o adulto que há no jovem podem ser muito breves. Podem envolver pouco mais
do que momentos provocados de convivência intensificada entre grupos de adolescentes e
grupos de adultos. Depressa eles são devolvidos ao grupo social e, quase sempre, depois de
cerimônias públicas de iniciação (os ritos de passagem), são reconhecidos, pela posição que o
grupo lhes atribui e pelo saber que lhes reconhece, como homens e mulheres aptos e legítimos
para a vida do adulto da tribo.
Outras vezes este período de aprendizagem separada é muito mais longo, muito mais
diversificado e, por certo, muito mais próximo dos modelos de agências e procedimentos de
ensino que temos na cabeça quando pensamos em educação. Em sociedades tribais da Libéria
e de Serra Leoa, na África, há tipos de escolas para os meninos (as escolas "Poro") e para as
meninas (as escolas "Sande"). De tribo para tribo os meninos estudam por períodos que vão
de ano e meio a oito anos. Estudam, convivem entre si e com seus mestres, e treinam.
Divididos de acordo com seus grupos de idade (como em nossas "séries"), eles aprendem as
crenças, as tradições e os costumes culturais da tribo, além do saber dos ofícios de guerra e
paz. A escola Poro leva em conta diferenças individuais e, com o trabalho docente de
diferentes professores-especialistas, forma novos especialistas. Se um menino demonstra
talentos para o trabalho do fabrico de tecidos, de couro, para o exercício da dança, ou para os
ofícios da medicina tribal, ele acrescenta estes treinos e estudos ao corpo comum do programa
por que passa com todos os outros companheiros de idade.
Entre grupos de pescadores da Nova Zelândia e do Arquipélago da Sociedade, existem
"casas de ensino", verdadeiras universidades em escala indígena, onde toda a sabedoria da
cultura é ensinada aos jovens de ambos os sexos por professores-sacerdotes. Durante a metade
do ano estas "casas" permanecem abertas e, por todo o dia, oferecem cursos com alguma
teoria e muita prática sobre pelo menos os seguintes assuntos: genealogia, tradições e história,
princípios de crença e cultos religiosos, magia, artes da navegação, agricultura, dança,
literatura. O programa de ensino divide a "Mandíbula Superior", onde os jovens aprendem
com os sacerdotes os segredos do sagrado, da "Mandíbula Inferior", relacionada com os
assuntos terrenos.
Em um segundo plano, mais restrito e mais marcadamente político, diferentes
categorias de meninos e meninas recebem o saber especializado que há em uma "educação de
minorias privilegiadas", destinadas por herança aos cargos de chefia. Assim acontece, por
exemplo, entre quase todos os grupos originais do Havaí, onde os nobres e outros jovens
selecionados de antemão para postos futuros de poder sobre os outros passavam por
verdadeiros cursos superiores de estudos que lhes tomavam quase todo o tempo da
adolescência e da juventude. A tribo que mais adiante submeterá a eles a chefia comunitária
— o trabalho social de dirigir — atribuirá a eles como um direito, e exigirá deles como um
dever, o saber especializado do chefe. E o próprio tempo prolongado de estudo, treino e teste,
muito mais do que o de todos os outros meninos, vale como um atestado social de diferenças
entre o chefe e os outros, dado pela educação.
Mesmo os grupos que, como os nossos, dividem e hierarquizam tipos de saber, de
alunos e de usos do saber, não podem abandonar por inteiro as formas livres, familiares e/ou
comunitárias de educação. Em todos os cantos do mundo, primeiro a educação existe como
um inventário amplo de relações interpessoais diretas no âmbito familiar: mãe-filha, pai-filho,
sobrinho-irmão-da-mãe, irmão-mais-velho-irmão-caçula e assim por diante. Esta é a rede de
trocas de saber mais universal e mais persistente na sociedade humana. Depois, a educação
pode existir entre educadores-educandos não parentes — mas habitantes de uma mesma
aldeia, de uma mesma cidade, gente de uma mesma linguagem — semiespecializados ou
especialistas do saber de algum ofício mais amplo ou mais restrito: artesão-aprendiz,
sacerdote-iniciado, cavaleiro-escudeiro, e tantos outros.
Até aqui o espaço educacional não é escolar. Ele é o lugar da vida e do trabalho: a
casa, o templo, a oficina, o barco, o mato, o quintal. Espaço que apenas reúne pessoas e tipos
de atividade e onde viver o fazer faz o saber.
Em todo o tipo de comunidade humana onde ainda não há uma rigorosa divisão social
do trabalho entre classes desiguais, e onde o exercício social do poder ainda não foi
centralizado por uma classe como um Estado, existe a educação sem haver a escola e existe a
aprendizagem sem haver o ensino especializado e formal, como um tipo de prática social
separada das outras. E da vida.
Mesmo nas grandes sociedades civilizadas do passado — como na Grécia e em Roma,
com que vamos nos encontrar um pouco mais adiante — um sistema pedagógico controlado
por um poder externo a ele, atribuído de fora para dentro a uma hierarquia de especialistas do
ensino, e destinado a reproduzir a desigualdade através da oferta desigual do saber, é uma
conquista tardia na história da cultura.
Em nome de quem os constitui educadores, estes especialistas do ensino aos poucos
tomam a seu cargo a tarefa de assumir, controlar e recodificar domínios, sistemas, modos e
usos do saber e das situações coletivas de distribuição do saber. Onde quer que apareça e em
nome de quem venha, todo o corpo profissional de especialistas do ensino tende a dividir e a
legitimar divisões do conhecimento comunitário, reservando para o seu próprio domínio tanto
alguns tipos e graus do saber da cultura, quanto algumas formas e recursos próprios de sua
difusão.
Assim, aos poucos acontece com a educação o que acontece com todas as outras
práticas sociais (a medicina, a religião, o bem-estar, o lazer) sobre as quais um dia surge um
interesse político de controle. Também no seu interior, sistemas antes comunitários de trocas
de bens, de serviços e de significados são em parte controlados por confrarias de especialistas,
mediadores entre o poder e o saber.
Os estudos mais recentes da História têm indicado que a palavra escrita parece ter
surgido em sociedades-estado enriquecidas e com um poder muito centralizado, como entre
os egípcios ou entre os astecas. Ela teria aparecido primeiro sendo usada pelos escribas, para
fazer a contabilidade dos bens dos reis e faraós. Só mais tarde é que foi usada também pelos
poetas para cantarem as coisas da aldeia e de sua gente. Assim também a educação. Por toda a
parte onde ela deixa de ser totalmente livre e comunitária (não escrita) e é presa na escola,
entre as mãos de educadores a serviço de senhores, ela tende a inverter as utilizações dos seus
frutos: o saber é a repartição do saber. A educação da comunidade de iguais que reproduzia
em um momento anterior a igualdade, ou a complementariedade social, por sobre diferenças
naturais, começa a reproduzir desigualdades sociais por sobre igualdades naturais, começa
desde quando aos poucos usa a escola, os sistemas pedagógicos e as "leis do ensino" para
servir ao poder de uns poucos sobre o trabalho e a vida de muitos. Onde um tipo de educação
pode tomar homens e mulheres, crianças e velhos, para torná-los todos sujeitos livres que por
igual repartem uma mesma vida comunitária; um outro tipo de educação pode tomar os
mesmos homens, das mesmas idades, para ensinar uns a serem senhores e outros, escravos,
ensinando-os a pensarem, dentro das mesmas idéias e com as mesmas palavras, uns como
senhores e outros, como escravos.
Nas sociedades primitivas que nos acompanharam até aqui, a educação escolar que
ajuda a separar o nobre do plebeu parece ser um ponto terminal na escala de invenção dos
recursos humanos de transferência do saber de uma geração a outra. Também nas sociedades
ocidentais como a nossa — sociedades complexas, sociedades de classes, sociedades
capitalistas — a educação escolar é uma invenção recente na história de cada uma. Da
maneira como existe entre nós, a educação surge na Grécia e vai para Roma, ao longo de
muitos séculos da história de espartanos, atenienses e romanos. Deles deriva todo o nosso
sistema de ensino e, sobre a educação que havia em Atenas, até mesmo as sociedades
capitalistas mais tecnologicamente avançadas têm feito poucas inovações. Talvez estejam,
portanto, entre os seus inventos e escolas, algumas das respostas às nossas perguntas.
PEDAGOGOS, MESTRES-ESCOLA E SOFISTAS
Todas as grandes sociedades ocidentais que, como Atenas e Roma, emergiram de seus
bandos errantes, de suas primeiras tribos de clãs de pastores ou camponeses, aprenderam a
lidar com a educação do mesmo modo como qualquer outro grupo humano, em qualquer
outro tempo. Tal como entre os índios das Seis Nações, os primeiros assuntos e problemas da
educação grega foram os dos ofícios simples dos tempos de paz e de guerra. O que se ensina e
aprende entre os primeiros pastores, mesmo quando eles começaram rusticamente a
enobrecer, envolve o saber da agricultura e do pastoreio, do artesanato de subsistência
cotidiana e da arte. Tudo isso misturado, sem muitos mistérios, com os princípios de honra, de
solidariedade e, mais do que tudo, de fidelidade à polis, a cidade grega onde começa e acaba a
vida do cidadão livre e educado. Esta educação grega é, portanto, dupla, e carrega dentro dela
a oposição que até hoje a nossa educação não resolveu. Ali estão normas de trabalho que,
quando reproduzidas como um saber que se ensina para que se faça, os gregos acabaram
chamando de tecne e que, nas suas formas mais rústicas e menos enobrecidas, ficam relegadas
aos trabalhadores manuais, livres ou escravos. Ali estão normas de vida que, quando
reproduzidas como um saber que se ensina para que se viva e seja um tipo de homem livre e,
se possível, nobre, os gregos acabaram chamando de teoria. Este saber que busca no homem
livre o seu mais pleno desenvolvimento e uma plena participação na vida da polis é o próprio
ideal da cultura grega e é o que ali se tinha em mente quando se pensava na educação.
De tudo o que pode ser feito e transformado, nada é para o grego uma obra de arte tão
perfeita quanto o homem educado. A primeira educação que houve em Atenas e Esparta foi
praticada entre todos, nos exercícios coletivos da vida, em todos os cantos onde as pessoas
conviviam na comunidade. Quando a riqueza da polis grega criou na sociedade estruturas de
oposição entre livres e escravos, entre nobres e plebeus, aos meninos nobres da elite guerreira
e, mais tarde, da elite togada é que a educação foi dirigida. Por alguns séculos, mesmo para
eles, ainda não havia a escola.
Das relações familiares diretas até a convivência entre jovens, segundo os seus grupos
de idade, ou entre grupos de meninos educandos e um velho educador, entre os gregos sempre
se conservou a idéia de que todo o saber que se transfere pela educação circula através de
trocas interpessoais, de relações física e simbolicamente afetivas entre as pessoas. Assim, a
pederastia acaba sendo considerada em Esparta como a forma mais pura e mais completa de
educação entre homens livres e iguais. Em toda a Grécia a formação do nobre guerreiro
apenas desenrola ao longo dos anos uma seqüência de trocas entre um mestre e seus
discípulos.
Aquilo que a cultura grega chama com pleno efeito de educação — paideia — dando à
palavra o sentido de formação harmônica do homem para a vida da polis, através do
desenvolvimento de todo o corpo e toda a consciência, começa de fato fora de casa, depois
dos sete anos. Até lá a criança convive com a sua criação, convivendo com a mãe e escravos
domésticos.
Para além ainda do que entre os sete e os catorze anos aprende com o mestre-escola, a
verdadeira educação do jovem aristocrata é o fruto do lento trabalho de um ou de poucos
mestres que acompanham o educando por muitos anos.
Em Atenas, por volta do VI século A.C., a educação deixa de ser uma prática coletiva,
de estilo militar, destinada apenas à formação do cidadão nobre. Até então, mesmo no apogeu
da democracia grega, a propriedade é restritamente comunal; pertence aos cidadãos ativos do
Estado. O poder pertence aos estratos mais nobres destes cidadãos ativos, e a vida e o trabalho
colocam de um lado os homens livres, senhores e, de outro, os escravos ou outros tipos de
trabalhadores manuais expulsos do direito do saber que existe na paideia.
Durante muitos séculos os "pobres" da Grécia aprenderam desde criança fora das
escolas: nas oficinas e nos campos de lavoura e pastoreio. Os meninos "ricos" inicialmente
aprenderam também fora da escola, em acampamentos ou ao redor de velhos mestres. Além
das agências estatais de educação, como a Efebia de Esparta, que educava o jovem nobreguerreiro, toda a educação fora do lar e da oficina é uma empresa particular, mesmo quando
não é paga. Particular e restrita a muito pouca gente.
Apenas quando a democratização da cultura e da participação na vida pública colocam
a necessidade da democratização do saber, é que surge a escola aberta a qualquer menino livre
da cidade-estado. A escola primária surge em Atenas por volta do ano 600 A.C. Antes dela
havia locais de ensino de metecos e rapsodistas que aos interessados ensinavam "a fixar em
símbolos os negócios e os cantos". Só depois da invenção da escola de primeiras letras é que o
seu estudo é pouco a pouco incorporado à educação dos meninos nobres. Assim, surgem em
Atenas escolas de bairro, não raro "lojas de ensinar", abertas entre as outras no mercado. Ali
um humilde mestre-escola, "reduzido pela miséria a ensinar", leciona as primeiras letras e
contas. O menino escravo, que aprende com o trabalho a que o obrigam, não chega sequer a
esta escola. O menino livre e plebeu em geral pára nela. O menino livre e nobre passa por ela
depressa em direção aos lugares e aos graus onde a educação grega forma de fato o seu
modelo de "adulto educado". Citação de Sólon, legislador grego:
"As crianças devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler; em seguida, os pobres
devem exercitar-se na agricultura ou em uma indústria qualquer, ao passo que os ricos
devem se preocupar com a música e a equitação, e entregar-se à filosofia, à caça e à
freqüência aos ginásios."
Esta concepção Xenofonte, historiador, poeta, filósofo e militar grego, criticaria quase
dois séculos depois:
"Só os que podem criar os seus filhos para não fazerem nada é que os enviam à escola;
os que não podem, não enviam."
A educação do jovem livre vai em direção à teoria, que é o saber do nobre para
compreender e comandar, não para fazer, curar ou construir. Durante toda a antigüidade a
única disciplina técnica (entendida como a de uma formação que aponta para um ofício
determinado) é a medicina. Não há outras escolas coletivas de ensino técnico para o preparo
de arquitetos, engenheiros ou agrimensores, por exemplo. Tal como ferreiros ou tecelões, eles
aprendem de maneira simples e direta, na oficina e no trabalho, através do convívio com
algum velho artífice.
Diferenças de saber de classe dos educandos produziram diferenças curiosas entre os
tipos de educadores da Grécia antiga. De um lado, desprezíveis mestres-escola e artesãosprofessores; de outro, escravos pedagogos e educadores nobres, ou de nobres. De um lado, a
prática de instruir para o trabalho; de outro, a de educar para a vida e o poder que determina a
vida social.
De todos estes adultos transmissores de saber vale a pena falar do pedagogo. Pequenas
estatuetas de terracota guardam a memória dele. Artistas gregos representaram esses velhos
escravos — quase sempre cativos estrangeiros — conduzindo crianças a caminho da escola de
primeiras letras. E por que eles e não os mestres que nas escolas ensinavam? Porque os
escravos pedagogos — condutores de crianças — eram afinal seus educadores, muito mais do
que os mestres-escola. Eles conviviam com a criança e o adolescente e, mais do que os pais,
faziam a educação dos preceitos e das crenças da cultura da polis. O pedagogo era o educador
por cujas mãos a criança grega atravessava os anos a caminho da escola, por caminhos da
vida.
Nos primeiros tempos, mais do que filósofos ou matemáticos, os gregos foram
guerreiros, músicos e ginastas. Assim, mais do que jurídica ou científica, a educação do
cidadão livre era ética e artística (no pleno sentido que estas duas palavras possuíam na
paideia grega), dentro de uma cultura pouco acostumada a separar a verdade da beleza. Mais
tarde, sob a influência de Sócrates e Epicuro (um sujeito feio e outro doentio) é que a
educação começa a ser pensada como formadora do espírito. Por muitos e muitos séculos ela
aponta para a harmonia que existe na beleza do corpo (e a destreza para a luta) ao lado da
clareza da mente (e a fidelidade à polis dos cidadãos livres). Mesmo no nível da cultura
letrada dos nobres, a civilização clássica não conservou sempre um único modelo ou estilo de
saber, logo, de educação. Ela oscilou entre duas formas de algum modo antagônicas: a
filosófica, cujo tipo dominante pode ser Platão, e a oratória (retórica), cujo tipo dominante
pode ser Isócrates.
Depois de constituídas as classes de homens livres que regem a democracia dos gregos
sobre a divisão do trabalho e a instituição do regime escravagista, para os seus adolescentes a
educação coletiva não é uma atividade voluntária ou um direito de berço. É um dever imposto
pela polis ao livre. Porque o seu exercício modela não um homem abstrato, sonho de poetas,
mas o cidadão maduro para o serviço à comunidade, projeto do político. Assim, o ideal da
educação é reproduzir uma ordem social idealmente concebida como perfeita e necessária,
através da transmissão, de geração a geração, das crenças, valores e habilidades que tornavam
um homem tão mais perfeito quanto mais preparado para viver a cidade a que servia. E nada
poderia haver de mais precioso, a um homem livre e educado, do que o próprio saber e a
identidade de sábio que ele atribui ao homem.
Depois de haver conquistado a cidade onde vivia o filósofo Estilpão, Demétrio
Poliorceto pretendeu indenizá-lo pelos prejuízos materiais que sofrera por causa da pilhagem.
Quando pediu que fizesse o inventário do que lhe pertencera e fora destruído, Estilpão
respondeu que nada havia perdido do que era seu, porque não lhe haviam roubado a sua
cultura — — dado que ainda conservava a eloqüência e o saber.
O formador de jovens, o educador, o filósofo-mestre como Sócrates, Platão e
Aristóteles, reúnem à sua volta os seus alunos, em suas escolas superiores. A escola
filosófico-iniciática de Pitágoras, que interna educandos, cria regras próprias de conduta e
lhes absorve boa parte do tempo da juventude, antecede a Academia de Platão, o Liceu de
Aristóteles e a Escola de Epicuro. Mas são os filósofos sofistas os que democratizam o ensino
superior, tornando-o remunerado e, portanto, aberto a todos os que podem pagar. Após a
longa crise de tirania por volta do VI século A.C., a vida social de Atenas possibilita a
participação de todos os cidadãos livres, e isto recoloca a questão do preparo do homem para
o exercício da cidadania, a questão de aprender para legislar e para estar de algum modo
presente nas assembléias de representação política. Os sofistas transformam a educação
superior em um tempo de formação do orador, onde a qualidade da retórica tem mais valor do
que a busca desinteressada da verdade, exercício dos nobres dos períodos anteriores.
Aos poucos até Aristóteles e Alexandre Magno, muito depressa durante a Civilização
Helenística, a educação clássica passa por algumas mudanças:
1) ela vai do cultivo aristocrático do corpo e da mente, com vistas à formação do nobre
guerreiro e dirigente, à habilitação do cidadão livre, comum, para a carreira política;
2) ela vai de um domínio do "saber desinteressado", de fundo artístico-musical, para o
literário, daí para o retórico, o livresco e o escolar (de aprender a sabedoria para aprender a
informação);
3) ela vai das agências de reprodução restrita do saber de nobres, entre nobres, para o
saber disponível, à venda em escolas pagas que educam da criança ao adulto.
Com o tempo a educação clássica deixa de ser um assunto privado, posse e questão da
comunidade dos nobres dirigentes, e passa a ser questão de Estado, pública. Aristóteles exige
do Imperador leis que regulem direitos e controlem o exercício da educação. Atrás das tropas
de conquista de Alexandre Magno, os gregos levam as suas escolas por todo o mundo. Elas
são, mais do que tudo, o meio de impedir que a distância da Pátria de origem ameace perderse a cultura do vencedor entre os costumes e o saber dos vencidos.
Como seria possível fazer uma síntese dos princípios que orientaram toda a educação
clássica criada pelos gregos? Ela foi sempre entendida como um longo processo pelo qual a
cultura da cidade é incorporada à pessoa do cidadão. Uma trajetória de amadurecimento e
formação (como a obra de arte que aos poucos se modela), cujo produto final é o adulto
educado, um sujeito perfeito segundo um modelo idealizado de homem livre e sábio, mas
ainda sempre aperfeiçoável. Assim, a educação grega não é dirigida à criança no sentido cada
vez mais dado a ela hoje em dia. De algum modo, é uma educação contra a criança, que não
leva em conta o que ela é, mas olha para o modelo do que pode ser, e que anseia torná-la
depressa o jovem perfeito (o guerreiro, o atleta, o artista de seu próprio corpo-e-mente) e o
adulto educado (o cidadão político a serviço da polis).
Esta educação humanista de uma sociedade que deixa ao escravo e ao artesão livre o
trabalho de fazer, desdenha a técnica e olha para "o homem todo", formado de aprender a
teoria e praticar o gesto que constróem o saber e o hábito do homem livre. Em seu pleno
sentido, é uma educação ética cujo saber conduz o sábio a viver, com a sua própria vida, o
modelo de um modo de ser idealizado, tradicional, que é missão da paideia conservar e
transmitir.
Finalmente, os gregos ensinam o que hoje esquecemos. A educação do homem existe
por toda parte e, muito mais do que a escola, é o resultado da ação de todo o meio
sociocultural sobre os seus participantes. É o exercício de viver e conviver o que educa. E a
escola de qualquer tipo é apenas um lugar e um momento provisórios onde isto pode
acontecer. Portanto, é a comunidade quem responde pelo trabalho de fazer com que tudo o
que pode ser vivido-e-aprendido da cultura seja ensinado com a vida — e também com a aula
— ao educando.
A EDUCAÇÃO QUE ROMA FEZ, E O QUE ELA ENSINA
Os primeiros latinos foram camponeses aos poucos enriquecidos e, alguns, tornados
nobres na Península Itálica. Ali aconteceu como em tantas outras partes do mundo. Classes
sociais que com o tempo chegaram a ser "privilegiadas" e separaram a direção do trabalho do
próprio exercício do trabalho, separando com isso as forças produtivas mentais das físicas,
desempenharam antes funções úteis. Primeiro, entre os romanos, o trabalho é entre todos e o
saber é de todos. Os primeiros reis de Roma punham com os súditos as mãos no arado e
lavravam a terra.
Como entre os índios, como nos tempos de origem dos povos gregos, a educação dos
camponeses latinos é comunitária e existe difusa em todo o meio social. Muito mais do que na
Grécia, a educação da criança é uma tarefa doméstica. Na aurora da história do poder de
Roma, ela foi uma lenta iniciação da criança e do adolescente nas tradições consagradas da
cultura, e servia à consagração da tradicionalidade quase venerada de um modo camponês de
vida, simples e austero. A criança começava a aprender em casa, com os mais velhos, e quase
tudo o que aprendia era para saber e preservar os valores do mundo dos "mais velhos", dos
seus antepassados.
Essa educação doméstica busca a formação da consciência moral. O adulto educado
que ela quer criar é o homem capaz de renúncia de si próprio, de devotamento de sua pessoa à
comunidade. São as virtudes do campesinato de todos os tempos e lugares, o que dirige a
primitiva educação de Roma, que exalta em verso e prosa a austeridade, a vida simples, o
amor ao trabalho como supremo bem do homem, e o horror ao luxo e à ociosidade. Ao
contrário do que aconteceu cedo em Atenas, em Roma não há de início qualquer tipo de
cuidado com a pura formação física e intelectual do cidadão ocioso, ocupado com pensar,
governar e guerrear. A educação de uma comunidade dedicada ao trabalho com a terra foi
durante séculos uma formação do homem para o trabalho e a vida, para a cidadania da
comunidade igualada pelo trabalho.
Quando o mundo romano de camponeses enriquece com os excedentes da terra e das
pilhagens de outros povos, quando opõe classes sociais e inventa o Estado, ele ainda defende
a criança de ser entregue cedo a alguma forma de educação estatal, militarizada, fora do lar.
Entre os romanos os primeiros educadores de pobres e nobres são o pai e a mãe. Mesmo os
mais ricos, senhores de escravos, não entregam a um servo-pedagogo ou a uma governanta o
cuidado dos filhos. Quando o menino completa, aos 7 anos, o aprendizado cheio de afeição
que recebe da mãe, ele passa para o pai, que não divide sequer com o mestre-escola o direito
de educá-lo, ou seja, de formar a sua consciência segundo os preceitos das crenças e valores
da classe e da sociedade.
Em Roma, portanto, ao contrário do que vimos acontecer em Atenas e principalmente
em Esparta, a família prolonga o poder de socializar o cidadão e, através dela, a sociedade
civil estende o alcance do seu modelo em toda uma primeira educação da criança. A partir de
Homero, no alvorecer da história grega, o ideal da paideia é o herói da polis. Na educação
romana o modelo ideal é o ancestral da família, depois o da comunidade.
Quando uma nobreza romana enriquecida com a agricultura e o saque abandona o
trabalho da terra pelo da política, e cria as regras do Império de que se serve, aquele primitivo
saber comunitário divide-se e força a separação de tipos, níveis e agências de educação.
Quando há livres e escravos, senhores e servos, começa a haver um modelo de educação para
cada um, e limites entre um modelo e outro.
Aos poucos a educação deixa de ser o ensino que forma o pastor, o artífice ou o
lavrador e, nas suas formas mais elaboradas, prepara o futuro guerreiro, o funcionário
imperial e os dirigentes do Império. O sistema comunitário de base pedagógica familiar
compete com outros. Aos poucos aparece a oposição entre o ensino de educar, dos pais, dos
mestres-pedagogos que convivem com os educandos e os acompanham, prolongando com
eles o saber que forma a consciência e que é a sabedoria; e o ensino de instruir, do mestreescola que monta no mercado a loja de ensino e vende o saber de ler-e-contar como uma
mercadoria.
O ensino elementar das primeiras letras apareceu em Roma antes do IV século A.C.
Um tipo de ensino que podemos identificar com o secundário surgiu na metade do século III
A.C. e o ensino que hoje em dia chamaríamos de superior, universitário, apareceu pelo século
I A.C. Mas, durante quase toda a sua história, o Estado Romano. não toma a seu cargo a tarefa
de educar, que ficou deixada à iniciativa particular, mas já não mais comunitária, como ao
tempo em que os reis aravam a terra. Só depois do advento do Cristianismo, por volta do
século IV D.C., é que surge e se espalha por todo o Império a schola publica, mantida pelos
cofres dos municípios.
Nos tempos do domínio de Augusto e de Tibério, a criança, educada em casa pelos
pais, aprendia depois dos 7 anos as primeiras letras na escola (loja de ensino) do ludimagister.
Aos 12 anos ela estava pronta para freqüentar a escola do grammaticus e, a partir dos 16, a do
lector. Na sua forma mais simples esta é a estrutura de educação que herdamos e conservamos
até hoje.
Do lado de fora das portas do lar, a educação latina enfim separa em duas vertentes o
que se pode aprender. Uma é a da oficina de trabalho, para onde vão os filhos dos escravos,
dos servos e dos trabalhadores artesãos. Outra é a escola livresca, para onde vão o futuro
senhor (o dirigente livre do trabalho e do Estado) e o seu mediador, o funcionário burocrata
do Estado ou de negócios particulares.
Esta educação de escola, que os romanos criam em Roma copiando a forma e alguma
coisa do espírito dos gregos, espalham primeiro pela Península Itálica e depois por todo o
mundo que conquistam na Europa, na Ásia e no Norte da África. Do mesmo modo como o
sacerdote, o educador caminha atrás dos passos do general. A educação do conquistador
invade, com armas mais poderosas do que a espada, a vida e a cultura dos conquistados. A
educação que serve, longe da Pátria, aos filhos dos soldados e funcionários romanos sediados
entre os povos vencidos, serve também para impor sobre eles a vontade e a visão de mundo
do dominador.
Plutarco descreveu como Roma usou a educação para "domar" os espanhóis
dominados: "As armas não tinham conseguido submetê-los a não ser parcialmente; foi a
educação que os domou."
EDUCAÇÃO: ISTO E AQUILO, E O CONTRÁRIO DE TUDO
Ora, uma outra maneira de se compreender o que a educação é, ou poderia ser, é
procurar ver o que dizem sobre ela pessoas como legisladores, pedagogos, professores,
estudantes e outros sujeitos um tanto mais tradicionalmente difíceis de entender, como
filósofos e cientistas sociais.
Nos dois dicionários brasileiros mais conhecidos a educação aparece definida assim:
"Ação e efeito de educar, de desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais
da criança e, em geral, do ser humano; disciplinamento, instrução, ensino." (Dicionário
Contemporâneo da Língua Portuguesa, Caldas Aulete)
"Ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações jovens para adaptá-las à
vida social; trabalho sistematizado, seletivo, orientador, pelo qual nos ajustamos à vida, de
acordo com as necessidades ideais e propósitos dominantes; ato ou efeito de educar;
aperfeiçoamento integral de todas as faculdades humanas, polidez, cortesia." (Pequeno
Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de Hollanda)
Um pouco mais adiante vamos ver que o miolo de cada uma destas definições de
dicionário pende para um dos lados em que se recortam as maneiras de explicar o que a
educação é e a que serve.
Na "letra da Lei" a coisa não muda muito. Ao pretenderem estabelecer quais os fins da
educação no país, os nossos legisladores, pelo menos em teoria, garantem para todos o melhor
a seu respeito. Eles falam sobre o que deve determinar e controlar o trabalho pedagógico em
todos os seus graus e modalidades. De certo modo, falam a respeito de uma educação
idealizada, ou falam da educação através de uma ideologia (ver O que é Ideologia – Marilena
Chauí, nesta mesma coleção):
"Art. 19 — A educação nacional, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, tem por fim:
a) a compreensão dos direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado, da
família e dos demais grupos que compõem a comunidade;
b)o respeito a dignidade e às liberdades fundamentais do homem;
c) o fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade internacional;
d) o desenvolvimento integral da personalidade humana e a sua participação na obra
do bem comum;
e) o preparo do indivíduo e da sociedade para o domínio dos recursos científicos e
tecnológicos que lhes permitam utilizar as possibilidades e vencer as dificuldades do meio;
f) a preservação do patrimônio cultural;
g) a condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de convicção filosófica,
política ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe ou raça." (Lei 4024, de
20 de dezembro de 1961)
Mas, do outro lado do palco, intelectuais, educadores e estudantes fazem e refazem
todos os dias a crítica da prática da educação no Brasil. Eles levantam questões e afirmam
que, do Ministério â escolinha, a educação nega no cotidiano o que afirma na Lei. Não há
liberdade no país e a educação não tem tido papel algum nos últimos anos para a sua
conquista; não há igualdade entre os brasileiros e a educação consolida a estrutura classista
que pesa sobre nós; não há nela nem a consciência nem o fortalecimento dos nossos
verdadeiros valores culturais.
Um grupo de estudantes candidatos à direção da UNE resume parte desta crítica e
reclama para a luta estudantil itens que, com alguma variação de linguagem, quase poderiam
caber nas "leis do ensino".
"Os homens discriminados como negros, velhos, crianças, homossexuais, mulheres...
descobrem que, nestes anos todos de dominação, a força imensa que mexeu e transformou a
face do planeta nasce de cada oprimido, de cada explorado, de cada homem, de cada mulher.
Descobrem a origem e o fim de toda a atividade humana: o próprio homem.
"Corações e mentes se abrem para uma nova vida. Irrompe uma nova consciência.
"A percepção ampla e profunda das ações e relações entre os homens é inerente e
inseparável de qualquer trabalho de produção, veiculação ou discussão cultural.
"E buscar todos os meios para que todo esse trabalho floresça, para que toda essa
força contida venha à tona, é função nossa, das entidades estudantis.
"Criar condições para que, através da manifestação de todos, possamos perceber os
anseios, as contradições de cada um, do homem e de toda a sociedade.
"Ampliar as idéias sobre o trabalho cultural. Abranger o homem, as suas relações, as
discriminações raciais, sexuais, etárias, a moral, o poder, a dominação.
"Romper os limites, soltar a cabeça, as mãos, os pés, o corpo para a realidade
inquieta, questionadora.
"Destruir as regras do jogo.
"Subir no palco e invadir os camarins do mundo. Assumir o papel de agentes da
História. Representar a vida." (Voz Ativa — Cultural)
Sem rodeios as "leis do ensino" no país garantem que:
"A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola... À família cabe escolher
o gênero de educação que deve dar a seus filhos... O direito à educação é assegurado: pela
obrigação do poder público e pela liberdade de iniciativa particular de ministrarem o ensino
em todos os graus, na forma da lei em vigor; pela obrigação do Estado de fornecer recursos
indispensáveis para que a família e, na falta desta, os demais membros da comunidade se
desobriguem dos encargos da educação, quando provada a insuficiência de meios, de modo
que sejam asseguradas iguais oportunidades a todos." (Artigos 29 e 39 da lei 4024)
Mas, se entre o pensado e o vivido há diferenças, as pessoas do país protestam e
cobram, de quem faz a lei, que pelo menos ela seja cumprida: que haja liberdade na educação
e, através dela, que a escola exista para todos e seja distribuída por igual entre todos. Assim,
os docentes universitários reunidos num Encontro Nacional de Associações escreveram o
seguinte no documento final:
"O regime político e o modelo socioeconômico impostos nos últimos anos à Nação
Brasileira produziram danos marcantes na qualidade do ensino de nossas escolas, seja pela
repressão político-ideológica que se abateu sobre toda a comunidade, seja pelo caráter
flagrantemente antidemocrático de suas leis e decretos, que se reflete na elaboração e
modificação ilegítimas de regimentos e estatutos das Universidades.
"A política educacional implantada levou à progressiva desobrigação do Estado com o
custeio da Educação, e à expansão do ensino privado. Assim, a educação está aberta à ação
dos empresários do ensino, sujeita às leis da iniciativa privada, sendo negociada como
mercadoria entre as partes interessadas em vender e comprar, o que revela o caráter elitista do
atual processo educacional no Brasil." (Boletim Nacional das Associações de Docentes, nº 3)
A fala do poder que constitui a educação no país propõe o exercício de uma prática
idealizada. A fala dos praticantes da educação, os educadores, faz então a crítica da distância
que há entre a promessa e a realidade. Faz mais, denuncia a alteração para pior das próprias
leis que dizem o que é e como deve ser a Educação no Brasil.
Não há apenas idéias opostas ou idéias diferentes a respeito da Educação, sua essência
e seus fins. Há interesses econômicos, políticos que se projetam também sobre a Educação.
Não é raro que aqui, como em toda parte, a fala que idealiza a educação esconda, no silêncio
do que não diz, os interesses que pessoas e grupos têm para os seus usos. Pois, do ponto de
vista de quem a controla, muitas vezes definir a educação e legislar sobre ela implica
justamente ocultar a parcialidade destes interesses, ou seja, a realidade de que eles servem a
grupos, a classes sociais determinadas, e não tanto "a todos", "à Nação", "aos brasileiros". Do
ponto de vista de quem responde por fazer a educação funcionar, parte do trabalho de pensá-la
implica justamente em desvendar o que faz com que a educação, na realidade, negue e
renegue o que oficialmente se afirma dela na lei e na teoria.
Mas a razão de desavenças é anterior e, mesmo entre educadores, ela tem alguns
fundamentos na diferença entre modos de compreender o que o ato de ensinar afinal é, o que
o determina e, finalmente, a que e a quem ele serve.
PESSOAS "VERSUS" SOCIEDADE: UM DILEMA QUE OCULTA OUTROS
Quando alguém tenta explicar o que são estes nomes e o que eles misturam: educação,
escola, ensino, a fala que explica pode pender para um lado ou para o outro de uma velha
discussão. Uma discussão ontem quente, hoje em dia inútil; a não ser quando serve para
revelar o que se esconde por detrás de pensar a educação desta maneira ou daquela.
De acordo com as idéias de alguns filósofos e educadores, a educação é um meio pelo
qual o homem (a pessoa, o ser humano, o indivíduo, a criança, etc.) desenvolve
potencialidades biopsí-quicas inatas, mas que não atingiriam a sua perfeição (o seu
amadurecimento, o seu desenvolvimento, etc.) sem a aprendizagem realizada através da
educação. Pode até ser que haja formas próprias de auto-educação, mas é de suas práticas
interativas (interpessoais), coletivas, que se está falando quando se escreve um livro sobre
"Filosofia da Educação" por exemplo. Assim como a própria sociedade é um corpo coletivo
formado da individualidade das pessoas que a compõem, e assim como o seu fim é a
felicidade de seus membros a quem todas as suas instituições devem servir, assim também a
educação, como idéia (a definição, a "filosofia"), deve ser pensada em nome da pessoa e,
como instituição (a escola, o sistema pedagógico) ou como prática (o ato de educar), deve ser
realizada como um serviço coletivo que se presta a cada indivíduo, para que ele obtenha dela
tudo o que precisa para se desenvolver individualmente.
Muitas vezes, entre os que pensam assim, a dimensão subjetiva da educação é
ressaltada e, não raro, toma conta de todo o espaço em que o seu processo está sendo pensado.
Não importa considerar sob que condições sociais e através de que recursos e procedimentos
externos a pessoa aprende, mas apenas a pensar o ato de aprender do ponto de vista do que
acontece do educando para dentro.
"A Educação não é mais do que o desenvolvimento consciente e livre das faculdades
inatas do homem." (Sciacca);
"A Educação é o processo externo de adaptação superior do ser humano, física e
mentalmente desenvolvido, livre e consciente, a Deus, tal como se manifesta no meio
intelectual, emocional e vo/itivo do homem".(Herman Horse);
"O fim da Educação é desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele seja
capaz." (Kant);
"É toda a espécie de formação que surge da influência espiritual." (Krieck).
Quando a Enciclopédia Brasileira de Moral e Civismo, editada pelo Ministério de
Educação e Cultura, define educação, pensando talvez expressar uma idéia consensual, ela de
fato repete o ponto de vista das definições anteriores. Vejamos:
"Educação. Do latim 'educere', que significa extrair, tirar, desenvolver. Consiste,
essencialmente, na formação do homem de caráter. A educação é um processo vital, para o
qual concorrem forças naturais e espirituais, conjugadas pela ação consciente do educador e
pela vontade livre do educando. Não pode, pois, ser confundida com o simples
desenvolvimento ou crescimento dos seres vivos, nem com a mera adaptação do indivíduo ao
meio. É atividade criadora, que visa a levar o ser humano a realizar as suas potencialidades
físicas, morais, espirituais e intelectuais. Não se reduz à preparação para fins exclusivamente
utilitários, como uma profissão, nem para desenvolvimento de características parciais da
personalidade, como um dom artístico, mas abrange o homem integral, em todos os aspectos
de seu corpo e de sua alma, ou seja, em toda a extensão de sua vida sensível, espiritual, intelectual, moral, individual, doméstica e social, para elevá-la, regulá-la e aperfeiçoá-la. É
processo contínuo, que começa nas origens do ser humano e se estende até à morte."
Se voltarmos às duas definições de dicionários brasileiros de algumas páginas atrás,
veremos que a da Enciclopédia concorda mais com a primeira do que com a segunda. Uma
enfatiza o que acontece da pessoa para dentro; a outra o que acontece dela para fora, em
direção à sociedade onde vive e de que aprende.
A meio caminho entre um lado e outro, algumas propostas lembram que aquela
formação do ser humano, segundo as suas próprias potencialidades e através de seu próprio
esforço, é o resultado de um trabalho intencional, deliberado — aquilo que faz da educação a
parte mais motivada da endoculturação, como eu disse várias páginas atrás. Esta ação dirigida
ao educando procede de um educador, de uma agência de educação, ou do que existe de
educativo no meio sociocultural.
"Educação é um sentido de valorização individual e organizado, variável em extensão
e
profundidade
para
cada
indivíduo
e
processado
pelas
riquezas
culturais."
(Kerschensteiner);
"É a influência deliberada e consciente exercida sobre o ser maleável e inculto, com o
propósito de formá-lo." (Cohn).
Um pouco mais perto dos que nos esperam do outro lado desta aparente história de
"ovo-e-galinha", estão alguns estudiosos da educação que consideram que não só a pessoa,
individualmente, mas alguma coisa indicada como "a civilização", "o meio social" ou "a
sociedade" deve ser o destino do homem educado:
"Podemos agora definir de modo mais precioso o objeto da educação: é guiar o
homem no desenvolvimento dinâmico, no curso do qual se constituirá como pessoa humana
— dotada das armas do conhecimento, do poder de julgar e das virtudes morais —
transmitindo-lhe ao mesmo tempo o patrimônio espiritual da nação e da civilização às quais
pertence e conservando a herança secular das gerações." (Maritain);
"A Educação é a organização dos recursos biológicos individuais, e das capacidades
de comportamento que tornam o indivíduo adaptável ao seu meio físico ou social." (William
James).
Procuremos refletir um pouco sobre tudo isto. Ao discutir os ideais da educação entre
os gregos, Werner Jaeger lembra uma coisa muito importante. Não é sempre e não são todos
os povos e homens que consideram a educação apenas como o que vimos até aqui. Na
verdade, esta é uma maneira de "imaginar" característica da nobreza de todos os povos em
que ela existiu, em todos os tempos. É próprio de elites separadas do trabalho produtivo — ou
dos intelectuais que pensam o mundo por elas, e para elas — propor como educação a
formação da personalidade humana através do conselho sistemático e da direção espiritual.
Esta crítica, do mesmo modo como algumas feitas nos primeiros capítulos, aqui,
procura separar o que a educação é, de fato, do que as pessoas dizem dela. Jaeger não entra no
mérito da veracidade de algumas idéias sobre a educação. Afinal, quem poderia negar que a
educação deve servir ao homem, deve servir para educá-lo, torná-lo melhor, desenvolver nele
tudo o que tem, e tudo a que tem direito? Quero insistir em que muitas vezes o que se critica
em quem apresenta a educação, tal como ela apareceu até aqui, não é o que foi dito, mas o que
ficou oculto:
a) ou porque quem disse não sabe de onde vem a educação, o que ela é em cada
mundo real e o que faz;
b) ou porque quem disse sabe, mas explica a educação justamente para negar a sua
origem, os seus mecanismos e os seus usos.
Como é possível compreender alguma coisa que se passa entre relações sociais de
categorias de homens, que educa transmitindo de uns a outros crenças e valores sociais, que
serve tanto a igualar quanto a diferenciar as pessoas de acordo com projetos de usos do saber
situados fora dos sonhos do educador, sem pensá-la dentro, dos mundos reais onde acontecem
as trocas também reais entre os homens, verdadeiros homens de carne e osso, situados de um
lado e do outro da educação?
Na verdade, quem descobriu que na prática o "fim da educação" são os interesses da
sociedade, ou de grupos sociais determinados, através do saber que forma a consciência que
pensa o mundo e qualifica o trabalho do homem educado, não foram filósofos do passado ou
cientistas sociais de hoje. Esta é a maneira natural dos povos primitivos, com quem estivemos
até há pouco, tratarem a educação de suas crianças, mesmo quando eles não sabem explicar
isto com teorias complicadas.
Os índios e os camponeses realizam, no modo como ensinam o que é importante para
alguém aprender, a consciência de que o saber que se transmite de um ao outro deve servir de
algum modo a todos. Mas o que Werner Jaeger diz é que justamente nas formações sociais
mais desenvolvidas, onde por sobre o trabalho de muitos aparece a elite dominante de uns
poucos, surge com o tempo a idéia de uma educação que deve servir a alguns homens
individualmente, desvinculada da idéia de que eles existem dentro de grupos ou mundos
sociais, e a seu serviço. Esta maneira de compreender para que serve a educação é decorrência
de um "esquecimento", ou de um ocultamento de que, afinal, por mais louvável que seja, a
educação é uma prática social entre outras.
Entre os gregos, vimos que a educação dos jovens nobres, que viviam do trabalho de
escravos estrangeiros e que, quando adultos, participavam da direção da cidade, procurava
desenvolver o corpo e a inteligência para formar homens fortes e sábios destinados à defesa e
à política da comunidade. O que à distância poderia parecer a formação do ocioso era, na
verdade, uma aprendizagem feita durante um longo período de ócio nobre (separação do
trabalho braçal), para a formação do homem político. A educação grega e, depois, a de Roma
preocupavam-se em formar o cidadão e eram, portanto, educações da e para a comunidade.
No mundo ocidental, é depois do advento e da difusão do Cristianismo que aparecem
idéias sobre a educação que isolam o saber da sociedade e o submetem ao destino individual
do cristão. O homem que aprende busca na sabedoria a perfeição que ajuda à salvação da
alma. Mas não é o Cristianismo Primitivo quem sugere a "educação humanista", de que os
cursos de "humanidades" que houve no Brasil até há pouco tempo são o melhor exemplo. Foi
necessário que, a partir de Roma, o Estado cristianizado e as elites de sua sociedade tomassem
posse da mensagem cristã de militância e salvação, fazendo dela parte de sua ideologia.
Tornando-a o repertório de símbolos e valores pelos quais representavam o mundo,
representavam-se nele e, assim, legitimavam, com as palavras originalmente dirigidas a
pobres e deserdados, a sua posição de domínio econômico e de hegemonia política sobre eles.
Foi então preciso o advento de uma nobreza plenamente separada do trabalho
produtivo e, cada vez mais, até mesmo do trabalho político — entregue nas mãos de
intelectuais mediadores de seus interesses — para que surgisse uma classe de gente capaz de
representar o mundo quase fora dele. Esta elite ociosa e seus intelectuais sacerdotes, filósofos
e artistas puderam imaginar como "puras" a vida, a arte, a ciência e até mesmo a educação.
Ela começa a representar realmente alguma coisa (pensa, faz pensar, constrói sistemas
de pensamento) sem representar coisa alguma de real; sem conseguir explicar mais, para si
própria e para as outras classes, o que são de fato os homens, o mundo e as relações concretas
entre o mundo e os homens. Ora, é a partir deste universo de idéias puras que a educação
afinal é pensada como o exercício do educador sobre a alma do educando, com o propósito de
purificá-la do mal que existe na ignorância do saber que conduz à salvação.
Da Antigüidade decadente à Idade Média, da Idade Média ao Renascimento (um
tempo da História rico em redefinições da idéia de educação) e do Renascimento à Idade
Moderna, foi preciso esperar muitos séculos para que de novo os brancos civilizados
aprendessem a repensar a educação como os índios. E uma nova maneira de definir a
educação como uma prática social cuja origem e destino são a sociedade e a cultura foi
formulada com muita clareza pelo sociólogo francês Émile Durkheim.
Ele sacode a poeira de um assunto que só aos poucos foi recolocado na Europa de seu
tempo, nos últimos anos do século passado. Se o fim da educação é desenvolver no homem
toda a perfeição de que ele é capaz, que "perfeição" é esta? De onde é que ela procede? Quem
a define e a quem serve? Por que, afinal, ideais de perfeição são tão diversos de uma cultura
para outra? É falso imaginar uma educação que não parte da vida real: da vida tal como existe
e do homem tal como ele é. É falso pretender que a educação trabalhe o corpo e a inteligência
de sujeitos soltos, desancorados de seu contexto social na cabeça do filósofo e do educador, e
que os aperfeiçoe para "si próprios", desenvolvendo neles o saber de valores e qualidades
humanas tão idealmente universais que apenas existem como imaginação em toda parte e não
existem como realidade (como vida concreta, como trabalho produtivo, como compromisso,
como relações sociais) em parte alguma.
O que existe de fato são exigências sociais de formação de tipos concretos de pessoas
na e para a sociedade. São, portanto, modos próprios de educar — por isso, diferentes de uma
cultura para outra — necessários à vida e à reprodução da ordem de cada tipo de sociedade,
em cada momento de sua história. Não se trata de dizer que a educação tem, também, de
modo abstrato e muito amplo, um compromisso com a "cultura", com a "civilização", ou que
ela tem um vago "fim social". O que ocorre é que ela é inevitavelmente uma prática social
que, por meio da inculcação de tipos de saber, reproduz tipos de sujeitos sociais.
"A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se
encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver na
criança certo número de estados físicos, intelectuais e morais reclamados pela sociedade
política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destina."
(Durkheim)
Entre muitas outras, esta é uma maneira sociológica de compreender a educação.
Depois de Durkheim (que, por sua vez, aprendeu isso com outros cientistas anteriores e, quem
sabe?, com alguns índios) inúmeros sociólogos, antropólogos, filósofos e educadores
começaram a formular pontos de vista semelhantes. Não é que eles tivessem a proposta de
uma "nova educação", menos abstrata e desancorada do que a "Educação Humanista" que
criticavam. O que eles buscaram fazer foi esclarecer mais e mais como a sociedade e a cultura
são e funcionam, na realidade. Como, portanto, a educação existe dentro delas e funciona sob
a determinação de exigências, princípios e controles sociais.
SOCIEDADE CONTRA ESTADO: CLASSE E EDUCAÇÃO
A idéia de que não existe coisa alguma de social na educação; de que, como a arte, ela
é "pura" e não deve ser corrompida por interesses e controles sociais, pode ocultar o interesse
político de usar a educação como uma arma de controle, e dizer que ela não tem nada a ver
com isso. Mas o desvendamento de que a educação é uma prática social pode ser também
feito numa direção ou noutra e, tal como vimos antes, pode se dividir em idéias opostas,
situadas de um lado ou do outro da questão.
Vamos por partes, portanto. Até aqui chegamos: a educação é uma prática social
(como a saúde pública, a comunicação social, o serviço militar) cujo fim é o desenvolvimento
do que na pessoa humana pode ser aprendido entre os tipos de saber existentes em uma
cultura, para a formação de tipos de sujeitos, de acordo com as necessidades e exigências de
sua sociedade, em um momento da história de seu próprio desenvolvimento. Não procurei
inventar uma nova definição, porque delas acho que já há demais. Procurei reunir as idéias
correntes entre os que concebem a educação como Durkheim.
Assim, dos dois historiadores da educação de cujos livros aprendi quase tudo o que
disse sobre Grécia e Roma, um deles dirá o seguinte:
"Primeiro que tudo; a educação não é uma propriedade individual, mas pertence por
essência à comunidade. O caráter da comunidade imprime-se em cada um dos seus membros
e é no homem... muito mais que nos animais, fonte de toda a ação e de todo o
comportamento. Em nenhuma parte o influxo da comunidade nos seus membros tem maior
força que no esforço constante de educar, em conformidade com o seu próprio sentir, cada
nova geração." (Werner Jaeger).
Toda a estrutura da sociedade está fundada sobre códigos sociais de inter-relação entre
os seus membros e entre eles e os de outras sociedades. São costumes, princípios, regras de
modos de ser às vezes fixados em leis escritas ou não. "A educação é, assim, o resultado da
consciência viva duma norma que rege uma comunidade humana, quer se trate da família,
duma classe ou duma profissão, quer se trate dum agregado mais vasto, como um grupo
étnico ou um Estado." Como outras práticas sociais constitutivas, a educação atua sobre a vida
e o crescimento da sociedade em dois sentidos:
1) no desenvolvimento de suas forças produtivas;
2) no desenvolvimento de seus valores culturais. Por outro lado, o surgimento de tipos
de educação e a sua evolução dependem da presença de fatores sociais determinantes e do
desenvolvimento deles, de suas transformações.
A maneira como os homens se organizam para produzir os bens com que reproduzem
a vida, a forma de ordem social que constróem para conviver, o modo como tipos diferentes
de sujeitos ocupam diferentes posições sociais, tudo isso determina o repertório de idéias e o
conjunto de normas com que uma sociedade rege a sua vida. Determina também como e para
quê este ou aquele tipo de educação é pensado, criado e posto a funcionar.
Quando são transformados a "maneira", a "forma" e o "modo" de que falei acima,
tanto as idéias quanto as normas, os sistemas e os métodos de um tipo de educação são
modificados.
Ao fazer a sua crítica, Émile Durkheim perguntava a pensadores da educação que
considerava ilustres, mas ingênuos: que "perfeição" é essa? "Mas, que se deve entender pelo
termo perfeição?" Ele quer perguntar o seguinte: quem afinal estabelece os ideais e os
princípios da educação? Uns e outros são universais? Existiram para todos os povos, em todos
os tempos, de uma mesma maneira, pelo fato de que é sempre a mesma a "essência do
homem"? Pode ou deve existir uma espécie de "educação universal"? Durkheim conclui que
não. E conclui que o ponto fraco das idéias pedagógicas que avaliou está na crença ilusória
(ilusória sempre, ou algumas vezes mal--intencionada?) de que há, ou deveria haver, uma
"educação ideal, perfeita, apropriada a todos os homens, indistintamente".
Até aí tudo bem. Assino embaixo. Mas será que não poderíamos fazer a Durkheim,
leitor, a pergunta que ele fez aos outros? Quando fala de sociedade e, mesmo, de sociedades
concretas, do que está falando? Que tipo de sociedades, regidas por que modos e mecanismos
internos de produção de bens, de serviços, de poder e de idéias entre os seus integrantes? Ele
responderia com segurança: "cada uma"; cada tipo de sociedade real, histórica, cria e impõe o
tipo de educação de que necessita. E arremataria:
"Na verdade, porém, cada sociedade, considerada em momento determinado de seu
desenvolvimento, possui um sistema de educação que se impõe aos indivíduos de modo
geralmente irresistível. É uma ilusão acreditar que podemos educar nossos filhos como
queremos... Há, pois, a cada momento, um tipo regulador de educação do qual não nos
podemos separar sem vivas resistências, e que restringem as velocidades dos dissidentes."
No entanto, o que é "cada sociedade considerada em um momento determinado de seu
desenvolvimento"? é preciso reforçar algumas perguntas e fazer outras. Afinal, "cada sociedade" existe e funciona como um todo orgânico e harmônico, fundado sobre a igualdade entre
todos e o consenso de todos? Dentro dela, em posições especiais de privilégio, de hegemonia
e de controle sobre outros, não existirão classes sociais capazes de impor uma educação que
fazem criar e existir? Para seu uso próprio e por sobre outras classes e grupos sociais (mais do
que "em nome deles"), não há, em determinadas sociedades concretas, classes e grupos, às
vezes muito minoritários, que resolvem por sua conta como será e para quê servirá a
"educação oficial"? Ou, perguntando de outra maneira, já que cada tipo de sociedade — a
"tribal" de índios Gê, do Brasil Central; a chinesa após a revolução socialista; a indiana do V
século A.C; a da Alemanha medieval ou mesmo a de uma aldeia de camponeses, dentro dela;
a portuguesa colonialista do século XVII; a do Brasil "pós-64" - inventa e faz a sua educação
ou as suas educações, nos sistemas mais oficiais, mais organizados em projetos e programas
pedagógicos, são pensados a partir das idéias fundamentais de todos os tipos de pessoas? As
mesmas escolas servem ao operário, ao engenheiro e ao capitalista imobiliário do mesmo
modo (como as leis brasileiras de ensino garantem que sim e os professores críticos garantem
que não)? Uma educação ensina o saber da "comunidade nacional" a todos, para os mesmos
usos sociais, e segundo os mesmos direitos individuais de todas as categorias de seus "adultos
educados"?
Ora, entre os que colocam "sociedade e cultura" no meio da questão da educação,
alguns pesquisam e apenas reconhecem que ela é, na cultura, uma prática social de
reprodução de categorias de saber através da formação de tipos de sujeitos educados. Outros
projetam e defendem a necessidade deste ou daquele tipo de educação para este ou aquele tipo
de sociedade.
Entre estes últimos, um pensamento muito corrente hoje em dia é o de que a educação
é um dos principais meios de realização de mudança social ou, pelo menos, um dos recursos
de adaptação das pessoas a um "mundo em mudança". Este modo de imaginar tende a ser
dominante atualmente. Mas ele não fazia sentido para gregos e romanos e nem mesmo para os
portugueses e missionários que tentaram educar nossos antepassados durante a Colônia.
A idéia de que a educação não serve apenas à sociedade, ou à pessoa na sociedade,
mas à mudança social e à formação conseqüente de sujeitos e agentes na/da mudança social,
pode não estar escrita de maneira direta nas "leis do ensino". Afinal, as leis quase sempre são
escritas por quem pensa que nem elas nem o mundo vão mudar um dia. Mas as suas
conseqüências podem aparecer indiretamente. Por exemplo, na "Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira" (também conhecida como "5692", neste mundo onde tudo é numerado),
os fins da educação acrescentam a formação para o trabalho, ou enfatizam este objetivo do ato
de ensinar, mais do que as leis anteriores.
"O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a
formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de autorealização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da
cidadania."
Quando a idéia de educação vem associada à de adaptação para alguma coisa externa à
pessoa, e que se transforma, a proposta pode ser formulada assim: "Educação é preparação
da criança para uma civilização em mudança." (Kilpatrik) ou assim:
"Em uma sociedade dinâmica como a nossa, só pode ser eficaz uma educação para a
mudança. Esta (educação) consiste na formação do espírito isento de todo dogmatismo, que
capacite a pessoa para elevar-se acima da corrente dos acontecimentos, ao invés de arrastarse por eles." (Mannheim)
Um outro nome para a educação pode ser até mesmo sugerido, quando se constata, por
exemplo, que o rumo e a velocidade das transformações do mundo moderno exigem cada vez
mais, de todos os homens, uma constante reciclagem de conhecimentos e uma contínua
readaptação a um mundo que, afinal, ainda é sempre o mesmo e já é sempre um outro.
"A Educação Permanente é uma concepção dialética da educação, como um duplo
processo de aprofundamento, tanto da experiência pessoal quanto da vida social, que se
traduz pela participação efetiva, ativa e responsável de cada sujeito envolvido, qualquer que
seja a etapa de existência que esteja vivendo... O primeiro imperativo que deve preencher a
Educação Permanente é a necessidade que todos nós temos de sempre aperfeiçoar a nossa
formação profissional. Num mundo como o nosso, em que progridem ciência e suas
aplicações tecnológicas cada dia mais, não se pode admitir que o homem se satisfaça durante
toda a vida com o que aprendeu durante uns poucos anos, numa época em que estava profundamente imaturo. Deve informar-se, documentar-se, aperfeiçoar a sua destreza, de maneira a
se tornar mestre da sua práxis. O domínio de uma profissão não exclui o seu
aperfeiçoamento. Ao contrário, será mestre quem continuar aprendendo. " (Pierre Furterj)
Não será estranho que, aqui e ali, a proposta de uma educação apareça armada do
poder de realizar, ela própria, o trabalho de transformar a sociedade. Quando este tipo de
proposta considera a educação como uma entre outras práticas sociais cujo efeito sobre as
pessoas cria condições necessárias para a realização de transformações indispensáveis, a
sugestão é aceitável e realista. Nada se faz entre os homens sem a consciência e o trabalho dos
homens, e tudo o que tem o poder de alterar a qualidade da consciência e do trabalho, tem o
poder de participar de sua práxis e de ser parte dela. No entanto, quando a educação é
imaginada — agora pelo utopista social — como o único ou principal instrumento de
qualquer tipo de transformação de estruturas políticas, econômicas ou culturais, sem que haja
a lembrança de que ela própria é determinada por estas estruturas, estamos diante de pequeno
acesso de "utopismo pedagógico".
"Se educação é transformação de uma realidade, de acordo com uma idéia melhor
que possuímos, e se a educação só pode ser de caráter social, resultará que pedagogia é a
ciência de transformar a sociedade." (Ortega y Gasset)
Associar "educação" a "mudança" não é novidade. Tem sido um costume desde pelo
menos as primeiras décadas do século. Mas só um pouco mais tarde, quando políticos e
cientistas começaram a chamar a "mudança" de "desenvolvimento" (desenvolvimento social,
socioeconômico, nacional, regional, de comunidades, etc), é que foi lembrado que a educação
deveria associar-se a ele também.
Este foi o momento de uma transição importante. Antes de se difundirem pelo mundo
idéias de mudança e de necessidade de mudança social, a educação era pensada como alguma
coisa que preserva, que conserva, que resguarda justamente de se mudarem, de se perderem,
as tradições, os costumes e os valores de "um povo", "uma cultura" ou "uma civilização".
Antes de se inventarem políticas de desenvolvimento, a educação era prescrita como um
direito da pessoa, ou como uma exigência da sociedade, mas nunca como um investimento.
Um investimento como outros, como os de saúde, transporte e agricultura. A educação deixa
finalmente de ser vista como um privilégio, um direito apenas, e deixa também de ser
percebida como um meio apenas de adaptação da pessoa à mudança que se faz sem ela, e que
apenas a afeta depois de feita.
Pessoas educadas (qualificadas como "mão-de-obra" e motivadas enquanto "sujeitos
do processo") são agentes de mudança, promotores do desenvolvimento, e é para torná-los,
mais do que cultos, agentes, que a educação deve ser pensada e programada. Não é raro que
em alguns países se defenda então que as propostas básicas da educação venham quase
prontas do Ministério dó Planejamento para o da Educação.
"A Educação é hoje considerada como um fator de mudanças: um dos principais
instrumentos de intervenção na realidade social com vistas a garantir a evolução econômica e
a evolução social e dar continuidade à mudança no sentido desejado... "Salienta-se, no
entanto, um aspecto em que a educação representa investimento a curto prazo: é quando ela
desempenha função de formação de mão-de-obra. Ao lado da formação da personalidade, da
preparação necessária de cada cidadão para assumir as obrigações sociais e políticas, a
educação desempenha a tarefa de preparar para o trabalho, e influi substancialmente na
criação de novos quadros de mão-de-obra com capacidades técnicas adequadas aos novos
processos produtivos que o desenvolvimento introduz criando novos mercados de
trabalho."(SAGMACS — educação e planejamento)
"Investimento", "mão-de-obra", "preparação para o trabalho", "capacidades técnicas
adequadas"... são os nomes que denunciam o momento em que os interesses políticos de
emprego de uma força de trabalho "adequadamente qualificada" misturam a educação antiga
da oficina com a da escola, reduzem o seu compromisso aristocrata com a "pura" formação da
personalidade e inscrevem o ato de educar entre as práticas político-econômicas das
"arrancadas para o desenvolvimento". Arrancadas que, nas sociedades capitalistas são de
modo geral estratégias de reorganização de toda a vida social, de acordo com projetos e
interesses de reprodução do capital. De multiplicação dos ganhos das empresas capitalistas.
Esta é a crítica que tem sido feita por cientistas e educadores que, sem deixarem de
reconhecer com Durkheim que a educação existe na sociedade, dentro da cultura, procuram
compreender como ela existe aí e sob que condições é praticada contra o homem ou a seu
favor.
Ora, às vezes mais útil do que comparar e discutir o conteúdo de estilos diferentes de
definições ou propostas de tipos de educação, é procurar ver de onde eles vêm. Quem diz, em
nome de quem e para quê?
A variação da maneira como o triângulo educação-ensino-escola tem sido formulado
no Brasil pelas pessoas que possuam o poder direto ou indireto de determinar como ele vai
existir, dá o que pensar. Até há alguns anos atrás o universo da educação estava dividido por
aqui tal como na Grécia e em Roma, há muitos séculos. As crianças filhas de pais "das boas
famílias" iam às escolas, mesmo que por poucos anos. As escolas eram particulares, "abertas"
por professores avulsos ou pelas ordens religiosas. Eram pagas, algumas custavam caro e as
poucas crianças pobres que aprendiam "de graça" aprendiam nos orfanatos ou nos anexos dos
colégios religiosos.
Os escravos e os filhos dos deserdados da fortuna — lavradores livres, artistas pobres,
artesãos — aprendiam "no ofício". Rara vez um deles alisava com o traseiro magro o banco
de madeira de alguma escola, razão por que o país tinha, até há poucos anos, um dos maiores
índices de analfabetismo em todo o mundo.
Havia, portanto, duas educações em curso. Uma era a da escola, destinada aos filhos
das "gentes de bem". Ali, fora o ensino de primeiras letras, havia cursos sempre não
profissionalizantes, que ensinavam Latim, Grego, Literatura e Música para os que chegavam
até depois dos estudos primários. Mesmo nas três primeiras décadas deste século, até entre os
mais ricos eram raras as pessoas que faziam algum curso superior. Havia poucas faculdades
isoladas e a nossa universidade mais antiga, a de São Paulo, não tem ainda 50 anos.
Outra era a da oficina, misturada com a da vida, destinada pelos ossos do ofício aos
filhos "da pobreza". Analfabetos "de pai e mãe", mas excelentes lavradores, mineradores,
pedreiros, carapinas, ourives, ferreiros, estes homens "rudes", porque "sem cultura", de acordo
com a visão das elites, mas sábios do saber que faz o trabalho produtivo, fizeram a riqueza e
as obras do país e de cada uma de suas cidades.
"Mestre carapina, conhecido na história da cidade, queria dizer
carpinteiro, mas sua atividade não se circunscrevia apenas a este ofício.
Eram engenheiros práticos: estes escravos calculavam a construção de um
sobrado e o construíam. Isto ocorreu até a metade do século passado com
sobrados que chegam até nossos dias e foram construídos por estes
engenheiros (toda a parte de taipa, armação do telhado de grande dimensão), sendo que os engenheiros graduados só chegavam na fase final para
terminar a construção. A velha Igreja do Carmo foi feita só por 'mestres
carapinas', como muitos outros prédios cujos construtores podem ser
identificados ainda hoje." (Celso Maria de Mello Pupo, sobre a cidade de
Campinas, em São Paulo)
Nas primeiras décadas deste século, políticos e educadores liberais trouxeram idéias
novas para a educação no país. Entre outras coisas eles começaram a falar de uma escola mais
dirigida à vida de todo dia e mais estendida a todas as pessoas, ricas ou pobres. A "luta pela
democratização do ensino" resultou na escola pública. Resultou no reconhecimento político
do direito de estudar para todas as pessoas, através de escolas gratuitas, de ensino leigo,
oferecido pelo governo.
Há quem diga que isto foi o resultado de um confronto entre "liberais" e
"conservadores" na política, um confronto que invadiu a questão da educação. De um lado
ficaram os que falavam em nome das elites agrárias tradicionalistas e acostumadas a padrões
ultrapassados de domínio político. De outro lado ficaram os que falavam em nome das novas
elites capitalistas, atentas a novos tempos e problemas que batiam nas portas do mundo e do
Brasil. No entanto, o que eu quero ressaltar é que esses políticos e educadores liberais - alguns
deles sem dúvida lúcidos e bem-intencionados — ao pregarem idéias de uma educação
voltada para a vida, a mudança, o progresso, a democracia, traduziam ao mesmo tempo o
imaginário democrático de seu tempo e, por outro lado, o projeto político que servia aos
interesses de novos donos do poder e da economia. E, tal como aconteceu em outros setores
da sociedade brasileira, as inovações propostas para a educação propiciaram novos tipos de
usos políticos de todo o aparato pedagógico, adaptando-o à realidade de novos tempos e a
novos modelos de controle do exercício da cidadania e de preparação de "quadros"
qualificados para o trabalho das fábricas. Indústrias que primeiro o capital brasileiro e, depois,
o internacional, começaram a semear pelo país.
Como tipos de intelectuais (educadores, filósofos, legisladores, cientistas sociais)
constituídos e sustentados, direta ou indiretamente, pelos novos donos do poder, quase todos
os militantes de uma nova educação souberam lutar com entusiasmo por torná-la mais aberta
e democrática por dentro e por fora, sem saber muitas vezes que as suas idéias apenas
consolidavam outros projetos políticos para a educação. Eles substituíam outros intelectuais,
aqueles cujas idéias pedagógicas serviram aos interesses políticos dominantes de outros
tempos, e que não tinham mais lugar nem poder, porque eram as idéias que traduziam os
interesses de preservação de um tipo de ordem social inadequada no Brasil, diante das
mudanças aos poucos havidas nas relações de produção de bens e de poder.
Por uma porta os filhos dos pobres começam a entrar nas escolas públicas. Por outra o
país ingressa enfim em tempos de transferência do capital da agricultura para a indústria, e de
poder e pessoas do campo para a cidade. Então políticos e educadores começam a chamar a
atenção para a evidência de que, mesmo nas escolas públicas, o ensino escolar era
inadequado. Não servia para preparar o cidadão para a vida nem para preparar o trabalhador
para o trabalho, em qualquer um dos seus níveis. Quando as exigências de ordem e trabalho
do capital redefiniram aos poucos a vida e o trabalho, a idéia de que, além de uma vaga
"personalidade do educando", a educação tinha compromissos para com a vida social e o
trabalho produtivo passou a figurar entre leis e projetos de escolarização no país.
Este progressivo ingresso da criança pobre nas salas das escolas, associado a uma
redefinição do ensino escolar em direção ao trabalho produtivo, não fez mais do que trazer
para dentro dos muros do colégio a divisão anterior entre o aprender-na-oficina para o
trabalho subalterno e o aprender-na-escola para o trabalho dominante.
Algumas pesquisas de sociólogos americanos, realizadas desde a década de 50,
confirmam que, mesmo nos Estados Unidos, o filho do operário estuda para ser o operário
que acaba sendo, e o filho do médico para ser médico ou engenheiro. Apesar de ser, também
lá, um projeto teórico de reprodução da igualdade, a educação da sociedade capitalista
avançada reproduz na moita e consagra a desigualdade social, sem esquecer de fazer alarde
em festa de formatura quando algum filho de operário consegue sair formado da Faculdade de
Engenharia.
Em um dos mais importantes estudos recentes sobre o assunto, dois franceses,
Christian Baudelot e Roger Establet, demonstram que a escola capitalista francesa superpõe,
sobre o sistema oficial de ensino — aquele que é proclamado como democraticamente aberto
a todos - uma divisão entre duas redes "heterogêneas... opostas... antagônicas". É claro que
esta oposição real, que existe sob uma unidade proclamada, não é oficialmente aceita. Não é
reconhecida como existente e determinante do sistema pedagógico francês pelos seus
ideólogos. Mas é através do que separa e de como separa quem entra e quem sai das escolas
que a educação capitalista cumpre a sua função de reproduzir e consagrar a desigualdade,
afirmando que existe como um instrumento democrático de produção da igualdade social
através do acesso ao saber.
Uma rede é a de tipo PP, primario-profissional, limite dos estudos para os filhos do
povo destinados, também por ela, aos padrões do trabalho operário. Outra rede é a de tipo SS,
secundário-superior, destinada aos filhos dos ricos, enviados, também por ela, às pontes-decomando do trabalho "superior".
Então, esta educação que incorpora o povo ao ensino oficial, que arranca o menino
proletário da oficina e o deseja pelo menos por alguns anos na escola, será a educação que
serve a ele? Que serve pelo menos também a ele?
Este é o momento de voltarmos juntos, leitor, a algumas páginas do começo desta
conversa sobre ensinar-e-aprender. O tipo de formação social onde nós vivemos não é como o
de uma pequena aldeia tribal, embora haja muitas delas em nosso mundo. Não é sequer, como
na Grécia, de onde saiu o modelo de nossa educação, o lugar da polis, onde pelo menos nos
melhores tempos vigora a democracia de todos os cidadãos livres, mesmo que ela seja
sustentada pelo trabalho dos escravos. Vivemos aqui, hoje, dentro de uma ordem social regida
por um sistema amplo e muito complexo de relações de produção entre tipos de meios e
produtores, que se costuma chamar de modo de produção capitalista. Embora possa ser
fatigante e parecer agressivo, é muito pouco real pensar, seja a educação, seja quase tudo o
mais que acontece por aqui, sem levar em conta que são tipos de trocas regidos pela oposição
entre o capital e o trabalho.
Ora, por toda parte, em sociedades como a nossa, grupos nacionais ou estrangeiros,
que repartem entre si a propriedade e o controle direto dos meios de produção dos bens de que
se nutrem as pessoas e seu mundo, concentram entre si o poder de constituírem, em seu
proveito, o tipo de Estado que, por sua vez, reproduz serviços e normas de segurança, de
propriedade, de direito, de saúde e até de educação, serviços e normas que servem em
conjunto para manter coesa e, se possível, em relativa paz a ordem social de que se nutre o
capital, ou seja, aquela ordem em que ele se multiplica.
Esta é uma afirmação comum hoje em dia entre os que pensam sobre a educação sem
se iludirem com as condições de sua existência real. E também uma crítica que se confirma a
todo momento, inclusive por meio de dados estatísticos. Ela não vale só para um país de
economia pobre e dependente como o nosso, situado, como diriam os economistas, "na
periferia do sistema capitalista". Vale também para os países de economia desenvolvida, os da
"metrópole" do sistema.
Em um estudo sobre "a educação como processo social", o norte-americano Wilbur
Brookover concluiu que em seu país a educação: a) tem o seu controle situado em mãos "de
elementos conservadores da sociedade"; b) é dirigida de modo a impedir mudanças
significativas, "exceto nas áreas em que os grupos dominantes desejam a mudança"; c) na
melhor das hipóteses, pode atuar como um agente interno de mudanças sociais, não como um
agente externo, ou seja, capaz de provocar por sua conta mudanças significativas; d) não é
acreditada como criadora de um possível "mundo melhor", a não ser quando "outras forças
também operam como agências de mudanças".
Dentro de um tipo de ordem social assim dividida, a educação (como tantas outras
coisas da vida e dos sonhos de todos os homens) perde a sua dimensão de um bem de uso e
ganha a de um bem de troca. Ela não vale mais pelo que é e pelo que representa para as
pessoas. Não é mais um dom do fazer que existe no ensinar o saber que é um outro dom de
todos e que a todos serve. A educação vale como um bem de mercado, e por isso é paga e às
vezes custa caro. Vale como um instrumento cujos segredos se programam nos gabinetes
onde estão os emissários dos intermediários dos interesses políticos postos sobre a educação.
Esta é a sua dupla dimensão de valor capitalista: a) valer como alguma coisa cuja posse se
detém para uso próprio ou de grupos reduzidos, que se vende e compra; b) valer como um
instrumento de controle das pessoas, das classes sociais subalternas, pelo poder de difusão das
idéias de quem controla o seu exercício.
Então, o que parece inacreditável faz parte da própria lógica do modo como a
educação existe na sociedade desigual. Quando pensada como uma "filosofia" ou uma
"política de educação", ela se apresenta juridicamente como um bem de todos, de que o estado
assume a responsabilidade de distribuição em nome de todos. Mas sequer as pessoas a quem a
educação serve, em princípio, são de algum modo consultadas sobre como ela deveria ser. A
educação que chega à favela, chega pronta na escola, no livro e na lição. Os pais favelados
dos alunos são convocados a matricular os seus filhos, como se aquilo fosse um posto de
recrutamento. Não são convocados, por exemplo, a debaterem com os professores como eles
pensam que a escola da favela poderia ser uma verdadeira agência de serviços à sua gente.
Mesmo que fossem, as suas idéias por certo não sairiam do caderno de anotações da diretoria.
Mas não são só os pais e as crianças faveladas os que não têm direitos de pensar na educação
da favela. Mesmo os cidadãos ricos e letrados não tem poder algum sobre as idéias que
determinam a educação de seus filhos, e a imensa massa dos próprio educadores da linha de
frente do trabalho pedagógico (professores, diretores de escola, orientadores, supervisores
educacionais) têm o poder do exercício da reprodução das idéias prontas sobre a educação e
dos conteúdos impostos à educação. Mas não têm nem o direito nem o poder de participarem
das decisões político-pedagógicas sobre a educação que praticam. Elas estão reservadas aos
donos do poder político e às pequenas confrarias de intelectuais constituídas como seus porta-
vozes pedagógicos. Poucos espaços de trabalho social são hoje, tão pouco comunitários e
democratizados entre os seus diferentes praticantes, como a educação.
E, em qualquer tipo de ordem social, quanto mais a educação autoritária e classicista é
expressão de um poder autoritário de uma sociedade classista, tanto mais ela procura
apresentar-se como uma prática humanamente legítima, exercida em nome de leis legítimas e
"para o bem de todos". A ideologia que fala através das leis, decretos e projetos da educação
autoritária nega acima de tudo que ela seja uma pedagogia contra o homem — contra a
verdadeira liberdade do homem através do saber, liberdade que existe através da verdadeira
igualdade entre os homens.
Por isso há "leis do ensino" que afirmam com fé de ofício os valores de uma suposta
democracia feita através da educação, e que é a alma dos conteúdos de seu ensino. Estas
afirmações teóricas ocultam o fato real de que o exercício desta educação consagra a
desigualdade que deveria destruir. Afirmar como idéia o que nega como prática é o que move
o mecanismo da educação autoritária na sociedade desigual.
A ESPERANÇA NA EDUCAÇÃO
Se a educação é determinada fora do poder de controle comunitário dos seus
praticantes, educandos e educadores diretos, por que participar dela, da educação que existe
no sistema escolar criado e controlado por um sistema político dominante? Se na sociedade
desigual ela reproduz e consagra a desigualdade social, deixando no limite inferior de seu
mundo os que são para ficar no limite inferior do mundo do trabalho (os operários e filhos de
operários), e permitindo que minorias reduzidas cheguem ao seu limite superior, por que
acreditar ainda na educação? Se ela pensa e faz pensarem o oposto do que é, na prática do seu
dia a dia, por que não forçar o poder de pensar e colocar em prática uma outra educação?
A resposta mais simples é: "porque a educação é inevitável". Uma outra, melhor seria:
"porque a educação sobrevive aos sistemas e, se em um ela serve à reprodução da
desigualdade e à difusão de idéias que legitimam a opressão, em outro pode servir à criação
da igualdade entre os homens e à pregação da liberdade". Uma outra ainda poderia ser:
"porque a educação existe de mais modos do que se pensa e, aqui mesmo, alguns deles podem
servir ao trabalho de construir um outro tipo de mundo".
"Reinventar a educação" é uma expressão cara a Paulo Freire e aos seus companheiros
do Instituto de Desenvolvimento e Ação Cultural. De algum modo eles a aprenderam na
África, trabalhando como educadores junto a educadores de países como a Guiné-Bissau e as
ilhas de São Tome e Príncipe, que se haviam tornado independentes de Portugal e tratavam de
reinventar, mais do que só a educação, a sua própria vida social. O mais importante nesta
palavra, "reinventar", é a idéia de que a educação é uma invenção humana e, se em algum
lugar foi feita um dia de um modo, pode ser mais adiante refeita de outro, diferente, diverso,
até oposto. Muitas vezes um dos esforços mais persistentes em Paulo Freire é um dos menos
lembrados. Ao fazer a crítica da educação capitalista, que ora chamou também de "educação
bancária", ora de "educação do opressor", ele sempre quis desarmá-la da idéia de que ela é
maior do que o homem. De que as pessoas são um produto da educação, sem que ela mesma
seja uma invenção das pessoas, em suas culturas, vivendo as suas vidas. Ele sempre quis
livrar a educação de ser um fetiche. De ser pensada como uma realidade supra-humana e, por
isso, sagrada, imutável e assim por diante. Ao contrário do que acontece com os deuses, para
se crer na educação é preciso primeiro dessacralizá-la. É preciso acreditar que, antes,
determinados tipos de homens criam determinados tipos de educação, para que, depois, ela
recrie determinados tipos de homens. Apenas os que se interessam por fazer da educação a
arma de seu poder autoritário tornam-na "sagrada" e o educador, "sacerdote". Para que
ninguém levante um gesto de crítica contra ela e, através dela, ao poder de onde procede.
Por isso, muitas páginas atrás comecei falando sobre ensinar-e-aprender como alguma
coisa que começa com os bichos (quem sabe com as plantas, com os seres "brutos" do
Universo?) e que, entre nós, homens, existe por toda parte. Procurei corrigir a visão estreita de
que a educação se confunde com a escolarização e se encontra só no que é "formal", "oficial",
"programado", "técnico", "tecnocrático". Se em algumas páginas falei dela como um entre
outros instrumentos de desigualdade e alienação, em outras imaginei-a como uma aventura
humana.
A educação existe em toda parte e faz parte dela existir entre opostos. O que vimos
juntos, leitor, acontecer na Grécia, repete-se mil vezes em mil tempos de outros mundos
sociais. Entre sujeitos igualados pelo trabalho comum e o saber comunitário, também a
educação pertence do mesmo modo a todos e, se existe diferente para alguém, é para
especializar, para o uso de todos, o seu saber e o seu trabalho. Mais do que poder, portanto,
ela atribui compromissos entre as pessoas.
Quando o fruto do trabalho acumula os bens que dividem o trabalho, a sociedade
inventa a posse e o poder que separa os homens entre categorias de sujeitos socialmente
desiguais. A posse e o poder dividem também o saber entre os que sabem e os que não sabem.
Dividem o trabalho de ensinar tipos de saber a tipos de sujeitos e criam, para o seu uso,
categorias de trabalhadores do saber-e-do-ensino.
É a partir daí que a educação aparece como propriedade, como sistema e como escola.
O controle sobre o saber se faz em boa medida através do controle sobre o quê se ensina e a
quem se ensina; de modo que, através da educação erudita, da educação de elites ou da
educação "oficial", o saber oficialmente transforma-se em instrumento político de poder. Ele
abandona a communitas de que fez parte um dia e ingressa na estrutura dos aparatos de
controle. O "processo grego" se repete então: a educação da comunidade, a escola, a oposição
entre a educação-de-educar e a educação-de-instruir, a passagem da aprendizagem coletiva
para o ensino particular, o controle do Estado. Em primeiro lugar, em algum tempo ela existe
difusa no meio social de que todos participam e é ativamente exercida nos diferentes círculos
naturais da sociedade: a família, o clã, o grupo de idade, o grupo de socius. Mais adiante a
educação especializa-se sob a égide da escola, mas a escola particular do mestre avulso ainda
é uma extensão da sociedade civil. Mais tarde ainda, a própria educação escolar cai sob o
poder de decisão do Estado que, quando autoritário e classista, exerce a educação para o
controle da sociedade civil, da comunidade de todos.
Onde surgem interesses desiguais e, depois, antagônicos, o processo educativo, que
era unitário, torna-se partido, depois, imposto. Há educações desiguais para classes desiguais;
há interesses divergentes sobre a educação, há controladores. Grupos desiguais não só
participam desigualmente da educação — dos nobres, dos funcionários, dos artesãos — como
são também por ela destinados desigualmente ao trabalho: para dirigir, para executar, para
produzir.
Mas, assim como a vida é maior que a forma, a educação é maior que o controle
formal sobre a educação. Alguns pesquisadores têm descoberto hoje o que existe há milênios.
Por toda parte as classes subalternas aprenderam a criar e recriar uma cultura de classe —
mesmo quando aproveitando muitos elementos dominantes que lhes foram impostos como
idéias ou como práticas — e também formas próprias de educação do povo. As oficinas de
que falei aqui e ali são um exemplo que vem da antigüidade até nossos dias. Mas podem não
ser o melhor exemplo.
O que existe na verdade nas comunidades de subalternos é a preservação de tipos de
saber comunitários e de meios comunitários de sua transferência de uma geração para outra.
Como sempre se faz a história da educação erudita e formal quando se discute o que é
educação, sempre se deixa de lado este seu outro lado. A margem da vida dos dominantes,
dos escravos aos bóias-frias de hoje, os subalternos souberam criar, dentro dos limites
estreitos em que sempre lhes foi permitido "criar" alguma coisa sua, os seus modos próprios
de saber, de viver e de saber. Eles inventaram os seus códigos de trocas no interior da classe e
entre classes.
Sempre que possível, criaram formas peculiares de solidariedade para dentro da classe,
e de resistência e manipulação para fora dela. Elaboraram as suas crenças e valores de
representação do mundo, mesmo quando observando a escrita da ideologia dos seus senhores.
Construíram estilos e tecnologias rústicas dirigidos aos seus usos do cotidiano. Inventaram
rituais sagrados e profanos. Tudo isso a que se dá o nome de "Cultura Popular", e que às
vezes se vê da academia como um amontoado de coisas pitorescas, faz parte de sistemas
populares de vida e de representação da vida, e tem uma lógica e densidade de que apenas
levantamos o primeiro véu, depois de tantas pesquisas.
Pois todo este trabalho tradicional de classe que sustenta um modo próprio de vida
subalterna é sustentado por formas próprias e muitas vezes popularmente muito complexas de
saber, é sustentado também por sistemas próprios de reprodução do saber popular, que
implicam não apenas em relações simples, como as de um pai lavrador com um filho
aprendiz, mas também em redes e estruturas pedagógicas de que desconhecemos, quase tudo.
Isto é evidente em muitas situações: na Capoeira da Bahia, nas confrarias populares de
Foliões de Santos Reis, numa quadrilha de pivetes ou numa equipe rústica de construtores de
casas.
Estes modos próprios de uma educação dos subalternos têm um teor político de que
pouco se suspeita. Assim como a educação do sistema dominante possui o valor político dos
serviços que presta aos que a controlam, enquanto ensina desigualmente aos que a recebem,
assim também as formas próprias de educação do povo servem a ele como redes de resistência
a uma plena invasão da educação e do saber "de fora da classe".
A própria maneira como uma população de favelados se relaciona com a escola pode
ser um bom exemplo disso. Quando há escola pública na favela, os pais mandam os filhos
para ela. Quando não há, as "comissões de bairro" lutam para que haja. Mas quem envia os
filhos não se compromete com a escola. Os esforços de professores e diretores para que haja
um maior intercâmbio entre "a escola" e "a comunidade" resultam quase sempre em fracasso.
Quando em alguma favela a coisa dá resultado, às vezes o secretário da educação vai visitar e,
se possível, leva a TV Globo. O descompromisso dos adultos para com a escola pública não é
devido à falta de tempo. Muitos destes pais gastam o corpo, o tempo e o dinheiro por meses a
fio nos preparos do "bloco do bairro", ou da "escola de samba". Eles fazem "assim porque
tratam a escola "do governo" como tratam as suas outras agências: o posto de saúde, a
delegacia, a agência de bem-estar social. Tratam como locais para serviços de emergência e,
ao mesmo tempo, como postos invasores de um tipo de domínio de classe indesejável. Se
tratam a educação dos seus filhos como coisa que se passa "no mundo dos brancos", é porque
têm também as suas formas próprias, tradicionais, de reprodução do saber. Por isso tratam o
"bloco" e a "escola de samba" como coisa sua, de seu mundo. Sem o saber que existe na fala,
mas cheios do saber que existe na prática, os subalternos criam e recriam a sua própria
educação. E ela não existe só para difundir o saber, mas para reforçar o resistir. Alguns
estudos de antropólogos franceses na África, confirmados por outros feitos, por brasileiros,
aqui no Brasil, demonstram como existe uma sábia arma de resistência popular justamente
naquilo que nos acostumamos a desprezar, por ver como "tradicional", "atrasado",
"primitivo". A aparente "primitividade" do pobre contra a invasão sobre ele da "modernidade"
do senhor é um meio popular avançado de lutar por manter e recriar uma identidade própria
de subalterno (de índio, de negro, de colonizado, de escravo, de camponês), de manter o seu
próprio saber e as suas próprias redes de educação.
Quando em alguma parte setores populares da população começam a descobrir formas
novas de luta e resistência, eles redescobrem também " velhas e novas formas de "atualizar" o
seu saber, de torná-lo orgânico. Criam por sua conta e risco, ou com a ajuda de agenteseducadores eruditos, outras formas de associação, como os sindicatos, os movimentos
populares, as associações de moradores. Estes grupos, que geram outros tipos de mestres entre
as pessoas do povo, geram também outras situações vivas de aprendizagem popular. Eu não
tenho dúvidas em afirmar que é entre as formas novas de participação popular, nas brechas da
luta política, que, hoje em dia, surgem as experiências mais inovadoras de educação no Brasil.
Os professores tradicionais e os tecnocratas da pedagogia são cegos para elas, mas é ali que as
propostas mais avançadas de "educação e vida", "educação na prática", etc, são criadas e
testadas.
Mais do que isso, em algumas partes do país comunidades populares tentam inventar
agora tipos de escolas comunitárias que antecipariam, em uma plena democracia, o exercício
de uma "educação como prática da liberdade". Aquela que, sendo sustentada economicamente
pelo poder público, fosse política e pedagogicamente controlada pelas comunidades onde se
exercesse.
De outra parte, mesmo nos setores eruditos da educação oficial, é preciso compreender
que ela existe em muito mais situações do que dentro do sistema e na sala de aula. Ao lado
das inovações pedagógicas que provocam a reinvenção do trabalho escolar, a mesma relação
de opostos sobreexiste entre a formalidade da estrutura e a permanente oposição que fazem a
ela as inúmeras pequenas communitas de sujeitos envolvidos, de um modo ou de outro, com o
sistema de educação.
De um lado, os próprios professores que trabalham como educadores (como sujeitos
de suas diversas categorias de especialistas), nas escolas, colégios e universidades, aprendem
a se organizar também como categorias políticas e profissionais de trabalhadores da educação.
As associações de tipos de especialistas do ensino e, mais ainda, as associações de categorias
de docentes são o resultado do desenvolvimento da consciência política do educador.
De outro lado, os alunos criam e recriam as suas unidades de organização, os seus
grêmios, grupos de arte e cultura. Quem poderia esquecer que as experiências de Educação
Popular e de Cultura Popular no Brasil foram iniciadas dentro dos primitivos serviços de
Extensão Universitária, como o da Universidade Federal de Pernambuco, onde nasceu o
Método Paulo Freire de Alfabetização, ou como os Movimentos de Cultura Popular e os
Centros Populares de Cultura, vinculados ao movimento estudantil e às suas unidades de
mobilização?
Só os formalistas pedagógicos podem enxergar educação apenas dentro dos sistemas
restritos da pedagogia (que, aliás, até hoje não se sabe ao certo se é uma ciência, uma prática
especializada ou uma teoria de educação, ou, quem sabe, nada disso).
Somente eles poderiam discutir, como questões da educação, problemas de método, de
operacionalidade curricular, de programação sistemática e assim por diante. Instrumentos
úteis, sem dúvida, mas pequenas algemas de controle quando empregados sem a crítica do
lugar e do sentido de tudo isso. Só o educador "deseducado" do saber que existe no homem e
na vida poderia ver educação no ensino escolar, quando ela existe solta entre os homens e na
vida. Quando, mesmo ao redor da escola e da universidade, ela está no sistema e na oposição
a ele; na sala de aula em ordem, e no dia de greve estudantil; no trabalho rigoroso e
persistente do professor-e-pesquisador e, ao mesmo tempo, no trabalho político do professormilitante.
Esta é a esperança que se pode ter na educação. Desesperar da ilusão de que todos os
seus avanços e melhoras dependem apenas de seu desenvolvimento tecnológico. Acreditar
que o ato humano de educar existe tanto no trabalho pedagógico que ensina na escola quanto
no ato político que luta na rua por um outro tipo de escola, para um outro tipo de mundo.
E é bem possível que até mesmo neste "outro mundo", um reino de liberdade e
igualdade buscado pelo educador, a educação continue sendo movimento e ordem, sistema e
contestação. O saber que existe solto e a tentativa escolar de prendê-lo num tempo e num
lugar. A necessidade de preservar na consciência dos "imaturos" o que os "mais velhos"
consagraram e, ao mesmo tempo, o direito de sacudir e questionar tudo o que está consagrado,
em nome do que vem pelo caminho.
TEXTO DISPONÍVEL EM:
http://pt.scribd.com/doc/39369244/O-que-e-Educacao-BRANDAO-Carlos-Rodrigues
REFLETINDO SOBRE A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL
Robson Stigar & Neivor Schuck 2
Introdução
O presente texto tem por objetivo refletir sobre a história da educação no Brasil, tendo
em vista as suas varias concepções de ensino a longo da história, bem como entender a partir
do passado a educação da atualidade. Em primeiro momento será apresentado um pequeno
contexto histórico, no segundo momento pretende-se refletir sobre os conflitos entre as
diferentes posturas de ensino e por fim refletir sobre a teoria da complexidade e a sua relação
com a educação contemporânea.
Contexto Histórico
A formação do Brasil implica necessariamente na estruturação de nosso modelo de
ensino porque desde os primeiros anos de nossa descoberta sofremos da falta de estrutura e
investimento nessa área. Contudo, além do componente histórico que parece ser de comum
aceitação, aparece o problema do modelo pedagógico adotado. Neste aspecto ocorre uma
polarização e até uma divisão tripla se quisermos englobar a escola técnica (anos 70). Ou seja,
as posturas mais adotadas em nosso país são justamente a pedagogia tradicional (método
fonético) e a escola nova (construtivismo).
Segundo XAVIER
de um lado está a escola tradicional, aquela que dirige que modela, que é
‗comprometida‘; de outro está a escola nova, a verdadeira escola, a que não
dirige, mas abre ao humano todas as suas possibilidades de ser. É portanto,
‗descompromissada‘. É o produzir contra o deixar ser; é a escola
escravisadora contra a escola libertadora; é o compromisso dos
tradicionais que deve ceder lugar à neutalidade dos jovens educadores
esclarecidos (XAVIER, 1992: 13).
2
 Robson Stigar: licenciado em Filosofia, especialista em Psicopedagogia, mestrando em Ciência da Religião –
[email protected] Neivor Schuck: licenciado em Filosofia, especialista em Psicopedagogia, mestrando em
Ciências da Religião - [email protected]
Aparentemente temos a impressão de que o grande problema de nossa deficiência
educacional se resume ao problema da rigidez do modelo tradicional de ensino, mas ao
aprofundarmos nossa investigação constáramos que a péssima qualidade de ensino presente
nas escolas do Brasil acontece devido, em parte tanto a falta de estrutura educacional
adequada como pela desestruturação das poucas bases presentes na pedagogia tradicional,
causada pela critica dos escolanovistas, que acreditavam piamente que puramente pela crítica
se atingiria uma melhoria no aprendizado.
No entender de SAVIANI a escola tradicional procurava ensinar e transmitia
conhecimento, a escola nova estava preocupada em apenas considerara o aprender a aprender.
E posteriormente a escola técnica detinha-se em simplesmente considerar necessário o ensino
da técnica. Até o inicio do século XX a educação no Brasil esteve praticamente abandonada,
no entender de ROMANELLI:
a economia colonial brasileira fundada na grande propriedade e não na
mão de obra escrava teve implicações de ordem social e política bastante
profundas. Elafavorece o aparecimento da unidade básica do sistema de
produção, de vida social e do sistema de poder representado pela família
patriarcal (ROMANELLI, 2001: 33).
Assim, a educação no Brasil caminhou por veredas tortuosas desde o inicio, reservada
a uma elite dominante e totalmente exploradora, sempre esteve voltada a estratificação e
dominação social. Esteve arraigada por diversos séculos em nossa sociedade a concepção de
dominação cultural de uma parte minúscula da mesma, configurado-se na idéia básica de que
o ensino era apenas para alguns, e por isso os demais não precisariam aprender.
As oligarquias do período colonial e monárquico estavam profundamente
fundamentadas na dominação via controle do saber. Caracterizou-se nesse período colonial,
bem como no monárquico, um modelo de importação de pensamento, principalmente da
Europa e consequentemente a matriz de aprendizagem escolar fora introduzida no mesmo
momento. Nas palavras de ROMANELLI, foi a família patriarcal que favoreceu, pela natural
receptividade, a importação de formas de pensamento e idéias dominantes na cultura medieval
européia, feita através da obra dos Jesuítas‖ (ROMANELLI, 2001: 33).
Assim, a classe dominante tinha ser detentora dos meios de conhecimento e de ensino.
Isso implicou no modelo aristocrático de vida presente em nossa sociedade colonial e
posteriormente na corte de D. Pedro. Existiram dois fatores fundamentais na formação do
modelo educacional brasileiro, ou seja, ―a organização social (...) e o conteúdo cultural que foi
transportado para a colônia, através da formação dos padres da companhia de Jesus‖
(ROMANELLI, 2001: 33).
No primeiro fator aparece com mais intensidade a predominância de uma minoria de
donos de terra e senhores de engenho sobre uma massa de agregados e escravos. Apenas
àqueles cabia o direito à educação e, mesmo assim, em número restrito, porquanto deveriam
estar excluídos dessa minoria as mulheres e os filho primogênitos. Limitava-se o ensino a
uma determinada classe da população, ou seja, apenas a classe dominante. Surge claramente
um dos fundamentos da baixa escolaridade de nossa população e da falta de recursos para a
eliminação das diferenças entre as classes.
A segunda contribuição para a formação de nosso sistema educacional deficitário é
justamente o conteúdo do ensino dos Jesuíta, ―caracterizado sobretudo por uma enérgica
reação contra o pensamento critico‖ (ROMANELLI, 2001: 34), contudo, a maneira como os
Jesuítas cultivavam as letras permitiu algum alvorecer em nossa literatura.
O conflito entre as diferentes posturas de ensino
A relação entre escola e democracia depende de diferentes aspectos presentes na
sociedade. Contudo, parece que o problema aparece realmente nas teorias de educação. Isso
se expressa pelo elevado índice de analfabetismo funcional, configurando uma marginalidade
desses indivíduos analfabetos. Por outro lado, ―no segundo grupo, estão as teorias que
entendem ser a educação um instrumento de discriminação social, logo, um fator de
marginalização‖ (SAVIANI, 2003: 04).
Deste modo, podemos constatar que ambos os grupos explicam a questão da
marginalidade a partir de uma determinada concepção da relação entre educação e sociedade.
Assim, ambos os grupos destoam partindo de um mesmo referencial, com isso, para os nãocríticos (primeiro grupo)
A sociedade é concebida como essencialmente harmoniosa, tendendo a
integração de seus membros. A marginalidade é, pois, um fenômeno
acidental que afeta individualmente um número maior ou menor de seus
membros, o que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não
pode como deve ser corrigida (SAVIANI, 2003: 04).
A superação dessa distorção far-se-ia por intermédio da educação. Tendo por
função―reforçar os laços sociais, promover a coesão e garantir a integração de todos os
indivíduos no corpo social‖ (SAVIANI, 2003: 04), permitindo a superação da marginalidade.
Por outro lado, os que defendem uma postura critica entendem que
a sociedade como sendo essencialmente marcada pela divisão entre grupos
ou classes antagônicas que se relacionam à base da força, a qual se
manifesta fundamentalmente nas condições de produção da vida material.
Nesse quadro a marginalidade é entendida como um fenômeno inerente à
própria estrutura da sociedade (SAVIANI, 2003: 04).
Assim, a educação assume um papel de produtora da marginalização, porque produz a
marginalidade cultural e de maneira especifica a escolar. No entender de SAVIANI existem
três modalidades diferentes de configurar os modelos educacionais expressos pelas duas
teorias expressas anteriormente, isto é, a tradicional, fundada na relação ensino aprendizagem
e na relação professor aluno; a escola nova, que entende como fundamental a necessidade de
aprender a aprender e na função de acompanhar o desenvolvimento individual do estudante
por parte do professor; e por último aparece a concepção técnica que se funda no fazer e
elimina totalmente a relação professor aluno.
Segundo SAVIANI a concepção critica não apresenta nenhuma proposta para
substituir a pedagogia tradicional e por isso não permite ser pensada como uma solução do
problema da relação entre escola e marginalidade social. Ao apresentar uma solução possível
para a questão SAVIANI aponta para a definição de prioridades políticas fundadas no
principio aristotelico de animal político, tudo englobaria o ato de educar.
Assim, a educação sempre possui uma dimensão política tenhamos ou não consciência
disso, portanto assume-se um caráter educativo e político para a educação e este só cumpre
seu papel quando permite a formação integral do indivíduo. Mas o desafio permanece, como
podemos falar em educação global se vivemos em uma sociedade fragmentada, imbuída de
diferentes conceitos de razão, educação, ética, política, marginalidade, sociedade e cultura?
No entender de SAVIANI existem onze teses acerca da educação que precisam ser
consideradas como fundamentais no engajamento político. Isto é , o agir educativo sempre
cumpre um papel fundamental na estruturação da sociedade. O modelo tortuoso e
desorganizado de nosso sistema educacional gera aberrações como as que vemos nas
instituições de ensino público superior. Ou seja, os que deveriam ter acesso a escola pública
superior não conseguem e os que podem pagar adentram as portas das universidades públicas.
A teoria da complexidade e sua relação com a educação contemporânea Segundo
MORIN a sociedade contemporânea possui elementos diversificados e complexos, isto
significa que o ensino precisa estar atento a complexidade da vida contemporânea.
Desta forma, a incorporação dos sete saberes como fundamentos para desenvolver o
homem moderno. Dentro deste cenário a sociedade se preocupa cada vez mais com a
realidade escolar e com a formação dos indivíduos, sobretudo precisa-se de criatividade para
mudar a realidade brasileira. Contudo, ―O conhecimento disciplinar, e conseqüentemente a
educação, têm priorizado a defesa de saberes concluídos, inibindo a criação de novos saberes
e determinando um comportamento social a eles subordinado‖ (AMROSIO: 2007).
Por isso a interdisciplinaridade entre os diferentes saberes seria essencial para resolver
esse problema . MORIN entende que o conhecimento na complexidade
É a viagem em busca de um modo de pensamento capaz de respeitar a
multidimensionalidade, a riqueza, o mistério do real; e de saber que as
determinações – cerebral, cultural, social, histórica – que impõem a todo o
pensamento, co-determinam sempre o objecto de conhecimento. É isto que
eu designo por pensamento complexo. (MORIN 1980: 14).
Trata-se de um pensamento desprovido de certezas e verdades científicas, que
considera a diversidade e a incompatibilidade de idéias, crenças e percepções, integrandoas à
sua complementaridade. ―A consciência nunca tem a certeza de transpor a ambigüidade e a
incerteza‖ (MORIN, 1973: 134). Morin refere-se ao princípio da incerteza tal como
formulado por Werner Heisenberg, físico, um dos precursores da mecânica quântica. Esse
princípio baseia-se na falibilidade lógica, no surgimento da contradição presente na realidade
física e na indeterminabilidade da verdade científica. Assim, o conceito de lógica tradicional
fundado em Aristóteles não pode mais responder aos anseios da sociedade moderna, a lógica
da complexidade assume novas probabilidades e possibilidades.
Com efeito, promover, pois, a qualidade ética em educação, componente indispensável
da qualidade total, e reformular o modo de se relacionar de todos os atores na escola,
educadores e educandos, de acordo com as diferentes características do agir humano radicado
na liberdade e voltado para o bem. Portanto, a complexidade como teoria de ação precisa
levar em conta a ética na conduta pratica do profissional da educação.
Conclusão
Esperamos de alguma forma ter contribuído para o debate acadêmico e cientifico do
tema proposto. Vale lembrar que consideramos este artigo como um ensaio, como uma breve
introdução ao tema e não como uma postura filosófica ou educacional determinista, ou seja,
fechada, acabada, pronta. O dialogo entre as posições diferentes enriquece a discussão e faz o
papel da dialética, tão importante e necessário pro desenvolvimento acadêmico, social,
político, cultural e educacional da sociedade.
TEXTO DISPONÍVEL EM:
http://www.opet.com.br/artigos/pdf-pg-artigos/Refletindo%20sobre%20a%20historia%20da%20educacao%20no%20Brasil%20OPET.pdf
O ESTUDO DOS FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E SUA INFLUÊNCIA NA
RELAÇÃO ENTRE COMUNIDADE E ESCOLA3
ADRIANA FRANCISCA DE CARVALHO MIGUEL
O ESTUDO DOS FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E SUA INFLUÊNCIA NA
RELAÇÃO ENTRE COMUNIDADE E ESCOLA.
A disciplina Fundamentos da Educação tem servido de apoio à estrutura humana em
seu convívio social e produtivo. Pois, entende se assim, que a educação tem que adaptar a
criança ao meio social adulto, ou seja, transformar a constituição psicológica do indivíduo em
torno do conjunto de realidades coletivas as quais a consciência comum colabore com um
determinado valor.
Desta forma, é importante enfatizar, que a educação pode ser conceituada como um
processo contínuo sempre ligado à reconstrução da experiência, com o objetivo de ampliar e
aprofundar o seu conteúdo social, enquanto ao mesmo tempo, o indivíduo ganha o controle
dos métodos envolvidos.
De acordo com Piaget (1979), no caso do desenvolvimento da leitura e escrita, a
dificuldade para adotar o ponto de vista da criança foi tão grande que ignoramos
completamente as manifestações mais evidentes das tentativas infantis para compreender o
sistema da escrita. A necessidade do homem de se expressar através da leitura e da escrita,
algumas vezes, pode ser um processo doloroso e traumático, por isso devem ser repensadas as
atitudes dos educadores para com as crianças que não acompanham o ritmo de aprendizagem
imposto pelo modelo educacional.
É a partir desta problemática, que a disciplina Fundamentos da Educação é de grande
relevância ao profissional da educação por ministrar todo este conteúdo.
O educador, nos dias atuais, para conseguir bons resultados no ensino e aprendizado,
tem que estar por dentro de todos os meandros da formação e atuação do indivíduo, uma vez
que a sua atuação deve ser ampla e aberta em todos os aspectos que se encontram ao seu
redor.
Veremos nos subcapítulos a seguir como os grandes pensadores da educação
desenvolveram as teorias que são de grande discussão ainda nos dias atuais.
FUNDAMENTOS PSICOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO
3
Produção de Aprendizagem apresentada à UTA –Fundamentos da Educação, no Curso de Pedagogia à
Distância da Faculdade Internacional de Curitiba.
Os princípios fundamentais da teoria de Piaget é a teoria interacionista construtivista.
Para Piaget o desenvolvimento intelectual, assim como o da moral, esta relacionado à
interação ativa do sujeito com o meio físico e social. Nesse processo interativo, ele
desenvolve novas adaptações, envolvendo assimilações e acomodações, e as organiza. Essas
adaptações lhe permitem avanços no desenvolvimento das estruturas da inteligência e do
conhecimento do real.
Na educação, a teoria piagetiana, está voltada ao desenvolvimento do raciocínio
autônomo, tanto no plano intelectual como no plano moral. Nesse sentido é preciso, antes de
tudo dar voz ao aluno, discutir com ele objetos de conhecimento em pé de igualdade, mesmo
sabendo que há uma desigualdade em termos de conhecimento.
A teoria histórico-cultural desenvolvida por Vygotsky,afirma que, o desenvolvimento
propriamente humano é cultural e social na sua origem e denominado assim porque dependa
da mediação de sistemas simbólicos. Nesse processo, parte-se de uma regulação pelos outros,
no social, para uma autorregulação a partir das generalizações possibilitadas pela linguagem
conceitual.
O conceito de zona de desenvolvimento proximal ou potencial (ZDP) é um conceito
poderoso, que vem dar suporte à noção de aprendizagem gerando desenvolvimento. Ao
professor cabe atuar no ZDP do aluno para que este torne real oque primeiro é potencial. A
mediação na ZDP vem contribuir para o avanço no conhecimento. Se o investimento estiver
no nível de desenvolvimento real, não haverá evolução; se, por outro lado, for muito acima
deste, mesmo com ajuda não haverá avanço. Para investir na ZDP, é preciso investir em
problemas nem muito fáceis nem muito difíceis para o aluno, algo que ele, consiga resolver
com ajuda do professor ou de um colega mais experiente.
O objetivo dos estudos dos fundamentos psicológicos é compreender os processos de
desenvolvimento e aprendizagem do ser humano. Essa área da psicologia estuda as mudanças
no comportamento das pessoas que foram provocadas ou induzidas por situações educativas,
formais ou informais. Com o conhecimento psicológico o educador pode contribuir no
processo de construção do conhecimento do aluno, oferecendo vários objetos de
conhecimento e instigando o aluno a interagir com eles. Cabe a ele intervir para fazer os
alunos pensarem sobre suas próprias atividades e refletir sobre o processo que o levou ao
êxito ou ao fracasso no trabalho com diferentes áreas.
FUNDAMENTOS SÓCIO-ANTROPOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO
No âmbito da sociologia das relações família-escola, o grupo familiar deixa de ser
visto como mero reflexo da classe social de pertencimento, passando a ser analisado em sua
especificidade, em sua dinâmica interna e sua forma peculiar de relação com o meio social.
Durkheim tinha como objetivo principal descobrir as leis de funcionamento da
sociedade. Por esse motivo é considerado um dos sistematizadores da corrente funcionalista.
Enfatiza a origem social da educação com a finalidade desuperar sua caracterização
predominantemente intelectualista e individualista. Esta teoria se preocupava principalmente
com a questão da escolarização; sobretudo, com a forma como se dava a integração entre os
indivíduos por meio da educação e o modo como se organizavam os espaços escolares.
Aspectos como a transformação social e os conflitos sociais eram negados por esta corrente, a
qual os percebia como uma doença.
Karl Marx desenvolveu uma concepção materialista da História, afirmando que o
modo pelo qual a produção material de uma sociedade é realizada constitui o fator
determinante da organização política e das representações intelectuais de uma época.
Assim, a base material ou econômica constitui a "infraestrutura" da sociedade, que
exerce influência direta na "superestrutura", ou seja, nas instituições jurídicas, políticas (as
leis, o Estado) e ideológicas (as artes, a religião, a moral) da época.
Segundo Marx, a base material é formada por forças produtivas e por relações de
produção. Marx utilizou o método dialético para explicar as mudanças importantes ocorridas
na história da humanidade através dos tempos. Ao estudar determinado fato histórico, ele
procurava seus elementos contraditórios, buscando encontrar aquele elemento responsável
pela sua transformação num novo fato, dando continuidade ao processo histórico.
Na concepção sociológica de Max Weber o ponto de partida esta justamente no
indivíduo, que passa a ser compreendido como o motor das relações sociais. O objetivo da
sociologia weberiana relaciona-se com o seu principal conceito, que é a ação social. Para o
autor, a sociologia é o estudo da ação social, levando em conta a necessidade de compreendêla em interpretá-la em suas complexas casualidades e efeitos. Outro conceito importante em
Weber é o de relação social, que se diferencia da ação social pelo fato de que aquela relação
demanda que os atores realizem a ação de modo recíproco.
Weber é também um dos grandes teóricos da burocracia, entendida esta como meio de
denominação racional legal típico da sociedade capitalista, possível em sua integridade a
partir da organização do Estado Moderno.
A Sociologia da Educação oportuniza aos seus pesquisadores e estudiosos
compreender que a educação se dá no contexto de uma sociedade que, por sua vez, é também
resultante da educação. Também oportuniza compreender e caracterizar a inter-relação ser
humano/sociedade/educação à luz de diferentes teorias sociológicas.
Segundo Durkheim, a sociologia da educação serviria para os futuros professores para
uma nova moral laica e racionalista, sem influência religiosa.
A sociologia da educação começou a se consolidar por Marx e Engels, como o
pensamento sobre as sociedades de seu tempo, criando uma relação de educação e produção.
As concepções deles têm como início a revolução industrial, criando a educação politécnica,
que combina a instituição escolar com o trabalho produtivo, acreditando que dessa relação
nasceria um dos mais poderosos meios de transformação social.
FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÂO
A história da filosofia é a disciplina que se encarrega de estudar o pensamento
filosófico em seu desenvolvimento diacrônico, ou seja, a sucessão temporal das ideias
filosóficas e de suas relações. Ela é uma parte da ciência positiva da História, exigindo o
mesmo rigor nos métodos, a fim de reconstituir a sequência da filosofia.
Na teoria de Platão o homem resulta da união de dois elementos heterogêneos – a alma
inteligível e o corpo material. A alma humana, em virtude de sua imaterialidade, é da mesma
natureza das ideias e, portanto, tem uma predisposição natural para conhecê-las. Tal como
asa ideias, a alma é imortal: ela sempre existiu e sempre vai existir. A alma intelectiva é o que
há de mais nobre no ser humano, o qual se eleva à medida que desenvolve seu intelecto. Ao
contrário o homem se rebaixa quando sede aos impulsos corpóreos.
Para Aristóteles, corpo e alma estão unidos em um vínculo de dependência recíproca,
para existirem um depende do outro. Na filosofia aristotélica a vida virtuosa não é a recusa
dos prazeres corpóreos, como queria Platão, mas a moderação, a atitude daquele que evita
excessos.
A cultura medieval sofreu forte influência do cristianismo, uma religião cujos
princípios os gregos ignoravam. A religião cristã, em muitos aspectos, era um obstáculo à
livre reflexão filosófica. Para o cristianismo a verdade não era ―algo‖, mas ―alguém‖: Deus.
No inicio da Idade Moderna o cristianismo e a religião cristã, já não exercia um papel
tão acentuado na cultura do Ocidente. Em função disso, muitos filósofos voltaram a valorizar
a razão, considerando-a uma via de acesso segura ao conhecimento da verdade. Por isso é que
a filosofia moderna tomou como principal fundamento a questão do conhecimento.
Nesse sentido podemos identificar duas grandes correntes de pensamento: o
racionalismo e o empirismo:
Para o racionalismo, todo conhecimento verdadeiro deriva da pura razão. René
Descartes, que viveu no século XVII, foi um dos mais influentes filósofos racionalistas. Para
ele as ideias são inatas e só vão se manifestando à medida que vamos desenvolvendo nosso
intelecto.
O filósofo empirista Francis Bacon enfatiza a necessidade de coletarmos informações
pela experiência para só então submetê-las à razão.
Para Immanuel Kantpensador alemão que se situa entre a passagem da idade moderna
à contemporânea afirma que o conhecimento provém da ação combinada entre o sujeito e o
objeto de conhecimento.
O naturalismo postula um retorno a nós mesmos, à nossa verdadeira essência,
entendendo que a civilização que construímos é um mundo artificial, representando a origem
dos males morais e até físicos. Jean-Jacques Rousseau é o mais influente filósofo da vertente
naturalista.
O iluminismo, cujo autor mais importante é Voltaire, afirma que a educação deveria
superar o modelo livresco adotado pela nobreza, colocando a razão acima da tradição.
O positivismo surgiu na primeira metade do século XIX e que propunha a aplicação do
método das ciências naturais- observação,experimentação e interferência- para o estudo das
ciências humanas. O grande pioneiro do pensamento positivista foi August Comte, que via a
sociedade em um processo evolutivo, passando necessariamente por três estágios- o religioso,
o metafísico, e o positivo- e sendo rígida basicamente por duas leis, a estática e a dinâmica
sociais. Outro pensador positivista importante foi Herbert Spence, mas diferente de Comte
para ele a os resultados aos qual o cientista chega não podem ter validade universal absoluta,
uma vez que participam de experiências particulares.
O materialismo dialético é uma filosofia baseada nos escritos de dois pensadores
alemães do século XIX, Karl Marx e FriedrichEngels. Para eles, a história se desenvolve de
forma dialética, isto é, em movimento de tese/antítese/síntese, configurada em uma contínua
luta de classes.
A fenomenologia surge a partir da crítica do filósofo alemão Edmund Husserl ao
psicologismo. Essa linha filosófica nega a possibilidade de um conhecimento objetivo, tendo
em vista que os atos mentais são sempre subjetivos.
O existencialismo se constitui como um desdobramento da fenomenologia. Para essa
linha filosófica, a existência humana precede a existência, o que equivale a dizer que o ser
humano está constantemente fazendo a si mesmo por meio de suas livres escolhas.
O antropólogo estruturalista francês Lévi-Strauss, afirma que o pensamento humano é
determinado por estruturas inconscientes. Para o filósofo francês Foucault, o sujeito é um
efeito do discurso. A educação é vista em função das práticas sociais que a constituem.
O pragmatismo parte do pressuposto de que não é possível um aprofundamento
absoluto para a verdade, pois nossos juízes se encontram irremediavelmente comprometidos
com nossos valores, crenças, preconceitos. Nesse sentido, o único critério possível para
afirmamos à verdade são as consequências praticas do enunciado. Paralelamente ao
pragmatismo, a vertente da filosofia analítica inspirada pelo Tractatus logico-philosophicus
de Wittgenstein, procurava desenvolver uma concepção de linguagem adequada ao
pensamento científico, enquanto outra, inspirada pela obra de Investigações filosóficas, do
mesmo autor, interessava-se pela linguagem do cotidiano.
Diante da pluralidade encontrada em nossa sociedade nos dias atuais, educar tornou-se
uma tarefa nada fácil. As tendências pedagógicas sofrem críticas e superações dia após dia.
As concepções de ser humano ganham novas descobertas. A educação está fundada em
vertentes pedagógicas que divergem quanto a sua concepção de ser humano, que refletem
claramente na prática educativa, já que convergem para um ideal de educação em função de
metas e fins. Por isso, é que nos deparamos com o momento atual da educação em que
sentimos a necessidade de unir as formas de pensamento que já vigoraram, buscando
horizontes e novas perspectivas.
PESQUISA E PRÁTICA PROFISSIONAL – RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE
Na tradição sociológica, as relações comunitárias estariam vinculadas a um território
restrito e seriam marcadas por forte identidade afetiva. Em contrapartida, o conceito de
sociedade estaria associado à noção de regras racionais que procuram preservar a convivência
entre diferentes. Assim, as relações sociais nem sempre estariam vinculadas ao afeto entre os
indivíduos e seriam mais frequentes em agrupamentos sociais mais complexos e de grandes
dimensões.
Existe outra modalidadede comunidade naescola. A comunidade escolar: elacoexiste
com o colegiado escolar (grêmios estudantis e associações de pais entre outros), mas este
tenderia a superar os vícios corporativos (onde cada ator - pais ou alunos - defende seus
interesses específicos), constituindo um vínculo comunitário mais forte. A escola, então,
passaria a construir uma cultura comunitária a partir dos colegiados escolares, fundindo
interesses num agrupamento único.
Contudo, tanto na teoria quanto na prática, percebe-se que a construção da
comunidade escolar não estaria restrita ao interior da escola. Em outras palavras, nos
colegiados escolares ou em qualquer outra instância comunitária da escola, permanecem
interesses que não nascem na escola e não se vinculam somente ao que ocorre no interior da
escola. São interesses que estão diretamente relacionados ao bairro onde a escola está
inserida, aos eventos políticos e culturais de uma determinada região ou município, aos
interesses de categorias e classes sociais, aos interesses de gerações e assim por diante.
Por isso, exercício da ação docente ou a sua prática pedagógica deve acontecer de
maneira encadeada com os fundamentos teóricos da educação.Já que os estudos filosóficos
podem contribuir de maneira significativa na vida do indivíduo, e demanda a formação
integral do ser humano. É a filosofia que reúne o pensamento fragmentado pelas ciências e as
outras formas do conhecer.
As metodologias de ensino e a leitura que se faz sobre a realidade vivida da escola, da
comunidade, do aluno e demais contexto relacionados para que se constitua uma prática
pedagógica coerente e consistente e que objetive o desenvolvimento de uma formação cidadã.
TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM:
http://www.artigonal.com/ensino-superior-artigos/o-estudo-dos-fundamentos-da-educacao-e-sua-influenciana-relacao-entre-comunidade-e-escola-5615979.html
Piaget
Psicologia Genética e Educação
Marcus Vinícius Da Cunha4
Resumo: Este capítulo apresenta as concepções fundamentais da Epistemologia Genética de
Jean Piaget, tomando essa teoria como um paradigma. Focalizando temas relativos ao
desenvolvimento cognitivo e da sociabilidade, o capítulo expõe a visão de Piaget sobre a
educação, discutindo as possibilidades de transposição da teoria piagetiana para a prática
educacional.
Palavras-Chaves: Piaget. Psicologia Genética. Prática Educacional.
O suíço Jean Piaget nasceu em Neuchâtel em 1896 e morreu em Genebra em 1980.
Biólogo interessou-se desde jovem por Filosofia, particularmente pelo campo da
Epistemologia, em que são elaboradas e discutidas teorias do conhecimento.
Sua projeção nos meios acadêmicos deu-se como psicólogo e educador, mas as
indagações fundamentais que originaram seu paradigma e nortearam suas pesquisas sempre
estiveram prioritariamente vinculadas à compreensão do Sujeito Epistêmico e não do Sujeito
Psicológico. Embora tenha sido um homem preocupado com as graves questões de sua época,
entre elas a educação, o pesquisador genebrino não elaborou um método pedagógico, o que
muitos erroneamente julgam existir.
Um Problema Epistemológico
Um dos grandes temas da epistemologia é saber como se passa de um estado de menor
conhecimento para um estado de maior conhecimento, de um conhecimento de menor valor
para um conhecimento de maior valor. Esse problema, que seduziu o jovem Piaget como
seduz a todos os que se envolvem nessa área, pode ser compreendido com base nas
formulações do filósofo Immanuel Kant. Consideremos que alguns conhecimentos só podem
ser obtidos por meio do contato direto da pessoa com os dados do mundo empírico. Quando
dizemos ―está chovendo lá fora‖, esta é uma afirmação proveniente da experiência de ter ido
4
Professor Associado da Universidade de São Paulo (Ribeirão Preto).
lá fora e constatado um fato por intermédio dos órgãos dos sentidos. Conhecimentos desse
tipo são chamados a posteriori, uma vez que resultam de constatações empíricas.
PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO
Diferentemente, quando afirmamos que ―a linha reta é o caminho mais curto entre dois
pontos‖, expressamos um juízo a priori, pois nada está sendo dito sobre uma linha em
particular ou sobre dois pontos específicos. Não é preciso utilizar a experiência para
comprovar tal afirmação, uma vez que ela é universal e necessária: dados dois pontos
quaisquer, o caminho mais curto entre eles será sempre uma linha reta.
Os juízos a priori encontram-se tipicamente na geometria, como no exemplo acima
mencionado, e também nas linguagens da matemática e da lógica. Quando dizemos que 5 + 2
= 7, não estamos nos referindo a cinco laranjas mais duas laranjas ou a cinco casas mais duas
casas. Estamos estabelecendo, isto sim, que cinco unidades – de qualquer coisa que seja
somadas a duas unidades da mesma coisa resultam em sete. Ao dizer ―se A = B e B = C, então
A = C‖, expressamos uma regra de transitividade que se aplica independentemente do que
sejam A, B e C.Os juízos a priori são gerais, universais, necessários, não variam de acordo
com a subjetividade de quem os formula e nem conforme as condições do ambiente que cerca
os fenômenos empíricos.
Conhecimentos desse tipo são tidos como válidos justamente por serem aplicáveis a
quaisquer objetos, por serem normativos, por terem valor de regra para o pensamento.O
problema epistemológico que despertou a atenção de Piaget diz respeito a como se passa de
um tipo de conhecimento a outro, como se transita de um estado, em que a afirma-ção só é
possível mediante a manipulação de laranjas, casas etc., a outro estado, em que os enunciados
estão além disso. O pesquisador genebrino deixou, então, o terreno estritamente filosófico e
foi buscar resposta para essa indagação na experimentação científica, tornando-se um
pesquisador do desenvolvimento cognitivo da criança.Uma Psicologia da Inteligência.
Não é difícil perceber que o indivíduo humano transita, ao longo de sua vida, de um
estado de menor conhecimento para um estado de maior conhecimento. Pode-se levar uma
criança pequena a concluir que 5 + 2 = 7 e que o trajeto mais curto entre dois pontos é uma
linha reta, mas para isso será preciso, em um caso, permitir-lhe manipular objetos – palitinhos de fósforos ou grãozinhos de milho – e, em outro caso, andar de uma cadeira a outra
experimentando vários trajetos, por exemplo. Anos mais tarde, esse mesmo indivíduo
trabalhará mentalmente com esses enunciados, da matemática e da geometria, como se fossem
realidades indiscutíveis, sem necessitar dos palitinhos e das cadeiras.O que Piaget percebeu é
que poderia responder àquele problema epistemológico se estudasse o progresso das
categorias de conhecimento no decorrer da vida da pessoa, da in- 3. Esta afirmação é válida
para o universo concebido do ponto de vista da geome-tria euclidiana, pois outras geometrias,
como a elabo-rada por Riemann no século XIX, apresentam visões alternativas.
Infância à idade adulta.
A psicologia da criança tornou-se assim o seu campo de estudos. Suas pesquisas nessa
área consistiram em compreender as categorias cognitivas desde os seus estados iniciais até as
suas manifestações mais elaboradas, o que o levou a uma teoria sobre o desenvolvimento da
inteligência.Dizemos, então, que a Psicologia de Piaget foi elaborada tendo em vista a
construção de sua Epistemologia. O termo Genético, que adjetiva tanto sua Psicologia quanto
sua Epistemologia, não diz respeito à transmissão de caracteres hereditários, conotação que
possui no campo biológico. Genético, aqui, refere-se ao modo de abordagem do objeto de
estudo, desde seu estado elementar – sua origem, sua gênese – até seu estágio mais adiantado,
acompanhando cada uma das sucessivas etapas desse percurso. Por adotarem esse mesmo
enfoque, outros paradigmas também recebem essa adjetivação, sendo a Psicologia de Piaget
um deles. Os métodos piagetianos de investigação diferem daqueles que eram – e ainda são –
usualmente empregados por outras correntes de pesquisadores. Ao invés de medir a capacidade intelectual das crianças por meio de testes padronizados, muito comuns na Psicologia,
Piaget recorreu a um procedimento que ficou conhecido como abordagem clínica; uma
entrevista livre em que o pesquisador busca averiguar os fundamentos e processos relativos à
capacidade cognitiva de seus sujeitos experimentais.
Os métodos tradicionais de mensuração da inteligência, geralmente, trazem questões
pré-elaboradas às quais a pessoa deve responder. Dependendo de seu desempenho, define-se o
seu nível intelectual, comparativamente à população para a qual o teste foi construído.
Costuma-se dizer que os testes de inteligência fornecem uma boa fotografia, um retrato instantâneo da capacidade do indivíduo, deixando a desejar no tocante à sua dinâmica.O que
Piaget pretendia, em última instância, era verificar os recursos – mais ou menos dependentes
da experiência – que o indivíduo necessita para elaborar seu pensamento. Os testes
padronizados mostraram-se inúteis nesse caso, porque de nada adianta saber o resulta-do, bom
ou ruim, obtido por uma criança em questões, digamos, de cálculo aritmético, se não for
possível detectar o que a levou a isso. O método piagetiano de pesquisa não consiste em
medir a competência intelectual, mas sim, em compreender como o indivíduo formula suas
concepções sobre o mundo que o cerca, como resolve problemas, como explica fenômenos
naturais. Esse método prevê a formulação de problemas abertos, chamados provas
operatórias, e a solicitação para que a criança os solucione, dando início a diálogos entre
pesquisador e pes-quisado. Ao lidar com crianças muito pequenas, que não podem ser
interrogadas por meio da fala, recorre-se a observações, acompanhadas de meticulosos
registros, sobre o modo como elas solucionam problemas não-verbais. Por exemplo, observase a atitude do bebê diante do brinquedo que cai de suas mãos e desaparece de seu campo
visual e analisa-se o fato como se fosse a proposição de um problema. A criança vai procurar
o brinquedo ou não? Caso o brinquedo seja escondido por um adulto em diversos lugares
sucessivamente, a criança é capaz de localizá-lo corretamente no último local em que viu o
objeto desaparecer ou vai procurá-lo no primeiro em que foi ocultado?
Uma Concepção de Educação
Quando falamos em método piagetiano, estamos nos referindo a uma abordagem de
pesquisa e não a uma estratégia de trabalho pedagógico, como acabamos de ver. Se quisermos
buscar alguma analogia nesse terreno, entretanto, não será difícil perceber que os
procedimentos da pesquisa piagetiana inspiram atitudes em sala de aula bastante diferentes
daquelas que seriam aprovadas por uma pedagogia tecnicista, voltada para a mensuração de
resultados.
Ao passo que o uso de testes psicológicos padronizados está mais de acordo com uma
visão tecnicista da aprendizagem, a perspectiva piagetiana vai ao encontro de processos
pedagógicos em que os alunos são tratados de acordo com suas particularidades cognitivas. O
que está em causa não é o binômio acerto-erro nas atividades escolares, mas sim, o potencial
dessas mesmas atividades para promover o progresso intelectual de cada um dos educandos.
Mas é realmente no âmbito das teorias do conhecimento que se encontra a maior
afinidade das idéias de Piaget com a educação escolar, mais precisamente com uma certa
pedagogia. Seus conceitos epistemológicos fundamentam-se em concepções da esfera
filosófica, originadas antes mesmo de sua época, que consistem em considerar o
conhecimento como possível somente quando o Sujeito, aquele que irá conhecer, e o Objeto,
aquilo que será conhecido, relacionam-se de uma determinada maneira: o Sujeito age sobre o
Objeto. Nessa perspectiva, temos, primeiramente, a existência de algo que impulsiona o
Sujeito Epistêmico em direção ao Objeto. Estando em níveis diferentes, como se houvesse um
desequilíbrio entre eles, o Sujeito é naturalmente atraído pelo Objeto, como que para superar
o desnível em que se encontram. O Objeto exerce pressão perturbadora sobre o Sujeito,
contribuindo para fornecer-lhe motivação interna e criar seu envolvimento pessoal com o
Objeto, do que resulta o impulso para a ação.
Em segundo lugar, temos a atividade do Sujeito, que se traduz propriamente em
atitudes de busca, desvendamento, pesquisa, enfim, ação sobre o Objeto a ser conhecido. Ao
visualizar essa concepção epistemológica na sala de aula, compreendemos que o aluno deve
ser despertado para a relevância daquilo que vai ser ensinado. Relevância pessoal, imediata e
não simplesmente formal.
De nada adianta dizer a ele, como fazem muitos professores, que aquele assunto do
currículo é importante porque será útil mais tarde. Se não houver vínculos desafiadores entre
o indivíduo e a matéria de ensino, vínculos que ativem a percepção do desnível existente entre
o aprendiz e o conteúdo escolar, o educando não será impulsionado a estudar aquilo.
Não havendo motivação, o aluno deixa de se posicionar de modo ativo diante da
matéria. O mesmo acontece quando o professor privilegia a passividade da criança e a leva a
manter-se quieta, apenas ouvindo, como se o mundo pudesse escoar para dentro de seu
cérebro por meio da audição. Sem vontade e sem iniciativa para desvendar e descobrir, não há
conhecimento.
Observe-se que a esse último processo corresponde uma concepção epistemológica em
que o Objeto é inserido no Sujeito, como que depositado ou impresso em sua mente. O
professor dita a matéria, o aluno faz exercícios de fixação do conteúdo e reproduz os tópicos
solicitados na avaliação. O resultado disso não pode ser chamado de conhecimento, embora
seja possível verificar objetivamente que o Sujeito tem o Objeto retido em sua memória –
quando o estudante obtém uma boa nota na prova, por exemplo.
Dizemos que esse outro processo não resulta em conhecimento porque ele não produz
qualquer modificação no aprendiz. Para haver conhecimento, devemos conceber que o Sujeito
atue para superar o desequilíbrio existente entre ele e o Objeto, isto é, para colocar-se no nível
em que ainda não está. Por meio da ação que empreende para desvendar o Objeto, o Sujeito
sofre mudanças internas, sai do estado atual – de menor conhecimento – e passa ao estado
superior em que domina o Objeto. Essa mudança interna é conhecimento, algo que não pode
ser assegurado pelo processo em que o Objeto é simplesmente depositado na mente do aluno.
Essa concepção epistemológica aproxima as idéias de Piaget de todas as correntes pedagógicas que enfatizam a atividade do educando e a estruturação de um ambiente escolar que
corresponda às características pessoais do aluno – seus interesses, sua personalidade, seu
conhecimento cotidiano. Historicamente, as pesquisas de Piaget vieram endossar os
movimentos educacionais renovadores, contrários ao chamado ensino tradicional verbalista,
impositor de restrições à participação do aluno, centrado no saber supremo do professor.
Voltaremos a esse tema logo mais, após analisarmos outros tópicos do paradigma piagetiano.
Assimilação, Acomodação e Equilibração
Vejamos, então, os conceitos piagetianos que traduzem as categorias fundamentais da
concepção de conhecimento assumida por Piaget, em que o Sujeito age sobre o Objeto. Piaget
considerou que o processo de conhecer tem início com o desequilíbrio estabelecido entre
Sujeito e Objeto, porém suas pesquisas não contemplaram os fatores motivacionais, de
natureza emocional e afetiva, ali envolvidos. Isto não significa que Piaget os tivesse negado,
apenas que, como epistemólogo, concentrou sua atenção nos momentos seguintes do
processo.
Segundo ele, para conhecer é necessário que Sujeito e Objeto estabeleçam uma relação
que envolve, na verdade, dois processos complementares e, às vezes, simultâneos. O primeiro
ocorre quando o Sujeito age sobre o Objeto na tentativa de conhecê-lo por meio dos
referenciais cognitivos que já possui. O Sujeito procura desvendar o Objeto trazendo-o para
dentro desses referenciais, chamados esquemas cognitivos, ainda que estes sejam insuficientes
para dominar toda a complexidade do Objeto. A esse processo Piaget deu o nome de
assimilação.
Tomemos o caso em que uma criança já possui a capacidade de pegar alguma coisa,
em que os movimentos da mão e dos dedos foram estabelecidos com base em alguma
experiência anterior ou mesmo devido ao reflexo de preensão, com o qual todos os indivíduos
nascem. A criança dispõe de uma ferramenta cognitiva, ainda que mal desenvolvida, que a
capacita a agir sobre qualquer objeto passível de ser pego por intermédio da mão. Ela pode,
então, assimilar qualquer objeto novo. Esse objeto novo, ainda desconhecido, ultrapassa a
capacidade do esquema de pegar que a criança possui. Uma pequena bola, por exemplo,
imporá certas dificuldades, mas será assimilada, o que basta para dar início ao processo de
conhecer.
O segundo processo chama-se acomodação e consiste nas modificações sofridas pelo
Sujeito em função do exercício assimilador desencadeado. O Sujeito tem, então, seus esquemas cognitivos alterados por causa da relação que mantém com o Objeto, o que representa um
esforço adaptativo para superar o desnível existente entre um e outro. Feito isso, chega-se ao
estado de equilíbrio entre Sujeito e Objeto.
A criança de nosso exemplo terá que alterar seu esquema cognitivo de pegar, o que
envolve novos posicionamentos da musculatura da mão e dos dedos para acomodar-se às
características específicas da bola. Após algum tempo, dominará o objeto novo, chegando a
um ponto de equilíbrio com ele. A criança que atinge esse patamar não é a mesma que
começou o processo, pois seu conhecimento sobre o mundo é outro, maior e mais
desenvolvido do que quando ainda não tinha agido sobre a bola. O equilíbrio a que o
indivíduo chega com os objetos que o cercam nunca é definitivo, uma vez que o mundo está
sempre em mudança, lembra Piaget. O equilíbrio, ainda que provisório, representa
conhecimento, mas é logo seguido por novas situações em que a pessoa é novamente
desafiada, o que dá início a sucessivas assimilações e acomodações, mais conhecimento,
outros desequilíbrios e assim por diante.
Biologia e Ambiente
Pensar a escola por meio dos conceitos piagetianos implica visualizar o trabalho do
professor como um conjunto de atividades que propiciem o desenvolvimento cognitivo. O
professor é responsável por apresentar situações desafiadoras que permitam ao aluno perceber
o desequilíbrio que há entre ele e os conteúdos das matérias escolares. Além disso, cabe
também ao professor organizar um ambiente de aprendizagem que favoreça a ação do
aprendiz sobre esses mesmos conteúdos. Mais adiante, veremos que essa formulação é ainda
muito geral, pois a transposição do paradigma piagetiano para a educação escolar pode dar
margem a diversas possibilidades de ação pedagógica, inclusive abolir a definição prévia do
que deva ser ensinado aos educandos. Por ora, analisemos uma outra questão tratada por
Piaget e que tanto preocupa os professores: Não seria a capacidade intelectual definida
hereditariamente? No trabalho cotidiano do professor, essa é uma pergunta que sempre vem à
tona, especialmente quando ele se depara com alunos que apresentam dificuldades de
aprendizagem. Será que um ambiente bem organizado – no lar ou na escola – é suficiente para
que a criança desenvolva competências cognitivas adequadas?
Trata-se, aqui, da antiga polêmica entre posturas teóricas pré-deterministas e ambientalistas. Os defensores das primeiras afirmam que a inteligência é um traço que herdamos
geneticamente, ao passo que os outros defendem que o ambiente exerce sempre o papel mais
importante, por maior que seja o peso dos fatores biológicos.
A descrição do processo de conhecer feita por Piaget traz em si a idéia de que todos os
indivíduos conhecem por intermédio dos mesmos processos – assimilação e acomodação.
Para que haja conhecimento é preciso que o indivíduo estabeleça contato íntimo com o
conteúdo a ser aprendido e que se posicione ativamente frente a esse mesmo conteúdo, o que
propiciará mudança em seus esquemas cognitivos. Esse processo ocorre em todos os
momentos da vida da pessoa, diferentemente em cada faixa etária, mas independentemente do
ambiente social e cultural em que o indivíduo esteja inserido.
Isso não significa que Piaget tenha aderido à tese pré-determinista. O que ele afirma é
que todos os seres humanos nascem com um potencial que os habilita a conhecer e que esse
potencial é o mesmo em todas as pessoas. Se há biologismo nessa afirmação, ela se deve ao
fato de pertencermos todos à espécie humana. Desse modo, todos nascemos também em
condições de percorrer a mesma trajetória de desenvolvimento no tocante à capacidade
intelectual, do estado em que nosso conhecimento possui menor valor para o estado em que
nosso pensamento elabora formulações lógico-matemáticas de maior valor. Se determinados
indivíduos exercitam adequadamente suas potencialidades e percorrem, integralmente, a linha
de desenvolvimento cognitivo para a qual estão biologicamente capacitados, essa é uma
questão que diz respeito ao ambiente em que vive a pessoa. Condi-ções materiais e culturais
de vida poderão interferir, positiva ou negativamente, nessa trajetória.
Assim, Piaget posicionou suas idéias sobre o desenvolvimento cognitivo de maneira a
considerar tanto os aspectos biológicos quanto os ambientais. Sem cair no extremismo das
teses pré-deterministas, mostrou que o indivíduo é, de certo modo, programado para interagir
com o mundo que o cerca e percorrer o caminho que leva à competência para pensar
realidades situadas além dos dados empíricos imediatos. Sem aliar-se aos ambientalistas
radicais, Piaget afirmou que o meio pode ser um fator decisivo na determinação de como o
indivíduo realiza sua inclinação biológica. A escola é um ambiente entre muitos outros que
podem favorecer ou prejudicar o desenvolvimento intelectual. Por isso, cabe ao professor
acreditar na potencialidade de seus alunos e organizar experiências que lhes possibilitem
interagir com os saberes formalizados. A escola faz o papel de abrir caminhos para que a
criança e o jovem entrem em contato com o mundo, de modo participativo e construtivo.
A Teoria do Desenvolvimento Cognitivo
O desenvolvimento intelectual envolve a passagem do indivíduo por quatro grandes
períodos, vivenciados necessariamente em seqüência, conforme determinação biológica,
como já foi comentado. Cada período estabelece alicerces para o seguinte, de modo que as
aquisições ocorridas em um constituem pré-condições para o seguinte.
As pesquisas de Piaget o levaram a separar cada período por marcos cronológicos, mas
é preciso ressaltar que essas idades demarcatórias são meramente indicativas e não
categóricas, como muitas vezes se pensa. Assim, pode-se dizer, por exemplo, que as crianças,
em geral, passam do primeiro período para o segundo por volta dos 24 meses de vida, mas é
impossível afirmar, sem um exame acurado, quando essa transição está ocorrendo em um
determinado indivíduo.
O desenvolvimento, portanto, segue uma linha pré-definida, porém variável de
indivíduo a indivíduo no tocante ao ritmo em que ocorre. Variações qualitativas também
podem ocorrer, evidentemente, de uma pessoa a outra. No tocante à educação, em particular a
escolar, tais conceitos são relevantes porque impedem que o paradigma piagetiano seja
tomado
como
um conjunto
de formulações aplicáveis a todos os indivíduos,
indiscriminadamente.
Não se pode afirmar que determinado aluno já é capaz de compreender certos conteúdos apenas com base na informação de que ele já tem oito anos, ou que não adianta ensinar
certas coisas a outro, porque este ainda não tem 12 anos. A idade do aluno, como dado
isolado, não é indicador seguro de suas competências e limitações intelectuais.
Se a intenção do professor é a de adotar a teoria de desenvolvimento do paradigma
pia-getiano, deve saber que ela fornece um quadro da trajetória cognitiva percorrida pelos
seres humanos em geral – o Sujeito Epistêmico. Concluir alguma coisa sobre um aluno
específico – o Sujeito Psicológico – é tarefa que exige domínio das habilidades de pesquisa
prescritas pelo paradigma, o que implica treinamento especializado do professor, ambiente
escolar adequado e certas disposições administrativas favoráveis, o que nem sempre é fácil
encontrar.
Em que pese esta dificuldade, inerente à transposição da Psicologia Genética de Piaget
para a pedagogia, devemos observar que os obstáculos mencionados tornam-se menores e
superáveis quando pensamos nas contribuições trazidas por suas teses à prática educacional.
Se o professor tiver em mãos um quadro, ainda que meramente indicativo, do
desenvolvimento intelectual humano, poderá ajustar a metodologia de ensino e os conteúdos
das matérias escolares às características de seus alunos, o que trará grandes benefícios ao
processo de aprendizagem e ao próprio funcionamento da escola.
O Universo não Representado
A principal característica do primeiro período de desenvolvimento, chamado sensorialmotor, é a inexistência de representações, imagens mentais dos objetos que cercam o
indivíduo. O conhecimento, nesse caso, é constituído por impressões que chegam ao
organismo por meio dos órgãos dos sentidos e do aparelho motor. Podemos dizer, então, que a
criança age sobre aquilo que alcança com as mãos, aquilo que ouve e vê, aquilo que chega à
sua boca, sem, contudo, formar imagens mentais desses objetos.Nesse período, predomina o
processo de assimilação que começa com o simples exercício dos reflexos, isto é, com o
acionamento de ferramentas inatas que possibilitam à criança manter os primeiros contatos
com os objetos e trazê-los para dentro de seus referenciais cognitivos, ainda toscos e mal
desenvolvidos. Assim, vão sendo formados esquemas cognitivos. Do reflexo de preensão, por
exemplo, forma-se um esquema de agarrar. Trata-se de uma mudança cognitiva ocasionada
pela experiência, o que significa já estar ocorrendo o processo de acomodação, além da
assimilação.
Vale lembrar que a trajetória do desenvolvimento intelectual, aqui descrita, refere-se
àquela indagação de natureza epistemológica vista no início deste capítulo, traduzida pelo
percurso que leva o indivíduo do conhecimento empírico, de menor valor, ao conhecimento
abstrato, de maior valor. Assim, o período sensorial-motor corresponde ao momento inicial
em que a inteligência encontra-se presa ao plano da experiência imediata. Nesse caso, presa à
materialidade absoluta, à presença física dos objetos.
Os vários esquemas constituídos nesse período são, todos eles, esquemas de ação, pois
não envolvem representações. A criança desenvolve um esquema de olhar, de agarrar, de
morder e assim por diante. Com o tempo, esses esquemas vão sendo coordenados, o que
permite à criança integrá-los uns aos outros em determinadas seqüências – olhar um objeto,
segurá-lo com a mão, levá-lo à boca e mordê-lo.Um dos experimentos clássicos de Piaget
consiste em observar a atitude da criança quando um brinquedo cai de suas mãos e desaparece
de seu campo visual. Uma variação pode ser feita colocando-se um anteparo que oculta o
brinquedo. O que acontece nessa situação é que a criança não procura o objeto desaparecido,
mesmo tendo visto seu desaparecimento por trás de uma almofada, por exemplo.
A conclusão é que o brinquedo deixa de existir quando não é visto. Isso decorre,
obviamente, do ponto de vista da criança, para quem a realidade depende das impressões
sensoriais que recebe. Note-se que a inteligência, nesse período do desenvolvimento, sendo
limitada à experiência sensorial e motora, não é capaz de emitir juízos mais abrangentes sobre
o mundo, do tipo ―mesmo os objetos que não vejo existem‖.
A inteligência sensório-motora permite aplicar os esquemas, então coordenados, a
situações novas. Uma criança que tenha adquirido o esquema de agarrar e chacoalhar seu
travesseiro poderá experimentá-lo com um brinquedo que faz barulho, o que significa ape-nas
a repetição de uma conduta habitual em que os meios, que são os esquemas de agarrar e
chacoalhar, não têm relação com os fins – no caso, produzir um som.Um pouco mais tarde,
ainda durante o primeiro período, os esquemas cognitivos articulam-se dando mostras de
serem guiados por alguma intencionalidade. O fato de o universo da criança ser restrito às
impressões sensoriais e motoras, nesse momento, impede que ela anteveja o alcance pleno de
suas ações, mas já existe alguma distinção entre os meios em-pregados e os fins obtidos.
Trata-se daquilo que Piaget denominou reações circulares, procedimentos que se
repetem seguidas vezes. Inicialmente, apenas para fazer durar um espetáculo interessante para
a criança, como quando agarra um cordão que pende sobre seu berço e o puxa, fazendo
balançar um móbile que produz som. Caso seja colocada diante de uma situação nova e
desconhecida, a criança poderá aplicar esse procedimento aos objetos que ali se encontram
para tentar resolver um problema, ocasião em que novas condutas podem instalar-se.Um
experimento interessante consiste em colocar uma almofada próxima à criança e sobre ela um
brinquedo, de modo que este fique inacessível às suas mãos. A criança aplica à almofada
esquemas que já possui, como agarrar e puxar, ocasionando a aproximação do brinquedo.
Desse modo, firma-se uma nova conduta, no caso, a chamada conduta do suporte, que
consiste em puxar uma plataforma para obter algo que esteja sobre ela. Isto significa que
houve acomodação dos esquemas cognitivos, provocada por experimentação ativa. Nas
próximas vezes em que estiver diante do mesmo problema, é provável que ela puxe a
almofada para alcançar o objeto distante.
Representação, Linguagem e Socialização
Imaginemos uma criança que ainda não domine a conduta do suporte e que, colocada
diante da almofada com o brinquedo, não aplique mecanicamente esquemas já conhecidos.
Essa criança tem uma atitude de meditação, como se raciocinasse para solucionar o problema
e, em seguida, apanha a almofada e a puxa para si, obtendo acesso ao brinquedo.
O resultado desse outro experimento indica que a criança desenvolveu uma conduta
complexa por meio da invenção. Ela inventou um meio totalmente novo para obter
determinado fim, sem precisar empregar a experimentação ativa. Inventar significa combinar
esquemas mentais, o que quer dizer que essa criança está na última fase do período sensorialmotor, já ingressando no período seguinte.
A característica mais marcante do segundo período de desenvolvimento é a
representação, a transformação de esquemas – e esquemas combinados – de ação em
esquemas representativos. Aquelas competências intelectuais que, no primeiro período,
desenvolveram-se como ações, posteriormente, completam-se por meio de correspondentes
imagens mentais e simbólicas.
Nesse período, ocorre o progresso mais sensível da linguagem oral. Inicialmente, a
criança identifica certos objetos, pessoas e ações a palavras pertencentes a um universo muito
particular e específico. Seu cachorrinho é totó, sua mãe é mamã e tomar a mamadeira é mamá.
Com o passar do tempo, porém, começa a empregar palavras que designam categorias de
objetos, pessoas e ações. Todos os cachorrinhos são cachorros, todas as mamães são mães e
ingerir qualquer líquido é beber.
No decorrer do segundo período, dos dois aos sete anos de idade, aproximadamente, a
linguagem vai deixando de ser composta por expressões representativas muito particulares e
passa a empregar expressões socialmente convencionadas. Ao passo que totó pertence ao
universo do primeiro tipo, cachorro é o termo que se convencionou usar, nesta cultura, para
identificar uma categoria de objetos – os cães. A comunicação, não mais fundamentada no
indivíduo, passa a ser baseada no grupo social. Essa transformação indica uma mudança nos
esquemas representativos, que se tornam cada vez mais adaptados ao meio social em que a
pessoa vive. Ao longo desse período, a criança desenvolve a capacidade para entabular
conversas, sempre mais inteligíveis, com outras pessoas, sendo possível trocar pontos de
vistas, opiniões e impressões de ambas as partes, o que é um avanço na socialização do
indivíduo. A linguagem por símbolos, expressão do vocabulário característico da criança,
torna-se uma linguagem por signos, composta por elementos representativos típicos de uma
cultura.
Além de revelar um significativo progresso na capacidade intelectual de representar o
mundo, o desenvolvimento da linguagem mostra também o início da transição do
egocentrismo para a socialização, um processo que, como veremos adiante, não se completa
ao término desse período, por volta de sete anos de idade.
O Universo Concreto
O período que acabamos de ver recebe o nome de pré-operatório, pois o que o
caracteriza é a impossibilidade de a criança utilizar seus esquemas representativos para
realizar operações mentais. Uma operação é constituída por várias propriedades, entre as
quais está a reversibilidade, muito mencionada por Piaget e demonstrada no experimento da
água colocada em recipientes de formatos diferentes.Imaginemos um tubo fino e alto, de um
lado, e uma vasilha larga e baixa, de outro. Se enchermos o tubo com água e em seguida
despejarmos seu conteúdo na vasilha, teremos obviamente a mesma quantidade de líquido nas
duas situações. Dizemos que o resultado dessa operação é óbvio não só porque vemos a água
saindo de um lugar e indo para outro, mas porque, ao vê-la no segundo recipiente, somos
capazes de fazer mentalmente a opera-ção inversa e compreender, assim, tratar-se da mesma
quantidade de líquido que há pouco ocupava o tubo.Nessa prova operatória, será bem
sucedida a pessoa cuja capacidade cognitiva dominar a reversibilidade.
A criança que se encontra no período pré-operatório confunde a quantidade de água,
que é a mesma nos dois momentos, com o formato dos recipientes. Ela pode res-ponder que
há mais líquido no tubo, porque ele é mais alto, ou que tem mais água na vasilha, por causa
das dimensões de sua superfície.Isto ocorre porque o pensamento da criança ainda não tem
suficiente mobilidade para reverter a operação realizada. Numa analogia, dizemos que seu
pensamento funciona como uma máquina fotográfica que registra duas situações distintas – a
água no tubo fino e alto, e a água na vasilha baixa e larga –, e não como uma filmadora que
permite reversão das cenas gravadas.Ao término do período pré-operatório, por volta de sete
anos de idade, a criança já intui operações. Ela é capaz de exibir reversibilidade de
pensamento na prova operatória acima descrita, por exemplo, mas diante de outra prova, que
exige a mesma competência cognitiva, pode falhar. Isso significa que ela está em vias de
ingressar no terceiro período, cuja caracte-rística essencial é o desenvolvimento da capacidade
de realizar operações.Nesse novo período, que vai dos sete aos doze anos, aproximadamente,
o pensamento da criança ganha a maleabilidade que não possuía, sendo capaz de operar
mentalmente com esquemas de ação que até o momento eram apenas representados. Com
base nas aquisições sensoriais e motoras do primeiro período, a criança consegue percorrer
um trajeto dentro de sua casa. Mais tarde, descreve o trajeto percorrido, dada à capacidade de
formar a imagem mental de suas ações, capacidade esta adquirida no segundo período. Nesse
período, já con-segue elaborar, mentalmente, o trajeto inverso, do ponto final ao ponto de
início.Ao longo do tempo, as operações vão sendo articuladas como realidades necessárias.
Diante de uma prova operatória como a do líquido que flui de um recipiente para outro, a
criança afirma com total certeza o seu resultado, chegando mesmo a suspeitar de que se trata
de alguma brincadeira – de mau gosto, aliás – que esteja sendo feita com ela. Mais ainda, a
criança torna-se capaz de compreender uma operação independentemente de esta ser realizada
na sua frente.Isto quer dizer que o desenvolvimento do indivíduo já está bastante adiantado, se
o compararmos com a incapacidade do bebê para ir além do universo empiricamente dado.
Entretanto, as operações mentais que podem ser realizadas nesse momento ainda
possuem um caráter concreto, isto é, precisam já ter feito parte da experiência empírica do
indivíduo. Advém disso, a denominação desse terceiro período de operatório-concreto.O
caráter concreto das operações significa que os esquemas cognitivos do indivíduo são
ferramentas de assimilação que, ainda, dependem de dados empíricos. Estes dados não
precisam estar imediatamente presentes, acessíveis aos órgãos dos sentidos, mas devem já ter
estado em algum momento anterior, possibilitando a formação de esquemas representativos.
Do ponto de vista epistemológico, as ferramentas cognitivas ainda não funcionam em níveis
tais que permitam conhecimentos de valor normativo.
A Psicologia Genética na Escola
Conforme já foi assinalado, sob a perspectiva do paradigma piagetiano a educação
deve contribuir para desenvolver as competências cognitivas do educando. Tendo em vista o
que cada período de desenvolvimento requer, a tarefa do professor inclui organizar atividades
que viabilizem o progresso intelectual de seus alunos nas diferentes etapas da escolarização.
Na condição de paradigma científico, a Psicologia Genética não se dedica a instruir os
educadores sobre a elaboração dessas atividades. Para serem tomadas como Psicologia da
Educação, as idéias de Piaget necessitam ser transpostas para o terreno da prática pedagógica,
o que exige seu aproveitamento em estudos e pesquisas que elaborem metodologias
específicas a serem aplicadas à situação escolar – o que não é possível analisar detidamente
neste livro.
No plano mais geral, no entanto, podemos dizer que o paradigma piagetiano sugere,
para as etapas pré-escolares, que todo o empenho deva ser voltado para possibilitar o percurso
do pensamento pré-operatório ao pensamento operatório-concreto. O dilema entre alfabetizar
ou não a criança nessa fase, por exemplo, não deve ser resolvido de modo padronizado, quer
afirmativamente, quer negativamente, mas sim mediante avaliação de cada aluno, em
particular.
Alfabetizar, bem como ensinar operações aritméticas, é algo possível de ser feito com
crianças que já dominam certas habilidades cognitivas, conclusão a que não se chega
tomando-se, exclusivamente, a idade cronológica de cada uma. O mesmo princípio deve ser
seguido pelo professor que trabalha com crianças na faixa etária de sete a doze anos que,
geralmente, cursam o primeiro ciclo do ensino fundamental.
Nessa etapa da escolaridade, o que se requer é que o indivíduo progrida nas
habilidades operatório-concretas de pensamento. Um ensino que valorize excessivamente a
transmissão de conteúdos formalizados pode incorrer no equívoco de fazê-lo por meio de
formulações puramente verbais, algo que a criança, em geral, ainda não domina. Nesse
período operatório-concreto, como já foi dito, o indivíduo só opera mentalmente com dados
que já tenham feito parte de sua experiência e que possam ser mentalmente ma-nipulados.
Uma informação, como ―as caravelas de Cabral atravessaram o Oceano Atlântico em 1500‖,
pode perfeitamente ser compreendida se o professor tomar o cuidado de oferecer referenciais
concretos para a criança – uma gravura que represente a embarcação mencionada e outros
materiais que lhe permitam visualizar o que é um oceano e entender o marco cronológico
empregado na frase, por exemplo.
Caso contrário, o aluno pode decorar a informação e repetila quando solicitado, mas
isto não será conhecimento de fato se ele não tiver contato concreto com os vários
componentes da oração. Se o professor não empregar procedimentos didáticos adequados às
limitações do pensamento, o processo de ensinar e aprender restringe-se à verbalização, à
audição e à reprodução de conteúdos. Os limites são sempre dados pelo desenvolvimento da
criança, que nesse momento só é capaz de operar com realidades representadas desde que
estas estejam ancoradas em referenciais concretos.
Fazer abstrações, formular hipóteses, desenvolver raciocínios lógico matemáticos, por
exemplo, são habilidades ainda não adquiridas no período operatório-concreto. A criança é
capaz de entender uma formulação genérica como ―se A = B e B = C, então A = C‖ somente
quando substituímos estes termos por objetos que ela conheça. Ela pode, a partir daí, passar
do concreto para o formal, evidentemente, mas isto não significa que seu pensamento já tenha
compreendido essa formulação lógica como necessária. As expressões lógico-matemáticas
ainda não constituem regras para o pensamento.
O Universo Formal
Entre os 12 e os 16 anos de idade, aproximadamente, o indivíduo vivencia o
desenvolvimento do quarto período, chamado operatório-formal. Sua principal característica é
a transformação dos esquemas cognitivos até então organizados, capazes de realizar
operações concretas, em esquemas que operam com base em realidades apenas imaginadas
como possíveis.
Observe-se que desde o início estamos tratando de ações do Sujeito sobre o Objeto,
ações em que os processos de assimilação, acomodação e equilibração acabam por tornar o
indivíduo mais adaptado ao mundo que o cerca. Trata-se de uma adaptação ativa, como já
vimos, pois na concepção piagetiana não existe o indivíduo como mero receptáculo de
influências ambientais. A trajetória do desenvolvimento elaborada por Piaget traduz o
percurso que capacita o indivíduo a compreender melhor a realidade que o cerca para poder
participar de sua transformação.
Essa capacidade de adaptação ativa atinge seu ápice no último período de
desenvolvimento cognitivo. Esse é o ponto mais alto da trajetória, pois a competência para
pensar na esfera de um universo formal – isto é, não limitado ao existente – dota o indivíduo
de maior competência para entender o mundo e contribuir para sua mudança.
De fato, na esfera do desenvolvimento intelectual do indivíduo, podemos verificar que
o pensamento formal permite uma compreensão superior da realidade. Sabemos que no
primeiro período o universo da criança limita-se às impressões sensoriais e motoras. Ela é
capaz de pegar um brinquedo, empurrá-lo para um determinado lugar e puxá-lo de volta, por
exemplo, mas disto não resulta nenhuma representação mental. Há progressos cognitivos
nesse período, evidentemente, mas eles traduzem uma interação ainda precária com o mundo,
mesmo no tocante aos fenômenos físicos.
No segundo período, como vimos, já há representação de ações, mas a pouca maleabilidade do pensamento impede que o indivíduo compreenda, por exemplo, a reversibilidade
dessas mesmas ações, o que significa uma capacidade limitada de entender o mundo
circundante. As aquisições operatórias do terceiro período são significativas, porém nada se
compara ao momento em que a lógica torna-se uma regra para o pensamento e a experiência
empírica deixa de ser necessária para a resolução de problemas.
O universo concreto, até então hegemônico, é finalmente superado no decorrer do
período operatório-formal. As operações assumem caráter proposicional, permitindo ao
indivíduo raciocinar de maneira totalmente abstrata e elaborar mentalmente hipóteses, ou seja,
possibilidades sobre eventos ainda não ocorridos. Integra suas possibilidades de pensamento
até mesmo aquilo que ele não acredita que possa existir. Nessa fase, é comum o jovem
imaginar sociedades alternativas, sistemas filosóficos perfeitos e caminhos profissionais ainda
não percorridos. Abre-se, para a pessoa, todo um horizonte novo de perspectivas de vida e de
transformação, de si mesmo e do mundo, realidades que ela começa a dominar por meio de
recursos intelectuais mais avançados.
Embora não tenha dedicado suas pesquisas à temática dos afetos, Piaget chegou a
dizer que as angústias desse momento, a chamada crise da adolescência, são determinadas
pelo futuro, ao contrário do que pensava Freud, para quem essa problemática era decorrente
do retorno de desejos reprimidos na infância – como já vimos no primeiro capítulo deste livro.
Ao visualizar o futuro, sem ter meios para realizá-lo, o jovem, muitas vezes, revolta-se contra
autoridades e situações estabelecidas.
Na escola, esse é o momento em que os conteúdos das matérias podem, finalmente, ser
apresentados de modo verbal, sem necessidade de parâmetros concretos para serem
compreedidos. As noções matemáticas podem ser vistas por meio de fórmulas abstratas,
demonstradas tão somente por intermédio de símbolos genéricos, como x, y, z. O raciocínio
hipotético dedutivo, necessário ao entendimento dos procedimentos científicos, torna-se
possível mesmo sem a demonstração empírica correspondente.
Se por um lado, o trabalho do professor parece assim facilitado, por outro, é preciso
ressaltar a necessidade de definir de que modo os conteúdos das matérias escolares devem ser
apresentados. A seqüência ideal dos conhecimentos formalizados, respeitadas as
peculiaridades do desenvolvimento de cada aluno no decorrer do período operatório-formal, é
um tema que abre inúmeras frentes de pesquisa para os estudiosos que buscam transportar o
paradigma piagetiano para a prática pedagógica.
Devemos ressaltar que os resultados dessas investigações não são importantes apenas
para o desenvolvimento intelectual dos educandos – expressão que adquire conotação muito
estreita para alguns pedagogos. O trabalho de adequação dos conteúdos escolares refere-se ao
desenvolvimento intelectual, sim, mas é preciso ver que, por seu intermédio, a escola auxilia
na construção de ferramentas cognitivas fundamentais para a inserção ativa do indivíduo na
sociedade em que vive, para que ele possa compreender os processos sociais e políticos em
que está envolvido e, assim, contribuir para seu aperfeiçoamento.
Vale lembrar, ainda, que é no decorrer desse período, e não logo no início, que o indivíduo adquire as competências do pensamento formal. Trata-se de uma longa transição que,
idealmente, ocorre durante os anos da adolescência. Assim, entre a quinta série do ensino
fundamental e as primeiras do ensino médio, o professor deve atentar para a gradativa inserção de conteúdos que exigem tais competências, podendo trabalhar justamente para que a
mencionada transição aconteça da melhor maneira possível.
A Teoria da Sociabilidade
A trajetória do desenvolvimento intelectual, do pensamento sensorial-motor às
operações formais, é acompanhada pelo desenvolvimento da sociabilidade do indivíduo. Esse
tópico do paradigma, usualmente menos comentado que os demais, é fundamental porque
acrescenta relevantes contribuições a uma Psicologia da Educação inspirada na psicogênese
piagetiana. Por seu intermédio, podemos entender com maior clareza a visão educacional e
social de Piaget.
Segundo a concepção de Piaget, todas as crianças vivenciam uma fase inicial em que
são incapazes de distinguir o seu eu dos objetos e pessoas circundantes – algo semelhante ao
que vimos na teoria freudiana, no primeiro capítulo deste livro. Logo nos primeiros meses de
vida, entretanto, começa a formar-se a percepção do eu, o que dá início de fato ao processo de
socialização. O primeiro momento desse processo traz o predomínio absoluto do eu, quando
todo o universo – objetos, pessoas, fenômenos físicos etc. – é compreendido pela criança com
base em seu ponto de vista exclusivo, como se tudo girasse em torno dela, o que Piaget
denominou egocentrismo.
O percurso da sociabilidade é a passagem desse estado egocêntrico, em que o
indivíduo compreende o mundo exclusivamente com base em seus pontos de vista
particulares, a um estado de plena socialização, em que a pessoa interage com a realidade que
a cerca segundo categorias de julgamento elaboradas coletivamente. No início, as ações da
criança são conduzidas por esquemas sensório-motores e destinadas à satisfação unicamente
individual, ao passo que, mais tarde, são ações refletidas, pensadas e articuladas por meio de
parâmetros do grupo social.
Esse momento final é atingido no decorrer do período das operações formais,
teoricamente entre 12 e 16 anos, e consiste na aquisição da capacidade de cooperação com os
outros. Ao lembrar que esse é o período em que o pensamento torna-se capaz de elaborar
formulações abstratas sobre a realidade, compreendemos que tal progresso intelectual só se
torna possível por intermédio da descentração do indivíduo, isto é, pelo desenvolvimento da
competência para enxergar as coisas por meio de vários e diversos ângulos, sob pontos de
vista que ultrapassam o eu.
Assim, Piaget mostrou que o desenvolvimento cognitivo e o da sociabilidade
constituem um mesmo processo, cujo ápice é a adaptação ativa do indivíduo ao mundo, o que
ocorre no estabelecimento de relações com a realidade material e social. A interação do
Sujeito com o Objeto e com outros Sujeitos é a única fonte do verdadeiro conhecimento e do
pleno desenvolvimento psicológico, o que quer dizer partilhar competências cognitivas, em
condições de igualdade com o grupo social, para compreender, objetivamente, a realidade.
O ponto mais alto do desenvolvimento da sociabilidade é também o da personalidade
– atributo usualmente visto como exclusivamente individual. A personalidade encontra-se
verdadeiramente estruturada quando se dá a plena integração do indivíduo à coletividade. Para
pensar, o indivíduo emprega parâmetros que superam a visão egocentrada, chegando ao
estado em que as normas construídas coletivamente norteiam seus julgamentos morais. Esse
estado chama-se autonomia e não traduz sujeição pura e simples do individual ao social,
como pode parecer. Logo mais, voltaremos a esse tópico quando analisarmos a concepção de
sociedade adotada por Piaget.
Egocentrismo, Coação e Justiça
Conforme assinalamos em seção anterior, entre dois e sete anos de idade, o
egocentrismo da criança vai sendo, aos poucos, superado. Os progressos da fala socializada
são indícios desse processo, mas o centramento no eu ainda prevalece até o final do período.
Para melhor compreender o processo de socialização, Piaget analisou o relacionamento da
criança com as normas vigentes no grupo social a que pertence e concluiu que, no decorrer
desse tempo, o indivíduo passa por dois estados marcantes.
No primeiro estado, a criança é incapaz de apreender as regras existentes, como se o
universo social fosse, para ela, um universo sem normas. Nesse estado de anomia, isto é, de
desconhecimento das regras, a participação da criança em uma brincadeira qualquer ou em
um jogo infantil, por exemplo, não é conduzida pela dinâmica própria da atividade,
socialmente elaborada, mas sim, pelo prazer individual. Enquanto está no período sensorialmotor, esse prazer é exclusivamente físico, ao passo que, no período pré-operatório, a
satisfação advém do manejo dos instrumentos simbólicos que começam a ser adquiridos.
Quando em situação de grupo, a criança brinca para si, joga para si, sem se importar
com os companheiros, como se cada um estivesse praticando uma atividade diferente. O
diálogo entre crianças costuma ser um monólogo coletivo, uma pseudoconversa em que o
interlocutor parece ser o outro, mas realmente não é. O egocentrismo impede que o indivíduo
estabeleça interações que permitam a troca de impressões sobre as coisas, devendo prevalecer,
exclusivamente, o seu ponto de vista.
No segundo estado, a criança enxerga as ordens dos mais velhos como leis imutáveis,
como obrigações morais, quadro que Piaget chamou de respeito unilateral e realismo moral.
Os conceitos morais, sobre o certo e o errado, são vistos pelo indivíduo como exteriores a ele,
ao que se dá o nome de heteronomia. Ao participar de uma brincadeira ou um jogo, a criança
submete-se às regras, sendo incapaz de questioná-las. As regras são imperativas, como se não
fossem o que realmente são, isto é, meras convenções estabelecidas por uma pessoa ou
comunidade em um certo momento histórico para um determinado fim.
As mesmas considerações feitas a propósito do desenvolvimento cognitivo valem para
a sociabilidade. O paradigma piagetiano concebe a existência de uma propensão biológica
para atingir o estágio final em que o indivíduo torna-se melhor adaptado à realidade, mas não
nega a influência das condições ambientais nesse processo. Assim, embora todas as pessoas
estejam aptas a atingir o ponto considerado mais elevado da socialização, as instituições
educacionais, notadamente a família e a escola, podem interferir ocasionando o insucesso de
algumas.
Vejamos o caso em que pais ou professores assumem atitudes de coação à criança,
imposições que, pela força da autoridade, exigem obediência cega. O resultado desse
procedimento tão comum é alimentar a tendência natural da criança ao respeito unilateral, o
que reforça o egocentrismo infantil e dificulta a socialização. Observe-se que a idéia
piagetiana de socialização diz respeito a um estado em que o indivíduo participa ativamente –
e percebe-se como participante – da elaboração das regras que comandam a vida social.
No caso em que há coação, a criança pode até mascarar seu comportamento para atender às ordens adultas, mas não consegue internalizar noções sobre o certo e o errado, uma vez
que as normas são mantidas exteriores a ela. Seus julgamentos morais não avançam na
direção desejável, rumo à autonomia, o que dificulta o desenvolvimento da noção de justiça.
Tomemos o exemplo em que a seguinte questão é proposta a uma criança: quem merece maior castigo, a pessoa que disse uma mentira facilmente identificável – como ―vi um
cachorro do tamanho de um cavalo‖ – ou a pessoa que alega estar com dor de cabeça para não
ir à escola? Para nós, o primeiro caso é resultante, apenas, de uma analogia, não constituindo
propriamente uma mentira, ao passo que o segundo é, de fato, um artifício moralmente
condenável. A criança, no entanto, poderá considerar menos grave a alegação da dor de
cabeça, uma vez que a falsidade não pode ser ali descoberta.
Esse exemplo mostra que a ideia de justiça pode estar dominada pela exterioridade da
regra e pela noção de responsabilidade objetiva, por valores impostos arbitrariamente pelo
adulto e não por uma moral internalizada. Para a criança, fica valendo a regra em si – ―é
errado mentir‖ – e não a intencionalidade da ação, o que a leva a compreender que só o ato
passível de ser desmentido merece castigo. Como conseqüência, atitudes delituosas podem ser
cometidas, desde que não sejam vistas pelo adulto, o que reflete a ausência de parâmetros
internos de julgamento.
A Cooperação na Escola
Nas relações cotidianas é praticamente impossível que o adulto não utilize o recurso
da imposição de sua vontade, seja no contexto familiar, seja escolar, mas a teoria de Piaget
chama a atenção para os cuidados a serem tomados quanto ao uso da autoridade. Estamos
falando aqui da autoridade empregada sem critério, como instrumento que impede a criança
de perceber as razões pelas quais deve proceder de uma maneira e não de outra.
Não se trata de advogar que a família e a escola devam abandonar o estabelecimento
de limites para as atitudes da criança. Ocorre que se os limites forem apresentados como
frutos da vontade inquestionável dos mais velhos, eles podem levar ao reforço da heteronomia
e do respeito unilateral, dificultando a percepção de que a escolha entre o certo e o errado não
deve submeter-se a julgamento externo, mas sim, a critérios internalizados pela pessoa. Mais
ainda, fica obscurecida a percepção de que as regras são convenções criadas para facilitar a
vida social em determinadas circunstâncias e que podem, assim, ser mudadas, dependendo da
vontade coletiva.
Somente em torno dos sete anos de idade, a criança começa a adquirir capacidade para
entender dessa maneira o mundo das normas, configurando-se, então, o segundo momento do
processo socializador. Dali por diante, já é possível incentivar cada vez mais as atividades de
trabalho cooperativo, razão pela qual Piaget foi partidário do trabalho em grupos na escola.
Para ele, é prejudicial o ambiente escolar em que a criança permaneça em atitude passiva e
solitária, como depositária dos saberes adultos, mera reprodutora daquilo que ouve, sem poder
exercitar o contato social com seus pares.
Além dos motivos já apontados em outra seção deste livro, compreende-se porque
Piaget posicionou-se contrariamente ao ensino tradicional. A aplicação dos velhos moldes
educacionais só é eficiente para produzir pessoas incapazes de compreender a realidade
segundo pontos de vista que não sejam os seus – pessoas egocêntricas e não cooperativas,
portanto, o que se reflete no tipo de sociedade que irão contribuir para formar. O marco dos
sete anos de idade não implica que as etapas pré-escolares abandonem o trabalho em equipes.
O professor deve sempre incentivar atitudes grupais cooperativas, mas precisa estar ciente de
que o egocentrismo então predominante impede que esse exercício alcance plenos resultados.
Ao longo das primeiras séries do ensino fundamental, com crianças de idade por volta de 12
anos, essas práticas vão sendo cada vez mais efetivas, ajudando de-cisivamente o progresso
da sociabilidade infantil. Em geral, é após a quinta série e no ensino médio que temos o
período mais fértil da socialização.
Genericamente, pode-se dizer que a cooperação, como recurso pedagógico, coloca em
prática a tese piagetiana de que não é conhecimento aquilo que o educando adquire
passivamente e, mais ainda, que é impossível conhecer um objeto qualquer por meio de um
único ponto de vista. O trabalho em equipes permite que os alunos atuem sobre os saberes a
se-rem aprendidos, pesquisem, busquem novas fontes de informação, levantem dados sobre os
conteúdos escolares e, principalmente, façam tudo isso trocando idéias, uns com os outros,
trabalhando cooperativamente na construção do conhecimento.
Dilemas Construtivistas
Conforme já foi afirmado aqui, embora não tenha elaborado um método pedagógico,
Piaget vinculou sua Psicologia Genética a idéias de renovação educacional. A transposição de
seu paradigma para a educação escolar foi feita, em um primeiro momento, pelo próprio
Piaget e por vários autores, no corpo do movimento conhecido como Escola Nova, processo
que ocorreu também no Brasil a partir da década de 1930.
O que integra todas as iniciativas de apropriação desse paradigma pelos educadores é a
concepção de conhecimento inerente a ele. A epistemologia piagetiana permite que a escola
considere o educando como sujeito ativo e construtor de seu próprio saber, o que vai ao
encontro de todas as pedagogias que valorizam a autonomia, a liberdade e o autogoverno
como características a serem incentivadas no estudante.
As teses piagetianas, no entanto, têm contribuído para concepções educacionais muitas
vezes divergentes, embora reunidas sob os mesmos princípios gerais. Sabemos que,
atualmente, é o construtivismo a corrente pedagógica responsável pela grande projeção das
idéias de Piaget, mas sob essa denominação abrigam-se duas grandes vertentes de
pensamento, as quais originam, por sua vez, diversas possibilidades de práticas pedagógicas.
Essas vertentes são o ―construtivismo radical‖ e o ―desajuste ótimo‖, conforme denominação
do pesquisador espanhol César Coll.
A primeira considera que não cabe à escola planejar, antecipadamente, aquilo que a
criança vai aprender. Não deve haver currículo, portanto, pois todo conhecimento advém da
livre atividade do educando. Quem conduz o processo de ensino é o aluno, ficando o
professor incumbido de organizar condições para que essa atividade aconteça de modo
espontâneo. Nesse caso, o processo de avaliação incide exclusivamente sobre o
desenvolvimento cognitivo da criança, podendo ser usadas as provas operatórias piagetianas
para isso.
Ao desprezar o valor dos conteúdos das matérias escolares, o construtivismo radical é
comumente criticado por colocar em plano secundário todo o saber desenvolvido pela humanidade ao longo de sua história e, mais ainda, por acreditar que a criança pode elaborar,
espontaneamente, os conhecimentos – bem como conceitos e juízos morais – de que necessita
para integrar-se socialmente. Ao invés de ser um processo socializador destinado a integrar o
indivíduo na sociedade, a educação torna-se um procedimento psicologizante.
A segunda vertente, igualmente construtivista e inspirada em Piaget, busca escapar
dessa crítica tomando os saberes formalizados como instrumentos para promover o
desenvolvimento cognitivo da criança. Diferencia-se da anterior por empregar os tópicos da
programação de ensino como recursos para evidenciar o desequilíbrio – em termos
piagetianos – entre o aluno e o objeto a ser conhecido.
Um minucioso trabalho de seleção e ordenamento dos tópicos das matérias faz-se
necessário para que os conhecimentos a serem ensinados não estejam no mesmo nível das
aquisições já feitas pelo aluno, o que não despertaria sua motivação. Esses conhecimentos não
podem estar, também, em nível tão acima que superem as possibilidades inerentes às
estruturas cognitivas já adquiridas. Vem daí a denominação de desajuste ótimo dada a essa
tendência.
Ambas as vertentes são construtivistas por adotarem a concepção piagetiana de conhecimento, mas pode-se notar que originam modos bastante diferentes de organização do
trabalho escolar. Se considerarmos as finalidades sociais e políticas que sempre fazem parte
da escola, verificamos que as duas situam-se em posições igualmente distintas. Ao passo que
a inclinação não diretivista do construtivismo radical impede a previsão de metas
educacionais, a vertente do desajuste ótimo contempla a possibilidade de planejar o tipo de
indivíduo que a educação escolar almeja obter. Não se trata, é claro, de um planejamento à
moda tecnicista – como vimos no capítulo anterior deste livro –, mas a opção por trabalhar
com os conteúdos permite certos norteamentos quanto aos fins sociais e políticos a serem
atingidos. O aprendiz, nesse caso, constrói seu próprio conhecimento, uma vez que se
relaciona livremente com os objetos dispostos no ambiente escolar, contudo o simples fato de
esses objetos serem definidos pelo professor já exibe a tendência, fraca porém reconhecível, a
um certo diretivismo – o que não acontece na vertente construtivista radical.
Essas vertentes apresentam, para o professor, um dilema que transcende o âmbito
estritamente científico, pois o paradigma piagetiano mostra-se suficientemente amplo para
conter modelos educacionais divergentes. O dilema em questão não diz respeito às
concepções originárias do paradigma, propriamente ditas, mas ao modo como os educadores
as transportam para a realidade social e cultural, norteados pelos projetos, esperanças e
crenças que possuem nesse campo.
Educação e Sociedade
O professor interessado em utilizar a Psicologia Genética como ferramenta
profissional deve estar ciente não apenas das contribuições científicas desse paradigma. As
implicações e os dilemas trazidos pelas teses piagetianas manifestam-se claramente quando se
pretende utilizá-las na edificação de um sistema educacional comprometido com a obtenção
de uma nova ordem social.
Ao refletir sobre esses temas, Piaget posicionou-se firmemente a favor de uma sociedade em que pessoas iguais debatam livremente suas idéias e definam regras morais pela via
do consenso, o que exclui o emprego da coerção de uns sobre outros. O estágio mais
desenvolvido da sociabilidade individual reflete justamente essa concepção, conforme já
vimos, e não traduz submissão pura e simples da pessoa aos ditames do grupo. É assim
porque, para Piaget, indivíduo e coletividade constroem-se mutuamente em ambiente
democrático.
Como organizar o ambiente escolar para favorecer o máximo desenvolvimento intelectual e social de todos, eis a questão a ser resolvida pelos educadores. A grande tarefa da
educação, atualmente, parece ser a de encontrar o equilíbrio ideal entre liberdade e controle.
Para tanto, o programa de ensino deve atuar como base na espontaneidade plena e absoluta do
espírito infantil ou por meio de conteúdos escolares que traduzam a experiência humana
acumulada, sem, no entanto, imprimir verdades prontas e acabadas na mente do estudante, à
moda do ensino tradicional. Os defensores da primeira via dizem que a construção do
indivíduo e da sociedade não pode ser limitada de forma alguma, ou não será uma construção
de fato. Nessa perspectiva, deve-se respeitar integralmente as decisões das crianças e dos
jovens, bem como a moral resultante de sua interação com a realidade. Nesse pensamento,
reside a crença em um senso de justiça inerente ao ser humano e na liberdade como método
para trazê-lo à tona.
Os que alinham com a segunda alternativa temem que a liberalidade sem regras possa
dar margem a caminhos indesejáveis e assumem o risco de nortear a relação entre a criança e
o mundo. Acreditam que ao organizar os conteúdos escolares com olhos críticos, o educador
pode evitar que erros cometidos pela humanidade no passado sejam repetidos. É preciso,
então, conduzir, ainda que de forma branda, o conhecimento a ser adquirido pelos estudantes.
Por fim, a visão piagetiana pode ser interpretada como ideologia, uma vez que apresenta um
mundo cooperativo e consensual, enquanto a ordem social conhecida por nós caminha a
passos largos para o conflito generalizado entre os segmentos que a compõem. Visto desse
modo, Piaget não faz mais do que ocultar as mazelas do sistema excludente e autoritário em
que vivemos, o que serviria para perpetuá-lo. Ou talvez, sua concepção não passe de uma
ilusão sociológica, reflexo de um universo idealizado que jamais existiu, nem existirá. Mas
Piaget também pode ser compreendido como o epistemólogo que elaborou ins-trumentos
teóricos para incentivar a luta dos educadores, e de todos os cidadãos, por uma sociedade e
uma escola mais justas e igualitárias. Nesta direção, suas idéias tornam-se um legado para
todos os que acreditam na possibilidade de uma educação escolar transformadora, que
propicie liberdade de pensamento e ação para todas as crianças e jovens, e contribua para a
construção de um novo mundo no futuro.
TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM:
http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/141/3/01d08t02.pdf
FUNDAMENTOS
HISTÓRICOS
E
FILOSÓFICOS
DA
EDUCAÇÃO: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A AÇÃO
EDUCATIVA.
Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume mar., Série 26/03, 2011, p.01-10.
Quando pensamos em educação é inevitável discutir seu papel socializador e seu
aspecto representativo da cultura.
O que implica em analisar os fundamentos históricos e filosóficos, já que a educação,
em si, só é possível através da transmissão do conhecimento ao longo do tempo, por meio do
dialogo, do contato entre as pessoas.
Sem socialização, contextualizada no âmbito escolar, não existe educação.
Sendo necessário, portanto, discutir como e se a educação realmente sociabiliza e se
este deve ser o seu principal objetivo.
Uma questão amplamente debatida e ainda não esgotada que originou várias
tendências pedagógicas, além de inúmeras propostas de direcionamento educacional.
Antes de entrar nesta esfera, no entanto, é necessário debater o âmago do que torna a
educação possível, a socialização e sua relação com a educação.
Socialização e educação.
O que é socialização afinal?
A socialização pressupõe a interação social, a capacidade de integrar-se a um grupo,
assimilando padrões sociais.
O que interfere na maneira como o sujeito percebe o mundo, o outro e a si mesmo.
O processo de interação, a socialização, inicia-se no nascimento do sujeito e só se
encerra com a morte, fazendo uso da linguagem para interagir e integrar os indivíduos.
Um filme que conta um caso real ilustra bem isto, trata-se do Enigma de
KasperHauser.
Em sentido amplo, a linguagem, através da cultura, constrói significados, embora a
equação inversa também seja verdadeira.
Podemos afirmar que o ser humano, neste sentido, só se humaniza a partir da
socialização e da assimilação da cultura.
O que conduz a perguntar o que é cultura?
Poderíamos definir a cultura como um conjunto de valores que une e dá identidade a
um grupo, espelhando o conhecimento acumulado por gerações.
Assim, sendo a educação a transmissão e assimilação de conhecimentos, cabe
perguntar qual é o papel da educação para que a integração entre as pessoas se efetive?
Responder esta questão conduz a outro tema correlato: o papel da educação em sentido
amplo e sua distinção dentro e fora do processo de escolarização institucionalizado.
Educação formal e informal.
Para entender o papel da educação na socialização é necessário discutir a transmissão
da cultura dentro e fora da escola.
A educação, a transmissão do saber acumulado pela humanidade, não se concretiza
somente na escola, acontece também de maneira informal (sem norma ou forma), não
possuindo critérios, horários, hierarquia ou sistema de avaliação.
Neste sentido, a educação informal é produzida a partir das necessidades imediatas da
vida, configurando o conhecimento conforme as exigências requeridas para a sobrevivência.
Pensando nesta concepção, o saber escolar muitas vezes se distancia da realidade,
impedindo a assimilação democrática do conhecimento e excluindo várias categorias sociais,
portanto, limitando o acesso ao saber que confere poder.
A escola é uma instituição, como tal possui normas e padrões, impostos por aqueles
que controlam o sistema educacional, visando organizar seu funcionamento.
Diferente da educação informal, o conhecimento escolar é sistematizado, transmitido a
partir de critérios e métodos, composto por um saber científico, dogmático.
Embora a ideia, teoricamente, seria a escola criar uma proximidade com a realidade
concreta, possibilitando uma flexibilidade de conteúdos.
O grande problema é que a educação formal, sendo hierarquizada, é fruto e reflexo do
fordismo, dividindo tarefas e limitando o processo de socialização.
O fordismo educacional transforma os professores em tarefeiros, semelhante ao que
ocorreu com operários em linhas de montagem, fazendo, por outro lado, o educando perder a
noção do conjunto.
No entanto, de certo modo, a educação formal contém em si a informal, já que o
educador não se limita a transmitir conteúdos.
Enquanto o professor exerce uma profissão eminentemente técnica, o educador
deveria ensinar e praticar a tolerância com o outro, a convivência pacifica, instigando a
curiosidade para conhecer as diferenças, ou seja, incentivando a socialização.
O paradigma do consenso e do conflito.
A socialização é o centro de duas visões distintas do que se entende como função da
escola, configurando duas abordagens clássicas: o paradigma do consenso e do conflito.
A noção de paradigma envolve um modelo que serve de base a construção da ciência.
Ambos os paradigmas balizam a construção de teorias e tendências pedagógicas e
representam pontos de referência e lógicas de pensamento.
Representado por Durkheim, Comte e Spencer, para o paradigma do consenso os
valores em comum e a cooperação entre professores e alunos é essencial para que a escola
cumpra seu papel socializador, a palavra chave é integração.
Além de ensinar conteúdos, a escola deveria moralizar e, para tal, punir infrações as
normas.
Pressuposto que gerou o ―mito do controle coercitivo‖, segundo o qual, à medida que
as sanções coercitivas são usadas conscientemente e de forma rápida, contra os transgressores,
a ameaça por si só é suficiente para manter a ordem.
Inversamente, a impunidade gera desordem.
Segundo esta tendência, outros autores, tal como Parson, conceberam a sala de aula
como uma agência de socialização, por meio da qual as personalidades individuais são
preparadas para o desempenho de papeis sociais, conferindo status conforme os méritos
individuais.
Em resumo, o paradigma do consenso busca a conservação da sociedade, a reprodução
das estruturas existentes, principalmente a reprodução do sistema capitalista.
O grande defeito do paradigma do consenso é não enxergar os conflitos.
Tentando contornar este problema, representado por Marx, paradigma do conflito
enxerga a escola como uma instituição que impõem valores e que, portanto, gera conflitos
entre professores e alunos.
Estes conflitos seriam essenciais para mudar a estrutura da sociedade.
Dentro desta concepção, alguns autores, como Waller, descreveram a escola como um
centro de difusão dos padrões culturais dos grupos mais amplos, sobrepondo-se as
comunidades locais e gerando um conflito permanente entre professores e alunos.
O que aconteceria porque os professores representam a cultura dominante, ligada a
erudição, enquanto os educandos teriam domínio apenas sobre a cultura popular e de massa,
desmotivando a aprendizagem.
Exatamente por isto, a escola necessita exercer controle sobre os jovens e crianças
para efetivar o processo cognitivo, mas este controle cria um conflito que ameaça a existência
da escola.
Este processo origina um circulo, pois, diante da ameaça de conflito permanente, a
escola acirra o controle para garantir sua existência.
Pensando na questão, dentro do âmbito do paradigma do conflito, Lery defendeu a tese
de que a escola educa para o fracasso e para a aceitação deste fato, gerando conflitos.
Assim, o paradigma do conflito é útil para revelar as tensões e oposições dentro da
escola.
Entretanto, tende a ver apenas oposições, esquecendo-se que existem também
concordâncias.
A escola é socialmente complexa, alunos e professores compartilham situações
conflituosas comuns, que terminando unindo ao invés de separar.
Em outras palavras, o professor molda sua classe, mas é também moldada por ela, o
que tanto gera conflito como consenso.
Pensando de forma mais ampla, caberia, inclusive, perguntar se o consenso ou conflito
é gerado a partir da relação professor/aluno ou pela natureza da estrutura do sistema
educacional, ou ainda pelo contexto social.
O paradigma do consenso no Brasil.
O paradigma do consenso influenciou intensamente a educação no Brasil, sobretudo a
partir de 1930, representado pelas ideias de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira.
Começou a penetrar no Brasil graças a crescente industrialização, iniciada em 1920,
quando a necessidade de preparar o desenvolvimento levou um grupo de intelectuais
brasileiros a se interessar pela educação, vista como elemento central para remodelar a
realidade.
Em 1932, durante o governo Vargas, um grupo de vinte e seis intelectuais se reuniu
para redigir O manifesto dos pioneiros da educação nova, o qual defendia a educação como
função essencialmente pública, gratuita, obrigatória, laica e única.
Isto, do jardim da infância a universidade, dos quatro aos dezoito anos de idade.
Dentro deste contexto, Fernando de Azevedo, o principal representante do pensamento
de Durkheim no Brasil, enxergava a escola como miniatura da sociedade.
A complexidade da sociedade exigiria coesão social, imposta por valores transmitidos
pela escola.
Á medida que o individuo percorre o sistema educacional da base ao topo, passaria da
educação comum, de natureza coercitiva, até as experiências diversificadas, possibilitando a
manutenção da ordem capitalista.
Assim, deveria ser função da escola estabelecer uma articulação com o meio social,
coordenando, disciplinando e consolidando as experiências fragmentadas colhidas no
ambiente da criança, servindo de modelo para a sociedade.
No entanto, para Fernando de Azevedo, a escola teria um papel limitado diante do
poder coercitivo de outra instituição, a família, responsável pela formação de grande parte dos
padrões sociais.
A despeito desta característica, o educador deveria ser um agente social, servindo de
exemplo e elemento de ligação do educando com a realidade e a construção do conhecimento.
Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Anísio Teixeira defendeu a reestruturação da
educação com o objetivo de propagar e aperfeiçoar a democracia, propondo trabalhar
conteúdos de forma a discutir benefícios para a coletividade.
Para realmente integrar e socializar, a escola deveria ser integral e municipalizada,
visando atender os interesses de cada comunidade, sendo por ele fiscalizada.
Os estudos de Althusser.
Althusser pertence a um conjunto teórico conhecido como neomarxismo, uma corrente
que mescla o marxismo com outras bases teóricas, como o estruturalismo, fazendo uso da
dialética e do materialismo histórico.
Cabe lembrar que o estruturalismo se propõe a analisar sistemas, portanto, estruturas.
A preocupação central de Althusser era tentar entender como as condições de
produção, no âmbito capitalista, conseguem se reproduzir; já que o sistema capitalista seria
injusto e prejudicial à maioria.
Pensando na questão, o autor chegou à conclusão que a dinâmica de trabalho,
assegurada pelo salário, seria o principal fator a reproduzir o sistema, comprando a lealdade
de indivíduos em favor da ideologia capitalista.
Para garantir a submissão dos indivíduos ao sistema capitalista, o Estado faria uso de
aparelhos de Estado:
1. Aparelhos de Estado: constituído pelo governo e a administração publica.
2. Aparelhos Ideológicos de Estado: o meio de exercer controle sobre o pensamento,
através de instituições como igreja, escola, sindicatos, meios de comunicação e até livros
didáticos, mascarando e vendendo o domínio das elites.
3. Aparelhos Repressivos de Estado: instituições que exercem domínio por meio da
violência, da coerção, tal como policia, justiça, prisões, forças armadas, etc.
Segundo Althusser, a escola teria um papel primordial moldando mentalidades, mas
dentro deste aparelho ideológico também haveria aparelhos repressivos, representados por
mecanismos de punição e exclusão.
Caso a escola não consiga moldar as mentalidades, fazendo os indivíduos se
conformarem com sua posição modesta na sociedade, jogando o sujeito na marginalidade, os
aparelhos repressivos dariam conta de excluir o infrator da sociedade.
Uma visão em concordância coma teoria funcional, segundo a qual a sociedade
funciona como uma máquina, sendo as pessoas engrenagens.No caso de uma peça defeituosa,
que não se encaixa no que esperado dela, bastaria substituí-la.
Os estudos de Bourdieu e Passeron.
Também pertencentes ao conjunto teórico neomarxista, Bourdieu e Passeron
concentraram sua atenção sobre a mesma questão trabalhada por Althusser: o entendimento
da reprodução da estrutura social do sistema capitalista.
Para os autores, a escola é a principal estrutura objetiva que molda mentalidades e
comportamentos, garantindo a manutenção de privilégios através do status que confere.
Neste sentido, a escola manipula o educando, ocultando uma violência simbólica.
A violência está no fato da escola se revestir de uma aparência de neutralidade,
quando na verdade condiciona o educando de acordo com os interesses das elites que
controlam o sistema educacional.
É simbólica devido ao seu caráter não material, portanto, circunscrito a esfera mental.
Dentro deste contexto, insere-se o capital cultural, a competência cultural e linguística
herdade, sobretudo, da família, facilitador do bom desempenho escolar.
Usando uma linguagem e cultura pertencentes à elite, o padrão culto, a escola comete
uma violência ao impor, ao conjunto da sociedade, valores de um único grupo.
A educação legitima o domínio da elite, impedindo o acesso daqueles que não
possuem o necessário capital cultural a estamentos mais elevados, doutrinando para o
fracasso.
A proposta de Gramsci.
O italiano Antônio Gramsci criticou o sistema educacional capitalista, apontando
caminhos para democratizar o acesso ao conhecimento, buscando tornar a sociedade mais
justa.
Os textos de Gramsci influenciaram o pensamento socialista na Europa, refletindo no
Brasil na década de 1970 e 1980, possibilitando o moderno conceito de educação voltada para
a formação da cidadania.
Para ele, toda relação social é necessariamente pedagógica, já que todo o processo de
interação é uma relação de aprendizagem.
Defendia a ideia de que a massa só poderia chegar ao poder através de uma mudança
de mentalidade e não pela violência, centralizando esta mudança, principalmente, no
instrumento escola, responsável pela construção da cidadania.
Por cidadania, Gramsci entendia a orientação voltada para a elevação da cultura das
massas, a libertação do senso comum e a aquisição de uma postura critica.
Para levar a termo esta intenção, ele propôs uma escola unitária, onde todos,
independente da classe social, tivessem acesso ao mesmo tipo de conhecimento, no caso a
cultura erudita, baseada nos clássicos.
Porém, considerava que a educação deveria seguir o modelo tradicional, para conduzir
o educando da heteronomia para a autonomia.
Concluindo.
A educação institucionalizada, a escola, possui muitos defeitos e vícios, muitos dos
quais advindos do sistema capitalista e estrutura social; porém, o professor, em sala de aula
pode contornar estas barreiras.
Cabe a cada professor realizar um trabalho de formiguinha, tornando-se um educador
e agente multiplicador.
Sozinhos somos nada, somos fracos; juntos seremos tudo, seremos fortes e poderemos
mudar o mundo através da educação.
Texto: Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos.
Doutor em História Social pela FFCLH/USP.
TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM: Ultimo acesso em 30/12/12.
http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2011/03/fundamentos-historicos-e-filosoficos-da.html
MARILENA CHAUI
CONVITE À FILOSOFIA
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Introdução
Para que Filosofia?
Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia? É uma pergunta
interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática
ou física? Para que geografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia
ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou
dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia?
Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos
estudantes de Filosofia: ―A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo
permanece tal e qual‖. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se costuma chamar
de ―filósofo‖ alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo
coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis.
Essa pergunta, ―Para que Filosofia?‖, tem a sua razão de ser.
Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só
tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade
imediata. Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a
utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade.
Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e
venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem
ser valorizados para o elogio da humanidade.
Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não
serve para coisa alguma.
Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito
bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos
rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos
técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.
Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência
da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como
aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos
e aperfeiçoados.
Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre
teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões
filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as
formula e busca respostas para elas.
Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia,
mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos
sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada.
Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não
serviria para nada, se ―servir‖ fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos
produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram
também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica.
Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os
conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias (que ficam por
conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia seria a arte do bem
viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a
capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando nos a
viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como
finalidade ensinarnos a virtude, que é o princípio do bem-viver.
Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma
arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas
desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O
que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos
livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres
humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas? Assim,
mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o
conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da
Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica
permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como
permanecem.
Atitude filosófica: indagar
Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia se
ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas,
independentemente do conteúdo investigado.
Essas características são:
- perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A Filosofia pergunta qual é a
realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual;
- perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e
quais são as relações que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor;
- perguntar por que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta
pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um valor.
A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às
relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se
referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar.
Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento:
o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se, então, o pensamento
interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a
Filosofia se realiza como reflexão.
A reflexão filosófica
Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si
mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo,
interrogando a si mesmo.
A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre
si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento.
Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no
mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as
coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem
quanto por meio de gestos e ações. A reflexão filosófica também se volta para essas relações
que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que
realizamos nessas relações.
A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou
questões:
1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que
fazemos? Isto é, quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos,
dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?
2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o
que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos,
dizemos ou fazemos?
3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que
fazemos? Isto é, qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?
Essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas
pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro,
um conhecimento?
Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?,
dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se
relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de
todas as coisas.
Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao
pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a
finalidade humanas para conhecer e agir.
Filosofia: um pensamento sistemático
Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e
opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um ―eu acho que‖ ou um ―eu gosto de‖. Não é
pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de
mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda.
As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático.
Que significa isso?
Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca
encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por
procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado
e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência
cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de
dizer ―eu acho que ‖, mas de poder afirmar ―eu penso que‖.
O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se
contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões
sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas
entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações,
sejam provadas e demonstradas racionalmente.
Quando o senso comum diz ―esta é minha filosofia‖ ou ―isso é a filosofia de fulana ou
de fulano‖, engana-se e não se engana. Engana-se porque imagina que para ―ter uma
filosofia‖ basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as
coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para
julgar as coisas e as pessoas. ―Minha filosofia‖ ou a ―filosofia de fulano‖ ficam no plano
de um ―eu acho‖ coerente.
Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que
muito confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer
que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o
senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a
Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado
em nossa experiência cotidiana.
Em busca de uma definição da Filosofia
Quando começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela é.
Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da
Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de várias, as
definições parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de perplexidade, indagam:
afinal, o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é?
Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que
seria a Filosofia:
1. Visão de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura. Filosofia
corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idéias, valores e práticas pelos quais uma
sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma, definindo para si o tempo e o
espaço, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verdadeiro
e o falso, o possível e o impossível, o contingente e o necessário.
Qual o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por
exemplo, distinguir a Filosofia e religião, Filosofia e arte, Filosofia e ciência. Na verdade,
essa definição identifica Filosofia e Cultura, pois esta é uma visão de mundo coletiva que se
exprime em idéias, valores e práticas de uma sociedade.
A definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do trabalho filosófico
e por isso não podemos aceitá-la.
2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a definição e a ação de
algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo
para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio.
A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma
vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos,
desejos e paixões. É nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo.
Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a
sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso, também não podemos
aceitá-la.
3. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada
e dotada de sentido.
Nesse caso, começa-se distinguindo entre Filosofia e religião e até mesmo opondo
uma à outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira
o faz através do esforço racional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação
divina. Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade,
enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável, que é a
revelação divina indemonstrável.
Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem
ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia não
admite
indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a consciência filosófica procura
explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável.
No entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia a tarefa de
oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo, elaborando um sistema
universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível.
Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em primeiro
lugar, porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes,
cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no caso das
ciências) e para a expressão (no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina
que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a
própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça
uma única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta definição também não pode ser
aceita.
4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas.
A Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os princípios do
conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos
valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas da
ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos
conceitos, das idéias e dos valores.
A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias
modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência,
reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurando descrever as formas e os
conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo, do ser humano
consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de
idéias ou significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história,
subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança,
etc.
Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia procura
diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o
mundo histórico (ou humano) num momento muito preciso: quando perdemos nossas certezas
cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir
as que perdemos.
Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade
natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas,
espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar
e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer.
Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise (das
condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão (isto é, volta da
consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o
sentimento e a ação) e como crítica (das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos,
das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão e
crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade
e os seres humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia é a busca do fundamento e
do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanência
e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecerdesaparecer dos seres?
A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos
científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças
religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações
das obras de arte e do trabalho artístico.
Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos
e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e
reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do
sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio
tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humanos, conhecimento da transformação
temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou
dos seres, a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história.
O nascimento da Filosofia
Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do
século VII e início do século VI antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor
(particularmente as que formavam uma região denominada Jônia), na cidade de Mileto. E o
primeiro filósofo foi Tales de Mileto.
Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia
também possui um conteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é
composta de duas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que
vem da palavra logos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento.
Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza,
donde, cosmologia.
Apesar da segurança desses dados, existe um problema que, durante séculos, vem
ocupando os historiadores da Filosofia: o de saber se a Filosofia - que é um fato
especificamente grego - nasceu por si mesma ou dependeu de contribuições da sabedoria
oriental (egípcios, assírios, persas, caldeus, babilônios) e da sabedoria de civilizações que
antecederam à grega, na região que, antes de ser a Grécia ou a Hélade, abrigara as civilizações
de Creta, Minos, Tirento e Micenas.
Durante muito tempo, considerou-se que a Filosofia nascera por transformações que os
gregos operaram na sabedoria oriental (egípcia, persa, caldéia e babilônica). Assim, filósofos
como Platão e Aristóteles afirmavam a origem oriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles,
povo comerciante e navegante, descobriram, através das viagens, a agrimensura dos egípcios
(usada para medir as terras, após as cheias do Nilo), a astrologia dos caldeus e dos babilônios
(usada para prever grandes guerras, subida e queda de reis, catástrofes como peste, fome,
furacões), as genealogias dos persas (usadas para dar continuidade às linhagens e dinastias
dos governantes), os mistérios religiosos orientais referentes aos rituais de purificação da
alma (para livrá-la da reencarnação contínua e garantir-lhe o descanso eterno), etc. A Filosofia
teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses conhecimentos.
Dessa forma, da agrimensura, os gregos fizeram nascer duas ciências: a aritmética e a
geometria; da astrologia, fizeram surgir também duas ciências: a astronomia e a meteorologia;
das genealogias, fizeram surgir mais uma outra ciência: a história; dos mistérios religiosos de
purificação da alma, fizeram surgir as teorias filosóficas sobre a natureza e o destino da alma
humana.
Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia, isto é, da
cosmologia, de sorte que a Filosofia só teria podido nascer graças as saber oriental. Essa idéia
de uma filiação oriental da Filosofia foi muito defendida oito séculos depois de seu
nascimento (durante os séculos II e III depois de Cristo), no período do Império Romano.
Quem a defendia? Os pensadores judaicos, como Filo de Alexandria, e os Padres da Igreja,
como Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria. Por que defendiam a origem oriental da
Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a Filosofia grega tornara-se, em toda a Antigüidade
clássica, e para os poderosos da época, os romanos, a forma superior ou mais elevada do
pensamento e da moral.
Os judeus, para valorizar seu pensamento, desejavam que a Filosofia tivesse uma
origem oriental, dizendo que o pensamento de filósofos importantes, como Platão, tinha
surgido no Egito, onde se originara o pensamento de Moisés, de modo que havia uma ligação
entre a Filosofia grega e a Bíblia.
Os Padres da Igreja, por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram
elevados e perfeitos, não eram superstição, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam
que os filósofos gregos estavam filiados a correntes de pensamento místico e oriental e, dessa
maneira, estariam próximos do cristianismo, que é uma religião oriental.
No entanto, nem todos aceitaram a tese chamada ―orientalista‖, e muitos, sobretudo no
século XIX da nossa era, passaram a falar na Filosofia como sendo o ―milagre grego‖.
Com a palavra ―milagre‖ queriam dizer várias coisas:

que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grécia, sem que
nada
anterior a preparasse;

que a Filosofia grega foi um acontecimento espontâneo, único e sem
par, como é próprio de um milagre;

que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro semelhante a
eles, nem antes e nem depois deles, e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar
a Filosofia, como foram os únicos a criar as ciências e a dar às artes uma elevação que
nenhum outro povo conseguiu, nem antes e nem depois deles.
Nem oriental, nem milagre
Desde o final do século XIX da nossa era e durante o século XX, estudos históricos,
arqueológicos, lingüísticos, literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses, isto é,
tanto a redução da Filosofia à sua origem oriental, quanto o ―milagre grego ‖.
Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de fato, a Filosofia tem dívidas
com a sabedoria dos orientais, não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com
os conhecimentos produzidos por outros povos (sobretudo os egípcios, persas, babilônios,
assírios e caldeus), mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga,
os poetas Homero e Hesíodo, encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais, bem
como nas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a mitologia grega, que,
depois, seria transformada racionalmente pelos filósofos.
Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos religiosos, instrumentos
musicais, dança, música, poesia, utensílios domésticos e de trabalho, formas de habitação,
formas de parentesco e formas de organização tribal dos gregos foram resultado de contatos
profundos com as culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas culturas
que antecederam a grega, nas regiões onde ela se implantou.
Esses mesmos estudos apontaram, porém, que, se nos afastarmos dos exageros da
idéia de um ―milagre grego‖, podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato,
os gregos imprimiram mudanças de qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e
das culturas precedentes, que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si
mesmos. Dessas mudanças, podemos mencionar quatro que nos darão uma idéia da
originalidade grega:
1. Com relação aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses,
micênicos, minóicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo, vemos que eles
retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do início do mundo;
humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidade a narrativas sobre as
origens das coisas, dos homens, das instituições humanas (como o trabalho, as leis, a moral);
2. Com relação aos conhecimentos: os gregos transformaram em ciência (isto é, num
conhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que eram elementos de uma sabedoria
prática para o uso direto na vida. Assim, transformaram em matemática (aritmética,
geometria, harmonia) o que eram expedientes práticos para medir, contar e calcular;
transformaram em astronomia (conhecimento racional da natureza e do movimento dos
astros) aquilo que eram práticas de adivinhação e previsão do futuro; transformaram em
medicina (conhecimento racional sobre o corpo humano, a saúde e a doença) aquilo que eram
práticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças. E assim por diante;
3. Com relação à organização social e política: os gregos não inventaram apenas a
ciência ou a Filosofia, mas inventaram também a política. Todas as sociedades anteriores a
eles conheciam e praticavam a autoridade e o governo. Mas, por que não inventaram a política
propriamente dita?
Nas sociedades orientais e não-gregas, o poder e o governo eram exercidos como
autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo
de homens que decidiam sobre tudo, sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões
para ninguém.
Os gregos inventaram a política (palavra que vem de polis, que, em grego, significa
cidade organizada por leis e instituições) porque instituíram práticas pelas quais as decisões
eram tomadas a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por
voto em assembléias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais,
assembléias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública, entre
autoridade políticomilitar e autoridade religiosa) e sobretudo porque criaram a idéia da lei e
da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de
um só ou de um grupo, em nome de divindades. Os gregos criaram a política porque
separaram o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade: a do chefe de
família e a do sacerdote ou mago;
4. Com relação ao pensamento: diante da herança recebida, os gregos inventaram a
idéia ocidental da razão como um pensamento sistemático que segue regras, normas e leis de
valor universal (isto é, válidas em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, em
qualquer tempo e lugar 2 + 2 serão sempre 4; o triângulo sempre terá três lados; o Sol sempre
será maior do que a Terra, mesmo que ele pareça menor do que ela, etc.).
Mito e Filosofia
Resolvido esse problema, agora temos um outro que também tem ocupado muito os
estudiosos. O novo problema pode ser assim formulado: a Filosofia nasceu realizando uma
transformação gradual sobre os mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os
mitos?
O que é um mito?
Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra,
dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do
saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das
raças,
bem e do mal, da
das
guerras,
do
poder, etc.).
A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo
(contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar,
anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido
para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é
uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do
narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está
narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados.
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acreditase que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e
permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa
transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito – é sagrada porque vem de uma revelação
divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável. Como o mito narra a origem do mundo
e de tudo o que nele existe?
De três maneiras principais:
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre
de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os
titãs (seres semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou
de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades,
como quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado,
etc.
A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres,
das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados.
Tomemos um exemplo da narrativa mítica.
Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de
plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzi-la e
também serem amadas, o mito narra a origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que
conhecemos mais com o nome de Cupido):
Houve uma grande festa entre os deuses. To dos foram convidados, menos a deusa
Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria veio, comeu os restos e
dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relação sexual, nasceu Eros (ou
Cupido), que, como sua mãe, está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai,
tem mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com
sua flecha, esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor, inventa
astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e semimorto, ora rico e cheio de
vida.
2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma
coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma
aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens.
O poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas
batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses
estavam divididos, alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos
deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliavase com um grupo e fazia um dos lados - ou
os troianos ou os gregos - vencer uma batalha.
A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho
para o príncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor,
Afrodite. As outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general
grego Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos.
3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece
ou a quem os obedece. Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os
homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a
cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem
fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra.
Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha
de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num
rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens
também. Qual foi o castigo dos homens?
Os deuses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa
que conteria coisas maravilhosas, mas nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos
humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela
saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a
origem dos males no mundo.
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e
relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens.
Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e
teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar,
fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero,
espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do
parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a
cosmogonia é a arrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças
geradoras (pai e mãe) divinas.
Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que, em grego, significa: as coisas
divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses,
a partir de seus pais e antepassados.
Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: A Filosofia, ao nascer, é, como já
dissemos, uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as
causas das transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação
gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a
cosmogonia e a teogonia?
Duas foram as respostas dadas.
A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do século XX, quando
reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem.
Dizia-se, então, que a Filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a
primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente.
A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX, quando os estudos dos
antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e
cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de
pensar e de sentir de uma sociedade.
Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus
mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como
uma racionalização deles.
Atualmente consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a Filosofia,
percebendo as contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando as
narrativas míticas, transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e
diferente.
Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais
importantes:
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial,
longínquo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no
presente. A Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no
presente e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;
2. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre
forças divinas sobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a
produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais.
O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito
narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos
pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres
por composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio,
ou água, terra, fogo e ar.
3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível,
não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a
confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao
contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a
explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da
pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.
Condições históricas para o surgimento da Filosofia
Resolvido esse problema, temos ainda um último a solucionar: O que tornou possível
o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de
Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que
permitiram o surgimento da Filosofia? Podemos apontar como principais condições históricas
para o surgimento da Filosofia na Grécia:
? as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os
mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres
humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres
fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o
desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação
sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
? a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as
estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso,
uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não
como um poder divino incompreensível;
? a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através
das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca
abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando,
portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
? o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando
desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da
aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso,
o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e
de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens
constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo
às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia
surgir;
? a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o
crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética
ou fonética, diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos
egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa
que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;
? a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o
nascimento da Filosofia:
1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide
por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto
legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto
legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.
2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou
de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poetavidente, que
recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o
poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais
eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer.
Agora, com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada
cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma
decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana
compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e
exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. A política,
valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou
o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.
3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados
por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser
públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que
todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental
para a Filosofia.
Principais características da Filosofia nascente
O pensamento filosófico em seu nascimento tinha como traços principais:
? tendência à racionalidade, isto é, a razão e somente a razão, com seus princípios e
regras, é o critério da explicação de alguma coisa;
? tendência a oferecer respostas conclusivas para os problemas, isto é, colocado um
problema, sua solução é submetida à análise, à crítica, à discussão e à demonstração, nunca
sendo aceita como uma verdade, se não for provado racionalmente que é verdadeira;
? exigência de que o pensamento apresente suas regras de funcionamento, isto é, o
filósofo é aquele que justifica suas idéias provando que segue regras universais do
pensamento. Para os gregos, é uma lei universal do pensamento que a contradição indica erro
ou falsidade. Uma contradição acontece quando afirmo e nego a mesma coisa sobre uma
mesma coisa (por exemplo: ―Pedro é um menino e não um menino‖, ―A noite é escura e
clara‖, ―O infinito não tem limites e é limitado‖). Assim, quando uma contradição aparecer
numa exposição filosófica, ela deve ser considerada falsa;
? recusa de explicações preestabelecidas e, portanto, exigência de que, para cada
problema, seja investigada e encontrada a solução própria exigida por ele;
? tendência à generalização, isto é, mostrar que uma explicação tem validade para
muitas coisas diferentes porque, sob a variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos, o
pensamento descobre semelhanças e identidades. Por exemplo, para meus olhos, meu tato e
meu olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma chaleira, que é
diferente da chuva, que é diferente da correnteza de um rio. No entanto, o pensamento mostra
que se trata sempre de um mesmo elemento (a água), passando por diferentes estados e
formas (líquido, sólido, gasoso), por causas naturais diferentes (condensação, liquefação,
evaporação).
Reunindo semelhanças, o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que
aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O
pensamento generaliza porque abstrai (isto é, separa e reúne os traços semelhantes), ou seja,
realiza uma síntese.
E o contrário também ocorre. Muitas vezes nossos órgãos dos sentidos nos fazem
perceber coisas diferentes como se fossem a mesma coisa, e o pensamento demonstrará que se
trata de uma coisa diferente sob a aparência da semelhança.
No ano de 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da
bandeira nacional e saíram às ruas para exigir o impedimento do presidente da República.
Logo depois, os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer
na televisão com a cara pintada, defendendo tais candidaturas. A seguir, as Forças Armadas
brasileiras, para persuadir jovens a servi -las, contrataram jovens caras-pintadas para aparecer
como soldados, marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, várias empresas, pretendendo
vender seus produtos aos jovens, contrataram artistas jovens para, de cara pintada, fazer a
propaganda de seus produtos.
Aparentemente, teríamos sempre a mesma coisa - os jovens rebeldes e conscientes, de
cara pintada, símbolo da esperança do País. No entanto, o pensamento pode mostrar que, sob
a aparência da semelhança percebida, estão diferenças, pois os primeiros caras-pintadas
fizeram um movimento político espontâneo, os segundos fizeram propaganda política para um
candidato (e receberam para isso), os terceiros tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer
como divertidas e juvenis, e os últimos, mediante remuneração, estavam transferindo para
produtos industriais (roupas, calçados, vídeos, margarinas, discos, iogurtes) um símbolo
político inteiramente despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem. Separando as
diferenças, o pensamento realiza, nesse caso, uma análise.
Capítulo 3
Campos de investigação da Filosofia
Os períodos da Filosofia grega
A Filosofia terá, no correr dos séculos, um conjunto de preocupações, indagações e
interesses que lhe vieram de seu nascimento na Grécia.
Assim, antes de vermos que campos são esses, examinemos brevemente os conteúdos
que a Filosofia possuía na Grécia. Para isso, de vemos, primeiro, conhecer os períodos
principais da Filosofia grega, pois tais períodos definiram os campos da investigação
filosófica na Antigüidade.
A história da Grécia costuma ser dividida pelos historiadores em quatro grandes fases
ou épocas:
1. a da Grécia homérica, correspondente aos 400 anos narrados pelo poeta Homero,
em seus dois grandes poemas, Ilíada e Odisséia;
2. a da Grécia arcaica ou dos sete sábios, do século VII ao século V antes de Cristo,
quando os gregos criam cidades como Atenas, Esparta, Tebas, Megara, Samos, etc., e
predomina a economia urbana, baseada no artesanato e no comércio;
3. a da Grécia clássica, nos séculos V e IV antes de Cristo, quando a democracia se
desenvolve, a vida intelectual e artística entra no apogeu e Atenas domina a Grécia com seu
império comercial e militar;
4. e, finalmente, a época helenística, a partir do final do século IV antes de Cristo,
quando a Grécia passa para o poderio do império de Alexandre da Macedônia, e, depois, para
as mãos do Império Romano, terminando a história de sua existência independente.
Os períodos da Filosofia não correspondem exatamente a essas épocas, já que ela não
existe na Grécia homérica e só aparece nos meados da Grécia arcaica.
Entretanto, o apogeu da Filosofia acontece durante o apogeu da cultura e da sociedade
gregas; portanto, durante a Grécia clássica.
Os quatro grandes períodos da Filosofia grega, nos quais seu conteúdo muda e se
enriquece, são:
1. Período pré-socrático ou cosmológico, do final do século VII ao final do século V
a.C., quando a Filosofia se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das
transformações na Natureza.
2. Período socrático ou antropológico, do final do século V e todo o século IV a.C.,
quando a Filosofia investiga as questões humanas, isto é, a ética, a política e as técnicas (em
grego, ântropos quer dizer homem; por isso o período recebeu o nome de antropológico).
3. Período sistemático, do final do século IV ao final do século III a.C., quando a
Filosofia busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado sobre a cosmologia e a
antropologia, interessando-se sobretudo em mostrar que tudo pode ser objeto do
conhecimento filosófico, desde que as leis do pensamento e de suas demonstrações estejam
firmemente estabelecidas para oferecer os critérios da verdade e da ciência.
4. Período helenístico ou greco-romano, do final do século III a.C. até o século VI
depois de Cristo. Nesse longo período, que já alcança Roma e o pensamento dos primeiros
Padres da Igreja, a Filosofia se ocupa sobretudo com as questões da ética, do conhecimento
humano e das relações entre o homem e a Natureza e de ambos com Deus.
Filosofia Grega
Pode-se perceber que os dois primeiros períodos da Filosofia grega têm
comoreferência o filósofo Sócrates de Atenas, donde a divisão em Filosofia présocrática e
socrática.
Período pré-socrático ou cosmológico
Os principais filósofos pré-socráticos foram:
? filósofos da Escola Jônica: Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Anaximandro de
Mileto e Heráclito de Éfeso;
? filósofos da Escola Itálica: Pitágoras de Samos, Filolau de Crotona e Árquitas de
Tarento;
? filósofos da Escola Eleata: Parmênides de Eléia e Zenão de Eléia;
? filósofos da Escola da Pluralidade: Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de
Clazômena, Leucipo de Abdera e Demócrito de Abdera.
As principais características da cosmologia são:
? É uma explicação racional e sistemática sobre a origem, ordem e transformação da
Natureza, da qual os seres humanos fazem parte, de modo que, ao explicar a Natureza, a
Filosofia também explica a origem e as mudanças dos seres humanos.
? Afirma que não existe criação do mundo, isto é, nega que o mundo tenha surgido do
nada (como é o caso, por exemplo, na religião judaico-cristã, na qual Deus cria o mundo do
nada). Por isso diz: ―Nada vem do nada e nada volta ao nada‖. Isto significa: a) que o mundo,
ou a Natureza, é eterno; b) que no mundo, ou na Natureza, tudo se transforma em outra coisa
sem jamais desaparecer, embora a forma particular que uma coisa possua desapareça com ela,
mas não sua matéria.
? O fundo eterno, perene, imortal, de onde tudo nasce e para onde tudo volta é
invisível para os olhos do corpo e visível somente para o olho do espírito, isto é, para o
pensamento.
? O fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo
retorna é o elemento primordial da Natureza e chama-se physis (em grego, physis vem de um
verbo que significa fazer surgir, fazer brotar, fazer nascer, produzir). A physis é a Natureza
eterna e em perene transformação.
? Afirma que, embora a physis (o elemento primordial eterno) seja imperecível, ela dá
origem a todos os seres infinitamente variados e diferentes do mundo, seres que, ao contrário
do princípio gerador, são perecíveis ou mortais.
? Afirma que todos os seres, além de serem gerados e de serem mortais, são seres em
contínua transformação, mudando de qualidade (por exemplo, o branco amarelece, acinzenta,
enegrece; o negro acinzenta, embranquece; o novo envelhece; o quente esfria; o frio esquenta;
o seco fica úmido; o úmido seca; o dia se torna noite; a noite se torna dia; a primavera cede
lugar ao verão, que cede lugar ao outono, que cede lugar ao inverno; o saudável adoece; o
doente se cura; a criança cresce; a árvore vem da semente e produz sementes, etc.) e mudando
de quantidade (o pequeno cresce e fica grande; o grande diminui e fica pequeno; o longe fica
perto se eu for até ele, ou se as coisas distantes chegarem até mim, um rio aumenta de volume
na cheia e diminui na seca, etc.). Portanto o mundo está em mudança contínua, sem por isso
perder sua forma, sua ordem e sua estabilidade.
A mudança - nascer, morrer, mudar de qualidade ou de quantidade - chama-se
movimento e o mundo está em movimento permanente.
O movimento do mundo chama-se devir e o devir segue leis rigorosas que o
pensamento conhece. Essas leis são as que mostram que toda mudança é passagem de um
estado ao seu contrário: dia-noite, claro-escuro, quente-frio, seco-úmido, novo-velho,
pequeno-grande, bom-mau, cheio-vazio, um-muitos, etc., e também no sentido inverso, noite-
dia, escuro-claro, frio-quente, muitosum,etc. O devir é, portanto, a passagem contínua de uma
coisa ao seu estado contrário e essa passagem não é caótica, mas obedece a leis determinadas
pela physis ou pelo princípio fundamental do mundo.
Os diferentes filósofos escolheram diferentes physis, isto é, cada filósofo encontrou
motivos e razões para dizer qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da
Natureza e de suas transformações. Assim, Tales dizia que o princípio era a água ou o úmido;
Anaximandro considerava que era o ilimitado sem qualidades definidas; Anaxímenes, que era
o ar ou o frio; Heráclito afirmou que era o fogo; Leucipo e Demócrito disseram que eram os
átomos. E assim por diante.
Período socrático ou antropológico
Com o desenvolvimento das cidades, do comércio, do artesanato e das artes militares,
Atenas tornou-se o centro da vida social, política e cultural da Grécia, vivendo seu período de
esplendor, conhecido como o Século de Péricles.
É a época de maior florescimento da democracia. A democracia grega possuía, entre
outras, duas características de grande importância para o futuro da Filosofia.
Em primeiro lugar, a democracia afirmava a igualdade de todos os homens adultos
perante as leis e o direito de todos de participar diretamente do governo da cidade, da polis.
Em segundo lugar, e como conseqüência, a democracia, sendo direta e não por eleição
de representantes, garantia a todos a participação no governo, e os que dele participavam
tinham o direito de exprimir, discutir e defender em público suas opiniões sobre as decisões
que a cidade deveria tomar. Surgia, assim, a figura política do cidadão. (Nota: Devemos
observar que estavam excluídos da cidadania o que os gregos chamavam de dependentes:
mulheres, escravos, crianças e velhos. Também estavam excluídos os estrangeiros.)
Ora, para conseguir que a sua opinião fosse aceita nas assembléias, o cidadão
precisava saber falar e ser capaz de persuadir. Com isso, uma mudança profunda vai ocorrer
na educação grega.
Quando não havia democracia, mas dominavam as famílias aristocráticas, senhoras
das terras, o poder lhes pertencia. Essas famílias, valendo-se dos dois grandes poetas gregos,
Homero e Hesíodo, criaram um padrão de educação, próprio dos aristocratas. Esse padrão
afirmava que o homem ideal ou perfeito era o guerreiro belo e bom. Belo: seu corpo era
formado pela ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra, imitando os heróis da guerra de
Tróia (Aquiles, Heitor, Ájax, Ulisses). Bom: seu espírito era formado escutando Homero e
Hesíodo, aprendendo as virtudes admiradas pelos deuses e praticadas pelos heróis, a principal
delas sendo a coragem diante da morte, na guerra. A virtude era a Arete (excelência e
superioridade), própria dos melhores, os aristoi.
Quando, porém, a democracia se instala e o poder vai sendo retirado dos aristocratas,
esse ideal educativo ou pedagógico também vai sendo substituído por outro. O ideal da
educação do Século de Péricles é a formação do cidadão. A Arete é a virtude cívica.
Ora, qual é o momento em que o cidadão mais aparece e mais exerce sua cidadania?
Quando opina, discute, delibera e vota nas assembléias. Assim, a nova educação estabelece
como padrão ideal a formação do bom orador, isto é, aquele que saiba falar em público e
persuadir os outros na política.
Para dar aos jovens essa educação, substituindo a educação antiga dos poetas,
surgiram, na Grécia, os sofistas, que são os primeiros filósofos do período socrático. Os
sofistas mais importantes foram: Protágoras de Abdera, Górgias de Leontini e Isócrates de
Atenas.
Que diziam e faziam os sofistas? Diziam que os ensinamentos dos filósofos
cosmologistas estavam repletos de erros e contradições e que não tinham utilidade para a vida
da polis. Apresentavam-se como mestres de oratória ou de retórica, afirmando ser possível
ensinar aos jovens tal arte para que fossem bons cidadãos.
Que arte era esta? A arte da persuasão. Os sofistas ensinavam técnicas de persuasão
para os jovens, que aprendiam a defender a posição ou opinião A, depois a posição ou opinião
contrária, não-A, de modo que, numa assembléia, soubessem ter fortes argumentos a favor ou
contra uma opinião e ganhassem a discussão.
O filósofo Sócrates, considerado o patrono da Filosofia, rebelou-se contra os sofistas,
dizendo que não eram filósofos, pois não tinham amor pela sabedoria nem respeito pela
verdade, defendendo qualquer idéia, se isso fosse vantajoso. Corrompiam o espírito dos
jovens, pois faziam o erro e a mentira valer tanto quanto a verdade.
Como homem de seu tempo, Sócrates concordava com os sofistas em um ponto: por
um lado, a educação antiga do guerreiro belo e bom já não atendia às exigências da sociedade
grega, e, por outro lado, os filósofos cosmologistas defendiam idéias tão contrárias entre si
que também não eram uma fonte segura para o conhecimento verdadeiro. (Nota:
Historicamente, há dificuldade para conhecer o pensamento dos grandes sofistas porque não
possuímos seus textos.
Restaram fragmentos apenas. Por isso, nós os conhecemos pelo que deles disseram
seus adversários - Platão, Xenofonte, Aristóteles - e não temos como saber se estes foram
justos com aqueles. Os historiadores mais recentes consideram os sofistas verdadeiros
representantes do espírito democrático, isto é, da pluralidade conflituosa de opiniões e
interesses, enquanto seus adversários seriam partidários de uma política aristocrática, na qual
somente algumas opiniões e interesses teriam o direito para valer para o restante da
sociedade.)
Discordando dos antigos poetas, dos antigos filósofos e dos sofistas, o que propunha
Sócrates?
Propunha que, antes de querer conhecer a Natureza e antes de querer persuadir os
outros, cada um deveria, primeiro e antes de tudo, conhecer-se a si mesmo. A expressão
―conhece-te a ti mesmo‖ que estava gravada no pórtico do templo deApolo, patrono grego da
sabedoria, tornou-se a divisa de Sócrates.
Por fazer do autoconhecimento ou do conhecimento que os homens têm de simesmos
a condição de todos os outros conhecimentos verdadeiros, é que se diz que o período socrático
é antropológico, isto é, voltado para o conhecimento do homem, particularmente de seu
espírito e de sua capacidade para conhecer a verdade.
O retrato que a história da Filosofia possui de Sócrates foi traçado por seu mais
importante aluno e discípulo, o filósofo ateniense Platão.
Que retrato Platão nos deixa de seu mestre, Sócrates?
O de um homem que andava pelas ruas e praças de Atenas, pelo mercado e pela
assembléia indagando a cada um: ―Você sabe o que é isso que você está dizendo?‖, ―Você
sabe o que é isso em que você acredita?‖, ―Você acha que está conhecendo realmente aquilo
em que acredita, aquilo em que está pensando, aquilo que está dizendo?‖, ―Você diz‖, falava
Sócrates, ―que a coragem é importante, mas: o que é a coragem? Você acredita que a justiça é
importante, mas: o que é a justiça? Você diz que ama as coisas e as pessoas belas, mas o que é
a beleza? Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você tem, mas: o que é a
amizade?‖
Sócrates fazia perguntas sobre as idéias, sobre os valores nos quais os gregos
acreditavam e que julgavam conhecer. Suas perguntas deixavam os interlocutores
embaraçados, irritados, curiosos, pois, quando tentavam responder ao célebre ―o que é?‖,
descobriam, surpresos, que não sabiam responder e que nunca tinham pensado em suas
crenças, seus valores e suas idéias.
Mas o pior não era isso. O pior é que as pessoas esperavam que Sócrates respondesse
por elas ou para elas, que soubesse as respostas às perguntas, como os sofistas pareciam saber,
mas Sócrates, para desconcerto geral, dizia: ―Eu também não sei, por isso estou perguntando
‖. Donde a famosa expressão atribuída a ele: “Sei que nada sei”.
A consciência da própria ignorância é o começo da Filosofia. O que procurava
Sócrates? Procurava a definição daquilo que uma coisa, uma idéia, um valor é
verdadeiramente. Procurava a essência verdadeira da coisa, da idéia, do valor.
Procurava o conceito e não a mera opinião que temos de nós mesmos, das coisas, das
idéias e dos valores.
Qual a diferença entre uma opinião e um conceito? A opinião varia de pessoa para
pessoa, de lugar para lugar, de época para época. É instável, mutável, depende de cada um, de
seus gostos e preferências. O conceito, ao contrário, é uma verdade intemporal, universal e
necessária que o pensamento descobre, mostrando que é a essência universal, intemporal e
necessária de alguma coisa.
Por isso, Sócrates não perguntava se tal ou qual coisa era bela - pois nossa opinião
sobre ela pode variar - e sim: O que é a beleza? Qual é a essência ou o conceito do belo? Do
justo? Do amor? Da amizade?
Sócrates perguntava: Que razões rigorosas você possui para dizer o que diz e para
pensar o que pensa? Qual é o fundamento racional daquilo que você fala e pensa?
Ora, as perguntas de Sócrates se referiam a idéias, valores, práticas e comportamentos
que os atenienses julgavam certos e verdadeiros em si mesmos e por si mesmos. Ao fazer suas
perguntas e suscitar dúvidas, Sócrates os fazia pensar não só sobre si mesmos, mas também
sobre a polis. Aquilo que parecia evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto.
Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se
ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e
nos fazem acreditar que elas são. Para os poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo,
pois fazia a juventude pensar. Por isso, eles o acusaram de desrespeitar os deuses, corromper
os jovens e violar as leis. Levado perante a assembléia, Sócrates não se defendeu e foi
condenado a tomar um veneno - a cicuta - e obrigado a suicidar-se.
Por que Sócrates não se defendeu? ―Porque ‖, dizia ele, ―se eu me defender, estarei
aceitando as acusações, e eu não as aceito. Se eu me defender, o que os juízes vão exigir de
mim? Que eu pare de filosofar. Mas eu prefiro a morte a ter que renunciar à Filosofia‖.
O julgamento e a morte de Sócrates são narrados por Platão numa obra intitulada
Apologia de Sócrates, isto é, a defesa de Sócrates, feita por seus discípulos, contra Atenas.
Sócrates nunca escreveu. O que sabemos de seus pensamentos encontra-se nas obras
de seus vários discípulos, e Platão foi o mais importante deles. Se reunirmos o que esse
filósofo escreveu sobre os sofistas e sobre Sócrates, além da exposição de suas próprias
idéias, poderemos apresentar como características gerais do período socrático:
? A Filosofia se volta para as questões humanas no plano da ação, dos
comportamentos, das idéias, das crenças, dos valores e, portanto, se preocupa com as questões
morais e políticas.
? O ponto de partida da Filosofia é a confiança no pensamento ou no homem como um
ser racional, capaz de conhecer-se a si mesmo e, portanto, capaz de reflexão. Reflexão é a
volta que o pensamento faz sobre si mesmo para conhecerse; é a consciência conhecendo-se a
si mesma como capacidade para conhecer as coisas, alcançando o conceito ou a essência
delas.
? Como se trata de conhecer a capacidade de conhecimento do homem, a preocupação
se volta para estabelecer procedimentos que nos garantam que encontramos a verdade, isto é,
o pensamento deve oferecer a si mesmo caminhos próprios, critérios próprios e meios
próprios para saber o que é o verdadeiro e como alcançá-lo em tudo o que investiguemos.
? A Filosofia está voltada para a definição das virtudes morais e das virtudes políticas,
tendo como objeto central de suas investigações a moral e a política, isto é, as idéias e práticas
que norteiam os comportamentos dos seres humanos tanto como indivíduos quanto como
cidadãos.
? Cabe à Filosofia, portanto, encontrar a definição, o conceito ou a essência dessas
virtudes, para além da variedade das opiniões, para além da multiplicidade das opiniões
contrárias e diferentes. As perguntas filosóficas se referem, assim, a valores como a justiça, a
coragem, a amizade, a piedade, o amor, a beleza, a temperança, a prudência, etc., que
constituem os ideais do sábio e do verdadeiro cidadão.
? É feita, pela primeira vez, uma separação radical entre, de um lado a opinião e as
imagens das coisas, trazidas pelos nossos órgãos dos sentidos, nossos hábitos, pelas
tradições, pelos interesses, e, de outro lado, as idéias. As idéias se referem à essência íntima,
invisível, verdadeira das coisas e só podem ser alcançadas pelo pensamento puro, que afasta
os dados sensoriais, os hábitos recebidos, os preconceitos, as opiniões.
? A reflexão e o trabalho do pensamento são tomados como uma purificação
intelectual, que permite ao espírito humano conhecer a verdade invisível, imutável, universal
e necessária.
? A opinião, as percepções e imagens sensoriais são consideradas falsas, mentirosas,
mutáveis, inconsistentes, contraditórias, devendo ser abandonadas para que o pensamento siga
seu caminho próprio no conhecimento verdadeiro.
? A diferença entre os sofistas, de um lado, e Sócrates e Platão, de outro, é dada pelo
fato de que os sofistas aceitam a validade das opiniões e das percepções sensoriais e
trabalham com elas para produzir argumentos de persuasão, enquanto Sócrates e Platão
consideram as opiniões e as percepções sensoriais, ou imagens das coisas, como fonte de erro,
mentira e falsidade, formas imperfeitas do conhecimento que nunca alcançam a verdade plena
da realidade.
O mito da caverna
Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração,
seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo
que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente, não
podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que
alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se
passa no interior.
A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre ela e os
prisioneiros - no exterior, portanto - há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida
uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa
mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos,
animais e todas as coisas.
Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na
parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as
próprias estatuetas, nem os homens que as transportam.
Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as
próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são
imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna.
Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam
que toda luminosidade possível é a que reina na caverna.
Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um
prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os outros seres
humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade,
começaria a caminhar, dirigi ndo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho
ascendente, nele adentraria.
Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a
luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a
claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho,
enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras
de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora
está contemplando a própria realidade.
Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria
desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los.
Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não
acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas,
tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os
convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo. Mas, quem sabe, alguns
poderiam ouvi-lo e, contra a vontade dos demais, também decidissem sair da caverna rumo à
realidade.
O que é a caverna? O mundo em que vivemos. Que são as sombras das estatuetas? As
coisas materiais e sensoriais que percebemos. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da
caverna? O filósofo. O que é a luz exterior do sol? A luz da verdade. O que é o mundo
exterior? O mundo das idéias verdadeiras ou da verdadeira realidade. Qual o instrumento que
liberta o filósofo e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros? A dialética. O que é a
visão do mundo real iluminado? A Filosofia. Por que os prisioneiros zombam, espancam e
matam o filósofo (Platão está se referindo à condenação de Sócrates à morte pela assembléia
ateniense)? Porque imaginam que o mundo sensível é o mundo real e o único verdadeiro.
A preocupação com o conhecimento
O conhecimento e os primeiros filósofos
Quando estudamos o nascimento da Filosofia na Grécia, vimos que os primeiros
filósofos – os pré-socráticos – dedicavam-se a um conjunto de indagações principais: Por que
e como as coisas existem? O que é o mundo? Qual a origem da Natureza e quais as causas de
sua transformação? Essas indagações colocavam no centro a pergunta: o que é o Ser?
Os primeiros filósofos ocupavam-se com a origem e a ordem do mundo, o kosmos, e a
filosofia nascente era uma cosmologia. Pouco a pouco, passou-se a indagar o que era o
próprio kosmos, qual era o fundo eterno e imutável que permanecia sob a multiplicidade e
transformação das coisas. Qual era e o que era o ser subjacente a todos os seres. Com isto, a
filosofia nascente tornou-se ontologia, isto é, conhecimento ou saber sobre o ser.
Por esse mesmo motivo, considera-se que os primeiros filósofos não tinham uma
preocupação principal com o conhecimento enquanto conhecimento, isto é, não indagavam se
podemos ou não conhecer o Ser, mas partiam da pressuposição de que o podemos conhecer,
pois a verdade, sendo aletheia, isto é, presença e manifestação das coisas para os nossos
sentidos e para o nosso pensamento, significa que o Ser está manifesto e presente para nós e,
portanto, nós o podemos conhecer.
Todavia, a opinião de que os primeiros filósofos não se preocupavam com nossa
capacidade e possibilidade de conhecimento não é exata. Para tanto, basta levarmos em conta
o fato de afirmarem que a realidade (o Ser, a Natureza) é racional e que a podemos conhecer
porque também somos racionais; nossa razão é parte da racionalidade do mundo, dela
participando.
Heráclito, Parmênides e Demócrito
Alguns exemplos indicam a existência da preocupação dos primeiros filósofos com o
conhecimento e, aqui, tomaremos três: Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eléia e Demócrito
de Abdera.
Heráclito de Éfeso considerava a Natureza (o mundo, a realidade) como um ―fluxo
perpétuo ‖, o escoamento contínuo dos seres em mudança perpétua. Dizia: ―Não podemos
banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca
somos os mesmos‖. Comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar,
transformando a cera em fogo, o fogo em fumaça e a fumaça em ar. O dia se torna noite, o
verão se torna outono, o novo fica velho, o quente esfria, o úmido seca, tudo se transforma no
seu contrário.
A realidade, para Heráclito, é a harmonia dos contrários, que não cessam de se
transformar uns nos outros. Se tudo não cessa de se transformar perenemente, como explicar
que nossa percepção nos ofereça as coisas como se fossem estáveis, duradouras e
permanentes? Com essa pergunta o filósofo indicava a diferença entre o conhecimento que
nossos sentidos nos oferecem e o conhecimento que nosso pensamento alcança, pois nossos
sentidos nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcança a verdade como
mudança contínua.
Parmênides de Eléia colocava-se na posição oposta à de Heráclito. Dizia que só
podemos pensar sobre aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, isto é, que o
pensamento não pode pensar sobre as coisas que são e não são, que ora são de um modo e ora
são de outro, que são contrárias a si mesmas e contraditórias.
Conhecer é alcançar o idêntico, imutável. Nossos sentidos nos oferecem a imagem de
um mundo em incessante mudança, num fluxo perpétuo, onde nada permanece idêntico a si
mesmo: o dia vira noite, o inverno vira primavera, o doce se torna amargo, o pequeno vira
grande, o grande diminui, o doce amarga, o quente esfria, o frio se aquece, o líquido vira
vapor ou vira sólido.
Como pensar o que é e o que não é ao mesmo tempo? Como pensar o instável? Como
pensar o que se torna oposto e contrário a si mesmo? Não é possível, dizia Parmênides. Pensar
é dizer o que um ser é em sua identidade profunda e permanente. Com isso, afirmava o
mesmo que Heráclito – perceber e pensar são diferentes -, mas o dizia no sentido oposto ao de
Heráclito, isto é, percebemos mudanças impensáveis e devemos pensar identidades imutáveis.
Demócrito de Abdera desenvolveu uma teoria sobre o Ser ou sobre a Natureza
conhecida com o nome de atomismo: a realidade é constituída por átomos. Os seres surgem
por composição dos átomos, transformam-se por novos arranjos dos átomos e morrem por
separação dos átomos.
Os átomos, para Demócrito, possuem formas e consistências diferentes (redondos,
triangulares, lisos, duros, moles, rugosos, pontiagudos, etc.) e essas diferenças e os diferentes
modos de combinação entre eles produzem a variedade de seres, suas mudanças e
desaparições. Através de nossos órgãos dos sentidos, percebemos o quente e o frio, o doce e o
amargo, o seco e o úmido, o grande e o pequeno, o duro e o mole, sabores, odores, texturas, o
agradável e o desagradável, sentimos prazer e dor, porque percebemos os efeitos das
combinações dos átomos que, em si mesmos, não possuem tais qualidades.
Somente o pensamento pode conhecer os átomos, que são invisíveis para nossa
percepção sensorial. Dessa maneira, Demócrito concordava com Heráclito e Parmênides em
que há uma diferença entre o que conhecemos através de nossa percepção e o que
conhecemos apenas pelo pensamento; porém, diversamente dos outros dois filósofos, não
considerava a percepção ilusória, mas apenas um efeito da realidade sobre nós. O
conhecimento sensorial ou sensível é tão verdadeiro quanto aquilo que o pensamento puro
alcança, embora de uma verdade diferente e menos profunda ou menos relevante do que
aquela alcançada pelo puro pensamento.
Esses três exemplos nos mostram que, desde os seus começos, a Filosofia preocupouse com o problema do conhecimento, pois sempre esteve voltada para a questão do
verdadeiro. Desde o início, os filósofos se deram conta de que nosso pensamento parece
seguir certas leis ou regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e
pensar. Pensamos a partir do que percebemos ou pensamos negando o que percebemos? O
pensamento continua, nega ou corrige a percepção? O modo como os seres nos aparecem é o
modo como os seres realmente são?
Sócrates e os sofistas
Preocupações como essas levaram, na Grécia clássica, a duas atitudes filosóficas: a
dos sofistas e a de Sócrates – com eles, os problemas do conhecimento tornaram-se centrais.
Os sofistas, diante da pluralidade e do antagonismo das filosofias anteriores, ou dos
conflitos entre as várias ontologias, concluíram que não podemos conhecer o Ser, mas só
podemos ter opiniões subjetivas sobre a realidade.
Por isso, para se relacionarem com o mundo e com os outros humanos, os homens
devem valer-se de um outro instrumento – a linguagem – para persuadir os outros de suas
próprias idéias e opiniões. A verdade é uma questão de opinião e de persuasão, e a linguagem
é mais importante do que a percepção e o pensamento.
Em contrapartida, Sócrates, distanciando-se dos primeiros filósofos e opondo-se aos
sofistas, afirmava que a verdade pode ser conhecida, mas primeiro devemos afastar as ilusões
dos sentidos e as das palavras ou das opiniões e alcançar a verdade apenas pelo pensamento.
Os sentidos nos dão as aparências das coisas e as palavras, meras opiniões sobre elas.
Conhecer é passar da aparência à essência, da opinião ao conceito, do ponto de vista
individual à idéia universal de cada um dos seres e de cada um dos valores da vida moral e
política.
Platão e Aristóteles
Sócrates fez a Filosofia preocupar-se com nossa possibilidade de conhecer e indagar
quais as causas das ilusões, dos erros e da mentira. No esforço para definir as formas de
conhecer e as diferenças entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão, Platão e Aristóteles
introduziram na Filosofia a idéia de que existem diferentes maneiras de conhecer ou graus de
conhecimento e que esses graus se distinguem pela ausência ou presença do verdadeiro, pela
ausência ou presença do falso.
Platão distingue quatro formas ou graus de conhecimento, que vão do grau inferior ao
superior: crença, opinião, raciocínio e intuição intelectual. Para ele, os dois primeiros graus
devem ser afastados da Filosofia – são conhecimentos ilusórios ou das aparências, como os
dos prisioneiros da caverna – e somente os dois últimos devem ser considerados válidos. O
raciocínio treina e exercita nosso pensamento, preparando-o para uma purificação intelectual
que lhe permitirá alcançar uma intuição das idéias ou das essências que formam a realidade ou
que constituem o Ser.
Para Platão, o primeiro exemplo do conhecimento puramente intelectual e perfeito
encontra-se na matemática, cujas idéias nada devem aos órgãos dos sentidos e não se reduzem
a meras opiniões subjetivas. O conhecimento matemático seria a melhor preparação do
pensamento para chegar à intuição intelectual das idéias verdadeiras, que constituem a
verdadeira realidade.
Platão diferencia e separa radicalmente duas formas de conhecimento: o conhecimento
sensível (crença e opinião) e o conhecimento intelectual (raciocínio e intuição) afirmando que
somente o segundo alcança o Ser e a verdade. O conhecimento sensível alcança a mera
aparência das coisas, o conhecimento intelectual alcança a essência das coisas, as idéias.
Aristóteles distingue sete formas ou graus de conhecimento: sensação, percepção,
imaginação, memória, raciocínio e intuição. Para ele, ao contrário de Platão, nosso
conhecimento vai sendo formado e enriquecido por acumulação das informações trazidas por
todos os graus, de modo que, em lugar de uma ruptura entre o conhecimento sensível e o
intelectual, Aristóteles estabelece uma continuidade entre eles.
A separação se dá entre os seis primeiros graus e o último, ou a intuição, que é
puramente intelectual ou um ato do pensamento puro. Essa separação, porém, não significa
que os outros graus ofereçam conhecimentos ilusórios ou falsos e sim que oferecem tipos de
conhecimentos diferentes, que vão de um grau menor a um grau maior de verdade.
Em cada um deles temos acesso a um aspecto do Ser ou da realidade e, na intuição
intelectual, temos o conhecimento pleno e total da realidade ou dos princípios da realidade
plena e total, aquilo que Aristóteles chamava de ―o Ser enquanto Ser‖.
A diferença entre os seis primeiros graus e o último decorre da diferença do objeto do
conhecimento, isto é, os seis primeiros graus conhecem objetos que se oferecem a nós na
sensação, na imaginação, no raciocínio, enquanto o sétimo lida com um objeto que só pode
ser alcançado pelo pensamento puro.
Princípios gerais
Com os filósofos gregos, estabeleceram-se alguns princípios gerais do conhecimento
verdadeiro:
? as fontes e as formas do conhecimento: sensação, percepção, imaginação, memória,
linguage m, raciocínio e intuição intelectual;
? a distinção entre o conhecimento sensível e o conhecimento intelectual;
? o papel da linguagem no conhecimento;
? a diferença entre opinião e saber;
? a diferença entre aparência e essência;
? a definição dos princípios do pensamento verdadeiro (identidade, não contradição,
terceiro excluído, causalidade), da forma do conhecimento verdadeiro (idéias, conceitos e
juízos) e dos procedimentos para alcançar o conhecimento verdadeiro (indução, dedução,
intuição);
? a distinção dos campos do conhecimento verdadeiro, sistematizados por Aristóteles
em três ramos: teorético (referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar,
sem agir sobre eles ou neles interferir), prático (referente às ações humanas: ética, política e
economia) e técnico (referente à fabricação e ao trabalho humano, que pode interferir no
curso da Natureza, criar instrumentos ou artefatos: medicina, artesanato, arquitetura, poesia,
retórica, etc.).
Para os gregos, a realidade é a Natureza e dela fazem parte os humanos e as
instituições humanas. Por sua participação na Natureza, os humanos podem conhecê-la, pois
são feitos dos mesmos elementos que ela e participam da mesma inteligência que a habita e
dirige.
O poeta alemão Goethe criou estes versos, que exprimem como os antigos concebiam
o conhecimento:
Se os olhos não fossem solares
Jamais o Sol nós veríamos;
Se em nós não estivesse a própria força divina,
Como o divino sentiríamos?
O intelecto humano conhece a inteligibilidade do mundo, alcança a racionalidade do
real e pode pensar a realidade porque nós e ela somos feitos da mesma maneira, com os
mesmos elementos e com a mesma inteligência.
Os filósofos modernos e o nascimento da teoria do conhecimento
Quando se diz que a teoria do conhecimento tornou-se uma disciplina específica da
Filosofia somente com os filósofos modernos (a partir do século XVII) não se pretende dizer
que antes deles o problema do conhecimento não havia ocupado outros filósofos, e sim que,
para os modernos, a questão do conhecimento foi considerada anterior à da ontologia e précondição ou pré-requisito para a Filosofia e as ciências.
Por que essa mudança de perspectiva dos gregos para os modernos? Porque entre eles
instala-se o cristianismo, trazendo problemas que os antigos filósofos desconheciam.
A perspectiva cristã introduziu algumas distinções que romperam com a idéia grega de
uma participação direta e harmoniosa entre o nosso intelecto e a verdade, nosso ser e o
mundo. O cristianismo fez distinção entre fé e razão, verdades reveladas e verdades racionais,
matéria e espírito, corpo e alma; afirmou que o erro e a ilusão são parte da natureza humana
em decorrência do caráter pervertido de nossa vontade, após o pecado original.
Em consequência, a Filosofia precisou enfrentar três problemas no vos:
1. Como, sendo seres decaídos e pervertidos, podemos conhecer a verdade?
2. Sendo nossa natureza dupla (matéria e espírito), como nossa inteligência pode
conhecer o que é diferente dela? Isto é, como seres corporais podem conhecer o incorporal
(Deus) e como seres dotados de alma incorpórea podem conhecer o corpóreo (mundo)?
3. Os filósofos antigos consideravam que éramos entes participantes de todas as
formas de realidade: por nosso corpo, participamos da Natureza; por nossa alma, participamos
da Inteligência divina. O cristianismo, ao introduzir a noção de pecado original, introduziu a
separação radical entre os humanos (pervertidos e finitos) e a divindade (perfeita e infinita).
Com isso, fez surgir a pergunta: como o finito (humano) pode conhecer a verdade (infinita e
divina)?
Eis porque, durante toda a Idade Média, a fé tornou-se central para a Filosofia, pois era
através dela que essas perguntas eram respondidas. Auxiliada pela graça divina, a fé
iluminava nosso intelecto e guiava nossa vontade, permitindo à nossa razão o conhecimento
do que está ao seu alcance, ao mesmo tempo em que nossa alma recebia os mistérios da
revelação. A fé nos fazia saber (mesmo que não pudéssemos compreender como isso era
possível) que, pela vontade soberana de Deus, era concedido à nossa alma imaterial conhecer
as coisas materiais.
Os filósofos modernos, porém, não aceitaram essas respostas e por esse motivo a
questão do conhecimento tornou-se central para eles.
Os gregos se surpreendiam que pudesse haver erro, ilusão e mentira. Como a verdade
– aletheia – era concebida como presença e manifestação do verdadeiro aos nossos sentidos
ou ao nosso intelecto, isto é, como presença do Ser à nossa experiência sensível ou ao puro
pensamento, a pergunta filosófica só podia ser:
Como é possível o erro ou a ilusão? Ou seja, como é possível ver o que não é, dizer o
que não é, pensar o que não é?
Para os modernos, a situação é exatamente contrária. Se a verdade depende da
revelação e da vontade divinas, e se nosso intelecto foi pervertido pela nossa vontade
pecadora, como podemos conhecer a verdade? Se a verdade depender da fé e se depender da
fraqueza da nossa vontade, como nossa razão poderá conhecê-la?
O cristianismo, particularmente com santo Agostinho, trouxe a idéia de que cada ser
humano é uma pessoa. Essa idéia vem do Direito Romano, que define a pessoa como um
sujeito de direitos e de deveres. Se somos pessoas, somos responsáveis por nossos atos e
pensamentos. Nossa pessoa é nossa consciência, que é nossa alma dotada de vontade,
imaginação, memória e inteligência.
A vontade é livre e, aprisionada num corpo passional e fraco, pode mergulhar nossa
alma na ilusão e no erro. Estar no erro ou na verdade dependerá, portanto, de nós mesmos e
por isso precisamos saber se podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal
conhecimento é possível. Os primeiros filósofos cristãos e os medievais afirmavam que
podemos conhecer a verdade, desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no
tocante às verdades últimas e principais.
A primeira tarefa que os modernos se deram foi a de separar fé de razão, considerando
cada uma delas destinada a conhecimentos diferentes e sem qualquer relação entre si. A
segunda tarefa foi a de explicar como a almaconsciência, embora diferente dos corpos, pode
conhecê-los. Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa
intelectualmente por meio das idéias e estas são imateriais como a própria alma.
A terceira tarefa foi a de explicar como a razão e o pensamento podem tornar-se mais
fortes do que a vontade e controlá-la para que evite o erro. O problema do conhecimento
torna-se, portanto, crucial e a Filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana de
conhecer, pelo entendimento ou sujeito do conhecimento. A teoria do conhecimento volta-se
para a relação entre o pensamento e as coisas, a consciência (interior) e a realidade (exterior),
o entendimento e a realidade; em suma, o sujeito e o objeto do conhecimento.
Os dois filósofos que iniciam o exame da capacidade humana para o erro e a verdade
são o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes. O filósofo que propõe, pela primeira
vez, uma teoria do conhecimento propriamente dita é o inglês John Locke. A partir do século
XVII, portanto, a teoria do conhecimento torna-se uma disciplina central da Filosofia.
Bacon e Descartes
Os gregos indagavam: como o erro é possível? Os modernos perguntaram: como
a verdade é possível? Para os gregos, a verdade era aletheia, para os modernos,
veritas. Em outras palavras, para os modernos trata-se de compreender e explicar como os
relatos mentais – nossas idéias – correspondem ao que se passa verdadeiramente na realidade.
Apesar dessas diferenças, os filósofos retomaram o modo de trabalhar filosoficamente
proposto por Sócrates, Platão e Aristóteles, qual seja, começar pelo exame das opiniões
contrárias e ilusórias para ultrapassálas em direção à verdade.
Antes de abordar o conhecimento verdadeiro, Bacon e Descartes examinaram
exaustivamente as causas e as formas do erro, inaugurando um estilo filosófico que
permanecerá na Filosofia, isto é, a análise dos preconceitos e do senso comum.
Bacon elaborou uma teoria conhecida como a crítica dos ídolos (a palavra ídolo vem
do grego eidolon e significa imagem). Descartes, como já mencionamos, elaborou um método
de análise conhecido como dúvida metódica.
De acordo com Bacon, existem quatro tipos de ídolos ou de imagens que formam
opiniões cristalizadas e preconceitos, que impedem o conhecimento da verdade:
1. ídolos da caverna: as opiniões que se formam em nós por erros e defeitos de nossos
órgãos dos sentidos. São os mais fáceis de corrigir por nosso intelecto;
2. ídolos do fórum: são as opiniões que se formam em nós como conseqüência da
linguagem e de nossas relações com os outros. São difíceis de vencer, mas o intelecto tem
poder sobre eles;
3. ídolos do teatro: são as opiniões formadas em nós em decorrência dos poderes das
autoridades que nos impõem seus pontos de vista e os transformam em decretos e leis
inquestionáveis. Só podem ser refeitos se houver uma mudança social e política;
4. ídolos da tribo: são as opiniões que se formam em nós em decorrência de nossa
natureza humana; esses ídolos são próprios da espécie humana e só podem ser vencidos se
houver uma reforma da própria natureza humana.
Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas, as mudanças sociais
e políticas e o desenvolvimento das ciências e da Filosofia propiciariam uma grande reforma
do conhecimento humano, que seria também uma grande reforma na vida humana. Tanto
assim que, ao lado de suas obras filosóficas, escreveu uma obra filosófico-política, a Nova
Atlântida, na qual descreve e narra uma sociedade ideal e perfeita, nascida do conhecimento
verdadeiro e do desenvolvimento das técnicas.
Descartes localizava a origem do erro em duas atitudes que chamou de atitudes
infantis:
1. a prevenção, que é a facilidade com que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões
e idéias alheias, sem se preocupar em verificar se são ou não verdadeiras. São as opiniões que
se cristalizam em nós sob a forma de preconceitos (colocados em nós por pais, professores,
livros, autoridades) e que escravizam nosso pensamento, impedindo-nos de pensar e de
investigar;
2. a precipitação, que é a facilidade e a velocidade com que nossa vontade nos faz
emitir juízos sobre as coisas antes de verificarmos se nossas idéias são ou não são verdadeiras.
São opiniões que emitimos em conseqüência de nossa vontade ser mais forte e poderosa do
que nosso intelecto. Originam-se no conhecimento sensível, na imaginação, na linguagem e
na memória.
Como Bacon, Descartes também está convencido de que é possível vencer esses
efeitos, graças a uma reforma do entendimento e das ciências. (Descartes não pensa na
necessidade de mudanças sociais e políticas, diferindo de Bacon nesse aspecto.) Essa reforma
pode ser feita pelo sujeito do conhecimento, se este decidir e deliberar pela necessidade de
encontrar fundamentos seguros para o saber. Para isso Descartes criou um procedimento, a
dúvida metódica, pela qual o sujeito do conhecimento, analisando cada um de seus
conhecimentos, conhece e avalia as fontes e as causas de cada um, a forma e o conteúdo de
cada um, a falsidade e a verdade de cada um e encontra meios para livrar-se de tudo quanto
seja duvidoso perante o pensamento. Ao mesmo tempo, o pensamento oferece ao espírito um
conjunto de regras que deverão ser obedecidas para que um conhecimento seja considerado
verdadeiro.
Para Descartes, o conhecimento sensível (isto é, sensação, percepção, imaginação,
memória e linguagem) é a causa do erro e deve ser afastado. O conhecimento verdadeiro é
puramente intelectual, parte das idéias inatas e controla (por meio de regras) as investigações
filosóficas, científicas e técnicas.
Locke
Locke é o iniciador da teoria do conhecimento propriamente dita porque se propõe a
analisar cada uma das formas de conhecimento que possuímos, a origem de nossas idéias e
nossos discursos, a finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente
relacionadas com os objetos que ele pode conhecer. Seguindo a trilha que fora aberta por
Aristóteles, Locke também distingue graus de conhecimento, começando pelas sensações até
chegar ao pensamento.
Comparemos o que escreveu Aristóteles, no início da Metafísica, e o que afirmou
Locke, no início do Ensaio sobre o entendimento humano.
Aristóteles escreveu:
Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer. O prazer causado
pelas sensações é a prova disso, pois, mesmo fora de qualquer utilidade, as
sensações nos agradam por si mesmas e, mais do que todas as outras, as
sensações visuais.
Locke afirmou:
Visto que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis e
dá-lhe toda vantagem e todo domínio que tem sobre eles, seu estudo consiste
certamente num tópico que, por sua nobreza, é merecedor de nosso trabalho
de investigá-lo. O entendimento, como o olho, que nos faz ver e perceber
todas as outras coisas, não se observa a si mesmo; requer arte e esforço
situá-lo à distância e fazê-lo seu próprio objeto.
Assim como Aristóteles diferia de Platão, Locke difere de Descartes.
Platão e Descartes afastam a experiência sensível ou o conhecimento sensível do
conhecimento verdadeiro, que é puramente intelectual. Aristóteles e Locke consideram que o
conhecimento se realiza por graus contínuos, partindo da sensação até chegar às idéias.
Essa diferença de perspectiva estabelece as duas grandes orientações da teoria do
conhecimento, conhecidas como racionalismo e empirismo.
Para o racionalismo, a fonte do conhecimento verdadeiro é a razão operando por si
mesma, sem o auxílio da experiência sensível e controlando a própria experiência sensível.
Para o empirismo, a fonte de todo e qualquer conhecimento é a experiência sensível,
responsável pelas idéias da razão e controlando o trabalho da própria razão.
Essas diferenças, porém, não impedem que haja um elemento comum a todos os
filósofos a partir da modernidade, qual seja, tomar o entendimento humano como objeto da
investigação filosófica.
Tornar o entendimento objeto para si próprio, tornar o sujeito do conhecimento objeto
de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a modernidade filosófica inaugura, ao
desenvolver a teoria do conhecimento. Como se trata da volta do conhecimento sobre si
mesmo para conhecer-se, ou do sujeito do conhecimento colocando-se como objeto para si
mesmo, a teoria do conhecimento é a reflexão filosófica.
TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM:
http://bahiapsicosocial.com.ar/biblioteca/Convite%20%20Filosofia%20%20Marilena%20Chaui.pdf
ÉMILE DURKHEIM
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca)
Filloux, Jean-Claude.
Émile Durkheim / Jean-Claude Filloux; tradução:
Celso do Prado Ferraz de Carvalho, Miguel Henrique Russo. – Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
148 p.: il. – (Coleção Educadores)
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7019-557-9
1. Durkheim, David Émile, 1858-1917. 2. Educação – Pensadores –
História. I. Título.
CDU 37
Sistema social e subsistema escolar
Durkheim estudou essencialmente a ―socialização das jovens gerações‖ na escola,
dentro do ―sistema escolar‖ – que, às vezes, chama de ―a máquina‖. Trata-se de um órgão que
preenche uma função, mas que vai buscar sua significação nesse sistema global que é, por
exemplo, uma sociedade nacional. A originalidade de Durkheim foi a de mostrar que, apesar
desse ―subsistema‖ ser dependente do todo social, ele tem, mesmo assim, as características
estruturais próprias a todo sistema social, o que lhe dá uma ―autonomia relativa‖ e, como todo
sistema social, ele é simultaneamente submetido a forças de permanência e a forças de
mudança: forças de permanência que têm sua fonte no sistema de conjunto e forças de
mudança, em resposta às necessidades emergentes e que lhe são próprias.
A abordagem durkheimiana do subsistema escolar e de sua evolução, a seu ver
necessária, deve, portanto, ser compreendida em sua homologia com o modelo da dinâmica
social que elaborou. Convém lembrar as grandes linhas do modelo durkheimiano.
Neste, a noção de ―consciência coletiva‖ é central. Uma sociedade é feita de
indivíduos que ―conseguem viver‖ juntos porque têm em comum valores e regras,
parcialmente transmitidos pela escola. A sociedade, enquanto objeto construído pela
sociologia, não é nem transcendente, nem imanente aos indivíduos: ela tem uma
especificidade definida pelos parâmetros de integração (subordinação ao grupo) e de
regulação (reconhecimento de regras que controlam os comportamentos individuais).
Essa ―consciência coletiva‖ traduz-se em fenômenos coletivos, que vão do nível
propriamente psíquico das representaçõescoletivas ao das instituições e ao de um substrato
material (volume e densidade da população, vias de comunicação, edifícios etc.).
Durkheim recorre à metáfora da ―cristalização‖, para designar essa presença da
consciência coletiva em todos os setores da vida social. Aqui, é preciso particularizar dois
pontos: de uma parte, os ―patamares‖ das representações e das instituições comportam
aspectos tanto formalizados (ideologias constituídas, direito escrito), como não formalizados
(representações efervescentes, costumes); de outra parte, existem elos de causalidade, tanto no
sentido substrato-instituições-representações, como no sentido inverso: representaçõesinstituições-substrato.
É esse modelo de análise que permite a Durkheim colocar a problemática da mudança:
as representações coletivas novas que emergem tendem a traduzir-se em novas instituições,
bastando para tanto que essas representações correspondam a novas necessidades sociais.
Entra-se, então, em períodos nos quais devem ser resolvidos conflitos entre forças de
estagnação e forças de evolução. Assim, a intensificação da divisão do trabalho nas
sociedades modernas exige que se dê uma importância maior ao indivíduo, o que dá origem a
ideologias ―individualistas‖, que, por sua vez, suscitam a emergência de instituições
protetoras dos ―direitos humanos‖.
Ora, segundo Durkheim, esse esquema geral vale também para o sistema escolar. O
sociólogo da educação poderá identificar, na constituição da escola e em um dado momento
da história, representações pedagógicas – algumas, formalizadas e outras, ―efervescentes‖ –,
instituições e, sem dúvida, um substrato (a organização da classe, a estrutura do colégio).
Essas três ―instâncias‖ estão evidentemente articuladas ao sistema da sociedade global,
porém, têm uma autonomia relativa, na medida em que todo sistema responde a necessidades
que lhe são próprias, – no caso, necessidades ―pedagógicas‖.
A esse respeito, um texto de 1905, que trata do ensino secundário, é bastante
significativo: ―Um sistema escolar, qualquer que seja, é formado por duas espécies de
elementos. De um lado, há todo um conjunto de disposições definidas e estáveis, de métodos
estabelecidos, ou seja, em uma palavra, de instituições; mas, ao mesmo tempo, dentro da
máquina assim constituída, há ideias que a trabalham e que a solicitam para que mude. Visto
do lado de fora, o ensino secundário apresenta-se a nós como um conjunto de
estabelecimentos, cuja organização material e moral está determinada; mas, de outro lado,
essa mesma organização abriga em si aspirações em busca de algo. Sob essa vida fixada,
consolidada, há uma vida em movimento que, por estar mais escondida, nem por isso deve ser
tratada com negligência.‖ (A Evolução e o Papel do Ensino Secundário na França, in
Educação e sociologia, 1905, p. 122).
Em seu curso, publicado com o título de A evolução pedagógica na França, Durkheim
utiliza uma grande análise que mostra como a história dos ensinos secundário e superior desde
a Idade Média está marcada por uma série de mudanças que correspondem, ao mesmo tempo,
a uma evolução política e econômica, ao aparecimento de mentalidades e de necessidades
novas e, na escala do sistema escolar afetado por essas mudanças, por novas aspirações
pedagógicas parcialmente autônomas. O panorama proposto por Durkheim nesse curso
mostra claramente que as ―renascenças pedagógicas‖ não refletem somente o contexto geral,
mas ilustram também a forma pela qual a escola assume as necessidades emergentes, ainda
não institucionalizadas, da sociedade política como um todo. É assim que os ―saberes
escolares‖, que constituem, numa dada época, o ―conteúdo‖ do ensino, podem dar origem a
―categorias de pensamento‖, que, por sua vez, influenciam a evolução das representações
coletivas de uma sociedade.
Dinâmica social e pedagógica
Se entendermos, com Durkheim, a pedagogia como sendo a teorização, implícita ou
explícita, da prática educativa, coloca-se, então, a questão de saber qual poderá ser a
contribuição da ciência da educação para a pedagogia. Mais precisamente, em que aspecto a
sociologia da modernidade poderá influenciar não somente a análise do sistema educativo,
mas também as pedagogias que nele são praticadas?
O fato de que a sociedade moderna funda-se sobre uma industrialização e uma divisão
crescentes das tarefas traz como consequência uma diferenciação cada vez maior dos papéis
sociais, a especialização das funções sociais e, no fim, um risco de ruptura da ―solidariedade
social‖. Esse risco deve ser contrabalançado, diz Durkheim, pelo desenvolvimento dos valores
supremos, os que dizem respeito à legitimação dos direitos, à responsabilidade e à vocação
dos atores sociais.
Durkheim atual
Por outro lado, a abordagem sócio-histórica adotada por Durkheim em A evolução
pedagógica na França foi, de certa forma, retomada por historiadores, como Pierre Riché,
que considera que essa obra guarda ainda toda a sua atualidade13. Mas, pode-se falar, de uma
forma geral, da ―atualidade‖ de Durkheim, no duplo nível sociológico e pedagógico? Uma
leitura atual dos textos de Durkheim remete, com toda a evidência, a interrogações surgidas
no presente, particularmente as que se referem à educação moral. Sem dúvida, a confiança de
Durkheim no desenvolvimento inelutável dos valores humanistas nas sociedades modernas
pode, hoje, nos deixar perplexos,pois estamos confrontados a conflitos nos quais os
direitoshumanos são desacatados, porém, o próprio fato de que Durheim formulou –
implicitamente – o princípio de uma educação para os direitos humanos dá a seu pensamento
uma atualidade incontestável.
Num outro nível, poder-se-ia mostrar que ele orientou a pedagogia para uma tomada
de consciência da importância da classe, do meio escolar, das atitudes do mestre no processo
educativo: verdades ainda boas para serem ditas nos tempos atuais. Talvez também, as
contradições internas do pensamento durkheimiano sobre a educação, apontadas por nós (e
que Durkheim sabia assumir), notadamente no que se refere à problemática da ―autonomia da
vontade‖, nos ensinem que a educação não é uma coisa simples e não pode se submeter a
ideologias redutoras.
TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4657.pdf
PEDAGOGIA DA AUTONOMIA
Saberes Necessários à Prática Educativa
PAULO FREIRE
Capítulo 1
1.3 - Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos
Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o
dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classes populares,
chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária - mas também, como
há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses
saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Porque não aproveitar a experiência que tem
os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por
exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das
populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Porque não há lixões no
coração dos bairros rios e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é
considerada em si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta de
subversivo, dizem certos defensores da democracia.
Porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a
disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a
convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Porque não
estabelecer uma necessária "intimidade" entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos
e a experiência social que eles têm como indivíduos? Porque não discutir as implicações
políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes elas áreas pobres da cidade? A ética
de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a
escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os
conteúdos, transferí-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos.
1.4 - Ensinar exige criticidade
Não há para mim, na diferença e na "distancia" entre a ingenuidade e a criticidade,
entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente
rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em
que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser
curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade
epistemológica, metodicamente "rigorizando-se" na sua aproximação ao objeto, conota-se
seus achados de maior exatidão.
Na verdade, a curiosidade ingênua que, "desarmada", esta associada ao saber do senso
comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais
metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de
qualidade mas não de essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao
longo de minha experiência político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência
das injustiças, é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou menos espantada diante de
"não-eus", com que cientistas ou filósofos acadêmicos, "admiram" o mundo. Os cientistas e
filósofos superam, porém, a ingenuidade da curiosidade do camponês e se tornam
epistemologicamente curiosos.
A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de
algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de
atenção que sugere e alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade
sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo
que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.
Como manifestação presente a experiência vital, a curiosidade humana vem sendo
histórica e socialmente construída e reconstruída. Precisamente por que a promoção da
ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da
prática educativa-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica,
insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender "irracionalismos"
decorrentes do ou produzidos por certo excesso de "racionalidade" de nosso tempo altamente
tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de
negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrario é consideração de quem, de um lado, não
diviniza a tecnologia, mas, de outro, não há diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de
forma criticamente curiosa.
1.8 - Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática
O pensar certo sabe, por exemplo, que não é partir dele como um dado dado, que se
conforma a prática docente crítica, mas também que sem ele não se funda aquela. A prática
docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o
fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea,
"desarmada", indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a
que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito.
Este não é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura. Por isso, é fundamental que, na
prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo
não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais
escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo
tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. É
preciso, por outro lado, reinsistir em que a matriz do pensar ingênuo como a do crítico é a
curiosidade mesma, característica do fenômeno vital. Neste sentido, indubitavelmente, é tão
curioso o professor chamado leigo no interior de Pernambuco quanto o professor de Filosofia
da Educação na Universidade A ou B. o de que se precisa é possibilitar, que, voltando-se
sobre si mesma, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se
como tal, se vá tornando crítica.
Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o
da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que
se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica,
tem de ser tal modo concreto que quase se confunde com a prática. O seu "distanciamento"
epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise e maior comunicabilidade exercer
em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, que quanto mais me
assumo como estou assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do
estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica. Não é possível a
assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para
mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito também.
Seria porém exagero idealista, afirma que a assunção, por exemplo, de que fumar
ameaça minha vida, já significa deixar de fumar. Mas deixar de fumar passa, em algum
sentido, pela assunção do risco que corro ao fumar. Por outro lado, a assunção se vai fazendo
cada vez mais assunção na medida em que ela engendra novas opções, por isso mesmo em
que ela provoca ruptura, decisão e novos compromissos. Quando assumo o mal ou os males
que o cigarro me pode causar, movo-me no sentido de evitar os males. Decido, rompo, opto.
Mas, é na prática de não fumar que a assunção do risco que corro por fumar se concretiza
materialmente.
Me parece que há ainda um elemento fundamental na assunção de que falo: o
emocional. Além do conhecimento que tenho do mal que o fumo me faz, tenho agora, na
assunção que dele faço, legítima raiva do fumo. E tenho também a alegria de ter tido a raiva
que, no fundo, ajudou que eu continuasse no mundo por mais tempo. Está errada a educação
que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as in justiças, contra a
deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente
formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em
raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade.
1.9 - Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural
É interessante estender mais um pouco a reflexão sobre a assunção. O verbo assumir é
um verbo transitivo e que pode ter como objeto que assim se assume. Eu tanto assumo risco
que corro ao fumar quanto me assumo enquanto sujeito da própria assunção. Deixamos claro
que, quando digo ser fundamental para deixar de fumar a assunção de que fumar ameaça a
vida, com assunção eu quero sobretudo me referir ao conhecimento cabal que obtive do fumar
e de suas conseqüências. Outro sentido mais radical tem assunção ou assumir quando digo:
Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que
os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam
a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser
pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva
porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto.
A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a "outredade" do "não eu",
ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu.
A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de
classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa
progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a
assunção de nos por nós mesmos. É isso que o puro treinamento do professor não faz,
perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmática visão do processo.
A experiência histórica, política, cultural e social dos homens e das mulheres jamais
poder se dar "virgem" do conflito entre as forças que obstaculizam a busca da assunção de si
por parte dos indivíduos e dos grupos e das forças em favor daquela assunção. A formação
docente que se julgue superior a essas "intrigas" não faz outra coisa senão trabalhar em favor
dos obstáculos. A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade
menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem a formação
democrática ema prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é
incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam
donos da verdade e do saber articulado.
Às vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um
simples gesto do professor. O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como
força formadora ou como contribuição à do educando por si mesmo. Nunca me esqueço, na
história já longa de minha memória, de um desses gestos de professor que tive na
adolescência remota. Gesto cuja significação mais profunda talvez tenha passado
despercebida por ele, o professor, e que teve importante influencia sobre mim. Estava sendo,
então, um adolescente inseguro, vendo-me como um corpo anguloso e feio, percebendo-me
menos capaz do que os outros, fortemente incerto de minhas possibilidades. Era muito mais
mal-humorado que apaziguado com a vida. Facilmente me eriçava. Qualquer consideração
feita por um colega rico da classe já me parecia o chamamento à atenção de minhas
fragilidades, de minha insegurança.
O professor trouxera de casa os nossos trabalhos escolares e, chamando-nos um a um,
devolvia-os com o ser ajuizamento. Em certo momento me chama e, olhando ou re-olhando o
meu texto, sem dizer palavra, balança e cabeça numa demonstração de respeito e de
consideração. O gesto do professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu à minha
redação. O gesto do professor me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que
era possível trabalhar e produzir. De que era possível confiar em mim mas que seria tão
errado confiar além dos limites quanto errado estava sendo não confiar.
Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas
do espaço escolar, é algo sobre que teríamos de refletir seriamente. É uma pena que o caráter
socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou
deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos,
ensino, lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma
das razoes que explicam este caso em trono do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não
seja a atividade ensinante, vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é
aprender. No fundo, passa despercebido a nós que foi aprendendo socialmente que mulheres e
homens, historicamente, descobriram que é possível ensinar. Se tivesse claro para nós que foi
aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a
importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das
escolas nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo,
de pessoal docente se cruzam cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos
espaços tão lamentavelmente relegados das escolas. Em A Educação na cidade chamei a
atenção para esta importância quando discuti o estado em que a administração de Luiza
Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São Paulo em 1989. O descaso pelas
condições materiais das escolas alcançava níveis impensáveis. Nas minhas primeiras visitas à
rede quase devastada eu me perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínimo de
respeito às carteiras escolares, à mesa, às paredes se o Poder Público revela absoluta
desconsideração à coisa publica? É incrível que não imaginemos a significação do "discurso"
formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloqüência do discurso
"pronunciado" na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas
flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço.
Pormenores assim da cotidianeidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que
quase sempre pouca ou nenhuma atenção se dá, têm na verdade um peso significativo na
avaliação da experiência docente. O que importa, na formação docente, não é a repetição
mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das
emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser
"educado", vai gerando a coragem.
Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do
exercício da criatividade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade
epistemológica, e do outro, sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da
afetividade, da intuição ou adivinhação. Conhecer não é, de fato, adivinhar, com intuir. O
importante, não resta dúvida, é não pararmos satisfeitos ao nível das intuições, mas submetêlas à análise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemológica.
Capítulo 2
Ensinar não é transferir conhecimento
As considerações ou reflexões até agora vêm sendo desdobramentos de um primeiro
saber inicialmente apontado como necessário à formação docente, numa perspectiva
progressista. Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para
a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar
sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições, um
ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho - a ele ensinar e não a de
transferir conhecimento.
É preciso insistir: este saber necessário ao professor - que ensinar não é transferir
conhecimento - não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razoes
de ser - ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa ser
constantemente testemunhado, vivido.
Como professor num curso de formação docente não posso esgotar minha prática
discursando cobre a Teoria da não extensão do conhecimento. Não posso apenas falar bonito
sobre as razoes ontológicas, epistemológicas e políticas da Teoria. O meu discurso sobre a
Teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da teoria. Sua encarnação. Ao falar da
construção do conhecimento, criticando a sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a
construção, estar envolvendo os alunos.
Fora disso, me emaranho na rede das contradições em que meu testemunho,
inautêntico, perde eficácia. Torno-me não falso quanto quem pretende estimular o clima
democrático na escola por meios e caminhos autoritários. Tão fingido quanto quem diz
combater o racismo mas, perguntando se conhece Madalena, diz: "Conheço-a é negra mas é
competente e decente." Jamais ouvi ninguém dizer que conhece Célia, que ela é loura, de
olhos azuis, mas é competente e decente. No discurso perfilado de Madalena, negra, sabe a
conjunção adversativa mas, no que contorna Célia, loura de olhos azuis, a conjunção
adversativa é um não-senso. A compreensão do papel das conjunções que, ligando sentenças
entre si, impregnam a relação que estabelecem de certo sentido, o de causalidade, falo porque
recuso o silêncio, de adversidade, tentaram domina-lo mas não conseguiram, o de finalidade,
Pedro lutou para que ficasse clara a sua posição, o de integração, Pedro sabia que ela voltaria,
não é suficiente para explicar o uso da adversativa mas na relação entre a sentença Madalena
é negra e Madalena é competente e docente. A conjunção mas aí, implica um juízo falso,
ideológico: sendo negra, espera-se que Madalena nem seja competente nem decente. Ao
reconhecer-se, porém, sua decência e sua competência a conjunção mas se tornou
indispensável. No caso de Célia, é um disparate que, sendo loura de olhos azuis não seja
competente e decente. Daí o não-senso da adversativa. A razão é ideológica e não gramatical.
Pensar certo - e saber que ensinar não é transferir conhecimento é fundamentalmente
pensar certo - é uma postura exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante
dos outros e com os outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil, não
porque pensar certo seja forma própria de pensar de santos e de anjos e a que nós
arrogantemente aspirássemos. É difícil, entre outras coisas, pela vigilância constante que
temos de exercer sobre nós próprios para evitar os simplismos, as facilidades, as incoerências
grosseiras. É difícil porque nem sempre temos o valor indispensável pêra não permitir que a
raiva que podemos ter de alguém vire raivosidade que gera um pensar errado e falso. Por mais
que me desagrade uma pessoa não posso menosprezá-la com um discurso em que, cheio de
mim mesmo, decreto sua incompetência absoluta. Discurso em que, cheio de mim mesmo,
trato-a com desdém, do alto de minha falsa superioridade. A mim não me dá raiva mas pena
quando pessoas assim raivosas, arvoradas em figuras de gênio, me minimizam e destratam.
É cansativo, por exemplo, viver a humildade, condição "sine qua" do pensar certo, que
nos faz proclamar o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e anunciar a superação
que sofremos.
O clima do pensar certo não tem nada que ver com o das formulas preestabelecidas,
mas seria a negação do pensar certo se pretendêssemos forja-lo na atmosfera da licenciosidade
ou do espontaneísmo. Sem rigorosidade metódica não há pensar certo.
2.1 - Ensinar exige consciência do inacabamento
Como professor crítico, sou um "aventureiro" responsável, predisposto à mudança, à
aceitação diferente. Nada do que experimentei em minha atividade docente deve
necessariamente repetir-se. Repito, porém, como inevitável, a franquia de mim mesmo,
radical, diante dos outros e do mundo. Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo é a
maneira radical como me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente
do inacabamento.
Aqui chegamos a ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento de
ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência
vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se
tornou consciente. A invenção da existência a partir dos materiais que a vida oferecia levou
homens e mulheres a promover o suporte em que os outros animais continuam, em mundo.
Seu mundo, mundo dos homens e das mulheres. A experiência humana no mundo muda de
qualidade com relação à vida animal no suporte. O suporte é o espaço, restrito ou alongado, a
que o animal se prende "afetivamente" tanto quanto para resistir, é o espaço necessário a seu
crescimento e que delimita seu domínio. É o espaço em que, treinando, adestrado, "aprende" a
sobreviver, a caçar, a atacar, a defender-se num tempo de dependência dos adultos
imensamente menos do que é necessário ao ser humano para as mesmas coisas. Quanto mais
cultural é o ser maior a sua infância, sua dependência de cuidados especais. Faltam ao
"movimento" dos outros animais no suporte a linguagem conceitual, a inteligibilidade do
próprio suporte de que resultaria inevitavelmente a comunicabilidade do inteligido, o espanto
diante da vida mesma, do que há nela de mistério. No suporte, os comportamentos dos
indivíduos têm sua explicação muito mais na espécie a que pertencem os indivíduos do que
neles mesmos. Falta-lhes liberdade de opção. Por isso, não se fala em ética entre os elefantes.
A vida no suporte não implica a linguagem nem a postura ereta que permitiu a
liberação das mãos. Mãos que, em grande medida, nos fizeram. Quanto maior se foi tornando
a solidariedade entre mentes e mãos, tanto mais o suporte foi virando mundo e a vida,
existência. O suporte veio fazendo-se mundo e a vida, existência, na proporção que o corpo
humano vira corpo consciente, captador, apreendedor, transformador, criador de beleza e não
"espaço" vazio a ser enchido por conteúdos.
A invenção da existência envolve, repita-se, necessariamente, a linguagem, a cultura, a
comunicação em níveis mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no
domínio da vida, a "espiritualização" do mundo, a possibilidade de embelezar como enfear o
mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos. Capazes de intervir no
mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações,
de dignificantes testemunhos, mas capazes também de impensáveis exemplos de baixeza e de
indignidade. Só os seres que se tornam éticos podem romper com a ética. Não se sabe de
tigres africanos que tenham jogado bombas altamente destruidoras em "cidades" de tigres
asiáticos.
No momento em que os seres humanos, intervindo no suporte, foram criando o
mundo, inventando a linguagem, com que passaram a dar nome às coisas que faziam com a
ação sobre o mundo, na medida em que se foram habilitando a inteligir o mundo e criaram por
conseqüência a necessária comunicabilidade do inteligido, já não foi possível existir a não ser
disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e indignidade,
decência e o despudor, entre boniteza e a feiúra do mundo. Quem dizer, já não foi possível
existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. E tudo
isso nos traz de novo à imperiosidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética.
E tudo isso nos traz de novo à radicalidade de esperança. Sei que as coisas podem até piorar,
mas sei também que é possível intervir para melhorá-las.
Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco,
irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que
serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja
de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente,
porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que meu
"destino" não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso
me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja
feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto
na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade.
2.3 - Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educado
Outro saber necessário à prática educativa, e que se funde na mesma raiz que acabo de
discutir - a da inconclusão do ser que se sabe inconcluso -, é o que fala do respeito decido à
autonomia do ser educando. Do educando criança, jovem ou adulto. Como educador, devo
estar constantemente advertido com relação a este respeito que implica igualmente o que devo
ter por mim mesmo. Não faz mal repetir afirmação varias vezes feita neste texto - o
inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos.
O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um
favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos podemos
desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação, por isso é imprescindível
deixar claro que a possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de
transgressão. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a
sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o
professor que ironiza o aluno, que minimiza, que manda que "ele se ponha em seu lugar" ao
mais tênue sinal de sua rebeldia legitima, tanto quanto o professor que se exige do
cumprimento de seu dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência
formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa
existência. É neste sentido que o professor autoritário, que por isso mesmo afoga a liberdade
do educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto. Tanto quanto o
professor licencioso rompe com a radicalidade do ser humano - a de sua inconclusão
assumida em que se enraíza a eticidade. É neste sentido também que a dialogicidade
verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no
respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados,
assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos.
É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou
entendida como virtude, mas como ruptura com a decência. O que quero dizer é o seguinte:
que alguém se torne machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como transgressor
da natureza humana. Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou
filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre negritude, dos homens sobre as
mulheres, dos patrões sobre os empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar contar
ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A
boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar.
Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática
em tudo coerente com este saber.
2.5 - Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores
Se há algo que os educandos brasileiros precisam saber, desde a mais tenra idade, é
que a luta em favor do respeito aos educadores e à educação inclui que a briga por salários
menos imorais é um dever irrecusável e não só um direito deles. A luta dos professores em
defesa de seus direitos e de sua dignidade deve ser entendida como um momento importante
de sua prática docente, enquanto prática ética. Não é algo que vem de fora da atividade
docente, mas algo que dela faz parte. O combate em favor da dignidade da prática docente é
tão parte dela mesma quanto dela faz o respeito que o professor deve ter à identidade do
educando, à sua pessoa, a seus direito de ser. Um dos piores males que o poder público vem
fazendo a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade brasileira foi criada, é o de
fazer muitos de nós correr o risco de, a custo de tanto descaso pela educação publica,
existencialmente cansados, cair no indiferentismo fatalistamente cínico que leva ao
cruzamento dos braços. "Não há o que fazer" é o discurso acomodado que não podemos
aceitar.
O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez,
que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e
da tolerância. Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da
real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu
desconhecimento? Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem
aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se
não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me
comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que
faço sob pena de não fazê-lo bem. Desrespeitando como gente no desprezo a que é relegada a
prática pedagógica não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exercela mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta política, consciente, crítica e organizada
contra os ofensores. Aceito até abandona-la, cansado, à procura de melhores dias. O que não é
possível é, ficando nela, avilta-la com o desdém de mim mesmo e dos educandos.
Uma das formas de luta contra o desrespeito dos poderes públicos pela educação, de
um lado, é a nossa recusa a transformar nossa atividade docente em puro bico, e de outro, a
nossa rejeição a entende-la e a exerce-la como prática afetiva de "tias e tios".
É como profissionais idôneos - na competência que se organiza politicamente está
talvez a maior força dos educadores - que eles e elas devem ver-se a si mesmos e a si mesmas.
É nesse sentido que os órgãos de classe deveriam priorizar o empenho de formação
permanente dos quadros do magistério como tarefa altamente política e repensar a eficácia das
greves. A questão que se coloca, obviamente, não é parar de lutar, mas reconhecendo-se que a
luta é uma categoria histórica, reinventar a forma também histórica de lutar.
2.6 - Ensinar exige apreensão da realidade
Outro saber fundamental à experiência educativa é o que se diz respeito à sua
natureza. Como professor preciso me mover com clareza na minha prática. Preciso conhecer
as diferentes dimensões que caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais
seguro no meu próprio desempenho.
O melhor ponto de partida para estas reflexões é a inconclusão do ser humano de que
se tornou consciente. Como vimos, aí radica a nossa educabilidade bem como a nossa
inserção num permanente movimento de busca em que, curiosos e indagadores, não apenas
nos damos conta das coisas mas também delas podemos ter um conhecimento cabal. A
capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar mas sobretudo para transformar a
realidade, para nela intervir, recriando-a, fala de nossa educabilidade e um nível distinto do
nível do adestramento dos outros animais ou do cultivo das plantas.
A nossa capacidade de aprender, de que decorre a de ensinar, sugere ou, mais do que
isso, implica a nossa habilidade de aprender a substantividade do objeto que nos é possível
reconstruir um mal aprendizado, o em que o aprendiz foi puro paciente da transferência do
conhecimento feita pelo educador.
Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos
capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em que aprender é uma aventura criadora,
algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para
nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à
aventura do espírito.
Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa
demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina,
daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e
aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu
caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a
prática educativa de ser política, de não poder ser neutra. Especificamente humana e educação
é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de meios, de técnicas,
envolve frustrações, medos, desejos. Exige de mim, como professor, uma competência geral,
um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à minha atividade docente.
Como professor, se minha opção é progressista e venho sendo coerente com ela, se
não me posso permitir a ingenuidade de pensar-me igual ao educando, de desconhecer a
especificidade da tarefa do professor, não posso, por outro lado, negar que o meu papel
fundamental é contribuir positivamente para que o educando vá sendo o artífice de sua
formação com a ajuda necessária do educador. Se trabalho com crianças, devo estar atento à
difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia, atento à responsabilidade de
minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da busca
inquieta dos educandos, se trabalho com jovens ou adultos, não menos atento devo estar com
relação a que o meu trabalho possa significar com estimulo ou não à ruptura necessária com
algo defeituosamente assentado e à espera de superação. Primordialmente, minha posição tem
de ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar. Não posso negar-lhe ou
esconder-lhe minha postura mas não posso desconhecer o seu direito de rejeita-la. Em nome
do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção
política assumindo uma neutralidade que não existe. Esta, a omissão do professor em nome do
respeito ao aluno, talvez seja a melhor maneira de desrespeita-lo. O meu papel, ao contrario, é
o de quem testemunha o direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e estimular a
assunção desde direito por parte dos educandos.
Recentemente, num encontro publico, um jovem recém-entrado na universidade me
disse cortesmente:
"Não entendo como o senhor defende os sem-terra, no fundo, uns baderneiros,
criadores de problemas".
"Pode haver baderneiros entre os sem-terra", disse, "mas sua luta é legitima e ética".
"Baderneira"é a resistência reacionária de quem se opõe a ferro e fogo à reforma
agrária. A moralidade e a desordem estão na manutenção de uma "ordem" injusta.
A conversa aparentemente morreu aí. O moço apertou minha mão em silêncio. Não sei
como terá "tratado" a questão depois, mas foi importante que tivesse dito o que pensava e que
tivesse ouvido de mim o que me parece justo que devesse ser dito.
É assim que venho tentando ser professor, assumindo minhas convicções, disponível
ao saber, sensível à boniteza da prática educativa, instigando por seus desafios que não lhe
permitem burocratizar-se, assumindo minhas limitações, acompanhadas sempre do esforço
por superá-las, limitações que não procuro esconder em nome mesmo do respeito que me
tenho e aos educandos.
2.8 - Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível
Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou a realidades
marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tornando
convivência, que seu estar no contexto vá virando estar com ele, é o saber do futuro como
problema e não como inexorabilidade. É o saber da História como possibilidade e não como
determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente,
interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não
é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de
ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da
História, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar. No próprio
mundo físico minha constatação não me leva à impotência.
O conhecimento sobre os terremotos desenvolveu toda uma engenharia que nos ajuda
a sobreviver a eles. Não podemos eliminá-los mas podemos diminuir os danos que nos
causam.
Constatando,
nos
tornamos
capazes
de
intervir
na
realidade,
tarefa
incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de
nos adaptar a ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição
ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o
matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com
os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas.
A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha,
intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos
fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como
se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante
mundo, alheado de nós e nós dele.
Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?
Que sentido teria a atividade de Danilson no mundo que descortinávamos do pontilhão
se, para ele, estivesse decretado por um destino todo poderoso a impotência daquela gente
fustigada pela carência? Restaria a Danilson trabalhar apenas a possível melhora de
performance da população no processo irrecusável de sua adaptação à negação da vida. A
prática de Danilson seria assim o elogio da resignação. Porém na medida em que para ele,
como para mim, o futuro é problemático e não inexorável, outra tarefa se nos oferece. A de,
discutindo a problematicidade do amanhã, tornando-a tão óbvia quanto a carência de tudo na
favela, ir tornando igualmente óbvio que a adaptação à dor, à fome, ao desconforto, à falta de
higiene que o eu de cada um, como corpo e alma, experimenta é uma forma de resistência
física a que se vai juntando outra, a cultural. Resistência ao descaso ofensivo de que os
miseráveis são objetos. No fundo, as resistências - a orgânica e/ou a cultural dos oprimidos. O
sincretismo religioso afro-brasileiro expressa a resistência ou a manha com que a cultura
africana escrava se defendia do poder hegemônico do colonizador branco.
É preciso, porém, que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na
compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da
natureza humana em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa resignação em face
das ofensas que nos destroem o ser. Não é na resignação mas na rebeldia em face das
injustiças que nos afirmamos.
Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes
em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do
mundo. A rebeldia é ponto de partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é
suficiente. A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e
crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a
dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de superação, no fundo,
o nosso sonho.
É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil mas é possível, que vamos
programar nossa ação político - pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos
comprometemos é de alfabetização de adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de
evangelização, se de formação de mão - de - obra técnica.
O êxito de educadores como Danilson está centralmente nesta certeza que jamais os
deixa de que é possível mudar, de que é preciso mudar, de que preservar situações concretas
de miséria é uma imoralidade. É assim que este saber que a História vem comprovando se
erige em princípio de ação e abre caminho à constituição, na prática, de outros saberes
indispensáveis.
Não se trata obviamente de impor à população expoliada e sofrida que se rebele, que
se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na
verdade - não importa se trabalhamos com alfabetização, com saúde, com evangelização ou
com todas elas - , de, simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos,
desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda
injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda, que sua situação concreta não é
destino certo ou vontade de Deus, algo que não pode ser mudado.
Não posso aceitar como tática do bom combate a política do quanto pior melhor, mas
não posso também aceitar, impassível, a política assistencialista que, anestesiando a
consciência oprimida, prorroga, "sine die", a necessária mudança da sociedade. Não posso
proibir que os oprimidos com quem trabalho numa favela votem em candidatos reacionários,
mas tenho o dever de adverti-los do erro que cometem, da contradição em que se emaranham.
Votar no político reacionário é ajudar a preservação do "status quo". Como posso votar, se
sou progressista e coerente com minha opção, num candidato em cujo discurso, faiscante de
desamor, anuncia seus projetos racistas?
Partindo de que a experiência da miséria é uma violência e não a expressão da
preguiça popular ou fruto da mestiçagem ou da vontade punitiva de Deus, violência contra
que devemos lutar, tenho, enquanto educador, de me ir tornando cada vez mais competente
sem o que a luta perderá eficácia. É que o saber de que falei - mudar é difícil mas é possível -,
que me empurra esperançoso à ação, não é suficiente para a eficácia necessária a que me
referi. Movendo-me enquanto nele fundado preciso ter e renovar saberes específicos em cujo
campo minha curiosidade se inquieta e minha prática se baseia. Como alfabetizar sem
conhecimentos precisos sobre a aquisição da linguagem, sobre linguagem e ideologia, sobre
técnicas e métodos do ensino da leitura e da escrita? Por outro lado, como trabalhar, não
importar em que campo, no da alfabetização, no da produção econômica em projetos
cooperativos, no da evangelização ou no da saúde sem ir conhecendo as manhas com que os
grupos humanos produzem sua própria sobrevivência?
Como educador preciso de ri "lendo" cada vez melhor a leitura do mundo que os
grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu
é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações
políticos-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito.
Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo.
E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo "leitura do mundo" que
precede sempre a "leitura da palavra".
Se, de um lado, não posso me adaptar ou me "converter" ao saber ingênuo dos grupos
populares, de outro, não posso, se realmente progressista, impôr-lhes arrogantemente o meu
saber como o verdadeiro. O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua
história social como a experiência igualmente social de seus membros, vai revelando a
necessidade de superar certos saberes que, desnudados, vão mostrando sua "incompetência"
para explicar os fatos.
Um dos equívocos funestos de militantes políticos de prática messianicamente
autoritária foi sempre desconhecer totalmente a compreensão do mundo dos grupos populares.
Vendo-se como portadores da verdade salvadora, sua tarefa irrecusável não é propô-la mas
impô-la aos grupos populares.
Recentemente, ouvi de jovem operário num debate sobre a vida na favela que já se
fora o tempo em que ele tinha vergonha de ser favelado. "Agora", dizia, "me orgulho de nós
todos, companheiros e companheiras, do que temos feito através de nossa luta, de nossa
organização.. Não é o favelado que deve ter vergonha da condição de favelado mas quem,
vivendo bem e fácil, nada faz para mudar a realidade que causa a favela. Aprendi isso com a
luta". É possível que esse discurso do jovem operário não provocasse nada ou quase nada o
militante autoritariamente messiânico. É possível até que a reação do moço mais
revolucionarista do que revolucionário fosse negativa à fala do favelado, entendida como
expressão de quem se inclina mais para a acomodação do que para a luta. No fundo, o
discurso do jovem operário era a leitura nova que fazia de sua experiência social de favelado.
Se ontem se culpava, agora e tornava capaz de perceber que não era apenas responsabilidade
sua se achar naquela condição. Mas, sobretudo, se tornava capaz de perceber que a situação
de favelado não é irrevogável. Sua luta foi mais importante na constituição do seu novo saber
do que o discurso sectário do militante messianicamente autoritário.
É importante salientar que o novo momento na compreensão da vida social não é
exclusivo de uma pessoa. A experiência que possibilita o discurso novo é social. Uma pessoa
ou, porém, se antecipa na explicitar da nova percepção da mesma realidade. Uma das tarefas
fundamentais do educador progressistas é, sensível à literatura e a releitura do grupo, provocálo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão do contexto.
É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a
inculcação nos dominados da responsabilidades por sua situação. Daí a culpa que sentem eles,
em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com suas classes dominantes
por se acharem nesta ou naquela situação desvantajosa. É exemplar a resposta que recebi de
mulher sofrida, em São Francisco, Califórnia, numa instituição católica de assistência aos
pobres. Falava com dificuldade do problema que a afligia e eu, quase sem ter o que dizer,
afirmei indagando: Você é norte-americana, não é?
"Não. Sou pobre", respondeu como se estivesse pedindo desculpas à "norteamericanidade" por seu insucesso na vida. Me lembro de seus olhos azuis marejados de
lágrimas expressando seu sofrimento e a assunção da cultura pelo seu "fracasso" no mundo.
Pessoas assim fazem parte das legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua
dor na perversidade do sistema social, econômico, político em que vivem, mas na sua
incompetência. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam o poder
do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante.
A alfabetização, por exemplo, numa área de miséria, só ganha sentido na dimensão
humana se, com ela, se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social de que vá
resultando a extrojeção da culpa indevida. A isto corresponde a "expulsão" do opressor de
"dentro" do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa
de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade. Saliente-se contudo que, não
obstante a relevância ética e política do esforço conscientizador que acabo de sublinhar, não
se pode parar nele, deixando-se relegado para um plano secundário o ensino da escrita e da
leitura da palavra. Não podemos, numa perspectiva democrática, transformar uma classe de
alfabetização num espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão de ser dos fatos
nem tampouco num "comício libertador". A tarefa fundamental dos Danilson entre que me
situo é experimentar com intensidade a dialética entre "a leitura do mundo" e a "leitura da
palavra".
"Programados para aprender" e impossibilitados de viver sem a referência de um
amanhã, onde quer que haja mulheres e homens há sempre o que fazer, há sempre o que fazer,
há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender.
Nada disso, contudo, cobra sentido, para mim, se realizado contra a vocação para o
"ser mais", histórica e socialmente constituído-se, em que mulheres e homens nos achamos
inseridos.
Capítulo 3
3.3 - Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo.
Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática
educativo-crítica é o de que, como experiência especificamente humana, a educação é uma
forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem
ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia
dominante quanto o seu esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu
desmascaramento. Dialética e contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só a outra
dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante.
Neutra, indiferente a qualquer destas hipóteses, a da reprodução da ideologia
dominante ou de sua contestação, a educação jamais foi, é, ou pode ser. È um erro decretá-la
como tarefa apenas reprodutora da ideologia dominante como erro é tomá-la como uma força
de desocultação da realidade, a atuar livremente, sem obstáculos e duras dificuldades. Erros
que implicam diretamente visões defeituosas da História e da consciência.
De um lado, a compreensão mecanicista da História, que reduz a consciência a puro
reflexo da materialidade, e de outro, o subjetivismo idealista, que hipertrofia o papel da
consciência no acontecer histórico. Nem somos, mulheres e homens, seres simplesmente
determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais,
históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e a que nos achamos referidos.
Do ponto de vista dos interesses dominantes, não há dúvida de que a educação deve
ser uma prática imobilizadora e ocultadora de verdades. Toda vez, porém, que a conjuntura o
exige, a educação dominante é progressista pela metade. As forças dominantes estimulam e
materializam avanços técnicos compreendidos e, tanto quanto possível, realizados de maneira
neutra. Seria demasiado ingênuo, até angelical de nossa parte, esperar que a bancada ruralista
aceitasse quieta e concordante a discussão, nas escolas rurais e mesmo urbanas do país, da
reforma agrária como projeto econômico, político e ético da maior importância para o próprio
desenvolvimento nacional. Isso é tarefa para educadoras e educadores progressistas cumprir,
dentro e fora das escolas. É tarefa para organizações não-governamentais, para sindicatos
democráticos realizar. Já não é ingênuo esperar, porém, que o empresariado que se moderniza,
progressista em face da truculência retrógrada dos ruralistas, se esvazia de humanismo quando
da confrontação entre o interesses humanos e os de mercado.
E é uma imoralidade, para mim, que se sobreponha, como se vem fazendo, aos
interesses radicalmente humanos, os do mercado.
Continuo bem aberto à advertência de Marx, a da necessária radicalidade que me faz
sempre desperto a tudo o que diz respeito à defesa dos interesses humanos. Interesses
superiores aos de puros grupos ou de classes de gente.
Ao reconhecer que, precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar, se
comparar, de avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos
seres éticos e se abriu para nós a probabilidade de transgredir a ética, jamais poderia aceitar a
transgressão como direito mas como uma possibilidade. Possibilidade contra que devemos
lutar e não diante da qual cruzar os braços. Daí a minha recusa rigorosa aos fatalismos
quietistas que terminam por absorver as transgressões éticas em lugar de condená-las. Não
posso virar conivente de uma ordem perversa, irresponsabilizando-a por sua malvadez, ao
atribuir a força cegas e imponderáveis os danos por elas causados aos seres humanos.
A fome frente a frente à abastança e o desemprego no mundo são imoralidades e não
fatalidades como o reacionarismo apregoa com ares de quem sofre por nada poder fazer. O
que quero repetir, com força, e que nada justifica a minimização dos seres humanos, no caso
das maiorias compostas de minorias que não perceberam ainda que juntas seriam a maioria.
Nada, o avanço da ciência e/ou da tecnologia, pode legitimar uma ordem desordeira em que
só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às maiorias em dificuldades até para
sobreviver se diz que a realidade é assim mesmo, que sua fome é uma fatalidade do fim do
século. Não junto a minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos
esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música.
Falo da resistência, da indignação, da justa ira dos traídos e dos enganados. Do seu direito e
do seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais
sofridas.
A ideologia fatalista do discurso e da política neoliberais de que venho falando é um
momento daquela desvalia acima referida dos interesses humanos em relação aos do mercado.
Dificilmente um empresário moderno concordaria com que seja direito de seu
operário, por exemplo, discutir durante o processo de sua alfabetização ou no
desenvolvimento de algum curso de aperfeiçoamento técnico, esta mesma ideologia a que me
venho referindo. Discutir, suponhamos, a afirmação: "O desemprego no mundo é uma
fatalidade do fim do século." E por que fazer a reforma agrária não é também um fatalidade?
E por que acabar com a fome e com a miséria não são igualmente fatalidades de que não se
pode fugir?
É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar o
máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates ideológicos que a nada
levam. O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se
constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da
recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana.
Naturalmente, reinsisto, o empresário moderno aceita, estimula e patrocina o treino
técnico de seu operário. O que ele necessariamente recusa é a sua formação que, envolvendo o
saber técnico e científico indispensável, fala de sua presença no mundo. Presença humana,
presença ética, aviltada toda vez que transformada em pura sombra.
Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra,
minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige
de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja
e a favor não importa o que. Não posso ser professor a favor simplesmente do homem ou da
humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática
educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o
autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de
direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de
discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou
professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura.
Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o
desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria
prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este
saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado,
corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que
cansa mas não desiste. Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo,
arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar.
Assim como não posso ser professor sem me achar capacitado para ensinar certo e
bem os conteúdos de minha disciplina não posso, por outro lado, reduzir minha prática
docente ao puro ensino daqueles conteúdos. Esse é um momento apenas de minha atividade
pedagógica. Tão importante quanto ele, o ensino dos conteúdos, é o meu testemunho ético ao
ensina-los. É a decência com que o faço. É a preparação científica revelada sem arrogância,
pelo contrário, com humildade. É o respeito jamais negado ao educando, a seu saber de
experiência feito que busco superar com ele. Tão importante quanto o ensino dos conteúdos é
a minha coerência entre o que digo, o que escrevo e o que faço.
É importante que os alunos percebam o esforço que faz o professor ou a professora
procurando sua coerência. É preciso também que este esforço seja de quando em vez
discutido na classe. Há situações em que a conduta da professora pode parecer aos alunos
contraditória. Isto se dá quase sempre quando o professor simplesmente exerce sua autoridade
na coordenação das atividades na classe e parece seus alunos que ele, o professor, exorbitou
de seu poder. Às vezes, é o próprio professor que não está certo de ter realmente ultrapassado
o limite de sua autoridade ou não.
3.7 - Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica.
Saber igualmente fundamental à prática educativa do professor ou da professora é o
que diz respeito à força, às vezes maior do que pensamos. Da ideologia. É o que nos adverte
de suas manhas, das armadilhas em que nos faz cair. É que a ideologia tem que ver
diretamente com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar
ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna "míopes".
O poder da ideologia me faz pensar nessas manhãs orvalhadas de nevoeiro em que mal
vemos o perfil dos ciprestes como sombras que parecem muito mais manchas das sombras
mesmas. Sabemos que há algo metido na penumbra mais não o divisamos bem. A própria
"miopia" que nos acomete dificulta a percepção mais clara, mais nítida da sombra. Mais séria
ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos é o que
na verdade é, e não a verdade distorcida. A capacidade de penumbrar a realidade, de nos
"miopizar", de nos ensurdecer que tem a ideologia faz, por exemplo, a muitos de nós, aceitar
docilmente o discurso cinicamente fatalista neo-liberal que proclama ser o desemprego no
mundo uma desgraça do fim do século. Ou que os sonhos morreram e que o válido hoje é o
"pragmatismo" pedagógico, é o treino técnico-científico do educando e não sua formação de
que já não se fala. Formação que, incluindo a preparação técnico-científica, vai mais além
dela.
A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente aceitar
que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou de um destino que não
poderia se evitar, uma quase entidade metafísica e não um momento do desenvolvimento
econômico submetido, como toda produção econômica capitalista, a uma certa orientação
política ditada pelos interesses dos que detêm o poder. Fala-se, porém, em globalização da
economia como um momento necessário da economia mundial a que, por isso mesmo, não é
possível escapar. Universaliza-se um dado do sistema capitalista e um instante da vida
produtiva de certas economias capitalistas hegemônicas como se o Brasil, o México, a
Argentina devessem participar da globalização da economia da mesma forma que os Estados
Unidos, a Alemanha, o Japão. Pega-se o trem no meio do caminho e não se discutem as
condições anteriores e atuais das diferentes economias. Nivelam-se os patamares de deveres
entre as distintas economias sem se considerarem as distâncias que separam os "direitos" dos
fortes e o seu poder de usufruí-los e a fraqueza dos débeis para exercer os seus direitos. Se a
globalização implica a superação de fronteiras, a abertura sem restrições ao livre comércio,
acabe-se então quem não puder resistir. Não se indaga, por exemplo, se em momentos
anteriores da produção capitalista nas sociedades que lideram a 'globalização hoje elas eram
radicais na abertura que consideram agora uma condição indispensável ao livre comércio.
Exigem, no momento, dos outros, o que não fizeram consigo mesmas. Uma das eficácias de
sua ideologia fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a
realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer mas a seguir a ordem natural dos fatos.
Pois é como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esforça por nos fazer
entender a globalização e não como uma produção histórica.
O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do
mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se
optarmos, na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta
ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, de
medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da
globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e
verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no
neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca.
Espero, convencido de que chegará o tempo em que, passada a estupefação em face da
queda do muro de Berlim, o mundo se refará e recusará a ditadura do mercado, fundada na
perversidade de sua ética do lucro.
Não creio que as mulheres e os homens do mundo, independentemente até de suas
opções políticas, mas sabendo-se e assumindo-se como mulheres e homens, como gente, não
aprofundem o que hoje já existe como uma espécie de mal-estar que se generaliza em face da
maldade neoliberal. Mal-estar que determinará por consolidar-se numa rebeldia nova em que
a palavra crítica, o discurso humanista, o compromisso solidário, a denúncia veemente da
negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo "genteficado" serão armas de
incalculável alcance.
Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes
trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e
a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a dos à "fereza" da ética do mercado.
É neste sentido que jamais abandonei a minha preocupação primeira, que sempre me
acompanhou, desde os começos de minha experiência educativa. A preocupação com a
natureza humana a que devo a minha lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx
já fazia minhas as palavras: já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses
humanos. Nenhuma teoria da transformação político-social do mundo me comove, sequer, se
não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da história e
por ela feitos, seres da decisão , da ruptura, da opção. Seres éticos, mesmo capazes de
transgredir a ética indispensável, algo de que tenho insistentemente "falado" neste texto.
Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saber-me um ser condicionado
mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento. A grande força sobre que alicerçar-se a
nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo
das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana.
Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a
aposta no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas
agressivas e injustas de que transgride a própria ética. A liberdade do comércio não pode
acima da liberdade do ser humano. A liberdade de comércio sem limite é licenciosidade do
lucro. Vira privilégio de uns poucos que, em condições favoráveis, robustece seu poder contra
os direitos de muitos, inclusive o direito de sobreviver. Uma fábrica de tecido que fecha por
não poder concorrer com os preços da produção asiática, por exemplo, significa não apenas o
colapso econômico financeiro de seu proprietário que pode ter sido ou não um transgressor da
ética universal humana, mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e trabalhadoras
do processo de produção. E suas famílias? Insisto, com a força que tenho e que posso juntar
na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na realidade
histórico-social à pura adaptação a ela. O desemprego no mundo não é,como disse e tenho
repetido, uma fatalidade. É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços
tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e
não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo.
O progresso cientifico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos
interesses humanos, ás necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação.
A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a
qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um
avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho
deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das
vítimas do progresso anterior. Como se vê, esta é uma questão ética e política e não
tecnológica. O problema me parece muito claro. Assim como não posso usar minha liberdade
de fazer coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos
outros para usar os avanços científicos e poderia ser livre para usar os avanços científicos e
tecnológicos que levam milhares de pessoas à desesperança. Não se trata, acrescentemos, de
inibir a pesquisa e frear os avanços mas de pô-los a serviço dos seres humanos. A aplicação
de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de
quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de
uma ética pequena, a do mercado, a do lucro.
Entre as transgressões à ética universal do ser humano, sujeitos à penalidade, deveria
estar a que implicasse a falta de trabalho a um sem-número de gentes, a sua desesperação e a
sua morte em vida.
A preocupação, por isso mesmo, com a formação técnico-profissional capaz de
reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses, teria de multiplicar-se.
Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino mas sei quão difícil é a
aplicação
de
uma
política
do
desenvolvimento
humano
que,
assim,
privilegie
fundamentalmente o homem e a mulher e não apenas o lucro. Mas sei também que, se
pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos, o caminho ético se impõe. Não
creio em nada sem ele ou fora dele. Se, de um lado, não pode haver desenvolvimento sem
lucro este não pode ser, por outro, o objetivo do desenvolvimento, de que o fim último seria o
gozo imoral do investidor.
De nada vale, a não ser enganosamente para uma minoria que terminaria fenecendo
também, uma sociedade eficazmente operada por máquinas altamente "inteligentes",
substituindo mulheres e homens em atividades as mais variadas, e milhões de Marias e Pedros
sem ter o que fazer, e este é um risco muito concreto que corremos.
Não creio também que a política a dar carne a este espírito ético possa jamais ser a
ditatorial, contraditoriamente de esquerda ou coerentemente de direita. O caminho autoritário
já é em si uma contravenção à natureza inquietamente indagadora, buscadora, de homens e de
mulheres que se perdem ao perderem a liberdade.
É exatamente por causa de tudo isso que como professor, devo estar advertido do
poder do discurso ideológico, começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na
verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a
natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de
persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir,
das coisas, dos acontecimentos. Não podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica,
discursos como estes:
"O negro é geneticamente inferior ao branco. É uma pena, mas é isso o que a ciência
nos diz."
"Em defesa de sua honra, o marido matou a mulher."
"Que poderíamos esperar deles, uns baderneiros, invasores de terra?"
"Essa gente é sempre assim: damos-lhe os pés e logo quer as mãos."
"Nós já sabemos o que o povo quer e do que precisa. Perguntar-lhe seria uma perda de
tempo."
"O saber erudito a ser entregue às massas incultas é a sua salvação."
"Maria é negra, mas é bondosa e competente."
"Esse sujeito é um bom cara. É nordestino, mas é sério e prestimoso".
"Você sabe com quem está falando?"
"Que vergonha, homem se casar com homem, mulher se casar com mulher."
"É isso, você vai se meter com gentinha, é o que dá."
"Quando negro não suja na entrada, suja na saída."
"O governo tem que investir mesmo é nas áreas onde mora gente que paga imposto."
"Você não precisa pensar. Vote em fulano, que pensa por você."
"Você, desempregado, seja grato. Vote em quem ajudou você. Vote em fulano de tal."
"Está se vendo, pela cara, que se trata de gente fina, de trato, que tomou chá em
pequeno e não de um pé-rapado qualquer."
"O professor falou sobre a Inconfidência Mineira."
"O Brasil foi descoberto por Cabral."
No exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideologia, vou gerando
certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente. A
necessidade desta resistência crítica, por exemplo, me predispõe, de um lado, a uma atitude
sempre aberta aos demais, aos dados da realidade; de outro, a uma desconfiança metódica que
me defende de tornar-me absolutamente certo de certezas. Para me resguardar das artimanhas
da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me enclausurar no
ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva e desperta a
minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de
forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me
admita como proprietário da verdade. No fundo, a atitude correta de quem não se sente dono
da verdade nem tampouco objeto acomodado do discurso alheio que lhe é autoritariamente
feito. Atitude correta de quem se encontra em permanente disponibilidade a tocar e a ser
tocado, a perguntar e a responder, a concordar e a discordar. Disponibilidade á vida e a seus
contratempos. Estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam, aos sinais
mais diversos que nos apelam, ao canto do pássaro, à chuva que cai ou que se anuncia na
nuvem escura, ao risco manso da inocência, à cara carrancuda da desaprovação, aos braços
que se abrem para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa. É na minha disponibilidade
permanente á vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade,
desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E
quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças,
tanto melhor me conheço e construo meu perfil.
TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM:
http://plataforma.redesan.ufrgs.br/biblioteca/pdf_bib.php?COD_ARQUIVO=17338
TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM:
http://professoradalton.blogspot.com.br/2011/05/clifford-geertz-capitulo-2-o-impactodo.html
DIÁLOGO, PARTICIPAÇÃO E AUTONOMIA NA EDUCAÇÃO A
DISTÂNCIA –
APROXIMAÇÕES ENTRE PAULO FREIRE E OTTO PETERS
Melita Hickel
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação/Escola Superior de Teologia - IEPG/EST
[email protected]
Ninguém educa ninguém,
ninguém educa a si mesmo,
os homens se educam entre si,
mediatizados pelo mundo.
Paulo Freire
A participação em eventos regionais, nacionais e internacionais, tanto no Brasil quanto
no Exterior, que abordam o tema da Educação a Distância (EAD) e a pesquisa que vem sendo
desenvolvida pela autora, pesquisa esta que culminará em sua tese de doutorado, tem
confirmado uma resposta positiva a um questionamento posto há alguns anos, quando do
início de sua trajetória na Pós-Graduação Stricto Sensu em Teologia - Área de Concentração:
Religião e Educação - no IEPG/EST, em São Leopoldo/RS.
A pergunta feita é: É possível afirmar que a "pedagogia" de Paulo Freire pode
contribuir para o entendimento e para o desenvolvimento da Educação a Distância?
E a resposta objetiva é: SIM.
Sim, é possível verificar traços do que Paulo Freire nos ensinou (e seus escritos
continuam a nos ensinar!!!) nesta modalidade de ensino que, a cada dia que passa, mais e
mais merece destaque nas manchetes dos jornais, nas Instituições de Ensino de todos os níveis
e nas vidas das pessoas das mais diversas esferas sociais.
Se é possível responder com apenas uma palavra e sermos enfáticos ao afirmar que os
ensinamentos de Paulo Freire contribuem para esta modalidade de ensino, a justificativa para
isso exige uma reflexão um pouco mais aprofundada, para que a leviandade de uma resposta
rápida e curta não possa ser imputada a este tema tão sério e de tão grande relevância para a
área da educação em todo o mundo.
Num país com tantas desigualdades sociais como o Brasil, em que tantas pessoas são
analfabetas de fato e há outros tantos cidadãos analfabetos funcionais, quem trabalha com
educação tem um vasto campo para atuar.
Além disso, sabe-se que, cada vez mais, temos que continuar aprendendo... é o
aprender a aprender que tem que ser ensinado.
O bom mestre não apenas faz com que seus alunos decorem regras e mais regras, para
reproduzi-las em provas e trabalhos, mas ensiná-os a procurar e, o mais importante, a
encontrar respostas a perguntas que a eles sejam feitas em qualquer época, local ou situação.
A Educação a Distância atualmente tem recebido grande destaque e popularidade,
porém, não é uma modalidade de ensino que tenha surgido recentemente, nem é um modismo.
Ela apenas ressurgiu com muita força devido aos grandes avanços tecnológicos ocorridos nas
últimas décadas.
Além disso, o uso da tecnologia é um imperativo ético tanto para o professor, para que
esse possa continuar a sua própria capacitação, como para o aluno, para que esse não seja
excluído. A tecnologia pode derrubar muros, transformar as aulas em comunidades de
trabalho e construir uma nova sociedade.
No Século XXI, temos vida e trabalho mediados pela tecnologia. Devemos, portanto,
aprender a usá-la crítica e criativamente.
Mesmo aqueles que só trabalham com a modalidade de ensino presencial deverão
dominar a tecnologia de Educação a Distância, pois essa servirá de enriquecimento àquela.
A Educação a Distância é vista como uma solução viável às restrições em atender a
crescente demanda por educação dos atuais sistemas de ensino presencial, além de ter uma
grande importância como agente democratizador da educação na nova era, a chamada
sociedade do conhecimento.
Mas voltando ao ―SIM‖, escolhemos três categorias de análise para justificar a
resposta dada, são elas: diálogo, participação e autonomia.
Estas três categorias estão presentes tanto na obra de Paulo Freire, como nos
ensinamentos do Prof. Dr. Otto Peters, fundador e primeiro reitor da FernUniversität de
Hagen, Alemanha.
A Educação a Distância é pensada como uma modalidade que precisa romper com as
lógicas que permeiam a aprendizagem no ensino presencial, por meio da incorporação de uma
característica comunicacional chave para esse processo: a interatividade e esta interatividade
pode, também, ser chamada de diálogo: diálogo entre todos os atores envolvidos nos cursos a
distância (aluno, professor, tutor, monitor).
O diálogo acontece, também, nos inúmeros eventos e reuniões que abordam este tema
e que têm contado com pesquisadores de diversas regiões do Brasil e do mundo. Nestas
ocasiões, as pessoas têm espaço para expressar seus pensamentos e opiniões, seus anseios e
projetos.
Além disso, há o diálogo também na construção da legislação brasileira de educação a
distância. O mais recente exemplo é a trajetória do Decreto 5622 de 2005, que, antes de ser
publicado, circulou pelas caixas postais da comunidade interessada no assunto e recebeu
sugestões antes de ser aprovado e entrar em vigor.
Com a concepção Diálogo, PETERS (2001) refere-se à interação linguística direta e
indireta entre docentes e discentes, portanto, refere-se ao diálogo que de fato acontece.
Para MOORE (1993), apud PETERS (2001)
Um diálogo é direcionado, construtivo e é apreciado pelos participantes. Cada uma das
partes presta respeitosa e interessada atenção ao que o outro tem a dizer. Cada uma das partes
contribui com algo para seu desenvolvimento e se refere às contribuições do outro partido.
Podem ocorrer interações negativas e neutras. O termo diálogo, no entanto, sempre se reporta
a interações positivas. Dá-se importância a uma solução conjunta do problema discutido,
desejando chegar a uma compreensão mais profunda dos estudantes.
Dessa forma, essa concepção está comprometida com a pedagogia humanista, onde o
diálogo de pessoa para pessoa tem importância central, desde que transcorra sem estruturas e
sem fim predeterminados.
A aprendizagem dialogal exige dos estudantes parceria, respeito, calor humano,
consideração, compreensão empática, sinceridade e autenticidade.
O diálogo tem uma importância muito grande no ensino e na aprendizagem na
Educação a Distância.
Destacando tal relevância, PETERS detém-se no estudo detalhado dessa concepção,
fazendo análises dos seguintes aspectos: didático-científico, didático-universitário, didáticoteleducativo, pedagógico, filosófico, antropológico, sociológico, e faz um balanço
intermediário sobre o diálogo.
Este diálogo faz com que a segunda categoria apareça, isto é, a participação. É
através do diálogo entre os diversos atores envolvidos com a Educação a Distância e entre os
participantes de cursos nesta modalidade de ensino que a participação acontece.
E esta participação ocorre em função da terceira categoria de análise, que é a
autonomia, isto é, em curso a distância, ninguém obriga ninguém a nada. Se o estudante não
tem iniciativa e autonomia de estudo, ele não acessa as páginas do curso que escolheu, aliás,
ele nem escolhe o curso.
Segundo PETERS, (2001),
O conceito ―autonomia‖ desempenhou papel importante na pedagogia alemã, porque
foi relacionada tradicionalmente à questão da pedagogia em sua fase de emancipação em
relação às demais ciências.
Peters, assim como faz na primeira concepção apresentada, a saber, diálogo, detém-se
nessa concepção apresentando o termo autonomia nas dimensões filosófica, pedagógica e
didática, devido a sua profundidade, abrangência e por o mesmo ―estar ancorado
multidimensionalmente em nosso pensamento‖.
Para PETERS (2001), ―o estudo autônomo desempenha papel importante na educação
de adultos e nas educações complementares‖.
A autonomia contrapõe-se ao ensino programado, por este ser totalmente estruturado e
não admitir obviamente a autonomia do estudante.
Certo é que a valorização ou o emprego de uma categoria em detrimento das outras
traz resultados negativos, ou seja, o ideal é haver o equilíbrio no uso delas.
TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM:
http://www.cead.ifmg.edu.br/site/downloads/dialogo_participacao_autonomia_em_ead.pdf
CIBERCULTURA:
O QUE MUDA NA
EDUCAÇÃO
Ano XXI Boletim 03 - Abril 2011
CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO
APRESENTAÇÃO DA SÉRIE
Rosa Helena Mendonça5
Na virtualidade, termo novo e, também, tão pouco conhecido para a maioria, vamos
nos educando por processos que aproximam fatos, lugares e histórias que antes, em geral,
eram tão distantes de nós e que hoje tomam espaço tempo em nossa cotidianidade. Nela,
vários autores têm ressaltado o fracionamento e a velocidade, mas também as possibilidades
de mudanças ainda não pensadas e os processos pedagógicos que estão sendo acrescentados
aos nossos processos educativos cotidianos.
Para Pierre Lévy, autor de Cibercultura2, o ciberespaço é a virtualização da comunicação. O uso das tecnologias em diferentes esferas da sociedade contemporânea favorece a ideia
de redes de conhecimento. E o que muda na educação presencial e a distância na emergência
da cibercultura?
Buscando resposta para esta e outras questões, a TV Escola, por meio do programa
Salto para o Futuro, apresenta mais uma série voltada para as reflexões sobre tecnologias e
redes.
A série Cibercultura: o que muda na educação, com a consultoria de Edméa Santos
(PROPED-UERJ), a partir das noções de currículo, didática e docência problematiza a
questão, discutindo três eixos temáticos: a Educação a Distância na cibercultura; a docência
online; o currículo multirreferencial.
Nos textos que compõem esta publicação, professores, professoras, gestores e comunidade escolar em geral encontrarão subsídios para ampliar a reflexão sobre a temática. Nos
programas televisivos que compõem a série, diferentes práticas comunicacionais e
pedagógicas serão apresentadas e discutidas por meio de reportagens e entrevistas com
pesquisadores, professores e alunos.
Esperamos, dessa forma, contribuir para aprendizagens colaborativas, em conexão
com diferentes mídias, considerando que os ‗espaços tempos‘ da educação na contemporaneidade são assumidamente mais amplos do que escolas e universidade. Na verdade, sempre
foi assim, primeiro porque houve um tempo em que essas instituições nem existiam.
Tendemos a nos esquecer disso! Depois, porque mesmo quando se procurava entre por muros
5
Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC).
separando as escolas do mundo lá fora, isso nunca foi de todo realizável, uma vez que
instituições são feitas por pessoas que transitam por essas fronteiras. Hoje, com a
popularização do acesso às tecnologias da informação e da comunicação e a ampliação das
chamadas redes sociais, muito menos podemos pensar que essas vivências estejam excluídas
dos currículos. E o futuro não para por aí!
Cada vez mais, no entanto, a mediação de professores e professoras se mostra
imprescindível, no sentido de, junto aos estudantes, refletir sobre o impacto das tecnologias
no cotidiano, as questões éticas que envolvem a sua utilização e a necessidade de esforço no
sentido de transformar informações em conhecimentos que possibilitem um mundo mais
equânime para todos.
CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO
INTRODUÇÃO
Edméa Santos6
A cibercultura é a cultura contemporânea estruturada pelo uso das tecnologias digitais
em rede nas esferas do ciberespaço e das cidades. Compreendemos tais esferas como campos
legítimos de pesquisa e formação, atribuindo-lhes o status de redes educativas. Atualmente, a
cibercultura vem se caracterizando pela emergência da Web 2.0 com seus softwares e redes
sociais mediadas pelas interfaces digitais em rede, pela mobilidade e convergência de mídias,
dos computadores e dispositivos portáteis e da telefonia móvel. Nesta série para o programa
Salto para o Futuro/TV Escola, interessa-nos compreender quais são as mudanças que
ocorrem e/ou poderão ocorrer nas práticas curriculares, da educação presencial e a distância,
em conexão com a cibercultura.
As pesquisas nos/dos/com os cotidianos sobre a formação de professores, cuja abordagem teórico-epistemológico-metodológica considera a ideia de redes de conhecimentos e
significações tecidas pelos praticantes em diversas redes educativas, indicam que a formação
se dá em múltiplos contextos. Entre eles, o das ‗práticasteorias‘ da formação acadêmica, o das
‗práticasteorias‘ pedagógicas cotidianas; o das ‗práticasteorias‘ das pesquisas em educação e o
das ‗práticasteorias‘ de produção e ‗usos‘ de mídias (Alves, 2010).
Nesse sentido, essa tendência em pesquisa pauta-se na relação complexa e interativa
entre as aprendizagens tecidas não apenas ao longo da formação acadêmica e do exercício da
profissão, mas também nas vivências nos diversos ‗espaçostempos‘ das cidades, considerando
que o docente interage e aprende com seus estudantes, seus pares, gestores, comunidade
escolar, com as mídias, com e em redes educativas multirreferenciais e com a sociedade mais
ampla.
Nesta série abordaremos as especificidades do tema “Cibercultura: o que muda na
Educação”. Ao longo de cinco programas, vamos discutir as práticas educativas mediadas
por tecnologias digitais em rede e pela produção cultural gerada pelo uso de interfaces, mídias
e redes no ciberespaço e nas cidades, e está organizada em três eixos temáticos:
6
Mestre e Doutora em Educação (FACED/UFBA). Professora adjunto da Faculdade de Educação da UERJ, atua
no PROPED - Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, na Linha de Pesquisa: Cotidiano, Redes
Educativas e Processos Culturais. Líder do GPDOC - Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura. Consultora da
série.
1) EAD: antes e depois da cibercultura;
2) A pesquisa e a cibercultura como fundamentos para a docência online;
3) O currículo multirreferencial: outros espaçostempos para a educação online.
Estes três eixos estão explicitados nas sinopses de cada texto da publicação eletrônica.
Com esses eixos temáticos, discutiremos as atuais práticas de educação mediadas pelas
tecnologias digitais de informação e comunicação, em especial as interfaces síncronas e
assíncronas encontradas no ciberespaço e nos ambientes virtuais de aprendizagem, que são
práticas quase sempre de EAD – Educação a Distância. Estas práticas vêm recuperando
noções de Currículo, Didática e Docência baseadas em teorias e práticas da EAD tradicionais
estruturadas pela razão instrumental, pelas mídias de massa e por pedagogias da transmissão
travestidas de ―tutoria‖. Aqui se tem como objetivos denunciar tais processos e apresentar a
Educação Online como um fenômeno da cibercultura (Santos, 2005, 2006, 2010).
A noção de Educação Online trazida por nós não separa mais as práticas da
modalidade de educação presencial das práticas de educação a distância, uma vez que, de
acordo com o que acreditamos, estar geograficamente dispersos não é estar distantes, especialmente quando tecnologias digitais em rede vêm proporcionando encontros e diálogos
síncronos e assíncronos e instituindo novas possibilidades de presencialidade em redes
educativas variadas.
Nesse contexto, é preciso compreender como se dá a formação de professores para a
docência online e alargar essas possibilidades, pois praticamente não contamos, ou contamos
muito pouco, com processos de formação inicial específicos em cursos de graduação. Os
processos de formação continuada vêm se instituindo em práticas e projetos pontuais e
contextualizados, de acordo com os modelos curriculares específicos de instituições –
públicas ou privadas – e de alguns docentes que vêm construindo e atuando na e pela internet
com seus desenhos curriculares autorais.
O desenho curricular de uma atividade online requer não só a preocupação com o
material voltado para os estudos ligados aos conteúdos a serem ministrados, mas também – e
sobretudo – com a forma como este material de estudos é disponibilizado no contexto de um
ambiente virtual de aprendizagem. Um ambiente virtual de aprendizagem é um conjunto de
interfaces digitais, que hospeda conteúdos e permite a comunicação, propiciando a expressão
e a autoria dos participantes que habitam tais interfaces. Forma-se um híbrido entre objetos
técnicos e seres humanos em processo de construção do conhecimento. Cada vez que um
novo participante habita, com sua autoria criadora, uma das interfaces de um ambiente virtual
de aprendizagem, o mesmo se auto-organiza, modificando não só o ambiente fisicamente,
como também, em potência, a aprendizagem de todos os praticantes da comunidade.
Não é o ambiente online que define e educação online. Ele condiciona, mas não a
determina. Tudo dependerá do movimento comunicacional e pedagógico dos sujeitos
envolvidos (SANTOS, 2005). Além de acreditarmos que só aprendemos porque o outro
colabora com sua experiência, sua inteligência e sua provocação, sabemos que temos
interfaces que favorecem a nossa comunicação de forma livre e plural. Neste contexto,
precisamos repensar o trabalho docente. É deste lugar que conceituamos educação online
como um fenômeno da cibercultura.
Assim, entendemos as práticas de Educação Online como um processo complexo (de
desterritorialização e reterritorialização de saberes e conhecimentos) que se institui a partir de
uma série de ações e situações de ensino-aprendizagem, ou atos de currículo (MACEDO,
2000), mediadas por interfaces digitais que potencializam práticas comunicacionais e
pedagógicas.
TEXTOS DA SÉRIE CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO 7
A série visa analisar as mudanças que ocorrem e/ou poderão ocorrer nas práticas
curriculares em conexão com a cibercultura. Ao longo dos programas, serão discutidas as
práticas de Educação a Distância mediadas por tecnologias digitais em rede e pela produção
cultural gerada por estas interfaces no ciberespaço e nas cidades.
TEXTO 1
EAD: ANTES E DEPOIS DA CIBERCULTURA
Lucila Pesce8
No primeiro texto da série é apresentada uma retrospectiva histórica (não linear) sobre
as práticas e processos curriculares da Educação a Distância, ressaltando-se que só com a
chegada da Internet foi possível começar a se pensar em desenhos didáticos que pudessem
contemplar processos interativos entre formandos e formadores, via fóruns e listas de
7
Estes textos são complementares à série Cibercultura: o que muda na Educação, com veiculação no programa
Salto para o Futuro/TV Escola de 25/04/2011 a 29/04/2011
8
Mestre e doutora em Educação: Currículo pela PUC/SP, com pós-doutorado em Filosofia e História da
Educação pela UNICAMP. Professora da UNIFESP
discussão. O texto destaca, ainda, os potenciais comunicacionais, pedagógicos, tecnológicos e
políticos das tecnologias digitais em rede.
O presente texto advoga a ideia de que o advento da cibercultura traz vastas
possibilidades para se repensar as hegemônicas práticas de Educação a Distância (EAD).
Inicia-se com uma brevíssima retomada histórica das principais mídias utilizadas na EAD, no
Brasil, e prossegue com considerações sobre a cibercultura, com o intuito de destacar sua
contribuição para a elaboração de cursos mais intertextuais, hipermidiáticos, dialógicos e
coautorais.
Estudos sobre a história da EAD no Brasil (BARROS, 1994; GIUSTA, 2002)
evidenciam que essa modalidade iniciou-se nas proximidades da década de 1940. A Fundação
do Instituto Rádio-Monitor, o Instituto Universal Brasileiro e o Projeto Minerva configuramse como os marcos históricos daquela época. Pautada notadamente em material impresso, a
primeira geração da EAD no Brasil cumpriu os fins a que se destinava: promover acesso ao
conhecimento socialmente legitimado a segmentos sociais menos favorecidos, mediante ações
de educação formal e não formal. Além do material impresso, o rádio também se situou como
importante difusor dos cursos oferecidos na EAD da época.
Com a chegada das fitas e vídeos cassete, a EAD incorporou estes dispositivos ao
desenho didático de seus cursos, com materiais instrucionais que, a partir de então, também
faziam uso destas mídias, em complemento ao rádio e ao material impresso. Anos mais tarde,
o CD e o DVD viriam a cumprir, respectivamente, as funções da fita e do vídeo cassete.
Entretanto, apesar da chegada desses dispositivos midiáticos, a lógica da mídia de massa
predominava nos cursos desenvolvidos em EAD, pois eles ainda eram pensados a partir de
uma abordagem instrucionista, em que o aluno seguia seu percurso de formação, com o apoio
dos materiais autoinstrucionais e, eventualmente, contava com algum tipo de interação com a
equipe de formação, por carta ou telefone.
Somente com a chegada da Internet é que foi possível começar a se pensar em
desenhos didáticos que pudessem contemplar processos interativos entre formandos e
formadores, via fóruns e listas de discussão. Contudo, a primeira geração da Internet ainda
não permitia a vivência plena da dialogia digital e da mediação partilhada (PESCE &
BRUNO, 2007) entre professores e alunos, pois aos estudantes cabia acessar as informações
do curso e, no melhor dos casos, interagir com o professor e com seus colegas de modo assíncrono, via fóruns e listas de discussão. A vivência do conceito de coautoria ainda não se
pronunciava.
Com a segunda geração da Internet, a chamada Web 2.0, é que a cibercultura se
consolida. Com a chegada da Web 2.0, a arquitetura intertextual, hipermidiática, dialógica e
coautoral da cibercultura pôde ser pensada com mais propriedade no âmbito educacional,
conforme veremos a seguir, a partir de apontamentos em publicação anterior (PESCE, 2010).
Na cibercultura veiculada na Web 2.0, o usuário insere-se como produtor e desenvolvedor de conteúdo e não somente como receptor de mensagem e/ou conteúdo de
aprendizagem postado por outrem. A cibercultura, ao conjugar texto, áudio, imagem,
animação e vídeo, assume uma natureza hipermidiática, que potencializa as formas de
publicação, compartilhamento e organização de informações e amplia os espaços de interação
(PRIMO, 2008).
Para Pierre Lévy (1997), analogamente à escrita e à imprensa, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) trazem consigo um novo modo de pensar o mundo e de conceber
as relações com o conhecimento. Nesse cenário, a simulação levanta-se como modo de
conhecimento próprio da cibercultura. Os games e ambientes imersivos, como Second Life,
ratificam a oportuna observação de Lévy e podem ser levados em conta na elaboração de desenhos didáticos de cursos em EAD.
Lucia Santaella (2004) salienta que a interação insere-se na medula dos processos
cognitivos, nos ambientes de rede. Ao destacar que o dialogismo traz nova luz para se
compreender a interatividade e seu papel no desenvolvimento do perfil cognitivo do leitor
imersivo, a pesquisadora declara: ―(...) assim como as operações realizadas no ciberespaço
externalizam as operações da mente, as interatividades nas redes externalizam a essência mais
profunda do dialogismo‖ (SANTAELLA, 2004, p. 172).
No contexto coautoral e criativo das ―linguagens líquidas‖ da cibercultura
(SANTAELLA, 2007) formam-se as redes sociais: fenômeno que tanto impacto vem
causando às atuais organizações societárias, por se opor diametralmente à indústria cultural
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985). Para Antoun (2008), em contraposição à mídia
irradiada, as redes sociais da cibercultura promovem comunidades de atividade ou interesse,
graças à democratização não só do acesso à informação, mas também da publicação de
produções e da ‗vigilância participativa‘ – termo por ele designado para se referir ao conjunto
das expressões de opinião postadas como comentários, nos ambientes digitais.
Costa (2008) sinaliza o sentimento de confiança mútua como um dos aspectos
basilares da consolidação das redes sociais na cibercultura. Em concordância com Lévy
(2002), o pesquisador salienta a relevância das redes sociais, pela capacidade de ação e
potencialidade cooperativa. Em nosso entendimento, tais atributos materializam-se, por
exemplo, quando cidadãos de Estados totalitários utilizam os dispositivos da cibercultura para
―burlar‖ a censura e mostrar ao mundo os despotismos de seu país. O estudioso finaliza advertindo que o fenômeno social da Web 2.0 nos força a pensar em outras formas de nos
organizarmos em comunidades. Parafraseando Costa (ibid), salientamos que a cibercultura
demanda da educação novos modos de organização.
Ao pensar a Educação a partir do advento da cibercultura, trazemos Valente (1999),
que distingue três abordagens na EAD. Na abordagem broadcast, o professor transmite a informação, via aparato tecnológico; daí sua proximidade com a concepção instrucionista.
Esta abordagem consagra-se pelo apelo econômico; ou seja, pela possibilidade de se
promover cursos financeiramente convidativos. Na ―virtualização da sala de aula presencial‖,
o professor transfere para o espaço virtual a mesma dinâmica da aula presencial. Esta
abordagem é muito comum, pela tendência dos formadores a transpor a dinâmica dos cursos
presenciais para o contexto digital, sem as devidas readequações. Por sua vez, a abordagem
―estar junto virtual‖ contempla a dinâmica comunicacional, que privilegia a mediação do
professor junto ao aluno, por meio da tecnologia, para que se realize o ciclo construcionista
―descrição-execução-reflexão-depuração-descrição‖.
Tecnicamente, os dispositivos e interfaces da Cibercultura ampliam a possibilidade de
se pensar em cursos mais dialógicos em EAD. Entretanto, para que isso ocorra é preciso
vontade política. Vontade essa que se revela, por exemplo, na concepção de cursos
economicamente não tão convidativos, que preveem uma relação adequada entre formador e
alunos (por volta de 1 para 30), por apostarem na importância da formação dialógica (PESCE
2008). Aí incide um exemplo de vontade política de primar pela qualidade educacional, a
despeito das possibilidades tecnológicas de se promover cursos em larga escala.
• A partir dos aspectos teóricos até então anunciados, sintetizamos nossa reflexão
sobre a contribuição da cibercultura para o avanço qualitativo da EAD:
• A cibercultura acena outra lógica para a EAD, que não a instrumental, pragmática
e prescritiva.
• A cibercultura possibilita a ampliação da perspectiva de alteridade, ao promover
vínculos entre sujeitos sociais de distintas culturas, que vivem circunstâncias sóciohistóricas semelhantes (por exemplo: vínculos entre professores da Educação Básica de
distintos países). Essa condição é profícua ao enfrentamento esclarecido dos desafios que se
lhes apresentam no cotidiano.
• As redes sociais da cibercultura configuram-se como elemento importante para se
subverter o status quo (como exemplo, o uso que tem sido feito pelos cidadãos de alguns
países do Oriente Médio para enfrentar os regimes ditatoriais).
• A cibercultura oferece a possibilidade de se trabalhar com diferentes dimensões da
linguagem (textual, imagética, sonora...), em respeito aos distintos estilos de aprendizagem.
Nesse cenário, destacamos o papel da simulação aos processos cognitivos.
• O registro das interações no ciberespaço traz uma importante contribuição para a
metarreflexão do aluno, do professor e do grupo como um todo, sobre o processo de
construção do conhecimento, na interface entre as dimensões intra e intersubjetiva.
• As características coautorais dos dispositivos e interfaces da cibercultura oportunizam a vivência plena da dialogia digital e da mediação partilhada: elementos fundantes da
formação de comunidades de aprendizagem, para além dos tempos e espaços da sala de
aula.
Conforme dito no início do presente texto, a cibercultura traz vastas possibilidades
para se repensar as hegemônicas práticas de EAD. Contudo, além da condição técnica, é
preciso vontade política para se imprimir uma racionalidade mais dialógica, capaz de auferir
um avanço de fato qualitativo a essa modalidade de educação.
TEXTO 2
A DOCÊNCIA ONLINE
O segundo texto da série discute, entre outros temas, o fato de que a educação online
tem demandado novas relações com os saberes e como estes são mobilizados, mediados e
tecidos com e por sujeitos imersos na cultura digital. Para tanto, torna-se necessário
repensarmos o trabalho docente, estruturado pelas clássicas práticas de EAD. O professor
como aquele que produz o conteúdo e o tutor como aquele que ―tira-dúvidas‖ dos alunos
sobre o conteúdo elaborado pelo professor são papéis que precisam ser questionados. A
docência online é mostrada como prática e como política de formação.
Apesquisa e a cibercultura como fundamentos para a docência online
Marco Silva9
Não há retorno quanto ao crescimento da educação via internet no Brasil e no mundo.
A educação a distância, antes cheia de limitações específicas porque baseada em meios
unidirecionais (impressos, rádio e TV), agora cresce muito com as potencialidades cada vez
mais interativas da internet e das redes sociais online. A adesão social se amplia espantosamente. As instituições de ensino superior (IES) particulares saíram na frente e não se
decepcionaram com a modalidade de cursos via internet. As universidades públicas, a partir
da Universidade Aberta do Brasil (UAB), estão correndo atrás do prejuízo causado por
décadas de resistências empedernidas. Nesse contexto, o desafio maior é a inclusão dos
professores no cenário sociotécnico e comunicacional da cibercultura para nele operarem e
educarem.
Doravante, teremos mais do que a força da crítica já enfatizada por clássicos teóricos
da educação à pedagogia da transmissão. Teremos a exigência cognitiva e comunicacional das
gerações que emergem com a cibercultura, isto é, com a ambiência de conhecimento, de
crenças, de artes, de éticas, de leis, de costumes, de hábitos e de aptidões desenvolvidos pelas
sociedades na era digital em rede mundial de computadores (LEMOS e LEVY, 2010).
O DESAFIO COMUNICACIONAL DA EDUCAÇÃO VIA INTERNET
Dados estatísticos do INEP em 2009 revelam que mais de 50% dos professores de
Ensino Fundamental passaram a ser formados na modalidade a distância. Isso assusta muita
gente, que pergunta: ―como a formação para docência presencial pode ser realizada a
distância?‖. Não bastasse essa preocupação, muitos ficarão ainda mais assustados se
verificarem que a formação a distância ocorre sem mediação docente. Muitas vezes o que se
tem é o autoestudo baseado em conteúdos massivos preempacotados. O velho modelo da
distribuição de pacotes de informação, ditos ―conhecimentos‖, agora na internet,
subutilizando as potencialidades interativas. Os chamados ―tutores‖, que são na verdade
nossos conhecidos monitores, foram colocados no lugar dos professores e os sindicatos de
9
Sociólogo, doutor em educação, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Estácio de Sá e professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Membro da diretoria da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura. Autor dos livros Sala de aula
interativa e Educación interactiva presencial y on-line. Organizou os livros Educação online: cenário, formação e
questões didático-metodológicas, Educação online: teorias, práticas, legislação e formação corporativa e
Avaliação da aprendizagem em educação online. www.saladeaulainterativa.pro.br
professores não os reconhecem na categoria profissional. Sem autoridade para professorar e
sem formação específica para realizar mediação docente, eles acabam se limitando a
administrar o feedback dos cursistas ou ao mero ―tira-dúvidas‖. Em suma, se não temos
mediação docente efetiva na sala de aula presencial ou online, pergunto se nela haverá
educação autêntica.
Muitas pesquisas investigam a oferta de educação a distância no país. Algumas trazem
resultados eloquentes e sugestões significativas para a superação de problemas recorrentes.
Mas há muito que pesquisar e publicar. Não faltam novos campos de pesquisa em franco
crescimento. Há a Universidade Aberta do Brasil (UAB), oferecendo graduação a distância
com a chancela do MEC. No Rio de Janeiro há o CEDERJ, que atende às universidades
públicas do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ, UERJ, UNIRIO, UFRRJ e UENF). Em São
Paulo, há a UNIVESP, universidade a distância baseada na USP, UNESP e UNICAMP. Em
geral, a tendência é ainda ensino massivo, subutilizando as interfaces interativas da internet e
feito à base de tutoria reativa. Diversas universidades particulares estão se dedicando a esta
modalidade de ensino, considerada bastante lucrativa. Os problemas, no entanto se avolumam
e essa é a hora de aprofundar ou ampliar as pesquisas.
Destaco o enorme desafio que a cibercultura traz para os cursos via internet. Trata-se
do desafio comunicacional. Na cibercultura, os atores da comunicação tendem à interatividade
e não mais à separação da emissão e recepção própria da mídia unidirecional de massa. Para
posicionar-se nesse contexto e aí educar, os professores precisarão operar com o hipertexto,
isto é, trabalhar com o contexto não-sequencial, com a montagem de conexões em rede, o que
permite uma multiplicidade de recorrências entendidas como conectividade, diálogo e
participação colaborativa. Eles precisarão compreender que de meros disparadores de liçõespadrão deverão se converter em formuladores de interrogações, coordenadores de equipes de
trabalhos e sistematizadores de experiências em interfaces online desenvolvidas para
contemplar a interatividade e não a unidirecionalidade.
EAD
E
EOL:
UMA
DISTINÇÃO
NECESSÁRIA
NO
CENÁRIO
SOCIOTÉCNICO DA CIBERCULTURA
A formação de professores para a docência via internet precisará distinguir educação a
distância (EAD) e educação online (EOL), sem simplificar ou dicotomizar a ação docente.
Precisará trabalhar com ambas as modalidades, inclusive, articuladas com o presencial. O
cenário sociotécnico da cibercultura favorece compartilhamento e colaboração, expressões de
uma ambiência comunicacional que favorece a educação autêntica.
Social
Tecnológico
Há um novo espectador menos
O computador conectado à Internet
passivo diante da mensagem mais aberta à permite ao internauta-interator criação e
sua intervenção. Ele aprendeu com o controle dos processos de informação e
controle remoto da TV, com o joystick do comunicação
videogame e agora aprende como o mouse e interfaces
de
mediante
ferramentas
e
gestão,
informação
e
com a tela tátil. Ele migra da tela da TV comunicação. Diferindo essencialmente da
para a tela do computador conectado à TV
como
máquina
restritiva
e
Internet. É mais consciente das tentativas de centralizadora, porque baseada na transmisprogramá-lo e mais capaz de esquivar-se são de informações elaboradas por um
delas.
Evita
acompanhar
argumentos centro de produção (sistema broadcast), o
lineares que não permitem a sua in- computador
online
apresenta-se
como
terferência e lida facilmente com ambientes sistema aberto aos usuários, permitindo
midiáticos que dependem do seu gesto ins- autoria e colaboração num ambiente de
taurador que cria e alimenta a sua experiên- compartilhamento, de troca de informações
cia comunicacional.
e de construção do conhecimento.
Entretanto, o professor precisará compreender esse cenário para nele atuar. Precisará
repensar a mediação da aprendizagem que vem realizando na sala de aula presencial e na
EAD unidirecional. Ao mesmo tempo, precisará de inclusão digital e cibercultural capaz de
prepará-lo para ir mais além do uso instrumental da infotecnologia de informação e
comunicação na formação de jovens e adultos.
EAD
EOL
Docência unidirecional
Docência interativa
(mediação um-todos)
(mediação todos-todos)
Predefinido, fechado,
Desenho didático
dos conteúdos e das
Predefinido
linear, controlado por uma redefinido
fonte
emissora.
atividades de aprendizagem audiovisuais
unidirecionais.
e
Textos, colaborativa,
multimídia Hipertextos,
de
e
forma
corregulada.
multi
e
hi-
permídia multidirecional, em
rede.
Tecnologias
unidirecionais
Tecnologias
e
reativas interativas
online
(impressos, rádio, TV, DVD (computador, celular, internet
Tecnologias de informação
e
comunicação (TIC)
e até o computador online, em
múltiplas
interfaces
quando subutilizado em suas (chats, fóruns, wikis, blogs,
potencialidades
comu- fotos,
Twitter,
Facebook,
nicacionais e hipertextuais). Orkut, videologs, etc.) para
Modelo um-todos.
expressão uni, bi e multidirecional em rede. Modelo
todos-todos.
Instrucionista,
Pedagogia
Construcionista, com
transmissiva,
tarefista, base no interacionismo, na
aprendizagem
solitária, dialógica,
autoinstrução.
e
interatividade.
Relações assimétricas,
Mediação da aprendizagem
colaboração
Relações horizontais:
verticais:
autor/emissor hibridização e coautoria. Os
separado
de cursistas se encontram com o
aprendiz/receptor.
Cursista docente e constroem a comu-
não interage com cursista
nicação e o conhecimento.
Avaliação
unidirecional:
avalia
alunos.
Autoavaliação,
professor coavaliação
Pontual
e
e heteroavaliação. Somativa e
somativa. Trabalhos e testes formativa. Definição coletiva
Avaliação da aprendizagem
individuais durante e no final de critérios e rubricas de
do curso.
avaliação. Uso de múltiplas
interfaces para avaliação da
participação (wikis, fóruns,
mapas colaborativos, webquests,
blogs,
chat,
podcasting, etc.).
Fonte. Apropriação livre de um quadro apresentado por Leonel Tractenberg na palestra “Avaliação de
professores na educação online” no I Encontro de Tutores da UFJF, 20/11/2010, Juiz de Fora, MG.
A modalidade ―a distância‖, via meios unidirecionais, separa emissão e recepção no
tempo e no espaço. A modalidade online conecta professores e alunos nos tempos síncrono e
assíncrono, dispensa o espaço físico, favorece a convergência de mídias e contempla
bidirecionalidade, multidirecionalidade, estar-junto ―virtual‖ em rede e colaboração todostodos. Por sua vez, enquanto a modalidade ―a distância‖ é operada por meios de transmissão
em sua natureza, a modalidade online lança mão das disposições favoráveis à interatividade
cada vez mais presentes no cenário sociotécnico da cibercultura.
Na docência online, o professor dispõe da infotecnologia em rede favorável à proposição do conhecimento à maneira do hipertexto. Aí ele pode redimensionar a sua autoria:
não mais a prevalência da distribuição de informação para recepção solitária e em massa, mas
a perspectiva da proposição complexa do conhecimento, da participação colaborativa dos
participantes, dos atores da comunicação e da aprendizagem em redes que conectam textos, de
áudios, vídeos, gráficos e imagens em links na tela tátil.
Computadores, laptops, celulares e tablets conectados em rede mundial favorecem e
potencializam a mediação docente interativa inspirada nas sugestões (SILVA, 2010):
(a) propiciar oportunidades de múltiplas experimentações, múltiplas expressões;
(b) disponibilizar uma montagem de conexões em rede que permita múltiplas
ocorrências;
(c) provocar situações de inquietação criadora;
(d) arquitetar colaborativamente percursos hipertextuais e
(e) mobilizar a experiência do conhecimento.
Operar com estas cinco sugestões para docência interativa requer que o professor
garanta atitudes comunicacionais específicas (SILVA, 2005, 2006, 2010, 2011):
(a) acionar a participação-intervenção do receptor, sabendo que participar é muito
mais que responder ―sim‖ ou ―não‖, é muito mais que escolher uma opção dada; participar é
modificar, é interferir na mensagem;
(b) garantir a bidirecionalidade da emissão e recepção, sabendo que a comunicação é
produção conjunta da emissão e da recepção; o emissor é receptor em potencial e o receptor é
emissor em potencial; os dois polos codificam e decodificam;
(c) disponibilizar múltiplas redes articulatórias, sabendo que não se propõe uma
mensagem fechada, ao contrário, oferecem-se informações em redes de conexões, permitindo
ao receptor ampla liberdade de associações, de significações;
(d) engendrar a cooperação, sabendo que a comunicação e o conhecimento se
constroem entre alunos e professor, como cocriação;
(e) suscitar a expressão e a confrontação das subjetividades no presencial e nas
interfaces fórum, e-mail, chat, blog, wiki e portfólio, sabendo que a fala livre e plural supõe
lidar com as diferenças na construção da tolerância e da democracia;
(f) garantir no ambiente online de aprendizagem uma riqueza de funcionalidades
específicas, tais como: intertextualidade (conexões com outros sites ou documentos), intratextualidade (conexões no mesmo documento), multivocalidade (multiplicidade de pontos de
vista), usabilidade (percursos de fácil navegabilidade intuitiva), integração de várias
linguagens (som, texto, imagens dinâmicas e estáticas, gráficos, mapas), hipermídia
(convergência de vários suportes midiáticos abertos a novos links e agregações) (SANTOS,
2003);
(g) estimular a autoria cooperativa de formas, instrumentos e critérios de avaliação,
criar e assegurar a ambiência favorável à avaliação formativa e promover a avaliação
contínua.
No ambiente comunicacional assim definido, esses princípios da docência interativa
são linhas de agenciamentos que podem potencializar a autoria do professor, presencial e
online. A partir de agenciamentos de comunicação capazes de contemplar o perfil
comunicacional da geração digital que emerge com a cibercultura, o docente pode promover
uma modificação paradigmática e qualitativa na sua docência e na pragmática da aprendizagem e, assim, reinventar a sala de aula em nosso tempo. Todavia, para isso se faz necessário
a pesquisa implicada com a efetiva formação de professores.
A PESQUISA INTEGRADA À FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA DOCÊNCIA
ONLINE
A formação de professores ganhará muito se adotar metodologias que favoreçam a
formação na ação. Pesquisa e formação poderão estar integradas como ―pesquisa-formação‖
(NÓVOA, 2004; SANTOS, 2005). Esta modalidade de investigação-atuação contempla a
possibilidade de mudança das práticas e dos sujeitos em ação. Cada pessoa, cada equipe é,
simultaneamente, objeto e sujeito da formação. A coletividade de pesquisadores também é o
sujeito de ocorrências. Todo o conjunto de conteúdos e estratégias da e na ação docente deve
emergir a partir dos problemas, temas e necessidades de todos os sujeitos pesquisadores. A
pesquisa-formação não dicotomiza a ação de conhecer da ação de atuar, própria das pesquisas
ditas ―aplicadas‖. O pesquisador é coletivo, não se limita a aplicar saberes existentes. As
estratégias de aprendizagem e os saberes emergem da troca e da partilha de sentidos de todos
os envolvidos. Experiências de pesquisa-formação costumam criar ambiências e dispositivos
de pesquisa que fazem emergir o registro e a expressão de narrativas. Os sujeitos são
incentivados a expressar suas itinerâncias formativas, promovendo, muitas vezes, a troca e o
compartilhamento com outros sujeitos envolvidos no processo. São exemplos de dispositivos:
o diário de bordo ou itinerância, os memoriais de pesquisa, entrevistas abertas, entre outros.
Assim definida, a pesquisa requer o registro rigoroso e metódico dos dados. Adotará o
registro em ―diário de bordo‖ – ou fórum geral online aberto à atuação de todos os envolvidos
– como um instrumento necessário para consignar os dados recolhidos durante todo processo
de pesquisa. Os registros diários e cotidianos precisarão atentar para o vivido na usabilidade
do AVA, no desenho didático e na mediação docente. Aí está o tripé que gera evasão e
banalização da educação ou inclusão e formação cidadã na cibercultura.
Em suma, as pesquisas sobre EAD e sobre EOL no país precisam contribuir mais significativamente para a formação de professores para docência na cibercultura. Os docentes
precisarão se preparar para lidar com a atualidade sociotécnica informacional e
comunicacional definida pela codificação digital (bits) que garante o caráter plástico,
hipertextual, interativo do conteúdo de aprendizagem tratável em tempo síncrono e
assíncrono. A codificação digital permite manipulação de documentos, criação e estruturação
de elementos de informação, simulações e formatações evolutivas nos ―ambientes virtuais de
aprendizagem‖, concebidos para criar, gerir, organizar e movimentar uma documentação e
para expressar, compartilhar, colaborar, comunicar e conhecer.
O professor precisará lançar mão dessa disposição do digital para potencializar a
construção da comunicação e do conhecimento em sua sala de aula online ou semipresencial.
Ao fazê-lo, contemplará atitudes cognitivas e modos de pensamento que se desenvolvem
juntamente com o crescimento da cibercultura. Contemplará o novo espectador, a geração
digital e o espírito do tempo favorável à qualidade em educação autêntica, cidadã, que supõe
participação, compartilhamento e colaboração.
TEXTO 3:
CURRÍCULO MULTIRREFERENCIAL
No terceiro texto da série é discutida a noção de currículo multirreferencial. Esta
noção questiona a dimensão do currículo ―programa-grande‖ e a ideia de espaços formais de
aprendizagem como únicos lócus legítimos de formação. Os espaços multirreferenciais são
todos os espaços onde seres humanos ensinam e aprendem com ou sem mediações formais ou
centradas na lógica moderna das instituições escola-universidade. O ciberespaço e as cidades
em conexão com as mídias digitais móveis e em rede serão tratados como potencializadores
de novos arranjos espaço-temporais para a instituição de outras práticas curriculares em
educação online.
O currículo multirreferencial: outros espaços tempos para a educação online
Edméa Santos10
Como já foi dito no texto introdutório desta série e nos dois textos anteriores, as tecnologias digitais em rede no ciberespaço e nas cidades vêm ampliando a nossa capacidade de
memória, armazenamento, processamento e, sobretudo, de comunicação. A comunicação
caracterizada pela liberação do polo da emissão torna a rede digital uma rede social, um
espaço cultural onde a cibercultura se desenvolve.
Segundo Santaella (2008) não podemos tratar as tecnologias digitais com o mesmo
referencial que tratamos as mídias de massa. São tecnologias diferenciadas e, por isso,
instituem outros processos cognitivos. A geração da TV é bem diferente da geração digital. A
primeira geração da cibercultura foi condicionada pelo uso do computador conectado via
desktop. O corpo preso e a mente em movimento. A segunda fase da cibercultura vem agregando novas potencialidades ao processo de construção de conhecimento, principalmente por
conta da mobilidade.
Mobilidade é uma das palavras-chave da cibercultura atual. Com os computadores e
celulares móveis que se comunicam em rede e a convergência de mídias, o cérebro
movimenta-se juntamente com a atividade corporal em movimento. Santaella (2008) destaca
10
Mestre e Doutora em Educação (FACED/UFBA). Professora adjunto da Faculdade de Educação da UERJ,
atua no PROPED - Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, na Linha de Pesquisa: Cotidiano,
Redes Educativas e Processos Culturais. Líder do GPDOC - Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura.
Consultora da série.
que no futuro próximo haverá total hibridação corpo humano, tecnologias e redes. O interesse
acadêmico aumenta com o crescente desenvolvimento tecnológico e o acesso a essas
tecnologias por um número cada vez maior de indivíduos.
Além do desenvolvimento tecnológico e do acesso de boa parte da população a esses
recursos, vivenciamos um crescente movimento de ―redes horizontais de colaboração”.
Segundo Pretto e Bonilla (2008), novas redes começam a se configurar no cenário nacional.
Políticas governamentais no âmbito de projetos nas áreas da ciência, tecnologia e cultura, a
exemplo dos ―pontos de cultura‖ implementados pelo Ministério da Cultura; projetos de
universidades públicas, organizações não governamentais, ativistas culturais, o fenômeno das
lanhouses, entre outros.
Dos programas internacionais que utilizam as tecnologias móveis na prática
pedagógica podemos destacar o projeto da organização americana OLPC (One Laptop per
Child), idealizado por um grupo de pesquisadores, dentre eles o pesquisador Nicholas
Negroponte, do MIT (Massachusetts Institute of Technology). No Brasil desde 2006 o MEC
vem ampliando o uso de laptops em algumas escolas brasileiras, por meio do PROUCA, mais
conhecido como UCA (Um Computador por Aluno). Diferentemente do projeto OLPC, que
garante um computador por criança, o projeto brasileiro demarca que seu projeto considera a
criança que estuda, ou seja, um aluno matriculado no sistema de educação pública do país.
Esse desenvolvimento, ainda incipiente no Brasil, nos convida ao investimento urgente em
ações formativas e novas pesquisas que garantam novas práticas que não subutilizem as
tecnologias digitais e as redes sem fio nos espaços educativos.
Nesse contexto de redes e conexões, temos a presença significativa da juventude.
Segundo os autores:
As redes conectam pessoas, instituições, setores e ajudam a
articular as ações. Com elas, e com as pessoas se apropriando das
tecnologias, novos saberes são produzidos, novas formas de ser e de pensar
esse alucinado mundo contemporâneo emergem. Passamos a conviver,
mesmo com todas as dificuldades de acesso, com novas formas de partilhar
o conhecimento, com novas linguagens e novas formas de expressões
(PRETTO e BONILLA, 2008, p. 84).
A mobilidade é a capacidade de tratar a informação e o conhecimento na dinâmica do
nosso movimento humano na cidade e no ciberespaço simultaneamente. Para tanto,
precisamos de interfaces que nos permitam protagonizar nessa dinâmica. Essas interfaces vêm
sendo chamadas de ―dispositivos móveis‖.
Com a mobilidade dos laptops, os docentes e discentes podem mapear, acessar,
manipular, criar, distribuir e compartilhar informações e conhecimentos a qualquer tempo e
espaço acessados por tecnologias de redes. Essa flexibilidade só é possível por conta da
mobilidade própria do laptop, que pode ser transportado pelo docente, e pelo acesso à internet.
O acesso à internet é fundamental. Um laptop sem rede é uma máquina semântica, que nos
permite criar conhecimento em vários gêneros textuais, a partir do acesso e manipulação de
informações armazenadas, mas não nos permite acessar redes e conexões.
Portanto, além de ter o laptop, é necessário acessar com ele a rede mundial de
computadores, a internet. Assim, poderemos instituir práticas e currículos online. A educação
online é uma modalidade de educação que pode ser vivenciada ou exercitada tanto para
potencializar situações de aprendizagem mediadas por encontros presenciais, quanto a
distância, caso os sujeitos do processo não possam ou não queiram se encontrar face a face;
ou ainda situações híbridas, nas quais os encontros presenciais podem ser combinados com
encontros mediados por tecnologias telemáticas (SANTOS, 2005).
Entendemos a Educação, com letra maiúscula, como um processo amplo que vai além
da modalidade de organização dos processos de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, as
tecnologias digitais em rede podem potencializar a educação em geral (presencial ou online) e
a formação de educadores, pois permitem:
• Extensão e novas arquiteturas da sala de aula para além da localização física.
• Acesso a diversos objetos de aprendizagem, interfaces e informações em rede.
• Comunicação interativa entre seres humanos e objetos técnicos.
• Formação de comunidades de prática e de aprendizagem para além das fronteiras
institucionais.
• Vivenciar novas relações com a pesquisa em suas diversas fases.
Tais potencialidades desafiam a pesquisa, que relaciona educação e cibercultura. Precisamos instituir novas metodologias e novas práticas curriculares multirreferenciais. A
abordagem multirreferencial parte do princípio de que todos os sujeitos envolvidos formam e
se formam em contextos plurais de situações de trabalho e aprendizagem. Os professores e
pesquisadores universitários contribuem com suas itinerâncias científicas, sustentadas pela
prática da pesquisa acadêmica, prática muitas vezes articuladora da teoria e da prática. Os
professores da escola básica são os únicos que vivenciam o lócus escolar em sua
complexidade. Nessa relação procuram fazer a transposição didática das aprendizagens
científicas com suas situações e desafios cotidianos.
Muitas vezes criam etnométodos, métodos próprios para lidar com as situações educacionais, aprendendo com o dia a dia da comunidade escolar. Interagem diretamente com o
sujeito cultural do nosso tempo, o estudante. Em tempos de cultura digital, os estudantes
vivenciam experiências culturais com o computador e a internet bastante diferentes das
experiências vivenciadas pelos professores. De um lado temos os professores, imigrantes
digitais; do outro, os alunos, nativos digitais. Os primeiros utilizam com pouca ou muita
destreza as tecnologias digitais, mas, muitas vezes, não as vivenciam em seu lócus natural. Os
segundos vivenciam a cultura digital como membros e não como estrangeiros. Dessa forma,
não podemos excluir o estudante da escola básica do processo formativo do lugar de
formadores. Tanto os professores universitários quanto os professores da escola básica podem
ensinar e aprender com seus estudantes. Assim, ampliamos a noção de sujeitos formadores
nos permitindo aprender com as novas gerações.
O conceito de multirreferencialidade é pertinente para contemplar, nos espaços de
aprendizagem, uma leitura plural de seus objetos (práticos ou teóricos), sob diferentes pontos
de vistas, que implicam tanto visões específicas quanto linguagens apropriadas às descrições
exigidas, em função de sistemas de referenciais distintos, considerados, reconhecidos
explicitamente como não redutíveis uns aos outros, ou seja, heterogêneos‖ (ARDOINO, 1998,
p. 24). A multirreferencialidade como um novo paradigma torna-se hoje grande desafio.
Desafio que precisa ser gestado e vivido, principalmente pelos espaços formais de
aprendizagem, que ainda são norteados pelos princípios e pelas práticas de uma ciência
moderna. Por outro lado, diferentes parcelas da sociedade vêm criando novas possibilidades
de educação e de formação inicial e continuada.
A emergência de atividades (presenciais e/ ou online, estruturadas por
dispositivos comunicacionais diversos), cursos (livres, supletivos; qualificação profissional),
atividades culturais diversas, artísticas, religiosas, esportistas, comunitárias começam a
ganhar, neste novo tempo, uma relevância social bastante fecunda. As redes sociais da
internet são um exemplo concreto.
Tal acontecimento vem promovendo a legitimação de novos espaços de aprendizagem,
espaços esses que tentam ―fugir do reducionismo que separa os ambientes de produção e os de
aprendizagem (...), espaços que articulam, intencionalmente, processos de aprendizagem e de
trabalho‖ (BURNHAM, 2000, p. 299). Os sujeitos que vivem e interagem nos espaços
multirreferenciais de aprendizagem expressam, na escola, insatisfações profundas, pondo em
xeque o currículo fragmentado, legitimando inclusive espaços diversos – espaços esses que há
bem pouco tempo não gozavam do status de espaços de aprendizagem – através da autoria
dos sujeitos construídos pela itinerância dos processos nesses espaços. É pela necessidade de
legitimar tais saberes e também competências que diversos espaços de trabalho estão
certificando os sujeitos pelo reconhecimento do saber
fazer
– competência
–
independentemente de uma suposta formação institucional específica, como, por exemplo, as
experiências ―formais‖ de formação inicial.
A noção de espaço de aprendizagem vai além dos limites do conceito de espaço/lugar. Com a emergência da ―sociedade em rede‖, novos espaços digitais e virtuais de
aprendizagem vêm se estabelecendo a partir do acesso e do uso criativo das novas tecnologias
da comunicação e da informação. Novas relações com o saber vão-se instituindo num
processo híbrido entre o homem e a máquina, tecendo teias complexas de relacionamentos
com o mundo.
Para que a diversidade de linguagens, produções e experiências de vida sejam de fato
contempladas de forma multirreferencializada, nos e pelos espaços de aprendizagem, os
saberes precisam ganhar visibilidade e mobilidade coletiva, ou seja, os sujeitos do
conhecimento precisam ter sua alteridade reconhecida, sentindo-se implicados numa produção
coletiva, dinâmica e interativa que rompa com os limites do tempo e do espaço geográfico.
O desafio de criar um currículo que contemple a diversidade do coletivo, permitindo
que as singularidades possam emergir, potencializando as experiências multirreferenciais dos
sujeitos, requer não só uma mudança paradigmática das concepções de currículo, como requer
também o uso de dispositivos comunicacionais, interfaces digitais, que permitam uma
dinâmica social que rompa com as limitações espaço/temporais dos encontros presenciais.
Nesse sentido, o acesso e uso criativo das tecnologias em rede podem estruturar as relações
curriculares de forma complexa e dinâmica. Obviamente, o uso de dispositivos
comunicacionais por si só não construirá um currículo em rede; entretanto, pode potencializálo.
Presidência da República
Ministério da Educação
TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO
Coordenação-geral da TV Escola
Érico da Silveira
Coordenação Pedagógica
Maria Carolina Mello de Sousa
Supervisão Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
Acompanhamento Pedagógico
Carla Ramos e Ana Maria Miguel
Coordenação de Utilização e Avaliação
Mônica Mufarrej
Fernanda Braga
Copidesque e Revisão
Magda Frediani Martins
Diagramação e Editoração
Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil
Gerência de Criação e Produção de Arte
Consultora especialmente convidada
Edméa Santos
E-mail: [email protected]
Home page: www.tvbrasil.org.br/salto
Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro.
CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)
Abril 2011
TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM:
http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/212448cibercultura.pdf
O Impacto do Conceito de Cultura Sobre o Conceito de Homem
Clifford Geertz11
O antropólogo francês Lévi-Strauss afirma que a explicação científica busca substituir
complexidades pouco compreensíveis por complexidades mais compreensíveis, e não
reduzindo exclusivamente a complexidade como se imagina. Partindo deste princípio,
Clifford Geertz ensina que as ciências sociais, muito mais complexas por sua essência,
também devem buscar a ordenação de sua complexidade.
A idéia iluminista defendia que o homem, mesmo inserido em diversos contextos,
costumes, crenças e lugares, poderia ser definido por suas características gerais, presentes em
todos os indivíduos da sua espécie. Esta generalização, que buscava a simplicidade de análise
e definição, falhou em vários aspectos que, por serem muito superficiais, perderam o sentido
da própria definição ou tornaram por demais complexa a distinção entre características gerais
e características localizadas.
Assim, diferente da idéia iluminista do homem – regulada, invariante e simples, o
avanço da concepção científica da cultura propiciou uma nova idéia de homem, muito mais
complexa do que se imaginava, e que até então os estudos não conseguiram organizar. É a
partir do reconhecimento do homem com suas características gerais e do homem como fruto
de lugares e épocas distintas é que a antropologia busca definí-lo. De fato, apesar de a espécie
humana possuir distintivas universais, é improvável que se possa definir um indivíduo como
um ser desprovido das características impostas por sua cultura, necessárias até mesmo para
situá-lo como membro de uma determinada sociedade. Todavia, também não se pode perder a
essência do homem em suas características irrelevantes, o que fatalmente levaria sua definição
a diversas caracterizações meramente pessoais e localizadas.
Conforme Clifford Geertz, todas ou virtualmente todas as correntes teóricas que
tentaram localizar o homem no conjunto de seus costumes adotaram uma tática de relacionar
os fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais entre si, denominada por ele como
concepção estratigráfica. A estratigrafia compreenderia o homem como a sobreposição destes
incontestáveis fatores em camadas completas e irredutíveis. Os fatores culturais, neste
conceito de estratificação hierárquica, não se misturam com os demais fatores, pressupondo
11
Artigo enviado por Danilo Christiano Antunes Meira, em 22/05/2008, às 02:06:01
uma relação de independência, criando a imagem de um homem que, embora racional, estaria
nu em relação aos seus costumes.
A análise concreta e a pesquisa da concepção estratigráfica buscaram definir
universais na cultura através do consensus gentium, no meio da diversidade do mundo e do
tempo, para que através destes fossem traçadas as características culturais essenciais ao
homem, distinguindo-os dos demais traços localizados e periféricos. A idéia de consensus
gentium ligado à cultura foi utilizada por diversos teóricos e com diversas denominações, tais
como fez Clark Wisser com ―o padrão cultural universal‖, Bronislaw Malinowski com ―tipos
institucionais universais‖ e G. P. Murdock e seus ―denominadores comuns da cultura‖.
A busca destas universais da cultura, características comuns e generalistas aos povos,
encontra diversos entraves em sua própria essência. Nesta afirmação, Clifford Geertz enumera
3 premissas que devem ser observadas:
1.
Os universais propostos devem possuir teor substancial e não apenas
categorias vazias.
2.
Os universais propostos devem ser fundamentados em processos
particulares biológicos, psicológicos ou sociológicos e não apenas associados a
realidades adjacentes.
3.
Os universais propostos devem ser convincentemente defendidos como
elementos essenciais em uma definição de humanidade perante outras particularidades
culturais secundárias.
Sobre as reservas propostas e citando instituições como religião, família e casamento,
Clifford Geertz afirma que ao abstrair as diferenças destes universais empíricos, como
proposto pela abordagem consensus gentium, estes perdem a sua essência. Também, caso não
sejam abstraídas as características, não seria possível afirmar que tais manifestações culturais
possuam entre si o mesmo teor, dadas as suas distintas circunstâncias.
Assim prosseguindo, o autor demonstra que o fato de o conceito estratigráfico separar
em camadas independentes os supostos constituintes do homem faz com que os mesmos não
possam ser compreendidos como um conjunto interligado, anulando a possibilidade de um
fenômeno não-cultural justificar um fenômeno natural.
Também, salienta que quando se intenta combinar suportes universais, baseados nos
―pontos invariantes de referência‖, às exigências humanas subjacentes, como a necessidade
de reprodução e o casamento, se perde a relação dos níveis de relacionamento estratigráfico se
deseja manter, pois tais afirmações são desprovidas de qualquer integração teórica.
Diante do impasse criado pela inadequação da teoria de conceito estratigráfico à sua
prática, Clifford Geertz salienta que a tipificação adequada de homem não pode se basear na
busca de constantes universais diante das particulares e acrescenta:
―… pode ser que nas particularidades culturais dos povos – nas suas
esquisitices – sejam encontradas algumas das revelações mais instrutivas
sobre o que é genericamente humano. E a principal contribuição da ciência
antropológica à construção – ou reconstrução – de um conceito do homem
pode então repousar no fato de nos mostrar como encontrá-las.‖
Clifford Geertz defende que o fato de os antropólogos optarem pelas universais
culturais, diante da diversidade do comportamento humano, é o receio que o relativismo
cultural trazido pelo historicismo prive-os de um ponto fixo. Todavia, também não se pode
afirmar que todos os atos feitos por um grupo devem ser dignos de respeito por qualquer
outro.
De fato, se deve procurar relações sistemáticas entre fenômenos diversos, pois as
diferentes características apresentadas por diversas culturas podem contribuir mais para o
entendimento do homem que a relação de identidades substantivas em fenômenos similares.
Ao passo da abordagem estratigráfica, deve-se ater a uma abordagem sintética, onde os
fatores sociais, culturais, biológicos e psicológicos são compreendidos como variáveis de um
sistema unitário de análise, integrando diferentes tipos de teoria e conceitos a fim de formular
novas proposições.
Partindo deste princípio, Clifford Geertz propõe duas idéias: primeiramente, a cultura
não deve ser vista como um padrão concreto de comportamento – costumes, usos e tradições,
e sim como um conjunto de mecanismo de controle – planos, receitas, regras e instruções. A
segunda proposição baseia-se no fato de o homem ser o animal mais dependente de controles
extragenéticos que regulam o seu comportamento.
Seguindo-se o proposto, a definição de homem passa a enfatizar a cultura como
mecanismo de controle, o que pode ser verificado no fato de o homem visto como um
equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas acaba por viver apenas uma.
Esta perspectiva de cultura como mecanismo de controle se fundamenta no
pressuposto de que o pensamento humano é baseado em um tráfego público de símbolos
significantes – palavras, gestos, relógios, jóias ou qualquer coisa afastada da realidade e que
seja usada para exteriorizar uma experiência e auto-orientar-se no ―curso corrente das coisas
experimentadas‖, como define John Dewey.
―Não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos
significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável,
um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais. A cultura, a
totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da
existência humana, mas uma condição essencial para ela – a principal base
de sua especificidade.‖
Para que este conceito se tornasse possível, Clifford Geertz enfatiza os avanços
recentes da nossa compreensão em relação à evolução do primata ao homo sapiens e
especifica os 3 mais relevantes:
1.
Descartar a perspectiva seqüencial que definia a evolução física anterior
à evolução intelectual, visto que os hominídeos moldaram seus descendentes através
da cultura. Esta produção e transmissão de cultura foram essenciais para que o mesmo
se evoluísse à definição de homem.
2.
A descoberta que as principais mudanças biológicas que originaram o
homem moderno ocorreram no sistema nervoso central, e especialmente no cérebro
que, com o acúmulo e desenvolvimento da cultura, representou, além de maiores
proporções físicas, a maior evolução de fato.
3.
A compreensão de que o homem é um ser incompleto, dependente da
cultura para se completar, distinguindo-se dos não-humanos mais do que sua
capacidade de aprendizado, por sua necessidade de aprendizado para se comportar
como ser humano.
Assim, a nova perspectiva da evolução do homem pressupõe o fato de que o processo
de produção, acúmulo e transmissão de cultura foi o responsável pelo surgimento do homem
como conhecemos, pois na ausência deste processo o homem poderia ser entendido como um
monstro incontrolável, um caso psiquiátrico.
Entre o que o nosso instinto intenta e o que o homem deseja fazer há lacunas que
devem ser preenchidas com as informações adquiridas pela cultura, dado que os valores, atos
e até o sistema nervoso, como ironiza o autor, são produtos culturais.
TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM: http://www.jurisciencia.com/artigos/cliffordgeertz-o-impacto-do-conceito-de-cultura-sobre-o-conceito-de-homem/73/
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