SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE EDUCAÇÃO PLANO DE AÇÕES ARTICULADAS FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA - PARFOR PARFOR/LETRAS LOCAL: BAIÃO/PA PERÍODO: 20/01/2014 A 25/01/2014 PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO CH:60h. PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA EMENTA FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO Esta disciplina tem como objetivo ressaltar o que é a Educação, apresentar os seus fundamentos e as ciências que fornecem conceitos essenciais para o campo educacional. Serão apresentadas definições e finalidades das cinco ciências fundamentais à Educação, quais sejam, Filosofia, Psicologia, Sociologia, Antropologia e História. De cada uma, identificar-se-á os principais conceitos que são pertinentes e indispensáveis para a compreensão dos fenômenos educativos. Mostrar-se-á como o diálogo entre as ciências apresentadas, mais do que suas contribuições isoladas, serve de suporte para a Educação num mundo em que a interdisciplinaridade, isto é, a religação das ciências. A educação como direito nas perspectivas filosófico-política. Educação e sociedade. O papel da educação na formação do cidadão. Tendências Pedagógicas na educação. Competências do educador: ética, política e técnica. Reflexão sobre a relação dos fundamentos da Educação com a Educação a Distância e sobre a importância das tecnologias, assinalando seu caráter indispensável nessa modalidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORGES, V. P. O que é história. 2. ed São Paulo: Ed. Brasiliense,1993. (Primeiros Passos). BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 1985 BRASIL, Leis, Decretos, Lei n. 9.394, de 23 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, v. 134, n. 248, p. 27833-27841, 23 dez. 1987. DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. 8 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1972. CARPIGIANI, B. Psicologia: das raízes aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Pioneira, 2002. CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática,1994. CONTRERAS, J. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002. FLICKINGER, M. G. Para que filosofia da educação? :1 teses. Perspectiva, v. 16, n. 29, p. 15-22, 1998. GADOTI, Moacir. Educação e Poder. São Paulo: Cortez, 1985 ______________. Organização do trabalho na escola. São Paulo: ática, 1993 GEERTZ, Clifford. O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem. In: ___.A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. GIDDENS, A. Sociologia: uma breve, porém critica introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1988. MOORE, Michel G. Educação a distância: uma visão integradora. (trad. Roberto Galman) . São Paulo: Cengage Learning, 2008. NÓVOA, A. Os professores e sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992. PETERS, O. Didática do ensino a distância. São Leopoldo: Unisinos, 2001. PIAGET, J. Problemas de psicologia genética. Rio de Janeiro: Forense, 1973. SILVA, Marco; PESCE, Lucila; ZUIN, Antônio (orgs). Educação online : cenário, formação e questões didático-metodológicos. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2010. TURA, M. L. R. Sociologia para educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2001. VISCA, J. Psicopedagogia: novas contribuições. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA COMPLEMENTAR BORGES, Martha Kaschny. MACHADO, Soraya Tonelli. A Evasão em Cursos a Distância Online: Estudo de um Programa de Educação Empresarial Continuada Disponivel em: <http://www.anped.org.br/app/webroot/34reuniao/images/trabalhos/GT16/GT16778%20int.pdf> Acesso em: 18/out/2013. GADOTTI, Moacir . Perspectivas Atuais da Educação Disponivel em: <http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf > Acesso em: 20/out/2013. MIGUEL, A. F.C. O Estudo dos Fundamentos da Educação e sua Influência na Relação Entre Comunidade e Escola. Disponivel em: <http://www.artigonal.com/ensino-superiorartigos/o-estudo-dos-fundamentos-da-educacao-e-sua-influencia-na-relacao-entrecomunidade-e-escola-5615979.html> Acesso em: 10/dez/2012. PIAGET, Jean. Psicologia Genética e Educação. Disponivel em: <http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/141/3/01d08t02.pdf> Acesso em: 16/set/2013. RAMOS, F. P. Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação: problematizações sobre a ação educativa. Disponivel em: <http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2011/03/fundamentos-historicos-e-filosoficosda.html> Acesso em: 22/nov/2012. STIGAR, Robson; SCHUCK, Neivor. Refletindo Sobre a História da Educação no Brasil. Disponivel em: <http://www.opet.com.br/artigos/pdf-pgartigos/Refletindo%20sobre%20a%20historia%20da%20educacao%20no%20Brasil%20OPE T.pdf> Acesso em: 03/ago/2013. DISCIPLINA: FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO CH:60h. PROFESSORA-FORMADORA: ROSI CLEIDE BAIA CORREA ATIVIDADE À DISTÂNCIA Caro aluno, nesse período de atividade à distância quero proporcionar-lhes uma leitura de inicialização dessa disciplina. Faça a leitura do texto Perspectivas Atuais da Educação de Moacir Gadotti, disponivel em: <http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf>. Acesso em: 20/out/2013. Após a leitura do mesmo, peço que escreva um resumo explicitando as partes mais importantes e pertinentes do texto. Deve ser um texto bastante sintético contemplando as ideias principais que são abordadas pelo autor, permitindo que tenha uma visão sucinta do todo, principalmente das questões de maior importância e das conclusões alcançadas. Deverão utilizar as regras básicas da ABNT, sendo texto justificado, fonte times new roman ou arial, número 12, margem superior e esquerda 3 cm, direita e inferior 2 cm. Com pontuação correta, coesão, coerência e dentro das normas ortográficas. O título deve ser centralizado, sem indicativo numérico e deve ser redigido em parágrafo único. As palavraschave devem estar logo abaixo do resumo. BOM TRABALHO! PERSPECTIVAS ATUAIS DA EDUCAÇÃO MOACIR GADOTTI1 Resumo: O conhecimento tem presença garantida em qualquer projeção que se faça do futuro. Por isso há um consenso de que o desenvolvimento de um país está condicionado à qualidade da sua educação. Nesse contexto, as perspectivas para a educação são otimistas. A pergunta que se faz é: qual educação, qual escola, qual aluno, qual professor? Este artigo busca compreender a educação no contexto da globalização e da era da informação, tira conseqüências desse processo e aponta o que poderá permanecer da "velha" educação, indicando algumas categorias fundantes da educação do futuro. Palavras-chave: política educacional; globalização e ensino; educação e sociedade. Nas últimas duas décadas do século XX assistiuse a grandes mudanças tanto no campo socioeconômico e político quanto no da cultura, da ciência e da tecnologia. Ocorreram grandes movimentos sociais, como aqueles no leste europeu, no final dos anos 80, culminando com a queda do Muro de Berlim. Ainda não se tem idéia clara do que deverá representar, para todos nós, a globalização capitalista da economia, das comunicações e da cultura. As transformações tecnológicas tornaram possível o surgimento da era da informação. É um tempo de expectativas, de perplexidade e da crise de concepções e paradigmas não apenas porque iniciase um novo milênio – época de balanço e de reflexão, época em que o imaginário parece ter um peso maior. O ano 2000 exerceu um fascínio muito grande em muitas pessoas. Paulo Freire dizia que queria chegar ao ano 2000 (acabou falecendo três anos antes). É um momento novo e rico de possibilidades. Por isso, não se pode falar do futuro da educação sem certa dose de cautela. É com essa cautela que serão examinadas, neste artigo, algumas das perspectivas atuais da teoria e da prática da educação, apoiando-se naqueles educadores e filósofos que tentaram, em meio a essa perplexidade, apesar de tudo, apontar algum caminho para o futuro. A perplexidade e a crise de paradigmas não podem se constituir num álibi para o imobilismo. No início deste século, H. G. Wells dizia que ―a História da Humanidade é cada vez mais a disputa de uma corrida entre a educação e a catástrofe‖. A julgar pelas duas grandes guerras que marcaram a ―História da Humanidade‖, na primeira metade do século XX, a catástrofe venceu. 1 Professor da Universidade de São Paulo e Diretor do Instituto Paulo Freire. Autor, dentre outras obras, de Perspectivas atuais da educação. No início dos anos 50, dizia-se que só havia uma alternativa: ―socialismo ou barbárie‖ (Cornelius Castoriadis), mas chegou-se ao final do século com a derrocada do socialismo burocrático de tipo soviético e enfraquecimento da ética socialista. E mais: pela primeira vez na história da humanidade, não por efeito de armas nucleares, mas pelo descontrole da produção industrial, pode-se destruir toda a vida do planeta. Mais do que a solidariedade, estamos vendo crescer a competitividade. Venceu a barbárie, de novo? Qual o papel da educação neste novo contexto político? Qual é o papel da educação na era da informação? Que perspectivas podemos apontar para a educação nesse início do Terceiro Milênio? Para onde vamos? Para iniciar, verifica-se o significado da palavra ―perspectiva‖. A palavra ―perspectiva‖ vem do latim tardio ―perspectivus‖, que deriva de dois verbos: perspecto, que significa ―olhar até o fim, examinar atentamente‖; e perspicio, que significa ―olhar através, ver bem, olhar atentamente, examinar com cuidado, reconhecer claramente‖ (Dicionário Escolar Latino-Português, de Ernesto Faria). A palavra ―perspectiva‖ é rica de significações. Segundo o Dicionário de filosofia, do filósofo italiano Nicola Abbagnano, perspectiva seria ―uma antecipação qualquer do futuro: projeto, esperança, ideal, ilusão, utopia. O termo exprime o mesmo conceito de possibilidade mas de um ponto de vista mais genérico e que menos compromete,dado que podem aparecer como perspectivas coisas que não têm suficiente consistência para serem possibilidades autênticas‖. Para o Dicionário Aurélio, muito conhecido entre nós, brasileiros, perspectiva é a ―arte de representar os objetos sobre um plano tais como se apresentam à vista; pintura que representa paisagens e edifícios a distância; aspecto dos objetos vistos de uma certa distância; panorama; aparência, aspecto; aspecto sob o qual uma coisa se apresenta, ponto de vista; expectativa, esperança‖. Perspectiva significa ao mesmo tempo enfoque, quando se fala, por exemplo, em perspectiva política, e possibilidade, crença em acontecimentos considerados prováveis e bons. Falar em perspectivas é falar de esperança no futuro. Hoje muitos educadores, perplexos diante das rápidas mudanças na sociedade, na tecnologia e na economia, perguntam-se sobre o futuro de sua profissão, alguns com medo de perdê-la sem saber o que devem fazer. Então, aparecem, no pensamento educacional, todas as palavras citadas por Abbagnano e Aurélio: ―projeto‖ político-pedagógico, pedagogia da ―esperança‖, ―ideal‖ pedagógico, ―ilusão‖ e ―utopia‖ pedagógica, o futuro como ―possibilidade‖. Fala-se muito hoje em ―cenários‖ possíveispara a educação, portanto, em ―panoramas‖, representação de ―paisagens‖. Para se desenhar uma perspectiva é preciso ―distanciamento‖. É sempre um ―ponto de vista‖. Todas essas palavras entre aspas indicam uma certa direção ou, pelo menos, um horizonte em direção ao qual se caminha ou se pode caminhar. Elas designam ―expectativas‖ e anseios que podem ser captados, capturados, sistematizados e colocados em evidência. UM PASSADO SEMPRE PRESENTE A virada do milênio é razão oportuna para um balanço sobre práticas e teorias que atravessaram os tempos. Falar de ―perspectivas atuais da educação‖ é também falar, discutir, identificar o ―espírito‖ presente no campo das idéias, dos valores e das práticas educacionais que as perpassa, marcando o passado, caracterizando o presente e abrindo possibilidades para o futuro. Algumas perspectivas teóricas que orientaram muitas práticas poderão desaparecer, e outras permanecerão em sua essência. Quais teorias e práticas fixaram-se no ethos educacional, criaram raízes, atravessaram o milênio e estão presentes hoje? Para entender o futuro é preciso revisitar o passado. No cenário da educação atual, podem ser destacados alguns marcos, algumas pegadas, que persistem e poderão persistir na educação do futuro. Educação Tradicional Enraizada na sociedade de classes escravista da Idade Antiga, destinada a uma pequena minoria, a educação tradicional iniciou seu declínio já no movimento renascentista, mas ela sobrevive até hoje, apesar da extensão média da escolaridade trazida pela educação burguesa. A educação nova, que surge de forma mais clara a partir da obra de Rousseau, desenvolveu-se nesses últimos dois séculos e trouxe consigo numerosas conquistas, sobretudo no campo das ciências da educação e das metodologias de ensino. O conceito de ―aprender fazendo‖ de John Dewey e as técnicas Freinet, por exemplo, são aquisições definitivas na história da pedagogia. Tanto a concepção tradicional de educação quanto a nova, amplamente consolidadas, terão um lugar garantido na educação do futuro. A educação tradicional e a nova têm em comum a concepção da educação como processo de desenvolvimento individual. Todavia, o traço mais original da educação desse século é o deslocamento de enfoque do individual para o social, para o político e para o ideológico. A pedagogia institucional é um exemplo disso. A experiência de mais de meio século de educação nos países socialistas também o testemunha. A educação, no século XX, tornou-se permanente e social. É verdade, existem ainda muitos desníveis entre regiões e países, entre o Norte e o Sul, entre países periféricos e hegemônicos, entre países globalizadores e globalizados. Entretanto, há idéias universalmente difundidas, entre elas a de que não há idade para se educar, de que a educação se estende pela vida e que ela não é neutra. Educação Internacionalizada No início da segunda metade deste século, educadores e políticos imaginaram uma educação internacionalizada, confiada a uma grande organização, a Unesco. Os países altamente desenvolvidos já haviam universalizado o ensino fundamental e eliminado o analfabetismo. Os sistemas nacionais de educação trouxeram um grande impulso, desde o século passado, possibilitando numerosos planos de educação, que diminuíram custos e elevaram os benefícios. A tese de uma educação internacional já existia deste 1899, quando foi fundado, em Bruxelas, o Bureau Internacional de Novas Escolas, por iniciativa do educador Adolphe Ferrière. Como resultado, tem-se hoje uma grande uniformidade nos sistemas de ensino. Pode-se dizer que hoje todos os sistemas educacionais contam com uma estrutura básica muito parecida. No final do século XX, o fenômeno da globalização deu novo impulso à idéia de uma educação igual para todos, agora não como princípio de justiça social, mas apenas como parâmetro curricular comum. Novas Tecnologias As conseqüências da evolução das novas tecnologias, centradas na comunicação de massa, na difusão do conhecimento, ainda não se fizeram sentir plenamente no ensino – como previra McLuhan já em 1969 –, pelo menos na maioria das nações, mas a aprendizagem a distância, sobretudo a baseada na Internet, parece ser a grande novidade educacional neste início de novo milênio. A educação opera com a linguagem escrita e a nossa cultura atual dominante vive impregnada por uma nova linguagem, a da televisão e a da informática, particularmente a linguagem da Internet. A cultura do papel representa talvez o maior obstáculo ao uso intensivo da Internet, em particular da educação a distância com base na Internet. Por isso, os jovens que ainda não internalizaram inteiramente essa cultura adaptam-se com mais facilidade do que os adultos ao uso do computador. Eles já estão nascendo com essa nova cultura, a cultura digital. Os sistemas educacionais ainda não conseguiram avaliar suficientemente o impacto da comunicação audiovisual e da informática, seja para informar, seja para bitolar ou controlar as mentes. Ainda trabalha-se muito com recursos tradicionais que não têm apelo para as crianças e jovens. Os que defendem a informatização da educação sustentam que é preciso mudar profundamente os métodos de ensino para reservar ao cérebro humano o que lhe é peculiar, a capacidade de pensar, em vez de desenvolver a memória. Para ele, a função da escola será, cada vez mais, a de ensinar a pensar criticamente. Para isso é preciso dominar mais metodologias e linguagens, inclusive a linguagem eletrônica. Paradigmas Holonômicos Entre as novas teorias surgidas nesses últimos anos, despertaram interesse dos educadores os chamados paradigmas holonômicos, ainda pouco consistentes. Complexidade e holismo são palavras cada vez mais ouvidas nos debates educacionais. Nesta perspectiva, pode-se incluir as reflexões de Edgar Morin, que critica a razão produtivista e a racionalização modernas, propondo uma lógica do vivente. Esses paradigmas sustentam um princípio unificador do saber, do conhecimento, em torno do ser humano, valorizando o seu cotidiano, o seu vivido, o pessoal, a singularidade, o entorno, o acaso e outras categorias como: decisão, projeto, ruído, ambigüidade, finitude, escolha, síntese, vínculo e totalidade. Essas seriam algumas das categorias dos paradigmas chamados holonômicos. Etimologicamente, holos, em grego, significa todo e os novos paradigmas procuram centrarse na totalidade. Mais do que a ideologia, seria a utopia que teria essa força para resgatar a totalidade do real, totalidade perdida. Para os defensores desses novos paradigmas, os paradigmas clássicos – identificados no positivismo e no marxismo – seriam marcados pela ideologia e lidariam com categorias redutoras da totalidade. Ao contrário, os paradigmas holonômicos pretendem restaurar a totalidade do sujeito, valorizando a sua iniciativa e a sua criatividade, valorizando o micro, a complementaridade, a convergência e a complexidade. Para eles, os paradigmas clássicos sustentam o sonho milenarista de uma sociedade plena, sem arestas, em que nada perturbaria um consenso sem fricções. Ao aceitar como fundamento da educação uma antropologia que concebe o homem como um ser essencialmente contraditorial, os paradigmas holonômicos pretendem manter, sem pretender superar, todos os elementos da complexidade da vida. Os holistas sustentam que o imaginário e a utopia são os grandes fatores instituintes da sociedade e recusam uma ordem que aniquila o desejo, a paixão, o olhar e a escuta. Os enfoques clássicos, segundo eles, banalizam essas dimensões da vida porque sobrevalorizam o macro-estrutural, o sistema, em que tudo é função ou efeito das superestruturas socioeconômicas ou epistêmicas, lingüísticas e psíquicas. Para os novos paradigmas, a história é essencialmente possibilidade, em que o que vale é o imaginário (Gilbert Durand, Cornelius Castoriadis), o projeto. Existem tantos mundos quanto nossa capacidade de imaginar. Para eles, ―a imaginação está no poder‖, como queriam os estudantes em maio de 1968. Na verdade, essas categorias não são novas na teoria da educação, mas hoje são lidas e analisadas com mais simpatia do que no passado. Sob diversas formas e com diferentes significados, essas categorias são encontradas em muitos intelectuais, filósofos e educadores, de ontem e de hoje: o ―sentido do outro‖, a ―curiosidade‖ (Paulo Freire), a ―tolerância‖ (Karl Jaspers), a ―estrutura de acolhida‖ (Paul Ricoeur), o ―diálogo‖ (Martin Buber), a ―autogestão‖ (Celestin Freinet, Michel Lobrot), a ―desordem‖ (Edgar Morin), a ―ação comunicativa‖, o ―mundo vivido‖ (Jürgen Habermas), a ―radicalidade‖ (Agnes Heller), a ―empatia‖ (Carl Rogers), a ―questão de gênero‖ (Moema Viezzer, Nelly Stromquist), o―cuidado‖ (Leonardo Boff), a ―esperança‖ (Ernest Bloch), a ―alegria‖ (Georges Snyders), a unidade do homem contra as ―unidimensionalizações‖ (Herbert Marcuse), etc. Evidentemente, nem todos esses autores aceitariam enquadrar-se nos paradigmas holonômicos. Todas as classificações e tipologias, no campo das idéias, são necessariamente reducionistas. Não se pode negar as divergências existentes entre eles. Contudo, as categorias apontadas anteriormente indicam uma certa tendência, ou melhor, uma perspectiva da educação. Os que sustentam os paradigmas holonômicos procuram buscar na unidade dos contrários e na cultura contemporânea um sinal dos tempos, uma direção do futuro, que eles chamam de pedagogia da unidade. Educação Popular O paradigma da educação popular, inspirado originalmente no trabalho de Paulo Freire nos anos 60, encontrava na conscientização sua categoria fundamental. A prática e a reflexão sobre a prática levaram a incorporar outra categoria não menos importante: a da organização. Afinal, não basta estar consciente, é preciso organizar-se para poder transformar. Nos últimos anos, os educadores que permaneceram fiéis aos princípios da educação popular atuaram principalmente em duas direções: na educação pública popular – no espaço conquistado no interior do Estado –; e na educação popular comunitária e na educação ambiental ou sustentável, predominantemente não governamentais. Durante os regimes autoritários da América Latina, a educação popular manteve sua unidade, combatendo as ditaduras e apresentando projetos ―alternativos‖. Com as conquistas democráticas, ocorreu com a educação popular uma grande fragmentação em dois sentidos: de um lado ela ganhou uma nova vitalidade no interior do Estado, diluindo-se em suas políticas públicas; e, de outro, continuou como educação nãoformal, dispersando- se em milhares de pequenas experiências. Perdeu em unidade, ganhou em diversidade e conseguiu atravessar numerosas fronteiras. Hoje ela incorporou-se ao pensamento pedagógico universal e orienta a atuação de muitos educadores espalhados pelo mundo, como o testemunha o Fórum Paulo Freire, que se realiza de dois em dois anos, reunindo educadores de muitos países. As práticas de educação popular também constituem-se em mecanismos de democratização, em que se refletem os valores de solidariedade e de reciprocidade e novas formas alternativas de produção e de consumo, sobretudo as práticas de educação popular comunitária, muitas delas voluntárias. O Terceiro Setor está crescendo não apenas como alternativa entre o Estado burocrático e o mercado insolidário, mas também como espaço de novas vivências sociais e políticas hoje consolidadas com as organizações nãogovernamentais (ONGs) e as organizações de base comunitária (OBCs). Este está sendo hoje o campo mais fértil da educação popular. Diante desse quadro, a educação popular, como modelo teórico reconceituado, tem oferecido grandes alternativas. Dentre elas, está a reforma dos sistemas de escolarização pública. A vinculação da educação popular com o poder local e a economia popular abre, também, novas e inéditas possibilidades para a prática da educação. O modelo teórico da educação popular, elaborado na reflexão sobre a prática da educação durante várias décadas, tornou-se, sem dúvida, uma das grandes contribuições da América Latina à teoria e à prática educativa em âmbito internacional. A noção de aprender a partir do conhecimento do sujeito, a noção de ensinar a partir de palavras e temas geradores, a educação como ato de conhecimento e de transformação social e a politicidade da educação são apenas alguns dos legados da educação popular à pedagogia crítica universal. Universalização da Educação Básica e Novas Matrizes Teóricas Neste começo de um novo milênio, a educação apresenta- se numa dupla encruzilhada: de um lado, o desempenho do sistema escolar não tem dado conta da universalização da educação básica de qualidade; de outro, as novas matrizes teóricas não apresentam ainda a consistência global necessária para indicar caminhos realmente seguros numa época de profundas e rápidas transformações. Essa é uma das preocupações do Instituto Paulo Freire, buscando, a partir do legado de Paulo Freire, consolidar o seu ―Projeto da Escola Cidadã‖, como resposta à crise de paradigmas. A concepção teórica e as práticas desenvolvidas a partir do conceito de Escola Cidadã podem constituir-se numa alternativa viável, de um lado, ao projeto neoliberal de educação, amplamente hegemônico, baseado na ética do mercado, e, de outro lado, à teoria e à prática de uma educação burocrática, sustentada na ―estadolatria‖ (Antonio Gramsci). É uma escola que busca fortalecer autonomamente o seu projeto político- pedagógico, relacionando-se dialeticamente – não mecânica e subordinadamente – com o mercado, o Estado e a sociedade. Ela visa formar o cidadão para controlar o mercado e o Estado, sendo, ao mesmo tempo, pública quanto ao seu destino – isto é, para todos – estatal quanto ao financiamento e democrática e comunitária quanto à sua gestão. Seja qual for a perspectiva que a educação contemporânea tomar, uma educação voltada para o futuro será sempre uma educação contestadora, superadora dos limites impostos pelo Estado e pelo mercado, portanto, uma educação muito mais voltada para a transformação social do que para a transmissão cultural. Por isso, acredita- se que a pedagogia da práxis, como uma pedagogia transformadora, em suas várias manifestações, pode oferecer um referencial geral mais seguro do que as pedagogias centradas na transmissão cultural, neste momento de perplexidade. SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E EDUCAÇÃO Costuma-se definir nossa era como a era do conhecimento. Se for pela importância dada hoje ao conhecimento, em todos os setores, pode-se dizer que se vive mesmo na era do conhecimento, na sociedade do conhecimento, sobretudo em conseqüência da informatização e do processo de globalização das telecomunicações a ela associado. Pode ser que, de fato, já se tenha ingressado na era do conhecimento, mesmo admitindo que grandes massas da população estejam excluídas dele. Todavia, o que se constata é a predominância da difusão de dados e informações e não de conhecimentos. Isso está sendo possível graças às novas tecnologias que estocam o conhecimento, de forma prática e acessível, em gigantescos volumes de informações, que são armazenadas inteligentemente, permitindo a pesquisa e o acesso de maneira muito simples, amigável e flexível. É o que já acontece com a Internet: para ser ―usuário‖, basta dispor de uma linha telefônica e um computador. ―Usuário‖ não significa aqui apenas receptor de informações, mas também emissor de informações. Pela Internet, a partir de qualquer sala de aula do planeta, pode-se acessar inúmeras bibliotecas em muitas partes do mundo. As novas tecnologias permitem acessar conhecimentos transmitidos não apenas por palavras, mas também por imagens, sons, fotos, vídeos (hipermídia), etc. Nos últimos anos, a informação deixou de ser uma área ou especialidade para se tornar uma dimensão de tudo, transformando profundamente a forma como a sociedade se organiza. Pode-se dizer que está em andamento uma Revolução da Informação, como ocorreram no passado a Revolução Agrícola e a Revolução Industrial. Ladislau Dowbor (1998), após descrever as facilidades que as novas tecnologias oferecem ao professor, se pergunta: o que eu tenho a ver com tudo isso, se na minha escola não tem nem biblioteca e com o meu salário eu não posso comprar um computador? Ele mesmo responde que será preciso trabalhar em dois tempos: o tempo do passado e o tempo do futuro. Fazer tudo hoje para superar as condições do atraso e, ao mesmo tempo, criar as condições para aproveitar amanhã as possibilidades das novas tecnologias. As novas tecnologias criaram novos espaços do conhecimento. Agora, além da escola, também a empresa, o espaço domiciliar e o espaço social tornaram-se educativos. Cada dia mais pessoas estudam em casa, pois podem, de casa, acessar o ciberespaço da formação e da aprendizagem a distância, buscar ―fora‖ – a informação disponível nas redes de computadores interligados – serviços que respondem às suas demandas de conhecimento. Por outro lado, a sociedade civil (ONGs, associações, sindicatos, igrejas, etc.) está se fortalecendo não apenas como espaço de trabalho, em muitos casos, voluntário, mas também como espaço de difusão de conhecimentos e de formação continuada. É um espaço potencializado pelas novas tecnologias, inovando constantemente nas metodologias. Novas oportunidades parecem abrir-se para os educadores. Esses espaços de formação têm tudo para permitir maior democratização da informação e do conhecimento, portanto, menos distorção e menos manipulação, menos controle e mais liberdade. É uma questão de tempo, de políticas públicas adequadas e de iniciativa da sociedade. A tecnologia não basta. É preciso a participação mais intensa e organizada da sociedade. O acesso à informação não é apenas um direito. É um direito fundamental, um direito primário, o primeiro de todos os direitos, pois sem ele não se tem acesso aos outros direitos. Na formação continuada necessita-se de maior integração entre os espaços sociais (domiciliar, escolar, empresarial, etc.), visando equipar o aluno para viver melhor na sociedade do conhecimento. Como previa Herbert McLuhan, o planeta tornou-se a nossa sala de aula e o nosso endereço. O ciberespaço não está em lugar nenhum, pois está em todo o lugar o tempo todo. Estar num lugar significaria estar determinado pelo tempo (hoje, ontem, amanhã). No ciberespaço, a informação está sempre e permanentemente presente e em renovação constante. O ciberespaço rompeu com a idéia de tempo próprio para a aprendizagem. Não há tempo e espaço próprios para a aprendizagem. Como ele está todo o tempo em todo lugar, o espaço da aprendizagem é aqui – em qualquer lugar – e o tempo de aprender é hoje e sempre. A sociedade do conhecimento se traduz por redes, ―teias‖ (Ivan Illich), ―árvores do conhecimento‖ (Humberto Maturana), sem hierarquias, em unidades dinâmicas e criativas, favorecendo a conectividade, o intercâmbio, consultas entre instituições e pessoas, articulação, contatos e vínculos, interatividade. A conectividade é a principal característica da Internet. O conhecimento é o grande capital da humanidade. Não é apenas o capital da transnacional que precisa dele para a inovação tecnológica. Ele é básico para a sobrevivência de todos e, por isso, não deve ser vendido ou comprado, mas sim disponibilizado a todos. Esta é a função de instituições que se dedicam ao conhecimento apoiado nos avanços tecnológicos. Espera-se que a educação do futuro seja mais democrática, menos excludente. Essa é ao mesmo tempo nossa causa e nosso desafio. Infelizmente, diante da falta de políticas públicas no setor, acabaram surgindo ―indústrias do conhecimento‖, prejudicando uma possível visão humanista, tornando-o instrumento de lucro e de poder econômico. A educação, em particular a educação a distância, é um bem coletivo e, por isso, não deve ser regulada pelo jogo do mercado, nem pelos interesses políticos ou pelo furor legiferante de regulamentar, credenciar, autorizar, reconhecer, avaliar, etc. de muitos tecnoburocratas. Quem deve decidir sobre a qualidade dos seus certificados não é nem o Estado e nem o mercado, mas sim a sociedade e o sujeito aprendente. Na era da informação generalizada, existirá ainda necessidade de diplomas? O que cabe à escola na sociedade informacional? Cabe a ela organizar um movimento global de renovação cultural, aproveitando-se de toda essa riqueza de informações. Hoje é a empresa que está assumindo esse papel inovador. A escola não pode ficar a reboque das inovações tecnológicas. Ela precisa ser um centro de inovação. Temos uma tradição de dar pouca importância à educação tecnológica, a qual deveria começar já na educação infantil. Na sociedade da informação, a escola deve servir de bússola para navegar nesse mar do conhecimento, superando a visão utilitarista de só oferecer informações ―úteis‖ para a competitividade, para obter resultados. Deve oferecer uma formação geral na direção de uma educação integral. O que significa servir de bússola? Significa orientar criticamente, sobretudo as crianças e jovens, na busca de uma informação que os faça crescer e não embrutecer. Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da ―reciclagem‖ e da atualização de conhecimentos e muito mais além da ―assimilação‖ de conhecimentos. A sociedade do conhecimento possui múltiplas oportunidades de aprendizagem: parcerias entre o público e o privado (família, empresa, associações, etc.); avaliações permanentes; debate público; autonomia da escola; generalização da inovação. As conseqüências para a escola e para a educação em geral são enormes: ensinar a pensar; saber comunicar- se; saber pesquisar; ter raciocínio lógico; fazer sínteses e elaborações teóricas; saber organizar o seu próprio trabalho; ter disciplina para o trabalho; ser independente e autônomo; saber articular o conhecimento com a prática; ser aprendiz autônomo e a distância. Neste contexto de impregnação do conhecimento, cabe à escola: amar o conhecimento como espaço de realização humana, de alegria e de contentamento cultural; selecionar e rever criticamente a informação; formular hipóteses; ser criativa e inventiva (inovar); ser provocadora de mensagens e não pura receptora; produzir, construir e reconstruir conhecimento elaborado. E mais: numa perspectiva emancipadora da educação, a escola tem que fazer tudo isso em favor dos excluídos, não discriminando o pobre. Ela não pode distribuir poder, mas pode construir e reconstruir conhecimentos, saber, que é poder. Numa perspectiva emancipadora da educação, a tecnologia contribui muito pouco para a emancipação dos excluídos se não for associada ao exercício da cidadania. Como diz Ladislau Dowbor (1998:259), a escola deixará de ser ―lecionadora‖ para ser ―gestora do conhecimento‖. Segundo o autor, ―pela primeira vez a educação tem a possibilidade de ser determinante sobre o desenvolvimento‖. A educação tornou-se estratégica para o desenvolvimento, mas, para isso, não basta ―modernizá-la‖, como querem alguns. Será preciso transformá-la profundamente. A escola precisa ter projeto, precisa de dados, precisa fazer sua própria inovação, planejar-se a médio e a longo prazos, fazer sua própria reestruturação curricular, elaborar seus parâmetros curriculares, enfim, ser cidadã. As mudanças que vêm de dentro das escolas são mais duradouras. Da sua capacidade de inovar, registrar, sistematizar a sua prática/experiência, dependerá o seu futuro. Nesse contexto, o educador é um mediador do conhecimento, diante do aluno que é o sujeito da sua própria formação. Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz e, para isso, também precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para o que fazer dos seus alunos. Em geral, temos a tendência de desvalorizar o que fazemos na escola e de buscar receitas fora dela quando é ela mesma que deveria governar-se. É dever dela ser cidadã e desenvolver na sociedade a capacidade de governar e controlar o desenvolvimento econômico e o mercado. A cidadania precisa controlar o Estado e o mercado, verdadeira alternativa ao capitalismo neoliberal e ao socialismo burocrático e autoritário. A escola precisa dar o exemplo, ousar construir o futuro. Inovar é mais importante do que reproduzir com qualidade o que existe. A matéria-prima da escola é sua visão do futuro. A escola está desafiada a mudar a lógica da construção do conhecimento, pois aprendizagem agora ocupa toda a nossa vida. E porque passamos todo o tempo de nossas vidas na escola – não só nós, professores – devemos ser felizes nela. A felicidade na escola não é uma questão de opção metodológica ou ideológica, mas sim uma obrigação essencial dela. Como diz Georges Snyders (1998) no livro A alegria na escola, precisamos de uma nova ―cultura da satisfação‖, precisamos da ―alegria cultural‖. O mundo de hoje é ―favorável à satisfação‖ e a escola também pode sê-lo. O que é ser professor hoje? Ser professor hoje é viver intensamente o seu tempo, conviver; é ter consciência e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro para a humanidade sem educadores, assim como não se pode pensar num futuro sem poetas e filósofos. Os educadores, numa visão emancipadora, não só transformam a informação em conhecimento e em consciência crítica, mas também formam pessoas. Diante dos falsos pregadores da palavra, dos marketeiros, eles são os verdadeiros ―amantes da sabedoria‖, os filósofos de que nos falava Sócrates. Eles fazem fluir o saber (não o dado, a informação e o puro conhecimento), porque constróem sentido para a vida das pessoas e para a humanidade e buscam, juntos, um mundo mais justo, mas produtivo e mais saudável para todos. Por isso eles são imprescindíveis. PARA PENSAR A EDUCAÇÃO DO FUTURO Jacques Delors (1998), coordenador do ―Relatório para a Unesco da Comissão Internacional Sobre Educação para o Século XXI‖, no livro Educação: um tesouro a descobrir, aponta como principal conseqüência da sociedade do conhecimento a necessidade de uma aprendizagem ao longo de toda a vida (Lifelong Learning) fundada em quatro pilares que são ao mesmo tempo pilares do conhecimento e da formação continuada. Esses pilares podem ser tomados também como bússola para nos orientar rumo ao futuro da educação. Aprender a conhecer – Prazer de compreender, descobrir, construir e reconstruir o conhecimento, curiosidade, autonomia, atenção. Inútil tentar conhecer tudo. Isso supõe uma cultura geral, o que não prejudica o domínio de certos assuntos especializados. Aprender a conhecer é mais do que aprender a aprender. Aprender mais linguagens e metodologias do que conteúdos, pois estes envelhecem rapidamente. Não basta aprender a conhecer. É preciso aprender a pensar, a pensar a realidade e não apenas ―pensar pensamentos‖, pensar o já dito, o já feito, reproduzir o pensamento. É preciso pensar também o novo, reinventar o pensar, pensar e reinventar o futuro. Aprender a fazer – É indissociável do aprender a conhecer. A substituição de certas atividades humanas por máquinas acentuou o caráter cognitivo do fazer. O fazer deixou de ser puramente instrumental. Nesse sentido, vale mais hoje a competência pessoal que torna a pessoa apta a enfrentar novas situações de emprego, mas apta a trabalhar em equipe, do que a pura qualificação profissional. Hoje, o importante na formação do trabalhador, também do trabalhador em educação, é saber trabalhar coletivamente, ter iniciativa, gostar do risco, ter intuição, saber comunicarse, saber resolver conflitos, ter estabilidade emocional. Essas são, acima de tudo, qualidades humanas que se manifestam nas relações interpessoais mantidas no trabalho. A flexibilidade é essencial. Existem hoje perto de 11 mil funções na sociedade contra aproximadamente 60 profissões oferecidas pelas universidades. Como as profissões evoluem muito rapidamente, não basta preparar- se profissionalmente para um trabalho. Aprender a viver juntos – a viver com os outros. Compreender o outro, desenvolver a percepção da interdependência, da não-violência, administrar conflitos. Descobrir o outro, participar em projetos comuns. Ter prazer no esforço comum. Participar de projetos de cooperação. Essa é a tendência. No Brasil, como exemplo desta tendência, pode-se citar a inclusão de temas/eixos transversais (ética, ecologia, cidadania, saúde, diversidade cultural) nos Parâmetros Curriculares Nacionais, que exigem equipes interdisciplinares e trabalho em projetos comuns. Aprender a ser – Desenvolvimento integral da pessoa: inteligência, sensibilidade, sentido ético e estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade, pensamento autônomo e crítico, imaginação, criatividade, iniciativa. Para isso não se deve negligenciar nenhuma das potencialidades de cada indivíduo. A aprendizagem não pode ser apenas lógico-matemática e lingüística. Precisa ser integral. Iniciou-se este texto procurando situar o que significa ―perspectiva‖. Sem pretender fazer qualquer exercício de futurologia e muito mais no sentido de estabelecer pontos para o debate, serão apontados aqui algumas categorias em torno da educação do futuro, que indicam o surgimento de temas com importantes conseqüências para a educação. As categorias ―contradição‖, ―determinação‖, ―reprodução‖, ―mudança‖, ―trabalho‖, ―práxis‖, ―necessidade‖, ―possibilidade‖ aparecem freqüentemente na literatura pedagógica contemporânea, sinalizando já uma perspectiva da educação, a perspectiva da pedagogia da práxis. Essas categorias tornaram-se clássicas na explicação do fenômeno da educação, principalmente a partir de Hegel e de Marx. A dialética constitui-se, até hoje, no paradigma mais consistente para analisar o fenômeno da educação. Pode-se e deve-se estudá-la e estudar todas as categorias anteriormente apontadas. Elas não podem ser negadas, pois ajudarão muito na leitura do mundo da educação atual. Elas não podem ser negadas ou desprezadas como categorias ―ultrapassadas‖. Porém, também podemos nos ocupar mais especificamente de outras, ao pensar a educação do futuro, categorias nascidas ao mesmo tempo da prática da educação e da reflexão sobre ela. Eis algumas delas a título de exemplo. Cidadania – O que implica também tratar do tema da autonomia da escola, de seu projeto político-pedagógico, da questão da participação, da educação para a cidadania. Dentro desta categoria, pode-se discutir particularmente o significado da concepção de escola cidadã e de suas diferentes práticas. Educar para a cidadania ativa tornou-se hoje projeto e programa de muitas escolas e de sistemas educacionais. Planetaridade – A Terra é um ―novo paradigma‖ (Leonardo Boff). Que implicações tem essa visão de mundo sobre a educação? O que seria uma ecopedagogia (Francisco Gutiérrez) e uma ecoformação (Gaston Pineau)? O tema da cidadania planetária pode ser discutido a partir desta categoria. Podemos nos perguntar como Milton Nascimento: ―para que passaporte se fazemos parte de uma única nação?‖ Que conseqüências podemos tirar para alunos, professores e currículos? Sustentabilidade – O tema da sustentabilidade originou-se na economia (―desenvolvimento sustentável‖) e na ecologia, para se inserir definitivamente no campo da educação, sintetizada no lema ―uma educação sustentável para a sobrevivência do planeta‖. O que seria uma cultura da sustentabilidade? Esse tema deverá dominar muitos debates educativos das próximas décadas. O que estamos estudando nas escolas? Não estaremos construindo uma ciência e uma cultura que servem para a degradação/deterioração do planeta? Virtualidade – Esse tema implica toda a discussão atual sobre a educação a distância e o uso dos computadores nas escolas (Internet). A informática, associada à telefonia, nos inseriu definitivamente na era da informação. Quais as conseqüências para a educação, para a escola, para a formação do professor e para a aprendizagem? Conseqüências da obsolescência do conhecimento. Como fica a escola diante da pluralidade dos meios de comunicação? Eles abrem os novos espaços da formação ou irão substituir a escola? Globalização – O processo da globalização está mudando a política, a economia, a cultura, a história e, portanto, também a educação. É um tema que deve ser enfocado sob vários prismas. A globalização remete também ao poder local e às conseqüências locais da nossa dívida externa global (e dívida interna também, a ela associada). O global e o local se fundem numa nova realidade: o ―glocal‖. O estudo desta categoria remete à necessária discussão do papel dos municípios e do ―regime de colaboração‖ entre União, estados, municípios e comunidade, nas perspectivas atuais da educação básica. Para pensar a educação do futuro, é necessário refletir sobre o processo de globalização da economia, da cultura e das comunicações. Transdisciplinaridade – Embora com significados distintos, certas categorias como transculturalidade transversalidade, multiculturalidade e outras como complexidade e holismo também indicam uma nova tendência na educação que será preciso analisar. Como construir interdisciplinarmente o projeto pedagógico da escola? Como relacionar multiculturalidade e currículo? É necessário realizar o debate dos PCN. Como trabalhar com os ―temas transversais‖? O desafio de uma educação sem discriminação étnica, cultural, de gênero. Dialogicidade, dialeticidade – Não se pode negar a atualidade de certas categorias freireanas e marxistas, a validade de uma pedagogia dialógica ou da práxis. Marx, em O capital, privilegiou as categorias hegelianas ―determinação‖, ―contradição‖, ―necessidade‖ e ―possibilidade‖. A fenomenologia hegeliana continua inspirando nossa educação e deverá atravessar o milênio. A educação popular e a pedagogia da práxis deverão continuar como paradigmas válidos para além do ano 2000. A análise dessas categorias e a identificação da sua presença na pedagogia contemporânea podem constituir-se, sem dúvida, num grande programa a ser desenvolvido hoje em torno das ―perspectivas atuais da educação‖. Não se pretende aqui dar respostas definitivas. Com esse pequeno texto introdutório, procurou-se apenas iniciar um debate sobre as perspetivas atuais da educação, sem a intenção de, com isso, encerrá-lo. Existem muitos outros desafios para a educação. A reflexão crítica não basta, como também não basta a prática sem a reflexão sobre ela. Aqui, são indicadas apenas algumas pistas, dentro de uma visão otimista e crítica – não pessimista e ingênua – para uma análise em profundidade daqueles que se interessam por uma ―educação voltada para o futuro‖, como dizia o grande educador polonês, o marxista Bogdan Suchodolski. TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM: <http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf > Carlos Rodrigues Brandão O Que é Educação BRANDÃO, Carlos Rodrigues O que é educação/ Carlos Rodrigues Brandão São Paulo: brasiliense, 2007 - (coleção primeiros passos; 20) 49ª reimpr.da 1 ed.de 1981 I. Educação I. titulo II. Série 07- 0589 CDD-370 EDUCAÇÃO? EDUCAÇÕES: APRENDER COM O ÍNDIO Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo o azul, e não se aparta de sua água — carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. João Guimarães Rosa/Grande Senão: Veredas Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação. Com uma ou com várias: educação? Educações. E já que pelo menos por isso sempre achamos que temos alguma coisa a dizer sobre a educação que nos invade a vida, por que não começar a pensar sobre ela com o que uns índios uma vez escreveram? Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa: "...Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa. ...Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens." De tudo o que se discute hoje sobre a educação, algumas das questões entre as mais importantes estão escritas nesta carta de índios. Não há uma forma única nem um único modelo de educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional não é o seu único praticante. Em mundos diversos a educação existe diferente: em pequenas sociedades tribais de povos caçadores, agricultores ou pastores nômades; em sociedades camponesas, em países desenvolvidos e industrializados; em mundos sociais sem classes, de classes, com este ou aquele tipo de conflito entre as suas classes; em tipos de sociedades e culturas sem Estado, com um Estado em formação ou com ele consolidado entre e sobre as pessoas. Existe a educação de cada categoria de sujeitos de um povo; ela existe em cada povo, ou entre povos que se encontram. Existe entre povos que submetem e dominam outros povos, usando a educação como um recurso a mais de sua dominância. Da família à comunidade, a educação existe difusa em todos os mundos sociais, entre as incontáveis práticas dos mistérios do aprender; primeiro, sem classes de alunos, sem livros e sem professores especialistas; mais adiante com escolas, salas, professores e métodos pedagógicos. A educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como idéia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos. A educação é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade. Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-eaprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e desde onde ajuda a explicar — às vezes a ocultar, às vezes a inculcar — de geração em geração, a necessidade da existência de sua ordem. Por isso mesmo — e os índios sabiam — a educação do colonizador, que contém o saber de seu modo de vida e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domínio, na verdade não serve para ser a educação do colonizado. Não serve e existe contra uma educação que ele, não obstante dominado, também possui como um dos seus recursos, em seu mundo, dentro de sua cultura. Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas, a educação é um dos meios de que os homens lançam mão para criar guerreiros ou burocratas. Ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a educação participa do processo de produção de crenças e idéias, de qualificações e especialidades que envolvem as trocas de símbolos, bens e poderes que, em conjunto, constróem tipos de sociedades. E esta é a sua força. No entanto, pensando às vezes que age por si próprio, livre e em nome de todos, o educador imagina que serve ao saber e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar servindo a quem o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho, para os usos escusos que ocultam também na educação — nas suas agências, suas práticas e nas idéias que ela professa — interesses políticos impostos sobre ela e, através de seu exercício, à sociedade que habita. E esta é a sua fraqueza. Aqui e ali será preciso voltar a estas idéias, e elas podem ser como que um roteiro daqui para a frente. A educação existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz. para fora, que a sua missão é transformar sujeitos e mundos em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem de uns e outros: "...e deles faremos homens". Mas, na prática, a mesma educação que ensina pode deseducar, e pode correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer: "...eles eram, portanto, totalmente inúteis". QUANDO A ESCOLA É A ALDEIA A educação existe onde não há a escola e por toda parte podem haver redes e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, onde ainda não foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal e centralizado. Porque a educação aprende com o homem a continuar o trabalho da vida. A vida que transporta de uma espécie para a outra, dentro da história da natureza, e de uma geração a outra de viventes, dentro da história da espécie, os princípios através dos quais a própria vida aprende e ensina a sobreviver e a evoluir em cada tipo de ser. Os bichos do mundo aprendem de dentro para fora com as armas naturais do instinto. Mas a isto eles acrescentam maneiras de aprender de fora para dentro, convivendo com a espécie, observando a conduta de outros iguais de seu mundo e experimentando repetir muitas vezes essas condutas da espécie, por conta própria. Entre os que nos rodeiam de perto ou de longe, não são raros os bichos cujos pais da prole criam e recriam situações, para que o treino dos filhotes faça e repita os atos da aprendizagem que garante a vida, como a mãe que um dia expulsa com amor o filho do ninho, para que ele aprenda a arte e a coragem do primeiro vôo. O homem que transforma, com o trabalho e a consciência, partes da natureza em invenções de sua cultura, aprendeu com o tempo a transformar partes das trocas feitas no interior desta cultura em situações sociais de aprender-ensinar-e-aprender: em educação. Na espécie humana a educação não continua apenas o trabalho da vida. Ela se instala dentro de um domínio propriamente humano de trocas: de símbolos, de intenções, de padrões de cultura e de relações de poder. Mas, a seu modo, ela continua no homem o trabalho da natureza de fazê-lo evoluir, de torná-lo mais humano. É esta a idéia que Werner Jaeger tem na cabeça quando, num estudo sobre a educação do homem grego, procura explicar o que ela é,afinal: "A natureza do homem, na sua dupla estrutura corpórea e espiritual, cria condições especiais para a manutenção e transmissão da sua forma particular e exige organizações físicas e espirituais, ao conjunto das quais damos o nome de educação. Na educação, como o homem a pratica, atua a mesma força vital, criadora e plástica, que espontaneamente impele todas as espécies vivas à conservação e à propagação de seu tipo. É nela, porém, que essa força atinge o seu mais alto grau de intensidade, através do esforço consciente do conhecimento e da vontade, dirigida para a consecução de um fim." Quando um povo alcança um estágio complexo de organização da sua sociedade e de sua cultura; quando ele enfrenta, por exemplo, a questão da divisão social do trabalho e, portanto, do poder, é que ele começa a viver e a pensar como problema as formas e os processos de transmissão do saber. É a partir de então que a questão da educação emerge à consciência e o trabalho de educar acrescenta à sociedade, passo a passo, os espaços, sistemas, tempos, regras de prática, tipos de profissionais e categorias de educandos envolvidos nos exercícios de maneiras cada vez menos corriqueiras e menos comunitárias do ato, afinal tão simples, de ensinar-e-aprender. No entanto, muito antes que isso aconteça, em qualquer lugar e a qualquer tempo — entre dez índios remanescentes de alguma tribo do Brasil Central, no centro da cidade de São Paulo — a educação existe sob tantas formas e é praticada em situações tão diferentes, que algumas vezes parece ser invisível, a não ser nos lugares onde pendura alguma placa na porta com o seu nome. Quando os antropólogos do começo do século saíram pelo mundo pesquisando "culturas primitivas" de sociedades tribais das Américas, da Ásia, da África e da Oceania, eles aprenderam a descrever com rigor praticamente todos os recantos da vida destas sociedades e culturas. No entanto, quase nenhum deles usa a palavra educação, embora quase todos, de uma forma ou de outra, descrevam relações cotidianas ou cerimônias rituais em que crianças aprendem e jovens são solenemente admitidos no mundo dos adultos. De vez em quando, aparece, perdido num mar de outros conceitos, o de educação, como quando Radcliffe-Brown - um antropólogo inglês que participa da criação da moderna Antropologia Social - lembra que, entre os andamaneses, um grupo tribal de ilhéus entre Burma e Sumatra, para se ajustar a criança à sua comunidade "é preciso que ela seja educada". Parte deste processo consiste em a criança e o adolescente aprenderem aos poucos a caçar, a fabricar o arco e flecha e assim por diante. Outra parte envolve . a aquisição de "sentimentos e disposições emocionais" que regulam a conduta dos membros da tribo e constituem o corpo de suas regras sociais de moralidade. Quando os antropólogos pouco falam em educação, eles pouco querem falar de processos formalizados de ensino. Porque, onde os andamaneses, os maori, os apaches ou os xavantes praticam, e os antropólogos identificam processos sociais de aprendizagem, não existe ainda nenhuma situação propriamente escolar de transferência do saber tribal que vai do fabrico do arco e flecha à recitação das rezas sagradas aos deuses da tribo. Ali, a sabedoria acumulada do grupo social não "dá aulas" e os alunos, que são todos os que aprendem, "não aprendem na escola". Tudo o que se sabe aos poucos se adquire por viver muitas e diferentes situações de trocas entre pessoas, com o corpo, com a consciência, com o corpo-e-aconsciência. As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de quem sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam os momentos e situações de aprender de crianças e adolescentes, são raros os tempos especialmente reservados apenas para o ato de ensinar. Nas aldeias dos grupos tribais mais simples, todas as relações entre a criança e a natureza, guiadas de mais longe ou mais perto pela presença de "adultos conhecedores, são situações de aprendizagem. A criança vê, entende, imita e aprende com a sabedoria que existe no próprio gesto de fazer a coisa. São também situações de aprendizagem aquelas em que as pessoas do grupo trocam bens materiais entre si ou trocam serviços e significados: a turma de caçada, no barco de pesca, no canto da cozinha da palhoça, na lavoura familiar ou comunitária de mandioca, nos grupos de brincadeiras de meninos e meninas, nas cerimônias religiosas. Émile Durkheim, um dos principais sociólogos da educação, explica isto da seguinte maneira: "Sob regime tribal, a característica essencial da educação reside no fato de ser difusa e administrada indistintamente por todos os elementos o clã. Não há mestres determinados, nem inspetores especiais para a formação da juventude: esses papéis são desempenhados por todos os anciãos e pelo conjunto das gerações anteriores." As meninas aprendem com as companheiras de idade, com as mães, as avós, as irmãs mais velhas, as velhas sábias da tribo, com esta ou aquela especialista em algum tipo de magia ou artesanato. Os meninos aprendem entre os jogos e brincadeiras de seus grupos de idade, aprendem com os pais, os irmãos-da-mãe, os avós, os guerreiros, com algum xamã (mago, feiticeiro), com os velhos em volta das fogueiras. Todos os agentes desta educação de aldeia criam de parte a parte as situações que, direta ou indiretamente, forçam iniciativas de aprendizagem e treinamento. Elas existem misturadas com a vida em momentos de trabalho, de lazer, de camaradagem ou de mor. Quase sempre não são impostas e não é raro que sejam os aprendizes os que tomam a seu cargo procurar pessoas e situações de troca que lhes possam trazer algum aprendizado. Assim, entre os Wogeo, da Nova Guiné, de acordo com o depoimento de um antropólogo: "Onde é necessário aprender habilidades especiais as crianças estão, em regra geral, ansiosas por saber o que os seus pais conhecem. O orgulho do trabalhador e o prestígio do bom artesão ominam sua vida e elas necessitam de muito pouco estímulo para procurá-los por si mesmas." O saber da comunidade, aquilo que todos conhecem de algum modo; o saber próprio dos homens e das mulheres, de crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos; o saber de guerreiros e esposas; o saber que faz o artesão, o sacerdote, o feiticeiro, o navegador e outros tantos especialistas, envolve portanto situações pedagógicas interpessoais, familiares e comunitárias, onde ainda não surgiram técnicas pedagógicas escolares, acompanhadas de seus profissionais de aplicação exclusiva. Os que sabem: fazem, ensinam, vigiam, incentivam, demonstram, corrigem, punem e premiam. Os que não sabem espiam, na vida que há no cotidiano, o saber que ali existe, vêem fazer e imitam, são instruídos com o exemplo, incentivados, treinados, corrigidos, punidos, premiados e, enfim, aos poucos aceitos entre os que sabem fazer e ensinar, com o próprio exercício vivo do fazer. Esparramadas pelos cantos do cotidiano, todas as situações entre pessoas, e entre pessoas e a natureza — situações sempre mediadas pelas regras, símbolos e valores da cultura do grupo — têm, em menor ou maior escala a sua dimensão pedagógica. Ali, todos os que convivem aprendem, aprendem, da sabedoria do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo, o saber que torna todos e cada um pessoalmente aptos e socialmente reconhecidos e legitimados para a convivência social, o trabalho, as artes da guerra e os ofícios, do amor. "Os meninos observam os homens quando fazem arcos e flechas; o homem os chama para perto de si e eles se vêem obrigados a observá-lo. As mulheres, por outro lado, levam as meninas para fora de casa, ensinando-as a conhecer as plantas boas para confeccionar cestos e a argila que serve para fazer potes. E, em casa, as mulheres tecem os cestos, costuram os mocassins e curtem a pele de cabrito diante das meninas, dizendo-lhes, enquanto estão trabalhando, que observem cuidadosamente, para que, quando forem grandes, ninguém as possa chamar de preguiçosas e ignorantes. Ensinam-nas a cozinhar e aconselham-nas sobre a busca de bagas e outros frutos, assim como sobre a colheita de alimentos." Em todos os grupos humanos mais simples, os diversos tipos de treinamento através das trocas sociais, que socializam crianças e adolescentes, incluem, entre outras, estas situações pedagógicas: treinamento direto de habilidades corporais, por meio da prática direta dos atos que conduzem o corpo ao hábito; a estimulação dirigida, para que o aprendiz faça e repita, até o acerto, os atos de saber e habilidade que ignora; a observação livre e dirigida, do educando, dos procedimentos daqueles que sabem; a correção interpessoal, familiar ou comunitária, das práticas ou das condutas erradas, por meio do castigo, do ridículo ou da admoestação; a assistência convocada para cerimônias rituais e, aos poucos (ou depois de uma iniciação), o direito à participação nestas cerimônias (solenidades religiosas, danças, rituais de passagem); a inculcação dirigida em situações de quase-ensino, com o uso da palavra e turmas de ouvintes, dos valores morais, dos mitos histórico-religiosos da tribo, das regras dos códigos de conduta. Assim, tudo o que é importante para a comunidade, e existe como algum tipo de saber, existe também como algum modo de ensinar. Mesmo onde ainda não criaram a escola, ou nos intervalos dos lugares onde ela existe, cada tipo de grupo humano cria e desenvolve situações, recursos e métodos empregados para ensinar às crianças, aos adolescentes, e também aos jovens e mesmo aos adultos, o saber, a crença e os gestos que os tornarão um dia o modelo de homem ou de mulher que o imaginário de cada sociedade — ou mesmo de cada grupo mais específico, dentro dela — idealiza, projeta e procura realizar. De duas tribos vizinhas de pastores do deserto, é possível que se dê franca importância a um artifício pedagógico, em uma delas, como o castigo corporal, por exemplo, ou a atemorização de crianças, e ele seja simplesmente rejeitado na outra. Mas em uma e na outra, como em todas do mundo, nunca as pessoas crescem a esmo e aprendem ao acaso. O que vimos acontecer até aqui, formas vivas e comunitárias de ensinar-e-aprender, tem sido chamado com vários nomes. Ao processo global que tudo envolve, é comum que se dê o nome de socialização. Através dela, ao longo da vida, cada um de nós passa por etapas sucessivas de inculcação de tipos de categorias gerais, parciais ou especializadas de saber-ehabilidade. Elas fazem, em conjunto, o contorno da identidade, da ideologia e do modo de vida de um grupo social. Elas fazem, também, do ponto de vista de cada um de nós, aquilo que aos poucos somos, sabemos, fazemos e amamos. A socialização realiza em sua esfera as necessidades e projetos da sociedade, e realiza, em cada um de seus membros, grande parte daquilo que eles precisam para serem reconhecidos como "seus" e para existirem dentro dela. Ora, no interior de todos os contextos sociais coletivos de formação do adulto, o processo de aquisição pessoal de saber-crença-e-hábito de uma cultura, que funciona sobre educandos como uma situação pedagógica total, pode ser chamado (com algum susto) de endoculturação. Dentro de sua cultura, em sua sociedade, aprender de maneira mais ou menos intencional (alguns dirão: "mais ou menos consciente"), através do envolvimento direto do corpo, da mente e da afetividade, entre as incontáveis situações de relação com a natureza e de trocas entre os homens, é parte do processo pessoal de endoculturação, e é também parte da aventura humana do "tornar-se pessoa". Vista em seu vôo mais livre, a educação é uma fração da experiência endoculturativa. Ela aparece sempre que há relações entre pessoas e intenções de ensinar-e-aprender. Intenções, por exemplo, de aos poucos "modelar" a criança, para conduzi-la a ser o "modelo" social de adolescente e, ao adolescente, para torná-lo mais adiante um jovem e, depois, um adulto. Todos os povos sempre traduzem de alguma maneira esta lenta transformação que a aquisição do saber deve operar. Ajudar a crescer, orientar a maturação, transformar em, tornar capaz, trabalhar sobre, domar, polir, criar, como um sujeito social, a obra, de que o homem natural é a matéria-prima. Não é nada raro que tanto na cabeça de um índio quanto na de um de nossos educadores ocidentais, a melhor imagem de como a educação se idealiza seja a do oleiro que toma o barro e faz o pote. O trabalho cuidadoso do artesão que age com tempo e sabedoria sobre a argila viva que é o educando. A argila que resiste às mãos do oleiro, mas que se deixa conduzir por elas a se transformar na obra feita: o adulto educado. Quando o educador pensa a educação, ele acredita que, entre homens, ela é o que dá a forma e o polimento. Mas ao fazer isso na prática, tanto pode ser a mão do artista que guia e ajuda o barro a que se transforme, quanto a forma que iguala e deforma. É bom separar agora algumas palavras usadas até aqui e que serão ainda trabalhadas mais adiante. Tudo o que existe transformado da natureza pelo trabalho do homem e significado pela sua consciência é uma parte de sua cultura: o pote de barro, as palavras da tribo, a tecnologia da agricultura, da caça ou da pesca, o estilo dos gestos do corpo nos atos do amor, o sistema de crenças religiosas, as estórias da história que explica quem aquela gente é e de onde veio, as técnicas e situações de transmissão do saber. Tudo o que existe disponível e criado em uma cultura como conhecimento que se adquire através da experiência pessoal com o mundo ou com o outro; tudo o que se aprende de um modo ou de outro faz parte do processo de endoculturação, através do qual um grupo social aos poucos socializa, em sua cultura, os seus membros, como tipos de sujeitos sociais. Ora, a educação é o território mais motivado deste mapa. Ela existe quando a mãe corrige o filho para que ele fale direito a língua do grupo, ou quando fala à filha sobre as normas sociais do modo de "ser mulher" ali. Existe também quando o pai ensina ao filho a polir a ponta da flecha, ou quando os guerreiros saem com os jovens para ensiná-los a caçar. A educação aparece sempre que surgem formas sociais de condução e controle da aventura de ensinar-e-aprender. O ensino formal é o momento em que a educação se sujeita à pedagogia (a teoria da educação), cria situações próprias para o seu exercício, produz os seus métodos, estabelece suas regras e tempos, e constitui executores especializados. É quando aparecem a escola, o aluno e o professor de quem começo a falar daqui para frente. ENTÃO, SURGE A ESCOLA Mesmo em algumas sociedades primitivas, quando o trabalho que produz os bens e quando o poder que reproduz a ordem são divididos e começam a gerar hierarquias sociais, também o saber comum da tribo se divide, começa a se distribuir desigualmente e pode passar a servir ao uso político de reforçar a diferença, no lugar de um saber anterior, que afirmava a comunidade. Então é o começo de quando a sociedade separa e aos poucos opõe: o que faz, o que se sabe com o que se faz e o que se faz com o que se sabe. Então é quando, entre outras categorias de especialidades sociais, aparecem as de saber e de ensinar a saber. Este é o começo do momento em que a educação vira o ensino, que inventa a pedagogia, reduz a aldeia à escola e transforma "todos" no educador. O que é que isto significa? Significa que, para além das fronteiras do saber comum de todas as pessoas do grupo e transmitido entre todos livre e pessoalmente, para além do saber dividido dentro do grupo entre categorias naturais de pessoas (homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e velhos) e transferido de uns aos outros segundo suas linhas de sexo ou de idade, por exemplo, emergem tipos e graus de saber que correspondem desigualmente a diferentes categorias de sujeitos (o rei, o sacerdote, o guerreiro, o professor, o lavrador), de acordo com a sua posição social no sistema político de relações do grupo. Onde todos aprendem para serem "gente", "adulto", "um dos nossos" e, meio a meio, alguns aprendem para serem "homem" e outros para serem "mulher", outros ainda começam a aprender para serem "chefe", "feiticeiro", "artista", "professor", "escravo". A diferença que o grupo reconhece neles por vocação ou por origem, a diferença do que espera de cada um deles como trabalho social qualificado por um saber, gera o começo da desigualdade da educação de "homem comum" ou de "iniciado", que cada um deles diferentemente começa a receber. Uma divisão social do saber e dos agentes e usuários do saber como essa existe mesmo em sociedades muito simples. Em seu primeiro plano de separação - o mais universal — numa idade sempre próxima à da adolescência, meninos e meninas são isolados do resto da tribo. Em alguns casos convivem entre iguais e com adultos por períodos de reclusão e aprendizagem que envolvem situações de ensino forçado e duras provas de iniciação. Todo o trabalho pedagógico da formação destes jovens é conduzido por categorias de educadores escolhidos entre todos para este tipo de ofício, de que os meninos saem jovens-adultos e guerreiros, por exemplo, e as meninas, moças prontas para a posse de um homem, uma casa e alguns filhos. Nas suas formas mais simples, estas situações pedagógicas de ensino especializado que apressa o adulto que há no jovem podem ser muito breves. Podem envolver pouco mais do que momentos provocados de convivência intensificada entre grupos de adolescentes e grupos de adultos. Depressa eles são devolvidos ao grupo social e, quase sempre, depois de cerimônias públicas de iniciação (os ritos de passagem), são reconhecidos, pela posição que o grupo lhes atribui e pelo saber que lhes reconhece, como homens e mulheres aptos e legítimos para a vida do adulto da tribo. Outras vezes este período de aprendizagem separada é muito mais longo, muito mais diversificado e, por certo, muito mais próximo dos modelos de agências e procedimentos de ensino que temos na cabeça quando pensamos em educação. Em sociedades tribais da Libéria e de Serra Leoa, na África, há tipos de escolas para os meninos (as escolas "Poro") e para as meninas (as escolas "Sande"). De tribo para tribo os meninos estudam por períodos que vão de ano e meio a oito anos. Estudam, convivem entre si e com seus mestres, e treinam. Divididos de acordo com seus grupos de idade (como em nossas "séries"), eles aprendem as crenças, as tradições e os costumes culturais da tribo, além do saber dos ofícios de guerra e paz. A escola Poro leva em conta diferenças individuais e, com o trabalho docente de diferentes professores-especialistas, forma novos especialistas. Se um menino demonstra talentos para o trabalho do fabrico de tecidos, de couro, para o exercício da dança, ou para os ofícios da medicina tribal, ele acrescenta estes treinos e estudos ao corpo comum do programa por que passa com todos os outros companheiros de idade. Entre grupos de pescadores da Nova Zelândia e do Arquipélago da Sociedade, existem "casas de ensino", verdadeiras universidades em escala indígena, onde toda a sabedoria da cultura é ensinada aos jovens de ambos os sexos por professores-sacerdotes. Durante a metade do ano estas "casas" permanecem abertas e, por todo o dia, oferecem cursos com alguma teoria e muita prática sobre pelo menos os seguintes assuntos: genealogia, tradições e história, princípios de crença e cultos religiosos, magia, artes da navegação, agricultura, dança, literatura. O programa de ensino divide a "Mandíbula Superior", onde os jovens aprendem com os sacerdotes os segredos do sagrado, da "Mandíbula Inferior", relacionada com os assuntos terrenos. Em um segundo plano, mais restrito e mais marcadamente político, diferentes categorias de meninos e meninas recebem o saber especializado que há em uma "educação de minorias privilegiadas", destinadas por herança aos cargos de chefia. Assim acontece, por exemplo, entre quase todos os grupos originais do Havaí, onde os nobres e outros jovens selecionados de antemão para postos futuros de poder sobre os outros passavam por verdadeiros cursos superiores de estudos que lhes tomavam quase todo o tempo da adolescência e da juventude. A tribo que mais adiante submeterá a eles a chefia comunitária — o trabalho social de dirigir — atribuirá a eles como um direito, e exigirá deles como um dever, o saber especializado do chefe. E o próprio tempo prolongado de estudo, treino e teste, muito mais do que o de todos os outros meninos, vale como um atestado social de diferenças entre o chefe e os outros, dado pela educação. Mesmo os grupos que, como os nossos, dividem e hierarquizam tipos de saber, de alunos e de usos do saber, não podem abandonar por inteiro as formas livres, familiares e/ou comunitárias de educação. Em todos os cantos do mundo, primeiro a educação existe como um inventário amplo de relações interpessoais diretas no âmbito familiar: mãe-filha, pai-filho, sobrinho-irmão-da-mãe, irmão-mais-velho-irmão-caçula e assim por diante. Esta é a rede de trocas de saber mais universal e mais persistente na sociedade humana. Depois, a educação pode existir entre educadores-educandos não parentes — mas habitantes de uma mesma aldeia, de uma mesma cidade, gente de uma mesma linguagem — semiespecializados ou especialistas do saber de algum ofício mais amplo ou mais restrito: artesão-aprendiz, sacerdote-iniciado, cavaleiro-escudeiro, e tantos outros. Até aqui o espaço educacional não é escolar. Ele é o lugar da vida e do trabalho: a casa, o templo, a oficina, o barco, o mato, o quintal. Espaço que apenas reúne pessoas e tipos de atividade e onde viver o fazer faz o saber. Em todo o tipo de comunidade humana onde ainda não há uma rigorosa divisão social do trabalho entre classes desiguais, e onde o exercício social do poder ainda não foi centralizado por uma classe como um Estado, existe a educação sem haver a escola e existe a aprendizagem sem haver o ensino especializado e formal, como um tipo de prática social separada das outras. E da vida. Mesmo nas grandes sociedades civilizadas do passado — como na Grécia e em Roma, com que vamos nos encontrar um pouco mais adiante — um sistema pedagógico controlado por um poder externo a ele, atribuído de fora para dentro a uma hierarquia de especialistas do ensino, e destinado a reproduzir a desigualdade através da oferta desigual do saber, é uma conquista tardia na história da cultura. Em nome de quem os constitui educadores, estes especialistas do ensino aos poucos tomam a seu cargo a tarefa de assumir, controlar e recodificar domínios, sistemas, modos e usos do saber e das situações coletivas de distribuição do saber. Onde quer que apareça e em nome de quem venha, todo o corpo profissional de especialistas do ensino tende a dividir e a legitimar divisões do conhecimento comunitário, reservando para o seu próprio domínio tanto alguns tipos e graus do saber da cultura, quanto algumas formas e recursos próprios de sua difusão. Assim, aos poucos acontece com a educação o que acontece com todas as outras práticas sociais (a medicina, a religião, o bem-estar, o lazer) sobre as quais um dia surge um interesse político de controle. Também no seu interior, sistemas antes comunitários de trocas de bens, de serviços e de significados são em parte controlados por confrarias de especialistas, mediadores entre o poder e o saber. Os estudos mais recentes da História têm indicado que a palavra escrita parece ter surgido em sociedades-estado enriquecidas e com um poder muito centralizado, como entre os egípcios ou entre os astecas. Ela teria aparecido primeiro sendo usada pelos escribas, para fazer a contabilidade dos bens dos reis e faraós. Só mais tarde é que foi usada também pelos poetas para cantarem as coisas da aldeia e de sua gente. Assim também a educação. Por toda a parte onde ela deixa de ser totalmente livre e comunitária (não escrita) e é presa na escola, entre as mãos de educadores a serviço de senhores, ela tende a inverter as utilizações dos seus frutos: o saber é a repartição do saber. A educação da comunidade de iguais que reproduzia em um momento anterior a igualdade, ou a complementariedade social, por sobre diferenças naturais, começa a reproduzir desigualdades sociais por sobre igualdades naturais, começa desde quando aos poucos usa a escola, os sistemas pedagógicos e as "leis do ensino" para servir ao poder de uns poucos sobre o trabalho e a vida de muitos. Onde um tipo de educação pode tomar homens e mulheres, crianças e velhos, para torná-los todos sujeitos livres que por igual repartem uma mesma vida comunitária; um outro tipo de educação pode tomar os mesmos homens, das mesmas idades, para ensinar uns a serem senhores e outros, escravos, ensinando-os a pensarem, dentro das mesmas idéias e com as mesmas palavras, uns como senhores e outros, como escravos. Nas sociedades primitivas que nos acompanharam até aqui, a educação escolar que ajuda a separar o nobre do plebeu parece ser um ponto terminal na escala de invenção dos recursos humanos de transferência do saber de uma geração a outra. Também nas sociedades ocidentais como a nossa — sociedades complexas, sociedades de classes, sociedades capitalistas — a educação escolar é uma invenção recente na história de cada uma. Da maneira como existe entre nós, a educação surge na Grécia e vai para Roma, ao longo de muitos séculos da história de espartanos, atenienses e romanos. Deles deriva todo o nosso sistema de ensino e, sobre a educação que havia em Atenas, até mesmo as sociedades capitalistas mais tecnologicamente avançadas têm feito poucas inovações. Talvez estejam, portanto, entre os seus inventos e escolas, algumas das respostas às nossas perguntas. PEDAGOGOS, MESTRES-ESCOLA E SOFISTAS Todas as grandes sociedades ocidentais que, como Atenas e Roma, emergiram de seus bandos errantes, de suas primeiras tribos de clãs de pastores ou camponeses, aprenderam a lidar com a educação do mesmo modo como qualquer outro grupo humano, em qualquer outro tempo. Tal como entre os índios das Seis Nações, os primeiros assuntos e problemas da educação grega foram os dos ofícios simples dos tempos de paz e de guerra. O que se ensina e aprende entre os primeiros pastores, mesmo quando eles começaram rusticamente a enobrecer, envolve o saber da agricultura e do pastoreio, do artesanato de subsistência cotidiana e da arte. Tudo isso misturado, sem muitos mistérios, com os princípios de honra, de solidariedade e, mais do que tudo, de fidelidade à polis, a cidade grega onde começa e acaba a vida do cidadão livre e educado. Esta educação grega é, portanto, dupla, e carrega dentro dela a oposição que até hoje a nossa educação não resolveu. Ali estão normas de trabalho que, quando reproduzidas como um saber que se ensina para que se faça, os gregos acabaram chamando de tecne e que, nas suas formas mais rústicas e menos enobrecidas, ficam relegadas aos trabalhadores manuais, livres ou escravos. Ali estão normas de vida que, quando reproduzidas como um saber que se ensina para que se viva e seja um tipo de homem livre e, se possível, nobre, os gregos acabaram chamando de teoria. Este saber que busca no homem livre o seu mais pleno desenvolvimento e uma plena participação na vida da polis é o próprio ideal da cultura grega e é o que ali se tinha em mente quando se pensava na educação. De tudo o que pode ser feito e transformado, nada é para o grego uma obra de arte tão perfeita quanto o homem educado. A primeira educação que houve em Atenas e Esparta foi praticada entre todos, nos exercícios coletivos da vida, em todos os cantos onde as pessoas conviviam na comunidade. Quando a riqueza da polis grega criou na sociedade estruturas de oposição entre livres e escravos, entre nobres e plebeus, aos meninos nobres da elite guerreira e, mais tarde, da elite togada é que a educação foi dirigida. Por alguns séculos, mesmo para eles, ainda não havia a escola. Das relações familiares diretas até a convivência entre jovens, segundo os seus grupos de idade, ou entre grupos de meninos educandos e um velho educador, entre os gregos sempre se conservou a idéia de que todo o saber que se transfere pela educação circula através de trocas interpessoais, de relações física e simbolicamente afetivas entre as pessoas. Assim, a pederastia acaba sendo considerada em Esparta como a forma mais pura e mais completa de educação entre homens livres e iguais. Em toda a Grécia a formação do nobre guerreiro apenas desenrola ao longo dos anos uma seqüência de trocas entre um mestre e seus discípulos. Aquilo que a cultura grega chama com pleno efeito de educação — paideia — dando à palavra o sentido de formação harmônica do homem para a vida da polis, através do desenvolvimento de todo o corpo e toda a consciência, começa de fato fora de casa, depois dos sete anos. Até lá a criança convive com a sua criação, convivendo com a mãe e escravos domésticos. Para além ainda do que entre os sete e os catorze anos aprende com o mestre-escola, a verdadeira educação do jovem aristocrata é o fruto do lento trabalho de um ou de poucos mestres que acompanham o educando por muitos anos. Em Atenas, por volta do VI século A.C., a educação deixa de ser uma prática coletiva, de estilo militar, destinada apenas à formação do cidadão nobre. Até então, mesmo no apogeu da democracia grega, a propriedade é restritamente comunal; pertence aos cidadãos ativos do Estado. O poder pertence aos estratos mais nobres destes cidadãos ativos, e a vida e o trabalho colocam de um lado os homens livres, senhores e, de outro, os escravos ou outros tipos de trabalhadores manuais expulsos do direito do saber que existe na paideia. Durante muitos séculos os "pobres" da Grécia aprenderam desde criança fora das escolas: nas oficinas e nos campos de lavoura e pastoreio. Os meninos "ricos" inicialmente aprenderam também fora da escola, em acampamentos ou ao redor de velhos mestres. Além das agências estatais de educação, como a Efebia de Esparta, que educava o jovem nobreguerreiro, toda a educação fora do lar e da oficina é uma empresa particular, mesmo quando não é paga. Particular e restrita a muito pouca gente. Apenas quando a democratização da cultura e da participação na vida pública colocam a necessidade da democratização do saber, é que surge a escola aberta a qualquer menino livre da cidade-estado. A escola primária surge em Atenas por volta do ano 600 A.C. Antes dela havia locais de ensino de metecos e rapsodistas que aos interessados ensinavam "a fixar em símbolos os negócios e os cantos". Só depois da invenção da escola de primeiras letras é que o seu estudo é pouco a pouco incorporado à educação dos meninos nobres. Assim, surgem em Atenas escolas de bairro, não raro "lojas de ensinar", abertas entre as outras no mercado. Ali um humilde mestre-escola, "reduzido pela miséria a ensinar", leciona as primeiras letras e contas. O menino escravo, que aprende com o trabalho a que o obrigam, não chega sequer a esta escola. O menino livre e plebeu em geral pára nela. O menino livre e nobre passa por ela depressa em direção aos lugares e aos graus onde a educação grega forma de fato o seu modelo de "adulto educado". Citação de Sólon, legislador grego: "As crianças devem, antes de tudo, aprender a nadar e a ler; em seguida, os pobres devem exercitar-se na agricultura ou em uma indústria qualquer, ao passo que os ricos devem se preocupar com a música e a equitação, e entregar-se à filosofia, à caça e à freqüência aos ginásios." Esta concepção Xenofonte, historiador, poeta, filósofo e militar grego, criticaria quase dois séculos depois: "Só os que podem criar os seus filhos para não fazerem nada é que os enviam à escola; os que não podem, não enviam." A educação do jovem livre vai em direção à teoria, que é o saber do nobre para compreender e comandar, não para fazer, curar ou construir. Durante toda a antigüidade a única disciplina técnica (entendida como a de uma formação que aponta para um ofício determinado) é a medicina. Não há outras escolas coletivas de ensino técnico para o preparo de arquitetos, engenheiros ou agrimensores, por exemplo. Tal como ferreiros ou tecelões, eles aprendem de maneira simples e direta, na oficina e no trabalho, através do convívio com algum velho artífice. Diferenças de saber de classe dos educandos produziram diferenças curiosas entre os tipos de educadores da Grécia antiga. De um lado, desprezíveis mestres-escola e artesãosprofessores; de outro, escravos pedagogos e educadores nobres, ou de nobres. De um lado, a prática de instruir para o trabalho; de outro, a de educar para a vida e o poder que determina a vida social. De todos estes adultos transmissores de saber vale a pena falar do pedagogo. Pequenas estatuetas de terracota guardam a memória dele. Artistas gregos representaram esses velhos escravos — quase sempre cativos estrangeiros — conduzindo crianças a caminho da escola de primeiras letras. E por que eles e não os mestres que nas escolas ensinavam? Porque os escravos pedagogos — condutores de crianças — eram afinal seus educadores, muito mais do que os mestres-escola. Eles conviviam com a criança e o adolescente e, mais do que os pais, faziam a educação dos preceitos e das crenças da cultura da polis. O pedagogo era o educador por cujas mãos a criança grega atravessava os anos a caminho da escola, por caminhos da vida. Nos primeiros tempos, mais do que filósofos ou matemáticos, os gregos foram guerreiros, músicos e ginastas. Assim, mais do que jurídica ou científica, a educação do cidadão livre era ética e artística (no pleno sentido que estas duas palavras possuíam na paideia grega), dentro de uma cultura pouco acostumada a separar a verdade da beleza. Mais tarde, sob a influência de Sócrates e Epicuro (um sujeito feio e outro doentio) é que a educação começa a ser pensada como formadora do espírito. Por muitos e muitos séculos ela aponta para a harmonia que existe na beleza do corpo (e a destreza para a luta) ao lado da clareza da mente (e a fidelidade à polis dos cidadãos livres). Mesmo no nível da cultura letrada dos nobres, a civilização clássica não conservou sempre um único modelo ou estilo de saber, logo, de educação. Ela oscilou entre duas formas de algum modo antagônicas: a filosófica, cujo tipo dominante pode ser Platão, e a oratória (retórica), cujo tipo dominante pode ser Isócrates. Depois de constituídas as classes de homens livres que regem a democracia dos gregos sobre a divisão do trabalho e a instituição do regime escravagista, para os seus adolescentes a educação coletiva não é uma atividade voluntária ou um direito de berço. É um dever imposto pela polis ao livre. Porque o seu exercício modela não um homem abstrato, sonho de poetas, mas o cidadão maduro para o serviço à comunidade, projeto do político. Assim, o ideal da educação é reproduzir uma ordem social idealmente concebida como perfeita e necessária, através da transmissão, de geração a geração, das crenças, valores e habilidades que tornavam um homem tão mais perfeito quanto mais preparado para viver a cidade a que servia. E nada poderia haver de mais precioso, a um homem livre e educado, do que o próprio saber e a identidade de sábio que ele atribui ao homem. Depois de haver conquistado a cidade onde vivia o filósofo Estilpão, Demétrio Poliorceto pretendeu indenizá-lo pelos prejuízos materiais que sofrera por causa da pilhagem. Quando pediu que fizesse o inventário do que lhe pertencera e fora destruído, Estilpão respondeu que nada havia perdido do que era seu, porque não lhe haviam roubado a sua cultura — — dado que ainda conservava a eloqüência e o saber. O formador de jovens, o educador, o filósofo-mestre como Sócrates, Platão e Aristóteles, reúnem à sua volta os seus alunos, em suas escolas superiores. A escola filosófico-iniciática de Pitágoras, que interna educandos, cria regras próprias de conduta e lhes absorve boa parte do tempo da juventude, antecede a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles e a Escola de Epicuro. Mas são os filósofos sofistas os que democratizam o ensino superior, tornando-o remunerado e, portanto, aberto a todos os que podem pagar. Após a longa crise de tirania por volta do VI século A.C., a vida social de Atenas possibilita a participação de todos os cidadãos livres, e isto recoloca a questão do preparo do homem para o exercício da cidadania, a questão de aprender para legislar e para estar de algum modo presente nas assembléias de representação política. Os sofistas transformam a educação superior em um tempo de formação do orador, onde a qualidade da retórica tem mais valor do que a busca desinteressada da verdade, exercício dos nobres dos períodos anteriores. Aos poucos até Aristóteles e Alexandre Magno, muito depressa durante a Civilização Helenística, a educação clássica passa por algumas mudanças: 1) ela vai do cultivo aristocrático do corpo e da mente, com vistas à formação do nobre guerreiro e dirigente, à habilitação do cidadão livre, comum, para a carreira política; 2) ela vai de um domínio do "saber desinteressado", de fundo artístico-musical, para o literário, daí para o retórico, o livresco e o escolar (de aprender a sabedoria para aprender a informação); 3) ela vai das agências de reprodução restrita do saber de nobres, entre nobres, para o saber disponível, à venda em escolas pagas que educam da criança ao adulto. Com o tempo a educação clássica deixa de ser um assunto privado, posse e questão da comunidade dos nobres dirigentes, e passa a ser questão de Estado, pública. Aristóteles exige do Imperador leis que regulem direitos e controlem o exercício da educação. Atrás das tropas de conquista de Alexandre Magno, os gregos levam as suas escolas por todo o mundo. Elas são, mais do que tudo, o meio de impedir que a distância da Pátria de origem ameace perderse a cultura do vencedor entre os costumes e o saber dos vencidos. Como seria possível fazer uma síntese dos princípios que orientaram toda a educação clássica criada pelos gregos? Ela foi sempre entendida como um longo processo pelo qual a cultura da cidade é incorporada à pessoa do cidadão. Uma trajetória de amadurecimento e formação (como a obra de arte que aos poucos se modela), cujo produto final é o adulto educado, um sujeito perfeito segundo um modelo idealizado de homem livre e sábio, mas ainda sempre aperfeiçoável. Assim, a educação grega não é dirigida à criança no sentido cada vez mais dado a ela hoje em dia. De algum modo, é uma educação contra a criança, que não leva em conta o que ela é, mas olha para o modelo do que pode ser, e que anseia torná-la depressa o jovem perfeito (o guerreiro, o atleta, o artista de seu próprio corpo-e-mente) e o adulto educado (o cidadão político a serviço da polis). Esta educação humanista de uma sociedade que deixa ao escravo e ao artesão livre o trabalho de fazer, desdenha a técnica e olha para "o homem todo", formado de aprender a teoria e praticar o gesto que constróem o saber e o hábito do homem livre. Em seu pleno sentido, é uma educação ética cujo saber conduz o sábio a viver, com a sua própria vida, o modelo de um modo de ser idealizado, tradicional, que é missão da paideia conservar e transmitir. Finalmente, os gregos ensinam o que hoje esquecemos. A educação do homem existe por toda parte e, muito mais do que a escola, é o resultado da ação de todo o meio sociocultural sobre os seus participantes. É o exercício de viver e conviver o que educa. E a escola de qualquer tipo é apenas um lugar e um momento provisórios onde isto pode acontecer. Portanto, é a comunidade quem responde pelo trabalho de fazer com que tudo o que pode ser vivido-e-aprendido da cultura seja ensinado com a vida — e também com a aula — ao educando. A EDUCAÇÃO QUE ROMA FEZ, E O QUE ELA ENSINA Os primeiros latinos foram camponeses aos poucos enriquecidos e, alguns, tornados nobres na Península Itálica. Ali aconteceu como em tantas outras partes do mundo. Classes sociais que com o tempo chegaram a ser "privilegiadas" e separaram a direção do trabalho do próprio exercício do trabalho, separando com isso as forças produtivas mentais das físicas, desempenharam antes funções úteis. Primeiro, entre os romanos, o trabalho é entre todos e o saber é de todos. Os primeiros reis de Roma punham com os súditos as mãos no arado e lavravam a terra. Como entre os índios, como nos tempos de origem dos povos gregos, a educação dos camponeses latinos é comunitária e existe difusa em todo o meio social. Muito mais do que na Grécia, a educação da criança é uma tarefa doméstica. Na aurora da história do poder de Roma, ela foi uma lenta iniciação da criança e do adolescente nas tradições consagradas da cultura, e servia à consagração da tradicionalidade quase venerada de um modo camponês de vida, simples e austero. A criança começava a aprender em casa, com os mais velhos, e quase tudo o que aprendia era para saber e preservar os valores do mundo dos "mais velhos", dos seus antepassados. Essa educação doméstica busca a formação da consciência moral. O adulto educado que ela quer criar é o homem capaz de renúncia de si próprio, de devotamento de sua pessoa à comunidade. São as virtudes do campesinato de todos os tempos e lugares, o que dirige a primitiva educação de Roma, que exalta em verso e prosa a austeridade, a vida simples, o amor ao trabalho como supremo bem do homem, e o horror ao luxo e à ociosidade. Ao contrário do que aconteceu cedo em Atenas, em Roma não há de início qualquer tipo de cuidado com a pura formação física e intelectual do cidadão ocioso, ocupado com pensar, governar e guerrear. A educação de uma comunidade dedicada ao trabalho com a terra foi durante séculos uma formação do homem para o trabalho e a vida, para a cidadania da comunidade igualada pelo trabalho. Quando o mundo romano de camponeses enriquece com os excedentes da terra e das pilhagens de outros povos, quando opõe classes sociais e inventa o Estado, ele ainda defende a criança de ser entregue cedo a alguma forma de educação estatal, militarizada, fora do lar. Entre os romanos os primeiros educadores de pobres e nobres são o pai e a mãe. Mesmo os mais ricos, senhores de escravos, não entregam a um servo-pedagogo ou a uma governanta o cuidado dos filhos. Quando o menino completa, aos 7 anos, o aprendizado cheio de afeição que recebe da mãe, ele passa para o pai, que não divide sequer com o mestre-escola o direito de educá-lo, ou seja, de formar a sua consciência segundo os preceitos das crenças e valores da classe e da sociedade. Em Roma, portanto, ao contrário do que vimos acontecer em Atenas e principalmente em Esparta, a família prolonga o poder de socializar o cidadão e, através dela, a sociedade civil estende o alcance do seu modelo em toda uma primeira educação da criança. A partir de Homero, no alvorecer da história grega, o ideal da paideia é o herói da polis. Na educação romana o modelo ideal é o ancestral da família, depois o da comunidade. Quando uma nobreza romana enriquecida com a agricultura e o saque abandona o trabalho da terra pelo da política, e cria as regras do Império de que se serve, aquele primitivo saber comunitário divide-se e força a separação de tipos, níveis e agências de educação. Quando há livres e escravos, senhores e servos, começa a haver um modelo de educação para cada um, e limites entre um modelo e outro. Aos poucos a educação deixa de ser o ensino que forma o pastor, o artífice ou o lavrador e, nas suas formas mais elaboradas, prepara o futuro guerreiro, o funcionário imperial e os dirigentes do Império. O sistema comunitário de base pedagógica familiar compete com outros. Aos poucos aparece a oposição entre o ensino de educar, dos pais, dos mestres-pedagogos que convivem com os educandos e os acompanham, prolongando com eles o saber que forma a consciência e que é a sabedoria; e o ensino de instruir, do mestreescola que monta no mercado a loja de ensino e vende o saber de ler-e-contar como uma mercadoria. O ensino elementar das primeiras letras apareceu em Roma antes do IV século A.C. Um tipo de ensino que podemos identificar com o secundário surgiu na metade do século III A.C. e o ensino que hoje em dia chamaríamos de superior, universitário, apareceu pelo século I A.C. Mas, durante quase toda a sua história, o Estado Romano. não toma a seu cargo a tarefa de educar, que ficou deixada à iniciativa particular, mas já não mais comunitária, como ao tempo em que os reis aravam a terra. Só depois do advento do Cristianismo, por volta do século IV D.C., é que surge e se espalha por todo o Império a schola publica, mantida pelos cofres dos municípios. Nos tempos do domínio de Augusto e de Tibério, a criança, educada em casa pelos pais, aprendia depois dos 7 anos as primeiras letras na escola (loja de ensino) do ludimagister. Aos 12 anos ela estava pronta para freqüentar a escola do grammaticus e, a partir dos 16, a do lector. Na sua forma mais simples esta é a estrutura de educação que herdamos e conservamos até hoje. Do lado de fora das portas do lar, a educação latina enfim separa em duas vertentes o que se pode aprender. Uma é a da oficina de trabalho, para onde vão os filhos dos escravos, dos servos e dos trabalhadores artesãos. Outra é a escola livresca, para onde vão o futuro senhor (o dirigente livre do trabalho e do Estado) e o seu mediador, o funcionário burocrata do Estado ou de negócios particulares. Esta educação de escola, que os romanos criam em Roma copiando a forma e alguma coisa do espírito dos gregos, espalham primeiro pela Península Itálica e depois por todo o mundo que conquistam na Europa, na Ásia e no Norte da África. Do mesmo modo como o sacerdote, o educador caminha atrás dos passos do general. A educação do conquistador invade, com armas mais poderosas do que a espada, a vida e a cultura dos conquistados. A educação que serve, longe da Pátria, aos filhos dos soldados e funcionários romanos sediados entre os povos vencidos, serve também para impor sobre eles a vontade e a visão de mundo do dominador. Plutarco descreveu como Roma usou a educação para "domar" os espanhóis dominados: "As armas não tinham conseguido submetê-los a não ser parcialmente; foi a educação que os domou." EDUCAÇÃO: ISTO E AQUILO, E O CONTRÁRIO DE TUDO Ora, uma outra maneira de se compreender o que a educação é, ou poderia ser, é procurar ver o que dizem sobre ela pessoas como legisladores, pedagogos, professores, estudantes e outros sujeitos um tanto mais tradicionalmente difíceis de entender, como filósofos e cientistas sociais. Nos dois dicionários brasileiros mais conhecidos a educação aparece definida assim: "Ação e efeito de educar, de desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais da criança e, em geral, do ser humano; disciplinamento, instrução, ensino." (Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Caldas Aulete) "Ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações jovens para adaptá-las à vida social; trabalho sistematizado, seletivo, orientador, pelo qual nos ajustamos à vida, de acordo com as necessidades ideais e propósitos dominantes; ato ou efeito de educar; aperfeiçoamento integral de todas as faculdades humanas, polidez, cortesia." (Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de Hollanda) Um pouco mais adiante vamos ver que o miolo de cada uma destas definições de dicionário pende para um dos lados em que se recortam as maneiras de explicar o que a educação é e a que serve. Na "letra da Lei" a coisa não muda muito. Ao pretenderem estabelecer quais os fins da educação no país, os nossos legisladores, pelo menos em teoria, garantem para todos o melhor a seu respeito. Eles falam sobre o que deve determinar e controlar o trabalho pedagógico em todos os seus graus e modalidades. De certo modo, falam a respeito de uma educação idealizada, ou falam da educação através de uma ideologia (ver O que é Ideologia – Marilena Chauí, nesta mesma coleção): "Art. 19 — A educação nacional, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por fim: a) a compreensão dos direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado, da família e dos demais grupos que compõem a comunidade; b)o respeito a dignidade e às liberdades fundamentais do homem; c) o fortalecimento da unidade nacional e da solidariedade internacional; d) o desenvolvimento integral da personalidade humana e a sua participação na obra do bem comum; e) o preparo do indivíduo e da sociedade para o domínio dos recursos científicos e tecnológicos que lhes permitam utilizar as possibilidades e vencer as dificuldades do meio; f) a preservação do patrimônio cultural; g) a condenação a qualquer tratamento desigual por motivo de convicção filosófica, política ou religiosa, bem como a quaisquer preconceitos de classe ou raça." (Lei 4024, de 20 de dezembro de 1961) Mas, do outro lado do palco, intelectuais, educadores e estudantes fazem e refazem todos os dias a crítica da prática da educação no Brasil. Eles levantam questões e afirmam que, do Ministério â escolinha, a educação nega no cotidiano o que afirma na Lei. Não há liberdade no país e a educação não tem tido papel algum nos últimos anos para a sua conquista; não há igualdade entre os brasileiros e a educação consolida a estrutura classista que pesa sobre nós; não há nela nem a consciência nem o fortalecimento dos nossos verdadeiros valores culturais. Um grupo de estudantes candidatos à direção da UNE resume parte desta crítica e reclama para a luta estudantil itens que, com alguma variação de linguagem, quase poderiam caber nas "leis do ensino". "Os homens discriminados como negros, velhos, crianças, homossexuais, mulheres... descobrem que, nestes anos todos de dominação, a força imensa que mexeu e transformou a face do planeta nasce de cada oprimido, de cada explorado, de cada homem, de cada mulher. Descobrem a origem e o fim de toda a atividade humana: o próprio homem. "Corações e mentes se abrem para uma nova vida. Irrompe uma nova consciência. "A percepção ampla e profunda das ações e relações entre os homens é inerente e inseparável de qualquer trabalho de produção, veiculação ou discussão cultural. "E buscar todos os meios para que todo esse trabalho floresça, para que toda essa força contida venha à tona, é função nossa, das entidades estudantis. "Criar condições para que, através da manifestação de todos, possamos perceber os anseios, as contradições de cada um, do homem e de toda a sociedade. "Ampliar as idéias sobre o trabalho cultural. Abranger o homem, as suas relações, as discriminações raciais, sexuais, etárias, a moral, o poder, a dominação. "Romper os limites, soltar a cabeça, as mãos, os pés, o corpo para a realidade inquieta, questionadora. "Destruir as regras do jogo. "Subir no palco e invadir os camarins do mundo. Assumir o papel de agentes da História. Representar a vida." (Voz Ativa — Cultural) Sem rodeios as "leis do ensino" no país garantem que: "A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola... À família cabe escolher o gênero de educação que deve dar a seus filhos... O direito à educação é assegurado: pela obrigação do poder público e pela liberdade de iniciativa particular de ministrarem o ensino em todos os graus, na forma da lei em vigor; pela obrigação do Estado de fornecer recursos indispensáveis para que a família e, na falta desta, os demais membros da comunidade se desobriguem dos encargos da educação, quando provada a insuficiência de meios, de modo que sejam asseguradas iguais oportunidades a todos." (Artigos 29 e 39 da lei 4024) Mas, se entre o pensado e o vivido há diferenças, as pessoas do país protestam e cobram, de quem faz a lei, que pelo menos ela seja cumprida: que haja liberdade na educação e, através dela, que a escola exista para todos e seja distribuída por igual entre todos. Assim, os docentes universitários reunidos num Encontro Nacional de Associações escreveram o seguinte no documento final: "O regime político e o modelo socioeconômico impostos nos últimos anos à Nação Brasileira produziram danos marcantes na qualidade do ensino de nossas escolas, seja pela repressão político-ideológica que se abateu sobre toda a comunidade, seja pelo caráter flagrantemente antidemocrático de suas leis e decretos, que se reflete na elaboração e modificação ilegítimas de regimentos e estatutos das Universidades. "A política educacional implantada levou à progressiva desobrigação do Estado com o custeio da Educação, e à expansão do ensino privado. Assim, a educação está aberta à ação dos empresários do ensino, sujeita às leis da iniciativa privada, sendo negociada como mercadoria entre as partes interessadas em vender e comprar, o que revela o caráter elitista do atual processo educacional no Brasil." (Boletim Nacional das Associações de Docentes, nº 3) A fala do poder que constitui a educação no país propõe o exercício de uma prática idealizada. A fala dos praticantes da educação, os educadores, faz então a crítica da distância que há entre a promessa e a realidade. Faz mais, denuncia a alteração para pior das próprias leis que dizem o que é e como deve ser a Educação no Brasil. Não há apenas idéias opostas ou idéias diferentes a respeito da Educação, sua essência e seus fins. Há interesses econômicos, políticos que se projetam também sobre a Educação. Não é raro que aqui, como em toda parte, a fala que idealiza a educação esconda, no silêncio do que não diz, os interesses que pessoas e grupos têm para os seus usos. Pois, do ponto de vista de quem a controla, muitas vezes definir a educação e legislar sobre ela implica justamente ocultar a parcialidade destes interesses, ou seja, a realidade de que eles servem a grupos, a classes sociais determinadas, e não tanto "a todos", "à Nação", "aos brasileiros". Do ponto de vista de quem responde por fazer a educação funcionar, parte do trabalho de pensá-la implica justamente em desvendar o que faz com que a educação, na realidade, negue e renegue o que oficialmente se afirma dela na lei e na teoria. Mas a razão de desavenças é anterior e, mesmo entre educadores, ela tem alguns fundamentos na diferença entre modos de compreender o que o ato de ensinar afinal é, o que o determina e, finalmente, a que e a quem ele serve. PESSOAS "VERSUS" SOCIEDADE: UM DILEMA QUE OCULTA OUTROS Quando alguém tenta explicar o que são estes nomes e o que eles misturam: educação, escola, ensino, a fala que explica pode pender para um lado ou para o outro de uma velha discussão. Uma discussão ontem quente, hoje em dia inútil; a não ser quando serve para revelar o que se esconde por detrás de pensar a educação desta maneira ou daquela. De acordo com as idéias de alguns filósofos e educadores, a educação é um meio pelo qual o homem (a pessoa, o ser humano, o indivíduo, a criança, etc.) desenvolve potencialidades biopsí-quicas inatas, mas que não atingiriam a sua perfeição (o seu amadurecimento, o seu desenvolvimento, etc.) sem a aprendizagem realizada através da educação. Pode até ser que haja formas próprias de auto-educação, mas é de suas práticas interativas (interpessoais), coletivas, que se está falando quando se escreve um livro sobre "Filosofia da Educação" por exemplo. Assim como a própria sociedade é um corpo coletivo formado da individualidade das pessoas que a compõem, e assim como o seu fim é a felicidade de seus membros a quem todas as suas instituições devem servir, assim também a educação, como idéia (a definição, a "filosofia"), deve ser pensada em nome da pessoa e, como instituição (a escola, o sistema pedagógico) ou como prática (o ato de educar), deve ser realizada como um serviço coletivo que se presta a cada indivíduo, para que ele obtenha dela tudo o que precisa para se desenvolver individualmente. Muitas vezes, entre os que pensam assim, a dimensão subjetiva da educação é ressaltada e, não raro, toma conta de todo o espaço em que o seu processo está sendo pensado. Não importa considerar sob que condições sociais e através de que recursos e procedimentos externos a pessoa aprende, mas apenas a pensar o ato de aprender do ponto de vista do que acontece do educando para dentro. "A Educação não é mais do que o desenvolvimento consciente e livre das faculdades inatas do homem." (Sciacca); "A Educação é o processo externo de adaptação superior do ser humano, física e mentalmente desenvolvido, livre e consciente, a Deus, tal como se manifesta no meio intelectual, emocional e vo/itivo do homem".(Herman Horse); "O fim da Educação é desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele seja capaz." (Kant); "É toda a espécie de formação que surge da influência espiritual." (Krieck). Quando a Enciclopédia Brasileira de Moral e Civismo, editada pelo Ministério de Educação e Cultura, define educação, pensando talvez expressar uma idéia consensual, ela de fato repete o ponto de vista das definições anteriores. Vejamos: "Educação. Do latim 'educere', que significa extrair, tirar, desenvolver. Consiste, essencialmente, na formação do homem de caráter. A educação é um processo vital, para o qual concorrem forças naturais e espirituais, conjugadas pela ação consciente do educador e pela vontade livre do educando. Não pode, pois, ser confundida com o simples desenvolvimento ou crescimento dos seres vivos, nem com a mera adaptação do indivíduo ao meio. É atividade criadora, que visa a levar o ser humano a realizar as suas potencialidades físicas, morais, espirituais e intelectuais. Não se reduz à preparação para fins exclusivamente utilitários, como uma profissão, nem para desenvolvimento de características parciais da personalidade, como um dom artístico, mas abrange o homem integral, em todos os aspectos de seu corpo e de sua alma, ou seja, em toda a extensão de sua vida sensível, espiritual, intelectual, moral, individual, doméstica e social, para elevá-la, regulá-la e aperfeiçoá-la. É processo contínuo, que começa nas origens do ser humano e se estende até à morte." Se voltarmos às duas definições de dicionários brasileiros de algumas páginas atrás, veremos que a da Enciclopédia concorda mais com a primeira do que com a segunda. Uma enfatiza o que acontece da pessoa para dentro; a outra o que acontece dela para fora, em direção à sociedade onde vive e de que aprende. A meio caminho entre um lado e outro, algumas propostas lembram que aquela formação do ser humano, segundo as suas próprias potencialidades e através de seu próprio esforço, é o resultado de um trabalho intencional, deliberado — aquilo que faz da educação a parte mais motivada da endoculturação, como eu disse várias páginas atrás. Esta ação dirigida ao educando procede de um educador, de uma agência de educação, ou do que existe de educativo no meio sociocultural. "Educação é um sentido de valorização individual e organizado, variável em extensão e profundidade para cada indivíduo e processado pelas riquezas culturais." (Kerschensteiner); "É a influência deliberada e consciente exercida sobre o ser maleável e inculto, com o propósito de formá-lo." (Cohn). Um pouco mais perto dos que nos esperam do outro lado desta aparente história de "ovo-e-galinha", estão alguns estudiosos da educação que consideram que não só a pessoa, individualmente, mas alguma coisa indicada como "a civilização", "o meio social" ou "a sociedade" deve ser o destino do homem educado: "Podemos agora definir de modo mais precioso o objeto da educação: é guiar o homem no desenvolvimento dinâmico, no curso do qual se constituirá como pessoa humana — dotada das armas do conhecimento, do poder de julgar e das virtudes morais — transmitindo-lhe ao mesmo tempo o patrimônio espiritual da nação e da civilização às quais pertence e conservando a herança secular das gerações." (Maritain); "A Educação é a organização dos recursos biológicos individuais, e das capacidades de comportamento que tornam o indivíduo adaptável ao seu meio físico ou social." (William James). Procuremos refletir um pouco sobre tudo isto. Ao discutir os ideais da educação entre os gregos, Werner Jaeger lembra uma coisa muito importante. Não é sempre e não são todos os povos e homens que consideram a educação apenas como o que vimos até aqui. Na verdade, esta é uma maneira de "imaginar" característica da nobreza de todos os povos em que ela existiu, em todos os tempos. É próprio de elites separadas do trabalho produtivo — ou dos intelectuais que pensam o mundo por elas, e para elas — propor como educação a formação da personalidade humana através do conselho sistemático e da direção espiritual. Esta crítica, do mesmo modo como algumas feitas nos primeiros capítulos, aqui, procura separar o que a educação é, de fato, do que as pessoas dizem dela. Jaeger não entra no mérito da veracidade de algumas idéias sobre a educação. Afinal, quem poderia negar que a educação deve servir ao homem, deve servir para educá-lo, torná-lo melhor, desenvolver nele tudo o que tem, e tudo a que tem direito? Quero insistir em que muitas vezes o que se critica em quem apresenta a educação, tal como ela apareceu até aqui, não é o que foi dito, mas o que ficou oculto: a) ou porque quem disse não sabe de onde vem a educação, o que ela é em cada mundo real e o que faz; b) ou porque quem disse sabe, mas explica a educação justamente para negar a sua origem, os seus mecanismos e os seus usos. Como é possível compreender alguma coisa que se passa entre relações sociais de categorias de homens, que educa transmitindo de uns a outros crenças e valores sociais, que serve tanto a igualar quanto a diferenciar as pessoas de acordo com projetos de usos do saber situados fora dos sonhos do educador, sem pensá-la dentro, dos mundos reais onde acontecem as trocas também reais entre os homens, verdadeiros homens de carne e osso, situados de um lado e do outro da educação? Na verdade, quem descobriu que na prática o "fim da educação" são os interesses da sociedade, ou de grupos sociais determinados, através do saber que forma a consciência que pensa o mundo e qualifica o trabalho do homem educado, não foram filósofos do passado ou cientistas sociais de hoje. Esta é a maneira natural dos povos primitivos, com quem estivemos até há pouco, tratarem a educação de suas crianças, mesmo quando eles não sabem explicar isto com teorias complicadas. Os índios e os camponeses realizam, no modo como ensinam o que é importante para alguém aprender, a consciência de que o saber que se transmite de um ao outro deve servir de algum modo a todos. Mas o que Werner Jaeger diz é que justamente nas formações sociais mais desenvolvidas, onde por sobre o trabalho de muitos aparece a elite dominante de uns poucos, surge com o tempo a idéia de uma educação que deve servir a alguns homens individualmente, desvinculada da idéia de que eles existem dentro de grupos ou mundos sociais, e a seu serviço. Esta maneira de compreender para que serve a educação é decorrência de um "esquecimento", ou de um ocultamento de que, afinal, por mais louvável que seja, a educação é uma prática social entre outras. Entre os gregos, vimos que a educação dos jovens nobres, que viviam do trabalho de escravos estrangeiros e que, quando adultos, participavam da direção da cidade, procurava desenvolver o corpo e a inteligência para formar homens fortes e sábios destinados à defesa e à política da comunidade. O que à distância poderia parecer a formação do ocioso era, na verdade, uma aprendizagem feita durante um longo período de ócio nobre (separação do trabalho braçal), para a formação do homem político. A educação grega e, depois, a de Roma preocupavam-se em formar o cidadão e eram, portanto, educações da e para a comunidade. No mundo ocidental, é depois do advento e da difusão do Cristianismo que aparecem idéias sobre a educação que isolam o saber da sociedade e o submetem ao destino individual do cristão. O homem que aprende busca na sabedoria a perfeição que ajuda à salvação da alma. Mas não é o Cristianismo Primitivo quem sugere a "educação humanista", de que os cursos de "humanidades" que houve no Brasil até há pouco tempo são o melhor exemplo. Foi necessário que, a partir de Roma, o Estado cristianizado e as elites de sua sociedade tomassem posse da mensagem cristã de militância e salvação, fazendo dela parte de sua ideologia. Tornando-a o repertório de símbolos e valores pelos quais representavam o mundo, representavam-se nele e, assim, legitimavam, com as palavras originalmente dirigidas a pobres e deserdados, a sua posição de domínio econômico e de hegemonia política sobre eles. Foi então preciso o advento de uma nobreza plenamente separada do trabalho produtivo e, cada vez mais, até mesmo do trabalho político — entregue nas mãos de intelectuais mediadores de seus interesses — para que surgisse uma classe de gente capaz de representar o mundo quase fora dele. Esta elite ociosa e seus intelectuais sacerdotes, filósofos e artistas puderam imaginar como "puras" a vida, a arte, a ciência e até mesmo a educação. Ela começa a representar realmente alguma coisa (pensa, faz pensar, constrói sistemas de pensamento) sem representar coisa alguma de real; sem conseguir explicar mais, para si própria e para as outras classes, o que são de fato os homens, o mundo e as relações concretas entre o mundo e os homens. Ora, é a partir deste universo de idéias puras que a educação afinal é pensada como o exercício do educador sobre a alma do educando, com o propósito de purificá-la do mal que existe na ignorância do saber que conduz à salvação. Da Antigüidade decadente à Idade Média, da Idade Média ao Renascimento (um tempo da História rico em redefinições da idéia de educação) e do Renascimento à Idade Moderna, foi preciso esperar muitos séculos para que de novo os brancos civilizados aprendessem a repensar a educação como os índios. E uma nova maneira de definir a educação como uma prática social cuja origem e destino são a sociedade e a cultura foi formulada com muita clareza pelo sociólogo francês Émile Durkheim. Ele sacode a poeira de um assunto que só aos poucos foi recolocado na Europa de seu tempo, nos últimos anos do século passado. Se o fim da educação é desenvolver no homem toda a perfeição de que ele é capaz, que "perfeição" é esta? De onde é que ela procede? Quem a define e a quem serve? Por que, afinal, ideais de perfeição são tão diversos de uma cultura para outra? É falso imaginar uma educação que não parte da vida real: da vida tal como existe e do homem tal como ele é. É falso pretender que a educação trabalhe o corpo e a inteligência de sujeitos soltos, desancorados de seu contexto social na cabeça do filósofo e do educador, e que os aperfeiçoe para "si próprios", desenvolvendo neles o saber de valores e qualidades humanas tão idealmente universais que apenas existem como imaginação em toda parte e não existem como realidade (como vida concreta, como trabalho produtivo, como compromisso, como relações sociais) em parte alguma. O que existe de fato são exigências sociais de formação de tipos concretos de pessoas na e para a sociedade. São, portanto, modos próprios de educar — por isso, diferentes de uma cultura para outra — necessários à vida e à reprodução da ordem de cada tipo de sociedade, em cada momento de sua história. Não se trata de dizer que a educação tem, também, de modo abstrato e muito amplo, um compromisso com a "cultura", com a "civilização", ou que ela tem um vago "fim social". O que ocorre é que ela é inevitavelmente uma prática social que, por meio da inculcação de tipos de saber, reproduz tipos de sujeitos sociais. "A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver na criança certo número de estados físicos, intelectuais e morais reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destina." (Durkheim) Entre muitas outras, esta é uma maneira sociológica de compreender a educação. Depois de Durkheim (que, por sua vez, aprendeu isso com outros cientistas anteriores e, quem sabe?, com alguns índios) inúmeros sociólogos, antropólogos, filósofos e educadores começaram a formular pontos de vista semelhantes. Não é que eles tivessem a proposta de uma "nova educação", menos abstrata e desancorada do que a "Educação Humanista" que criticavam. O que eles buscaram fazer foi esclarecer mais e mais como a sociedade e a cultura são e funcionam, na realidade. Como, portanto, a educação existe dentro delas e funciona sob a determinação de exigências, princípios e controles sociais. SOCIEDADE CONTRA ESTADO: CLASSE E EDUCAÇÃO A idéia de que não existe coisa alguma de social na educação; de que, como a arte, ela é "pura" e não deve ser corrompida por interesses e controles sociais, pode ocultar o interesse político de usar a educação como uma arma de controle, e dizer que ela não tem nada a ver com isso. Mas o desvendamento de que a educação é uma prática social pode ser também feito numa direção ou noutra e, tal como vimos antes, pode se dividir em idéias opostas, situadas de um lado ou do outro da questão. Vamos por partes, portanto. Até aqui chegamos: a educação é uma prática social (como a saúde pública, a comunicação social, o serviço militar) cujo fim é o desenvolvimento do que na pessoa humana pode ser aprendido entre os tipos de saber existentes em uma cultura, para a formação de tipos de sujeitos, de acordo com as necessidades e exigências de sua sociedade, em um momento da história de seu próprio desenvolvimento. Não procurei inventar uma nova definição, porque delas acho que já há demais. Procurei reunir as idéias correntes entre os que concebem a educação como Durkheim. Assim, dos dois historiadores da educação de cujos livros aprendi quase tudo o que disse sobre Grécia e Roma, um deles dirá o seguinte: "Primeiro que tudo; a educação não é uma propriedade individual, mas pertence por essência à comunidade. O caráter da comunidade imprime-se em cada um dos seus membros e é no homem... muito mais que nos animais, fonte de toda a ação e de todo o comportamento. Em nenhuma parte o influxo da comunidade nos seus membros tem maior força que no esforço constante de educar, em conformidade com o seu próprio sentir, cada nova geração." (Werner Jaeger). Toda a estrutura da sociedade está fundada sobre códigos sociais de inter-relação entre os seus membros e entre eles e os de outras sociedades. São costumes, princípios, regras de modos de ser às vezes fixados em leis escritas ou não. "A educação é, assim, o resultado da consciência viva duma norma que rege uma comunidade humana, quer se trate da família, duma classe ou duma profissão, quer se trate dum agregado mais vasto, como um grupo étnico ou um Estado." Como outras práticas sociais constitutivas, a educação atua sobre a vida e o crescimento da sociedade em dois sentidos: 1) no desenvolvimento de suas forças produtivas; 2) no desenvolvimento de seus valores culturais. Por outro lado, o surgimento de tipos de educação e a sua evolução dependem da presença de fatores sociais determinantes e do desenvolvimento deles, de suas transformações. A maneira como os homens se organizam para produzir os bens com que reproduzem a vida, a forma de ordem social que constróem para conviver, o modo como tipos diferentes de sujeitos ocupam diferentes posições sociais, tudo isso determina o repertório de idéias e o conjunto de normas com que uma sociedade rege a sua vida. Determina também como e para quê este ou aquele tipo de educação é pensado, criado e posto a funcionar. Quando são transformados a "maneira", a "forma" e o "modo" de que falei acima, tanto as idéias quanto as normas, os sistemas e os métodos de um tipo de educação são modificados. Ao fazer a sua crítica, Émile Durkheim perguntava a pensadores da educação que considerava ilustres, mas ingênuos: que "perfeição" é essa? "Mas, que se deve entender pelo termo perfeição?" Ele quer perguntar o seguinte: quem afinal estabelece os ideais e os princípios da educação? Uns e outros são universais? Existiram para todos os povos, em todos os tempos, de uma mesma maneira, pelo fato de que é sempre a mesma a "essência do homem"? Pode ou deve existir uma espécie de "educação universal"? Durkheim conclui que não. E conclui que o ponto fraco das idéias pedagógicas que avaliou está na crença ilusória (ilusória sempre, ou algumas vezes mal--intencionada?) de que há, ou deveria haver, uma "educação ideal, perfeita, apropriada a todos os homens, indistintamente". Até aí tudo bem. Assino embaixo. Mas será que não poderíamos fazer a Durkheim, leitor, a pergunta que ele fez aos outros? Quando fala de sociedade e, mesmo, de sociedades concretas, do que está falando? Que tipo de sociedades, regidas por que modos e mecanismos internos de produção de bens, de serviços, de poder e de idéias entre os seus integrantes? Ele responderia com segurança: "cada uma"; cada tipo de sociedade real, histórica, cria e impõe o tipo de educação de que necessita. E arremataria: "Na verdade, porém, cada sociedade, considerada em momento determinado de seu desenvolvimento, possui um sistema de educação que se impõe aos indivíduos de modo geralmente irresistível. É uma ilusão acreditar que podemos educar nossos filhos como queremos... Há, pois, a cada momento, um tipo regulador de educação do qual não nos podemos separar sem vivas resistências, e que restringem as velocidades dos dissidentes." No entanto, o que é "cada sociedade considerada em um momento determinado de seu desenvolvimento"? é preciso reforçar algumas perguntas e fazer outras. Afinal, "cada sociedade" existe e funciona como um todo orgânico e harmônico, fundado sobre a igualdade entre todos e o consenso de todos? Dentro dela, em posições especiais de privilégio, de hegemonia e de controle sobre outros, não existirão classes sociais capazes de impor uma educação que fazem criar e existir? Para seu uso próprio e por sobre outras classes e grupos sociais (mais do que "em nome deles"), não há, em determinadas sociedades concretas, classes e grupos, às vezes muito minoritários, que resolvem por sua conta como será e para quê servirá a "educação oficial"? Ou, perguntando de outra maneira, já que cada tipo de sociedade — a "tribal" de índios Gê, do Brasil Central; a chinesa após a revolução socialista; a indiana do V século A.C; a da Alemanha medieval ou mesmo a de uma aldeia de camponeses, dentro dela; a portuguesa colonialista do século XVII; a do Brasil "pós-64" - inventa e faz a sua educação ou as suas educações, nos sistemas mais oficiais, mais organizados em projetos e programas pedagógicos, são pensados a partir das idéias fundamentais de todos os tipos de pessoas? As mesmas escolas servem ao operário, ao engenheiro e ao capitalista imobiliário do mesmo modo (como as leis brasileiras de ensino garantem que sim e os professores críticos garantem que não)? Uma educação ensina o saber da "comunidade nacional" a todos, para os mesmos usos sociais, e segundo os mesmos direitos individuais de todas as categorias de seus "adultos educados"? Ora, entre os que colocam "sociedade e cultura" no meio da questão da educação, alguns pesquisam e apenas reconhecem que ela é, na cultura, uma prática social de reprodução de categorias de saber através da formação de tipos de sujeitos educados. Outros projetam e defendem a necessidade deste ou daquele tipo de educação para este ou aquele tipo de sociedade. Entre estes últimos, um pensamento muito corrente hoje em dia é o de que a educação é um dos principais meios de realização de mudança social ou, pelo menos, um dos recursos de adaptação das pessoas a um "mundo em mudança". Este modo de imaginar tende a ser dominante atualmente. Mas ele não fazia sentido para gregos e romanos e nem mesmo para os portugueses e missionários que tentaram educar nossos antepassados durante a Colônia. A idéia de que a educação não serve apenas à sociedade, ou à pessoa na sociedade, mas à mudança social e à formação conseqüente de sujeitos e agentes na/da mudança social, pode não estar escrita de maneira direta nas "leis do ensino". Afinal, as leis quase sempre são escritas por quem pensa que nem elas nem o mundo vão mudar um dia. Mas as suas conseqüências podem aparecer indiretamente. Por exemplo, na "Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira" (também conhecida como "5692", neste mundo onde tudo é numerado), os fins da educação acrescentam a formação para o trabalho, ou enfatizam este objetivo do ato de ensinar, mais do que as leis anteriores. "O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de autorealização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania." Quando a idéia de educação vem associada à de adaptação para alguma coisa externa à pessoa, e que se transforma, a proposta pode ser formulada assim: "Educação é preparação da criança para uma civilização em mudança." (Kilpatrik) ou assim: "Em uma sociedade dinâmica como a nossa, só pode ser eficaz uma educação para a mudança. Esta (educação) consiste na formação do espírito isento de todo dogmatismo, que capacite a pessoa para elevar-se acima da corrente dos acontecimentos, ao invés de arrastarse por eles." (Mannheim) Um outro nome para a educação pode ser até mesmo sugerido, quando se constata, por exemplo, que o rumo e a velocidade das transformações do mundo moderno exigem cada vez mais, de todos os homens, uma constante reciclagem de conhecimentos e uma contínua readaptação a um mundo que, afinal, ainda é sempre o mesmo e já é sempre um outro. "A Educação Permanente é uma concepção dialética da educação, como um duplo processo de aprofundamento, tanto da experiência pessoal quanto da vida social, que se traduz pela participação efetiva, ativa e responsável de cada sujeito envolvido, qualquer que seja a etapa de existência que esteja vivendo... O primeiro imperativo que deve preencher a Educação Permanente é a necessidade que todos nós temos de sempre aperfeiçoar a nossa formação profissional. Num mundo como o nosso, em que progridem ciência e suas aplicações tecnológicas cada dia mais, não se pode admitir que o homem se satisfaça durante toda a vida com o que aprendeu durante uns poucos anos, numa época em que estava profundamente imaturo. Deve informar-se, documentar-se, aperfeiçoar a sua destreza, de maneira a se tornar mestre da sua práxis. O domínio de uma profissão não exclui o seu aperfeiçoamento. Ao contrário, será mestre quem continuar aprendendo. " (Pierre Furterj) Não será estranho que, aqui e ali, a proposta de uma educação apareça armada do poder de realizar, ela própria, o trabalho de transformar a sociedade. Quando este tipo de proposta considera a educação como uma entre outras práticas sociais cujo efeito sobre as pessoas cria condições necessárias para a realização de transformações indispensáveis, a sugestão é aceitável e realista. Nada se faz entre os homens sem a consciência e o trabalho dos homens, e tudo o que tem o poder de alterar a qualidade da consciência e do trabalho, tem o poder de participar de sua práxis e de ser parte dela. No entanto, quando a educação é imaginada — agora pelo utopista social — como o único ou principal instrumento de qualquer tipo de transformação de estruturas políticas, econômicas ou culturais, sem que haja a lembrança de que ela própria é determinada por estas estruturas, estamos diante de pequeno acesso de "utopismo pedagógico". "Se educação é transformação de uma realidade, de acordo com uma idéia melhor que possuímos, e se a educação só pode ser de caráter social, resultará que pedagogia é a ciência de transformar a sociedade." (Ortega y Gasset) Associar "educação" a "mudança" não é novidade. Tem sido um costume desde pelo menos as primeiras décadas do século. Mas só um pouco mais tarde, quando políticos e cientistas começaram a chamar a "mudança" de "desenvolvimento" (desenvolvimento social, socioeconômico, nacional, regional, de comunidades, etc), é que foi lembrado que a educação deveria associar-se a ele também. Este foi o momento de uma transição importante. Antes de se difundirem pelo mundo idéias de mudança e de necessidade de mudança social, a educação era pensada como alguma coisa que preserva, que conserva, que resguarda justamente de se mudarem, de se perderem, as tradições, os costumes e os valores de "um povo", "uma cultura" ou "uma civilização". Antes de se inventarem políticas de desenvolvimento, a educação era prescrita como um direito da pessoa, ou como uma exigência da sociedade, mas nunca como um investimento. Um investimento como outros, como os de saúde, transporte e agricultura. A educação deixa finalmente de ser vista como um privilégio, um direito apenas, e deixa também de ser percebida como um meio apenas de adaptação da pessoa à mudança que se faz sem ela, e que apenas a afeta depois de feita. Pessoas educadas (qualificadas como "mão-de-obra" e motivadas enquanto "sujeitos do processo") são agentes de mudança, promotores do desenvolvimento, e é para torná-los, mais do que cultos, agentes, que a educação deve ser pensada e programada. Não é raro que em alguns países se defenda então que as propostas básicas da educação venham quase prontas do Ministério dó Planejamento para o da Educação. "A Educação é hoje considerada como um fator de mudanças: um dos principais instrumentos de intervenção na realidade social com vistas a garantir a evolução econômica e a evolução social e dar continuidade à mudança no sentido desejado... "Salienta-se, no entanto, um aspecto em que a educação representa investimento a curto prazo: é quando ela desempenha função de formação de mão-de-obra. Ao lado da formação da personalidade, da preparação necessária de cada cidadão para assumir as obrigações sociais e políticas, a educação desempenha a tarefa de preparar para o trabalho, e influi substancialmente na criação de novos quadros de mão-de-obra com capacidades técnicas adequadas aos novos processos produtivos que o desenvolvimento introduz criando novos mercados de trabalho."(SAGMACS — educação e planejamento) "Investimento", "mão-de-obra", "preparação para o trabalho", "capacidades técnicas adequadas"... são os nomes que denunciam o momento em que os interesses políticos de emprego de uma força de trabalho "adequadamente qualificada" misturam a educação antiga da oficina com a da escola, reduzem o seu compromisso aristocrata com a "pura" formação da personalidade e inscrevem o ato de educar entre as práticas político-econômicas das "arrancadas para o desenvolvimento". Arrancadas que, nas sociedades capitalistas são de modo geral estratégias de reorganização de toda a vida social, de acordo com projetos e interesses de reprodução do capital. De multiplicação dos ganhos das empresas capitalistas. Esta é a crítica que tem sido feita por cientistas e educadores que, sem deixarem de reconhecer com Durkheim que a educação existe na sociedade, dentro da cultura, procuram compreender como ela existe aí e sob que condições é praticada contra o homem ou a seu favor. Ora, às vezes mais útil do que comparar e discutir o conteúdo de estilos diferentes de definições ou propostas de tipos de educação, é procurar ver de onde eles vêm. Quem diz, em nome de quem e para quê? A variação da maneira como o triângulo educação-ensino-escola tem sido formulado no Brasil pelas pessoas que possuam o poder direto ou indireto de determinar como ele vai existir, dá o que pensar. Até há alguns anos atrás o universo da educação estava dividido por aqui tal como na Grécia e em Roma, há muitos séculos. As crianças filhas de pais "das boas famílias" iam às escolas, mesmo que por poucos anos. As escolas eram particulares, "abertas" por professores avulsos ou pelas ordens religiosas. Eram pagas, algumas custavam caro e as poucas crianças pobres que aprendiam "de graça" aprendiam nos orfanatos ou nos anexos dos colégios religiosos. Os escravos e os filhos dos deserdados da fortuna — lavradores livres, artistas pobres, artesãos — aprendiam "no ofício". Rara vez um deles alisava com o traseiro magro o banco de madeira de alguma escola, razão por que o país tinha, até há poucos anos, um dos maiores índices de analfabetismo em todo o mundo. Havia, portanto, duas educações em curso. Uma era a da escola, destinada aos filhos das "gentes de bem". Ali, fora o ensino de primeiras letras, havia cursos sempre não profissionalizantes, que ensinavam Latim, Grego, Literatura e Música para os que chegavam até depois dos estudos primários. Mesmo nas três primeiras décadas deste século, até entre os mais ricos eram raras as pessoas que faziam algum curso superior. Havia poucas faculdades isoladas e a nossa universidade mais antiga, a de São Paulo, não tem ainda 50 anos. Outra era a da oficina, misturada com a da vida, destinada pelos ossos do ofício aos filhos "da pobreza". Analfabetos "de pai e mãe", mas excelentes lavradores, mineradores, pedreiros, carapinas, ourives, ferreiros, estes homens "rudes", porque "sem cultura", de acordo com a visão das elites, mas sábios do saber que faz o trabalho produtivo, fizeram a riqueza e as obras do país e de cada uma de suas cidades. "Mestre carapina, conhecido na história da cidade, queria dizer carpinteiro, mas sua atividade não se circunscrevia apenas a este ofício. Eram engenheiros práticos: estes escravos calculavam a construção de um sobrado e o construíam. Isto ocorreu até a metade do século passado com sobrados que chegam até nossos dias e foram construídos por estes engenheiros (toda a parte de taipa, armação do telhado de grande dimensão), sendo que os engenheiros graduados só chegavam na fase final para terminar a construção. A velha Igreja do Carmo foi feita só por 'mestres carapinas', como muitos outros prédios cujos construtores podem ser identificados ainda hoje." (Celso Maria de Mello Pupo, sobre a cidade de Campinas, em São Paulo) Nas primeiras décadas deste século, políticos e educadores liberais trouxeram idéias novas para a educação no país. Entre outras coisas eles começaram a falar de uma escola mais dirigida à vida de todo dia e mais estendida a todas as pessoas, ricas ou pobres. A "luta pela democratização do ensino" resultou na escola pública. Resultou no reconhecimento político do direito de estudar para todas as pessoas, através de escolas gratuitas, de ensino leigo, oferecido pelo governo. Há quem diga que isto foi o resultado de um confronto entre "liberais" e "conservadores" na política, um confronto que invadiu a questão da educação. De um lado ficaram os que falavam em nome das elites agrárias tradicionalistas e acostumadas a padrões ultrapassados de domínio político. De outro lado ficaram os que falavam em nome das novas elites capitalistas, atentas a novos tempos e problemas que batiam nas portas do mundo e do Brasil. No entanto, o que eu quero ressaltar é que esses políticos e educadores liberais - alguns deles sem dúvida lúcidos e bem-intencionados — ao pregarem idéias de uma educação voltada para a vida, a mudança, o progresso, a democracia, traduziam ao mesmo tempo o imaginário democrático de seu tempo e, por outro lado, o projeto político que servia aos interesses de novos donos do poder e da economia. E, tal como aconteceu em outros setores da sociedade brasileira, as inovações propostas para a educação propiciaram novos tipos de usos políticos de todo o aparato pedagógico, adaptando-o à realidade de novos tempos e a novos modelos de controle do exercício da cidadania e de preparação de "quadros" qualificados para o trabalho das fábricas. Indústrias que primeiro o capital brasileiro e, depois, o internacional, começaram a semear pelo país. Como tipos de intelectuais (educadores, filósofos, legisladores, cientistas sociais) constituídos e sustentados, direta ou indiretamente, pelos novos donos do poder, quase todos os militantes de uma nova educação souberam lutar com entusiasmo por torná-la mais aberta e democrática por dentro e por fora, sem saber muitas vezes que as suas idéias apenas consolidavam outros projetos políticos para a educação. Eles substituíam outros intelectuais, aqueles cujas idéias pedagógicas serviram aos interesses políticos dominantes de outros tempos, e que não tinham mais lugar nem poder, porque eram as idéias que traduziam os interesses de preservação de um tipo de ordem social inadequada no Brasil, diante das mudanças aos poucos havidas nas relações de produção de bens e de poder. Por uma porta os filhos dos pobres começam a entrar nas escolas públicas. Por outra o país ingressa enfim em tempos de transferência do capital da agricultura para a indústria, e de poder e pessoas do campo para a cidade. Então políticos e educadores começam a chamar a atenção para a evidência de que, mesmo nas escolas públicas, o ensino escolar era inadequado. Não servia para preparar o cidadão para a vida nem para preparar o trabalhador para o trabalho, em qualquer um dos seus níveis. Quando as exigências de ordem e trabalho do capital redefiniram aos poucos a vida e o trabalho, a idéia de que, além de uma vaga "personalidade do educando", a educação tinha compromissos para com a vida social e o trabalho produtivo passou a figurar entre leis e projetos de escolarização no país. Este progressivo ingresso da criança pobre nas salas das escolas, associado a uma redefinição do ensino escolar em direção ao trabalho produtivo, não fez mais do que trazer para dentro dos muros do colégio a divisão anterior entre o aprender-na-oficina para o trabalho subalterno e o aprender-na-escola para o trabalho dominante. Algumas pesquisas de sociólogos americanos, realizadas desde a década de 50, confirmam que, mesmo nos Estados Unidos, o filho do operário estuda para ser o operário que acaba sendo, e o filho do médico para ser médico ou engenheiro. Apesar de ser, também lá, um projeto teórico de reprodução da igualdade, a educação da sociedade capitalista avançada reproduz na moita e consagra a desigualdade social, sem esquecer de fazer alarde em festa de formatura quando algum filho de operário consegue sair formado da Faculdade de Engenharia. Em um dos mais importantes estudos recentes sobre o assunto, dois franceses, Christian Baudelot e Roger Establet, demonstram que a escola capitalista francesa superpõe, sobre o sistema oficial de ensino — aquele que é proclamado como democraticamente aberto a todos - uma divisão entre duas redes "heterogêneas... opostas... antagônicas". É claro que esta oposição real, que existe sob uma unidade proclamada, não é oficialmente aceita. Não é reconhecida como existente e determinante do sistema pedagógico francês pelos seus ideólogos. Mas é através do que separa e de como separa quem entra e quem sai das escolas que a educação capitalista cumpre a sua função de reproduzir e consagrar a desigualdade, afirmando que existe como um instrumento democrático de produção da igualdade social através do acesso ao saber. Uma rede é a de tipo PP, primario-profissional, limite dos estudos para os filhos do povo destinados, também por ela, aos padrões do trabalho operário. Outra rede é a de tipo SS, secundário-superior, destinada aos filhos dos ricos, enviados, também por ela, às pontes-decomando do trabalho "superior". Então, esta educação que incorpora o povo ao ensino oficial, que arranca o menino proletário da oficina e o deseja pelo menos por alguns anos na escola, será a educação que serve a ele? Que serve pelo menos também a ele? Este é o momento de voltarmos juntos, leitor, a algumas páginas do começo desta conversa sobre ensinar-e-aprender. O tipo de formação social onde nós vivemos não é como o de uma pequena aldeia tribal, embora haja muitas delas em nosso mundo. Não é sequer, como na Grécia, de onde saiu o modelo de nossa educação, o lugar da polis, onde pelo menos nos melhores tempos vigora a democracia de todos os cidadãos livres, mesmo que ela seja sustentada pelo trabalho dos escravos. Vivemos aqui, hoje, dentro de uma ordem social regida por um sistema amplo e muito complexo de relações de produção entre tipos de meios e produtores, que se costuma chamar de modo de produção capitalista. Embora possa ser fatigante e parecer agressivo, é muito pouco real pensar, seja a educação, seja quase tudo o mais que acontece por aqui, sem levar em conta que são tipos de trocas regidos pela oposição entre o capital e o trabalho. Ora, por toda parte, em sociedades como a nossa, grupos nacionais ou estrangeiros, que repartem entre si a propriedade e o controle direto dos meios de produção dos bens de que se nutrem as pessoas e seu mundo, concentram entre si o poder de constituírem, em seu proveito, o tipo de Estado que, por sua vez, reproduz serviços e normas de segurança, de propriedade, de direito, de saúde e até de educação, serviços e normas que servem em conjunto para manter coesa e, se possível, em relativa paz a ordem social de que se nutre o capital, ou seja, aquela ordem em que ele se multiplica. Esta é uma afirmação comum hoje em dia entre os que pensam sobre a educação sem se iludirem com as condições de sua existência real. E também uma crítica que se confirma a todo momento, inclusive por meio de dados estatísticos. Ela não vale só para um país de economia pobre e dependente como o nosso, situado, como diriam os economistas, "na periferia do sistema capitalista". Vale também para os países de economia desenvolvida, os da "metrópole" do sistema. Em um estudo sobre "a educação como processo social", o norte-americano Wilbur Brookover concluiu que em seu país a educação: a) tem o seu controle situado em mãos "de elementos conservadores da sociedade"; b) é dirigida de modo a impedir mudanças significativas, "exceto nas áreas em que os grupos dominantes desejam a mudança"; c) na melhor das hipóteses, pode atuar como um agente interno de mudanças sociais, não como um agente externo, ou seja, capaz de provocar por sua conta mudanças significativas; d) não é acreditada como criadora de um possível "mundo melhor", a não ser quando "outras forças também operam como agências de mudanças". Dentro de um tipo de ordem social assim dividida, a educação (como tantas outras coisas da vida e dos sonhos de todos os homens) perde a sua dimensão de um bem de uso e ganha a de um bem de troca. Ela não vale mais pelo que é e pelo que representa para as pessoas. Não é mais um dom do fazer que existe no ensinar o saber que é um outro dom de todos e que a todos serve. A educação vale como um bem de mercado, e por isso é paga e às vezes custa caro. Vale como um instrumento cujos segredos se programam nos gabinetes onde estão os emissários dos intermediários dos interesses políticos postos sobre a educação. Esta é a sua dupla dimensão de valor capitalista: a) valer como alguma coisa cuja posse se detém para uso próprio ou de grupos reduzidos, que se vende e compra; b) valer como um instrumento de controle das pessoas, das classes sociais subalternas, pelo poder de difusão das idéias de quem controla o seu exercício. Então, o que parece inacreditável faz parte da própria lógica do modo como a educação existe na sociedade desigual. Quando pensada como uma "filosofia" ou uma "política de educação", ela se apresenta juridicamente como um bem de todos, de que o estado assume a responsabilidade de distribuição em nome de todos. Mas sequer as pessoas a quem a educação serve, em princípio, são de algum modo consultadas sobre como ela deveria ser. A educação que chega à favela, chega pronta na escola, no livro e na lição. Os pais favelados dos alunos são convocados a matricular os seus filhos, como se aquilo fosse um posto de recrutamento. Não são convocados, por exemplo, a debaterem com os professores como eles pensam que a escola da favela poderia ser uma verdadeira agência de serviços à sua gente. Mesmo que fossem, as suas idéias por certo não sairiam do caderno de anotações da diretoria. Mas não são só os pais e as crianças faveladas os que não têm direitos de pensar na educação da favela. Mesmo os cidadãos ricos e letrados não tem poder algum sobre as idéias que determinam a educação de seus filhos, e a imensa massa dos próprio educadores da linha de frente do trabalho pedagógico (professores, diretores de escola, orientadores, supervisores educacionais) têm o poder do exercício da reprodução das idéias prontas sobre a educação e dos conteúdos impostos à educação. Mas não têm nem o direito nem o poder de participarem das decisões político-pedagógicas sobre a educação que praticam. Elas estão reservadas aos donos do poder político e às pequenas confrarias de intelectuais constituídas como seus porta- vozes pedagógicos. Poucos espaços de trabalho social são hoje, tão pouco comunitários e democratizados entre os seus diferentes praticantes, como a educação. E, em qualquer tipo de ordem social, quanto mais a educação autoritária e classicista é expressão de um poder autoritário de uma sociedade classista, tanto mais ela procura apresentar-se como uma prática humanamente legítima, exercida em nome de leis legítimas e "para o bem de todos". A ideologia que fala através das leis, decretos e projetos da educação autoritária nega acima de tudo que ela seja uma pedagogia contra o homem — contra a verdadeira liberdade do homem através do saber, liberdade que existe através da verdadeira igualdade entre os homens. Por isso há "leis do ensino" que afirmam com fé de ofício os valores de uma suposta democracia feita através da educação, e que é a alma dos conteúdos de seu ensino. Estas afirmações teóricas ocultam o fato real de que o exercício desta educação consagra a desigualdade que deveria destruir. Afirmar como idéia o que nega como prática é o que move o mecanismo da educação autoritária na sociedade desigual. A ESPERANÇA NA EDUCAÇÃO Se a educação é determinada fora do poder de controle comunitário dos seus praticantes, educandos e educadores diretos, por que participar dela, da educação que existe no sistema escolar criado e controlado por um sistema político dominante? Se na sociedade desigual ela reproduz e consagra a desigualdade social, deixando no limite inferior de seu mundo os que são para ficar no limite inferior do mundo do trabalho (os operários e filhos de operários), e permitindo que minorias reduzidas cheguem ao seu limite superior, por que acreditar ainda na educação? Se ela pensa e faz pensarem o oposto do que é, na prática do seu dia a dia, por que não forçar o poder de pensar e colocar em prática uma outra educação? A resposta mais simples é: "porque a educação é inevitável". Uma outra, melhor seria: "porque a educação sobrevive aos sistemas e, se em um ela serve à reprodução da desigualdade e à difusão de idéias que legitimam a opressão, em outro pode servir à criação da igualdade entre os homens e à pregação da liberdade". Uma outra ainda poderia ser: "porque a educação existe de mais modos do que se pensa e, aqui mesmo, alguns deles podem servir ao trabalho de construir um outro tipo de mundo". "Reinventar a educação" é uma expressão cara a Paulo Freire e aos seus companheiros do Instituto de Desenvolvimento e Ação Cultural. De algum modo eles a aprenderam na África, trabalhando como educadores junto a educadores de países como a Guiné-Bissau e as ilhas de São Tome e Príncipe, que se haviam tornado independentes de Portugal e tratavam de reinventar, mais do que só a educação, a sua própria vida social. O mais importante nesta palavra, "reinventar", é a idéia de que a educação é uma invenção humana e, se em algum lugar foi feita um dia de um modo, pode ser mais adiante refeita de outro, diferente, diverso, até oposto. Muitas vezes um dos esforços mais persistentes em Paulo Freire é um dos menos lembrados. Ao fazer a crítica da educação capitalista, que ora chamou também de "educação bancária", ora de "educação do opressor", ele sempre quis desarmá-la da idéia de que ela é maior do que o homem. De que as pessoas são um produto da educação, sem que ela mesma seja uma invenção das pessoas, em suas culturas, vivendo as suas vidas. Ele sempre quis livrar a educação de ser um fetiche. De ser pensada como uma realidade supra-humana e, por isso, sagrada, imutável e assim por diante. Ao contrário do que acontece com os deuses, para se crer na educação é preciso primeiro dessacralizá-la. É preciso acreditar que, antes, determinados tipos de homens criam determinados tipos de educação, para que, depois, ela recrie determinados tipos de homens. Apenas os que se interessam por fazer da educação a arma de seu poder autoritário tornam-na "sagrada" e o educador, "sacerdote". Para que ninguém levante um gesto de crítica contra ela e, através dela, ao poder de onde procede. Por isso, muitas páginas atrás comecei falando sobre ensinar-e-aprender como alguma coisa que começa com os bichos (quem sabe com as plantas, com os seres "brutos" do Universo?) e que, entre nós, homens, existe por toda parte. Procurei corrigir a visão estreita de que a educação se confunde com a escolarização e se encontra só no que é "formal", "oficial", "programado", "técnico", "tecnocrático". Se em algumas páginas falei dela como um entre outros instrumentos de desigualdade e alienação, em outras imaginei-a como uma aventura humana. A educação existe em toda parte e faz parte dela existir entre opostos. O que vimos juntos, leitor, acontecer na Grécia, repete-se mil vezes em mil tempos de outros mundos sociais. Entre sujeitos igualados pelo trabalho comum e o saber comunitário, também a educação pertence do mesmo modo a todos e, se existe diferente para alguém, é para especializar, para o uso de todos, o seu saber e o seu trabalho. Mais do que poder, portanto, ela atribui compromissos entre as pessoas. Quando o fruto do trabalho acumula os bens que dividem o trabalho, a sociedade inventa a posse e o poder que separa os homens entre categorias de sujeitos socialmente desiguais. A posse e o poder dividem também o saber entre os que sabem e os que não sabem. Dividem o trabalho de ensinar tipos de saber a tipos de sujeitos e criam, para o seu uso, categorias de trabalhadores do saber-e-do-ensino. É a partir daí que a educação aparece como propriedade, como sistema e como escola. O controle sobre o saber se faz em boa medida através do controle sobre o quê se ensina e a quem se ensina; de modo que, através da educação erudita, da educação de elites ou da educação "oficial", o saber oficialmente transforma-se em instrumento político de poder. Ele abandona a communitas de que fez parte um dia e ingressa na estrutura dos aparatos de controle. O "processo grego" se repete então: a educação da comunidade, a escola, a oposição entre a educação-de-educar e a educação-de-instruir, a passagem da aprendizagem coletiva para o ensino particular, o controle do Estado. Em primeiro lugar, em algum tempo ela existe difusa no meio social de que todos participam e é ativamente exercida nos diferentes círculos naturais da sociedade: a família, o clã, o grupo de idade, o grupo de socius. Mais adiante a educação especializa-se sob a égide da escola, mas a escola particular do mestre avulso ainda é uma extensão da sociedade civil. Mais tarde ainda, a própria educação escolar cai sob o poder de decisão do Estado que, quando autoritário e classista, exerce a educação para o controle da sociedade civil, da comunidade de todos. Onde surgem interesses desiguais e, depois, antagônicos, o processo educativo, que era unitário, torna-se partido, depois, imposto. Há educações desiguais para classes desiguais; há interesses divergentes sobre a educação, há controladores. Grupos desiguais não só participam desigualmente da educação — dos nobres, dos funcionários, dos artesãos — como são também por ela destinados desigualmente ao trabalho: para dirigir, para executar, para produzir. Mas, assim como a vida é maior que a forma, a educação é maior que o controle formal sobre a educação. Alguns pesquisadores têm descoberto hoje o que existe há milênios. Por toda parte as classes subalternas aprenderam a criar e recriar uma cultura de classe — mesmo quando aproveitando muitos elementos dominantes que lhes foram impostos como idéias ou como práticas — e também formas próprias de educação do povo. As oficinas de que falei aqui e ali são um exemplo que vem da antigüidade até nossos dias. Mas podem não ser o melhor exemplo. O que existe na verdade nas comunidades de subalternos é a preservação de tipos de saber comunitários e de meios comunitários de sua transferência de uma geração para outra. Como sempre se faz a história da educação erudita e formal quando se discute o que é educação, sempre se deixa de lado este seu outro lado. A margem da vida dos dominantes, dos escravos aos bóias-frias de hoje, os subalternos souberam criar, dentro dos limites estreitos em que sempre lhes foi permitido "criar" alguma coisa sua, os seus modos próprios de saber, de viver e de saber. Eles inventaram os seus códigos de trocas no interior da classe e entre classes. Sempre que possível, criaram formas peculiares de solidariedade para dentro da classe, e de resistência e manipulação para fora dela. Elaboraram as suas crenças e valores de representação do mundo, mesmo quando observando a escrita da ideologia dos seus senhores. Construíram estilos e tecnologias rústicas dirigidos aos seus usos do cotidiano. Inventaram rituais sagrados e profanos. Tudo isso a que se dá o nome de "Cultura Popular", e que às vezes se vê da academia como um amontoado de coisas pitorescas, faz parte de sistemas populares de vida e de representação da vida, e tem uma lógica e densidade de que apenas levantamos o primeiro véu, depois de tantas pesquisas. Pois todo este trabalho tradicional de classe que sustenta um modo próprio de vida subalterna é sustentado por formas próprias e muitas vezes popularmente muito complexas de saber, é sustentado também por sistemas próprios de reprodução do saber popular, que implicam não apenas em relações simples, como as de um pai lavrador com um filho aprendiz, mas também em redes e estruturas pedagógicas de que desconhecemos, quase tudo. Isto é evidente em muitas situações: na Capoeira da Bahia, nas confrarias populares de Foliões de Santos Reis, numa quadrilha de pivetes ou numa equipe rústica de construtores de casas. Estes modos próprios de uma educação dos subalternos têm um teor político de que pouco se suspeita. Assim como a educação do sistema dominante possui o valor político dos serviços que presta aos que a controlam, enquanto ensina desigualmente aos que a recebem, assim também as formas próprias de educação do povo servem a ele como redes de resistência a uma plena invasão da educação e do saber "de fora da classe". A própria maneira como uma população de favelados se relaciona com a escola pode ser um bom exemplo disso. Quando há escola pública na favela, os pais mandam os filhos para ela. Quando não há, as "comissões de bairro" lutam para que haja. Mas quem envia os filhos não se compromete com a escola. Os esforços de professores e diretores para que haja um maior intercâmbio entre "a escola" e "a comunidade" resultam quase sempre em fracasso. Quando em alguma favela a coisa dá resultado, às vezes o secretário da educação vai visitar e, se possível, leva a TV Globo. O descompromisso dos adultos para com a escola pública não é devido à falta de tempo. Muitos destes pais gastam o corpo, o tempo e o dinheiro por meses a fio nos preparos do "bloco do bairro", ou da "escola de samba". Eles fazem "assim porque tratam a escola "do governo" como tratam as suas outras agências: o posto de saúde, a delegacia, a agência de bem-estar social. Tratam como locais para serviços de emergência e, ao mesmo tempo, como postos invasores de um tipo de domínio de classe indesejável. Se tratam a educação dos seus filhos como coisa que se passa "no mundo dos brancos", é porque têm também as suas formas próprias, tradicionais, de reprodução do saber. Por isso tratam o "bloco" e a "escola de samba" como coisa sua, de seu mundo. Sem o saber que existe na fala, mas cheios do saber que existe na prática, os subalternos criam e recriam a sua própria educação. E ela não existe só para difundir o saber, mas para reforçar o resistir. Alguns estudos de antropólogos franceses na África, confirmados por outros feitos, por brasileiros, aqui no Brasil, demonstram como existe uma sábia arma de resistência popular justamente naquilo que nos acostumamos a desprezar, por ver como "tradicional", "atrasado", "primitivo". A aparente "primitividade" do pobre contra a invasão sobre ele da "modernidade" do senhor é um meio popular avançado de lutar por manter e recriar uma identidade própria de subalterno (de índio, de negro, de colonizado, de escravo, de camponês), de manter o seu próprio saber e as suas próprias redes de educação. Quando em alguma parte setores populares da população começam a descobrir formas novas de luta e resistência, eles redescobrem também " velhas e novas formas de "atualizar" o seu saber, de torná-lo orgânico. Criam por sua conta e risco, ou com a ajuda de agenteseducadores eruditos, outras formas de associação, como os sindicatos, os movimentos populares, as associações de moradores. Estes grupos, que geram outros tipos de mestres entre as pessoas do povo, geram também outras situações vivas de aprendizagem popular. Eu não tenho dúvidas em afirmar que é entre as formas novas de participação popular, nas brechas da luta política, que, hoje em dia, surgem as experiências mais inovadoras de educação no Brasil. Os professores tradicionais e os tecnocratas da pedagogia são cegos para elas, mas é ali que as propostas mais avançadas de "educação e vida", "educação na prática", etc, são criadas e testadas. Mais do que isso, em algumas partes do país comunidades populares tentam inventar agora tipos de escolas comunitárias que antecipariam, em uma plena democracia, o exercício de uma "educação como prática da liberdade". Aquela que, sendo sustentada economicamente pelo poder público, fosse política e pedagogicamente controlada pelas comunidades onde se exercesse. De outra parte, mesmo nos setores eruditos da educação oficial, é preciso compreender que ela existe em muito mais situações do que dentro do sistema e na sala de aula. Ao lado das inovações pedagógicas que provocam a reinvenção do trabalho escolar, a mesma relação de opostos sobreexiste entre a formalidade da estrutura e a permanente oposição que fazem a ela as inúmeras pequenas communitas de sujeitos envolvidos, de um modo ou de outro, com o sistema de educação. De um lado, os próprios professores que trabalham como educadores (como sujeitos de suas diversas categorias de especialistas), nas escolas, colégios e universidades, aprendem a se organizar também como categorias políticas e profissionais de trabalhadores da educação. As associações de tipos de especialistas do ensino e, mais ainda, as associações de categorias de docentes são o resultado do desenvolvimento da consciência política do educador. De outro lado, os alunos criam e recriam as suas unidades de organização, os seus grêmios, grupos de arte e cultura. Quem poderia esquecer que as experiências de Educação Popular e de Cultura Popular no Brasil foram iniciadas dentro dos primitivos serviços de Extensão Universitária, como o da Universidade Federal de Pernambuco, onde nasceu o Método Paulo Freire de Alfabetização, ou como os Movimentos de Cultura Popular e os Centros Populares de Cultura, vinculados ao movimento estudantil e às suas unidades de mobilização? Só os formalistas pedagógicos podem enxergar educação apenas dentro dos sistemas restritos da pedagogia (que, aliás, até hoje não se sabe ao certo se é uma ciência, uma prática especializada ou uma teoria de educação, ou, quem sabe, nada disso). Somente eles poderiam discutir, como questões da educação, problemas de método, de operacionalidade curricular, de programação sistemática e assim por diante. Instrumentos úteis, sem dúvida, mas pequenas algemas de controle quando empregados sem a crítica do lugar e do sentido de tudo isso. Só o educador "deseducado" do saber que existe no homem e na vida poderia ver educação no ensino escolar, quando ela existe solta entre os homens e na vida. Quando, mesmo ao redor da escola e da universidade, ela está no sistema e na oposição a ele; na sala de aula em ordem, e no dia de greve estudantil; no trabalho rigoroso e persistente do professor-e-pesquisador e, ao mesmo tempo, no trabalho político do professormilitante. Esta é a esperança que se pode ter na educação. Desesperar da ilusão de que todos os seus avanços e melhoras dependem apenas de seu desenvolvimento tecnológico. Acreditar que o ato humano de educar existe tanto no trabalho pedagógico que ensina na escola quanto no ato político que luta na rua por um outro tipo de escola, para um outro tipo de mundo. E é bem possível que até mesmo neste "outro mundo", um reino de liberdade e igualdade buscado pelo educador, a educação continue sendo movimento e ordem, sistema e contestação. O saber que existe solto e a tentativa escolar de prendê-lo num tempo e num lugar. A necessidade de preservar na consciência dos "imaturos" o que os "mais velhos" consagraram e, ao mesmo tempo, o direito de sacudir e questionar tudo o que está consagrado, em nome do que vem pelo caminho. TEXTO DISPONÍVEL EM: http://pt.scribd.com/doc/39369244/O-que-e-Educacao-BRANDAO-Carlos-Rodrigues REFLETINDO SOBRE A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL Robson Stigar & Neivor Schuck 2 Introdução O presente texto tem por objetivo refletir sobre a história da educação no Brasil, tendo em vista as suas varias concepções de ensino a longo da história, bem como entender a partir do passado a educação da atualidade. Em primeiro momento será apresentado um pequeno contexto histórico, no segundo momento pretende-se refletir sobre os conflitos entre as diferentes posturas de ensino e por fim refletir sobre a teoria da complexidade e a sua relação com a educação contemporânea. Contexto Histórico A formação do Brasil implica necessariamente na estruturação de nosso modelo de ensino porque desde os primeiros anos de nossa descoberta sofremos da falta de estrutura e investimento nessa área. Contudo, além do componente histórico que parece ser de comum aceitação, aparece o problema do modelo pedagógico adotado. Neste aspecto ocorre uma polarização e até uma divisão tripla se quisermos englobar a escola técnica (anos 70). Ou seja, as posturas mais adotadas em nosso país são justamente a pedagogia tradicional (método fonético) e a escola nova (construtivismo). Segundo XAVIER de um lado está a escola tradicional, aquela que dirige que modela, que é ‗comprometida‘; de outro está a escola nova, a verdadeira escola, a que não dirige, mas abre ao humano todas as suas possibilidades de ser. É portanto, ‗descompromissada‘. É o produzir contra o deixar ser; é a escola escravisadora contra a escola libertadora; é o compromisso dos tradicionais que deve ceder lugar à neutalidade dos jovens educadores esclarecidos (XAVIER, 1992: 13). 2 Robson Stigar: licenciado em Filosofia, especialista em Psicopedagogia, mestrando em Ciência da Religião – [email protected] Neivor Schuck: licenciado em Filosofia, especialista em Psicopedagogia, mestrando em Ciências da Religião - [email protected] Aparentemente temos a impressão de que o grande problema de nossa deficiência educacional se resume ao problema da rigidez do modelo tradicional de ensino, mas ao aprofundarmos nossa investigação constáramos que a péssima qualidade de ensino presente nas escolas do Brasil acontece devido, em parte tanto a falta de estrutura educacional adequada como pela desestruturação das poucas bases presentes na pedagogia tradicional, causada pela critica dos escolanovistas, que acreditavam piamente que puramente pela crítica se atingiria uma melhoria no aprendizado. No entender de SAVIANI a escola tradicional procurava ensinar e transmitia conhecimento, a escola nova estava preocupada em apenas considerara o aprender a aprender. E posteriormente a escola técnica detinha-se em simplesmente considerar necessário o ensino da técnica. Até o inicio do século XX a educação no Brasil esteve praticamente abandonada, no entender de ROMANELLI: a economia colonial brasileira fundada na grande propriedade e não na mão de obra escrava teve implicações de ordem social e política bastante profundas. Elafavorece o aparecimento da unidade básica do sistema de produção, de vida social e do sistema de poder representado pela família patriarcal (ROMANELLI, 2001: 33). Assim, a educação no Brasil caminhou por veredas tortuosas desde o inicio, reservada a uma elite dominante e totalmente exploradora, sempre esteve voltada a estratificação e dominação social. Esteve arraigada por diversos séculos em nossa sociedade a concepção de dominação cultural de uma parte minúscula da mesma, configurado-se na idéia básica de que o ensino era apenas para alguns, e por isso os demais não precisariam aprender. As oligarquias do período colonial e monárquico estavam profundamente fundamentadas na dominação via controle do saber. Caracterizou-se nesse período colonial, bem como no monárquico, um modelo de importação de pensamento, principalmente da Europa e consequentemente a matriz de aprendizagem escolar fora introduzida no mesmo momento. Nas palavras de ROMANELLI, foi a família patriarcal que favoreceu, pela natural receptividade, a importação de formas de pensamento e idéias dominantes na cultura medieval européia, feita através da obra dos Jesuítas‖ (ROMANELLI, 2001: 33). Assim, a classe dominante tinha ser detentora dos meios de conhecimento e de ensino. Isso implicou no modelo aristocrático de vida presente em nossa sociedade colonial e posteriormente na corte de D. Pedro. Existiram dois fatores fundamentais na formação do modelo educacional brasileiro, ou seja, ―a organização social (...) e o conteúdo cultural que foi transportado para a colônia, através da formação dos padres da companhia de Jesus‖ (ROMANELLI, 2001: 33). No primeiro fator aparece com mais intensidade a predominância de uma minoria de donos de terra e senhores de engenho sobre uma massa de agregados e escravos. Apenas àqueles cabia o direito à educação e, mesmo assim, em número restrito, porquanto deveriam estar excluídos dessa minoria as mulheres e os filho primogênitos. Limitava-se o ensino a uma determinada classe da população, ou seja, apenas a classe dominante. Surge claramente um dos fundamentos da baixa escolaridade de nossa população e da falta de recursos para a eliminação das diferenças entre as classes. A segunda contribuição para a formação de nosso sistema educacional deficitário é justamente o conteúdo do ensino dos Jesuíta, ―caracterizado sobretudo por uma enérgica reação contra o pensamento critico‖ (ROMANELLI, 2001: 34), contudo, a maneira como os Jesuítas cultivavam as letras permitiu algum alvorecer em nossa literatura. O conflito entre as diferentes posturas de ensino A relação entre escola e democracia depende de diferentes aspectos presentes na sociedade. Contudo, parece que o problema aparece realmente nas teorias de educação. Isso se expressa pelo elevado índice de analfabetismo funcional, configurando uma marginalidade desses indivíduos analfabetos. Por outro lado, ―no segundo grupo, estão as teorias que entendem ser a educação um instrumento de discriminação social, logo, um fator de marginalização‖ (SAVIANI, 2003: 04). Deste modo, podemos constatar que ambos os grupos explicam a questão da marginalidade a partir de uma determinada concepção da relação entre educação e sociedade. Assim, ambos os grupos destoam partindo de um mesmo referencial, com isso, para os nãocríticos (primeiro grupo) A sociedade é concebida como essencialmente harmoniosa, tendendo a integração de seus membros. A marginalidade é, pois, um fenômeno acidental que afeta individualmente um número maior ou menor de seus membros, o que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não pode como deve ser corrigida (SAVIANI, 2003: 04). A superação dessa distorção far-se-ia por intermédio da educação. Tendo por função―reforçar os laços sociais, promover a coesão e garantir a integração de todos os indivíduos no corpo social‖ (SAVIANI, 2003: 04), permitindo a superação da marginalidade. Por outro lado, os que defendem uma postura critica entendem que a sociedade como sendo essencialmente marcada pela divisão entre grupos ou classes antagônicas que se relacionam à base da força, a qual se manifesta fundamentalmente nas condições de produção da vida material. Nesse quadro a marginalidade é entendida como um fenômeno inerente à própria estrutura da sociedade (SAVIANI, 2003: 04). Assim, a educação assume um papel de produtora da marginalização, porque produz a marginalidade cultural e de maneira especifica a escolar. No entender de SAVIANI existem três modalidades diferentes de configurar os modelos educacionais expressos pelas duas teorias expressas anteriormente, isto é, a tradicional, fundada na relação ensino aprendizagem e na relação professor aluno; a escola nova, que entende como fundamental a necessidade de aprender a aprender e na função de acompanhar o desenvolvimento individual do estudante por parte do professor; e por último aparece a concepção técnica que se funda no fazer e elimina totalmente a relação professor aluno. Segundo SAVIANI a concepção critica não apresenta nenhuma proposta para substituir a pedagogia tradicional e por isso não permite ser pensada como uma solução do problema da relação entre escola e marginalidade social. Ao apresentar uma solução possível para a questão SAVIANI aponta para a definição de prioridades políticas fundadas no principio aristotelico de animal político, tudo englobaria o ato de educar. Assim, a educação sempre possui uma dimensão política tenhamos ou não consciência disso, portanto assume-se um caráter educativo e político para a educação e este só cumpre seu papel quando permite a formação integral do indivíduo. Mas o desafio permanece, como podemos falar em educação global se vivemos em uma sociedade fragmentada, imbuída de diferentes conceitos de razão, educação, ética, política, marginalidade, sociedade e cultura? No entender de SAVIANI existem onze teses acerca da educação que precisam ser consideradas como fundamentais no engajamento político. Isto é , o agir educativo sempre cumpre um papel fundamental na estruturação da sociedade. O modelo tortuoso e desorganizado de nosso sistema educacional gera aberrações como as que vemos nas instituições de ensino público superior. Ou seja, os que deveriam ter acesso a escola pública superior não conseguem e os que podem pagar adentram as portas das universidades públicas. A teoria da complexidade e sua relação com a educação contemporânea Segundo MORIN a sociedade contemporânea possui elementos diversificados e complexos, isto significa que o ensino precisa estar atento a complexidade da vida contemporânea. Desta forma, a incorporação dos sete saberes como fundamentos para desenvolver o homem moderno. Dentro deste cenário a sociedade se preocupa cada vez mais com a realidade escolar e com a formação dos indivíduos, sobretudo precisa-se de criatividade para mudar a realidade brasileira. Contudo, ―O conhecimento disciplinar, e conseqüentemente a educação, têm priorizado a defesa de saberes concluídos, inibindo a criação de novos saberes e determinando um comportamento social a eles subordinado‖ (AMROSIO: 2007). Por isso a interdisciplinaridade entre os diferentes saberes seria essencial para resolver esse problema . MORIN entende que o conhecimento na complexidade É a viagem em busca de um modo de pensamento capaz de respeitar a multidimensionalidade, a riqueza, o mistério do real; e de saber que as determinações – cerebral, cultural, social, histórica – que impõem a todo o pensamento, co-determinam sempre o objecto de conhecimento. É isto que eu designo por pensamento complexo. (MORIN 1980: 14). Trata-se de um pensamento desprovido de certezas e verdades científicas, que considera a diversidade e a incompatibilidade de idéias, crenças e percepções, integrandoas à sua complementaridade. ―A consciência nunca tem a certeza de transpor a ambigüidade e a incerteza‖ (MORIN, 1973: 134). Morin refere-se ao princípio da incerteza tal como formulado por Werner Heisenberg, físico, um dos precursores da mecânica quântica. Esse princípio baseia-se na falibilidade lógica, no surgimento da contradição presente na realidade física e na indeterminabilidade da verdade científica. Assim, o conceito de lógica tradicional fundado em Aristóteles não pode mais responder aos anseios da sociedade moderna, a lógica da complexidade assume novas probabilidades e possibilidades. Com efeito, promover, pois, a qualidade ética em educação, componente indispensável da qualidade total, e reformular o modo de se relacionar de todos os atores na escola, educadores e educandos, de acordo com as diferentes características do agir humano radicado na liberdade e voltado para o bem. Portanto, a complexidade como teoria de ação precisa levar em conta a ética na conduta pratica do profissional da educação. Conclusão Esperamos de alguma forma ter contribuído para o debate acadêmico e cientifico do tema proposto. Vale lembrar que consideramos este artigo como um ensaio, como uma breve introdução ao tema e não como uma postura filosófica ou educacional determinista, ou seja, fechada, acabada, pronta. O dialogo entre as posições diferentes enriquece a discussão e faz o papel da dialética, tão importante e necessário pro desenvolvimento acadêmico, social, político, cultural e educacional da sociedade. TEXTO DISPONÍVEL EM: http://www.opet.com.br/artigos/pdf-pg-artigos/Refletindo%20sobre%20a%20historia%20da%20educacao%20no%20Brasil%20OPET.pdf O ESTUDO DOS FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E SUA INFLUÊNCIA NA RELAÇÃO ENTRE COMUNIDADE E ESCOLA3 ADRIANA FRANCISCA DE CARVALHO MIGUEL O ESTUDO DOS FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO E SUA INFLUÊNCIA NA RELAÇÃO ENTRE COMUNIDADE E ESCOLA. A disciplina Fundamentos da Educação tem servido de apoio à estrutura humana em seu convívio social e produtivo. Pois, entende se assim, que a educação tem que adaptar a criança ao meio social adulto, ou seja, transformar a constituição psicológica do indivíduo em torno do conjunto de realidades coletivas as quais a consciência comum colabore com um determinado valor. Desta forma, é importante enfatizar, que a educação pode ser conceituada como um processo contínuo sempre ligado à reconstrução da experiência, com o objetivo de ampliar e aprofundar o seu conteúdo social, enquanto ao mesmo tempo, o indivíduo ganha o controle dos métodos envolvidos. De acordo com Piaget (1979), no caso do desenvolvimento da leitura e escrita, a dificuldade para adotar o ponto de vista da criança foi tão grande que ignoramos completamente as manifestações mais evidentes das tentativas infantis para compreender o sistema da escrita. A necessidade do homem de se expressar através da leitura e da escrita, algumas vezes, pode ser um processo doloroso e traumático, por isso devem ser repensadas as atitudes dos educadores para com as crianças que não acompanham o ritmo de aprendizagem imposto pelo modelo educacional. É a partir desta problemática, que a disciplina Fundamentos da Educação é de grande relevância ao profissional da educação por ministrar todo este conteúdo. O educador, nos dias atuais, para conseguir bons resultados no ensino e aprendizado, tem que estar por dentro de todos os meandros da formação e atuação do indivíduo, uma vez que a sua atuação deve ser ampla e aberta em todos os aspectos que se encontram ao seu redor. Veremos nos subcapítulos a seguir como os grandes pensadores da educação desenvolveram as teorias que são de grande discussão ainda nos dias atuais. FUNDAMENTOS PSICOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO 3 Produção de Aprendizagem apresentada à UTA –Fundamentos da Educação, no Curso de Pedagogia à Distância da Faculdade Internacional de Curitiba. Os princípios fundamentais da teoria de Piaget é a teoria interacionista construtivista. Para Piaget o desenvolvimento intelectual, assim como o da moral, esta relacionado à interação ativa do sujeito com o meio físico e social. Nesse processo interativo, ele desenvolve novas adaptações, envolvendo assimilações e acomodações, e as organiza. Essas adaptações lhe permitem avanços no desenvolvimento das estruturas da inteligência e do conhecimento do real. Na educação, a teoria piagetiana, está voltada ao desenvolvimento do raciocínio autônomo, tanto no plano intelectual como no plano moral. Nesse sentido é preciso, antes de tudo dar voz ao aluno, discutir com ele objetos de conhecimento em pé de igualdade, mesmo sabendo que há uma desigualdade em termos de conhecimento. A teoria histórico-cultural desenvolvida por Vygotsky,afirma que, o desenvolvimento propriamente humano é cultural e social na sua origem e denominado assim porque dependa da mediação de sistemas simbólicos. Nesse processo, parte-se de uma regulação pelos outros, no social, para uma autorregulação a partir das generalizações possibilitadas pela linguagem conceitual. O conceito de zona de desenvolvimento proximal ou potencial (ZDP) é um conceito poderoso, que vem dar suporte à noção de aprendizagem gerando desenvolvimento. Ao professor cabe atuar no ZDP do aluno para que este torne real oque primeiro é potencial. A mediação na ZDP vem contribuir para o avanço no conhecimento. Se o investimento estiver no nível de desenvolvimento real, não haverá evolução; se, por outro lado, for muito acima deste, mesmo com ajuda não haverá avanço. Para investir na ZDP, é preciso investir em problemas nem muito fáceis nem muito difíceis para o aluno, algo que ele, consiga resolver com ajuda do professor ou de um colega mais experiente. O objetivo dos estudos dos fundamentos psicológicos é compreender os processos de desenvolvimento e aprendizagem do ser humano. Essa área da psicologia estuda as mudanças no comportamento das pessoas que foram provocadas ou induzidas por situações educativas, formais ou informais. Com o conhecimento psicológico o educador pode contribuir no processo de construção do conhecimento do aluno, oferecendo vários objetos de conhecimento e instigando o aluno a interagir com eles. Cabe a ele intervir para fazer os alunos pensarem sobre suas próprias atividades e refletir sobre o processo que o levou ao êxito ou ao fracasso no trabalho com diferentes áreas. FUNDAMENTOS SÓCIO-ANTROPOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO No âmbito da sociologia das relações família-escola, o grupo familiar deixa de ser visto como mero reflexo da classe social de pertencimento, passando a ser analisado em sua especificidade, em sua dinâmica interna e sua forma peculiar de relação com o meio social. Durkheim tinha como objetivo principal descobrir as leis de funcionamento da sociedade. Por esse motivo é considerado um dos sistematizadores da corrente funcionalista. Enfatiza a origem social da educação com a finalidade desuperar sua caracterização predominantemente intelectualista e individualista. Esta teoria se preocupava principalmente com a questão da escolarização; sobretudo, com a forma como se dava a integração entre os indivíduos por meio da educação e o modo como se organizavam os espaços escolares. Aspectos como a transformação social e os conflitos sociais eram negados por esta corrente, a qual os percebia como uma doença. Karl Marx desenvolveu uma concepção materialista da História, afirmando que o modo pelo qual a produção material de uma sociedade é realizada constitui o fator determinante da organização política e das representações intelectuais de uma época. Assim, a base material ou econômica constitui a "infraestrutura" da sociedade, que exerce influência direta na "superestrutura", ou seja, nas instituições jurídicas, políticas (as leis, o Estado) e ideológicas (as artes, a religião, a moral) da época. Segundo Marx, a base material é formada por forças produtivas e por relações de produção. Marx utilizou o método dialético para explicar as mudanças importantes ocorridas na história da humanidade através dos tempos. Ao estudar determinado fato histórico, ele procurava seus elementos contraditórios, buscando encontrar aquele elemento responsável pela sua transformação num novo fato, dando continuidade ao processo histórico. Na concepção sociológica de Max Weber o ponto de partida esta justamente no indivíduo, que passa a ser compreendido como o motor das relações sociais. O objetivo da sociologia weberiana relaciona-se com o seu principal conceito, que é a ação social. Para o autor, a sociologia é o estudo da ação social, levando em conta a necessidade de compreendêla em interpretá-la em suas complexas casualidades e efeitos. Outro conceito importante em Weber é o de relação social, que se diferencia da ação social pelo fato de que aquela relação demanda que os atores realizem a ação de modo recíproco. Weber é também um dos grandes teóricos da burocracia, entendida esta como meio de denominação racional legal típico da sociedade capitalista, possível em sua integridade a partir da organização do Estado Moderno. A Sociologia da Educação oportuniza aos seus pesquisadores e estudiosos compreender que a educação se dá no contexto de uma sociedade que, por sua vez, é também resultante da educação. Também oportuniza compreender e caracterizar a inter-relação ser humano/sociedade/educação à luz de diferentes teorias sociológicas. Segundo Durkheim, a sociologia da educação serviria para os futuros professores para uma nova moral laica e racionalista, sem influência religiosa. A sociologia da educação começou a se consolidar por Marx e Engels, como o pensamento sobre as sociedades de seu tempo, criando uma relação de educação e produção. As concepções deles têm como início a revolução industrial, criando a educação politécnica, que combina a instituição escolar com o trabalho produtivo, acreditando que dessa relação nasceria um dos mais poderosos meios de transformação social. FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÂO A história da filosofia é a disciplina que se encarrega de estudar o pensamento filosófico em seu desenvolvimento diacrônico, ou seja, a sucessão temporal das ideias filosóficas e de suas relações. Ela é uma parte da ciência positiva da História, exigindo o mesmo rigor nos métodos, a fim de reconstituir a sequência da filosofia. Na teoria de Platão o homem resulta da união de dois elementos heterogêneos – a alma inteligível e o corpo material. A alma humana, em virtude de sua imaterialidade, é da mesma natureza das ideias e, portanto, tem uma predisposição natural para conhecê-las. Tal como asa ideias, a alma é imortal: ela sempre existiu e sempre vai existir. A alma intelectiva é o que há de mais nobre no ser humano, o qual se eleva à medida que desenvolve seu intelecto. Ao contrário o homem se rebaixa quando sede aos impulsos corpóreos. Para Aristóteles, corpo e alma estão unidos em um vínculo de dependência recíproca, para existirem um depende do outro. Na filosofia aristotélica a vida virtuosa não é a recusa dos prazeres corpóreos, como queria Platão, mas a moderação, a atitude daquele que evita excessos. A cultura medieval sofreu forte influência do cristianismo, uma religião cujos princípios os gregos ignoravam. A religião cristã, em muitos aspectos, era um obstáculo à livre reflexão filosófica. Para o cristianismo a verdade não era ―algo‖, mas ―alguém‖: Deus. No inicio da Idade Moderna o cristianismo e a religião cristã, já não exercia um papel tão acentuado na cultura do Ocidente. Em função disso, muitos filósofos voltaram a valorizar a razão, considerando-a uma via de acesso segura ao conhecimento da verdade. Por isso é que a filosofia moderna tomou como principal fundamento a questão do conhecimento. Nesse sentido podemos identificar duas grandes correntes de pensamento: o racionalismo e o empirismo: Para o racionalismo, todo conhecimento verdadeiro deriva da pura razão. René Descartes, que viveu no século XVII, foi um dos mais influentes filósofos racionalistas. Para ele as ideias são inatas e só vão se manifestando à medida que vamos desenvolvendo nosso intelecto. O filósofo empirista Francis Bacon enfatiza a necessidade de coletarmos informações pela experiência para só então submetê-las à razão. Para Immanuel Kantpensador alemão que se situa entre a passagem da idade moderna à contemporânea afirma que o conhecimento provém da ação combinada entre o sujeito e o objeto de conhecimento. O naturalismo postula um retorno a nós mesmos, à nossa verdadeira essência, entendendo que a civilização que construímos é um mundo artificial, representando a origem dos males morais e até físicos. Jean-Jacques Rousseau é o mais influente filósofo da vertente naturalista. O iluminismo, cujo autor mais importante é Voltaire, afirma que a educação deveria superar o modelo livresco adotado pela nobreza, colocando a razão acima da tradição. O positivismo surgiu na primeira metade do século XIX e que propunha a aplicação do método das ciências naturais- observação,experimentação e interferência- para o estudo das ciências humanas. O grande pioneiro do pensamento positivista foi August Comte, que via a sociedade em um processo evolutivo, passando necessariamente por três estágios- o religioso, o metafísico, e o positivo- e sendo rígida basicamente por duas leis, a estática e a dinâmica sociais. Outro pensador positivista importante foi Herbert Spence, mas diferente de Comte para ele a os resultados aos qual o cientista chega não podem ter validade universal absoluta, uma vez que participam de experiências particulares. O materialismo dialético é uma filosofia baseada nos escritos de dois pensadores alemães do século XIX, Karl Marx e FriedrichEngels. Para eles, a história se desenvolve de forma dialética, isto é, em movimento de tese/antítese/síntese, configurada em uma contínua luta de classes. A fenomenologia surge a partir da crítica do filósofo alemão Edmund Husserl ao psicologismo. Essa linha filosófica nega a possibilidade de um conhecimento objetivo, tendo em vista que os atos mentais são sempre subjetivos. O existencialismo se constitui como um desdobramento da fenomenologia. Para essa linha filosófica, a existência humana precede a existência, o que equivale a dizer que o ser humano está constantemente fazendo a si mesmo por meio de suas livres escolhas. O antropólogo estruturalista francês Lévi-Strauss, afirma que o pensamento humano é determinado por estruturas inconscientes. Para o filósofo francês Foucault, o sujeito é um efeito do discurso. A educação é vista em função das práticas sociais que a constituem. O pragmatismo parte do pressuposto de que não é possível um aprofundamento absoluto para a verdade, pois nossos juízes se encontram irremediavelmente comprometidos com nossos valores, crenças, preconceitos. Nesse sentido, o único critério possível para afirmamos à verdade são as consequências praticas do enunciado. Paralelamente ao pragmatismo, a vertente da filosofia analítica inspirada pelo Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein, procurava desenvolver uma concepção de linguagem adequada ao pensamento científico, enquanto outra, inspirada pela obra de Investigações filosóficas, do mesmo autor, interessava-se pela linguagem do cotidiano. Diante da pluralidade encontrada em nossa sociedade nos dias atuais, educar tornou-se uma tarefa nada fácil. As tendências pedagógicas sofrem críticas e superações dia após dia. As concepções de ser humano ganham novas descobertas. A educação está fundada em vertentes pedagógicas que divergem quanto a sua concepção de ser humano, que refletem claramente na prática educativa, já que convergem para um ideal de educação em função de metas e fins. Por isso, é que nos deparamos com o momento atual da educação em que sentimos a necessidade de unir as formas de pensamento que já vigoraram, buscando horizontes e novas perspectivas. PESQUISA E PRÁTICA PROFISSIONAL – RELAÇÃO ESCOLA-COMUNIDADE Na tradição sociológica, as relações comunitárias estariam vinculadas a um território restrito e seriam marcadas por forte identidade afetiva. Em contrapartida, o conceito de sociedade estaria associado à noção de regras racionais que procuram preservar a convivência entre diferentes. Assim, as relações sociais nem sempre estariam vinculadas ao afeto entre os indivíduos e seriam mais frequentes em agrupamentos sociais mais complexos e de grandes dimensões. Existe outra modalidadede comunidade naescola. A comunidade escolar: elacoexiste com o colegiado escolar (grêmios estudantis e associações de pais entre outros), mas este tenderia a superar os vícios corporativos (onde cada ator - pais ou alunos - defende seus interesses específicos), constituindo um vínculo comunitário mais forte. A escola, então, passaria a construir uma cultura comunitária a partir dos colegiados escolares, fundindo interesses num agrupamento único. Contudo, tanto na teoria quanto na prática, percebe-se que a construção da comunidade escolar não estaria restrita ao interior da escola. Em outras palavras, nos colegiados escolares ou em qualquer outra instância comunitária da escola, permanecem interesses que não nascem na escola e não se vinculam somente ao que ocorre no interior da escola. São interesses que estão diretamente relacionados ao bairro onde a escola está inserida, aos eventos políticos e culturais de uma determinada região ou município, aos interesses de categorias e classes sociais, aos interesses de gerações e assim por diante. Por isso, exercício da ação docente ou a sua prática pedagógica deve acontecer de maneira encadeada com os fundamentos teóricos da educação.Já que os estudos filosóficos podem contribuir de maneira significativa na vida do indivíduo, e demanda a formação integral do ser humano. É a filosofia que reúne o pensamento fragmentado pelas ciências e as outras formas do conhecer. As metodologias de ensino e a leitura que se faz sobre a realidade vivida da escola, da comunidade, do aluno e demais contexto relacionados para que se constitua uma prática pedagógica coerente e consistente e que objetive o desenvolvimento de uma formação cidadã. TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM: http://www.artigonal.com/ensino-superior-artigos/o-estudo-dos-fundamentos-da-educacao-e-sua-influenciana-relacao-entre-comunidade-e-escola-5615979.html Piaget Psicologia Genética e Educação Marcus Vinícius Da Cunha4 Resumo: Este capítulo apresenta as concepções fundamentais da Epistemologia Genética de Jean Piaget, tomando essa teoria como um paradigma. Focalizando temas relativos ao desenvolvimento cognitivo e da sociabilidade, o capítulo expõe a visão de Piaget sobre a educação, discutindo as possibilidades de transposição da teoria piagetiana para a prática educacional. Palavras-Chaves: Piaget. Psicologia Genética. Prática Educacional. O suíço Jean Piaget nasceu em Neuchâtel em 1896 e morreu em Genebra em 1980. Biólogo interessou-se desde jovem por Filosofia, particularmente pelo campo da Epistemologia, em que são elaboradas e discutidas teorias do conhecimento. Sua projeção nos meios acadêmicos deu-se como psicólogo e educador, mas as indagações fundamentais que originaram seu paradigma e nortearam suas pesquisas sempre estiveram prioritariamente vinculadas à compreensão do Sujeito Epistêmico e não do Sujeito Psicológico. Embora tenha sido um homem preocupado com as graves questões de sua época, entre elas a educação, o pesquisador genebrino não elaborou um método pedagógico, o que muitos erroneamente julgam existir. Um Problema Epistemológico Um dos grandes temas da epistemologia é saber como se passa de um estado de menor conhecimento para um estado de maior conhecimento, de um conhecimento de menor valor para um conhecimento de maior valor. Esse problema, que seduziu o jovem Piaget como seduz a todos os que se envolvem nessa área, pode ser compreendido com base nas formulações do filósofo Immanuel Kant. Consideremos que alguns conhecimentos só podem ser obtidos por meio do contato direto da pessoa com os dados do mundo empírico. Quando dizemos ―está chovendo lá fora‖, esta é uma afirmação proveniente da experiência de ter ido 4 Professor Associado da Universidade de São Paulo (Ribeirão Preto). lá fora e constatado um fato por intermédio dos órgãos dos sentidos. Conhecimentos desse tipo são chamados a posteriori, uma vez que resultam de constatações empíricas. PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO Diferentemente, quando afirmamos que ―a linha reta é o caminho mais curto entre dois pontos‖, expressamos um juízo a priori, pois nada está sendo dito sobre uma linha em particular ou sobre dois pontos específicos. Não é preciso utilizar a experiência para comprovar tal afirmação, uma vez que ela é universal e necessária: dados dois pontos quaisquer, o caminho mais curto entre eles será sempre uma linha reta. Os juízos a priori encontram-se tipicamente na geometria, como no exemplo acima mencionado, e também nas linguagens da matemática e da lógica. Quando dizemos que 5 + 2 = 7, não estamos nos referindo a cinco laranjas mais duas laranjas ou a cinco casas mais duas casas. Estamos estabelecendo, isto sim, que cinco unidades – de qualquer coisa que seja somadas a duas unidades da mesma coisa resultam em sete. Ao dizer ―se A = B e B = C, então A = C‖, expressamos uma regra de transitividade que se aplica independentemente do que sejam A, B e C.Os juízos a priori são gerais, universais, necessários, não variam de acordo com a subjetividade de quem os formula e nem conforme as condições do ambiente que cerca os fenômenos empíricos. Conhecimentos desse tipo são tidos como válidos justamente por serem aplicáveis a quaisquer objetos, por serem normativos, por terem valor de regra para o pensamento.O problema epistemológico que despertou a atenção de Piaget diz respeito a como se passa de um tipo de conhecimento a outro, como se transita de um estado, em que a afirma-ção só é possível mediante a manipulação de laranjas, casas etc., a outro estado, em que os enunciados estão além disso. O pesquisador genebrino deixou, então, o terreno estritamente filosófico e foi buscar resposta para essa indagação na experimentação científica, tornando-se um pesquisador do desenvolvimento cognitivo da criança.Uma Psicologia da Inteligência. Não é difícil perceber que o indivíduo humano transita, ao longo de sua vida, de um estado de menor conhecimento para um estado de maior conhecimento. Pode-se levar uma criança pequena a concluir que 5 + 2 = 7 e que o trajeto mais curto entre dois pontos é uma linha reta, mas para isso será preciso, em um caso, permitir-lhe manipular objetos – palitinhos de fósforos ou grãozinhos de milho – e, em outro caso, andar de uma cadeira a outra experimentando vários trajetos, por exemplo. Anos mais tarde, esse mesmo indivíduo trabalhará mentalmente com esses enunciados, da matemática e da geometria, como se fossem realidades indiscutíveis, sem necessitar dos palitinhos e das cadeiras.O que Piaget percebeu é que poderia responder àquele problema epistemológico se estudasse o progresso das categorias de conhecimento no decorrer da vida da pessoa, da in- 3. Esta afirmação é válida para o universo concebido do ponto de vista da geome-tria euclidiana, pois outras geometrias, como a elabo-rada por Riemann no século XIX, apresentam visões alternativas. Infância à idade adulta. A psicologia da criança tornou-se assim o seu campo de estudos. Suas pesquisas nessa área consistiram em compreender as categorias cognitivas desde os seus estados iniciais até as suas manifestações mais elaboradas, o que o levou a uma teoria sobre o desenvolvimento da inteligência.Dizemos, então, que a Psicologia de Piaget foi elaborada tendo em vista a construção de sua Epistemologia. O termo Genético, que adjetiva tanto sua Psicologia quanto sua Epistemologia, não diz respeito à transmissão de caracteres hereditários, conotação que possui no campo biológico. Genético, aqui, refere-se ao modo de abordagem do objeto de estudo, desde seu estado elementar – sua origem, sua gênese – até seu estágio mais adiantado, acompanhando cada uma das sucessivas etapas desse percurso. Por adotarem esse mesmo enfoque, outros paradigmas também recebem essa adjetivação, sendo a Psicologia de Piaget um deles. Os métodos piagetianos de investigação diferem daqueles que eram – e ainda são – usualmente empregados por outras correntes de pesquisadores. Ao invés de medir a capacidade intelectual das crianças por meio de testes padronizados, muito comuns na Psicologia, Piaget recorreu a um procedimento que ficou conhecido como abordagem clínica; uma entrevista livre em que o pesquisador busca averiguar os fundamentos e processos relativos à capacidade cognitiva de seus sujeitos experimentais. Os métodos tradicionais de mensuração da inteligência, geralmente, trazem questões pré-elaboradas às quais a pessoa deve responder. Dependendo de seu desempenho, define-se o seu nível intelectual, comparativamente à população para a qual o teste foi construído. Costuma-se dizer que os testes de inteligência fornecem uma boa fotografia, um retrato instantâneo da capacidade do indivíduo, deixando a desejar no tocante à sua dinâmica.O que Piaget pretendia, em última instância, era verificar os recursos – mais ou menos dependentes da experiência – que o indivíduo necessita para elaborar seu pensamento. Os testes padronizados mostraram-se inúteis nesse caso, porque de nada adianta saber o resulta-do, bom ou ruim, obtido por uma criança em questões, digamos, de cálculo aritmético, se não for possível detectar o que a levou a isso. O método piagetiano de pesquisa não consiste em medir a competência intelectual, mas sim, em compreender como o indivíduo formula suas concepções sobre o mundo que o cerca, como resolve problemas, como explica fenômenos naturais. Esse método prevê a formulação de problemas abertos, chamados provas operatórias, e a solicitação para que a criança os solucione, dando início a diálogos entre pesquisador e pes-quisado. Ao lidar com crianças muito pequenas, que não podem ser interrogadas por meio da fala, recorre-se a observações, acompanhadas de meticulosos registros, sobre o modo como elas solucionam problemas não-verbais. Por exemplo, observase a atitude do bebê diante do brinquedo que cai de suas mãos e desaparece de seu campo visual e analisa-se o fato como se fosse a proposição de um problema. A criança vai procurar o brinquedo ou não? Caso o brinquedo seja escondido por um adulto em diversos lugares sucessivamente, a criança é capaz de localizá-lo corretamente no último local em que viu o objeto desaparecer ou vai procurá-lo no primeiro em que foi ocultado? Uma Concepção de Educação Quando falamos em método piagetiano, estamos nos referindo a uma abordagem de pesquisa e não a uma estratégia de trabalho pedagógico, como acabamos de ver. Se quisermos buscar alguma analogia nesse terreno, entretanto, não será difícil perceber que os procedimentos da pesquisa piagetiana inspiram atitudes em sala de aula bastante diferentes daquelas que seriam aprovadas por uma pedagogia tecnicista, voltada para a mensuração de resultados. Ao passo que o uso de testes psicológicos padronizados está mais de acordo com uma visão tecnicista da aprendizagem, a perspectiva piagetiana vai ao encontro de processos pedagógicos em que os alunos são tratados de acordo com suas particularidades cognitivas. O que está em causa não é o binômio acerto-erro nas atividades escolares, mas sim, o potencial dessas mesmas atividades para promover o progresso intelectual de cada um dos educandos. Mas é realmente no âmbito das teorias do conhecimento que se encontra a maior afinidade das idéias de Piaget com a educação escolar, mais precisamente com uma certa pedagogia. Seus conceitos epistemológicos fundamentam-se em concepções da esfera filosófica, originadas antes mesmo de sua época, que consistem em considerar o conhecimento como possível somente quando o Sujeito, aquele que irá conhecer, e o Objeto, aquilo que será conhecido, relacionam-se de uma determinada maneira: o Sujeito age sobre o Objeto. Nessa perspectiva, temos, primeiramente, a existência de algo que impulsiona o Sujeito Epistêmico em direção ao Objeto. Estando em níveis diferentes, como se houvesse um desequilíbrio entre eles, o Sujeito é naturalmente atraído pelo Objeto, como que para superar o desnível em que se encontram. O Objeto exerce pressão perturbadora sobre o Sujeito, contribuindo para fornecer-lhe motivação interna e criar seu envolvimento pessoal com o Objeto, do que resulta o impulso para a ação. Em segundo lugar, temos a atividade do Sujeito, que se traduz propriamente em atitudes de busca, desvendamento, pesquisa, enfim, ação sobre o Objeto a ser conhecido. Ao visualizar essa concepção epistemológica na sala de aula, compreendemos que o aluno deve ser despertado para a relevância daquilo que vai ser ensinado. Relevância pessoal, imediata e não simplesmente formal. De nada adianta dizer a ele, como fazem muitos professores, que aquele assunto do currículo é importante porque será útil mais tarde. Se não houver vínculos desafiadores entre o indivíduo e a matéria de ensino, vínculos que ativem a percepção do desnível existente entre o aprendiz e o conteúdo escolar, o educando não será impulsionado a estudar aquilo. Não havendo motivação, o aluno deixa de se posicionar de modo ativo diante da matéria. O mesmo acontece quando o professor privilegia a passividade da criança e a leva a manter-se quieta, apenas ouvindo, como se o mundo pudesse escoar para dentro de seu cérebro por meio da audição. Sem vontade e sem iniciativa para desvendar e descobrir, não há conhecimento. Observe-se que a esse último processo corresponde uma concepção epistemológica em que o Objeto é inserido no Sujeito, como que depositado ou impresso em sua mente. O professor dita a matéria, o aluno faz exercícios de fixação do conteúdo e reproduz os tópicos solicitados na avaliação. O resultado disso não pode ser chamado de conhecimento, embora seja possível verificar objetivamente que o Sujeito tem o Objeto retido em sua memória – quando o estudante obtém uma boa nota na prova, por exemplo. Dizemos que esse outro processo não resulta em conhecimento porque ele não produz qualquer modificação no aprendiz. Para haver conhecimento, devemos conceber que o Sujeito atue para superar o desequilíbrio existente entre ele e o Objeto, isto é, para colocar-se no nível em que ainda não está. Por meio da ação que empreende para desvendar o Objeto, o Sujeito sofre mudanças internas, sai do estado atual – de menor conhecimento – e passa ao estado superior em que domina o Objeto. Essa mudança interna é conhecimento, algo que não pode ser assegurado pelo processo em que o Objeto é simplesmente depositado na mente do aluno. Essa concepção epistemológica aproxima as idéias de Piaget de todas as correntes pedagógicas que enfatizam a atividade do educando e a estruturação de um ambiente escolar que corresponda às características pessoais do aluno – seus interesses, sua personalidade, seu conhecimento cotidiano. Historicamente, as pesquisas de Piaget vieram endossar os movimentos educacionais renovadores, contrários ao chamado ensino tradicional verbalista, impositor de restrições à participação do aluno, centrado no saber supremo do professor. Voltaremos a esse tema logo mais, após analisarmos outros tópicos do paradigma piagetiano. Assimilação, Acomodação e Equilibração Vejamos, então, os conceitos piagetianos que traduzem as categorias fundamentais da concepção de conhecimento assumida por Piaget, em que o Sujeito age sobre o Objeto. Piaget considerou que o processo de conhecer tem início com o desequilíbrio estabelecido entre Sujeito e Objeto, porém suas pesquisas não contemplaram os fatores motivacionais, de natureza emocional e afetiva, ali envolvidos. Isto não significa que Piaget os tivesse negado, apenas que, como epistemólogo, concentrou sua atenção nos momentos seguintes do processo. Segundo ele, para conhecer é necessário que Sujeito e Objeto estabeleçam uma relação que envolve, na verdade, dois processos complementares e, às vezes, simultâneos. O primeiro ocorre quando o Sujeito age sobre o Objeto na tentativa de conhecê-lo por meio dos referenciais cognitivos que já possui. O Sujeito procura desvendar o Objeto trazendo-o para dentro desses referenciais, chamados esquemas cognitivos, ainda que estes sejam insuficientes para dominar toda a complexidade do Objeto. A esse processo Piaget deu o nome de assimilação. Tomemos o caso em que uma criança já possui a capacidade de pegar alguma coisa, em que os movimentos da mão e dos dedos foram estabelecidos com base em alguma experiência anterior ou mesmo devido ao reflexo de preensão, com o qual todos os indivíduos nascem. A criança dispõe de uma ferramenta cognitiva, ainda que mal desenvolvida, que a capacita a agir sobre qualquer objeto passível de ser pego por intermédio da mão. Ela pode, então, assimilar qualquer objeto novo. Esse objeto novo, ainda desconhecido, ultrapassa a capacidade do esquema de pegar que a criança possui. Uma pequena bola, por exemplo, imporá certas dificuldades, mas será assimilada, o que basta para dar início ao processo de conhecer. O segundo processo chama-se acomodação e consiste nas modificações sofridas pelo Sujeito em função do exercício assimilador desencadeado. O Sujeito tem, então, seus esquemas cognitivos alterados por causa da relação que mantém com o Objeto, o que representa um esforço adaptativo para superar o desnível existente entre um e outro. Feito isso, chega-se ao estado de equilíbrio entre Sujeito e Objeto. A criança de nosso exemplo terá que alterar seu esquema cognitivo de pegar, o que envolve novos posicionamentos da musculatura da mão e dos dedos para acomodar-se às características específicas da bola. Após algum tempo, dominará o objeto novo, chegando a um ponto de equilíbrio com ele. A criança que atinge esse patamar não é a mesma que começou o processo, pois seu conhecimento sobre o mundo é outro, maior e mais desenvolvido do que quando ainda não tinha agido sobre a bola. O equilíbrio a que o indivíduo chega com os objetos que o cercam nunca é definitivo, uma vez que o mundo está sempre em mudança, lembra Piaget. O equilíbrio, ainda que provisório, representa conhecimento, mas é logo seguido por novas situações em que a pessoa é novamente desafiada, o que dá início a sucessivas assimilações e acomodações, mais conhecimento, outros desequilíbrios e assim por diante. Biologia e Ambiente Pensar a escola por meio dos conceitos piagetianos implica visualizar o trabalho do professor como um conjunto de atividades que propiciem o desenvolvimento cognitivo. O professor é responsável por apresentar situações desafiadoras que permitam ao aluno perceber o desequilíbrio que há entre ele e os conteúdos das matérias escolares. Além disso, cabe também ao professor organizar um ambiente de aprendizagem que favoreça a ação do aprendiz sobre esses mesmos conteúdos. Mais adiante, veremos que essa formulação é ainda muito geral, pois a transposição do paradigma piagetiano para a educação escolar pode dar margem a diversas possibilidades de ação pedagógica, inclusive abolir a definição prévia do que deva ser ensinado aos educandos. Por ora, analisemos uma outra questão tratada por Piaget e que tanto preocupa os professores: Não seria a capacidade intelectual definida hereditariamente? No trabalho cotidiano do professor, essa é uma pergunta que sempre vem à tona, especialmente quando ele se depara com alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem. Será que um ambiente bem organizado – no lar ou na escola – é suficiente para que a criança desenvolva competências cognitivas adequadas? Trata-se, aqui, da antiga polêmica entre posturas teóricas pré-deterministas e ambientalistas. Os defensores das primeiras afirmam que a inteligência é um traço que herdamos geneticamente, ao passo que os outros defendem que o ambiente exerce sempre o papel mais importante, por maior que seja o peso dos fatores biológicos. A descrição do processo de conhecer feita por Piaget traz em si a idéia de que todos os indivíduos conhecem por intermédio dos mesmos processos – assimilação e acomodação. Para que haja conhecimento é preciso que o indivíduo estabeleça contato íntimo com o conteúdo a ser aprendido e que se posicione ativamente frente a esse mesmo conteúdo, o que propiciará mudança em seus esquemas cognitivos. Esse processo ocorre em todos os momentos da vida da pessoa, diferentemente em cada faixa etária, mas independentemente do ambiente social e cultural em que o indivíduo esteja inserido. Isso não significa que Piaget tenha aderido à tese pré-determinista. O que ele afirma é que todos os seres humanos nascem com um potencial que os habilita a conhecer e que esse potencial é o mesmo em todas as pessoas. Se há biologismo nessa afirmação, ela se deve ao fato de pertencermos todos à espécie humana. Desse modo, todos nascemos também em condições de percorrer a mesma trajetória de desenvolvimento no tocante à capacidade intelectual, do estado em que nosso conhecimento possui menor valor para o estado em que nosso pensamento elabora formulações lógico-matemáticas de maior valor. Se determinados indivíduos exercitam adequadamente suas potencialidades e percorrem, integralmente, a linha de desenvolvimento cognitivo para a qual estão biologicamente capacitados, essa é uma questão que diz respeito ao ambiente em que vive a pessoa. Condi-ções materiais e culturais de vida poderão interferir, positiva ou negativamente, nessa trajetória. Assim, Piaget posicionou suas idéias sobre o desenvolvimento cognitivo de maneira a considerar tanto os aspectos biológicos quanto os ambientais. Sem cair no extremismo das teses pré-deterministas, mostrou que o indivíduo é, de certo modo, programado para interagir com o mundo que o cerca e percorrer o caminho que leva à competência para pensar realidades situadas além dos dados empíricos imediatos. Sem aliar-se aos ambientalistas radicais, Piaget afirmou que o meio pode ser um fator decisivo na determinação de como o indivíduo realiza sua inclinação biológica. A escola é um ambiente entre muitos outros que podem favorecer ou prejudicar o desenvolvimento intelectual. Por isso, cabe ao professor acreditar na potencialidade de seus alunos e organizar experiências que lhes possibilitem interagir com os saberes formalizados. A escola faz o papel de abrir caminhos para que a criança e o jovem entrem em contato com o mundo, de modo participativo e construtivo. A Teoria do Desenvolvimento Cognitivo O desenvolvimento intelectual envolve a passagem do indivíduo por quatro grandes períodos, vivenciados necessariamente em seqüência, conforme determinação biológica, como já foi comentado. Cada período estabelece alicerces para o seguinte, de modo que as aquisições ocorridas em um constituem pré-condições para o seguinte. As pesquisas de Piaget o levaram a separar cada período por marcos cronológicos, mas é preciso ressaltar que essas idades demarcatórias são meramente indicativas e não categóricas, como muitas vezes se pensa. Assim, pode-se dizer, por exemplo, que as crianças, em geral, passam do primeiro período para o segundo por volta dos 24 meses de vida, mas é impossível afirmar, sem um exame acurado, quando essa transição está ocorrendo em um determinado indivíduo. O desenvolvimento, portanto, segue uma linha pré-definida, porém variável de indivíduo a indivíduo no tocante ao ritmo em que ocorre. Variações qualitativas também podem ocorrer, evidentemente, de uma pessoa a outra. No tocante à educação, em particular a escolar, tais conceitos são relevantes porque impedem que o paradigma piagetiano seja tomado como um conjunto de formulações aplicáveis a todos os indivíduos, indiscriminadamente. Não se pode afirmar que determinado aluno já é capaz de compreender certos conteúdos apenas com base na informação de que ele já tem oito anos, ou que não adianta ensinar certas coisas a outro, porque este ainda não tem 12 anos. A idade do aluno, como dado isolado, não é indicador seguro de suas competências e limitações intelectuais. Se a intenção do professor é a de adotar a teoria de desenvolvimento do paradigma pia-getiano, deve saber que ela fornece um quadro da trajetória cognitiva percorrida pelos seres humanos em geral – o Sujeito Epistêmico. Concluir alguma coisa sobre um aluno específico – o Sujeito Psicológico – é tarefa que exige domínio das habilidades de pesquisa prescritas pelo paradigma, o que implica treinamento especializado do professor, ambiente escolar adequado e certas disposições administrativas favoráveis, o que nem sempre é fácil encontrar. Em que pese esta dificuldade, inerente à transposição da Psicologia Genética de Piaget para a pedagogia, devemos observar que os obstáculos mencionados tornam-se menores e superáveis quando pensamos nas contribuições trazidas por suas teses à prática educacional. Se o professor tiver em mãos um quadro, ainda que meramente indicativo, do desenvolvimento intelectual humano, poderá ajustar a metodologia de ensino e os conteúdos das matérias escolares às características de seus alunos, o que trará grandes benefícios ao processo de aprendizagem e ao próprio funcionamento da escola. O Universo não Representado A principal característica do primeiro período de desenvolvimento, chamado sensorialmotor, é a inexistência de representações, imagens mentais dos objetos que cercam o indivíduo. O conhecimento, nesse caso, é constituído por impressões que chegam ao organismo por meio dos órgãos dos sentidos e do aparelho motor. Podemos dizer, então, que a criança age sobre aquilo que alcança com as mãos, aquilo que ouve e vê, aquilo que chega à sua boca, sem, contudo, formar imagens mentais desses objetos.Nesse período, predomina o processo de assimilação que começa com o simples exercício dos reflexos, isto é, com o acionamento de ferramentas inatas que possibilitam à criança manter os primeiros contatos com os objetos e trazê-los para dentro de seus referenciais cognitivos, ainda toscos e mal desenvolvidos. Assim, vão sendo formados esquemas cognitivos. Do reflexo de preensão, por exemplo, forma-se um esquema de agarrar. Trata-se de uma mudança cognitiva ocasionada pela experiência, o que significa já estar ocorrendo o processo de acomodação, além da assimilação. Vale lembrar que a trajetória do desenvolvimento intelectual, aqui descrita, refere-se àquela indagação de natureza epistemológica vista no início deste capítulo, traduzida pelo percurso que leva o indivíduo do conhecimento empírico, de menor valor, ao conhecimento abstrato, de maior valor. Assim, o período sensorial-motor corresponde ao momento inicial em que a inteligência encontra-se presa ao plano da experiência imediata. Nesse caso, presa à materialidade absoluta, à presença física dos objetos. Os vários esquemas constituídos nesse período são, todos eles, esquemas de ação, pois não envolvem representações. A criança desenvolve um esquema de olhar, de agarrar, de morder e assim por diante. Com o tempo, esses esquemas vão sendo coordenados, o que permite à criança integrá-los uns aos outros em determinadas seqüências – olhar um objeto, segurá-lo com a mão, levá-lo à boca e mordê-lo.Um dos experimentos clássicos de Piaget consiste em observar a atitude da criança quando um brinquedo cai de suas mãos e desaparece de seu campo visual. Uma variação pode ser feita colocando-se um anteparo que oculta o brinquedo. O que acontece nessa situação é que a criança não procura o objeto desaparecido, mesmo tendo visto seu desaparecimento por trás de uma almofada, por exemplo. A conclusão é que o brinquedo deixa de existir quando não é visto. Isso decorre, obviamente, do ponto de vista da criança, para quem a realidade depende das impressões sensoriais que recebe. Note-se que a inteligência, nesse período do desenvolvimento, sendo limitada à experiência sensorial e motora, não é capaz de emitir juízos mais abrangentes sobre o mundo, do tipo ―mesmo os objetos que não vejo existem‖. A inteligência sensório-motora permite aplicar os esquemas, então coordenados, a situações novas. Uma criança que tenha adquirido o esquema de agarrar e chacoalhar seu travesseiro poderá experimentá-lo com um brinquedo que faz barulho, o que significa ape-nas a repetição de uma conduta habitual em que os meios, que são os esquemas de agarrar e chacoalhar, não têm relação com os fins – no caso, produzir um som.Um pouco mais tarde, ainda durante o primeiro período, os esquemas cognitivos articulam-se dando mostras de serem guiados por alguma intencionalidade. O fato de o universo da criança ser restrito às impressões sensoriais e motoras, nesse momento, impede que ela anteveja o alcance pleno de suas ações, mas já existe alguma distinção entre os meios em-pregados e os fins obtidos. Trata-se daquilo que Piaget denominou reações circulares, procedimentos que se repetem seguidas vezes. Inicialmente, apenas para fazer durar um espetáculo interessante para a criança, como quando agarra um cordão que pende sobre seu berço e o puxa, fazendo balançar um móbile que produz som. Caso seja colocada diante de uma situação nova e desconhecida, a criança poderá aplicar esse procedimento aos objetos que ali se encontram para tentar resolver um problema, ocasião em que novas condutas podem instalar-se.Um experimento interessante consiste em colocar uma almofada próxima à criança e sobre ela um brinquedo, de modo que este fique inacessível às suas mãos. A criança aplica à almofada esquemas que já possui, como agarrar e puxar, ocasionando a aproximação do brinquedo. Desse modo, firma-se uma nova conduta, no caso, a chamada conduta do suporte, que consiste em puxar uma plataforma para obter algo que esteja sobre ela. Isto significa que houve acomodação dos esquemas cognitivos, provocada por experimentação ativa. Nas próximas vezes em que estiver diante do mesmo problema, é provável que ela puxe a almofada para alcançar o objeto distante. Representação, Linguagem e Socialização Imaginemos uma criança que ainda não domine a conduta do suporte e que, colocada diante da almofada com o brinquedo, não aplique mecanicamente esquemas já conhecidos. Essa criança tem uma atitude de meditação, como se raciocinasse para solucionar o problema e, em seguida, apanha a almofada e a puxa para si, obtendo acesso ao brinquedo. O resultado desse outro experimento indica que a criança desenvolveu uma conduta complexa por meio da invenção. Ela inventou um meio totalmente novo para obter determinado fim, sem precisar empregar a experimentação ativa. Inventar significa combinar esquemas mentais, o que quer dizer que essa criança está na última fase do período sensorialmotor, já ingressando no período seguinte. A característica mais marcante do segundo período de desenvolvimento é a representação, a transformação de esquemas – e esquemas combinados – de ação em esquemas representativos. Aquelas competências intelectuais que, no primeiro período, desenvolveram-se como ações, posteriormente, completam-se por meio de correspondentes imagens mentais e simbólicas. Nesse período, ocorre o progresso mais sensível da linguagem oral. Inicialmente, a criança identifica certos objetos, pessoas e ações a palavras pertencentes a um universo muito particular e específico. Seu cachorrinho é totó, sua mãe é mamã e tomar a mamadeira é mamá. Com o passar do tempo, porém, começa a empregar palavras que designam categorias de objetos, pessoas e ações. Todos os cachorrinhos são cachorros, todas as mamães são mães e ingerir qualquer líquido é beber. No decorrer do segundo período, dos dois aos sete anos de idade, aproximadamente, a linguagem vai deixando de ser composta por expressões representativas muito particulares e passa a empregar expressões socialmente convencionadas. Ao passo que totó pertence ao universo do primeiro tipo, cachorro é o termo que se convencionou usar, nesta cultura, para identificar uma categoria de objetos – os cães. A comunicação, não mais fundamentada no indivíduo, passa a ser baseada no grupo social. Essa transformação indica uma mudança nos esquemas representativos, que se tornam cada vez mais adaptados ao meio social em que a pessoa vive. Ao longo desse período, a criança desenvolve a capacidade para entabular conversas, sempre mais inteligíveis, com outras pessoas, sendo possível trocar pontos de vistas, opiniões e impressões de ambas as partes, o que é um avanço na socialização do indivíduo. A linguagem por símbolos, expressão do vocabulário característico da criança, torna-se uma linguagem por signos, composta por elementos representativos típicos de uma cultura. Além de revelar um significativo progresso na capacidade intelectual de representar o mundo, o desenvolvimento da linguagem mostra também o início da transição do egocentrismo para a socialização, um processo que, como veremos adiante, não se completa ao término desse período, por volta de sete anos de idade. O Universo Concreto O período que acabamos de ver recebe o nome de pré-operatório, pois o que o caracteriza é a impossibilidade de a criança utilizar seus esquemas representativos para realizar operações mentais. Uma operação é constituída por várias propriedades, entre as quais está a reversibilidade, muito mencionada por Piaget e demonstrada no experimento da água colocada em recipientes de formatos diferentes.Imaginemos um tubo fino e alto, de um lado, e uma vasilha larga e baixa, de outro. Se enchermos o tubo com água e em seguida despejarmos seu conteúdo na vasilha, teremos obviamente a mesma quantidade de líquido nas duas situações. Dizemos que o resultado dessa operação é óbvio não só porque vemos a água saindo de um lugar e indo para outro, mas porque, ao vê-la no segundo recipiente, somos capazes de fazer mentalmente a opera-ção inversa e compreender, assim, tratar-se da mesma quantidade de líquido que há pouco ocupava o tubo.Nessa prova operatória, será bem sucedida a pessoa cuja capacidade cognitiva dominar a reversibilidade. A criança que se encontra no período pré-operatório confunde a quantidade de água, que é a mesma nos dois momentos, com o formato dos recipientes. Ela pode res-ponder que há mais líquido no tubo, porque ele é mais alto, ou que tem mais água na vasilha, por causa das dimensões de sua superfície.Isto ocorre porque o pensamento da criança ainda não tem suficiente mobilidade para reverter a operação realizada. Numa analogia, dizemos que seu pensamento funciona como uma máquina fotográfica que registra duas situações distintas – a água no tubo fino e alto, e a água na vasilha baixa e larga –, e não como uma filmadora que permite reversão das cenas gravadas.Ao término do período pré-operatório, por volta de sete anos de idade, a criança já intui operações. Ela é capaz de exibir reversibilidade de pensamento na prova operatória acima descrita, por exemplo, mas diante de outra prova, que exige a mesma competência cognitiva, pode falhar. Isso significa que ela está em vias de ingressar no terceiro período, cuja caracte-rística essencial é o desenvolvimento da capacidade de realizar operações.Nesse novo período, que vai dos sete aos doze anos, aproximadamente, o pensamento da criança ganha a maleabilidade que não possuía, sendo capaz de operar mentalmente com esquemas de ação que até o momento eram apenas representados. Com base nas aquisições sensoriais e motoras do primeiro período, a criança consegue percorrer um trajeto dentro de sua casa. Mais tarde, descreve o trajeto percorrido, dada à capacidade de formar a imagem mental de suas ações, capacidade esta adquirida no segundo período. Nesse período, já con-segue elaborar, mentalmente, o trajeto inverso, do ponto final ao ponto de início.Ao longo do tempo, as operações vão sendo articuladas como realidades necessárias. Diante de uma prova operatória como a do líquido que flui de um recipiente para outro, a criança afirma com total certeza o seu resultado, chegando mesmo a suspeitar de que se trata de alguma brincadeira – de mau gosto, aliás – que esteja sendo feita com ela. Mais ainda, a criança torna-se capaz de compreender uma operação independentemente de esta ser realizada na sua frente.Isto quer dizer que o desenvolvimento do indivíduo já está bastante adiantado, se o compararmos com a incapacidade do bebê para ir além do universo empiricamente dado. Entretanto, as operações mentais que podem ser realizadas nesse momento ainda possuem um caráter concreto, isto é, precisam já ter feito parte da experiência empírica do indivíduo. Advém disso, a denominação desse terceiro período de operatório-concreto.O caráter concreto das operações significa que os esquemas cognitivos do indivíduo são ferramentas de assimilação que, ainda, dependem de dados empíricos. Estes dados não precisam estar imediatamente presentes, acessíveis aos órgãos dos sentidos, mas devem já ter estado em algum momento anterior, possibilitando a formação de esquemas representativos. Do ponto de vista epistemológico, as ferramentas cognitivas ainda não funcionam em níveis tais que permitam conhecimentos de valor normativo. A Psicologia Genética na Escola Conforme já foi assinalado, sob a perspectiva do paradigma piagetiano a educação deve contribuir para desenvolver as competências cognitivas do educando. Tendo em vista o que cada período de desenvolvimento requer, a tarefa do professor inclui organizar atividades que viabilizem o progresso intelectual de seus alunos nas diferentes etapas da escolarização. Na condição de paradigma científico, a Psicologia Genética não se dedica a instruir os educadores sobre a elaboração dessas atividades. Para serem tomadas como Psicologia da Educação, as idéias de Piaget necessitam ser transpostas para o terreno da prática pedagógica, o que exige seu aproveitamento em estudos e pesquisas que elaborem metodologias específicas a serem aplicadas à situação escolar – o que não é possível analisar detidamente neste livro. No plano mais geral, no entanto, podemos dizer que o paradigma piagetiano sugere, para as etapas pré-escolares, que todo o empenho deva ser voltado para possibilitar o percurso do pensamento pré-operatório ao pensamento operatório-concreto. O dilema entre alfabetizar ou não a criança nessa fase, por exemplo, não deve ser resolvido de modo padronizado, quer afirmativamente, quer negativamente, mas sim mediante avaliação de cada aluno, em particular. Alfabetizar, bem como ensinar operações aritméticas, é algo possível de ser feito com crianças que já dominam certas habilidades cognitivas, conclusão a que não se chega tomando-se, exclusivamente, a idade cronológica de cada uma. O mesmo princípio deve ser seguido pelo professor que trabalha com crianças na faixa etária de sete a doze anos que, geralmente, cursam o primeiro ciclo do ensino fundamental. Nessa etapa da escolaridade, o que se requer é que o indivíduo progrida nas habilidades operatório-concretas de pensamento. Um ensino que valorize excessivamente a transmissão de conteúdos formalizados pode incorrer no equívoco de fazê-lo por meio de formulações puramente verbais, algo que a criança, em geral, ainda não domina. Nesse período operatório-concreto, como já foi dito, o indivíduo só opera mentalmente com dados que já tenham feito parte de sua experiência e que possam ser mentalmente ma-nipulados. Uma informação, como ―as caravelas de Cabral atravessaram o Oceano Atlântico em 1500‖, pode perfeitamente ser compreendida se o professor tomar o cuidado de oferecer referenciais concretos para a criança – uma gravura que represente a embarcação mencionada e outros materiais que lhe permitam visualizar o que é um oceano e entender o marco cronológico empregado na frase, por exemplo. Caso contrário, o aluno pode decorar a informação e repetila quando solicitado, mas isto não será conhecimento de fato se ele não tiver contato concreto com os vários componentes da oração. Se o professor não empregar procedimentos didáticos adequados às limitações do pensamento, o processo de ensinar e aprender restringe-se à verbalização, à audição e à reprodução de conteúdos. Os limites são sempre dados pelo desenvolvimento da criança, que nesse momento só é capaz de operar com realidades representadas desde que estas estejam ancoradas em referenciais concretos. Fazer abstrações, formular hipóteses, desenvolver raciocínios lógico matemáticos, por exemplo, são habilidades ainda não adquiridas no período operatório-concreto. A criança é capaz de entender uma formulação genérica como ―se A = B e B = C, então A = C‖ somente quando substituímos estes termos por objetos que ela conheça. Ela pode, a partir daí, passar do concreto para o formal, evidentemente, mas isto não significa que seu pensamento já tenha compreendido essa formulação lógica como necessária. As expressões lógico-matemáticas ainda não constituem regras para o pensamento. O Universo Formal Entre os 12 e os 16 anos de idade, aproximadamente, o indivíduo vivencia o desenvolvimento do quarto período, chamado operatório-formal. Sua principal característica é a transformação dos esquemas cognitivos até então organizados, capazes de realizar operações concretas, em esquemas que operam com base em realidades apenas imaginadas como possíveis. Observe-se que desde o início estamos tratando de ações do Sujeito sobre o Objeto, ações em que os processos de assimilação, acomodação e equilibração acabam por tornar o indivíduo mais adaptado ao mundo que o cerca. Trata-se de uma adaptação ativa, como já vimos, pois na concepção piagetiana não existe o indivíduo como mero receptáculo de influências ambientais. A trajetória do desenvolvimento elaborada por Piaget traduz o percurso que capacita o indivíduo a compreender melhor a realidade que o cerca para poder participar de sua transformação. Essa capacidade de adaptação ativa atinge seu ápice no último período de desenvolvimento cognitivo. Esse é o ponto mais alto da trajetória, pois a competência para pensar na esfera de um universo formal – isto é, não limitado ao existente – dota o indivíduo de maior competência para entender o mundo e contribuir para sua mudança. De fato, na esfera do desenvolvimento intelectual do indivíduo, podemos verificar que o pensamento formal permite uma compreensão superior da realidade. Sabemos que no primeiro período o universo da criança limita-se às impressões sensoriais e motoras. Ela é capaz de pegar um brinquedo, empurrá-lo para um determinado lugar e puxá-lo de volta, por exemplo, mas disto não resulta nenhuma representação mental. Há progressos cognitivos nesse período, evidentemente, mas eles traduzem uma interação ainda precária com o mundo, mesmo no tocante aos fenômenos físicos. No segundo período, como vimos, já há representação de ações, mas a pouca maleabilidade do pensamento impede que o indivíduo compreenda, por exemplo, a reversibilidade dessas mesmas ações, o que significa uma capacidade limitada de entender o mundo circundante. As aquisições operatórias do terceiro período são significativas, porém nada se compara ao momento em que a lógica torna-se uma regra para o pensamento e a experiência empírica deixa de ser necessária para a resolução de problemas. O universo concreto, até então hegemônico, é finalmente superado no decorrer do período operatório-formal. As operações assumem caráter proposicional, permitindo ao indivíduo raciocinar de maneira totalmente abstrata e elaborar mentalmente hipóteses, ou seja, possibilidades sobre eventos ainda não ocorridos. Integra suas possibilidades de pensamento até mesmo aquilo que ele não acredita que possa existir. Nessa fase, é comum o jovem imaginar sociedades alternativas, sistemas filosóficos perfeitos e caminhos profissionais ainda não percorridos. Abre-se, para a pessoa, todo um horizonte novo de perspectivas de vida e de transformação, de si mesmo e do mundo, realidades que ela começa a dominar por meio de recursos intelectuais mais avançados. Embora não tenha dedicado suas pesquisas à temática dos afetos, Piaget chegou a dizer que as angústias desse momento, a chamada crise da adolescência, são determinadas pelo futuro, ao contrário do que pensava Freud, para quem essa problemática era decorrente do retorno de desejos reprimidos na infância – como já vimos no primeiro capítulo deste livro. Ao visualizar o futuro, sem ter meios para realizá-lo, o jovem, muitas vezes, revolta-se contra autoridades e situações estabelecidas. Na escola, esse é o momento em que os conteúdos das matérias podem, finalmente, ser apresentados de modo verbal, sem necessidade de parâmetros concretos para serem compreedidos. As noções matemáticas podem ser vistas por meio de fórmulas abstratas, demonstradas tão somente por intermédio de símbolos genéricos, como x, y, z. O raciocínio hipotético dedutivo, necessário ao entendimento dos procedimentos científicos, torna-se possível mesmo sem a demonstração empírica correspondente. Se por um lado, o trabalho do professor parece assim facilitado, por outro, é preciso ressaltar a necessidade de definir de que modo os conteúdos das matérias escolares devem ser apresentados. A seqüência ideal dos conhecimentos formalizados, respeitadas as peculiaridades do desenvolvimento de cada aluno no decorrer do período operatório-formal, é um tema que abre inúmeras frentes de pesquisa para os estudiosos que buscam transportar o paradigma piagetiano para a prática pedagógica. Devemos ressaltar que os resultados dessas investigações não são importantes apenas para o desenvolvimento intelectual dos educandos – expressão que adquire conotação muito estreita para alguns pedagogos. O trabalho de adequação dos conteúdos escolares refere-se ao desenvolvimento intelectual, sim, mas é preciso ver que, por seu intermédio, a escola auxilia na construção de ferramentas cognitivas fundamentais para a inserção ativa do indivíduo na sociedade em que vive, para que ele possa compreender os processos sociais e políticos em que está envolvido e, assim, contribuir para seu aperfeiçoamento. Vale lembrar, ainda, que é no decorrer desse período, e não logo no início, que o indivíduo adquire as competências do pensamento formal. Trata-se de uma longa transição que, idealmente, ocorre durante os anos da adolescência. Assim, entre a quinta série do ensino fundamental e as primeiras do ensino médio, o professor deve atentar para a gradativa inserção de conteúdos que exigem tais competências, podendo trabalhar justamente para que a mencionada transição aconteça da melhor maneira possível. A Teoria da Sociabilidade A trajetória do desenvolvimento intelectual, do pensamento sensorial-motor às operações formais, é acompanhada pelo desenvolvimento da sociabilidade do indivíduo. Esse tópico do paradigma, usualmente menos comentado que os demais, é fundamental porque acrescenta relevantes contribuições a uma Psicologia da Educação inspirada na psicogênese piagetiana. Por seu intermédio, podemos entender com maior clareza a visão educacional e social de Piaget. Segundo a concepção de Piaget, todas as crianças vivenciam uma fase inicial em que são incapazes de distinguir o seu eu dos objetos e pessoas circundantes – algo semelhante ao que vimos na teoria freudiana, no primeiro capítulo deste livro. Logo nos primeiros meses de vida, entretanto, começa a formar-se a percepção do eu, o que dá início de fato ao processo de socialização. O primeiro momento desse processo traz o predomínio absoluto do eu, quando todo o universo – objetos, pessoas, fenômenos físicos etc. – é compreendido pela criança com base em seu ponto de vista exclusivo, como se tudo girasse em torno dela, o que Piaget denominou egocentrismo. O percurso da sociabilidade é a passagem desse estado egocêntrico, em que o indivíduo compreende o mundo exclusivamente com base em seus pontos de vista particulares, a um estado de plena socialização, em que a pessoa interage com a realidade que a cerca segundo categorias de julgamento elaboradas coletivamente. No início, as ações da criança são conduzidas por esquemas sensório-motores e destinadas à satisfação unicamente individual, ao passo que, mais tarde, são ações refletidas, pensadas e articuladas por meio de parâmetros do grupo social. Esse momento final é atingido no decorrer do período das operações formais, teoricamente entre 12 e 16 anos, e consiste na aquisição da capacidade de cooperação com os outros. Ao lembrar que esse é o período em que o pensamento torna-se capaz de elaborar formulações abstratas sobre a realidade, compreendemos que tal progresso intelectual só se torna possível por intermédio da descentração do indivíduo, isto é, pelo desenvolvimento da competência para enxergar as coisas por meio de vários e diversos ângulos, sob pontos de vista que ultrapassam o eu. Assim, Piaget mostrou que o desenvolvimento cognitivo e o da sociabilidade constituem um mesmo processo, cujo ápice é a adaptação ativa do indivíduo ao mundo, o que ocorre no estabelecimento de relações com a realidade material e social. A interação do Sujeito com o Objeto e com outros Sujeitos é a única fonte do verdadeiro conhecimento e do pleno desenvolvimento psicológico, o que quer dizer partilhar competências cognitivas, em condições de igualdade com o grupo social, para compreender, objetivamente, a realidade. O ponto mais alto do desenvolvimento da sociabilidade é também o da personalidade – atributo usualmente visto como exclusivamente individual. A personalidade encontra-se verdadeiramente estruturada quando se dá a plena integração do indivíduo à coletividade. Para pensar, o indivíduo emprega parâmetros que superam a visão egocentrada, chegando ao estado em que as normas construídas coletivamente norteiam seus julgamentos morais. Esse estado chama-se autonomia e não traduz sujeição pura e simples do individual ao social, como pode parecer. Logo mais, voltaremos a esse tópico quando analisarmos a concepção de sociedade adotada por Piaget. Egocentrismo, Coação e Justiça Conforme assinalamos em seção anterior, entre dois e sete anos de idade, o egocentrismo da criança vai sendo, aos poucos, superado. Os progressos da fala socializada são indícios desse processo, mas o centramento no eu ainda prevalece até o final do período. Para melhor compreender o processo de socialização, Piaget analisou o relacionamento da criança com as normas vigentes no grupo social a que pertence e concluiu que, no decorrer desse tempo, o indivíduo passa por dois estados marcantes. No primeiro estado, a criança é incapaz de apreender as regras existentes, como se o universo social fosse, para ela, um universo sem normas. Nesse estado de anomia, isto é, de desconhecimento das regras, a participação da criança em uma brincadeira qualquer ou em um jogo infantil, por exemplo, não é conduzida pela dinâmica própria da atividade, socialmente elaborada, mas sim, pelo prazer individual. Enquanto está no período sensorialmotor, esse prazer é exclusivamente físico, ao passo que, no período pré-operatório, a satisfação advém do manejo dos instrumentos simbólicos que começam a ser adquiridos. Quando em situação de grupo, a criança brinca para si, joga para si, sem se importar com os companheiros, como se cada um estivesse praticando uma atividade diferente. O diálogo entre crianças costuma ser um monólogo coletivo, uma pseudoconversa em que o interlocutor parece ser o outro, mas realmente não é. O egocentrismo impede que o indivíduo estabeleça interações que permitam a troca de impressões sobre as coisas, devendo prevalecer, exclusivamente, o seu ponto de vista. No segundo estado, a criança enxerga as ordens dos mais velhos como leis imutáveis, como obrigações morais, quadro que Piaget chamou de respeito unilateral e realismo moral. Os conceitos morais, sobre o certo e o errado, são vistos pelo indivíduo como exteriores a ele, ao que se dá o nome de heteronomia. Ao participar de uma brincadeira ou um jogo, a criança submete-se às regras, sendo incapaz de questioná-las. As regras são imperativas, como se não fossem o que realmente são, isto é, meras convenções estabelecidas por uma pessoa ou comunidade em um certo momento histórico para um determinado fim. As mesmas considerações feitas a propósito do desenvolvimento cognitivo valem para a sociabilidade. O paradigma piagetiano concebe a existência de uma propensão biológica para atingir o estágio final em que o indivíduo torna-se melhor adaptado à realidade, mas não nega a influência das condições ambientais nesse processo. Assim, embora todas as pessoas estejam aptas a atingir o ponto considerado mais elevado da socialização, as instituições educacionais, notadamente a família e a escola, podem interferir ocasionando o insucesso de algumas. Vejamos o caso em que pais ou professores assumem atitudes de coação à criança, imposições que, pela força da autoridade, exigem obediência cega. O resultado desse procedimento tão comum é alimentar a tendência natural da criança ao respeito unilateral, o que reforça o egocentrismo infantil e dificulta a socialização. Observe-se que a idéia piagetiana de socialização diz respeito a um estado em que o indivíduo participa ativamente – e percebe-se como participante – da elaboração das regras que comandam a vida social. No caso em que há coação, a criança pode até mascarar seu comportamento para atender às ordens adultas, mas não consegue internalizar noções sobre o certo e o errado, uma vez que as normas são mantidas exteriores a ela. Seus julgamentos morais não avançam na direção desejável, rumo à autonomia, o que dificulta o desenvolvimento da noção de justiça. Tomemos o exemplo em que a seguinte questão é proposta a uma criança: quem merece maior castigo, a pessoa que disse uma mentira facilmente identificável – como ―vi um cachorro do tamanho de um cavalo‖ – ou a pessoa que alega estar com dor de cabeça para não ir à escola? Para nós, o primeiro caso é resultante, apenas, de uma analogia, não constituindo propriamente uma mentira, ao passo que o segundo é, de fato, um artifício moralmente condenável. A criança, no entanto, poderá considerar menos grave a alegação da dor de cabeça, uma vez que a falsidade não pode ser ali descoberta. Esse exemplo mostra que a ideia de justiça pode estar dominada pela exterioridade da regra e pela noção de responsabilidade objetiva, por valores impostos arbitrariamente pelo adulto e não por uma moral internalizada. Para a criança, fica valendo a regra em si – ―é errado mentir‖ – e não a intencionalidade da ação, o que a leva a compreender que só o ato passível de ser desmentido merece castigo. Como conseqüência, atitudes delituosas podem ser cometidas, desde que não sejam vistas pelo adulto, o que reflete a ausência de parâmetros internos de julgamento. A Cooperação na Escola Nas relações cotidianas é praticamente impossível que o adulto não utilize o recurso da imposição de sua vontade, seja no contexto familiar, seja escolar, mas a teoria de Piaget chama a atenção para os cuidados a serem tomados quanto ao uso da autoridade. Estamos falando aqui da autoridade empregada sem critério, como instrumento que impede a criança de perceber as razões pelas quais deve proceder de uma maneira e não de outra. Não se trata de advogar que a família e a escola devam abandonar o estabelecimento de limites para as atitudes da criança. Ocorre que se os limites forem apresentados como frutos da vontade inquestionável dos mais velhos, eles podem levar ao reforço da heteronomia e do respeito unilateral, dificultando a percepção de que a escolha entre o certo e o errado não deve submeter-se a julgamento externo, mas sim, a critérios internalizados pela pessoa. Mais ainda, fica obscurecida a percepção de que as regras são convenções criadas para facilitar a vida social em determinadas circunstâncias e que podem, assim, ser mudadas, dependendo da vontade coletiva. Somente em torno dos sete anos de idade, a criança começa a adquirir capacidade para entender dessa maneira o mundo das normas, configurando-se, então, o segundo momento do processo socializador. Dali por diante, já é possível incentivar cada vez mais as atividades de trabalho cooperativo, razão pela qual Piaget foi partidário do trabalho em grupos na escola. Para ele, é prejudicial o ambiente escolar em que a criança permaneça em atitude passiva e solitária, como depositária dos saberes adultos, mera reprodutora daquilo que ouve, sem poder exercitar o contato social com seus pares. Além dos motivos já apontados em outra seção deste livro, compreende-se porque Piaget posicionou-se contrariamente ao ensino tradicional. A aplicação dos velhos moldes educacionais só é eficiente para produzir pessoas incapazes de compreender a realidade segundo pontos de vista que não sejam os seus – pessoas egocêntricas e não cooperativas, portanto, o que se reflete no tipo de sociedade que irão contribuir para formar. O marco dos sete anos de idade não implica que as etapas pré-escolares abandonem o trabalho em equipes. O professor deve sempre incentivar atitudes grupais cooperativas, mas precisa estar ciente de que o egocentrismo então predominante impede que esse exercício alcance plenos resultados. Ao longo das primeiras séries do ensino fundamental, com crianças de idade por volta de 12 anos, essas práticas vão sendo cada vez mais efetivas, ajudando de-cisivamente o progresso da sociabilidade infantil. Em geral, é após a quinta série e no ensino médio que temos o período mais fértil da socialização. Genericamente, pode-se dizer que a cooperação, como recurso pedagógico, coloca em prática a tese piagetiana de que não é conhecimento aquilo que o educando adquire passivamente e, mais ainda, que é impossível conhecer um objeto qualquer por meio de um único ponto de vista. O trabalho em equipes permite que os alunos atuem sobre os saberes a se-rem aprendidos, pesquisem, busquem novas fontes de informação, levantem dados sobre os conteúdos escolares e, principalmente, façam tudo isso trocando idéias, uns com os outros, trabalhando cooperativamente na construção do conhecimento. Dilemas Construtivistas Conforme já foi afirmado aqui, embora não tenha elaborado um método pedagógico, Piaget vinculou sua Psicologia Genética a idéias de renovação educacional. A transposição de seu paradigma para a educação escolar foi feita, em um primeiro momento, pelo próprio Piaget e por vários autores, no corpo do movimento conhecido como Escola Nova, processo que ocorreu também no Brasil a partir da década de 1930. O que integra todas as iniciativas de apropriação desse paradigma pelos educadores é a concepção de conhecimento inerente a ele. A epistemologia piagetiana permite que a escola considere o educando como sujeito ativo e construtor de seu próprio saber, o que vai ao encontro de todas as pedagogias que valorizam a autonomia, a liberdade e o autogoverno como características a serem incentivadas no estudante. As teses piagetianas, no entanto, têm contribuído para concepções educacionais muitas vezes divergentes, embora reunidas sob os mesmos princípios gerais. Sabemos que, atualmente, é o construtivismo a corrente pedagógica responsável pela grande projeção das idéias de Piaget, mas sob essa denominação abrigam-se duas grandes vertentes de pensamento, as quais originam, por sua vez, diversas possibilidades de práticas pedagógicas. Essas vertentes são o ―construtivismo radical‖ e o ―desajuste ótimo‖, conforme denominação do pesquisador espanhol César Coll. A primeira considera que não cabe à escola planejar, antecipadamente, aquilo que a criança vai aprender. Não deve haver currículo, portanto, pois todo conhecimento advém da livre atividade do educando. Quem conduz o processo de ensino é o aluno, ficando o professor incumbido de organizar condições para que essa atividade aconteça de modo espontâneo. Nesse caso, o processo de avaliação incide exclusivamente sobre o desenvolvimento cognitivo da criança, podendo ser usadas as provas operatórias piagetianas para isso. Ao desprezar o valor dos conteúdos das matérias escolares, o construtivismo radical é comumente criticado por colocar em plano secundário todo o saber desenvolvido pela humanidade ao longo de sua história e, mais ainda, por acreditar que a criança pode elaborar, espontaneamente, os conhecimentos – bem como conceitos e juízos morais – de que necessita para integrar-se socialmente. Ao invés de ser um processo socializador destinado a integrar o indivíduo na sociedade, a educação torna-se um procedimento psicologizante. A segunda vertente, igualmente construtivista e inspirada em Piaget, busca escapar dessa crítica tomando os saberes formalizados como instrumentos para promover o desenvolvimento cognitivo da criança. Diferencia-se da anterior por empregar os tópicos da programação de ensino como recursos para evidenciar o desequilíbrio – em termos piagetianos – entre o aluno e o objeto a ser conhecido. Um minucioso trabalho de seleção e ordenamento dos tópicos das matérias faz-se necessário para que os conhecimentos a serem ensinados não estejam no mesmo nível das aquisições já feitas pelo aluno, o que não despertaria sua motivação. Esses conhecimentos não podem estar, também, em nível tão acima que superem as possibilidades inerentes às estruturas cognitivas já adquiridas. Vem daí a denominação de desajuste ótimo dada a essa tendência. Ambas as vertentes são construtivistas por adotarem a concepção piagetiana de conhecimento, mas pode-se notar que originam modos bastante diferentes de organização do trabalho escolar. Se considerarmos as finalidades sociais e políticas que sempre fazem parte da escola, verificamos que as duas situam-se em posições igualmente distintas. Ao passo que a inclinação não diretivista do construtivismo radical impede a previsão de metas educacionais, a vertente do desajuste ótimo contempla a possibilidade de planejar o tipo de indivíduo que a educação escolar almeja obter. Não se trata, é claro, de um planejamento à moda tecnicista – como vimos no capítulo anterior deste livro –, mas a opção por trabalhar com os conteúdos permite certos norteamentos quanto aos fins sociais e políticos a serem atingidos. O aprendiz, nesse caso, constrói seu próprio conhecimento, uma vez que se relaciona livremente com os objetos dispostos no ambiente escolar, contudo o simples fato de esses objetos serem definidos pelo professor já exibe a tendência, fraca porém reconhecível, a um certo diretivismo – o que não acontece na vertente construtivista radical. Essas vertentes apresentam, para o professor, um dilema que transcende o âmbito estritamente científico, pois o paradigma piagetiano mostra-se suficientemente amplo para conter modelos educacionais divergentes. O dilema em questão não diz respeito às concepções originárias do paradigma, propriamente ditas, mas ao modo como os educadores as transportam para a realidade social e cultural, norteados pelos projetos, esperanças e crenças que possuem nesse campo. Educação e Sociedade O professor interessado em utilizar a Psicologia Genética como ferramenta profissional deve estar ciente não apenas das contribuições científicas desse paradigma. As implicações e os dilemas trazidos pelas teses piagetianas manifestam-se claramente quando se pretende utilizá-las na edificação de um sistema educacional comprometido com a obtenção de uma nova ordem social. Ao refletir sobre esses temas, Piaget posicionou-se firmemente a favor de uma sociedade em que pessoas iguais debatam livremente suas idéias e definam regras morais pela via do consenso, o que exclui o emprego da coerção de uns sobre outros. O estágio mais desenvolvido da sociabilidade individual reflete justamente essa concepção, conforme já vimos, e não traduz submissão pura e simples da pessoa aos ditames do grupo. É assim porque, para Piaget, indivíduo e coletividade constroem-se mutuamente em ambiente democrático. Como organizar o ambiente escolar para favorecer o máximo desenvolvimento intelectual e social de todos, eis a questão a ser resolvida pelos educadores. A grande tarefa da educação, atualmente, parece ser a de encontrar o equilíbrio ideal entre liberdade e controle. Para tanto, o programa de ensino deve atuar como base na espontaneidade plena e absoluta do espírito infantil ou por meio de conteúdos escolares que traduzam a experiência humana acumulada, sem, no entanto, imprimir verdades prontas e acabadas na mente do estudante, à moda do ensino tradicional. Os defensores da primeira via dizem que a construção do indivíduo e da sociedade não pode ser limitada de forma alguma, ou não será uma construção de fato. Nessa perspectiva, deve-se respeitar integralmente as decisões das crianças e dos jovens, bem como a moral resultante de sua interação com a realidade. Nesse pensamento, reside a crença em um senso de justiça inerente ao ser humano e na liberdade como método para trazê-lo à tona. Os que alinham com a segunda alternativa temem que a liberalidade sem regras possa dar margem a caminhos indesejáveis e assumem o risco de nortear a relação entre a criança e o mundo. Acreditam que ao organizar os conteúdos escolares com olhos críticos, o educador pode evitar que erros cometidos pela humanidade no passado sejam repetidos. É preciso, então, conduzir, ainda que de forma branda, o conhecimento a ser adquirido pelos estudantes. Por fim, a visão piagetiana pode ser interpretada como ideologia, uma vez que apresenta um mundo cooperativo e consensual, enquanto a ordem social conhecida por nós caminha a passos largos para o conflito generalizado entre os segmentos que a compõem. Visto desse modo, Piaget não faz mais do que ocultar as mazelas do sistema excludente e autoritário em que vivemos, o que serviria para perpetuá-lo. Ou talvez, sua concepção não passe de uma ilusão sociológica, reflexo de um universo idealizado que jamais existiu, nem existirá. Mas Piaget também pode ser compreendido como o epistemólogo que elaborou ins-trumentos teóricos para incentivar a luta dos educadores, e de todos os cidadãos, por uma sociedade e uma escola mais justas e igualitárias. Nesta direção, suas idéias tornam-se um legado para todos os que acreditam na possibilidade de uma educação escolar transformadora, que propicie liberdade de pensamento e ação para todas as crianças e jovens, e contribua para a construção de um novo mundo no futuro. TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM: http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/141/3/01d08t02.pdf FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A AÇÃO EDUCATIVA. Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume mar., Série 26/03, 2011, p.01-10. Quando pensamos em educação é inevitável discutir seu papel socializador e seu aspecto representativo da cultura. O que implica em analisar os fundamentos históricos e filosóficos, já que a educação, em si, só é possível através da transmissão do conhecimento ao longo do tempo, por meio do dialogo, do contato entre as pessoas. Sem socialização, contextualizada no âmbito escolar, não existe educação. Sendo necessário, portanto, discutir como e se a educação realmente sociabiliza e se este deve ser o seu principal objetivo. Uma questão amplamente debatida e ainda não esgotada que originou várias tendências pedagógicas, além de inúmeras propostas de direcionamento educacional. Antes de entrar nesta esfera, no entanto, é necessário debater o âmago do que torna a educação possível, a socialização e sua relação com a educação. Socialização e educação. O que é socialização afinal? A socialização pressupõe a interação social, a capacidade de integrar-se a um grupo, assimilando padrões sociais. O que interfere na maneira como o sujeito percebe o mundo, o outro e a si mesmo. O processo de interação, a socialização, inicia-se no nascimento do sujeito e só se encerra com a morte, fazendo uso da linguagem para interagir e integrar os indivíduos. Um filme que conta um caso real ilustra bem isto, trata-se do Enigma de KasperHauser. Em sentido amplo, a linguagem, através da cultura, constrói significados, embora a equação inversa também seja verdadeira. Podemos afirmar que o ser humano, neste sentido, só se humaniza a partir da socialização e da assimilação da cultura. O que conduz a perguntar o que é cultura? Poderíamos definir a cultura como um conjunto de valores que une e dá identidade a um grupo, espelhando o conhecimento acumulado por gerações. Assim, sendo a educação a transmissão e assimilação de conhecimentos, cabe perguntar qual é o papel da educação para que a integração entre as pessoas se efetive? Responder esta questão conduz a outro tema correlato: o papel da educação em sentido amplo e sua distinção dentro e fora do processo de escolarização institucionalizado. Educação formal e informal. Para entender o papel da educação na socialização é necessário discutir a transmissão da cultura dentro e fora da escola. A educação, a transmissão do saber acumulado pela humanidade, não se concretiza somente na escola, acontece também de maneira informal (sem norma ou forma), não possuindo critérios, horários, hierarquia ou sistema de avaliação. Neste sentido, a educação informal é produzida a partir das necessidades imediatas da vida, configurando o conhecimento conforme as exigências requeridas para a sobrevivência. Pensando nesta concepção, o saber escolar muitas vezes se distancia da realidade, impedindo a assimilação democrática do conhecimento e excluindo várias categorias sociais, portanto, limitando o acesso ao saber que confere poder. A escola é uma instituição, como tal possui normas e padrões, impostos por aqueles que controlam o sistema educacional, visando organizar seu funcionamento. Diferente da educação informal, o conhecimento escolar é sistematizado, transmitido a partir de critérios e métodos, composto por um saber científico, dogmático. Embora a ideia, teoricamente, seria a escola criar uma proximidade com a realidade concreta, possibilitando uma flexibilidade de conteúdos. O grande problema é que a educação formal, sendo hierarquizada, é fruto e reflexo do fordismo, dividindo tarefas e limitando o processo de socialização. O fordismo educacional transforma os professores em tarefeiros, semelhante ao que ocorreu com operários em linhas de montagem, fazendo, por outro lado, o educando perder a noção do conjunto. No entanto, de certo modo, a educação formal contém em si a informal, já que o educador não se limita a transmitir conteúdos. Enquanto o professor exerce uma profissão eminentemente técnica, o educador deveria ensinar e praticar a tolerância com o outro, a convivência pacifica, instigando a curiosidade para conhecer as diferenças, ou seja, incentivando a socialização. O paradigma do consenso e do conflito. A socialização é o centro de duas visões distintas do que se entende como função da escola, configurando duas abordagens clássicas: o paradigma do consenso e do conflito. A noção de paradigma envolve um modelo que serve de base a construção da ciência. Ambos os paradigmas balizam a construção de teorias e tendências pedagógicas e representam pontos de referência e lógicas de pensamento. Representado por Durkheim, Comte e Spencer, para o paradigma do consenso os valores em comum e a cooperação entre professores e alunos é essencial para que a escola cumpra seu papel socializador, a palavra chave é integração. Além de ensinar conteúdos, a escola deveria moralizar e, para tal, punir infrações as normas. Pressuposto que gerou o ―mito do controle coercitivo‖, segundo o qual, à medida que as sanções coercitivas são usadas conscientemente e de forma rápida, contra os transgressores, a ameaça por si só é suficiente para manter a ordem. Inversamente, a impunidade gera desordem. Segundo esta tendência, outros autores, tal como Parson, conceberam a sala de aula como uma agência de socialização, por meio da qual as personalidades individuais são preparadas para o desempenho de papeis sociais, conferindo status conforme os méritos individuais. Em resumo, o paradigma do consenso busca a conservação da sociedade, a reprodução das estruturas existentes, principalmente a reprodução do sistema capitalista. O grande defeito do paradigma do consenso é não enxergar os conflitos. Tentando contornar este problema, representado por Marx, paradigma do conflito enxerga a escola como uma instituição que impõem valores e que, portanto, gera conflitos entre professores e alunos. Estes conflitos seriam essenciais para mudar a estrutura da sociedade. Dentro desta concepção, alguns autores, como Waller, descreveram a escola como um centro de difusão dos padrões culturais dos grupos mais amplos, sobrepondo-se as comunidades locais e gerando um conflito permanente entre professores e alunos. O que aconteceria porque os professores representam a cultura dominante, ligada a erudição, enquanto os educandos teriam domínio apenas sobre a cultura popular e de massa, desmotivando a aprendizagem. Exatamente por isto, a escola necessita exercer controle sobre os jovens e crianças para efetivar o processo cognitivo, mas este controle cria um conflito que ameaça a existência da escola. Este processo origina um circulo, pois, diante da ameaça de conflito permanente, a escola acirra o controle para garantir sua existência. Pensando na questão, dentro do âmbito do paradigma do conflito, Lery defendeu a tese de que a escola educa para o fracasso e para a aceitação deste fato, gerando conflitos. Assim, o paradigma do conflito é útil para revelar as tensões e oposições dentro da escola. Entretanto, tende a ver apenas oposições, esquecendo-se que existem também concordâncias. A escola é socialmente complexa, alunos e professores compartilham situações conflituosas comuns, que terminando unindo ao invés de separar. Em outras palavras, o professor molda sua classe, mas é também moldada por ela, o que tanto gera conflito como consenso. Pensando de forma mais ampla, caberia, inclusive, perguntar se o consenso ou conflito é gerado a partir da relação professor/aluno ou pela natureza da estrutura do sistema educacional, ou ainda pelo contexto social. O paradigma do consenso no Brasil. O paradigma do consenso influenciou intensamente a educação no Brasil, sobretudo a partir de 1930, representado pelas ideias de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira. Começou a penetrar no Brasil graças a crescente industrialização, iniciada em 1920, quando a necessidade de preparar o desenvolvimento levou um grupo de intelectuais brasileiros a se interessar pela educação, vista como elemento central para remodelar a realidade. Em 1932, durante o governo Vargas, um grupo de vinte e seis intelectuais se reuniu para redigir O manifesto dos pioneiros da educação nova, o qual defendia a educação como função essencialmente pública, gratuita, obrigatória, laica e única. Isto, do jardim da infância a universidade, dos quatro aos dezoito anos de idade. Dentro deste contexto, Fernando de Azevedo, o principal representante do pensamento de Durkheim no Brasil, enxergava a escola como miniatura da sociedade. A complexidade da sociedade exigiria coesão social, imposta por valores transmitidos pela escola. Á medida que o individuo percorre o sistema educacional da base ao topo, passaria da educação comum, de natureza coercitiva, até as experiências diversificadas, possibilitando a manutenção da ordem capitalista. Assim, deveria ser função da escola estabelecer uma articulação com o meio social, coordenando, disciplinando e consolidando as experiências fragmentadas colhidas no ambiente da criança, servindo de modelo para a sociedade. No entanto, para Fernando de Azevedo, a escola teria um papel limitado diante do poder coercitivo de outra instituição, a família, responsável pela formação de grande parte dos padrões sociais. A despeito desta característica, o educador deveria ser um agente social, servindo de exemplo e elemento de ligação do educando com a realidade e a construção do conhecimento. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Anísio Teixeira defendeu a reestruturação da educação com o objetivo de propagar e aperfeiçoar a democracia, propondo trabalhar conteúdos de forma a discutir benefícios para a coletividade. Para realmente integrar e socializar, a escola deveria ser integral e municipalizada, visando atender os interesses de cada comunidade, sendo por ele fiscalizada. Os estudos de Althusser. Althusser pertence a um conjunto teórico conhecido como neomarxismo, uma corrente que mescla o marxismo com outras bases teóricas, como o estruturalismo, fazendo uso da dialética e do materialismo histórico. Cabe lembrar que o estruturalismo se propõe a analisar sistemas, portanto, estruturas. A preocupação central de Althusser era tentar entender como as condições de produção, no âmbito capitalista, conseguem se reproduzir; já que o sistema capitalista seria injusto e prejudicial à maioria. Pensando na questão, o autor chegou à conclusão que a dinâmica de trabalho, assegurada pelo salário, seria o principal fator a reproduzir o sistema, comprando a lealdade de indivíduos em favor da ideologia capitalista. Para garantir a submissão dos indivíduos ao sistema capitalista, o Estado faria uso de aparelhos de Estado: 1. Aparelhos de Estado: constituído pelo governo e a administração publica. 2. Aparelhos Ideológicos de Estado: o meio de exercer controle sobre o pensamento, através de instituições como igreja, escola, sindicatos, meios de comunicação e até livros didáticos, mascarando e vendendo o domínio das elites. 3. Aparelhos Repressivos de Estado: instituições que exercem domínio por meio da violência, da coerção, tal como policia, justiça, prisões, forças armadas, etc. Segundo Althusser, a escola teria um papel primordial moldando mentalidades, mas dentro deste aparelho ideológico também haveria aparelhos repressivos, representados por mecanismos de punição e exclusão. Caso a escola não consiga moldar as mentalidades, fazendo os indivíduos se conformarem com sua posição modesta na sociedade, jogando o sujeito na marginalidade, os aparelhos repressivos dariam conta de excluir o infrator da sociedade. Uma visão em concordância coma teoria funcional, segundo a qual a sociedade funciona como uma máquina, sendo as pessoas engrenagens.No caso de uma peça defeituosa, que não se encaixa no que esperado dela, bastaria substituí-la. Os estudos de Bourdieu e Passeron. Também pertencentes ao conjunto teórico neomarxista, Bourdieu e Passeron concentraram sua atenção sobre a mesma questão trabalhada por Althusser: o entendimento da reprodução da estrutura social do sistema capitalista. Para os autores, a escola é a principal estrutura objetiva que molda mentalidades e comportamentos, garantindo a manutenção de privilégios através do status que confere. Neste sentido, a escola manipula o educando, ocultando uma violência simbólica. A violência está no fato da escola se revestir de uma aparência de neutralidade, quando na verdade condiciona o educando de acordo com os interesses das elites que controlam o sistema educacional. É simbólica devido ao seu caráter não material, portanto, circunscrito a esfera mental. Dentro deste contexto, insere-se o capital cultural, a competência cultural e linguística herdade, sobretudo, da família, facilitador do bom desempenho escolar. Usando uma linguagem e cultura pertencentes à elite, o padrão culto, a escola comete uma violência ao impor, ao conjunto da sociedade, valores de um único grupo. A educação legitima o domínio da elite, impedindo o acesso daqueles que não possuem o necessário capital cultural a estamentos mais elevados, doutrinando para o fracasso. A proposta de Gramsci. O italiano Antônio Gramsci criticou o sistema educacional capitalista, apontando caminhos para democratizar o acesso ao conhecimento, buscando tornar a sociedade mais justa. Os textos de Gramsci influenciaram o pensamento socialista na Europa, refletindo no Brasil na década de 1970 e 1980, possibilitando o moderno conceito de educação voltada para a formação da cidadania. Para ele, toda relação social é necessariamente pedagógica, já que todo o processo de interação é uma relação de aprendizagem. Defendia a ideia de que a massa só poderia chegar ao poder através de uma mudança de mentalidade e não pela violência, centralizando esta mudança, principalmente, no instrumento escola, responsável pela construção da cidadania. Por cidadania, Gramsci entendia a orientação voltada para a elevação da cultura das massas, a libertação do senso comum e a aquisição de uma postura critica. Para levar a termo esta intenção, ele propôs uma escola unitária, onde todos, independente da classe social, tivessem acesso ao mesmo tipo de conhecimento, no caso a cultura erudita, baseada nos clássicos. Porém, considerava que a educação deveria seguir o modelo tradicional, para conduzir o educando da heteronomia para a autonomia. Concluindo. A educação institucionalizada, a escola, possui muitos defeitos e vícios, muitos dos quais advindos do sistema capitalista e estrutura social; porém, o professor, em sala de aula pode contornar estas barreiras. Cabe a cada professor realizar um trabalho de formiguinha, tornando-se um educador e agente multiplicador. Sozinhos somos nada, somos fracos; juntos seremos tudo, seremos fortes e poderemos mudar o mundo através da educação. Texto: Prof. Dr. Fábio Pestana Ramos. Doutor em História Social pela FFCLH/USP. TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM: Ultimo acesso em 30/12/12. http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2011/03/fundamentos-historicos-e-filosoficos-da.html MARILENA CHAUI CONVITE À FILOSOFIA Ed. Ática, São Paulo, 2000. Introdução Para que Filosofia? Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia? É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física? Para que geografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia? Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes de Filosofia: ―A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual‖. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se costuma chamar de ―filósofo‖ alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis. Essa pergunta, ―Para que Filosofia?‖, tem a sua razão de ser. Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata. Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade. Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não serve para coisa alguma. Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os. Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados. Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas. Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada. Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não serviria para nada, se ―servir‖ fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica. Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como finalidade ensinarnos a virtude, que é o princípio do bem-viver. Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas? Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como permanecem. Atitude filosófica: indagar Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. Essas características são: - perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual; - perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor; - perguntar por que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um valor. A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar. Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão. A reflexão filosófica Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo. A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento. Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações. A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações. A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões: 1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto é, quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos? 2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos? 3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos? Essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento? Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas. Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir. Filosofia: um pensamento sistemático Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um ―eu acho que‖ ou um ―eu gosto de‖. Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda. As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático. Que significa isso? Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer ―eu acho que ‖, mas de poder afirmar ―eu penso que‖. O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente. Quando o senso comum diz ―esta é minha filosofia‖ ou ―isso é a filosofia de fulana ou de fulano‖, engana-se e não se engana. Engana-se porque imagina que para ―ter uma filosofia‖ basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. ―Minha filosofia‖ ou a ―filosofia de fulano‖ ficam no plano de um ―eu acho‖ coerente. Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana. Em busca de uma definição da Filosofia Quando começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela é. Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de várias, as definições parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de perplexidade, indagam: afinal, o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é? Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que seria a Filosofia: 1. Visão de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura. Filosofia corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idéias, valores e práticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma, definindo para si o tempo e o espaço, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possível e o impossível, o contingente e o necessário. Qual o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religião, Filosofia e arte, Filosofia e ciência. Na verdade, essa definição identifica Filosofia e Cultura, pois esta é uma visão de mundo coletiva que se exprime em idéias, valores e práticas de uma sociedade. A definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do trabalho filosófico e por isso não podemos aceitá-la. 2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a definição e a ação de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio. A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos, desejos e paixões. É nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo. Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso, também não podemos aceitá-la. 3. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido. Nesse caso, começa-se distinguindo entre Filosofia e religião e até mesmo opondo uma à outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira o faz através do esforço racional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação divina. Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade, enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável, que é a revelação divina indemonstrável. Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável. No entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo, elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível. Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em primeiro lugar, porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no caso das ciências) e para a expressão (no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta definição também não pode ser aceita. 4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. A Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos conceitos, das idéias e dos valores. A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança, etc. Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia procura diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico (ou humano) num momento muito preciso: quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que perdemos. Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer. Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise (das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão (isto é, volta da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como crítica (das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão e crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecerdesaparecer dos seres? A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humanos, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres, a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história. O nascimento da Filosofia Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do século VII e início do século VI antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor (particularmente as que formavam uma região denominada Jônia), na cidade de Mileto. E o primeiro filósofo foi Tales de Mileto. Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia também possui um conteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é composta de duas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que vem da palavra logos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento. Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza, donde, cosmologia. Apesar da segurança desses dados, existe um problema que, durante séculos, vem ocupando os historiadores da Filosofia: o de saber se a Filosofia - que é um fato especificamente grego - nasceu por si mesma ou dependeu de contribuições da sabedoria oriental (egípcios, assírios, persas, caldeus, babilônios) e da sabedoria de civilizações que antecederam à grega, na região que, antes de ser a Grécia ou a Hélade, abrigara as civilizações de Creta, Minos, Tirento e Micenas. Durante muito tempo, considerou-se que a Filosofia nascera por transformações que os gregos operaram na sabedoria oriental (egípcia, persa, caldéia e babilônica). Assim, filósofos como Platão e Aristóteles afirmavam a origem oriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles, povo comerciante e navegante, descobriram, através das viagens, a agrimensura dos egípcios (usada para medir as terras, após as cheias do Nilo), a astrologia dos caldeus e dos babilônios (usada para prever grandes guerras, subida e queda de reis, catástrofes como peste, fome, furacões), as genealogias dos persas (usadas para dar continuidade às linhagens e dinastias dos governantes), os mistérios religiosos orientais referentes aos rituais de purificação da alma (para livrá-la da reencarnação contínua e garantir-lhe o descanso eterno), etc. A Filosofia teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses conhecimentos. Dessa forma, da agrimensura, os gregos fizeram nascer duas ciências: a aritmética e a geometria; da astrologia, fizeram surgir também duas ciências: a astronomia e a meteorologia; das genealogias, fizeram surgir mais uma outra ciência: a história; dos mistérios religiosos de purificação da alma, fizeram surgir as teorias filosóficas sobre a natureza e o destino da alma humana. Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia, isto é, da cosmologia, de sorte que a Filosofia só teria podido nascer graças as saber oriental. Essa idéia de uma filiação oriental da Filosofia foi muito defendida oito séculos depois de seu nascimento (durante os séculos II e III depois de Cristo), no período do Império Romano. Quem a defendia? Os pensadores judaicos, como Filo de Alexandria, e os Padres da Igreja, como Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria. Por que defendiam a origem oriental da Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a Filosofia grega tornara-se, em toda a Antigüidade clássica, e para os poderosos da época, os romanos, a forma superior ou mais elevada do pensamento e da moral. Os judeus, para valorizar seu pensamento, desejavam que a Filosofia tivesse uma origem oriental, dizendo que o pensamento de filósofos importantes, como Platão, tinha surgido no Egito, onde se originara o pensamento de Moisés, de modo que havia uma ligação entre a Filosofia grega e a Bíblia. Os Padres da Igreja, por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram elevados e perfeitos, não eram superstição, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam que os filósofos gregos estavam filiados a correntes de pensamento místico e oriental e, dessa maneira, estariam próximos do cristianismo, que é uma religião oriental. No entanto, nem todos aceitaram a tese chamada ―orientalista‖, e muitos, sobretudo no século XIX da nossa era, passaram a falar na Filosofia como sendo o ―milagre grego‖. Com a palavra ―milagre‖ queriam dizer várias coisas: que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grécia, sem que nada anterior a preparasse; que a Filosofia grega foi um acontecimento espontâneo, único e sem par, como é próprio de um milagre; que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro semelhante a eles, nem antes e nem depois deles, e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar a Filosofia, como foram os únicos a criar as ciências e a dar às artes uma elevação que nenhum outro povo conseguiu, nem antes e nem depois deles. Nem oriental, nem milagre Desde o final do século XIX da nossa era e durante o século XX, estudos históricos, arqueológicos, lingüísticos, literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses, isto é, tanto a redução da Filosofia à sua origem oriental, quanto o ―milagre grego ‖. Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de fato, a Filosofia tem dívidas com a sabedoria dos orientais, não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos produzidos por outros povos (sobretudo os egípcios, persas, babilônios, assírios e caldeus), mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga, os poetas Homero e Hesíodo, encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais, bem como nas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a mitologia grega, que, depois, seria transformada racionalmente pelos filósofos. Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos religiosos, instrumentos musicais, dança, música, poesia, utensílios domésticos e de trabalho, formas de habitação, formas de parentesco e formas de organização tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos com as culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas culturas que antecederam a grega, nas regiões onde ela se implantou. Esses mesmos estudos apontaram, porém, que, se nos afastarmos dos exageros da idéia de um ―milagre grego‖, podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato, os gregos imprimiram mudanças de qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas precedentes, que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si mesmos. Dessas mudanças, podemos mencionar quatro que nos darão uma idéia da originalidade grega: 1. Com relação aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses, micênicos, minóicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo, vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do início do mundo; humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidade a narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das instituições humanas (como o trabalho, as leis, a moral); 2. Com relação aos conhecimentos: os gregos transformaram em ciência (isto é, num conhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que eram elementos de uma sabedoria prática para o uso direto na vida. Assim, transformaram em matemática (aritmética, geometria, harmonia) o que eram expedientes práticos para medir, contar e calcular; transformaram em astronomia (conhecimento racional da natureza e do movimento dos astros) aquilo que eram práticas de adivinhação e previsão do futuro; transformaram em medicina (conhecimento racional sobre o corpo humano, a saúde e a doença) aquilo que eram práticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças. E assim por diante; 3. Com relação à organização social e política: os gregos não inventaram apenas a ciência ou a Filosofia, mas inventaram também a política. Todas as sociedades anteriores a eles conheciam e praticavam a autoridade e o governo. Mas, por que não inventaram a política propriamente dita? Nas sociedades orientais e não-gregas, o poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo de homens que decidiam sobre tudo, sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém. Os gregos inventaram a política (palavra que vem de polis, que, em grego, significa cidade organizada por leis e instituições) porque instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto em assembléias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais, assembléias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública, entre autoridade políticomilitar e autoridade religiosa) e sobretudo porque criaram a idéia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo, em nome de divindades. Os gregos criaram a política porque separaram o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade: a do chefe de família e a do sacerdote ou mago; 4. Com relação ao pensamento: diante da herança recebida, os gregos inventaram a idéia ocidental da razão como um pensamento sistemático que segue regras, normas e leis de valor universal (isto é, válidas em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, em qualquer tempo e lugar 2 + 2 serão sempre 4; o triângulo sempre terá três lados; o Sol sempre será maior do que a Terra, mesmo que ele pareça menor do que ela, etc.). Mito e Filosofia Resolvido esse problema, agora temos um outro que também tem ocupado muito os estudiosos. O novo problema pode ser assim formulado: a Filosofia nasceu realizando uma transformação gradual sobre os mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos? O que é um mito? Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, bem e do mal, da das guerras, do poder, etc.). A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados. Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acreditase que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito – é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável. Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe? De três maneiras principais: 1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado, etc. A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados. Tomemos um exemplo da narrativa mítica. Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de Cupido): Houve uma grande festa entre os deuses. To dos foram convidados, menos a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria veio, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relação sexual, nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe, está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, tem mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com sua flecha, esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor, inventa astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e semimorto, ora rico e cheio de vida. 2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens. O poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliavase com um grupo e fazia um dos lados - ou os troianos ou os gregos - vencer uma batalha. A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general grego Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos. 3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece. Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra. Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o castigo dos homens? Os deuses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males no mundo. Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias. A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a arrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas. Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados. Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: A Filosofia, ao nascer, é, como já dissemos, uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia? Duas foram as respostas dadas. A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do século XX, quando reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem. Dizia-se, então, que a Filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente. A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles. Atualmente consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a Filosofia, percebendo as contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e diferente. Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais importantes: 1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são; 2. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais. O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar. 3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos. Condições históricas para o surgimento da Filosofia Resolvido esse problema, temos ainda um último a solucionar: O que tornou possível o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que permitiram o surgimento da Filosofia? Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia: ? as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer; ? a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível; ? a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização; ? o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir; ? a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve; ? a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia: 1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional. 2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poetavidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer. Agora, com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica. 3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia. Principais características da Filosofia nascente O pensamento filosófico em seu nascimento tinha como traços principais: ? tendência à racionalidade, isto é, a razão e somente a razão, com seus princípios e regras, é o critério da explicação de alguma coisa; ? tendência a oferecer respostas conclusivas para os problemas, isto é, colocado um problema, sua solução é submetida à análise, à crítica, à discussão e à demonstração, nunca sendo aceita como uma verdade, se não for provado racionalmente que é verdadeira; ? exigência de que o pensamento apresente suas regras de funcionamento, isto é, o filósofo é aquele que justifica suas idéias provando que segue regras universais do pensamento. Para os gregos, é uma lei universal do pensamento que a contradição indica erro ou falsidade. Uma contradição acontece quando afirmo e nego a mesma coisa sobre uma mesma coisa (por exemplo: ―Pedro é um menino e não um menino‖, ―A noite é escura e clara‖, ―O infinito não tem limites e é limitado‖). Assim, quando uma contradição aparecer numa exposição filosófica, ela deve ser considerada falsa; ? recusa de explicações preestabelecidas e, portanto, exigência de que, para cada problema, seja investigada e encontrada a solução própria exigida por ele; ? tendência à generalização, isto é, mostrar que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes porque, sob a variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos, o pensamento descobre semelhanças e identidades. Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma chaleira, que é diferente da chuva, que é diferente da correnteza de um rio. No entanto, o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo elemento (a água), passando por diferentes estados e formas (líquido, sólido, gasoso), por causas naturais diferentes (condensação, liquefação, evaporação). Reunindo semelhanças, o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O pensamento generaliza porque abstrai (isto é, separa e reúne os traços semelhantes), ou seja, realiza uma síntese. E o contrário também ocorre. Muitas vezes nossos órgãos dos sentidos nos fazem perceber coisas diferentes como se fossem a mesma coisa, e o pensamento demonstrará que se trata de uma coisa diferente sob a aparência da semelhança. No ano de 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da bandeira nacional e saíram às ruas para exigir o impedimento do presidente da República. Logo depois, os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer na televisão com a cara pintada, defendendo tais candidaturas. A seguir, as Forças Armadas brasileiras, para persuadir jovens a servi -las, contrataram jovens caras-pintadas para aparecer como soldados, marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, várias empresas, pretendendo vender seus produtos aos jovens, contrataram artistas jovens para, de cara pintada, fazer a propaganda de seus produtos. Aparentemente, teríamos sempre a mesma coisa - os jovens rebeldes e conscientes, de cara pintada, símbolo da esperança do País. No entanto, o pensamento pode mostrar que, sob a aparência da semelhança percebida, estão diferenças, pois os primeiros caras-pintadas fizeram um movimento político espontâneo, os segundos fizeram propaganda política para um candidato (e receberam para isso), os terceiros tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer como divertidas e juvenis, e os últimos, mediante remuneração, estavam transferindo para produtos industriais (roupas, calçados, vídeos, margarinas, discos, iogurtes) um símbolo político inteiramente despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem. Separando as diferenças, o pensamento realiza, nesse caso, uma análise. Capítulo 3 Campos de investigação da Filosofia Os períodos da Filosofia grega A Filosofia terá, no correr dos séculos, um conjunto de preocupações, indagações e interesses que lhe vieram de seu nascimento na Grécia. Assim, antes de vermos que campos são esses, examinemos brevemente os conteúdos que a Filosofia possuía na Grécia. Para isso, de vemos, primeiro, conhecer os períodos principais da Filosofia grega, pois tais períodos definiram os campos da investigação filosófica na Antigüidade. A história da Grécia costuma ser dividida pelos historiadores em quatro grandes fases ou épocas: 1. a da Grécia homérica, correspondente aos 400 anos narrados pelo poeta Homero, em seus dois grandes poemas, Ilíada e Odisséia; 2. a da Grécia arcaica ou dos sete sábios, do século VII ao século V antes de Cristo, quando os gregos criam cidades como Atenas, Esparta, Tebas, Megara, Samos, etc., e predomina a economia urbana, baseada no artesanato e no comércio; 3. a da Grécia clássica, nos séculos V e IV antes de Cristo, quando a democracia se desenvolve, a vida intelectual e artística entra no apogeu e Atenas domina a Grécia com seu império comercial e militar; 4. e, finalmente, a época helenística, a partir do final do século IV antes de Cristo, quando a Grécia passa para o poderio do império de Alexandre da Macedônia, e, depois, para as mãos do Império Romano, terminando a história de sua existência independente. Os períodos da Filosofia não correspondem exatamente a essas épocas, já que ela não existe na Grécia homérica e só aparece nos meados da Grécia arcaica. Entretanto, o apogeu da Filosofia acontece durante o apogeu da cultura e da sociedade gregas; portanto, durante a Grécia clássica. Os quatro grandes períodos da Filosofia grega, nos quais seu conteúdo muda e se enriquece, são: 1. Período pré-socrático ou cosmológico, do final do século VII ao final do século V a.C., quando a Filosofia se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das transformações na Natureza. 2. Período socrático ou antropológico, do final do século V e todo o século IV a.C., quando a Filosofia investiga as questões humanas, isto é, a ética, a política e as técnicas (em grego, ântropos quer dizer homem; por isso o período recebeu o nome de antropológico). 3. Período sistemático, do final do século IV ao final do século III a.C., quando a Filosofia busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado sobre a cosmologia e a antropologia, interessando-se sobretudo em mostrar que tudo pode ser objeto do conhecimento filosófico, desde que as leis do pensamento e de suas demonstrações estejam firmemente estabelecidas para oferecer os critérios da verdade e da ciência. 4. Período helenístico ou greco-romano, do final do século III a.C. até o século VI depois de Cristo. Nesse longo período, que já alcança Roma e o pensamento dos primeiros Padres da Igreja, a Filosofia se ocupa sobretudo com as questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre o homem e a Natureza e de ambos com Deus. Filosofia Grega Pode-se perceber que os dois primeiros períodos da Filosofia grega têm comoreferência o filósofo Sócrates de Atenas, donde a divisão em Filosofia présocrática e socrática. Período pré-socrático ou cosmológico Os principais filósofos pré-socráticos foram: ? filósofos da Escola Jônica: Tales de Mileto, Anaxímenes de Mileto, Anaximandro de Mileto e Heráclito de Éfeso; ? filósofos da Escola Itálica: Pitágoras de Samos, Filolau de Crotona e Árquitas de Tarento; ? filósofos da Escola Eleata: Parmênides de Eléia e Zenão de Eléia; ? filósofos da Escola da Pluralidade: Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômena, Leucipo de Abdera e Demócrito de Abdera. As principais características da cosmologia são: ? É uma explicação racional e sistemática sobre a origem, ordem e transformação da Natureza, da qual os seres humanos fazem parte, de modo que, ao explicar a Natureza, a Filosofia também explica a origem e as mudanças dos seres humanos. ? Afirma que não existe criação do mundo, isto é, nega que o mundo tenha surgido do nada (como é o caso, por exemplo, na religião judaico-cristã, na qual Deus cria o mundo do nada). Por isso diz: ―Nada vem do nada e nada volta ao nada‖. Isto significa: a) que o mundo, ou a Natureza, é eterno; b) que no mundo, ou na Natureza, tudo se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer, embora a forma particular que uma coisa possua desapareça com ela, mas não sua matéria. ? O fundo eterno, perene, imortal, de onde tudo nasce e para onde tudo volta é invisível para os olhos do corpo e visível somente para o olho do espírito, isto é, para o pensamento. ? O fundo eterno, perene, imortal e imperecível de onde tudo brota e para onde tudo retorna é o elemento primordial da Natureza e chama-se physis (em grego, physis vem de um verbo que significa fazer surgir, fazer brotar, fazer nascer, produzir). A physis é a Natureza eterna e em perene transformação. ? Afirma que, embora a physis (o elemento primordial eterno) seja imperecível, ela dá origem a todos os seres infinitamente variados e diferentes do mundo, seres que, ao contrário do princípio gerador, são perecíveis ou mortais. ? Afirma que todos os seres, além de serem gerados e de serem mortais, são seres em contínua transformação, mudando de qualidade (por exemplo, o branco amarelece, acinzenta, enegrece; o negro acinzenta, embranquece; o novo envelhece; o quente esfria; o frio esquenta; o seco fica úmido; o úmido seca; o dia se torna noite; a noite se torna dia; a primavera cede lugar ao verão, que cede lugar ao outono, que cede lugar ao inverno; o saudável adoece; o doente se cura; a criança cresce; a árvore vem da semente e produz sementes, etc.) e mudando de quantidade (o pequeno cresce e fica grande; o grande diminui e fica pequeno; o longe fica perto se eu for até ele, ou se as coisas distantes chegarem até mim, um rio aumenta de volume na cheia e diminui na seca, etc.). Portanto o mundo está em mudança contínua, sem por isso perder sua forma, sua ordem e sua estabilidade. A mudança - nascer, morrer, mudar de qualidade ou de quantidade - chama-se movimento e o mundo está em movimento permanente. O movimento do mundo chama-se devir e o devir segue leis rigorosas que o pensamento conhece. Essas leis são as que mostram que toda mudança é passagem de um estado ao seu contrário: dia-noite, claro-escuro, quente-frio, seco-úmido, novo-velho, pequeno-grande, bom-mau, cheio-vazio, um-muitos, etc., e também no sentido inverso, noite- dia, escuro-claro, frio-quente, muitosum,etc. O devir é, portanto, a passagem contínua de uma coisa ao seu estado contrário e essa passagem não é caótica, mas obedece a leis determinadas pela physis ou pelo princípio fundamental do mundo. Os diferentes filósofos escolheram diferentes physis, isto é, cada filósofo encontrou motivos e razões para dizer qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da Natureza e de suas transformações. Assim, Tales dizia que o princípio era a água ou o úmido; Anaximandro considerava que era o ilimitado sem qualidades definidas; Anaxímenes, que era o ar ou o frio; Heráclito afirmou que era o fogo; Leucipo e Demócrito disseram que eram os átomos. E assim por diante. Período socrático ou antropológico Com o desenvolvimento das cidades, do comércio, do artesanato e das artes militares, Atenas tornou-se o centro da vida social, política e cultural da Grécia, vivendo seu período de esplendor, conhecido como o Século de Péricles. É a época de maior florescimento da democracia. A democracia grega possuía, entre outras, duas características de grande importância para o futuro da Filosofia. Em primeiro lugar, a democracia afirmava a igualdade de todos os homens adultos perante as leis e o direito de todos de participar diretamente do governo da cidade, da polis. Em segundo lugar, e como conseqüência, a democracia, sendo direta e não por eleição de representantes, garantia a todos a participação no governo, e os que dele participavam tinham o direito de exprimir, discutir e defender em público suas opiniões sobre as decisões que a cidade deveria tomar. Surgia, assim, a figura política do cidadão. (Nota: Devemos observar que estavam excluídos da cidadania o que os gregos chamavam de dependentes: mulheres, escravos, crianças e velhos. Também estavam excluídos os estrangeiros.) Ora, para conseguir que a sua opinião fosse aceita nas assembléias, o cidadão precisava saber falar e ser capaz de persuadir. Com isso, uma mudança profunda vai ocorrer na educação grega. Quando não havia democracia, mas dominavam as famílias aristocráticas, senhoras das terras, o poder lhes pertencia. Essas famílias, valendo-se dos dois grandes poetas gregos, Homero e Hesíodo, criaram um padrão de educação, próprio dos aristocratas. Esse padrão afirmava que o homem ideal ou perfeito era o guerreiro belo e bom. Belo: seu corpo era formado pela ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra, imitando os heróis da guerra de Tróia (Aquiles, Heitor, Ájax, Ulisses). Bom: seu espírito era formado escutando Homero e Hesíodo, aprendendo as virtudes admiradas pelos deuses e praticadas pelos heróis, a principal delas sendo a coragem diante da morte, na guerra. A virtude era a Arete (excelência e superioridade), própria dos melhores, os aristoi. Quando, porém, a democracia se instala e o poder vai sendo retirado dos aristocratas, esse ideal educativo ou pedagógico também vai sendo substituído por outro. O ideal da educação do Século de Péricles é a formação do cidadão. A Arete é a virtude cívica. Ora, qual é o momento em que o cidadão mais aparece e mais exerce sua cidadania? Quando opina, discute, delibera e vota nas assembléias. Assim, a nova educação estabelece como padrão ideal a formação do bom orador, isto é, aquele que saiba falar em público e persuadir os outros na política. Para dar aos jovens essa educação, substituindo a educação antiga dos poetas, surgiram, na Grécia, os sofistas, que são os primeiros filósofos do período socrático. Os sofistas mais importantes foram: Protágoras de Abdera, Górgias de Leontini e Isócrates de Atenas. Que diziam e faziam os sofistas? Diziam que os ensinamentos dos filósofos cosmologistas estavam repletos de erros e contradições e que não tinham utilidade para a vida da polis. Apresentavam-se como mestres de oratória ou de retórica, afirmando ser possível ensinar aos jovens tal arte para que fossem bons cidadãos. Que arte era esta? A arte da persuasão. Os sofistas ensinavam técnicas de persuasão para os jovens, que aprendiam a defender a posição ou opinião A, depois a posição ou opinião contrária, não-A, de modo que, numa assembléia, soubessem ter fortes argumentos a favor ou contra uma opinião e ganhassem a discussão. O filósofo Sócrates, considerado o patrono da Filosofia, rebelou-se contra os sofistas, dizendo que não eram filósofos, pois não tinham amor pela sabedoria nem respeito pela verdade, defendendo qualquer idéia, se isso fosse vantajoso. Corrompiam o espírito dos jovens, pois faziam o erro e a mentira valer tanto quanto a verdade. Como homem de seu tempo, Sócrates concordava com os sofistas em um ponto: por um lado, a educação antiga do guerreiro belo e bom já não atendia às exigências da sociedade grega, e, por outro lado, os filósofos cosmologistas defendiam idéias tão contrárias entre si que também não eram uma fonte segura para o conhecimento verdadeiro. (Nota: Historicamente, há dificuldade para conhecer o pensamento dos grandes sofistas porque não possuímos seus textos. Restaram fragmentos apenas. Por isso, nós os conhecemos pelo que deles disseram seus adversários - Platão, Xenofonte, Aristóteles - e não temos como saber se estes foram justos com aqueles. Os historiadores mais recentes consideram os sofistas verdadeiros representantes do espírito democrático, isto é, da pluralidade conflituosa de opiniões e interesses, enquanto seus adversários seriam partidários de uma política aristocrática, na qual somente algumas opiniões e interesses teriam o direito para valer para o restante da sociedade.) Discordando dos antigos poetas, dos antigos filósofos e dos sofistas, o que propunha Sócrates? Propunha que, antes de querer conhecer a Natureza e antes de querer persuadir os outros, cada um deveria, primeiro e antes de tudo, conhecer-se a si mesmo. A expressão ―conhece-te a ti mesmo‖ que estava gravada no pórtico do templo deApolo, patrono grego da sabedoria, tornou-se a divisa de Sócrates. Por fazer do autoconhecimento ou do conhecimento que os homens têm de simesmos a condição de todos os outros conhecimentos verdadeiros, é que se diz que o período socrático é antropológico, isto é, voltado para o conhecimento do homem, particularmente de seu espírito e de sua capacidade para conhecer a verdade. O retrato que a história da Filosofia possui de Sócrates foi traçado por seu mais importante aluno e discípulo, o filósofo ateniense Platão. Que retrato Platão nos deixa de seu mestre, Sócrates? O de um homem que andava pelas ruas e praças de Atenas, pelo mercado e pela assembléia indagando a cada um: ―Você sabe o que é isso que você está dizendo?‖, ―Você sabe o que é isso em que você acredita?‖, ―Você acha que está conhecendo realmente aquilo em que acredita, aquilo em que está pensando, aquilo que está dizendo?‖, ―Você diz‖, falava Sócrates, ―que a coragem é importante, mas: o que é a coragem? Você acredita que a justiça é importante, mas: o que é a justiça? Você diz que ama as coisas e as pessoas belas, mas o que é a beleza? Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você tem, mas: o que é a amizade?‖ Sócrates fazia perguntas sobre as idéias, sobre os valores nos quais os gregos acreditavam e que julgavam conhecer. Suas perguntas deixavam os interlocutores embaraçados, irritados, curiosos, pois, quando tentavam responder ao célebre ―o que é?‖, descobriam, surpresos, que não sabiam responder e que nunca tinham pensado em suas crenças, seus valores e suas idéias. Mas o pior não era isso. O pior é que as pessoas esperavam que Sócrates respondesse por elas ou para elas, que soubesse as respostas às perguntas, como os sofistas pareciam saber, mas Sócrates, para desconcerto geral, dizia: ―Eu também não sei, por isso estou perguntando ‖. Donde a famosa expressão atribuída a ele: “Sei que nada sei”. A consciência da própria ignorância é o começo da Filosofia. O que procurava Sócrates? Procurava a definição daquilo que uma coisa, uma idéia, um valor é verdadeiramente. Procurava a essência verdadeira da coisa, da idéia, do valor. Procurava o conceito e não a mera opinião que temos de nós mesmos, das coisas, das idéias e dos valores. Qual a diferença entre uma opinião e um conceito? A opinião varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época para época. É instável, mutável, depende de cada um, de seus gostos e preferências. O conceito, ao contrário, é uma verdade intemporal, universal e necessária que o pensamento descobre, mostrando que é a essência universal, intemporal e necessária de alguma coisa. Por isso, Sócrates não perguntava se tal ou qual coisa era bela - pois nossa opinião sobre ela pode variar - e sim: O que é a beleza? Qual é a essência ou o conceito do belo? Do justo? Do amor? Da amizade? Sócrates perguntava: Que razões rigorosas você possui para dizer o que diz e para pensar o que pensa? Qual é o fundamento racional daquilo que você fala e pensa? Ora, as perguntas de Sócrates se referiam a idéias, valores, práticas e comportamentos que os atenienses julgavam certos e verdadeiros em si mesmos e por si mesmos. Ao fazer suas perguntas e suscitar dúvidas, Sócrates os fazia pensar não só sobre si mesmos, mas também sobre a polis. Aquilo que parecia evidente acabava sendo percebido como duvidoso e incerto. Sabemos que os poderosos têm medo do pensamento, pois o poder é mais forte se ninguém pensar, se todo mundo aceitar as coisas como elas são, ou melhor, como nos dizem e nos fazem acreditar que elas são. Para os poderosos de Atenas, Sócrates tornara-se um perigo, pois fazia a juventude pensar. Por isso, eles o acusaram de desrespeitar os deuses, corromper os jovens e violar as leis. Levado perante a assembléia, Sócrates não se defendeu e foi condenado a tomar um veneno - a cicuta - e obrigado a suicidar-se. Por que Sócrates não se defendeu? ―Porque ‖, dizia ele, ―se eu me defender, estarei aceitando as acusações, e eu não as aceito. Se eu me defender, o que os juízes vão exigir de mim? Que eu pare de filosofar. Mas eu prefiro a morte a ter que renunciar à Filosofia‖. O julgamento e a morte de Sócrates são narrados por Platão numa obra intitulada Apologia de Sócrates, isto é, a defesa de Sócrates, feita por seus discípulos, contra Atenas. Sócrates nunca escreveu. O que sabemos de seus pensamentos encontra-se nas obras de seus vários discípulos, e Platão foi o mais importante deles. Se reunirmos o que esse filósofo escreveu sobre os sofistas e sobre Sócrates, além da exposição de suas próprias idéias, poderemos apresentar como características gerais do período socrático: ? A Filosofia se volta para as questões humanas no plano da ação, dos comportamentos, das idéias, das crenças, dos valores e, portanto, se preocupa com as questões morais e políticas. ? O ponto de partida da Filosofia é a confiança no pensamento ou no homem como um ser racional, capaz de conhecer-se a si mesmo e, portanto, capaz de reflexão. Reflexão é a volta que o pensamento faz sobre si mesmo para conhecerse; é a consciência conhecendo-se a si mesma como capacidade para conhecer as coisas, alcançando o conceito ou a essência delas. ? Como se trata de conhecer a capacidade de conhecimento do homem, a preocupação se volta para estabelecer procedimentos que nos garantam que encontramos a verdade, isto é, o pensamento deve oferecer a si mesmo caminhos próprios, critérios próprios e meios próprios para saber o que é o verdadeiro e como alcançá-lo em tudo o que investiguemos. ? A Filosofia está voltada para a definição das virtudes morais e das virtudes políticas, tendo como objeto central de suas investigações a moral e a política, isto é, as idéias e práticas que norteiam os comportamentos dos seres humanos tanto como indivíduos quanto como cidadãos. ? Cabe à Filosofia, portanto, encontrar a definição, o conceito ou a essência dessas virtudes, para além da variedade das opiniões, para além da multiplicidade das opiniões contrárias e diferentes. As perguntas filosóficas se referem, assim, a valores como a justiça, a coragem, a amizade, a piedade, o amor, a beleza, a temperança, a prudência, etc., que constituem os ideais do sábio e do verdadeiro cidadão. ? É feita, pela primeira vez, uma separação radical entre, de um lado a opinião e as imagens das coisas, trazidas pelos nossos órgãos dos sentidos, nossos hábitos, pelas tradições, pelos interesses, e, de outro lado, as idéias. As idéias se referem à essência íntima, invisível, verdadeira das coisas e só podem ser alcançadas pelo pensamento puro, que afasta os dados sensoriais, os hábitos recebidos, os preconceitos, as opiniões. ? A reflexão e o trabalho do pensamento são tomados como uma purificação intelectual, que permite ao espírito humano conhecer a verdade invisível, imutável, universal e necessária. ? A opinião, as percepções e imagens sensoriais são consideradas falsas, mentirosas, mutáveis, inconsistentes, contraditórias, devendo ser abandonadas para que o pensamento siga seu caminho próprio no conhecimento verdadeiro. ? A diferença entre os sofistas, de um lado, e Sócrates e Platão, de outro, é dada pelo fato de que os sofistas aceitam a validade das opiniões e das percepções sensoriais e trabalham com elas para produzir argumentos de persuasão, enquanto Sócrates e Platão consideram as opiniões e as percepções sensoriais, ou imagens das coisas, como fonte de erro, mentira e falsidade, formas imperfeitas do conhecimento que nunca alcançam a verdade plena da realidade. O mito da caverna Imaginemos uma caverna subterrânea onde, desde a infância, geração após geração, seres humanos estão aprisionados. Suas pernas e seus pescoços estão algemados de tal modo que são forçados a permanecer sempre no mesmo lugar e a olhar apenas para frente, não podendo girar a cabeça nem para trás nem para os lados. A entrada da caverna permite que alguma luz exterior ali penetre, de modo que se possa, na semi-obscuridade, enxergar o que se passa no interior. A luz que ali entra provém de uma imensa e alta fogueira externa. Entre ela e os prisioneiros - no exterior, portanto - há um caminho ascendente ao longo do qual foi erguida uma mureta, como se fosse a parte fronteira de um palco de marionetes. Ao longo dessa mureta-palco, homens transportam estatuetas de todo tipo, com figuras de seres humanos, animais e todas as coisas. Por causa da luz da fogueira e da posição ocupada por ela, os prisioneiros enxergam na parede do fundo da caverna as sombras das estatuetas transportadas, mas sem poderem ver as próprias estatuetas, nem os homens que as transportam. Como jamais viram outra coisa, os prisioneiros imaginam que as sombras vistas são as próprias coisas. Ou seja, não podem saber que são sombras, nem podem saber que são imagens (estatuetas de coisas), nem que há outros seres humanos reais fora da caverna. Também não podem saber que enxergam porque há a fogueira e a luz no exterior e imaginam que toda luminosidade possível é a que reina na caverna. Que aconteceria, indaga Platão, se alguém libertasse os prisioneiros? Que faria um prisioneiro libertado? Em primeiro lugar, olharia toda a caverna, veria os outros seres humanos, a mureta, as estatuetas e a fogueira. Embora dolorido pelos anos de imobilidade, começaria a caminhar, dirigi ndo-se à entrada da caverna e, deparando com o caminho ascendente, nele adentraria. Num primeiro momento, ficaria completamente cego, pois a fogueira na verdade é a luz do sol e ele ficaria inteiramente ofuscado por ela. Depois, acostumando-se com a claridade, veria os homens que transportam as estatuetas e, prosseguindo no caminho, enxergaria as próprias coisas, descobrindo que, durante toda sua vida, não vira senão sombras de imagens (as sombras das estatuetas projetadas no fundo da caverna) e que somente agora está contemplando a própria realidade. Libertado e conhecedor do mundo, o prisioneiro regressaria à caverna, ficaria desnorteado pela escuridão, contaria aos outros o que viu e tentaria libertá-los. Que lhe aconteceria nesse retorno? Os demais prisioneiros zombariam dele, não acreditariam em suas palavras e, se não conseguissem silenciá-lo com suas caçoadas, tentariam fazê-lo espancando-o e, se mesmo assim, ele teimasse em afirmar o que viu e os convidasse a sair da caverna, certamente acabariam por matá-lo. Mas, quem sabe, alguns poderiam ouvi-lo e, contra a vontade dos demais, também decidissem sair da caverna rumo à realidade. O que é a caverna? O mundo em que vivemos. Que são as sombras das estatuetas? As coisas materiais e sensoriais que percebemos. Quem é o prisioneiro que se liberta e sai da caverna? O filósofo. O que é a luz exterior do sol? A luz da verdade. O que é o mundo exterior? O mundo das idéias verdadeiras ou da verdadeira realidade. Qual o instrumento que liberta o filósofo e com o qual ele deseja libertar os outros prisioneiros? A dialética. O que é a visão do mundo real iluminado? A Filosofia. Por que os prisioneiros zombam, espancam e matam o filósofo (Platão está se referindo à condenação de Sócrates à morte pela assembléia ateniense)? Porque imaginam que o mundo sensível é o mundo real e o único verdadeiro. A preocupação com o conhecimento O conhecimento e os primeiros filósofos Quando estudamos o nascimento da Filosofia na Grécia, vimos que os primeiros filósofos – os pré-socráticos – dedicavam-se a um conjunto de indagações principais: Por que e como as coisas existem? O que é o mundo? Qual a origem da Natureza e quais as causas de sua transformação? Essas indagações colocavam no centro a pergunta: o que é o Ser? Os primeiros filósofos ocupavam-se com a origem e a ordem do mundo, o kosmos, e a filosofia nascente era uma cosmologia. Pouco a pouco, passou-se a indagar o que era o próprio kosmos, qual era o fundo eterno e imutável que permanecia sob a multiplicidade e transformação das coisas. Qual era e o que era o ser subjacente a todos os seres. Com isto, a filosofia nascente tornou-se ontologia, isto é, conhecimento ou saber sobre o ser. Por esse mesmo motivo, considera-se que os primeiros filósofos não tinham uma preocupação principal com o conhecimento enquanto conhecimento, isto é, não indagavam se podemos ou não conhecer o Ser, mas partiam da pressuposição de que o podemos conhecer, pois a verdade, sendo aletheia, isto é, presença e manifestação das coisas para os nossos sentidos e para o nosso pensamento, significa que o Ser está manifesto e presente para nós e, portanto, nós o podemos conhecer. Todavia, a opinião de que os primeiros filósofos não se preocupavam com nossa capacidade e possibilidade de conhecimento não é exata. Para tanto, basta levarmos em conta o fato de afirmarem que a realidade (o Ser, a Natureza) é racional e que a podemos conhecer porque também somos racionais; nossa razão é parte da racionalidade do mundo, dela participando. Heráclito, Parmênides e Demócrito Alguns exemplos indicam a existência da preocupação dos primeiros filósofos com o conhecimento e, aqui, tomaremos três: Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eléia e Demócrito de Abdera. Heráclito de Éfeso considerava a Natureza (o mundo, a realidade) como um ―fluxo perpétuo ‖, o escoamento contínuo dos seres em mudança perpétua. Dizia: ―Não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque as águas nunca são as mesmas e nós nunca somos os mesmos‖. Comparava o mundo à chama de uma vela que queima sem cessar, transformando a cera em fogo, o fogo em fumaça e a fumaça em ar. O dia se torna noite, o verão se torna outono, o novo fica velho, o quente esfria, o úmido seca, tudo se transforma no seu contrário. A realidade, para Heráclito, é a harmonia dos contrários, que não cessam de se transformar uns nos outros. Se tudo não cessa de se transformar perenemente, como explicar que nossa percepção nos ofereça as coisas como se fossem estáveis, duradouras e permanentes? Com essa pergunta o filósofo indicava a diferença entre o conhecimento que nossos sentidos nos oferecem e o conhecimento que nosso pensamento alcança, pois nossos sentidos nos oferecem a imagem da estabilidade e nosso pensamento alcança a verdade como mudança contínua. Parmênides de Eléia colocava-se na posição oposta à de Heráclito. Dizia que só podemos pensar sobre aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, isto é, que o pensamento não pode pensar sobre as coisas que são e não são, que ora são de um modo e ora são de outro, que são contrárias a si mesmas e contraditórias. Conhecer é alcançar o idêntico, imutável. Nossos sentidos nos oferecem a imagem de um mundo em incessante mudança, num fluxo perpétuo, onde nada permanece idêntico a si mesmo: o dia vira noite, o inverno vira primavera, o doce se torna amargo, o pequeno vira grande, o grande diminui, o doce amarga, o quente esfria, o frio se aquece, o líquido vira vapor ou vira sólido. Como pensar o que é e o que não é ao mesmo tempo? Como pensar o instável? Como pensar o que se torna oposto e contrário a si mesmo? Não é possível, dizia Parmênides. Pensar é dizer o que um ser é em sua identidade profunda e permanente. Com isso, afirmava o mesmo que Heráclito – perceber e pensar são diferentes -, mas o dizia no sentido oposto ao de Heráclito, isto é, percebemos mudanças impensáveis e devemos pensar identidades imutáveis. Demócrito de Abdera desenvolveu uma teoria sobre o Ser ou sobre a Natureza conhecida com o nome de atomismo: a realidade é constituída por átomos. Os seres surgem por composição dos átomos, transformam-se por novos arranjos dos átomos e morrem por separação dos átomos. Os átomos, para Demócrito, possuem formas e consistências diferentes (redondos, triangulares, lisos, duros, moles, rugosos, pontiagudos, etc.) e essas diferenças e os diferentes modos de combinação entre eles produzem a variedade de seres, suas mudanças e desaparições. Através de nossos órgãos dos sentidos, percebemos o quente e o frio, o doce e o amargo, o seco e o úmido, o grande e o pequeno, o duro e o mole, sabores, odores, texturas, o agradável e o desagradável, sentimos prazer e dor, porque percebemos os efeitos das combinações dos átomos que, em si mesmos, não possuem tais qualidades. Somente o pensamento pode conhecer os átomos, que são invisíveis para nossa percepção sensorial. Dessa maneira, Demócrito concordava com Heráclito e Parmênides em que há uma diferença entre o que conhecemos através de nossa percepção e o que conhecemos apenas pelo pensamento; porém, diversamente dos outros dois filósofos, não considerava a percepção ilusória, mas apenas um efeito da realidade sobre nós. O conhecimento sensorial ou sensível é tão verdadeiro quanto aquilo que o pensamento puro alcança, embora de uma verdade diferente e menos profunda ou menos relevante do que aquela alcançada pelo puro pensamento. Esses três exemplos nos mostram que, desde os seus começos, a Filosofia preocupouse com o problema do conhecimento, pois sempre esteve voltada para a questão do verdadeiro. Desde o início, os filósofos se deram conta de que nosso pensamento parece seguir certas leis ou regras para conhecer as coisas e que há uma diferença entre perceber e pensar. Pensamos a partir do que percebemos ou pensamos negando o que percebemos? O pensamento continua, nega ou corrige a percepção? O modo como os seres nos aparecem é o modo como os seres realmente são? Sócrates e os sofistas Preocupações como essas levaram, na Grécia clássica, a duas atitudes filosóficas: a dos sofistas e a de Sócrates – com eles, os problemas do conhecimento tornaram-se centrais. Os sofistas, diante da pluralidade e do antagonismo das filosofias anteriores, ou dos conflitos entre as várias ontologias, concluíram que não podemos conhecer o Ser, mas só podemos ter opiniões subjetivas sobre a realidade. Por isso, para se relacionarem com o mundo e com os outros humanos, os homens devem valer-se de um outro instrumento – a linguagem – para persuadir os outros de suas próprias idéias e opiniões. A verdade é uma questão de opinião e de persuasão, e a linguagem é mais importante do que a percepção e o pensamento. Em contrapartida, Sócrates, distanciando-se dos primeiros filósofos e opondo-se aos sofistas, afirmava que a verdade pode ser conhecida, mas primeiro devemos afastar as ilusões dos sentidos e as das palavras ou das opiniões e alcançar a verdade apenas pelo pensamento. Os sentidos nos dão as aparências das coisas e as palavras, meras opiniões sobre elas. Conhecer é passar da aparência à essência, da opinião ao conceito, do ponto de vista individual à idéia universal de cada um dos seres e de cada um dos valores da vida moral e política. Platão e Aristóteles Sócrates fez a Filosofia preocupar-se com nossa possibilidade de conhecer e indagar quais as causas das ilusões, dos erros e da mentira. No esforço para definir as formas de conhecer e as diferenças entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão, Platão e Aristóteles introduziram na Filosofia a idéia de que existem diferentes maneiras de conhecer ou graus de conhecimento e que esses graus se distinguem pela ausência ou presença do verdadeiro, pela ausência ou presença do falso. Platão distingue quatro formas ou graus de conhecimento, que vão do grau inferior ao superior: crença, opinião, raciocínio e intuição intelectual. Para ele, os dois primeiros graus devem ser afastados da Filosofia – são conhecimentos ilusórios ou das aparências, como os dos prisioneiros da caverna – e somente os dois últimos devem ser considerados válidos. O raciocínio treina e exercita nosso pensamento, preparando-o para uma purificação intelectual que lhe permitirá alcançar uma intuição das idéias ou das essências que formam a realidade ou que constituem o Ser. Para Platão, o primeiro exemplo do conhecimento puramente intelectual e perfeito encontra-se na matemática, cujas idéias nada devem aos órgãos dos sentidos e não se reduzem a meras opiniões subjetivas. O conhecimento matemático seria a melhor preparação do pensamento para chegar à intuição intelectual das idéias verdadeiras, que constituem a verdadeira realidade. Platão diferencia e separa radicalmente duas formas de conhecimento: o conhecimento sensível (crença e opinião) e o conhecimento intelectual (raciocínio e intuição) afirmando que somente o segundo alcança o Ser e a verdade. O conhecimento sensível alcança a mera aparência das coisas, o conhecimento intelectual alcança a essência das coisas, as idéias. Aristóteles distingue sete formas ou graus de conhecimento: sensação, percepção, imaginação, memória, raciocínio e intuição. Para ele, ao contrário de Platão, nosso conhecimento vai sendo formado e enriquecido por acumulação das informações trazidas por todos os graus, de modo que, em lugar de uma ruptura entre o conhecimento sensível e o intelectual, Aristóteles estabelece uma continuidade entre eles. A separação se dá entre os seis primeiros graus e o último, ou a intuição, que é puramente intelectual ou um ato do pensamento puro. Essa separação, porém, não significa que os outros graus ofereçam conhecimentos ilusórios ou falsos e sim que oferecem tipos de conhecimentos diferentes, que vão de um grau menor a um grau maior de verdade. Em cada um deles temos acesso a um aspecto do Ser ou da realidade e, na intuição intelectual, temos o conhecimento pleno e total da realidade ou dos princípios da realidade plena e total, aquilo que Aristóteles chamava de ―o Ser enquanto Ser‖. A diferença entre os seis primeiros graus e o último decorre da diferença do objeto do conhecimento, isto é, os seis primeiros graus conhecem objetos que se oferecem a nós na sensação, na imaginação, no raciocínio, enquanto o sétimo lida com um objeto que só pode ser alcançado pelo pensamento puro. Princípios gerais Com os filósofos gregos, estabeleceram-se alguns princípios gerais do conhecimento verdadeiro: ? as fontes e as formas do conhecimento: sensação, percepção, imaginação, memória, linguage m, raciocínio e intuição intelectual; ? a distinção entre o conhecimento sensível e o conhecimento intelectual; ? o papel da linguagem no conhecimento; ? a diferença entre opinião e saber; ? a diferença entre aparência e essência; ? a definição dos princípios do pensamento verdadeiro (identidade, não contradição, terceiro excluído, causalidade), da forma do conhecimento verdadeiro (idéias, conceitos e juízos) e dos procedimentos para alcançar o conhecimento verdadeiro (indução, dedução, intuição); ? a distinção dos campos do conhecimento verdadeiro, sistematizados por Aristóteles em três ramos: teorético (referente aos seres que apenas podemos contemplar ou observar, sem agir sobre eles ou neles interferir), prático (referente às ações humanas: ética, política e economia) e técnico (referente à fabricação e ao trabalho humano, que pode interferir no curso da Natureza, criar instrumentos ou artefatos: medicina, artesanato, arquitetura, poesia, retórica, etc.). Para os gregos, a realidade é a Natureza e dela fazem parte os humanos e as instituições humanas. Por sua participação na Natureza, os humanos podem conhecê-la, pois são feitos dos mesmos elementos que ela e participam da mesma inteligência que a habita e dirige. O poeta alemão Goethe criou estes versos, que exprimem como os antigos concebiam o conhecimento: Se os olhos não fossem solares Jamais o Sol nós veríamos; Se em nós não estivesse a própria força divina, Como o divino sentiríamos? O intelecto humano conhece a inteligibilidade do mundo, alcança a racionalidade do real e pode pensar a realidade porque nós e ela somos feitos da mesma maneira, com os mesmos elementos e com a mesma inteligência. Os filósofos modernos e o nascimento da teoria do conhecimento Quando se diz que a teoria do conhecimento tornou-se uma disciplina específica da Filosofia somente com os filósofos modernos (a partir do século XVII) não se pretende dizer que antes deles o problema do conhecimento não havia ocupado outros filósofos, e sim que, para os modernos, a questão do conhecimento foi considerada anterior à da ontologia e précondição ou pré-requisito para a Filosofia e as ciências. Por que essa mudança de perspectiva dos gregos para os modernos? Porque entre eles instala-se o cristianismo, trazendo problemas que os antigos filósofos desconheciam. A perspectiva cristã introduziu algumas distinções que romperam com a idéia grega de uma participação direta e harmoniosa entre o nosso intelecto e a verdade, nosso ser e o mundo. O cristianismo fez distinção entre fé e razão, verdades reveladas e verdades racionais, matéria e espírito, corpo e alma; afirmou que o erro e a ilusão são parte da natureza humana em decorrência do caráter pervertido de nossa vontade, após o pecado original. Em consequência, a Filosofia precisou enfrentar três problemas no vos: 1. Como, sendo seres decaídos e pervertidos, podemos conhecer a verdade? 2. Sendo nossa natureza dupla (matéria e espírito), como nossa inteligência pode conhecer o que é diferente dela? Isto é, como seres corporais podem conhecer o incorporal (Deus) e como seres dotados de alma incorpórea podem conhecer o corpóreo (mundo)? 3. Os filósofos antigos consideravam que éramos entes participantes de todas as formas de realidade: por nosso corpo, participamos da Natureza; por nossa alma, participamos da Inteligência divina. O cristianismo, ao introduzir a noção de pecado original, introduziu a separação radical entre os humanos (pervertidos e finitos) e a divindade (perfeita e infinita). Com isso, fez surgir a pergunta: como o finito (humano) pode conhecer a verdade (infinita e divina)? Eis porque, durante toda a Idade Média, a fé tornou-se central para a Filosofia, pois era através dela que essas perguntas eram respondidas. Auxiliada pela graça divina, a fé iluminava nosso intelecto e guiava nossa vontade, permitindo à nossa razão o conhecimento do que está ao seu alcance, ao mesmo tempo em que nossa alma recebia os mistérios da revelação. A fé nos fazia saber (mesmo que não pudéssemos compreender como isso era possível) que, pela vontade soberana de Deus, era concedido à nossa alma imaterial conhecer as coisas materiais. Os filósofos modernos, porém, não aceitaram essas respostas e por esse motivo a questão do conhecimento tornou-se central para eles. Os gregos se surpreendiam que pudesse haver erro, ilusão e mentira. Como a verdade – aletheia – era concebida como presença e manifestação do verdadeiro aos nossos sentidos ou ao nosso intelecto, isto é, como presença do Ser à nossa experiência sensível ou ao puro pensamento, a pergunta filosófica só podia ser: Como é possível o erro ou a ilusão? Ou seja, como é possível ver o que não é, dizer o que não é, pensar o que não é? Para os modernos, a situação é exatamente contrária. Se a verdade depende da revelação e da vontade divinas, e se nosso intelecto foi pervertido pela nossa vontade pecadora, como podemos conhecer a verdade? Se a verdade depender da fé e se depender da fraqueza da nossa vontade, como nossa razão poderá conhecê-la? O cristianismo, particularmente com santo Agostinho, trouxe a idéia de que cada ser humano é uma pessoa. Essa idéia vem do Direito Romano, que define a pessoa como um sujeito de direitos e de deveres. Se somos pessoas, somos responsáveis por nossos atos e pensamentos. Nossa pessoa é nossa consciência, que é nossa alma dotada de vontade, imaginação, memória e inteligência. A vontade é livre e, aprisionada num corpo passional e fraco, pode mergulhar nossa alma na ilusão e no erro. Estar no erro ou na verdade dependerá, portanto, de nós mesmos e por isso precisamos saber se podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal conhecimento é possível. Os primeiros filósofos cristãos e os medievais afirmavam que podemos conhecer a verdade, desde que a razão não contradiga a fé e se submeta a ela no tocante às verdades últimas e principais. A primeira tarefa que os modernos se deram foi a de separar fé de razão, considerando cada uma delas destinada a conhecimentos diferentes e sem qualquer relação entre si. A segunda tarefa foi a de explicar como a almaconsciência, embora diferente dos corpos, pode conhecê-los. Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa intelectualmente por meio das idéias e estas são imateriais como a própria alma. A terceira tarefa foi a de explicar como a razão e o pensamento podem tornar-se mais fortes do que a vontade e controlá-la para que evite o erro. O problema do conhecimento torna-se, portanto, crucial e a Filosofia precisa começar pelo exame da capacidade humana de conhecer, pelo entendimento ou sujeito do conhecimento. A teoria do conhecimento volta-se para a relação entre o pensamento e as coisas, a consciência (interior) e a realidade (exterior), o entendimento e a realidade; em suma, o sujeito e o objeto do conhecimento. Os dois filósofos que iniciam o exame da capacidade humana para o erro e a verdade são o inglês Francis Bacon e o francês René Descartes. O filósofo que propõe, pela primeira vez, uma teoria do conhecimento propriamente dita é o inglês John Locke. A partir do século XVII, portanto, a teoria do conhecimento torna-se uma disciplina central da Filosofia. Bacon e Descartes Os gregos indagavam: como o erro é possível? Os modernos perguntaram: como a verdade é possível? Para os gregos, a verdade era aletheia, para os modernos, veritas. Em outras palavras, para os modernos trata-se de compreender e explicar como os relatos mentais – nossas idéias – correspondem ao que se passa verdadeiramente na realidade. Apesar dessas diferenças, os filósofos retomaram o modo de trabalhar filosoficamente proposto por Sócrates, Platão e Aristóteles, qual seja, começar pelo exame das opiniões contrárias e ilusórias para ultrapassálas em direção à verdade. Antes de abordar o conhecimento verdadeiro, Bacon e Descartes examinaram exaustivamente as causas e as formas do erro, inaugurando um estilo filosófico que permanecerá na Filosofia, isto é, a análise dos preconceitos e do senso comum. Bacon elaborou uma teoria conhecida como a crítica dos ídolos (a palavra ídolo vem do grego eidolon e significa imagem). Descartes, como já mencionamos, elaborou um método de análise conhecido como dúvida metódica. De acordo com Bacon, existem quatro tipos de ídolos ou de imagens que formam opiniões cristalizadas e preconceitos, que impedem o conhecimento da verdade: 1. ídolos da caverna: as opiniões que se formam em nós por erros e defeitos de nossos órgãos dos sentidos. São os mais fáceis de corrigir por nosso intelecto; 2. ídolos do fórum: são as opiniões que se formam em nós como conseqüência da linguagem e de nossas relações com os outros. São difíceis de vencer, mas o intelecto tem poder sobre eles; 3. ídolos do teatro: são as opiniões formadas em nós em decorrência dos poderes das autoridades que nos impõem seus pontos de vista e os transformam em decretos e leis inquestionáveis. Só podem ser refeitos se houver uma mudança social e política; 4. ídolos da tribo: são as opiniões que se formam em nós em decorrência de nossa natureza humana; esses ídolos são próprios da espécie humana e só podem ser vencidos se houver uma reforma da própria natureza humana. Bacon acreditava que o avanço dos conhecimentos e das técnicas, as mudanças sociais e políticas e o desenvolvimento das ciências e da Filosofia propiciariam uma grande reforma do conhecimento humano, que seria também uma grande reforma na vida humana. Tanto assim que, ao lado de suas obras filosóficas, escreveu uma obra filosófico-política, a Nova Atlântida, na qual descreve e narra uma sociedade ideal e perfeita, nascida do conhecimento verdadeiro e do desenvolvimento das técnicas. Descartes localizava a origem do erro em duas atitudes que chamou de atitudes infantis: 1. a prevenção, que é a facilidade com que nosso espírito se deixa levar pelas opiniões e idéias alheias, sem se preocupar em verificar se são ou não verdadeiras. São as opiniões que se cristalizam em nós sob a forma de preconceitos (colocados em nós por pais, professores, livros, autoridades) e que escravizam nosso pensamento, impedindo-nos de pensar e de investigar; 2. a precipitação, que é a facilidade e a velocidade com que nossa vontade nos faz emitir juízos sobre as coisas antes de verificarmos se nossas idéias são ou não são verdadeiras. São opiniões que emitimos em conseqüência de nossa vontade ser mais forte e poderosa do que nosso intelecto. Originam-se no conhecimento sensível, na imaginação, na linguagem e na memória. Como Bacon, Descartes também está convencido de que é possível vencer esses efeitos, graças a uma reforma do entendimento e das ciências. (Descartes não pensa na necessidade de mudanças sociais e políticas, diferindo de Bacon nesse aspecto.) Essa reforma pode ser feita pelo sujeito do conhecimento, se este decidir e deliberar pela necessidade de encontrar fundamentos seguros para o saber. Para isso Descartes criou um procedimento, a dúvida metódica, pela qual o sujeito do conhecimento, analisando cada um de seus conhecimentos, conhece e avalia as fontes e as causas de cada um, a forma e o conteúdo de cada um, a falsidade e a verdade de cada um e encontra meios para livrar-se de tudo quanto seja duvidoso perante o pensamento. Ao mesmo tempo, o pensamento oferece ao espírito um conjunto de regras que deverão ser obedecidas para que um conhecimento seja considerado verdadeiro. Para Descartes, o conhecimento sensível (isto é, sensação, percepção, imaginação, memória e linguagem) é a causa do erro e deve ser afastado. O conhecimento verdadeiro é puramente intelectual, parte das idéias inatas e controla (por meio de regras) as investigações filosóficas, científicas e técnicas. Locke Locke é o iniciador da teoria do conhecimento propriamente dita porque se propõe a analisar cada uma das formas de conhecimento que possuímos, a origem de nossas idéias e nossos discursos, a finalidade das teorias e as capacidades do sujeito cognoscente relacionadas com os objetos que ele pode conhecer. Seguindo a trilha que fora aberta por Aristóteles, Locke também distingue graus de conhecimento, começando pelas sensações até chegar ao pensamento. Comparemos o que escreveu Aristóteles, no início da Metafísica, e o que afirmou Locke, no início do Ensaio sobre o entendimento humano. Aristóteles escreveu: Todos os homens têm, por natureza, o desejo de conhecer. O prazer causado pelas sensações é a prova disso, pois, mesmo fora de qualquer utilidade, as sensações nos agradam por si mesmas e, mais do que todas as outras, as sensações visuais. Locke afirmou: Visto que o entendimento situa o homem acima dos outros seres sensíveis e dá-lhe toda vantagem e todo domínio que tem sobre eles, seu estudo consiste certamente num tópico que, por sua nobreza, é merecedor de nosso trabalho de investigá-lo. O entendimento, como o olho, que nos faz ver e perceber todas as outras coisas, não se observa a si mesmo; requer arte e esforço situá-lo à distância e fazê-lo seu próprio objeto. Assim como Aristóteles diferia de Platão, Locke difere de Descartes. Platão e Descartes afastam a experiência sensível ou o conhecimento sensível do conhecimento verdadeiro, que é puramente intelectual. Aristóteles e Locke consideram que o conhecimento se realiza por graus contínuos, partindo da sensação até chegar às idéias. Essa diferença de perspectiva estabelece as duas grandes orientações da teoria do conhecimento, conhecidas como racionalismo e empirismo. Para o racionalismo, a fonte do conhecimento verdadeiro é a razão operando por si mesma, sem o auxílio da experiência sensível e controlando a própria experiência sensível. Para o empirismo, a fonte de todo e qualquer conhecimento é a experiência sensível, responsável pelas idéias da razão e controlando o trabalho da própria razão. Essas diferenças, porém, não impedem que haja um elemento comum a todos os filósofos a partir da modernidade, qual seja, tomar o entendimento humano como objeto da investigação filosófica. Tornar o entendimento objeto para si próprio, tornar o sujeito do conhecimento objeto de conhecimento para si mesmo é a grande tarefa que a modernidade filosófica inaugura, ao desenvolver a teoria do conhecimento. Como se trata da volta do conhecimento sobre si mesmo para conhecer-se, ou do sujeito do conhecimento colocando-se como objeto para si mesmo, a teoria do conhecimento é a reflexão filosófica. TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM: http://bahiapsicosocial.com.ar/biblioteca/Convite%20%20Filosofia%20%20Marilena%20Chaui.pdf ÉMILE DURKHEIM Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca) Filloux, Jean-Claude. Émile Durkheim / Jean-Claude Filloux; tradução: Celso do Prado Ferraz de Carvalho, Miguel Henrique Russo. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 148 p.: il. – (Coleção Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-557-9 1. Durkheim, David Émile, 1858-1917. 2. Educação – Pensadores – História. I. Título. CDU 37 Sistema social e subsistema escolar Durkheim estudou essencialmente a ―socialização das jovens gerações‖ na escola, dentro do ―sistema escolar‖ – que, às vezes, chama de ―a máquina‖. Trata-se de um órgão que preenche uma função, mas que vai buscar sua significação nesse sistema global que é, por exemplo, uma sociedade nacional. A originalidade de Durkheim foi a de mostrar que, apesar desse ―subsistema‖ ser dependente do todo social, ele tem, mesmo assim, as características estruturais próprias a todo sistema social, o que lhe dá uma ―autonomia relativa‖ e, como todo sistema social, ele é simultaneamente submetido a forças de permanência e a forças de mudança: forças de permanência que têm sua fonte no sistema de conjunto e forças de mudança, em resposta às necessidades emergentes e que lhe são próprias. A abordagem durkheimiana do subsistema escolar e de sua evolução, a seu ver necessária, deve, portanto, ser compreendida em sua homologia com o modelo da dinâmica social que elaborou. Convém lembrar as grandes linhas do modelo durkheimiano. Neste, a noção de ―consciência coletiva‖ é central. Uma sociedade é feita de indivíduos que ―conseguem viver‖ juntos porque têm em comum valores e regras, parcialmente transmitidos pela escola. A sociedade, enquanto objeto construído pela sociologia, não é nem transcendente, nem imanente aos indivíduos: ela tem uma especificidade definida pelos parâmetros de integração (subordinação ao grupo) e de regulação (reconhecimento de regras que controlam os comportamentos individuais). Essa ―consciência coletiva‖ traduz-se em fenômenos coletivos, que vão do nível propriamente psíquico das representaçõescoletivas ao das instituições e ao de um substrato material (volume e densidade da população, vias de comunicação, edifícios etc.). Durkheim recorre à metáfora da ―cristalização‖, para designar essa presença da consciência coletiva em todos os setores da vida social. Aqui, é preciso particularizar dois pontos: de uma parte, os ―patamares‖ das representações e das instituições comportam aspectos tanto formalizados (ideologias constituídas, direito escrito), como não formalizados (representações efervescentes, costumes); de outra parte, existem elos de causalidade, tanto no sentido substrato-instituições-representações, como no sentido inverso: representaçõesinstituições-substrato. É esse modelo de análise que permite a Durkheim colocar a problemática da mudança: as representações coletivas novas que emergem tendem a traduzir-se em novas instituições, bastando para tanto que essas representações correspondam a novas necessidades sociais. Entra-se, então, em períodos nos quais devem ser resolvidos conflitos entre forças de estagnação e forças de evolução. Assim, a intensificação da divisão do trabalho nas sociedades modernas exige que se dê uma importância maior ao indivíduo, o que dá origem a ideologias ―individualistas‖, que, por sua vez, suscitam a emergência de instituições protetoras dos ―direitos humanos‖. Ora, segundo Durkheim, esse esquema geral vale também para o sistema escolar. O sociólogo da educação poderá identificar, na constituição da escola e em um dado momento da história, representações pedagógicas – algumas, formalizadas e outras, ―efervescentes‖ –, instituições e, sem dúvida, um substrato (a organização da classe, a estrutura do colégio). Essas três ―instâncias‖ estão evidentemente articuladas ao sistema da sociedade global, porém, têm uma autonomia relativa, na medida em que todo sistema responde a necessidades que lhe são próprias, – no caso, necessidades ―pedagógicas‖. A esse respeito, um texto de 1905, que trata do ensino secundário, é bastante significativo: ―Um sistema escolar, qualquer que seja, é formado por duas espécies de elementos. De um lado, há todo um conjunto de disposições definidas e estáveis, de métodos estabelecidos, ou seja, em uma palavra, de instituições; mas, ao mesmo tempo, dentro da máquina assim constituída, há ideias que a trabalham e que a solicitam para que mude. Visto do lado de fora, o ensino secundário apresenta-se a nós como um conjunto de estabelecimentos, cuja organização material e moral está determinada; mas, de outro lado, essa mesma organização abriga em si aspirações em busca de algo. Sob essa vida fixada, consolidada, há uma vida em movimento que, por estar mais escondida, nem por isso deve ser tratada com negligência.‖ (A Evolução e o Papel do Ensino Secundário na França, in Educação e sociologia, 1905, p. 122). Em seu curso, publicado com o título de A evolução pedagógica na França, Durkheim utiliza uma grande análise que mostra como a história dos ensinos secundário e superior desde a Idade Média está marcada por uma série de mudanças que correspondem, ao mesmo tempo, a uma evolução política e econômica, ao aparecimento de mentalidades e de necessidades novas e, na escala do sistema escolar afetado por essas mudanças, por novas aspirações pedagógicas parcialmente autônomas. O panorama proposto por Durkheim nesse curso mostra claramente que as ―renascenças pedagógicas‖ não refletem somente o contexto geral, mas ilustram também a forma pela qual a escola assume as necessidades emergentes, ainda não institucionalizadas, da sociedade política como um todo. É assim que os ―saberes escolares‖, que constituem, numa dada época, o ―conteúdo‖ do ensino, podem dar origem a ―categorias de pensamento‖, que, por sua vez, influenciam a evolução das representações coletivas de uma sociedade. Dinâmica social e pedagógica Se entendermos, com Durkheim, a pedagogia como sendo a teorização, implícita ou explícita, da prática educativa, coloca-se, então, a questão de saber qual poderá ser a contribuição da ciência da educação para a pedagogia. Mais precisamente, em que aspecto a sociologia da modernidade poderá influenciar não somente a análise do sistema educativo, mas também as pedagogias que nele são praticadas? O fato de que a sociedade moderna funda-se sobre uma industrialização e uma divisão crescentes das tarefas traz como consequência uma diferenciação cada vez maior dos papéis sociais, a especialização das funções sociais e, no fim, um risco de ruptura da ―solidariedade social‖. Esse risco deve ser contrabalançado, diz Durkheim, pelo desenvolvimento dos valores supremos, os que dizem respeito à legitimação dos direitos, à responsabilidade e à vocação dos atores sociais. Durkheim atual Por outro lado, a abordagem sócio-histórica adotada por Durkheim em A evolução pedagógica na França foi, de certa forma, retomada por historiadores, como Pierre Riché, que considera que essa obra guarda ainda toda a sua atualidade13. Mas, pode-se falar, de uma forma geral, da ―atualidade‖ de Durkheim, no duplo nível sociológico e pedagógico? Uma leitura atual dos textos de Durkheim remete, com toda a evidência, a interrogações surgidas no presente, particularmente as que se referem à educação moral. Sem dúvida, a confiança de Durkheim no desenvolvimento inelutável dos valores humanistas nas sociedades modernas pode, hoje, nos deixar perplexos,pois estamos confrontados a conflitos nos quais os direitoshumanos são desacatados, porém, o próprio fato de que Durheim formulou – implicitamente – o princípio de uma educação para os direitos humanos dá a seu pensamento uma atualidade incontestável. Num outro nível, poder-se-ia mostrar que ele orientou a pedagogia para uma tomada de consciência da importância da classe, do meio escolar, das atitudes do mestre no processo educativo: verdades ainda boas para serem ditas nos tempos atuais. Talvez também, as contradições internas do pensamento durkheimiano sobre a educação, apontadas por nós (e que Durkheim sabia assumir), notadamente no que se refere à problemática da ―autonomia da vontade‖, nos ensinem que a educação não é uma coisa simples e não pode se submeter a ideologias redutoras. TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4657.pdf PEDAGOGIA DA AUTONOMIA Saberes Necessários à Prática Educativa PAULO FREIRE Capítulo 1 1.3 - Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classes populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária - mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Porque não aproveitar a experiência que tem os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Porque não há lixões no coração dos bairros rios e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considerada em si demagógica e reveladora da má vontade de quem a faz. É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia. Porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Porque não estabelecer uma necessária "intimidade" entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Porque não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes elas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferí-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos. 1.4 - Ensinar exige criticidade Não há para mim, na diferença e na "distancia" entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente "rigorizando-se" na sua aproximação ao objeto, conota-se seus achados de maior exatidão. Na verdade, a curiosidade ingênua que, "desarmada", esta associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de qualidade mas não de essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao longo de minha experiência político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência das injustiças, é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou menos espantada diante de "não-eus", com que cientistas ou filósofos acadêmicos, "admiram" o mundo. Os cientistas e filósofos superam, porém, a ingenuidade da curiosidade do camponês e se tornam epistemologicamente curiosos. A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere e alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos. Como manifestação presente a experiência vital, a curiosidade humana vem sendo histórica e socialmente construída e reconstruída. Precisamente por que a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativa-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender "irracionalismos" decorrentes do ou produzidos por certo excesso de "racionalidade" de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrario é consideração de quem, de um lado, não diviniza a tecnologia, mas, de outro, não há diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa. 1.8 - Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática O pensar certo sabe, por exemplo, que não é partir dele como um dado dado, que se conforma a prática docente crítica, mas também que sem ele não se funda aquela. A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, "desarmada", indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito, a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. Este não é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura. Por isso, é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. É preciso, por outro lado, reinsistir em que a matriz do pensar ingênuo como a do crítico é a curiosidade mesma, característica do fenômeno vital. Neste sentido, indubitavelmente, é tão curioso o professor chamado leigo no interior de Pernambuco quanto o professor de Filosofia da Educação na Universidade A ou B. o de que se precisa é possibilitar, que, voltando-se sobre si mesma, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica. Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser tal modo concreto que quase se confunde com a prática. O seu "distanciamento" epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise e maior comunicabilidade exercer em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, que quanto mais me assumo como estou assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica. Não é possível a assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito também. Seria porém exagero idealista, afirma que a assunção, por exemplo, de que fumar ameaça minha vida, já significa deixar de fumar. Mas deixar de fumar passa, em algum sentido, pela assunção do risco que corro ao fumar. Por outro lado, a assunção se vai fazendo cada vez mais assunção na medida em que ela engendra novas opções, por isso mesmo em que ela provoca ruptura, decisão e novos compromissos. Quando assumo o mal ou os males que o cigarro me pode causar, movo-me no sentido de evitar os males. Decido, rompo, opto. Mas, é na prática de não fumar que a assunção do risco que corro por fumar se concretiza materialmente. Me parece que há ainda um elemento fundamental na assunção de que falo: o emocional. Além do conhecimento que tenho do mal que o fumo me faz, tenho agora, na assunção que dele faço, legítima raiva do fumo. E tenho também a alegria de ter tido a raiva que, no fundo, ajudou que eu continuasse no mundo por mais tempo. Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as in justiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade. 1.9 - Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural É interessante estender mais um pouco a reflexão sobre a assunção. O verbo assumir é um verbo transitivo e que pode ter como objeto que assim se assume. Eu tanto assumo risco que corro ao fumar quanto me assumo enquanto sujeito da própria assunção. Deixamos claro que, quando digo ser fundamental para deixar de fumar a assunção de que fumar ameaça a vida, com assunção eu quero sobretudo me referir ao conhecimento cabal que obtive do fumar e de suas conseqüências. Outro sentido mais radical tem assunção ou assumir quando digo: Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a "outredade" do "não eu", ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu. A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nos por nós mesmos. É isso que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmática visão do processo. A experiência histórica, política, cultural e social dos homens e das mulheres jamais poder se dar "virgem" do conflito entre as forças que obstaculizam a busca da assunção de si por parte dos indivíduos e dos grupos e das forças em favor daquela assunção. A formação docente que se julgue superior a essas "intrigas" não faz outra coisa senão trabalhar em favor dos obstáculos. A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem a formação democrática ema prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado. Às vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto do professor. O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como força formadora ou como contribuição à do educando por si mesmo. Nunca me esqueço, na história já longa de minha memória, de um desses gestos de professor que tive na adolescência remota. Gesto cuja significação mais profunda talvez tenha passado despercebida por ele, o professor, e que teve importante influencia sobre mim. Estava sendo, então, um adolescente inseguro, vendo-me como um corpo anguloso e feio, percebendo-me menos capaz do que os outros, fortemente incerto de minhas possibilidades. Era muito mais mal-humorado que apaziguado com a vida. Facilmente me eriçava. Qualquer consideração feita por um colega rico da classe já me parecia o chamamento à atenção de minhas fragilidades, de minha insegurança. O professor trouxera de casa os nossos trabalhos escolares e, chamando-nos um a um, devolvia-os com o ser ajuizamento. Em certo momento me chama e, olhando ou re-olhando o meu texto, sem dizer palavra, balança e cabeça numa demonstração de respeito e de consideração. O gesto do professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu à minha redação. O gesto do professor me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que era possível trabalhar e produzir. De que era possível confiar em mim mas que seria tão errado confiar além dos limites quanto errado estava sendo não confiar. Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas do espaço escolar, é algo sobre que teríamos de refletir seriamente. É uma pena que o caráter socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino, lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma das razoes que explicam este caso em trono do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não seja a atividade ensinante, vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender. No fundo, passa despercebido a nós que foi aprendendo socialmente que mulheres e homens, historicamente, descobriram que é possível ensinar. Se tivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas. Em A Educação na cidade chamei a atenção para esta importância quando discuti o estado em que a administração de Luiza Erundina encontrou a rede escolar da cidade de São Paulo em 1989. O descaso pelas condições materiais das escolas alcançava níveis impensáveis. Nas minhas primeiras visitas à rede quase devastada eu me perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínimo de respeito às carteiras escolares, à mesa, às paredes se o Poder Público revela absoluta desconsideração à coisa publica? É incrível que não imaginemos a significação do "discurso" formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloqüência do discurso "pronunciado" na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço. Pormenores assim da cotidianeidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que quase sempre pouca ou nenhuma atenção se dá, têm na verdade um peso significativo na avaliação da experiência docente. O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser "educado", vai gerando a coragem. Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do exercício da criatividade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e do outro, sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação. Conhecer não é, de fato, adivinhar, com intuir. O importante, não resta dúvida, é não pararmos satisfeitos ao nível das intuições, mas submetêlas à análise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemológica. Capítulo 2 Ensinar não é transferir conhecimento As considerações ou reflexões até agora vêm sendo desdobramentos de um primeiro saber inicialmente apontado como necessário à formação docente, numa perspectiva progressista. Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições, um ser crítico e inquiridor, inquieto em face da tarefa que tenho - a ele ensinar e não a de transferir conhecimento. É preciso insistir: este saber necessário ao professor - que ensinar não é transferir conhecimento - não apenas precisa ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razoes de ser - ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica, mas também precisa ser constantemente testemunhado, vivido. Como professor num curso de formação docente não posso esgotar minha prática discursando cobre a Teoria da não extensão do conhecimento. Não posso apenas falar bonito sobre as razoes ontológicas, epistemológicas e políticas da Teoria. O meu discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da teoria. Sua encarnação. Ao falar da construção do conhecimento, criticando a sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a construção, estar envolvendo os alunos. Fora disso, me emaranho na rede das contradições em que meu testemunho, inautêntico, perde eficácia. Torno-me não falso quanto quem pretende estimular o clima democrático na escola por meios e caminhos autoritários. Tão fingido quanto quem diz combater o racismo mas, perguntando se conhece Madalena, diz: "Conheço-a é negra mas é competente e decente." Jamais ouvi ninguém dizer que conhece Célia, que ela é loura, de olhos azuis, mas é competente e decente. No discurso perfilado de Madalena, negra, sabe a conjunção adversativa mas, no que contorna Célia, loura de olhos azuis, a conjunção adversativa é um não-senso. A compreensão do papel das conjunções que, ligando sentenças entre si, impregnam a relação que estabelecem de certo sentido, o de causalidade, falo porque recuso o silêncio, de adversidade, tentaram domina-lo mas não conseguiram, o de finalidade, Pedro lutou para que ficasse clara a sua posição, o de integração, Pedro sabia que ela voltaria, não é suficiente para explicar o uso da adversativa mas na relação entre a sentença Madalena é negra e Madalena é competente e docente. A conjunção mas aí, implica um juízo falso, ideológico: sendo negra, espera-se que Madalena nem seja competente nem decente. Ao reconhecer-se, porém, sua decência e sua competência a conjunção mas se tornou indispensável. No caso de Célia, é um disparate que, sendo loura de olhos azuis não seja competente e decente. Daí o não-senso da adversativa. A razão é ideológica e não gramatical. Pensar certo - e saber que ensinar não é transferir conhecimento é fundamentalmente pensar certo - é uma postura exigente, difícil, às vezes penosa, que temos de assumir diante dos outros e com os outros, em face do mundo e dos fatos, ante nós mesmos. É difícil, não porque pensar certo seja forma própria de pensar de santos e de anjos e a que nós arrogantemente aspirássemos. É difícil, entre outras coisas, pela vigilância constante que temos de exercer sobre nós próprios para evitar os simplismos, as facilidades, as incoerências grosseiras. É difícil porque nem sempre temos o valor indispensável pêra não permitir que a raiva que podemos ter de alguém vire raivosidade que gera um pensar errado e falso. Por mais que me desagrade uma pessoa não posso menosprezá-la com um discurso em que, cheio de mim mesmo, decreto sua incompetência absoluta. Discurso em que, cheio de mim mesmo, trato-a com desdém, do alto de minha falsa superioridade. A mim não me dá raiva mas pena quando pessoas assim raivosas, arvoradas em figuras de gênio, me minimizam e destratam. É cansativo, por exemplo, viver a humildade, condição "sine qua" do pensar certo, que nos faz proclamar o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e anunciar a superação que sofremos. O clima do pensar certo não tem nada que ver com o das formulas preestabelecidas, mas seria a negação do pensar certo se pretendêssemos forja-lo na atmosfera da licenciosidade ou do espontaneísmo. Sem rigorosidade metódica não há pensar certo. 2.1 - Ensinar exige consciência do inacabamento Como professor crítico, sou um "aventureiro" responsável, predisposto à mudança, à aceitação diferente. Nada do que experimentei em minha atividade docente deve necessariamente repetir-se. Repito, porém, como inevitável, a franquia de mim mesmo, radical, diante dos outros e do mundo. Minha franquia ante os outros e o mundo mesmo é a maneira radical como me experimento enquanto ser cultural, histórico, inacabado e consciente do inacabamento. Aqui chegamos a ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento de ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente. A invenção da existência a partir dos materiais que a vida oferecia levou homens e mulheres a promover o suporte em que os outros animais continuam, em mundo. Seu mundo, mundo dos homens e das mulheres. A experiência humana no mundo muda de qualidade com relação à vida animal no suporte. O suporte é o espaço, restrito ou alongado, a que o animal se prende "afetivamente" tanto quanto para resistir, é o espaço necessário a seu crescimento e que delimita seu domínio. É o espaço em que, treinando, adestrado, "aprende" a sobreviver, a caçar, a atacar, a defender-se num tempo de dependência dos adultos imensamente menos do que é necessário ao ser humano para as mesmas coisas. Quanto mais cultural é o ser maior a sua infância, sua dependência de cuidados especais. Faltam ao "movimento" dos outros animais no suporte a linguagem conceitual, a inteligibilidade do próprio suporte de que resultaria inevitavelmente a comunicabilidade do inteligido, o espanto diante da vida mesma, do que há nela de mistério. No suporte, os comportamentos dos indivíduos têm sua explicação muito mais na espécie a que pertencem os indivíduos do que neles mesmos. Falta-lhes liberdade de opção. Por isso, não se fala em ética entre os elefantes. A vida no suporte não implica a linguagem nem a postura ereta que permitiu a liberação das mãos. Mãos que, em grande medida, nos fizeram. Quanto maior se foi tornando a solidariedade entre mentes e mãos, tanto mais o suporte foi virando mundo e a vida, existência. O suporte veio fazendo-se mundo e a vida, existência, na proporção que o corpo humano vira corpo consciente, captador, apreendedor, transformador, criador de beleza e não "espaço" vazio a ser enchido por conteúdos. A invenção da existência envolve, repita-se, necessariamente, a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no domínio da vida, a "espiritualização" do mundo, a possibilidade de embelezar como enfear o mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos. Capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações, de dignificantes testemunhos, mas capazes também de impensáveis exemplos de baixeza e de indignidade. Só os seres que se tornam éticos podem romper com a ética. Não se sabe de tigres africanos que tenham jogado bombas altamente destruidoras em "cidades" de tigres asiáticos. No momento em que os seres humanos, intervindo no suporte, foram criando o mundo, inventando a linguagem, com que passaram a dar nome às coisas que faziam com a ação sobre o mundo, na medida em que se foram habilitando a inteligir o mundo e criaram por conseqüência a necessária comunicabilidade do inteligido, já não foi possível existir a não ser disponível à tensão radical e profunda entre o bem e o mal, entre a dignidade e indignidade, decência e o despudor, entre boniteza e a feiúra do mundo. Quem dizer, já não foi possível existir sem assumir o direito e o dever de optar, de decidir, de lutar, de fazer política. E tudo isso nos traz de novo à imperiosidade da prática formadora, de natureza eminentemente ética. E tudo isso nos traz de novo à radicalidade de esperança. Sei que as coisas podem até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las. Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que meu "destino" não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade. 2.3 - Ensinar exige respeito à autonomia do ser do educado Outro saber necessário à prática educativa, e que se funde na mesma raiz que acabo de discutir - a da inconclusão do ser que se sabe inconcluso -, é o que fala do respeito decido à autonomia do ser educando. Do educando criança, jovem ou adulto. Como educador, devo estar constantemente advertido com relação a este respeito que implica igualmente o que devo ter por mim mesmo. Não faz mal repetir afirmação varias vezes feita neste texto - o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos. O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos podemos desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação, por isso é imprescindível deixar claro que a possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de transgressão. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que minimiza, que manda que "ele se ponha em seu lugar" ao mais tênue sinal de sua rebeldia legitima, tanto quanto o professor que se exige do cumprimento de seu dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. É neste sentido que o professor autoritário, que por isso mesmo afoga a liberdade do educando, amesquinhando o seu direito de estar sendo curioso e inquieto. Tanto quanto o professor licencioso rompe com a radicalidade do ser humano - a de sua inconclusão assumida em que se enraíza a eticidade. É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos. É preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou entendida como virtude, mas como ruptura com a decência. O que quero dizer é o seguinte: que alguém se torne machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma como transgressor da natureza humana. Não me venha com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre os empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar contar ela é um dever por mais que se reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar. A boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar. Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do educando exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber. 2.5 - Ensinar exige humildade, tolerância e luta em defesa dos direitos dos educadores Se há algo que os educandos brasileiros precisam saber, desde a mais tenra idade, é que a luta em favor do respeito aos educadores e à educação inclui que a briga por salários menos imorais é um dever irrecusável e não só um direito deles. A luta dos professores em defesa de seus direitos e de sua dignidade deve ser entendida como um momento importante de sua prática docente, enquanto prática ética. Não é algo que vem de fora da atividade docente, mas algo que dela faz parte. O combate em favor da dignidade da prática docente é tão parte dela mesma quanto dela faz o respeito que o professor deve ter à identidade do educando, à sua pessoa, a seus direito de ser. Um dos piores males que o poder público vem fazendo a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade brasileira foi criada, é o de fazer muitos de nós correr o risco de, a custo de tanto descaso pela educação publica, existencialmente cansados, cair no indiferentismo fatalistamente cínico que leva ao cruzamento dos braços. "Não há o que fazer" é o discurso acomodado que não podemos aceitar. O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância. Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. Desrespeitando como gente no desprezo a que é relegada a prática pedagógica não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exercela mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta política, consciente, crítica e organizada contra os ofensores. Aceito até abandona-la, cansado, à procura de melhores dias. O que não é possível é, ficando nela, avilta-la com o desdém de mim mesmo e dos educandos. Uma das formas de luta contra o desrespeito dos poderes públicos pela educação, de um lado, é a nossa recusa a transformar nossa atividade docente em puro bico, e de outro, a nossa rejeição a entende-la e a exerce-la como prática afetiva de "tias e tios". É como profissionais idôneos - na competência que se organiza politicamente está talvez a maior força dos educadores - que eles e elas devem ver-se a si mesmos e a si mesmas. É nesse sentido que os órgãos de classe deveriam priorizar o empenho de formação permanente dos quadros do magistério como tarefa altamente política e repensar a eficácia das greves. A questão que se coloca, obviamente, não é parar de lutar, mas reconhecendo-se que a luta é uma categoria histórica, reinventar a forma também histórica de lutar. 2.6 - Ensinar exige apreensão da realidade Outro saber fundamental à experiência educativa é o que se diz respeito à sua natureza. Como professor preciso me mover com clareza na minha prática. Preciso conhecer as diferentes dimensões que caracterizam a essência da prática, o que me pode tornar mais seguro no meu próprio desempenho. O melhor ponto de partida para estas reflexões é a inconclusão do ser humano de que se tornou consciente. Como vimos, aí radica a nossa educabilidade bem como a nossa inserção num permanente movimento de busca em que, curiosos e indagadores, não apenas nos damos conta das coisas mas também delas podemos ter um conhecimento cabal. A capacidade de aprender, não apenas para nos adaptar mas sobretudo para transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a, fala de nossa educabilidade e um nível distinto do nível do adestramento dos outros animais ou do cultivo das plantas. A nossa capacidade de aprender, de que decorre a de ensinar, sugere ou, mais do que isso, implica a nossa habilidade de aprender a substantividade do objeto que nos é possível reconstruir um mal aprendizado, o em que o aprendiz foi puro paciente da transferência do conhecimento feita pelo educador. Mulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. Por isso, somos os únicos em que aprender é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada. Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. Creio poder afirmar, na altura destas considerações, que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu cunho gnosiológico; a existência de objetos, conteúdos a serem ensinados e aprendidos; envolve o uso de métodos, de técnicas, de materiais; implica, em função de seu caráter diretivo, objetivo, sonhos, utopias, ideais. Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser política, de não poder ser neutra. Especificamente humana e educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de meios, de técnicas, envolve frustrações, medos, desejos. Exige de mim, como professor, uma competência geral, um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à minha atividade docente. Como professor, se minha opção é progressista e venho sendo coerente com ela, se não me posso permitir a ingenuidade de pensar-me igual ao educando, de desconhecer a especificidade da tarefa do professor, não posso, por outro lado, negar que o meu papel fundamental é contribuir positivamente para que o educando vá sendo o artífice de sua formação com a ajuda necessária do educador. Se trabalho com crianças, devo estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia, atento à responsabilidade de minha presença que tanto pode ser auxiliadora como pode virar perturbadora da busca inquieta dos educandos, se trabalho com jovens ou adultos, não menos atento devo estar com relação a que o meu trabalho possa significar com estimulo ou não à ruptura necessária com algo defeituosamente assentado e à espera de superação. Primordialmente, minha posição tem de ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar. Não posso negar-lhe ou esconder-lhe minha postura mas não posso desconhecer o seu direito de rejeita-la. Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção política assumindo uma neutralidade que não existe. Esta, a omissão do professor em nome do respeito ao aluno, talvez seja a melhor maneira de desrespeita-lo. O meu papel, ao contrario, é o de quem testemunha o direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e estimular a assunção desde direito por parte dos educandos. Recentemente, num encontro publico, um jovem recém-entrado na universidade me disse cortesmente: "Não entendo como o senhor defende os sem-terra, no fundo, uns baderneiros, criadores de problemas". "Pode haver baderneiros entre os sem-terra", disse, "mas sua luta é legitima e ética". "Baderneira"é a resistência reacionária de quem se opõe a ferro e fogo à reforma agrária. A moralidade e a desordem estão na manutenção de uma "ordem" injusta. A conversa aparentemente morreu aí. O moço apertou minha mão em silêncio. Não sei como terá "tratado" a questão depois, mas foi importante que tivesse dito o que pensava e que tivesse ouvido de mim o que me parece justo que devesse ser dito. É assim que venho tentando ser professor, assumindo minhas convicções, disponível ao saber, sensível à boniteza da prática educativa, instigando por seus desafios que não lhe permitem burocratizar-se, assumindo minhas limitações, acompanhadas sempre do esforço por superá-las, limitações que não procuro esconder em nome mesmo do respeito que me tenho e aos educandos. 2.8 - Ensinar exige a convicção de que a mudança é possível Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem, chegando a favelas ou a realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tornando convivência, que seu estar no contexto vá virando estar com ele, é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade. É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar. No próprio mundo físico minha constatação não me leva à impotência. O conhecimento sobre os terremotos desenvolveu toda uma engenharia que nos ajuda a sobreviver a eles. Não podemos eliminá-los mas podemos diminuir os danos que nos causam. Constatando, nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente a de nos adaptar a ela. É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o matemático, ou o pensador da educação. Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Não posso estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas. A acomodação em mim é apenas caminho para a inserção, que implica decisão, escolha, intervenção na realidade. Há perguntas a serem feitas insistentemente por todos nós e que nos fazem ver a impossibilidade de estudar por estudar. De estudar descomprometidamente como se misteriosamente, de repente, nada tivéssemos que ver com o mundo, um lá fora e distante mundo, alheado de nós e nós dele. Em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo? Que sentido teria a atividade de Danilson no mundo que descortinávamos do pontilhão se, para ele, estivesse decretado por um destino todo poderoso a impotência daquela gente fustigada pela carência? Restaria a Danilson trabalhar apenas a possível melhora de performance da população no processo irrecusável de sua adaptação à negação da vida. A prática de Danilson seria assim o elogio da resignação. Porém na medida em que para ele, como para mim, o futuro é problemático e não inexorável, outra tarefa se nos oferece. A de, discutindo a problematicidade do amanhã, tornando-a tão óbvia quanto a carência de tudo na favela, ir tornando igualmente óbvio que a adaptação à dor, à fome, ao desconforto, à falta de higiene que o eu de cada um, como corpo e alma, experimenta é uma forma de resistência física a que se vai juntando outra, a cultural. Resistência ao descaso ofensivo de que os miseráveis são objetos. No fundo, as resistências - a orgânica e/ou a cultural dos oprimidos. O sincretismo religioso afro-brasileiro expressa a resistência ou a manha com que a cultura africana escrava se defendia do poder hegemônico do colonizador branco. É preciso, porém, que tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na compreensão do futuro como problema e na vocação para o ser mais como expressão da natureza humana em processo de estar sendo, fundamentos para a nossa resignação em face das ofensas que nos destroem o ser. Não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos. Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do mundo. A rebeldia é ponto de partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de superação, no fundo, o nosso sonho. É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil mas é possível, que vamos programar nossa ação político - pedagógica, não importa se o projeto com o qual nos comprometemos é de alfabetização de adultos ou de crianças, se de ação sanitária, se de evangelização, se de formação de mão - de - obra técnica. O êxito de educadores como Danilson está centralmente nesta certeza que jamais os deixa de que é possível mudar, de que é preciso mudar, de que preservar situações concretas de miséria é uma imoralidade. É assim que este saber que a História vem comprovando se erige em princípio de ação e abre caminho à constituição, na prática, de outros saberes indispensáveis. Não se trata obviamente de impor à população expoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize, que se organize para defender-se, vale dizer, para mudar o mundo. Trata-se, na verdade - não importa se trabalhamos com alfabetização, com saúde, com evangelização ou com todas elas - , de, simultaneamente com o trabalho específico de cada um desses campos, desafiar os grupos populares para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta. Mais ainda, que sua situação concreta não é destino certo ou vontade de Deus, algo que não pode ser mudado. Não posso aceitar como tática do bom combate a política do quanto pior melhor, mas não posso também aceitar, impassível, a política assistencialista que, anestesiando a consciência oprimida, prorroga, "sine die", a necessária mudança da sociedade. Não posso proibir que os oprimidos com quem trabalho numa favela votem em candidatos reacionários, mas tenho o dever de adverti-los do erro que cometem, da contradição em que se emaranham. Votar no político reacionário é ajudar a preservação do "status quo". Como posso votar, se sou progressista e coerente com minha opção, num candidato em cujo discurso, faiscante de desamor, anuncia seus projetos racistas? Partindo de que a experiência da miséria é uma violência e não a expressão da preguiça popular ou fruto da mestiçagem ou da vontade punitiva de Deus, violência contra que devemos lutar, tenho, enquanto educador, de me ir tornando cada vez mais competente sem o que a luta perderá eficácia. É que o saber de que falei - mudar é difícil mas é possível -, que me empurra esperançoso à ação, não é suficiente para a eficácia necessária a que me referi. Movendo-me enquanto nele fundado preciso ter e renovar saberes específicos em cujo campo minha curiosidade se inquieta e minha prática se baseia. Como alfabetizar sem conhecimentos precisos sobre a aquisição da linguagem, sobre linguagem e ideologia, sobre técnicas e métodos do ensino da leitura e da escrita? Por outro lado, como trabalhar, não importar em que campo, no da alfabetização, no da produção econômica em projetos cooperativos, no da evangelização ou no da saúde sem ir conhecendo as manhas com que os grupos humanos produzem sua própria sobrevivência? Como educador preciso de ri "lendo" cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações políticos-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo "leitura do mundo" que precede sempre a "leitura da palavra". Se, de um lado, não posso me adaptar ou me "converter" ao saber ingênuo dos grupos populares, de outro, não posso, se realmente progressista, impôr-lhes arrogantemente o meu saber como o verdadeiro. O diálogo em que se vai desafiando o grupo popular a pensar sua história social como a experiência igualmente social de seus membros, vai revelando a necessidade de superar certos saberes que, desnudados, vão mostrando sua "incompetência" para explicar os fatos. Um dos equívocos funestos de militantes políticos de prática messianicamente autoritária foi sempre desconhecer totalmente a compreensão do mundo dos grupos populares. Vendo-se como portadores da verdade salvadora, sua tarefa irrecusável não é propô-la mas impô-la aos grupos populares. Recentemente, ouvi de jovem operário num debate sobre a vida na favela que já se fora o tempo em que ele tinha vergonha de ser favelado. "Agora", dizia, "me orgulho de nós todos, companheiros e companheiras, do que temos feito através de nossa luta, de nossa organização.. Não é o favelado que deve ter vergonha da condição de favelado mas quem, vivendo bem e fácil, nada faz para mudar a realidade que causa a favela. Aprendi isso com a luta". É possível que esse discurso do jovem operário não provocasse nada ou quase nada o militante autoritariamente messiânico. É possível até que a reação do moço mais revolucionarista do que revolucionário fosse negativa à fala do favelado, entendida como expressão de quem se inclina mais para a acomodação do que para a luta. No fundo, o discurso do jovem operário era a leitura nova que fazia de sua experiência social de favelado. Se ontem se culpava, agora e tornava capaz de perceber que não era apenas responsabilidade sua se achar naquela condição. Mas, sobretudo, se tornava capaz de perceber que a situação de favelado não é irrevogável. Sua luta foi mais importante na constituição do seu novo saber do que o discurso sectário do militante messianicamente autoritário. É importante salientar que o novo momento na compreensão da vida social não é exclusivo de uma pessoa. A experiência que possibilita o discurso novo é social. Uma pessoa ou, porém, se antecipa na explicitar da nova percepção da mesma realidade. Uma das tarefas fundamentais do educador progressistas é, sensível à literatura e a releitura do grupo, provocálo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão do contexto. É importante ter sempre claro que faz parte do poder ideológico dominante a inculcação nos dominados da responsabilidades por sua situação. Daí a culpa que sentem eles, em determinado momento de suas relações com o seu contexto e com suas classes dominantes por se acharem nesta ou naquela situação desvantajosa. É exemplar a resposta que recebi de mulher sofrida, em São Francisco, Califórnia, numa instituição católica de assistência aos pobres. Falava com dificuldade do problema que a afligia e eu, quase sem ter o que dizer, afirmei indagando: Você é norte-americana, não é? "Não. Sou pobre", respondeu como se estivesse pedindo desculpas à "norteamericanidade" por seu insucesso na vida. Me lembro de seus olhos azuis marejados de lágrimas expressando seu sofrimento e a assunção da cultura pelo seu "fracasso" no mundo. Pessoas assim fazem parte das legiões de ofendidos que não percebem a razão de ser de sua dor na perversidade do sistema social, econômico, político em que vivem, mas na sua incompetência. Enquanto sentirem assim, pensarem assim e agirem assim, reforçam o poder do sistema. Se tornam coniventes da ordem desumanizante. A alfabetização, por exemplo, numa área de miséria, só ganha sentido na dimensão humana se, com ela, se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social de que vá resultando a extrojeção da culpa indevida. A isto corresponde a "expulsão" do opressor de "dentro" do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que, expulsa pelo oprimido, precisa de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade. Saliente-se contudo que, não obstante a relevância ética e política do esforço conscientizador que acabo de sublinhar, não se pode parar nele, deixando-se relegado para um plano secundário o ensino da escrita e da leitura da palavra. Não podemos, numa perspectiva democrática, transformar uma classe de alfabetização num espaço em que se proíbe toda reflexão em torno da razão de ser dos fatos nem tampouco num "comício libertador". A tarefa fundamental dos Danilson entre que me situo é experimentar com intensidade a dialética entre "a leitura do mundo" e a "leitura da palavra". "Programados para aprender" e impossibilitados de viver sem a referência de um amanhã, onde quer que haja mulheres e homens há sempre o que fazer, há sempre o que fazer, há sempre o que ensinar, há sempre o que aprender. Nada disso, contudo, cobra sentido, para mim, se realizado contra a vocação para o "ser mais", histórica e socialmente constituído-se, em que mulheres e homens nos achamos inseridos. Capítulo 3 3.3 - Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática educativo-crítica é o de que, como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu esforço de reprodução da ideologia dominante quanto o seu desmascaramento. Dialética e contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só a outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora da ideologia dominante. Neutra, indiferente a qualquer destas hipóteses, a da reprodução da ideologia dominante ou de sua contestação, a educação jamais foi, é, ou pode ser. È um erro decretá-la como tarefa apenas reprodutora da ideologia dominante como erro é tomá-la como uma força de desocultação da realidade, a atuar livremente, sem obstáculos e duras dificuldades. Erros que implicam diretamente visões defeituosas da História e da consciência. De um lado, a compreensão mecanicista da História, que reduz a consciência a puro reflexo da materialidade, e de outro, o subjetivismo idealista, que hipertrofia o papel da consciência no acontecer histórico. Nem somos, mulheres e homens, seres simplesmente determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e a que nos achamos referidos. Do ponto de vista dos interesses dominantes, não há dúvida de que a educação deve ser uma prática imobilizadora e ocultadora de verdades. Toda vez, porém, que a conjuntura o exige, a educação dominante é progressista pela metade. As forças dominantes estimulam e materializam avanços técnicos compreendidos e, tanto quanto possível, realizados de maneira neutra. Seria demasiado ingênuo, até angelical de nossa parte, esperar que a bancada ruralista aceitasse quieta e concordante a discussão, nas escolas rurais e mesmo urbanas do país, da reforma agrária como projeto econômico, político e ético da maior importância para o próprio desenvolvimento nacional. Isso é tarefa para educadoras e educadores progressistas cumprir, dentro e fora das escolas. É tarefa para organizações não-governamentais, para sindicatos democráticos realizar. Já não é ingênuo esperar, porém, que o empresariado que se moderniza, progressista em face da truculência retrógrada dos ruralistas, se esvazia de humanismo quando da confrontação entre o interesses humanos e os de mercado. E é uma imoralidade, para mim, que se sobreponha, como se vem fazendo, aos interesses radicalmente humanos, os do mercado. Continuo bem aberto à advertência de Marx, a da necessária radicalidade que me faz sempre desperto a tudo o que diz respeito à defesa dos interesses humanos. Interesses superiores aos de puros grupos ou de classes de gente. Ao reconhecer que, precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar, se comparar, de avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos seres éticos e se abriu para nós a probabilidade de transgredir a ética, jamais poderia aceitar a transgressão como direito mas como uma possibilidade. Possibilidade contra que devemos lutar e não diante da qual cruzar os braços. Daí a minha recusa rigorosa aos fatalismos quietistas que terminam por absorver as transgressões éticas em lugar de condená-las. Não posso virar conivente de uma ordem perversa, irresponsabilizando-a por sua malvadez, ao atribuir a força cegas e imponderáveis os danos por elas causados aos seres humanos. A fome frente a frente à abastança e o desemprego no mundo são imoralidades e não fatalidades como o reacionarismo apregoa com ares de quem sofre por nada poder fazer. O que quero repetir, com força, e que nada justifica a minimização dos seres humanos, no caso das maiorias compostas de minorias que não perceberam ainda que juntas seriam a maioria. Nada, o avanço da ciência e/ou da tecnologia, pode legitimar uma ordem desordeira em que só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às maiorias em dificuldades até para sobreviver se diz que a realidade é assim mesmo, que sua fome é uma fatalidade do fim do século. Não junto a minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos, aos esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência, da indignação, da justa ira dos traídos e dos enganados. Do seu direito e do seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais sofridas. A ideologia fatalista do discurso e da política neoliberais de que venho falando é um momento daquela desvalia acima referida dos interesses humanos em relação aos do mercado. Dificilmente um empresário moderno concordaria com que seja direito de seu operário, por exemplo, discutir durante o processo de sua alfabetização ou no desenvolvimento de algum curso de aperfeiçoamento técnico, esta mesma ideologia a que me venho referindo. Discutir, suponhamos, a afirmação: "O desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século." E por que fazer a reforma agrária não é também um fatalidade? E por que acabar com a fome e com a miséria não são igualmente fatalidades de que não se pode fugir? É reacionária a afirmação segundo a qual o que interessa aos operários é alcançar o máximo de sua eficácia técnica e não perder tempo com debates ideológicos que a nada levam. O operário precisa inventar, a partir do próprio trabalho, a sua cidadania que não se constrói apenas com sua eficácia técnica mas também com sua luta política em favor da recriação da sociedade injusta, a ceder seu lugar a outra menos injusta e mais humana. Naturalmente, reinsisto, o empresário moderno aceita, estimula e patrocina o treino técnico de seu operário. O que ele necessariamente recusa é a sua formação que, envolvendo o saber técnico e científico indispensável, fala de sua presença no mundo. Presença humana, presença ética, aviltada toda vez que transformada em pura sombra. Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor não importa o que. Não posso ser professor a favor simplesmente do homem ou da humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa mas não desiste. Boniteza que se esvai de minha prática se, cheio de mim mesmo, arrogante e desdenhoso dos alunos, não canso de me admirar. Assim como não posso ser professor sem me achar capacitado para ensinar certo e bem os conteúdos de minha disciplina não posso, por outro lado, reduzir minha prática docente ao puro ensino daqueles conteúdos. Esse é um momento apenas de minha atividade pedagógica. Tão importante quanto ele, o ensino dos conteúdos, é o meu testemunho ético ao ensina-los. É a decência com que o faço. É a preparação científica revelada sem arrogância, pelo contrário, com humildade. É o respeito jamais negado ao educando, a seu saber de experiência feito que busco superar com ele. Tão importante quanto o ensino dos conteúdos é a minha coerência entre o que digo, o que escrevo e o que faço. É importante que os alunos percebam o esforço que faz o professor ou a professora procurando sua coerência. É preciso também que este esforço seja de quando em vez discutido na classe. Há situações em que a conduta da professora pode parecer aos alunos contraditória. Isto se dá quase sempre quando o professor simplesmente exerce sua autoridade na coordenação das atividades na classe e parece seus alunos que ele, o professor, exorbitou de seu poder. Às vezes, é o próprio professor que não está certo de ter realmente ultrapassado o limite de sua autoridade ou não. 3.7 - Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica. Saber igualmente fundamental à prática educativa do professor ou da professora é o que diz respeito à força, às vezes maior do que pensamos. Da ideologia. É o que nos adverte de suas manhas, das armadilhas em que nos faz cair. É que a ideologia tem que ver diretamente com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para penumbrar ou opacizar a realidade ao mesmo tempo em que nos torna "míopes". O poder da ideologia me faz pensar nessas manhãs orvalhadas de nevoeiro em que mal vemos o perfil dos ciprestes como sombras que parecem muito mais manchas das sombras mesmas. Sabemos que há algo metido na penumbra mais não o divisamos bem. A própria "miopia" que nos acomete dificulta a percepção mais clara, mais nítida da sombra. Mais séria ainda é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos é o que na verdade é, e não a verdade distorcida. A capacidade de penumbrar a realidade, de nos "miopizar", de nos ensurdecer que tem a ideologia faz, por exemplo, a muitos de nós, aceitar docilmente o discurso cinicamente fatalista neo-liberal que proclama ser o desemprego no mundo uma desgraça do fim do século. Ou que os sonhos morreram e que o válido hoje é o "pragmatismo" pedagógico, é o treino técnico-científico do educando e não sua formação de que já não se fala. Formação que, incluindo a preparação técnico-científica, vai mais além dela. A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou de um destino que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísica e não um momento do desenvolvimento econômico submetido, como toda produção econômica capitalista, a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que detêm o poder. Fala-se, porém, em globalização da economia como um momento necessário da economia mundial a que, por isso mesmo, não é possível escapar. Universaliza-se um dado do sistema capitalista e um instante da vida produtiva de certas economias capitalistas hegemônicas como se o Brasil, o México, a Argentina devessem participar da globalização da economia da mesma forma que os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão. Pega-se o trem no meio do caminho e não se discutem as condições anteriores e atuais das diferentes economias. Nivelam-se os patamares de deveres entre as distintas economias sem se considerarem as distâncias que separam os "direitos" dos fortes e o seu poder de usufruí-los e a fraqueza dos débeis para exercer os seus direitos. Se a globalização implica a superação de fronteiras, a abertura sem restrições ao livre comércio, acabe-se então quem não puder resistir. Não se indaga, por exemplo, se em momentos anteriores da produção capitalista nas sociedades que lideram a 'globalização hoje elas eram radicais na abertura que consideram agora uma condição indispensável ao livre comércio. Exigem, no momento, dos outros, o que não fizeram consigo mesmas. Uma das eficácias de sua ideologia fatalista é convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade é assim mesmo, de que não há nada a fazer mas a seguir a ordem natural dos fatos. Pois é como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esforça por nos fazer entender a globalização e não como uma produção histórica. O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optarmos, na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, de medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca. Espero, convencido de que chegará o tempo em que, passada a estupefação em face da queda do muro de Berlim, o mundo se refará e recusará a ditadura do mercado, fundada na perversidade de sua ética do lucro. Não creio que as mulheres e os homens do mundo, independentemente até de suas opções políticas, mas sabendo-se e assumindo-se como mulheres e homens, como gente, não aprofundem o que hoje já existe como uma espécie de mal-estar que se generaliza em face da maldade neoliberal. Mal-estar que determinará por consolidar-se numa rebeldia nova em que a palavra crítica, o discurso humanista, o compromisso solidário, a denúncia veemente da negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo "genteficado" serão armas de incalculável alcance. Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a dos à "fereza" da ética do mercado. É neste sentido que jamais abandonei a minha preocupação primeira, que sempre me acompanhou, desde os começos de minha experiência educativa. A preocupação com a natureza humana a que devo a minha lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as palavras: já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses humanos. Nenhuma teoria da transformação político-social do mundo me comove, sequer, se não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da história e por ela feitos, seres da decisão , da ruptura, da opção. Seres éticos, mesmo capazes de transgredir a ética indispensável, algo de que tenho insistentemente "falado" neste texto. Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saber-me um ser condicionado mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento. A grande força sobre que alicerçar-se a nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana. Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a aposta no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas agressivas e injustas de que transgride a própria ética. A liberdade do comércio não pode acima da liberdade do ser humano. A liberdade de comércio sem limite é licenciosidade do lucro. Vira privilégio de uns poucos que, em condições favoráveis, robustece seu poder contra os direitos de muitos, inclusive o direito de sobreviver. Uma fábrica de tecido que fecha por não poder concorrer com os preços da produção asiática, por exemplo, significa não apenas o colapso econômico financeiro de seu proprietário que pode ter sido ou não um transgressor da ética universal humana, mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e trabalhadoras do processo de produção. E suas famílias? Insisto, com a força que tenho e que posso juntar na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na realidade histórico-social à pura adaptação a ela. O desemprego no mundo não é,como disse e tenho repetido, uma fatalidade. É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo. O progresso cientifico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, ás necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior. Como se vê, esta é uma questão ética e política e não tecnológica. O problema me parece muito claro. Assim como não posso usar minha liberdade de fazer coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos outros para usar os avanços científicos e poderia ser livre para usar os avanços científicos e tecnológicos que levam milhares de pessoas à desesperança. Não se trata, acrescentemos, de inibir a pesquisa e frear os avanços mas de pô-los a serviço dos seres humanos. A aplicação de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de uma ética pequena, a do mercado, a do lucro. Entre as transgressões à ética universal do ser humano, sujeitos à penalidade, deveria estar a que implicasse a falta de trabalho a um sem-número de gentes, a sua desesperação e a sua morte em vida. A preocupação, por isso mesmo, com a formação técnico-profissional capaz de reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses, teria de multiplicar-se. Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino mas sei quão difícil é a aplicação de uma política do desenvolvimento humano que, assim, privilegie fundamentalmente o homem e a mulher e não apenas o lucro. Mas sei também que, se pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos, o caminho ético se impõe. Não creio em nada sem ele ou fora dele. Se, de um lado, não pode haver desenvolvimento sem lucro este não pode ser, por outro, o objetivo do desenvolvimento, de que o fim último seria o gozo imoral do investidor. De nada vale, a não ser enganosamente para uma minoria que terminaria fenecendo também, uma sociedade eficazmente operada por máquinas altamente "inteligentes", substituindo mulheres e homens em atividades as mais variadas, e milhões de Marias e Pedros sem ter o que fazer, e este é um risco muito concreto que corremos. Não creio também que a política a dar carne a este espírito ético possa jamais ser a ditatorial, contraditoriamente de esquerda ou coerentemente de direita. O caminho autoritário já é em si uma contravenção à natureza inquietamente indagadora, buscadora, de homens e de mulheres que se perdem ao perderem a liberdade. É exatamente por causa de tudo isso que como professor, devo estar advertido do poder do discurso ideológico, começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir, das coisas, dos acontecimentos. Não podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica, discursos como estes: "O negro é geneticamente inferior ao branco. É uma pena, mas é isso o que a ciência nos diz." "Em defesa de sua honra, o marido matou a mulher." "Que poderíamos esperar deles, uns baderneiros, invasores de terra?" "Essa gente é sempre assim: damos-lhe os pés e logo quer as mãos." "Nós já sabemos o que o povo quer e do que precisa. Perguntar-lhe seria uma perda de tempo." "O saber erudito a ser entregue às massas incultas é a sua salvação." "Maria é negra, mas é bondosa e competente." "Esse sujeito é um bom cara. É nordestino, mas é sério e prestimoso". "Você sabe com quem está falando?" "Que vergonha, homem se casar com homem, mulher se casar com mulher." "É isso, você vai se meter com gentinha, é o que dá." "Quando negro não suja na entrada, suja na saída." "O governo tem que investir mesmo é nas áreas onde mora gente que paga imposto." "Você não precisa pensar. Vote em fulano, que pensa por você." "Você, desempregado, seja grato. Vote em quem ajudou você. Vote em fulano de tal." "Está se vendo, pela cara, que se trata de gente fina, de trato, que tomou chá em pequeno e não de um pé-rapado qualquer." "O professor falou sobre a Inconfidência Mineira." "O Brasil foi descoberto por Cabral." No exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideologia, vou gerando certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente. A necessidade desta resistência crítica, por exemplo, me predispõe, de um lado, a uma atitude sempre aberta aos demais, aos dados da realidade; de outro, a uma desconfiança metódica que me defende de tornar-me absolutamente certo de certezas. Para me resguardar das artimanhas da ideologia não posso nem devo me fechar aos outros nem tampouco me enclausurar no ciclo de minha verdade. Pelo contrário, o melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo, de ver com acuidade, de ouvir com respeito, por isso de forma exigente, é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita como proprietário da verdade. No fundo, a atitude correta de quem não se sente dono da verdade nem tampouco objeto acomodado do discurso alheio que lhe é autoritariamente feito. Atitude correta de quem se encontra em permanente disponibilidade a tocar e a ser tocado, a perguntar e a responder, a concordar e a discordar. Disponibilidade á vida e a seus contratempos. Estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam, aos sinais mais diversos que nos apelam, ao canto do pássaro, à chuva que cai ou que se anuncia na nuvem escura, ao risco manso da inocência, à cara carrancuda da desaprovação, aos braços que se abrem para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa. É na minha disponibilidade permanente á vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil. TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM: http://plataforma.redesan.ufrgs.br/biblioteca/pdf_bib.php?COD_ARQUIVO=17338 TEXTO COMPLETO DISPONIVEL EM: http://professoradalton.blogspot.com.br/2011/05/clifford-geertz-capitulo-2-o-impactodo.html DIÁLOGO, PARTICIPAÇÃO E AUTONOMIA NA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA – APROXIMAÇÕES ENTRE PAULO FREIRE E OTTO PETERS Melita Hickel Instituto Ecumênico de Pós-Graduação/Escola Superior de Teologia - IEPG/EST [email protected] Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo. Paulo Freire A participação em eventos regionais, nacionais e internacionais, tanto no Brasil quanto no Exterior, que abordam o tema da Educação a Distância (EAD) e a pesquisa que vem sendo desenvolvida pela autora, pesquisa esta que culminará em sua tese de doutorado, tem confirmado uma resposta positiva a um questionamento posto há alguns anos, quando do início de sua trajetória na Pós-Graduação Stricto Sensu em Teologia - Área de Concentração: Religião e Educação - no IEPG/EST, em São Leopoldo/RS. A pergunta feita é: É possível afirmar que a "pedagogia" de Paulo Freire pode contribuir para o entendimento e para o desenvolvimento da Educação a Distância? E a resposta objetiva é: SIM. Sim, é possível verificar traços do que Paulo Freire nos ensinou (e seus escritos continuam a nos ensinar!!!) nesta modalidade de ensino que, a cada dia que passa, mais e mais merece destaque nas manchetes dos jornais, nas Instituições de Ensino de todos os níveis e nas vidas das pessoas das mais diversas esferas sociais. Se é possível responder com apenas uma palavra e sermos enfáticos ao afirmar que os ensinamentos de Paulo Freire contribuem para esta modalidade de ensino, a justificativa para isso exige uma reflexão um pouco mais aprofundada, para que a leviandade de uma resposta rápida e curta não possa ser imputada a este tema tão sério e de tão grande relevância para a área da educação em todo o mundo. Num país com tantas desigualdades sociais como o Brasil, em que tantas pessoas são analfabetas de fato e há outros tantos cidadãos analfabetos funcionais, quem trabalha com educação tem um vasto campo para atuar. Além disso, sabe-se que, cada vez mais, temos que continuar aprendendo... é o aprender a aprender que tem que ser ensinado. O bom mestre não apenas faz com que seus alunos decorem regras e mais regras, para reproduzi-las em provas e trabalhos, mas ensiná-os a procurar e, o mais importante, a encontrar respostas a perguntas que a eles sejam feitas em qualquer época, local ou situação. A Educação a Distância atualmente tem recebido grande destaque e popularidade, porém, não é uma modalidade de ensino que tenha surgido recentemente, nem é um modismo. Ela apenas ressurgiu com muita força devido aos grandes avanços tecnológicos ocorridos nas últimas décadas. Além disso, o uso da tecnologia é um imperativo ético tanto para o professor, para que esse possa continuar a sua própria capacitação, como para o aluno, para que esse não seja excluído. A tecnologia pode derrubar muros, transformar as aulas em comunidades de trabalho e construir uma nova sociedade. No Século XXI, temos vida e trabalho mediados pela tecnologia. Devemos, portanto, aprender a usá-la crítica e criativamente. Mesmo aqueles que só trabalham com a modalidade de ensino presencial deverão dominar a tecnologia de Educação a Distância, pois essa servirá de enriquecimento àquela. A Educação a Distância é vista como uma solução viável às restrições em atender a crescente demanda por educação dos atuais sistemas de ensino presencial, além de ter uma grande importância como agente democratizador da educação na nova era, a chamada sociedade do conhecimento. Mas voltando ao ―SIM‖, escolhemos três categorias de análise para justificar a resposta dada, são elas: diálogo, participação e autonomia. Estas três categorias estão presentes tanto na obra de Paulo Freire, como nos ensinamentos do Prof. Dr. Otto Peters, fundador e primeiro reitor da FernUniversität de Hagen, Alemanha. A Educação a Distância é pensada como uma modalidade que precisa romper com as lógicas que permeiam a aprendizagem no ensino presencial, por meio da incorporação de uma característica comunicacional chave para esse processo: a interatividade e esta interatividade pode, também, ser chamada de diálogo: diálogo entre todos os atores envolvidos nos cursos a distância (aluno, professor, tutor, monitor). O diálogo acontece, também, nos inúmeros eventos e reuniões que abordam este tema e que têm contado com pesquisadores de diversas regiões do Brasil e do mundo. Nestas ocasiões, as pessoas têm espaço para expressar seus pensamentos e opiniões, seus anseios e projetos. Além disso, há o diálogo também na construção da legislação brasileira de educação a distância. O mais recente exemplo é a trajetória do Decreto 5622 de 2005, que, antes de ser publicado, circulou pelas caixas postais da comunidade interessada no assunto e recebeu sugestões antes de ser aprovado e entrar em vigor. Com a concepção Diálogo, PETERS (2001) refere-se à interação linguística direta e indireta entre docentes e discentes, portanto, refere-se ao diálogo que de fato acontece. Para MOORE (1993), apud PETERS (2001) Um diálogo é direcionado, construtivo e é apreciado pelos participantes. Cada uma das partes presta respeitosa e interessada atenção ao que o outro tem a dizer. Cada uma das partes contribui com algo para seu desenvolvimento e se refere às contribuições do outro partido. Podem ocorrer interações negativas e neutras. O termo diálogo, no entanto, sempre se reporta a interações positivas. Dá-se importância a uma solução conjunta do problema discutido, desejando chegar a uma compreensão mais profunda dos estudantes. Dessa forma, essa concepção está comprometida com a pedagogia humanista, onde o diálogo de pessoa para pessoa tem importância central, desde que transcorra sem estruturas e sem fim predeterminados. A aprendizagem dialogal exige dos estudantes parceria, respeito, calor humano, consideração, compreensão empática, sinceridade e autenticidade. O diálogo tem uma importância muito grande no ensino e na aprendizagem na Educação a Distância. Destacando tal relevância, PETERS detém-se no estudo detalhado dessa concepção, fazendo análises dos seguintes aspectos: didático-científico, didático-universitário, didáticoteleducativo, pedagógico, filosófico, antropológico, sociológico, e faz um balanço intermediário sobre o diálogo. Este diálogo faz com que a segunda categoria apareça, isto é, a participação. É através do diálogo entre os diversos atores envolvidos com a Educação a Distância e entre os participantes de cursos nesta modalidade de ensino que a participação acontece. E esta participação ocorre em função da terceira categoria de análise, que é a autonomia, isto é, em curso a distância, ninguém obriga ninguém a nada. Se o estudante não tem iniciativa e autonomia de estudo, ele não acessa as páginas do curso que escolheu, aliás, ele nem escolhe o curso. Segundo PETERS, (2001), O conceito ―autonomia‖ desempenhou papel importante na pedagogia alemã, porque foi relacionada tradicionalmente à questão da pedagogia em sua fase de emancipação em relação às demais ciências. Peters, assim como faz na primeira concepção apresentada, a saber, diálogo, detém-se nessa concepção apresentando o termo autonomia nas dimensões filosófica, pedagógica e didática, devido a sua profundidade, abrangência e por o mesmo ―estar ancorado multidimensionalmente em nosso pensamento‖. Para PETERS (2001), ―o estudo autônomo desempenha papel importante na educação de adultos e nas educações complementares‖. A autonomia contrapõe-se ao ensino programado, por este ser totalmente estruturado e não admitir obviamente a autonomia do estudante. Certo é que a valorização ou o emprego de uma categoria em detrimento das outras traz resultados negativos, ou seja, o ideal é haver o equilíbrio no uso delas. TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM: http://www.cead.ifmg.edu.br/site/downloads/dialogo_participacao_autonomia_em_ead.pdf CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO Ano XXI Boletim 03 - Abril 2011 CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO APRESENTAÇÃO DA SÉRIE Rosa Helena Mendonça5 Na virtualidade, termo novo e, também, tão pouco conhecido para a maioria, vamos nos educando por processos que aproximam fatos, lugares e histórias que antes, em geral, eram tão distantes de nós e que hoje tomam espaço tempo em nossa cotidianidade. Nela, vários autores têm ressaltado o fracionamento e a velocidade, mas também as possibilidades de mudanças ainda não pensadas e os processos pedagógicos que estão sendo acrescentados aos nossos processos educativos cotidianos. Para Pierre Lévy, autor de Cibercultura2, o ciberespaço é a virtualização da comunicação. O uso das tecnologias em diferentes esferas da sociedade contemporânea favorece a ideia de redes de conhecimento. E o que muda na educação presencial e a distância na emergência da cibercultura? Buscando resposta para esta e outras questões, a TV Escola, por meio do programa Salto para o Futuro, apresenta mais uma série voltada para as reflexões sobre tecnologias e redes. A série Cibercultura: o que muda na educação, com a consultoria de Edméa Santos (PROPED-UERJ), a partir das noções de currículo, didática e docência problematiza a questão, discutindo três eixos temáticos: a Educação a Distância na cibercultura; a docência online; o currículo multirreferencial. Nos textos que compõem esta publicação, professores, professoras, gestores e comunidade escolar em geral encontrarão subsídios para ampliar a reflexão sobre a temática. Nos programas televisivos que compõem a série, diferentes práticas comunicacionais e pedagógicas serão apresentadas e discutidas por meio de reportagens e entrevistas com pesquisadores, professores e alunos. Esperamos, dessa forma, contribuir para aprendizagens colaborativas, em conexão com diferentes mídias, considerando que os ‗espaços tempos‘ da educação na contemporaneidade são assumidamente mais amplos do que escolas e universidade. Na verdade, sempre foi assim, primeiro porque houve um tempo em que essas instituições nem existiam. Tendemos a nos esquecer disso! Depois, porque mesmo quando se procurava entre por muros 5 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC). separando as escolas do mundo lá fora, isso nunca foi de todo realizável, uma vez que instituições são feitas por pessoas que transitam por essas fronteiras. Hoje, com a popularização do acesso às tecnologias da informação e da comunicação e a ampliação das chamadas redes sociais, muito menos podemos pensar que essas vivências estejam excluídas dos currículos. E o futuro não para por aí! Cada vez mais, no entanto, a mediação de professores e professoras se mostra imprescindível, no sentido de, junto aos estudantes, refletir sobre o impacto das tecnologias no cotidiano, as questões éticas que envolvem a sua utilização e a necessidade de esforço no sentido de transformar informações em conhecimentos que possibilitem um mundo mais equânime para todos. CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO INTRODUÇÃO Edméa Santos6 A cibercultura é a cultura contemporânea estruturada pelo uso das tecnologias digitais em rede nas esferas do ciberespaço e das cidades. Compreendemos tais esferas como campos legítimos de pesquisa e formação, atribuindo-lhes o status de redes educativas. Atualmente, a cibercultura vem se caracterizando pela emergência da Web 2.0 com seus softwares e redes sociais mediadas pelas interfaces digitais em rede, pela mobilidade e convergência de mídias, dos computadores e dispositivos portáteis e da telefonia móvel. Nesta série para o programa Salto para o Futuro/TV Escola, interessa-nos compreender quais são as mudanças que ocorrem e/ou poderão ocorrer nas práticas curriculares, da educação presencial e a distância, em conexão com a cibercultura. As pesquisas nos/dos/com os cotidianos sobre a formação de professores, cuja abordagem teórico-epistemológico-metodológica considera a ideia de redes de conhecimentos e significações tecidas pelos praticantes em diversas redes educativas, indicam que a formação se dá em múltiplos contextos. Entre eles, o das ‗práticasteorias‘ da formação acadêmica, o das ‗práticasteorias‘ pedagógicas cotidianas; o das ‗práticasteorias‘ das pesquisas em educação e o das ‗práticasteorias‘ de produção e ‗usos‘ de mídias (Alves, 2010). Nesse sentido, essa tendência em pesquisa pauta-se na relação complexa e interativa entre as aprendizagens tecidas não apenas ao longo da formação acadêmica e do exercício da profissão, mas também nas vivências nos diversos ‗espaçostempos‘ das cidades, considerando que o docente interage e aprende com seus estudantes, seus pares, gestores, comunidade escolar, com as mídias, com e em redes educativas multirreferenciais e com a sociedade mais ampla. Nesta série abordaremos as especificidades do tema “Cibercultura: o que muda na Educação”. Ao longo de cinco programas, vamos discutir as práticas educativas mediadas por tecnologias digitais em rede e pela produção cultural gerada pelo uso de interfaces, mídias e redes no ciberespaço e nas cidades, e está organizada em três eixos temáticos: 6 Mestre e Doutora em Educação (FACED/UFBA). Professora adjunto da Faculdade de Educação da UERJ, atua no PROPED - Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, na Linha de Pesquisa: Cotidiano, Redes Educativas e Processos Culturais. Líder do GPDOC - Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura. Consultora da série. 1) EAD: antes e depois da cibercultura; 2) A pesquisa e a cibercultura como fundamentos para a docência online; 3) O currículo multirreferencial: outros espaçostempos para a educação online. Estes três eixos estão explicitados nas sinopses de cada texto da publicação eletrônica. Com esses eixos temáticos, discutiremos as atuais práticas de educação mediadas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação, em especial as interfaces síncronas e assíncronas encontradas no ciberespaço e nos ambientes virtuais de aprendizagem, que são práticas quase sempre de EAD – Educação a Distância. Estas práticas vêm recuperando noções de Currículo, Didática e Docência baseadas em teorias e práticas da EAD tradicionais estruturadas pela razão instrumental, pelas mídias de massa e por pedagogias da transmissão travestidas de ―tutoria‖. Aqui se tem como objetivos denunciar tais processos e apresentar a Educação Online como um fenômeno da cibercultura (Santos, 2005, 2006, 2010). A noção de Educação Online trazida por nós não separa mais as práticas da modalidade de educação presencial das práticas de educação a distância, uma vez que, de acordo com o que acreditamos, estar geograficamente dispersos não é estar distantes, especialmente quando tecnologias digitais em rede vêm proporcionando encontros e diálogos síncronos e assíncronos e instituindo novas possibilidades de presencialidade em redes educativas variadas. Nesse contexto, é preciso compreender como se dá a formação de professores para a docência online e alargar essas possibilidades, pois praticamente não contamos, ou contamos muito pouco, com processos de formação inicial específicos em cursos de graduação. Os processos de formação continuada vêm se instituindo em práticas e projetos pontuais e contextualizados, de acordo com os modelos curriculares específicos de instituições – públicas ou privadas – e de alguns docentes que vêm construindo e atuando na e pela internet com seus desenhos curriculares autorais. O desenho curricular de uma atividade online requer não só a preocupação com o material voltado para os estudos ligados aos conteúdos a serem ministrados, mas também – e sobretudo – com a forma como este material de estudos é disponibilizado no contexto de um ambiente virtual de aprendizagem. Um ambiente virtual de aprendizagem é um conjunto de interfaces digitais, que hospeda conteúdos e permite a comunicação, propiciando a expressão e a autoria dos participantes que habitam tais interfaces. Forma-se um híbrido entre objetos técnicos e seres humanos em processo de construção do conhecimento. Cada vez que um novo participante habita, com sua autoria criadora, uma das interfaces de um ambiente virtual de aprendizagem, o mesmo se auto-organiza, modificando não só o ambiente fisicamente, como também, em potência, a aprendizagem de todos os praticantes da comunidade. Não é o ambiente online que define e educação online. Ele condiciona, mas não a determina. Tudo dependerá do movimento comunicacional e pedagógico dos sujeitos envolvidos (SANTOS, 2005). Além de acreditarmos que só aprendemos porque o outro colabora com sua experiência, sua inteligência e sua provocação, sabemos que temos interfaces que favorecem a nossa comunicação de forma livre e plural. Neste contexto, precisamos repensar o trabalho docente. É deste lugar que conceituamos educação online como um fenômeno da cibercultura. Assim, entendemos as práticas de Educação Online como um processo complexo (de desterritorialização e reterritorialização de saberes e conhecimentos) que se institui a partir de uma série de ações e situações de ensino-aprendizagem, ou atos de currículo (MACEDO, 2000), mediadas por interfaces digitais que potencializam práticas comunicacionais e pedagógicas. TEXTOS DA SÉRIE CIBERCULTURA: O QUE MUDA NA EDUCAÇÃO 7 A série visa analisar as mudanças que ocorrem e/ou poderão ocorrer nas práticas curriculares em conexão com a cibercultura. Ao longo dos programas, serão discutidas as práticas de Educação a Distância mediadas por tecnologias digitais em rede e pela produção cultural gerada por estas interfaces no ciberespaço e nas cidades. TEXTO 1 EAD: ANTES E DEPOIS DA CIBERCULTURA Lucila Pesce8 No primeiro texto da série é apresentada uma retrospectiva histórica (não linear) sobre as práticas e processos curriculares da Educação a Distância, ressaltando-se que só com a chegada da Internet foi possível começar a se pensar em desenhos didáticos que pudessem contemplar processos interativos entre formandos e formadores, via fóruns e listas de 7 Estes textos são complementares à série Cibercultura: o que muda na Educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola de 25/04/2011 a 29/04/2011 8 Mestre e doutora em Educação: Currículo pela PUC/SP, com pós-doutorado em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Professora da UNIFESP discussão. O texto destaca, ainda, os potenciais comunicacionais, pedagógicos, tecnológicos e políticos das tecnologias digitais em rede. O presente texto advoga a ideia de que o advento da cibercultura traz vastas possibilidades para se repensar as hegemônicas práticas de Educação a Distância (EAD). Inicia-se com uma brevíssima retomada histórica das principais mídias utilizadas na EAD, no Brasil, e prossegue com considerações sobre a cibercultura, com o intuito de destacar sua contribuição para a elaboração de cursos mais intertextuais, hipermidiáticos, dialógicos e coautorais. Estudos sobre a história da EAD no Brasil (BARROS, 1994; GIUSTA, 2002) evidenciam que essa modalidade iniciou-se nas proximidades da década de 1940. A Fundação do Instituto Rádio-Monitor, o Instituto Universal Brasileiro e o Projeto Minerva configuramse como os marcos históricos daquela época. Pautada notadamente em material impresso, a primeira geração da EAD no Brasil cumpriu os fins a que se destinava: promover acesso ao conhecimento socialmente legitimado a segmentos sociais menos favorecidos, mediante ações de educação formal e não formal. Além do material impresso, o rádio também se situou como importante difusor dos cursos oferecidos na EAD da época. Com a chegada das fitas e vídeos cassete, a EAD incorporou estes dispositivos ao desenho didático de seus cursos, com materiais instrucionais que, a partir de então, também faziam uso destas mídias, em complemento ao rádio e ao material impresso. Anos mais tarde, o CD e o DVD viriam a cumprir, respectivamente, as funções da fita e do vídeo cassete. Entretanto, apesar da chegada desses dispositivos midiáticos, a lógica da mídia de massa predominava nos cursos desenvolvidos em EAD, pois eles ainda eram pensados a partir de uma abordagem instrucionista, em que o aluno seguia seu percurso de formação, com o apoio dos materiais autoinstrucionais e, eventualmente, contava com algum tipo de interação com a equipe de formação, por carta ou telefone. Somente com a chegada da Internet é que foi possível começar a se pensar em desenhos didáticos que pudessem contemplar processos interativos entre formandos e formadores, via fóruns e listas de discussão. Contudo, a primeira geração da Internet ainda não permitia a vivência plena da dialogia digital e da mediação partilhada (PESCE & BRUNO, 2007) entre professores e alunos, pois aos estudantes cabia acessar as informações do curso e, no melhor dos casos, interagir com o professor e com seus colegas de modo assíncrono, via fóruns e listas de discussão. A vivência do conceito de coautoria ainda não se pronunciava. Com a segunda geração da Internet, a chamada Web 2.0, é que a cibercultura se consolida. Com a chegada da Web 2.0, a arquitetura intertextual, hipermidiática, dialógica e coautoral da cibercultura pôde ser pensada com mais propriedade no âmbito educacional, conforme veremos a seguir, a partir de apontamentos em publicação anterior (PESCE, 2010). Na cibercultura veiculada na Web 2.0, o usuário insere-se como produtor e desenvolvedor de conteúdo e não somente como receptor de mensagem e/ou conteúdo de aprendizagem postado por outrem. A cibercultura, ao conjugar texto, áudio, imagem, animação e vídeo, assume uma natureza hipermidiática, que potencializa as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações e amplia os espaços de interação (PRIMO, 2008). Para Pierre Lévy (1997), analogamente à escrita e à imprensa, as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) trazem consigo um novo modo de pensar o mundo e de conceber as relações com o conhecimento. Nesse cenário, a simulação levanta-se como modo de conhecimento próprio da cibercultura. Os games e ambientes imersivos, como Second Life, ratificam a oportuna observação de Lévy e podem ser levados em conta na elaboração de desenhos didáticos de cursos em EAD. Lucia Santaella (2004) salienta que a interação insere-se na medula dos processos cognitivos, nos ambientes de rede. Ao destacar que o dialogismo traz nova luz para se compreender a interatividade e seu papel no desenvolvimento do perfil cognitivo do leitor imersivo, a pesquisadora declara: ―(...) assim como as operações realizadas no ciberespaço externalizam as operações da mente, as interatividades nas redes externalizam a essência mais profunda do dialogismo‖ (SANTAELLA, 2004, p. 172). No contexto coautoral e criativo das ―linguagens líquidas‖ da cibercultura (SANTAELLA, 2007) formam-se as redes sociais: fenômeno que tanto impacto vem causando às atuais organizações societárias, por se opor diametralmente à indústria cultural (ADORNO & HORKHEIMER, 1985). Para Antoun (2008), em contraposição à mídia irradiada, as redes sociais da cibercultura promovem comunidades de atividade ou interesse, graças à democratização não só do acesso à informação, mas também da publicação de produções e da ‗vigilância participativa‘ – termo por ele designado para se referir ao conjunto das expressões de opinião postadas como comentários, nos ambientes digitais. Costa (2008) sinaliza o sentimento de confiança mútua como um dos aspectos basilares da consolidação das redes sociais na cibercultura. Em concordância com Lévy (2002), o pesquisador salienta a relevância das redes sociais, pela capacidade de ação e potencialidade cooperativa. Em nosso entendimento, tais atributos materializam-se, por exemplo, quando cidadãos de Estados totalitários utilizam os dispositivos da cibercultura para ―burlar‖ a censura e mostrar ao mundo os despotismos de seu país. O estudioso finaliza advertindo que o fenômeno social da Web 2.0 nos força a pensar em outras formas de nos organizarmos em comunidades. Parafraseando Costa (ibid), salientamos que a cibercultura demanda da educação novos modos de organização. Ao pensar a Educação a partir do advento da cibercultura, trazemos Valente (1999), que distingue três abordagens na EAD. Na abordagem broadcast, o professor transmite a informação, via aparato tecnológico; daí sua proximidade com a concepção instrucionista. Esta abordagem consagra-se pelo apelo econômico; ou seja, pela possibilidade de se promover cursos financeiramente convidativos. Na ―virtualização da sala de aula presencial‖, o professor transfere para o espaço virtual a mesma dinâmica da aula presencial. Esta abordagem é muito comum, pela tendência dos formadores a transpor a dinâmica dos cursos presenciais para o contexto digital, sem as devidas readequações. Por sua vez, a abordagem ―estar junto virtual‖ contempla a dinâmica comunicacional, que privilegia a mediação do professor junto ao aluno, por meio da tecnologia, para que se realize o ciclo construcionista ―descrição-execução-reflexão-depuração-descrição‖. Tecnicamente, os dispositivos e interfaces da Cibercultura ampliam a possibilidade de se pensar em cursos mais dialógicos em EAD. Entretanto, para que isso ocorra é preciso vontade política. Vontade essa que se revela, por exemplo, na concepção de cursos economicamente não tão convidativos, que preveem uma relação adequada entre formador e alunos (por volta de 1 para 30), por apostarem na importância da formação dialógica (PESCE 2008). Aí incide um exemplo de vontade política de primar pela qualidade educacional, a despeito das possibilidades tecnológicas de se promover cursos em larga escala. • A partir dos aspectos teóricos até então anunciados, sintetizamos nossa reflexão sobre a contribuição da cibercultura para o avanço qualitativo da EAD: • A cibercultura acena outra lógica para a EAD, que não a instrumental, pragmática e prescritiva. • A cibercultura possibilita a ampliação da perspectiva de alteridade, ao promover vínculos entre sujeitos sociais de distintas culturas, que vivem circunstâncias sóciohistóricas semelhantes (por exemplo: vínculos entre professores da Educação Básica de distintos países). Essa condição é profícua ao enfrentamento esclarecido dos desafios que se lhes apresentam no cotidiano. • As redes sociais da cibercultura configuram-se como elemento importante para se subverter o status quo (como exemplo, o uso que tem sido feito pelos cidadãos de alguns países do Oriente Médio para enfrentar os regimes ditatoriais). • A cibercultura oferece a possibilidade de se trabalhar com diferentes dimensões da linguagem (textual, imagética, sonora...), em respeito aos distintos estilos de aprendizagem. Nesse cenário, destacamos o papel da simulação aos processos cognitivos. • O registro das interações no ciberespaço traz uma importante contribuição para a metarreflexão do aluno, do professor e do grupo como um todo, sobre o processo de construção do conhecimento, na interface entre as dimensões intra e intersubjetiva. • As características coautorais dos dispositivos e interfaces da cibercultura oportunizam a vivência plena da dialogia digital e da mediação partilhada: elementos fundantes da formação de comunidades de aprendizagem, para além dos tempos e espaços da sala de aula. Conforme dito no início do presente texto, a cibercultura traz vastas possibilidades para se repensar as hegemônicas práticas de EAD. Contudo, além da condição técnica, é preciso vontade política para se imprimir uma racionalidade mais dialógica, capaz de auferir um avanço de fato qualitativo a essa modalidade de educação. TEXTO 2 A DOCÊNCIA ONLINE O segundo texto da série discute, entre outros temas, o fato de que a educação online tem demandado novas relações com os saberes e como estes são mobilizados, mediados e tecidos com e por sujeitos imersos na cultura digital. Para tanto, torna-se necessário repensarmos o trabalho docente, estruturado pelas clássicas práticas de EAD. O professor como aquele que produz o conteúdo e o tutor como aquele que ―tira-dúvidas‖ dos alunos sobre o conteúdo elaborado pelo professor são papéis que precisam ser questionados. A docência online é mostrada como prática e como política de formação. Apesquisa e a cibercultura como fundamentos para a docência online Marco Silva9 Não há retorno quanto ao crescimento da educação via internet no Brasil e no mundo. A educação a distância, antes cheia de limitações específicas porque baseada em meios unidirecionais (impressos, rádio e TV), agora cresce muito com as potencialidades cada vez mais interativas da internet e das redes sociais online. A adesão social se amplia espantosamente. As instituições de ensino superior (IES) particulares saíram na frente e não se decepcionaram com a modalidade de cursos via internet. As universidades públicas, a partir da Universidade Aberta do Brasil (UAB), estão correndo atrás do prejuízo causado por décadas de resistências empedernidas. Nesse contexto, o desafio maior é a inclusão dos professores no cenário sociotécnico e comunicacional da cibercultura para nele operarem e educarem. Doravante, teremos mais do que a força da crítica já enfatizada por clássicos teóricos da educação à pedagogia da transmissão. Teremos a exigência cognitiva e comunicacional das gerações que emergem com a cibercultura, isto é, com a ambiência de conhecimento, de crenças, de artes, de éticas, de leis, de costumes, de hábitos e de aptidões desenvolvidos pelas sociedades na era digital em rede mundial de computadores (LEMOS e LEVY, 2010). O DESAFIO COMUNICACIONAL DA EDUCAÇÃO VIA INTERNET Dados estatísticos do INEP em 2009 revelam que mais de 50% dos professores de Ensino Fundamental passaram a ser formados na modalidade a distância. Isso assusta muita gente, que pergunta: ―como a formação para docência presencial pode ser realizada a distância?‖. Não bastasse essa preocupação, muitos ficarão ainda mais assustados se verificarem que a formação a distância ocorre sem mediação docente. Muitas vezes o que se tem é o autoestudo baseado em conteúdos massivos preempacotados. O velho modelo da distribuição de pacotes de informação, ditos ―conhecimentos‖, agora na internet, subutilizando as potencialidades interativas. Os chamados ―tutores‖, que são na verdade nossos conhecidos monitores, foram colocados no lugar dos professores e os sindicatos de 9 Sociólogo, doutor em educação, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá e professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro da diretoria da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura. Autor dos livros Sala de aula interativa e Educación interactiva presencial y on-line. Organizou os livros Educação online: cenário, formação e questões didático-metodológicas, Educação online: teorias, práticas, legislação e formação corporativa e Avaliação da aprendizagem em educação online. www.saladeaulainterativa.pro.br professores não os reconhecem na categoria profissional. Sem autoridade para professorar e sem formação específica para realizar mediação docente, eles acabam se limitando a administrar o feedback dos cursistas ou ao mero ―tira-dúvidas‖. Em suma, se não temos mediação docente efetiva na sala de aula presencial ou online, pergunto se nela haverá educação autêntica. Muitas pesquisas investigam a oferta de educação a distância no país. Algumas trazem resultados eloquentes e sugestões significativas para a superação de problemas recorrentes. Mas há muito que pesquisar e publicar. Não faltam novos campos de pesquisa em franco crescimento. Há a Universidade Aberta do Brasil (UAB), oferecendo graduação a distância com a chancela do MEC. No Rio de Janeiro há o CEDERJ, que atende às universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ, UERJ, UNIRIO, UFRRJ e UENF). Em São Paulo, há a UNIVESP, universidade a distância baseada na USP, UNESP e UNICAMP. Em geral, a tendência é ainda ensino massivo, subutilizando as interfaces interativas da internet e feito à base de tutoria reativa. Diversas universidades particulares estão se dedicando a esta modalidade de ensino, considerada bastante lucrativa. Os problemas, no entanto se avolumam e essa é a hora de aprofundar ou ampliar as pesquisas. Destaco o enorme desafio que a cibercultura traz para os cursos via internet. Trata-se do desafio comunicacional. Na cibercultura, os atores da comunicação tendem à interatividade e não mais à separação da emissão e recepção própria da mídia unidirecional de massa. Para posicionar-se nesse contexto e aí educar, os professores precisarão operar com o hipertexto, isto é, trabalhar com o contexto não-sequencial, com a montagem de conexões em rede, o que permite uma multiplicidade de recorrências entendidas como conectividade, diálogo e participação colaborativa. Eles precisarão compreender que de meros disparadores de liçõespadrão deverão se converter em formuladores de interrogações, coordenadores de equipes de trabalhos e sistematizadores de experiências em interfaces online desenvolvidas para contemplar a interatividade e não a unidirecionalidade. EAD E EOL: UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA NO CENÁRIO SOCIOTÉCNICO DA CIBERCULTURA A formação de professores para a docência via internet precisará distinguir educação a distância (EAD) e educação online (EOL), sem simplificar ou dicotomizar a ação docente. Precisará trabalhar com ambas as modalidades, inclusive, articuladas com o presencial. O cenário sociotécnico da cibercultura favorece compartilhamento e colaboração, expressões de uma ambiência comunicacional que favorece a educação autêntica. Social Tecnológico Há um novo espectador menos O computador conectado à Internet passivo diante da mensagem mais aberta à permite ao internauta-interator criação e sua intervenção. Ele aprendeu com o controle dos processos de informação e controle remoto da TV, com o joystick do comunicação videogame e agora aprende como o mouse e interfaces de mediante ferramentas e gestão, informação e com a tela tátil. Ele migra da tela da TV comunicação. Diferindo essencialmente da para a tela do computador conectado à TV como máquina restritiva e Internet. É mais consciente das tentativas de centralizadora, porque baseada na transmisprogramá-lo e mais capaz de esquivar-se são de informações elaboradas por um delas. Evita acompanhar argumentos centro de produção (sistema broadcast), o lineares que não permitem a sua in- computador online apresenta-se como terferência e lida facilmente com ambientes sistema aberto aos usuários, permitindo midiáticos que dependem do seu gesto ins- autoria e colaboração num ambiente de taurador que cria e alimenta a sua experiên- compartilhamento, de troca de informações cia comunicacional. e de construção do conhecimento. Entretanto, o professor precisará compreender esse cenário para nele atuar. Precisará repensar a mediação da aprendizagem que vem realizando na sala de aula presencial e na EAD unidirecional. Ao mesmo tempo, precisará de inclusão digital e cibercultural capaz de prepará-lo para ir mais além do uso instrumental da infotecnologia de informação e comunicação na formação de jovens e adultos. EAD EOL Docência unidirecional Docência interativa (mediação um-todos) (mediação todos-todos) Predefinido, fechado, Desenho didático dos conteúdos e das Predefinido linear, controlado por uma redefinido fonte emissora. atividades de aprendizagem audiovisuais unidirecionais. e Textos, colaborativa, multimídia Hipertextos, de e forma corregulada. multi e hi- permídia multidirecional, em rede. Tecnologias unidirecionais Tecnologias e reativas interativas online (impressos, rádio, TV, DVD (computador, celular, internet Tecnologias de informação e comunicação (TIC) e até o computador online, em múltiplas interfaces quando subutilizado em suas (chats, fóruns, wikis, blogs, potencialidades comu- fotos, Twitter, Facebook, nicacionais e hipertextuais). Orkut, videologs, etc.) para Modelo um-todos. expressão uni, bi e multidirecional em rede. Modelo todos-todos. Instrucionista, Pedagogia Construcionista, com transmissiva, tarefista, base no interacionismo, na aprendizagem solitária, dialógica, autoinstrução. e interatividade. Relações assimétricas, Mediação da aprendizagem colaboração Relações horizontais: verticais: autor/emissor hibridização e coautoria. Os separado de cursistas se encontram com o aprendiz/receptor. Cursista docente e constroem a comu- não interage com cursista nicação e o conhecimento. Avaliação unidirecional: avalia alunos. Autoavaliação, professor coavaliação Pontual e e heteroavaliação. Somativa e somativa. Trabalhos e testes formativa. Definição coletiva Avaliação da aprendizagem individuais durante e no final de critérios e rubricas de do curso. avaliação. Uso de múltiplas interfaces para avaliação da participação (wikis, fóruns, mapas colaborativos, webquests, blogs, chat, podcasting, etc.). Fonte. Apropriação livre de um quadro apresentado por Leonel Tractenberg na palestra “Avaliação de professores na educação online” no I Encontro de Tutores da UFJF, 20/11/2010, Juiz de Fora, MG. A modalidade ―a distância‖, via meios unidirecionais, separa emissão e recepção no tempo e no espaço. A modalidade online conecta professores e alunos nos tempos síncrono e assíncrono, dispensa o espaço físico, favorece a convergência de mídias e contempla bidirecionalidade, multidirecionalidade, estar-junto ―virtual‖ em rede e colaboração todostodos. Por sua vez, enquanto a modalidade ―a distância‖ é operada por meios de transmissão em sua natureza, a modalidade online lança mão das disposições favoráveis à interatividade cada vez mais presentes no cenário sociotécnico da cibercultura. Na docência online, o professor dispõe da infotecnologia em rede favorável à proposição do conhecimento à maneira do hipertexto. Aí ele pode redimensionar a sua autoria: não mais a prevalência da distribuição de informação para recepção solitária e em massa, mas a perspectiva da proposição complexa do conhecimento, da participação colaborativa dos participantes, dos atores da comunicação e da aprendizagem em redes que conectam textos, de áudios, vídeos, gráficos e imagens em links na tela tátil. Computadores, laptops, celulares e tablets conectados em rede mundial favorecem e potencializam a mediação docente interativa inspirada nas sugestões (SILVA, 2010): (a) propiciar oportunidades de múltiplas experimentações, múltiplas expressões; (b) disponibilizar uma montagem de conexões em rede que permita múltiplas ocorrências; (c) provocar situações de inquietação criadora; (d) arquitetar colaborativamente percursos hipertextuais e (e) mobilizar a experiência do conhecimento. Operar com estas cinco sugestões para docência interativa requer que o professor garanta atitudes comunicacionais específicas (SILVA, 2005, 2006, 2010, 2011): (a) acionar a participação-intervenção do receptor, sabendo que participar é muito mais que responder ―sim‖ ou ―não‖, é muito mais que escolher uma opção dada; participar é modificar, é interferir na mensagem; (b) garantir a bidirecionalidade da emissão e recepção, sabendo que a comunicação é produção conjunta da emissão e da recepção; o emissor é receptor em potencial e o receptor é emissor em potencial; os dois polos codificam e decodificam; (c) disponibilizar múltiplas redes articulatórias, sabendo que não se propõe uma mensagem fechada, ao contrário, oferecem-se informações em redes de conexões, permitindo ao receptor ampla liberdade de associações, de significações; (d) engendrar a cooperação, sabendo que a comunicação e o conhecimento se constroem entre alunos e professor, como cocriação; (e) suscitar a expressão e a confrontação das subjetividades no presencial e nas interfaces fórum, e-mail, chat, blog, wiki e portfólio, sabendo que a fala livre e plural supõe lidar com as diferenças na construção da tolerância e da democracia; (f) garantir no ambiente online de aprendizagem uma riqueza de funcionalidades específicas, tais como: intertextualidade (conexões com outros sites ou documentos), intratextualidade (conexões no mesmo documento), multivocalidade (multiplicidade de pontos de vista), usabilidade (percursos de fácil navegabilidade intuitiva), integração de várias linguagens (som, texto, imagens dinâmicas e estáticas, gráficos, mapas), hipermídia (convergência de vários suportes midiáticos abertos a novos links e agregações) (SANTOS, 2003); (g) estimular a autoria cooperativa de formas, instrumentos e critérios de avaliação, criar e assegurar a ambiência favorável à avaliação formativa e promover a avaliação contínua. No ambiente comunicacional assim definido, esses princípios da docência interativa são linhas de agenciamentos que podem potencializar a autoria do professor, presencial e online. A partir de agenciamentos de comunicação capazes de contemplar o perfil comunicacional da geração digital que emerge com a cibercultura, o docente pode promover uma modificação paradigmática e qualitativa na sua docência e na pragmática da aprendizagem e, assim, reinventar a sala de aula em nosso tempo. Todavia, para isso se faz necessário a pesquisa implicada com a efetiva formação de professores. A PESQUISA INTEGRADA À FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA DOCÊNCIA ONLINE A formação de professores ganhará muito se adotar metodologias que favoreçam a formação na ação. Pesquisa e formação poderão estar integradas como ―pesquisa-formação‖ (NÓVOA, 2004; SANTOS, 2005). Esta modalidade de investigação-atuação contempla a possibilidade de mudança das práticas e dos sujeitos em ação. Cada pessoa, cada equipe é, simultaneamente, objeto e sujeito da formação. A coletividade de pesquisadores também é o sujeito de ocorrências. Todo o conjunto de conteúdos e estratégias da e na ação docente deve emergir a partir dos problemas, temas e necessidades de todos os sujeitos pesquisadores. A pesquisa-formação não dicotomiza a ação de conhecer da ação de atuar, própria das pesquisas ditas ―aplicadas‖. O pesquisador é coletivo, não se limita a aplicar saberes existentes. As estratégias de aprendizagem e os saberes emergem da troca e da partilha de sentidos de todos os envolvidos. Experiências de pesquisa-formação costumam criar ambiências e dispositivos de pesquisa que fazem emergir o registro e a expressão de narrativas. Os sujeitos são incentivados a expressar suas itinerâncias formativas, promovendo, muitas vezes, a troca e o compartilhamento com outros sujeitos envolvidos no processo. São exemplos de dispositivos: o diário de bordo ou itinerância, os memoriais de pesquisa, entrevistas abertas, entre outros. Assim definida, a pesquisa requer o registro rigoroso e metódico dos dados. Adotará o registro em ―diário de bordo‖ – ou fórum geral online aberto à atuação de todos os envolvidos – como um instrumento necessário para consignar os dados recolhidos durante todo processo de pesquisa. Os registros diários e cotidianos precisarão atentar para o vivido na usabilidade do AVA, no desenho didático e na mediação docente. Aí está o tripé que gera evasão e banalização da educação ou inclusão e formação cidadã na cibercultura. Em suma, as pesquisas sobre EAD e sobre EOL no país precisam contribuir mais significativamente para a formação de professores para docência na cibercultura. Os docentes precisarão se preparar para lidar com a atualidade sociotécnica informacional e comunicacional definida pela codificação digital (bits) que garante o caráter plástico, hipertextual, interativo do conteúdo de aprendizagem tratável em tempo síncrono e assíncrono. A codificação digital permite manipulação de documentos, criação e estruturação de elementos de informação, simulações e formatações evolutivas nos ―ambientes virtuais de aprendizagem‖, concebidos para criar, gerir, organizar e movimentar uma documentação e para expressar, compartilhar, colaborar, comunicar e conhecer. O professor precisará lançar mão dessa disposição do digital para potencializar a construção da comunicação e do conhecimento em sua sala de aula online ou semipresencial. Ao fazê-lo, contemplará atitudes cognitivas e modos de pensamento que se desenvolvem juntamente com o crescimento da cibercultura. Contemplará o novo espectador, a geração digital e o espírito do tempo favorável à qualidade em educação autêntica, cidadã, que supõe participação, compartilhamento e colaboração. TEXTO 3: CURRÍCULO MULTIRREFERENCIAL No terceiro texto da série é discutida a noção de currículo multirreferencial. Esta noção questiona a dimensão do currículo ―programa-grande‖ e a ideia de espaços formais de aprendizagem como únicos lócus legítimos de formação. Os espaços multirreferenciais são todos os espaços onde seres humanos ensinam e aprendem com ou sem mediações formais ou centradas na lógica moderna das instituições escola-universidade. O ciberespaço e as cidades em conexão com as mídias digitais móveis e em rede serão tratados como potencializadores de novos arranjos espaço-temporais para a instituição de outras práticas curriculares em educação online. O currículo multirreferencial: outros espaços tempos para a educação online Edméa Santos10 Como já foi dito no texto introdutório desta série e nos dois textos anteriores, as tecnologias digitais em rede no ciberespaço e nas cidades vêm ampliando a nossa capacidade de memória, armazenamento, processamento e, sobretudo, de comunicação. A comunicação caracterizada pela liberação do polo da emissão torna a rede digital uma rede social, um espaço cultural onde a cibercultura se desenvolve. Segundo Santaella (2008) não podemos tratar as tecnologias digitais com o mesmo referencial que tratamos as mídias de massa. São tecnologias diferenciadas e, por isso, instituem outros processos cognitivos. A geração da TV é bem diferente da geração digital. A primeira geração da cibercultura foi condicionada pelo uso do computador conectado via desktop. O corpo preso e a mente em movimento. A segunda fase da cibercultura vem agregando novas potencialidades ao processo de construção de conhecimento, principalmente por conta da mobilidade. Mobilidade é uma das palavras-chave da cibercultura atual. Com os computadores e celulares móveis que se comunicam em rede e a convergência de mídias, o cérebro movimenta-se juntamente com a atividade corporal em movimento. Santaella (2008) destaca 10 Mestre e Doutora em Educação (FACED/UFBA). Professora adjunto da Faculdade de Educação da UERJ, atua no PROPED - Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, na Linha de Pesquisa: Cotidiano, Redes Educativas e Processos Culturais. Líder do GPDOC - Grupo de Pesquisa Docência e Cibercultura. Consultora da série. que no futuro próximo haverá total hibridação corpo humano, tecnologias e redes. O interesse acadêmico aumenta com o crescente desenvolvimento tecnológico e o acesso a essas tecnologias por um número cada vez maior de indivíduos. Além do desenvolvimento tecnológico e do acesso de boa parte da população a esses recursos, vivenciamos um crescente movimento de ―redes horizontais de colaboração”. Segundo Pretto e Bonilla (2008), novas redes começam a se configurar no cenário nacional. Políticas governamentais no âmbito de projetos nas áreas da ciência, tecnologia e cultura, a exemplo dos ―pontos de cultura‖ implementados pelo Ministério da Cultura; projetos de universidades públicas, organizações não governamentais, ativistas culturais, o fenômeno das lanhouses, entre outros. Dos programas internacionais que utilizam as tecnologias móveis na prática pedagógica podemos destacar o projeto da organização americana OLPC (One Laptop per Child), idealizado por um grupo de pesquisadores, dentre eles o pesquisador Nicholas Negroponte, do MIT (Massachusetts Institute of Technology). No Brasil desde 2006 o MEC vem ampliando o uso de laptops em algumas escolas brasileiras, por meio do PROUCA, mais conhecido como UCA (Um Computador por Aluno). Diferentemente do projeto OLPC, que garante um computador por criança, o projeto brasileiro demarca que seu projeto considera a criança que estuda, ou seja, um aluno matriculado no sistema de educação pública do país. Esse desenvolvimento, ainda incipiente no Brasil, nos convida ao investimento urgente em ações formativas e novas pesquisas que garantam novas práticas que não subutilizem as tecnologias digitais e as redes sem fio nos espaços educativos. Nesse contexto de redes e conexões, temos a presença significativa da juventude. Segundo os autores: As redes conectam pessoas, instituições, setores e ajudam a articular as ações. Com elas, e com as pessoas se apropriando das tecnologias, novos saberes são produzidos, novas formas de ser e de pensar esse alucinado mundo contemporâneo emergem. Passamos a conviver, mesmo com todas as dificuldades de acesso, com novas formas de partilhar o conhecimento, com novas linguagens e novas formas de expressões (PRETTO e BONILLA, 2008, p. 84). A mobilidade é a capacidade de tratar a informação e o conhecimento na dinâmica do nosso movimento humano na cidade e no ciberespaço simultaneamente. Para tanto, precisamos de interfaces que nos permitam protagonizar nessa dinâmica. Essas interfaces vêm sendo chamadas de ―dispositivos móveis‖. Com a mobilidade dos laptops, os docentes e discentes podem mapear, acessar, manipular, criar, distribuir e compartilhar informações e conhecimentos a qualquer tempo e espaço acessados por tecnologias de redes. Essa flexibilidade só é possível por conta da mobilidade própria do laptop, que pode ser transportado pelo docente, e pelo acesso à internet. O acesso à internet é fundamental. Um laptop sem rede é uma máquina semântica, que nos permite criar conhecimento em vários gêneros textuais, a partir do acesso e manipulação de informações armazenadas, mas não nos permite acessar redes e conexões. Portanto, além de ter o laptop, é necessário acessar com ele a rede mundial de computadores, a internet. Assim, poderemos instituir práticas e currículos online. A educação online é uma modalidade de educação que pode ser vivenciada ou exercitada tanto para potencializar situações de aprendizagem mediadas por encontros presenciais, quanto a distância, caso os sujeitos do processo não possam ou não queiram se encontrar face a face; ou ainda situações híbridas, nas quais os encontros presenciais podem ser combinados com encontros mediados por tecnologias telemáticas (SANTOS, 2005). Entendemos a Educação, com letra maiúscula, como um processo amplo que vai além da modalidade de organização dos processos de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, as tecnologias digitais em rede podem potencializar a educação em geral (presencial ou online) e a formação de educadores, pois permitem: • Extensão e novas arquiteturas da sala de aula para além da localização física. • Acesso a diversos objetos de aprendizagem, interfaces e informações em rede. • Comunicação interativa entre seres humanos e objetos técnicos. • Formação de comunidades de prática e de aprendizagem para além das fronteiras institucionais. • Vivenciar novas relações com a pesquisa em suas diversas fases. Tais potencialidades desafiam a pesquisa, que relaciona educação e cibercultura. Precisamos instituir novas metodologias e novas práticas curriculares multirreferenciais. A abordagem multirreferencial parte do princípio de que todos os sujeitos envolvidos formam e se formam em contextos plurais de situações de trabalho e aprendizagem. Os professores e pesquisadores universitários contribuem com suas itinerâncias científicas, sustentadas pela prática da pesquisa acadêmica, prática muitas vezes articuladora da teoria e da prática. Os professores da escola básica são os únicos que vivenciam o lócus escolar em sua complexidade. Nessa relação procuram fazer a transposição didática das aprendizagens científicas com suas situações e desafios cotidianos. Muitas vezes criam etnométodos, métodos próprios para lidar com as situações educacionais, aprendendo com o dia a dia da comunidade escolar. Interagem diretamente com o sujeito cultural do nosso tempo, o estudante. Em tempos de cultura digital, os estudantes vivenciam experiências culturais com o computador e a internet bastante diferentes das experiências vivenciadas pelos professores. De um lado temos os professores, imigrantes digitais; do outro, os alunos, nativos digitais. Os primeiros utilizam com pouca ou muita destreza as tecnologias digitais, mas, muitas vezes, não as vivenciam em seu lócus natural. Os segundos vivenciam a cultura digital como membros e não como estrangeiros. Dessa forma, não podemos excluir o estudante da escola básica do processo formativo do lugar de formadores. Tanto os professores universitários quanto os professores da escola básica podem ensinar e aprender com seus estudantes. Assim, ampliamos a noção de sujeitos formadores nos permitindo aprender com as novas gerações. O conceito de multirreferencialidade é pertinente para contemplar, nos espaços de aprendizagem, uma leitura plural de seus objetos (práticos ou teóricos), sob diferentes pontos de vistas, que implicam tanto visões específicas quanto linguagens apropriadas às descrições exigidas, em função de sistemas de referenciais distintos, considerados, reconhecidos explicitamente como não redutíveis uns aos outros, ou seja, heterogêneos‖ (ARDOINO, 1998, p. 24). A multirreferencialidade como um novo paradigma torna-se hoje grande desafio. Desafio que precisa ser gestado e vivido, principalmente pelos espaços formais de aprendizagem, que ainda são norteados pelos princípios e pelas práticas de uma ciência moderna. Por outro lado, diferentes parcelas da sociedade vêm criando novas possibilidades de educação e de formação inicial e continuada. A emergência de atividades (presenciais e/ ou online, estruturadas por dispositivos comunicacionais diversos), cursos (livres, supletivos; qualificação profissional), atividades culturais diversas, artísticas, religiosas, esportistas, comunitárias começam a ganhar, neste novo tempo, uma relevância social bastante fecunda. As redes sociais da internet são um exemplo concreto. Tal acontecimento vem promovendo a legitimação de novos espaços de aprendizagem, espaços esses que tentam ―fugir do reducionismo que separa os ambientes de produção e os de aprendizagem (...), espaços que articulam, intencionalmente, processos de aprendizagem e de trabalho‖ (BURNHAM, 2000, p. 299). Os sujeitos que vivem e interagem nos espaços multirreferenciais de aprendizagem expressam, na escola, insatisfações profundas, pondo em xeque o currículo fragmentado, legitimando inclusive espaços diversos – espaços esses que há bem pouco tempo não gozavam do status de espaços de aprendizagem – através da autoria dos sujeitos construídos pela itinerância dos processos nesses espaços. É pela necessidade de legitimar tais saberes e também competências que diversos espaços de trabalho estão certificando os sujeitos pelo reconhecimento do saber fazer – competência – independentemente de uma suposta formação institucional específica, como, por exemplo, as experiências ―formais‖ de formação inicial. A noção de espaço de aprendizagem vai além dos limites do conceito de espaço/lugar. Com a emergência da ―sociedade em rede‖, novos espaços digitais e virtuais de aprendizagem vêm se estabelecendo a partir do acesso e do uso criativo das novas tecnologias da comunicação e da informação. Novas relações com o saber vão-se instituindo num processo híbrido entre o homem e a máquina, tecendo teias complexas de relacionamentos com o mundo. Para que a diversidade de linguagens, produções e experiências de vida sejam de fato contempladas de forma multirreferencializada, nos e pelos espaços de aprendizagem, os saberes precisam ganhar visibilidade e mobilidade coletiva, ou seja, os sujeitos do conhecimento precisam ter sua alteridade reconhecida, sentindo-se implicados numa produção coletiva, dinâmica e interativa que rompa com os limites do tempo e do espaço geográfico. O desafio de criar um currículo que contemple a diversidade do coletivo, permitindo que as singularidades possam emergir, potencializando as experiências multirreferenciais dos sujeitos, requer não só uma mudança paradigmática das concepções de currículo, como requer também o uso de dispositivos comunicacionais, interfaces digitais, que permitam uma dinâmica social que rompa com as limitações espaço/temporais dos encontros presenciais. Nesse sentido, o acesso e uso criativo das tecnologias em rede podem estruturar as relações curriculares de forma complexa e dinâmica. Obviamente, o uso de dispositivos comunicacionais por si só não construirá um currículo em rede; entretanto, pode potencializálo. Presidência da República Ministério da Educação TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO Coordenação-geral da TV Escola Érico da Silveira Coordenação Pedagógica Maria Carolina Mello de Sousa Supervisão Pedagógica Rosa Helena Mendonça Acompanhamento Pedagógico Carla Ramos e Ana Maria Miguel Coordenação de Utilização e Avaliação Mônica Mufarrej Fernanda Braga Copidesque e Revisão Magda Frediani Martins Diagramação e Editoração Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil Gerência de Criação e Produção de Arte Consultora especialmente convidada Edméa Santos E-mail: [email protected] Home page: www.tvbrasil.org.br/salto Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro. CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ) Abril 2011 TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM: http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/212448cibercultura.pdf O Impacto do Conceito de Cultura Sobre o Conceito de Homem Clifford Geertz11 O antropólogo francês Lévi-Strauss afirma que a explicação científica busca substituir complexidades pouco compreensíveis por complexidades mais compreensíveis, e não reduzindo exclusivamente a complexidade como se imagina. Partindo deste princípio, Clifford Geertz ensina que as ciências sociais, muito mais complexas por sua essência, também devem buscar a ordenação de sua complexidade. A idéia iluminista defendia que o homem, mesmo inserido em diversos contextos, costumes, crenças e lugares, poderia ser definido por suas características gerais, presentes em todos os indivíduos da sua espécie. Esta generalização, que buscava a simplicidade de análise e definição, falhou em vários aspectos que, por serem muito superficiais, perderam o sentido da própria definição ou tornaram por demais complexa a distinção entre características gerais e características localizadas. Assim, diferente da idéia iluminista do homem – regulada, invariante e simples, o avanço da concepção científica da cultura propiciou uma nova idéia de homem, muito mais complexa do que se imaginava, e que até então os estudos não conseguiram organizar. É a partir do reconhecimento do homem com suas características gerais e do homem como fruto de lugares e épocas distintas é que a antropologia busca definí-lo. De fato, apesar de a espécie humana possuir distintivas universais, é improvável que se possa definir um indivíduo como um ser desprovido das características impostas por sua cultura, necessárias até mesmo para situá-lo como membro de uma determinada sociedade. Todavia, também não se pode perder a essência do homem em suas características irrelevantes, o que fatalmente levaria sua definição a diversas caracterizações meramente pessoais e localizadas. Conforme Clifford Geertz, todas ou virtualmente todas as correntes teóricas que tentaram localizar o homem no conjunto de seus costumes adotaram uma tática de relacionar os fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais entre si, denominada por ele como concepção estratigráfica. A estratigrafia compreenderia o homem como a sobreposição destes incontestáveis fatores em camadas completas e irredutíveis. Os fatores culturais, neste conceito de estratificação hierárquica, não se misturam com os demais fatores, pressupondo 11 Artigo enviado por Danilo Christiano Antunes Meira, em 22/05/2008, às 02:06:01 uma relação de independência, criando a imagem de um homem que, embora racional, estaria nu em relação aos seus costumes. A análise concreta e a pesquisa da concepção estratigráfica buscaram definir universais na cultura através do consensus gentium, no meio da diversidade do mundo e do tempo, para que através destes fossem traçadas as características culturais essenciais ao homem, distinguindo-os dos demais traços localizados e periféricos. A idéia de consensus gentium ligado à cultura foi utilizada por diversos teóricos e com diversas denominações, tais como fez Clark Wisser com ―o padrão cultural universal‖, Bronislaw Malinowski com ―tipos institucionais universais‖ e G. P. Murdock e seus ―denominadores comuns da cultura‖. A busca destas universais da cultura, características comuns e generalistas aos povos, encontra diversos entraves em sua própria essência. Nesta afirmação, Clifford Geertz enumera 3 premissas que devem ser observadas: 1. Os universais propostos devem possuir teor substancial e não apenas categorias vazias. 2. Os universais propostos devem ser fundamentados em processos particulares biológicos, psicológicos ou sociológicos e não apenas associados a realidades adjacentes. 3. Os universais propostos devem ser convincentemente defendidos como elementos essenciais em uma definição de humanidade perante outras particularidades culturais secundárias. Sobre as reservas propostas e citando instituições como religião, família e casamento, Clifford Geertz afirma que ao abstrair as diferenças destes universais empíricos, como proposto pela abordagem consensus gentium, estes perdem a sua essência. Também, caso não sejam abstraídas as características, não seria possível afirmar que tais manifestações culturais possuam entre si o mesmo teor, dadas as suas distintas circunstâncias. Assim prosseguindo, o autor demonstra que o fato de o conceito estratigráfico separar em camadas independentes os supostos constituintes do homem faz com que os mesmos não possam ser compreendidos como um conjunto interligado, anulando a possibilidade de um fenômeno não-cultural justificar um fenômeno natural. Também, salienta que quando se intenta combinar suportes universais, baseados nos ―pontos invariantes de referência‖, às exigências humanas subjacentes, como a necessidade de reprodução e o casamento, se perde a relação dos níveis de relacionamento estratigráfico se deseja manter, pois tais afirmações são desprovidas de qualquer integração teórica. Diante do impasse criado pela inadequação da teoria de conceito estratigráfico à sua prática, Clifford Geertz salienta que a tipificação adequada de homem não pode se basear na busca de constantes universais diante das particulares e acrescenta: ―… pode ser que nas particularidades culturais dos povos – nas suas esquisitices – sejam encontradas algumas das revelações mais instrutivas sobre o que é genericamente humano. E a principal contribuição da ciência antropológica à construção – ou reconstrução – de um conceito do homem pode então repousar no fato de nos mostrar como encontrá-las.‖ Clifford Geertz defende que o fato de os antropólogos optarem pelas universais culturais, diante da diversidade do comportamento humano, é o receio que o relativismo cultural trazido pelo historicismo prive-os de um ponto fixo. Todavia, também não se pode afirmar que todos os atos feitos por um grupo devem ser dignos de respeito por qualquer outro. De fato, se deve procurar relações sistemáticas entre fenômenos diversos, pois as diferentes características apresentadas por diversas culturas podem contribuir mais para o entendimento do homem que a relação de identidades substantivas em fenômenos similares. Ao passo da abordagem estratigráfica, deve-se ater a uma abordagem sintética, onde os fatores sociais, culturais, biológicos e psicológicos são compreendidos como variáveis de um sistema unitário de análise, integrando diferentes tipos de teoria e conceitos a fim de formular novas proposições. Partindo deste princípio, Clifford Geertz propõe duas idéias: primeiramente, a cultura não deve ser vista como um padrão concreto de comportamento – costumes, usos e tradições, e sim como um conjunto de mecanismo de controle – planos, receitas, regras e instruções. A segunda proposição baseia-se no fato de o homem ser o animal mais dependente de controles extragenéticos que regulam o seu comportamento. Seguindo-se o proposto, a definição de homem passa a enfatizar a cultura como mecanismo de controle, o que pode ser verificado no fato de o homem visto como um equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas acaba por viver apenas uma. Esta perspectiva de cultura como mecanismo de controle se fundamenta no pressuposto de que o pensamento humano é baseado em um tráfego público de símbolos significantes – palavras, gestos, relógios, jóias ou qualquer coisa afastada da realidade e que seja usada para exteriorizar uma experiência e auto-orientar-se no ―curso corrente das coisas experimentadas‖, como define John Dewey. ―Não dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos significantes – o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela – a principal base de sua especificidade.‖ Para que este conceito se tornasse possível, Clifford Geertz enfatiza os avanços recentes da nossa compreensão em relação à evolução do primata ao homo sapiens e especifica os 3 mais relevantes: 1. Descartar a perspectiva seqüencial que definia a evolução física anterior à evolução intelectual, visto que os hominídeos moldaram seus descendentes através da cultura. Esta produção e transmissão de cultura foram essenciais para que o mesmo se evoluísse à definição de homem. 2. A descoberta que as principais mudanças biológicas que originaram o homem moderno ocorreram no sistema nervoso central, e especialmente no cérebro que, com o acúmulo e desenvolvimento da cultura, representou, além de maiores proporções físicas, a maior evolução de fato. 3. A compreensão de que o homem é um ser incompleto, dependente da cultura para se completar, distinguindo-se dos não-humanos mais do que sua capacidade de aprendizado, por sua necessidade de aprendizado para se comportar como ser humano. Assim, a nova perspectiva da evolução do homem pressupõe o fato de que o processo de produção, acúmulo e transmissão de cultura foi o responsável pelo surgimento do homem como conhecemos, pois na ausência deste processo o homem poderia ser entendido como um monstro incontrolável, um caso psiquiátrico. Entre o que o nosso instinto intenta e o que o homem deseja fazer há lacunas que devem ser preenchidas com as informações adquiridas pela cultura, dado que os valores, atos e até o sistema nervoso, como ironiza o autor, são produtos culturais. TEXTO COMPLETO DISPONÍVEL EM: http://www.jurisciencia.com/artigos/cliffordgeertz-o-impacto-do-conceito-de-cultura-sobre-o-conceito-de-homem/73/