1 A PERSONALIDADE JURÍDICA DO NASCITURO Um estudo à luz do ordenamento jurídico KARINA CAVALCANTE CARDOSO1 RESUMO: O presente trabalho tem a pretensão de contribuir com uma discussão travada na doutrina acerca de um dos temas mais apaixonantes e controvertida do Direito Civil, que é a personalidade jurídica do nascituro diante do ordenamento jurídico pátrio. Dessa forma, o presente artigo busca através de uma pesquisa doutrinária e jurisprudencial, uma explicação para o tratamento conferido ao nascituro no Código Civil de 2002, vez que, se a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro, o mesmo deve ser considerado um sujeito de direitos, que adquire personalidade jurídica desde a concepção e, sendo titular deste, tem direito à vida digna. Palavras-chave: personalidade jurídica – nascituro – direito à vida. O presente trabalho tem por objetivo analisar a personalidade jurídica do nascituro frente ao ordenamento jurídico pátrio. Nascituro é o termo que se dá ao ente já concebido no ventre materno, embora ainda não nascido. Em outras palavras, “é aquele que há de nascer”. Existe uma grande perplexidade doutrinária para definir e demarcar o início da personalidade jurídica do nascituro. Duas foram as principais teorias formuladas a fim de determinar este ponto de partida. A primeira foi a Teoria Natalista, segundo a qual assevera categoricamente que a aquisição da personalidade civil do homem opera-se a partir do nascimento com vida, deixando de ser feto o nascituro, passando a ser pessoa. Em contrapartida, a segunda Teoria, denominada Concepcionista acredita que o nascituro adquire a personalidade civil desde a concepção, sendo, assim, considerado pessoa. Nesse sentido, Semião afirma que: 1 Aluna do 8° período das Faculdades de Direito Promove. 2 Falar em direitos do nascituro é reconhecer-lhe qualidade de “pessoa”, porque, juridicamente, todo titular de direito é pessoa. “Pessoa”, em linguagem jurídica, é exatamente o sujeito ou o titular de qualquer direito. Em seguida afirma que, dito que o nascituro tem direitos, estar-se-á, ipso facto, afirmando que ele é sujeito de direitos e, portanto, pessoa ( SEMIÃO, 2000, p. 35). Os adeptos da teoria concepcionista afirmam que a punição do aborto no Código Penal Brasileiro2, como um crime contra a pessoa é a nítida expressão da proteção da vida do nascituro como pessoa, ou seja, é o mais significativo sinal de que o nascituro no Direito Brasileiro tem personalidade civil e é pessoa. Asseveram ainda os defensores da teoria concepcionista que, a vida é um bem inalienável, um direito personalíssimo, e, nesse sentido, há um direito à vida, entretanto não há direito sobre a vida, no sentido de que, se a mãe não tem direito sobre a sua própria vida, para dela dispor, não há embasamento reconhecer-lhe o direito de dispor da vida do próprio filho por nascer (SEMIÃO 2000, p. 36). Por outro lado os adeptos da teoria natalista asseguram ser o nascituro um mero expectador de pessoa e, por isso, possui meras expectativas de direito, sendo considerado como existente, desde a sua concepção, somente para aquilo que lhe é juridicamente favorável. Nesse sentido, faz-se necessário, portanto, uma análise da proteção do nascituro no sistema legal brasileiro, discutindo-se primordialmente qual dentre as teorias acima mencionadas, seria a mais adequada a se adotar no ordenamento jurídico pátrio. Gagliano e Pamplona Filho (2008, p. 82) afirmam que “O Código Civil trata do nascituro quando, posto não o considere pessoa, coloca a salvo os seus direitos desde a concepção[...]”. Desse modo, passa a transcrever o artigo 2º do CC/02, antigo art. 4º do CC/19163, in verbis : “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Não obstante a Lei Civil e a maior parte da doutrina aparentemente adotarem a Teoria Natalista, reconhecendo ao nascituro mera expectativa de direitos, a questão não é tão simples. Pois, o modelo adotado não encontra embasamento na Teoria Geral do Direito, uma 2 Arts. 124, 125 e 126 do Código Penal Brasileiro. Aprofundando a questão, para admitir, inclusive, a proteção legal desde a mais simplificada forma de vida humana, inclusive a concebida in vitro, prevê o Projeto de Lei n. 6.960 de 2002 (atual n. 276/2007), que o referido artigo tenha a seguinte redação: “Art. 2° A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do embrião e os do nascituro (...)”. 3 3 vez que, não há direito subjetivo sem titular, assim como não há titular sem personalidade jurídica. Pelo exposto, constata-se que o dispositivo é controverso, haja vista que na primeira parte -A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida- deduz-se que o nascituro não é pessoa e não o sendo não deveria ter direitos. Entretanto, diz a segunda parte -mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro-. Ora, se o nascituro possui direitos, está se afirmando que ele é um sujeito de direitos e, portanto, pessoa. O mesmo não se trata, no dizer de vários autores, de um simples expectador de pessoa (spes personae), que possui “expectativas de direito”, muito pelo contrário, seus direitos são atuais, dos quais o nascituro goza desde a concepção. Nesse sentido, Nader explica que: Em torno da condição sui generis do nascituro há distinções e construções cerebrinas que padecem, sobretudo, de algum alcance prático. Dúvida não há quanto à imperiosa necessidade de se proteger o presente e o futuro do ser humano em formação e a este respeito não divergem os cultores do direito. A dificuldade está localizada na Teoria Geral do Direito, que ainda esta por teorizar a questão em harmonia com os seus próprios princípios (NADER 2004, p. 186). A problemática que surge é, pois, o de saber quando o ser humano reconhece o início da sua vida (e de outros), consequentemente o início da sua personalidade humana. Atualmente, é difícil negar que esse reconhecimento da vida se opera no momento da concepção. O nosso ordenamento jurídico confere alguns direitos ao nascituro, tais como: o nascituro é titular de direitos personalíssimos (como direito à vida, o direito à proteção prénatal); pode receber doação, sem prejuízo do recolhimento do imposto de transmissão inter vivos; ser adotado, com consentimento do seu representante legal; poder ser beneficiado por legado ou herança; pode ser-lhe nomeado um curador para a defesa de seus interesses se o pai falecer e a mãe, estando grávida, não tiver pátrio poder, notando-se que, se a mulher estiver interdita, o seu curador será o do nascituro; o Direito Penal pune a provocação do aborto, considerando um crime contra a vida, protegendo, assim, o nascituro como um ser humano; ver reconhecida sua filiação e até mesmo pleiteá-la judicialmente por seu representante; ter garantia de direitos previdenciários e trabalhistas, como, por exemplo, direito à pensão por acidente profissional sofrido por seus pais etc. 4 Dessa forma, é indubitável que o nascituro tem “personalidade jurídica” e não apenas "expectativa de direitos", como quer alguns. É pessoa natural, um sujeito de direitos, mesmo sem ter nascido. Nesse sentido, Chinelato e Almeida citado por Gagliano e Pamplona Filho, apresenta uma formulação mais precisa do problema: Juridicamente, entram em perplexidade total aqueles que tentam afirmar a impossibilidade de contribuir capacidade ao nascituro ‘por este não ser pessoa’. A legislação de todos os povos civilizados é a primeira a desmenti-lo. Não há nação que se preze (até a China) onde não se reconheça a necessidade de proteger os direitos do nascituro (Código chinês, art. 1°). Ora, quem diz direitos, afirma capacidade. Quem afirma capacidade, reconhece personalidade (CHINELATO E ALMEIDA apud GAGLIANO E PAMPLONA FILHO, 2008, p. 84). Nesse sentir, em defesa da corrente concepcionista, haja vista a polêmica doutrinária existente, vale conferir o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, in verbis: SEGURO-OBRIGATORIO. ACIDENTE. ABORTAMENTO. DIREITO A PERCEPCAO DA INDENIZACAO. O NASCITURO GOZA DE PERSONALIDADE JURIDICA DESDE A CONCEPCAO. O NASCIMENTO COM VIDA DIZ RESPEITO APENAS A CAPACIDADE DE EXERCICIO DE ALGUNS DIREITOS PATRIMONIAIS. APELACAO A QUE SE DA PROVIMENTO. (5 FLS.) (Apelação Cível Nº 70002027910, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Julgado em 28/03/2001). 4 Percebe-se que a Lei Civil não impôs qualquer outra condição, além do nascimento com vida, para o início da personalidade jurídica. No tocante à matéria sucessória é relevante a indagação quanto às condições do nascimento, se com vida ou não. Opera-se juridicamente a transmissão de bens ao nascituro se havia expectativa do mesmo vir a herdar e se chegou a adquirir personalidade humana, por outro lado, se houve nascimento sem vida a sucessão não chegou a operar-se (NADER, 2004, p. 186). Nesse sentido, Campos afirma que: O nascituro tem plena capacidade sucessória, como qualquer ser humano. Ao ser chamado a suceder, o nascituro é-o como pessoa já existente (plenamente) com todas as conseqüências que daqui derivam. Se falecer antes do nascimento, os bens adquiridos transmitem-se aos seus herdeiros (CAMPOS, 2007, p. 27). 4 - TIPO DE PROCESSO: Apelação Cível, NÚMERO: 70002027910, RELATOR: Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, APELANTES: Vera Gleci Chaves e João Doli Dutra PortoHBSC, APELADO: Bamerindus Seguros, DATA DE JULGAMENTO: 28/03/2001, PUBLICAÇÃO: Diário de Justiça do dia. 5 Em relação à personalidade, temos que todo ser humano é dotado de personalidade desde o início de sua existência, assim como a pessoa jurídica. Contudo, não se confunde a personalidade com a pessoa, uma vez que aquela é o atributo desta. No âmbito da Teoria Geral do Direito Civil, a personalidade jurídica é denominada como a capacidade genérica para adquirir direitos e assumir obrigações, ou em outras palavras, é o atributo indispensável para ser sujeito de direito (DINIZ, 2007, p. 114). Nesse sentido, Lisboa assim destacou: Na definição clássica, a personalidade é a capacidade de direito ou de gozo da pessoa de ser titular de direitos e obrigações, sendo que o seu grau de discernimento é irrelevante, em virtude de direitos que são próprios à natureza humana e sua projeção para o mundo exterior (LISBOA, 2003, p. 245). Portanto, adquirida a personalidade, o ente na qualidade de sujeito de direito (pessoa natural ou jurídica), passa a praticar atos e negócios jurídicos das mais diferentes nuanças. Para o direito, a pessoa natural é o ser humano enquanto sujeito/destinatário de direitos e obrigações. No tocante à pessoa natural ou física, o Código Civil de 2002, em seu art. 1°, dispõe que: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Não obstante o fato de tão-somente a pessoa física e a pessoa jurídica terem personalidade, a lei assegura a proteção do nascituro, desde a sua vida intra-uterina, ou seja, desde a concepção. Sendo assim, a este são outorgados os direitos personalíssimos conjugados com a situação do ser humano em desenvolvimento no ventre materno. Existem os chamados direitos da personalidade, que podem ser entendidos como direitos comuns da própria existência, haja vista que constituem em simples permissões dadas pela norma jurídica, a cada pessoa, de defender um bem que a natureza lhe concedeu, de forma direta e primordial. Assim, LISBOA (2003, p. 246) destaca: “os direitos da personalidade são direitos intrínsecos ao ser humano, considerado em si mesmo e em suas projeções ou exteriorizações para o mundo exterior”. Portanto, tais direitos não podem sofrer restrições por qualquer pessoa, excepcionalmente quando a lei assim o determine. Constituem direitos que devem ser respeitados, a priori, mediante uma conduta negativa das demais pessoas, para que eles não sejam bloqueados. Nesse sentido, Diniz assim salienta: 6 A vida humana, p. ex. é um bem anterior ao direito, que a ordem jurídica deve respeitar. A vida não é uma concessão jurídico-estatal, nem tão pouco um direito de uma pessoa sobre si mesma. Na verdade o direito à vida é o direito ao respeito à vida do próprio titular e de todos. Logo, os direitos da personalidade são direitos subjetivos “excludendi alios”, ou seja, direitos de exigir um comportamento negativo dos outros, protegendo um bem, inato, valendo-se de ação judicial (DINIZ, 2007, p. 118). No momento em que se inicia o funcionamento do aparelho cardior-respiratório, clinicamente perceptível pelo exame de docimasia hidrostática de Galeno5, o recém-nascido adquire personalidade jurídica, tornando-se sujeito de direito, mesmo que venha a falecer minutos depois6 (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2008, p. 81). Seguindo esse posicionamento doutrinário e legal, que sem dúvida tem reflexos práticos e sociais, se o recém-nascido – cujo pai já tenha morrido – venha a falecer minutos após o parto, terá adquirido, por exemplo, todos os direitos sucessórios de seu genitor, transferindo-os para a sua mãe. Bem como no caso de morte do pai, por acidente de trabalho, ao nascituro é garantido receber uma indenização por dano moral. Nesse sentir, vale conferir jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça, in verbis: RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. MORTE. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. FILHO NASCITURO. FIXAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. DIES A QUO. CORREÇÃO MONETÁRIA. DATA DA FIXAÇÃO PELO JUIZ. JUROS DE MORA. DATA DO EVENTO DANOSO. PROCESSO CIVIL. JUNTADA DE DOCUMENTO NA FASE RECURSAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE NÃO CONFIGURDA A MÁ-FÉ DA PARTE E OPORTUNIZADO O CONTRADITÓRIO. ANULAÇÃO DO PROCESSO. INEXISTÊNCIA DE DANO. DESNECESSIDADE. Impossível admitir-se a redução do valor fixado a título de compensação por danos morais em relação ao nascituro, em comparação com outros filhos do de cujus, já nascidos na ocasião do evento morte, porquanto o fundamento da compensação é a existência de um sofrimento impossível de ser quantificado com precisão. Embora sejam muitos os fatores a considerar para a fixação da satisfação compensatória por danos morais, é principalmente com base na gravidade da lesão que o juiz fixa o valor da reparação. É devida correção monetária sobre o valor da indenização por dano moral fixado a partir da data do arbitramento. Precedentes. 5 “Esse exame é baseado na diferença de peso específico entre o pulmão que respirou e o que não respirou, mergulhados na água. O primeiro por se achar com os alvéolos dilatados e impregnados de ar, sobrenada, ao passo que, o segundo compacto e vazio com as paredes alveolares colabadas e, por conseguinte, mais denso, vai ao fundo. Na eventual impossibilidade de utilização desse método principal de investigação (se, por acaso, o pulmão do neonato já vier impregnado de líquido), outras técnicas são aplicáveis (...)” como nos informa Sérgio Abdalla Semião ( Os Direitos do Nascituro- Aspectos Cíveis, Criminais e do Biodireito, Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 158-9). 6 “Apesar das longas discussões doutrinárias”, pontifica Walter Ceneviva, “no Brasil há nascimento e há parto quando a criança, deixando o útero materno, respira. É na respiração cientificamente comprovável que se completa conformação fática do nascimento. Sem ela, tem-se o parto de natimorto, que, sendo, expulso do ventre materno ao termo da gestação com duração mínima normal, mas sem vida, não é sujeito de direito” (Lei dos Registros Públicos Comentada, 13. ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 111). 7 Os juros moratórios, em se tratando de acidente de trabalho, estão sujeitos ao regime da responsabilidade extracontratual, aplicando-se, portanto, a Súmula nº 54 da Corte, contabilizando-os a partir da data do evento danoso. Precedentes É possível a apresentação de provas documentais na apelação, desde que não fique configurada a má-fé da parte e seja observado o contraditório. Precedentes. A sistemática do processo civil é regida pelo princípio da instrumentalidade das formas, devendo ser reputados válidos os atos que cumpram a sua finalidade essencial, sem que acarretem prejuízos aos litigantes. Recurso especial dos autores parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. Recurso especial da ré não conhecido. (Recurso Especial n. 931.556, Relatora: Ministra Nanci Andrighi, Data do Julgamento: 17/06/2008). 7 Percebe-se que a ordem jurídica em vários de seus dispositivos protege os interesses do nascituro. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90) em seu art. 7° dispõe: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Pela leitura de tal dispositivo, nota-se que de forma indireta estabeleceu-se a norma jurídica implícita de amparo dos interesses do nascituro ou embrião. Nesse sentido, Nader destaca que: [...] o legislador foi extremamente feliz ao fixar esta diretriz, uma vez que o princípio democrático de igualdade de oportunidade deve alcançar o ser humano a partir de sua concepção. A mãe subnutrida ou portadora de doenças geneticamente transmissíveis afetará as condições físicas do nascituro. Urge, todavia, que tal princípio se institucionalize, dando-se efetividade à lei. Em seguida informa que o nascituro pode, ainda, ser reconhecido pelo pai e beneficiário por herança ou legado. É possível que em seu nome, a futura mãe exercite o direito a alimentos (NADER, 2004, p. 185). No tocante ao direito à vida, ninguém tem dúvidas de que seja um direito personalíssimo assegurado ao nascituro e não uma mera expectativa é o bem juridicamente tutelado de maior relevância, pressupondo-se nela a existência dos demais direitos da personalidade da pessoa física e do nascituro. Todos os direitos inerentes à personalidade derivam da existência, ainda que pretérita, da vida. Há direitos, por exemplo, que subsistem mesmo após a morte do seu titular, como acontece com o direito à imagem e à honra. Mesmo o direito do cadáver e às suas partes separadas, cuja existência se inicia a partir da morte do titular, tem como intento a vida que deixou de existir (LISBOA, 2003, p. 247). 7 -TIPO DE PROCESSO: Recurso Especial, NÚMERO: 931.556, RELATORA: Ministra Nanci Andrighi, RECORRENTE: Luciana Maria Bueno Rodrigues e outro(s) e Rodocar Sul Implementos Rodoviários Ltda, RECORRIDO: os mesmos, DATA DE JULGAMENTO: 17/06/2008, PUBLICAÇÃO: Diário de Justiça do dia. 8 As relações jurídicas em geral têm como princípio o direito constitucional da dignidade da pessoa humana. Por isso, a vida deve sempre ser preservada não apenas em seu sentido puramente biológico, mas principalmente ético. Cumpre aqui ressaltar, que o titular dos direitos da personalidade tem direito à vida digna. Gagliano e Pamplona Filho salientam: Independentemente do fato de se reconhecer o atributo da personalidade jurídica ao nascituro, o que importa é que seria um absurdo resguardar direitos desde a concepção (vida intra-uterina), se não se autorizasse a proteção desse nascituro – direito à vida – para que justamente pudesse gozar de tais direitos. Dessa forma, qualquer atentado à integridade daquele que está por nascer pode, assim, ser considerado um ato obstativo do gozo de direitos (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2008, p. 84). O critério da dignidade humana é relativo, devendo-se sopesar a conjuntura religiosa, política, socioeconômica e cultural existente. Sendo assim, a qualificação da vida como sendo digna é um conceito jurídico indeterminado, fazendo-se necessária, portanto, a integração normativa ao caso concreto, de forma que o julgador possa apreciar se o direito personalíssimo do respectivo titular está sendo respeitado pelos demais e resguardado pelo Estado. A vida com dignidade e a sua defesa é o objetivo fundamental da Constituição Federal, o qual foi fixado para ser respeitado e observado pelo Estado e pela sociedade civil como um todo. Dessa forma, vale conferir o art. 227 da Constituição Federal, in verbis: Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Nesse sentido, corroborando com o que defende o presente artigo, vale destacar uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, in verbis: Pedido de aborto. Estupro. Violência indemonstrada. Direito do feto à vida. Proteção constitucional. Direito natural. Diante da ausência de elementos seguros de convicção acerca da ocorrência de violência sexual, não se mostra recomendável nem indicada a interrupção da gravidez pretendida, vsito que maiores seriam os malefícios. Destaco que merece maior proteção o interesse do nascituro em viver, conforme o art. 227 da CF. O fato de existir e de permanecer vivo, enquanto as funções biológicas permitirem, constitui direito natural inalienável de todo ser humano e, em si mesmo, o ponto de partida para todos os demais direitos que o ordenamento jurídico possa conceber. Recurso desprovido (grifos 9 nossos)". (TJRS, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70001010446, rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 03.05.00).8 Podemos atribuir ao nascituro outros direitos, como o previsto no art. 8° do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) in verbis: Art. 8° É assegurado a gestante, através do Sistema único de Saúde, o atendimento pré e perinatal. Parágrafo 1° A gestante será encaminhada aos diferentes níveis de atendimento, segundo critérios médicos específicos, obedecendo-se aos princípios de regionalização e hierarquização do Sistema. Parágrafo 2° A parturiente será atendida preferencialmente pelo mesmo médico que a acompanhou na fase pré-natal. Parágrafo 3° Incumbe ao Poder Público, propiciar apoio alimentar à gestante e à nutriz que dele necessitem. Pela leitura dos direitos supracitados, percebe-se que os mesmos destinam-se ao nascituro e não à gestante, uma vez que, quem está por nascer, necessita de cuidados médicos, da assistência pré-natal, medicamentos e por vezes até de intervenção cirúrgica em ocorrências de maior gravidade, sem descurar dos imprescindíveis cuidados garantidores do seu saudável desenvolvimento. No que tange aos alimentos, defende-se o entendimento de que o nascituro faz jus a tal direito, pelo fato de não ser justo que a genitora arque sozinha com todos os encargos da gestação sem a colaboração econômica do seu companheiro reconhecido (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2008, p. 86). Madaleno assegura que: Para os adeptos da teoria concepcionista os alimentos tem seu embasamento no direito à vida e esta se inicia no momento da concepção uterina, justamente para o concebido nascer com vida e, por isso os direitos do nascituro já existem em toda a sua plenitude, a contar da sua concepção, ficando condicionada ao nascimento com vida, tão-somente os direitos patrimoniais (MADALENO, 2008, p. 675). Cumpre salientar que tal matéria, já é objeto de legislação expressa, a Lei 11.804/08 que entrou em vigor em 06 de novembro de 2008, busca disciplinar o direito a alimentos gravídicos e a forma como ele será exercido. Essa Lei veio garantir à gestante que comprovar a gravidez, mediante a apresentação de laudo médico e provar, mesmo que por meio de indícios, a paternidade da criança, indicando as condições nas quais se deu a concepção, a 8 - TIPO DE PROCESSO: Apelação Cível, NÚMERO 70001010446, RELATOR: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, DATA DE JULGAMENTO: 03/05/00, PUBLICAÇÃO: Diário de Justiça do dia. 10 possibilidade de receber pensão alimentícia, de forma que o provável pai auxilie nas suas necessidades, dentro das possibilidades do mesmo. Os alimentos gravídicos abrangem os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes à alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes. A obrigação de se tutelar o dever de prestar alimentos ao nascituro era algo indispensável, uma vez que, quem está por nascer, necessita de cuidados médicos, da assistência pré-natal, medicamentos, enfim, de proteção para o seu regular desenvolvimento. Se formos aplicar os princípios constitucionais do direito à vida, à saúde, à dignidade, à igualdade, de forma efetiva, a situação em que o nascituro se encontrava no tocante aos alimentos não podia se perpetuar, haja vista que tais princípios devem alcançar o ser humano desde a sua concepção, devendo os mesmos serem respeitados plenamente. Nesse sentido, Chinelato e Almeida citado por Cahali, em trabalho específico, entende que: Ao nascituro são devidos alimentos em sentido lato – alimentos civis-, para que possa nutrir-se e desenvolver-se com normalidade, objetivando o nascimento com vida. Incluem-se nos alimentos a adequada assistência médico-cirúrgica pré-natal; em sua inteireza, que abrange as técnicas especiais (transfusão de sangue, em caso de eritroblastose fetal, amniocentese, ultrassonografia) e cirurgias realizadas em fetos, cada vez com mais freqüência, alcançando ainda as despesas com o parto. (CHINELATO E ALMEIDA apud CAHALI 2006, P. 357). A existência da Lei 11.804/08, que sem dúvida, veio preencher uma injustificável lacuna em nosso ordenamento jurídico, concedendo um direito que chega a ser óbvio, demonstra mais uma vez, que o nascituro é um sujeito de direitos, que adquire personalidade jurídica desde a concepção, devendo, portanto, ser considerado pessoa. A jurisprudência de nossos tribunais tem partilhado desse entendimento, nesse sentido cumpre destacar o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, in verbis: EMENTA: ALIMENTOS EM FAVOR DE NASCITURO. Havendo indícios da paternidade, não negando o agravante contatos sexuais à época da concepção, impositiva a manutenção dos alimentos à mãe no montante de meio salário mínimo para suprir suas necessidades e também as do infante que acaba de nascer. Não afasta tal direito o ingresso da ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos. Agravo desprovido. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Agravo de Instrumento 11 Nº 70018406652, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 11/04/2007). 9 Diante do exposto, há de se concluir que o ordenamento jurídico pátrio prima pela proteção absoluta e suprema da vida e da dignidade da pessoa humana, os quais são direitos fundamentais, assegurados pela nossa Carta Maior. Corolário disso é a tutela concedida ao nascituro, pois, conforme a teoria concepcionista defendida no presente trabalho, o nascituro adquire a personalidade jurídica desde o momento da concepção. Os inúmeros direitos presentes e atuais (e não meras expectativas) constantemente atribuídas ao nascituro, demonstram sua condição de sujeito de direitos, uma vez que, a partir do momento que a lei lhe confere direitos subjetivos está se afirmando categoricamente que este é o titular de tais direitos. Não obstante, é sabido por todos que a maioria da doutrina prefere não considerar o nascituro sujeito de direito, atribuindo a ele meras expectativas de direitos. Adotando-se, portanto, a teoria natalista defendendo a tese de que a personalidade jurídica somente é adquirida a partir do nascimento com vida. Contudo, esse posicionamento, não satisfaz os novos tempos como o fazia na época em que foi lançado o Código Beviláqua, haja vista que a ciência biológica tem alcançado avanços significativos nos dias atuais. Muito em breve poderá ser determinado o momento da concepção. Diante do andar dos tempos, acredita o presente trabalho que num futuro não muito distante o nascituro passará a ser considerado pessoa. Decisões recentes dos próprios tribunais superiores têm contribuído com tal objetivo. Enquanto isso, o nascituro pode ser sujeito de direito, conforme o estudo aqui apresentado, embora, por vezes, não seja considerado pessoa. Há de se compreender que tão logo se consolide este posicionamento, o nascituro se encontrará diante de uma realidade jurídica que lhe prestará maior amparo. 9 - TIPO DE PROCESSO: Agravo de Instrumento NÚMERO: 70018406652, RELATORA: Maria Berenice Dias AGRAVANTE: V.K, AGRAVADO: M.S.F.C DATA DE JULGAMENTO: 11/04/2007, PUBLICAÇÃO: Diário de Justiça do dia 16/04/2007. 12 REFERÊNCIAS ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O direito de nascer do ventre de mãe morta e demais questões afins: o caso Marion Ploch. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3276&p=2>. 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