EDITORIAL
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sicanálise e Literatura, um encontro que percorre nosso trabalho desde
que a invenção freudiana se introduziu na cultura. Freud se aproxima dos textos literários a partir de questões que o interpelavam, que
produziam os impasses da clínica que se iniciava, na escuta/formulação do
trabalho a partir do inconsciente e da transferência. Não era a beleza estética que ele perseguia e, sim, uma questão clínica que se deixasse trabalhar
por e a partir daquelas produções na cultura, ficções que de uma forma ou de
outra traziam à cena as fraturas, os conflitos, os pontos de estranhamento,
aquilo que poderia fazer eco e avançar sobre os enigmas que tratava de
decifrar.
Lacan acentua um rumo: o que um psicanalista pode fazer é relativo à
leitura; retomar o caminho a partir do que o escrito traz como um saber que
já está aí, e que faz sobressair a forma pela qual o escritor se deixou tomar
pela linguagem. Caminhos que decantam um estilo e delineiam um litoral.
Desta forma, a literatura não vale como ilustração de uma teoria que se quer
consagrar. Fácil de entender, mas talvez, não tão óbvio disso se configurar
verdadeiramente no exercício. Por isto persistimos. Por exemplo, sustentando nestes dois últimos anos um diálogo público entre literatos, professores
e psicanalistas (Machado na Cultura e Grandes Histórias na Cultura) e, retomando neste Correio a pergunta: o que aproxima literatura e psicanálise?
Não só a relação que articula cada um destes campos à linguagem, mas o
que se acha em seu limite: o enigma que aponta ao real que organiza nossa
condição de falantes. O texto de abertura nos leva à poesia de Borges El
despertar.
Nesta edição incursionamos de forma diversa pelo território destas
imbricações. Quase mise em abyme encontramos o texto desde a leitura
de um psicanalista que lê algumas posições do crítico literário Harold Bloom,
por sua vez, leitor de Freud. Seguindo o eixo de trabalho de 2006 na APPOA
a partir do seminário de Lacan – “Os quatro conceitos fundamentais”, destaca-se uma das leituras que o seminário nos aponta, a partir de “O deslumbramento de Lol V. Stein”, de Marguerite Duras. Por outra vertente, retomamos a literatura de Machado de Assis, “Dom Casmurro”, em diálogo com “O
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estranho”, de Freud. A literatura infantil comparece com o comentário entre o
horror e o humor, a partir da ficção de J. K. Rowling e de Isabel Allende. Por
fim, Milton Hatoum, escritor amazonense, que sem dúvida inscreve no Brasil
a força da ficção contemporânea nos brinda com suas palavras – a arte e seu
manifesto contra guerra.
PERCURSO EM PSICANÁLISE DE CRIANÇAS
O Percurso em psicanálise de crianças é uma atividade que está integrando o quadro de ensino da APPOA, desde março de 2005, como um
espaço de estudo e desdobramento das questões levantadas à psicanálise
pelo trabalho com a infância.
Mesmo que a formação do psicanalista que trabalha com crianças
esteja alicerçada sobre os mesmos pilares daquele que trabalha com adultos, uma série de interrogações se coloca quando um sujeito é abordado
nesse momento tão particular da vida. Diferente do adulto, a criança atravessa um tempo em que a estrutura não está decidida de modo definitivo, convocando o analista a se ocupar com aquilo que ainda não está inscrito. A
particular relação da criança com o significante, estabelece para ela uma
forma específica de sua representação. Eis então, que a prática diverge e se
torna específica.
O Percurso em psicanálise de crianças traz consigo uma nova modalidade de ensino para a APPOA, já que foi elaborado e funciona em parceria
com outra instituição psicanalítica da cidade. Além de eixos de estudo propostos pela APPOA, uma série de temas é abordada em seminários compartilhados com o Núcleo de Estudos Sigmund Freud. A pluralidade de questões e autores que atravessam o campo da psicanálise de crianças propiciou a composição desse trabalho em conjunto.
O Percurso em psicanálise de crianças destina-se a todos aqueles
que se sintam concernidos pelas questões suscitadas à psicanálise pelo
trabalho com crianças.
PROGRAMA
– Metapsicologia do sujeito infantil
– A direção da cura na psicanálise de crianças
– A constituição subjetiva de acordo com as diferentes escolas
– História da psicanálise de crianças
– Intersecções
– Infância, adolescência e modernidade
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
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NOTÍCIAS
NOTÍCIAS
Início: março / 2007
Duração: 2 anos
Encontros: segundas e quartas-feiras, das 19h30min às 22h30min
Período de inscrições: até 30/11/2006
Valor da inscrição: R$ 45,00
Documentação: Cópia do diploma de graduação, currículo, memorial (relato
de sua trajetória e interesse pelo Percurso) e uma foto 3x4.
Local: Sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
PERCURSO DE ESCOLA – 2007
TURMA IX
O Percurso de escola faz parte do quadro de ensino da APPOA, desde 1994, como um lugar possível do desdobramento das perguntas que o
encontro com a psicanálise coloca a cada um. Esta proposta inscreve-se
como um espaço de estudo sistemático dos textos fundamentais de Freud e
Lacan, bem como das disciplinas que com eles dialogaram no transcurso da
constituição e consolidação da psicanálise, quais sejam, Lingüística,
Topologia, Literatura, Antropologia, Filosofia e as Artes em geral. O Percurso
de Escola destina-se àqueles que se sentem concernidos pela Psicanálise
e pelas questões que ela suscita.
O trabalho se desenvolve em torno dos seguintes eixos temáticos:
– O inconsciente
– Édipo e castração
– Narcisismo e identificação
– O sintoma
– A transferência
– Temas cruciais da psicanálise; história e formação
Esses eixos temáticos são trabalhados ao longo do percurso, sendo
desdobrados nas perspectivas das obras de Freud e Lacan, em textos clíni-
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cos (casos ou textos concernentes à clínica) e ensino contextual (Antropologia, Lingüística, Filosofia, Estética, Literatura, Topologia e outros)
Inscrições para seleção da nova turma:
Início: março/2007
Duração: 3 anos
Encontros: segundas e terças-feiras, das 19h30min às 22h30min.
Período de inscrições: 16/10 a 30/11/2006
Valor da inscrição: R$ 50,00
Local: Sede da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
ENSAIO SOBRE A JORNADA CLÍNICA DA APPOA PRIMAVERA 2006
APONTAMENTOS E EFEITOS DA PULSÃO, INCONSCIENTE,
REPETIÇÃO E TRANSFERÊNCIA
Escrever uma síntese da Jornada Clínica só é possível por uma via
singular, porém, acredito que alguns apontamentos e efeitos dos quais reportarei possam ter tido eco em muitos outros colegas.
Este momento, para mim, particularmente coincide com uma retomada de trabalho na APPOA e muito me toca (sem que eu toque nenhum
instrumento!) uma Jornada Clínica sobre os quatro conceitos fundamentais,
pois foi um recorte do Seminário XI que trabalhei em meu estudo de caso de
conclusão de estágio de psicologia clínica na Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS, há doze anos... Reencontrá-lo, agora, revisitado por
vários colegas, foi um grande prazer.
A estrutura da própria Jornada já foi no mínimo pitoresca, pois cada
bloco relativo a um conceito foi abordado em uma diversidade e, ao mesmo
tempo, articulação que parecia que estávamos navegando. Não será interessante o limite de tempo proposto aos participantes? Pois, como já escutei alguns amigos psicanalistas dizerem “o limite é constituinte”. Portanto,
quantas surpresas não emergiram do esforço de condensar cada fala em
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quinze minutos. Quanto à presença de uma diversidade, ressalto a pluralidade
de estilos, de escrita e apresentação que permitiram diálogos entre muitas
práxis diferentes. Eu, particularmente, acho esta interlocução muito bem
vinda, pois penso que ela favorece um fecundo trabalho interdisciplinar.
Escrevo o início deste ensaio ao final do primeiro dia de trabalho e
vou me reservar o direito de fazer alguns recortes e brincar um pouco com o
que escutei.
Começamos a manhã com Ana Costa nos falando sobre as relações
do tempo e seus efeitos e implicações na experiência. Ela discute a tríade:
Tempo – Produção – Sujeito. Depois, navegamos para o Ato Tradutório de
Claudia Berliner. Esta tradutora-psicanalista, que se formou fora das instituições, nos dá o testemunho do seu percurso, de modo que nos convoca a
passear com ela pelo mar das palavras e dos impasses da tradução. Temos, em comum com ela, ficar “pensando muitos anos em uma palavra...”
ou presos a ela, mas o que pode surgir daí nos revela uma leitura particular,
portanto, a tradução como uma possibilidade de simbolização. No caminho
das escolhas e tomadas de posição, passa-se por Schibboleth e mergulhase no debate do campo tradutório, que discute a fidelidade-traição, como
também a língua de chegada. As traduções do Seminário XI, que Cláudia
vem realizando, podem ser acompanhadas nas últimas edições do Correio
da APPOA e são híbridas do texto estabelecido por Miller e do texto em
francês da ELP estenografado.
Na discussão, Edson Sousa sublinha a invenção da língua e a invenção do tradutor e se pergunta que recursos são exigidos para fazer a mágica!
Por fim, Claudia brinca com a idéia de traduzir Lacan para o “gauchês”,
para o que, penso, já temos a solução: é só convocar o “Analista de Bagé”
e o “Taurino Neto, Lacaniano de Passo Fundo”, para este árduo entrevero!
Otávio Nunes fecha o primeiro bloco trazendo um percurso extremamente rico sobre o “Eneaotil”. As vicissitudes e construções sobre a negação e suas dissimetrias e pares de opostos. “O Não exige muito trabalho
psíquico!” Ele fecha se perguntando de qual operação nosso coração preci-
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sa.
No bloco seguinte, escutamos Osvaldo Arribas nos dizer que “passa
algo” e Silvia Carcuchinski passear pelos gracejos, chistes e tiradas espirituosas e terminar sua fala com um trecho do DVD Party At the Palace
(show no castelo da Rainha em Londres, que reuniu grandes e maravilhosas
estrelas da música e apresentadores cujos chistes não nos fazem rir, pois
não operam em nossa língua materna).
Assim como “Bonecas Russas”, novas questões vão surgindo das
questões anteriores, e Elaine Foguel vai nos presenteando com uma leitura
sobre a epistemologia Freudiana: ciência, doutrina, metapsicologia. E a
manhã termina com a fala de Robson sobre o “Inconsciente e o desejo do
analista”. Recorto de sua fala: “Psicanálise, prática do singular, ponto de
chegada e ponto de partida de novas reflexões”. Faz-me associar a música
“Encontros e Despedidas” (arranjo de Maria Rita).
Ainda Robson: “É o desejo do psicanalista que em última instância
opera na psicanálise, na transferência, no cotidiano, no prosaico, na interpretação de um sonho... Para que o psicanalista não erre, é preciso que se
engane! Tome gato por lebre!” E Diana Corso convoca o almoço apontando
que a eterna tarefa analítica é se reinventar.
A tarde inicia com o trabalho em torno do tema da pulsão, com as
exposições de Ligia Victora, Luis Fernando Oliveira e Denise Mairesse em
torno desse conceito.
A seguir, Heloisa Marcon nos brinda com um belíssimo trabalho sobre música e pulsão invocante. Tocadora de Sax, ela nos toca com sua
música e nos diz que o que excede à palavra persiste na música. A música
permite comemorar uma marca primeira. Lugar de festa! “Não sou eu que
escuto a música, é ela que me ouve e me reconhece...!” Experiência musical: importante para clínica, pois o sujeito emerge no lugar do outro. Música
é simbolizante, não se pode dizer, mas ela nos afeta.
Marta Pedó trabalha na “Estranha vagância na língua”, efeitos de suspensão. – “Ao ler James Joice musiquei, li em voz alta”. – “Joice é para ser
ouvido.” E termina sua fala questionando se é possível suportar essa aven-
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tura da extravagância, surgimento do sujeito do desejo a partir de uma suspensão audível e dizível; um passo de sentido que traz espanto.
Estranhamento ou expectativa prazeirosa. “Da passividade a um ponto zero
de um inesquecível conjugado”.
Minha colega da Mosaico, Fernanda Breda, fala do “Texto que não
cabe na página”. O olho, o olhar e o amuleto na clínica da psicose. A pulsão
escópica em toda sua intensidade na transferência. Olhar oblíquo e olhar
direto. Realidade – Representante – Representação; espaço do sujeito, introdução de significantes, véu – enigma.
Para fechar, no entardecer, Jaime Betts se pergunta pela pulsão
escópica e traz o filme “Janela da Alma” e a música “Teu olhar mata mais
que estricnina”. Como aponta Edson Sousa: trabalhos provocadores de novos olhares.
E seguimos navegando em um domingo ensolarado.
Em torno do conceito de transferência, Rosana Coelho corajosamente aborda a questão do desejo do professor. “Para que se escolhe ser professor; efeitos da educação na formação do sujeito... e por fim, vida e criação para que a educação seja em alguma medida possível”.
Trilhando caminhos afins, Emilia Estivalet Bróide nos diz que mesmo
onde não há analista pode haver efeitos de transferência. Consultório –
consultoria, transmissão de um conceito.
Marianne Stolzman Mendes Ribeiro trabalha com o provocante filme
“Bicho de sete cabeças” e a música de Zeca Baleiro “... cresça e
desapereça... bicho de sete cabeças...”, para desdobrar questões em torno
da clínica psicanalítica em instituições. Faz um percurso histórico, que vai
da literatura Machadiana com o “Alienista” e passa por Pinel e a reforma
psiquiátrica. Termina este recorrido situando um possível lugar para psicanálise tanto no acolhimento quanto no encaminhamento destes sujeitos.
Sublinha que a psicanálise pode ser pensada como uma práxis: ação realizada pelo homem para tratar o real pelo simbólico. E convoca Ana Cristina
Figueiredo para dizer que “o psicanalista que convém, convive. E faz da sua
prática uma especificidade e não uma especialidade”.
Gerson Pinho nos leva de volta à infância, para pensar as particularidades da transferência quando se recebe uma criança.
Minha colega de aventuras de infância Maria Cristina Poli nos traz o
trabalho: “Transferência, verbo intransitivo”. E nessa via trabalha o verbo
amar e o escrever.
Rosane Ramalho aponta para os Impasses – Desastres – da transferência. O jogo de palavras no título introduz situações clínicas muito difíceis
e que me fizeram lembrar do mais novo livro de Irvym D. Yalom “Mentiras no
divã”, que me fisgou desde o início.
Escutei Ricardo Goldenberg muito atenta aos efeitos de sua fala,
pois sua exposição e implicação continuarão tendo eco em muitos de nós.
Para ele, a liberdade é uma operação de separação de um significante e
responsabilizar-se é responder por isso. Produzir um significante! Eu anoto:
“Inventação” ao invés de invenção. Mudança curiosa que poderia seguir trabalhando, mas me imponho o limite deste texto.
Gostaria de destacar o trabalho de Edson Souza “Litoral, Literal,
Lutoral”, que tratou poética e literariamente de um tema tão difícil que é o
luto por um filho. Algumas coisas só são possíveis com a arte que permite
simbolizações insabidas! A partir de um conto belíssimo, Edson navega em
um mar intenso!
“Mar do êxtase, mar da infância, esperança...
Mar da morte, do real , do puro excesso!
Mar da revelação, testemunho, esquecimento... o resto depois da
catástrofe!”
– Acordar! – Luto: é difícil compreender na proximidade do acontecimento; verdadeiro trabalho psíquico, “O litoral do desenlace!”
Mar: “escreve um lutoral!” Lembrar o que queremos esquecer; força
de uma transmissão... dos limites da representação. “Traumártico !”
– “Pai, não vês que estou queimando!”
– “Mãe, não vês que estou me afogando!”
Surpreendo-me com a revelação de que tanto Freud quanto Lacan
perderam filhos!
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NOTÍCIAS
VEGH, I. O despertar...
Edson sublinha que o sonho mantém os pais dormindo e lhes permite a realização do desejo de ver os filhos vivos! Porque sonham é que os
pais acordam!
Uma escrita como transmissão; – Despertar o pai e a mãe!
Do mal estar no tempo e no espaço é que precisamos cuidar!
“A vida como ela é; Pé no litoral”.
“Palavras salvam o que sobrou de tudo...!”
No entardecer, Alfredo Jerusalisky discute o cogito cartesiano e se
reporta ao artigo publicado por ele, no dia anterior, na Zero Hora, sobre o
sujeito e o automatismo.
Encerro este ensaio também com a fala de Lucia Serrano Pereira,
sobre o ano de publicação do Seminário XI – 1964.
Faço minhas as palavras da Lucia:
“Passou algo...
Algum Movimento...
Outra Volta!”
Tatiana Guimarães Jacques
O DESPERTAR
LITERATURA E PSICANÁLISE 1
Isidoro Vegh2
E
ste título faz intersecção em dois campos no enunciado, na enunciação
nos remete a uma pergunta: o que nos reúne mais além da intenção,
o que aproxima literatura e psicanálise? Para um psicanalista, este
encontro é inevitável. Lê-se na obra e nos dizeres dos pacientes: o relato de
um filme, de uma obra de teatro, de um livro. Encontro afortunado, incita a
pergunta por suas formas.
Houve na história da psicanálise, num tempo pós-freudiano, uma posição que irritou os artistas e com justa razão: a do psicanalista identificado
com os ideais e o saber adequado a eles, que comodamente instalado no
legado de Freud, repartia desde ali um esquema que interpretava, não a
obra, mas, através dela, seu autor. Posição questionada por nós. Além de
sua cota de obscenidade – utiliza a obra para dirigir um golpe baixo ao autor
– é de escassa ou nula criação. Leva um saber constituído, o Édipo reduzido
ao relato vulgar, e o aplica sem nenhum enriquecimento para a literatura ou
para a psicanálise.
A história da psicanálise nos permite colocar outras formas melhores
de encontro.
As referências a literatura são constantes na obra de seu criador.
Freud elege sua denominação “complexo de Édipo” a partir da mitologia
1
Título do convite conjunto realizado pela Direção de Cultura da Universidade do Litoral e
Com(v)ocatória Psicanalítica em junho de 1997. Este é o primeiro capítulo do livro “El Sujeto
Borgeano”. Buenos Aires: Agalma, 2005. Tradução: Ana Paula Melchiors Stahlschmidt,
Maria Beatriz Kallfelz, Maria Elisabeth Tubino e Ricardo Vianna Martins.
2
Isidoro Vegh: Psicanalista, fundador da Escola Freudiana de Buenos Aires, autor de vários
livros: Las intervenciones del analista (2005); Paso a pase com Lacan (I e II – 2003); El
prójimo. Enslaces y desenlaces de goce (2001); Hacia uma clínica de lo real (1998), entre
outros.
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SEÇÃO TEMÁTICA
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grega, como a encontra na tragédia de Sófocles. A estende à obra de
Shakespeare, quando afirma que Hamlet é uma versão posterior com as
modificações inerentes às mudanças na cultura que acentuarão um aumento da repressão.
O que Freud nos mostra é uma articulação possível. Descobre uma
estrutura no dizer dos seus pacientes, a interroga e indaga na história da
cultura, até que coloca o lugar de onde retira sua lógica. Chama-lhe complexo de Édipo porque na tragédia “Édipo Rei”, de Sófocles, encontra a trama
que lhe mostra os sonhos ou os sintomas de seus pacientes.
Outras chamadas à literatura lemos dispersas nas citações retiradas
dos admirados versos de Goethe. Para nós, o referente irremediável é Borges,
para mim é o mais agradável, mesmo ainda que não nos agradasse, é inevitável. Para Freud, era ineludível o grande poeta, o grande poeta alemão e as
inúmeras citações têm um duplo valor: por um lado é como se Freud as
convalidasse – não estou só nesta epopéia – e por outro é um estímulo, um
enigma que o relança em suas investigações, como lhe sucede com “Poesia
e Verdade”.
Outra forma de encontro ocorre quando Freud recorre a Dostoievski,
com o qual mantém outra relação. Quando trabalha o parricídio, estabelece
um correlato entre os textos e a biografia do autor. Teria então que afinar
meu questionamento anterior. Não considero que, para um psicanalista,
esteja moralmente proibido estabelecer relações entre a obra e a biografia
do autor, não creio que o artista tenha que estar protegido por um tabu
especial, a psicanálise avança desmontando os tabus, começando pelos
próprios, não há analista que possa sê-lo sem interrogar suas próprias marcas. Não me oponho a isso, o que me nego é a aplicação de um saber
exterior que nada agrega, salvo a ostentação de possuidor deste saber, que
se identifica, ainda, ao ideal. Digo ainda porque, em Kant, o ideal não é
aquele com que o sujeito logra a equivalência, indica uma distância. Este
psicanalista que acode com seu conhecimento prévio crê que é dono de
uma verdade. Quando Freud trabalha a biografia de Dostoievski, está investigando, a obra o interroga, lhe incita a novas questões. A teoria do Édipo
não é a mesma quando escreve “Totem e Tabu”. Como disse Lacan, esta
última tem uma vantagem, é menos cretina. A primeira teoria afirma que todo
ser humano tem, em seu inconsciente, desejo de ter uma relação incestuosa com o progenitor do sexo oposto e quer competir até a morte com o do
mesmo sexo. Se é um varão, deitar-se com sua mãe e matar seu pai: Édipo,
a tragédia. Isto leva a psicanálise a uma posição moralizante. Suponhamos
que o paciente nos diga: estou angustiado, me sinto mal. O analista poderia
sugerir-lhe: deixe de fantasiar com a mulher do seu professor ou a do seu
chefe e a angústia desaparecerá.
De outra forma, em “Totem e Tabu”, a segunda versão freudiana de
Édipo, diz que, inicialmente, já havíamos matado nosso pai, o crime está
feito, que ninguém alegue inocência. Esta segunda versão é devedora do que
Freud aprende com seus pacientes, também do que leu em Dostoievski.
Uma opção é ir à literatura e aplicar-lhe um saber; outra é colocar a
nosso alcance a literatura e o que dizem os analisantes e deixarmos trabalhar por suas letra e seus enigmas.
Por este motivo, é que à pergunta reiterada de se Freud inventou ou
criou o inconsciente, ofereço a terceira variante: Freud é inventado pelo inconsciente, é o que faz um criador.
Em Lacan temos outros exemplos. Um, “A Carta Roubada”, texto de seus Escritos que desprende da obra homônima de Edgar Allan
Poe. Nenhuma referência à biografia do autor, Lacan interroga a trama
na qual encontra uma lógica. Rigor da construção e distância com esta
outra psicanálise que tende a uma psicologia do autor. Explica a obra
consoante com sua postulação de que o que faz possível este invento
que chamamos inconsciente é nossa condição de sujeitos da palavra,
homóloga – ainda que haja também diferenças – à lógica interna de um
texto literário. Duplo valor: o que lhe outorga o texto e o que dele exclui,
a biografia.
Outro exemplo podemos encontrar no modo como lê “O Deslumbramento de Lol V. Stein”, novela de Marguerite Duras, na qual nos mostra
como um analista aprende, quando recorre ao texto de um bom escritor. Em
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SEÇÃO TEMÁTICA
VEGH, I. O despertar...
seu comentário não há nenhuma referência a Marguerite Duras como sujeito, só às personagens e a trama que mantêm entre si.
Conto-o brevemente: Lol V. Stein é uma jovem que vai a uma festa
com seu noivo. Uma mulher mais velha, se mostra como mulher fatal, lhe
convida a dançar e este fica aprisionado a seu abraço. Lol V. Stein fica
petrificada, medusada pela cena, sua mãe deve ir buscá-la ao amanhecer.
Desde este episódio, permanece fechada em sua casa durante anos. Logo
se muda para outra cidade. Quando volta à cidade de origem, a encontra
casada e com filhos. Sua amiga, a primeira narradora, conta que Lol parece
estar bem, ainda que perceba nela algo diferente. A trama avança com a
genialidade de Marguerite Duras. Se estabelece um trio entre a amiga de
infância, Tatiana, Lol V. Stein e um amante de Tatiana, que será compartilhado entre ambas. O estranho é que Lol V. Stein costuma ir a um campo em
frente ao hotel onde se encontra sua amiga com o amante, onde, dali, observa a janela. O enigma: por que vai a semelhante lugar e retorna uma e outra
vez? Lacan não o responde desde nenhuma teoria, mas com o próprio texto.
O que é que Lol V. Stein olha desde o campo? Enigma que o texto responde;
Lol V. Stein olha a cabeleira escura de sua amiga, esta cabeleira que prende
o olhar do amante, esta cabeleira sob a qual, ali sim, há um corpo desnudo.
Lacan conclui: Lol V. Stein é o protótipo daqueles personagens que
andam pela vida com uma roupa sem corpo para por dentro. Lol V. Stein
precisa do corpo de sua amiga para sentir que ela o tem.
Outro exemplo é Joyce. Concordo com a tese que nega a arte
psicótica: não estou de acordo com a chamada pintura psicótica. A pintura
é ou não é pintura; não existe novela esquizofrênica, é novela ou não é, boa
ou má. Lacan trabalhou extensamente a obra de Joyce e se permitiu fazer
uma articulação entre sua obra e sua biografia. Nunca disse que Joyce era
psicótico, disse que Joyce sofreu de uma ausência, de fato, do Nome do
Pai. Na teoria lacaniana, o Nome do Pai significa uma operação pela qual
se passa ou não. Se não se passa – em termos freudianos, poderia ser
homóloga à proibição do incesto – o mais provável é que se padeça de uma
psicose.
Lacan sustenta que Joyce fez de sua obra uma barreira protetora ante
a psicose. É exatamente o oposto de dizer que é uma obra esquizofrênica.
Sua obra serviu de invólucro necessário às epifanias a que recorreu na vida e
que inseriu em sua obra: no “Retrato do artista quando jovem”, em “Stephen
Hero” e “Ulisses”. Faz delas algo tolerável, que de outro modo teria sido
arrasador.
Ao ler Joyce, não vai com um esquema pré-concebido. Sua leitura o
comove, a partir dela retoma uma vez mais a teoria. No seminário Le Sinthome,
onde transita pela obra de Joyce, diz “se seguimos com a teoria do Édipo
como Freud a propôs, nunca sairemos da religião do pai”. Propõe algo distinto, há um efeito de criação. Não vai a obra para comprovar o que já sabe,
mas para deixar-se interrogar por ela, a tal ponto que toca um dos pilares da
teoria psicanalítica, com fortes conseqüências na abordagem da psicose.
Encontramos algumas formas de encontro entre psicanálise e literatura em Freud e em Lacan. Com a distância do caso, quero dizer-lhes como
almejo uma intersecção da literatura e a psicanálise. Como vivo em Buenos
Aires, já o disse, é inevitável meu encontro com Borges. Pensei que poderíamos fazer um exercício de leitura de um poema de seu livro El outro, el
mismo, de 1964, que se denomina El Despertar.
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Entra la luz y asciendo torpemente
De los sueños al sueño compartido
Y las cosas recobran su debido
Y esperado lugar y en el presente
Converge abrumador y vasto el vago
Ayer: lãs seculares migraciones
Del pájaro y del hombre, las legiones
Que el hierro destrozó, Roma y Cartago.
Vuelve tambíén la cotidiana historia:
Mi voz, mi rostro, mi temor, mi suerte.
¡Ah, si aquel otro despertar, la muerte,
me deparara un tiempo sin memoria
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SEÇÃO TEMÁTICA
De mi nombre y de todo lo que he sido!
¡Ah, si em aquella mañana hubiera olvido!
Ensaiemos uma leitura.
O título de uma obra, quando se trata de um escritor que provou seu
valor, não é arbitrário. Assim, pois, El Despertar.
Entra la luz y asciendo torpemente/ De los sueños al sueño compartido.
É possível a qualquer um que tenha um trânsito pela história da literatura, distinguir metáforas milenares que sustentam a oposição entre luz e
escuridão, superfície e profundidade.
Entra la luz, um despertar pode estar relacionado com a entrada da
luz. ...y asciendo, neste caso, Borges segue a tradição, a luz e a superfície.
Sobe de onde? Dos sonhos, poderíamos dizer: da profundidade e escuridão
dos sonhos. Escuridão por que? Pode ser pelo que ocorre com todos nós, o
valor dos sonhos não nos é transparente: tem sentido, é uma mensagem,
um presságio, é algo que chega do passado?
Além do mais, é inevitável, não sonho quando quero nem tão pouco o
que quero, encontro-me com o sonho.
Asciendo de los sueños, para onde? al sueño compartido. O despertar não nos leva à vigília, nos aproxima de outro sonho que é com outros. Diz:
Y lãs cosas recobran su debido/ Y esperado lugar y en el presente. Esse
sonho compartilhado se caracteriza por coisas que encontram um lugar devido, devido – na ordem moral – mas também na ordem do que alguém deve.
Dívida com o que? Se mantivermos a letra, diríamos “com a ordem compartilhada”. Estar na ordem compartilhada é consentir com uma demanda: as
coisas em seu lugar.
Porém agrega: Converge abrumador y vago el vago/ Ayer... Primeiro
problema: esse sonho compartilhado tem algo que oprime, esse lugar para
cada coisa parece que não é um lugar que se decide desde hoje; decidiu-se
inclusive ontem e em um ontem muito longínquo. Nomeia Roma e Cartago,
se nomeasse só a Roma se poderia pensar no esplendor, porém se é Roma
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VEGH, I. O despertar...
e Cartago... Cartago perdeu a guerra, foi destruída, nomeia impérios e também impérios perdidos.
Então: Converge abrumador y vasto el vago / Ayer: las seculares
migraciones / Del pájaro y Del hombre... Os movimentos dos pássaros e do
homem. ..., las legiones / Que el hierro destrozó, Roma e Cartago. O ontem
foi, mostra o que foi e o que deixou de ser.
Produz-se uma mudança no poema: Vuelve también la cotidiana história. Já não é a história em geral, essa que chega desde o passado e nos
recorda aquilo que foi, um império e já não é: antecipa o que pode suceder a
mim, que sou apenas um ser humano. Agora volta à história cotidiana. Qual?
O poema o diz: Mi voz, mi rostro, mi temor, mi suerte. Esse mi que se repete
e situa a um sujeito.
E diz: Ah, si aquel otro despertar, la muerte. Novamente vai ao encontro de certas metáforas coaguladas; se costuma dizer: el sueño eterno, que
descansa en paz e não el despertar, la muerte,3,4.
Antes nos disse que despertar não era se não um sonho compartilhado, agora nos diz que a morte é outro despertar. Como pode ser a morte um
despertar? Segue o texto: Ah, si aquel otro despertar, la muerte, / Me deparara un tiempo sin memoria. Deseja um tempo sem memória, libertar-se da
memória. Creio que não é forçado relacioná-lo com esse abrumador pasado.
A morte poderia ser liberar-se desse peso da memória. Que memória? A que
coagula em mi nombre y de todo lo que he sido. Esquecer-se de seu nome.
3
Ainda que na mística cristã existem versos consagrados que o antecipam: São João da
Cruz, Santa Teresa...
4
Bonnels, Jordi..,,, Jorge Luis Borges. Les références de l´Ombre, pág. 51. Association des
Publications de Nice, Nicce, 1989. “Com a morte, não é um círculo o que se fecha sobre si
mesmo, tornando possível um novo começo, senão que é o esquecido quem avança, colocando-nos na presença do que somos e que jamais deixamos de ser, mais além das máscaras: o sonho de um tempo sonhador:
“Livre das máscaras que tenho sido,
Serei na morte meu total esquecimento. (J. L. Borges, Los Conjurados)”
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SEÇÃO TEMÁTICA
Um nome implica um conjunto de articulações, um lugar neste sonho compartilhado. Quando um diz: Soy tal, diz muito mais que um simples nome.
Mostra na ordem em que os coloca, primeiro o nome e logo o ser, de mi
nombre y de todo lo que he sido. Traz-me a lembrança de outro poema de
Borges El Golem onde o primeiro verso diz:
“Si (como el griego afirma en el Cratilo),
El nombre es arquetipo de la cosa,
En las letras de rosa está la rosa
y todo el Nilo la palabra Nilo”
Se alguém quisesse classificá-lo diria que é um exemplo de uma posição nominalista. Parece-me que não, que está dizendo o valor fundante do
nome no mundo das coisas compartilhadas. Como o nome distribui o lugar
das coisas neste sonho compartilhado. Por isso esquecer-se do nome é
também deixar de lado o que se foi.
Conclui: Ah, si en aquella mañana hubiera olvido!: irrompe algo que
não é homogêneo com o resto do poema. Todo o poema poderia contar-se
em estilo indireto, que há um poeta que escreve como entra a luz e se
desperta, como se sente outra vez imerso numa rotina que sufoca, com um
ontem que volta a reclamar-lhe e do que quer libertar-se até que conclui que
a morte é um alívio e um esquecimento. O que não posso contar em estilo
indireto sem forçá-la, é uma palavra que se repete, uma interjeição: “Ah!” A
interjeição prefere o estilo direto.
E que é a interjeição?, quando diz: Ah, si aquel otro despertar la
muerte...! transmite um anseio. Nos estudos de gramática sobre as diferentes partes da frase, a interjeição costuma ser citada como o lugar onde se
mostra o afeto. Nós dizemos: o lugar onde se mostra o sujeito. Este “Ah...!,”
que não é dizível no estilo indireto e que se repete, nos situa entre a palavra
e o suspiro. “Ah...!”, onde a voz, o tom, nos aproxima do seu valor. Neste
caso, o contexto nos guia até seu tom de desejo, nos diz: “espera”. Nessa
contraposição de liberação e pesar.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
VEGH, I. O despertar...
Como pode ser a morte um despertar? Tem Borges uma crença no
mais além? Neste ponto, temos que passar do enunciado a enunciação, é
uma morte invocada em um poema, não é jogada na passagem ao ato. É
uma morte que se introduz na vida, que pode nos libertar da rotina do sonho
compartilhado, se por um instante pudéssemos recordar que se Roma e
Cartago, com todo seu esplendor, desapareceram, é o que aguarda a cada
um de nós, talvez tentaríamos nos distanciar, por um instante, da memória
que, se pautasse todos nossos passos, nos deixaria perdidos em um sonho sem saída.
Dizia no início que não era suficiente pensar que a literatura e a psicanálise compartilham o campo da linguagem e a função da palavra, disse
que havia algo mais. Está no poema, há algo que as palavras dizem no
limite da palavra, ali onde se extremam e encontram o indizível, que George
Steiner5 nomeou presenças reais. Costuma-se acreditar que os psicanalistas se dedicam ao relato, inclusive o do sonho. Sim e não. Freud afirmou que
o sonho era via régia ao inconsciente. Eu o digo deste modo: o sonho, quando é decifrado, é uma formação do inconsciente que nos conduz por bom
caminho até o encontro com o real. A literatura e a psicanálise se aproximam, não só em sua relação à linguagem, mas também ao que se encontra
em seu extremo: o enigma que aponta ao real.
A questão do enigma não é unívoca. Dois autores onde a questão do
enigma se coloca em primeiro plano, mostram articulações diferentes. Na
obra de Kafka, em “O Processo” e em “O Castelo”, nas duas novelas aparece em primeiro plano o enigma. No primeiro caso é impossível saber para o
sujeito a razão de seu processo, enigma que nunca desvelará. Em “O Castelo” é impossível para o sujeito saber quem decide e sobre o que, se tem
direito ou não de formar parte desta comunidade, de encontrar um trabalho,
de ser reconhecido. São enigmas que não se respondem. Maneira que tem
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Steiner, George, Presencias reales . Barcelona: Ediciones Destino, 1991.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.152, novembro 2006.
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SEÇÃO TEMÁTICA
Kafka de se opor ao racionalismo da época a qual lhe tocou viver. Um modo
de presentificar, na literatura, que a razão tem um limite. O que sucedeu
pouco depois de sua morte verificou que nosso reino não é o da razão.
Por outro lado, em Joyce o enigma tem outra estrutura. Escreveu
“Ulisses” e “Finnegan’s Wake” armando jogos de palavras em múltiplas línguas, dialetos, referências históricas, que propôs como enigmas a decifrar.
Existe uma associação internacional de leitores de “Finnegan’s Wake”, que
vão se passando as descobertas. Joyce disse que sua obra iria provocar
pelo menos 300 anos de universitários dedicados a decifrá-la. Neste caso, o
enigma tem outro valor, já não o de levar o sujeito ao limite do indizível, senão
recriar a Joyce, sujeito de sua obra. Enquanto seguimos decifrando sua obra,
Joyce seguirá existindo. São dois exemplos onde se pode ver que o enigma
não é unívoco no efeito que causa, se articula de modos distintos.
Se elevamos o poema de Borges a dignidade do enigma, ao invés de
decifrá-lo, se encontramos o bom sentido, talvez nos aproximemos do enigma da outra margem que nos situa melhor na impureza do ser.
ARRIBAS, O. Harold Bloom e a gonse...
HAROLD BLOOM E A GNOSE 1
A PSICANÁLISE E O DESAMPARO DO SABER
Osvaldo Arribas2
D
e algum modo, penso que este seminário sobre “a psicanálise e
seus críticos” se assemelha com o amor pela leitura, do que dá
provas Harold Bloom com seus livros de crítica literária, e talvez, de
algum modo, tanto Harold Bloom quanto nós, com este ciclo de palestras,
busquemos estimular a leitura. Talvez o destino da psicanálise não seja
desvinculado do destino da literatura, e nós, tanto como Bloom, esperamos
que sempre haja incessantes leitores, que sigam lendo apesar da proliferação de novas e distintas tecnologias para preencher o ócio.
Bloom tem claro que ler os melhores escritores não nos converte em
cidadãos melhores, ou seja, que sua leitura não tem nenhum crédito social
ou político. Como ele diz: “A arte é absolutamente inútil, segundo o sublime
Oscar Wilde, que tinha razão em tudo. Também nos disse que toda má
poesia é sincera. Se eu tivesse o poder de fazê-lo, daria a ordem para que
essas palavras fossem gravadas na entrada de todas as universidades...”.
Bloom quer reivindicar, sobretudo, a literatura como experiência estética, e
se desespera frente àqueles que a menosprezam e só a consideram uma
mistificação promovida pelas instituições burguesas.
E tratando-se de estimular à leitura, me sinto um pouco na obrigação
de contar-lhes algo acerca de quem é Harold Bloom, porque ao menos eu,
antes de decidir-me encarar sua leitura, incitado por este seminário – “A
psicanálise e seus críticos” –, não sabia muito sobre ele, salvo que se tratava de um prestigioso e polêmico crítico literário norte-americano.
O interessante de Bloom é que, sendo um expert, renega o mundinho
acadêmico do qual, sem dúvida, é um dos filhos prediletos e se dirige, espe1
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Proferido na EFA, 2005. Tradução: Marcia Helena de M. Ribeiro.
Psicanalista, membro Escuela Freudiana de la Argentina e da Fundación del Campo Lacaniano.
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SEÇÃO TEMÁTICA
cialmente em “O cânone ocidental”2 , ao leitor comum e não aos acadêmicos
da universidade, justamente pela razão de que apenas pouquíssimos dentre
eles seguem lendo pelo simples amor à leitura. Neste sentido, bem podemos considerá-lo um crítico do discurso universitário de nossa época tanto
como daquilo que, nos Estados Unidos da América, se cultiva por considerar-se politicamente correto. Bloom faz o elogio do leitor comum porque não
lê para obter um prazer fácil ou para expiar certa culpa social, mas para
alargar uma existência solitária; enquanto que “o mundo acadêmico se tornou tão desacreditado que – assinala Bloom – os críticos desta época denunciam a este tipo de leitor argumentando que ler sem um propósito social
construtivo não é ético”. Está claro que Bloom é contra todo o culturalismo,
de esquerda ou de direita e, neste sentido, reivindica a literatura como literatura.
Para Bloom, “a moralidade do saber, tal como se pratica hoje em dia,
consiste em encorajar todo mundo a substituir os prazeres difíceis pelos
prazeres universalmente acessíveis, exatamente porque são mais fáceis”.
Bloom é professor de Humanidades na Universidade de Yale e de
inglês na Universidade de New York, também é membro da Academia Americana e autor de mais de vinte livros. Nem todos estão traduzidos e, por
conseguinte, não li todos. Dos não traduzidos, o mais interessante, pelo
título e pelo tema, parece ser “A religião americana” (logo o encontrei, traduzido como “A religião nos Estados Unidos. O surgimento da nação póscristã”3), que teria gostado de comentar, mas não será possível.
Muitos destes livros, a maioria dos quais não li, estão dedicados especialmente a Shakespeare, explicando como e porquê temos que lê-lo.
Dos que li, o que mais repercussão tem tido ultimamente é “O cânone ocidental”, que além de ser um catálogo de livros preceptivos, percorre a histó-
ARRIBAS, O. Harold Bloom e a gonse...
ria da literatura ocidental através de vinte e seis autores que considera fundamentais. Sempre primeiro, evidentemente, Shakespeare que, segundo Bloom,
é ele mesmo o cânone ocidental – ainda que às vezes também agregue
Dante –, e em seguida muitos outros: Dante, Proust, Beckett, Tolstoi, Joyce,
Borges, Whitman, Dickens, etc.
Outro livro que também li é “Presságios do Milênio”4, que está relacionado com o referido sobre a religião americana, que é posterior e, segundo
Bloom, não é sua continuação, mas como nega que o seja, evidentemente o
é em algum ponto, já que trata sobre o que Bloom considera o pilar fundamental da religião americana, à diferença da religião européia e latina. Tratase do caminho da gnose, “uma aceitação ou conhecimento do Deus que há
em nosso interior, algo que, sem exceção, as confissões institucionais condenaram como herético”. Neste sentido, Bloom se considera um herege que
adere à gnose, e apresenta este livro como um sermão gnóstico. Bloom
considera a religião norte americana uma fé sincrética e muito ampla, que é
muito diferente da do cristianismo europeu, e afirma que o Cristo dos norteamericanos é o da ressurreição e não o da crucificação.
Considero importante o tema destes dois livros porque tem muito a
ver, me parece, com a relevância fundamental que tomaram na psicanálise
norte-americana os estudos sobre a psicologia do eu, do eu forte, do eu
profundo e, além disso, uma certa religiosidade do eu, que funciona em
desmerecimento e em oposição à psiquê freudiana. Este eu profundo seria
uma fagulha divina que existe em todos nós, segundo o gnosticismo, e é o
fundamento místico da apregoada confiança em si mesmo, típica dos norteamericanos, que não se deve buscar no Deus de fora senão no de dentro.
Neste sentido, poderíamos dizer que a via freudiana da análise é tomada por
Bloom como um ir “para dentro” e é instrumentada como uma via gnóstica
contra o marxismo e as religiões tradicionais, que têm a ver com um ir “para
fora”.
2
N.T. BLOOM, Harold. “O canône ocidental”. Rio de Janeiro: Objetiva. 1995. 556 p.
N. T. Livro não traduzido para o português. BLOOM, Harold. La religión en los estados
unidos. El surgimiento de la nación poscristiana. Málaga, Espanha: Fondo de Cultura
Económica. 312 páginas.
3
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4
N. T. BLOOM, Harold. “Presságios do Milênio”. Rio de Janeiro: Objetiva. 1996. 188p.
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Para Bloom, buscar a Deus fora de si mesmo leva aos desastres do
dogma, à corrupção institucional, a barbaridades históricas e à crueldade
mais manifesta. Seria por isso que durante dois séculos quase todos os
norte americanos teriam buscado mais ao Deus que há em seu interior ao
invés do Deus do cristianismo europeu. E, nesta linha, diz Bloom: “Conhecer
a mim mesmo, conhecer a Shakespeare e conhecer a Deus são três buscas
distintas, mas estreitamente relacionadas”. Este é um pouco o marco da
crítica literária que Bloom sustenta, e também o marco de suas considerações críticas e elogiosas sobre Freud, que são as que mais nos interessam
neste caso.
Porque Shakespeare é tão importante para Bloom para além de suas
qualidades literárias? Porque seguindo a gnose conhece-se o eu, primordialmente, conhecendo-se a si mesmo – disse Bloom –, dado que conhecer
outro ser humano é imensamente difícil, talvez impossível: “por isso lemos e
escutamos Shakespeare: a fim de encontrar-nos com outros eus. Nenhum
outro escritor – afirma Bloom –, que não seja Shakespeare, pode fazer isso
por nós, justamente porque nunca nos encontramos com o próprio
Shakespeare em suas obras, ao contrário do que acontece com Dante e
Tolstoi nas suas”. Ou seja, para Bloom, Shakespeare é o único autor, e por
isso é o centro do cânone ocidental, que nos apresenta muitos eus sem
contaminá-los com o seu, porque o seu nunca aparece. Para Bloom, o eu de
Shakespeare é pura queda, se apaga e desaparece em suas obras, é um
buraco em sua própria obra, e daí sua universalidade, nunca alcançada por
nenhum outro autor.
Outro de seus livros se intitula “A angústia da influência”5, no qual,
tomando a tradição gnóstica, a Nietzsche e a Freud, dedica-se a estudar a
angústia literária de um poeta frente a seus predecessores, sua luta por ser
original, por completar o já dito, por dizê-lo melhor ou por dizer o que o outro
ARRIBAS, O. Harold Bloom e a gonse...
N. T. BLOOM, Harold. “A angústia da influência: uma teoria da poesia”. Rio de Janeiro:
Imago, 1991. 209p.
não disse. Neste sentido, Bloom fala de influências poéticas ou de erros de
interpretação na novela familiar do poeta com os outros poetas, e arma uma
teoria da crítica literária baseando-se, fundamentalmente, em Freud e sua
teoria da angústia. Sempre com uma particular e original interpretação do
texto freudiano.
Por exemplo, refere-se à sublimação como se fosse uma teoria piedosa e caridosa, cristã então, que Freud inventa e oferece como consolo aos
pobres poetas que não podem escapar dos demônios da repetição. Diz literalmente: “minha teoria rechaça o qualificado otimismo freudiano, que sustenta que a substituição feliz é possível, isto é, que uma segunda oportunidade pode salvar-nos da busca repetitiva de nossas mais remotas raízes. Os
poetas, em sua condição de poetas, não podem aceitar as substituições e
estão dispostos a lutar até o fim para defender sua primeira oportunidade.
Tanto Nietzsche quanto Freud subestimavam os poetas e a poesia”.
E segue dizendo: “A sublimação freudiana implica a renuncia de modos mais primários de prazer por modos mais refinados, o que equivale a
exaltar a segunda oportunidade em detrimento da primeira. O poema de
Freud não é suficientemente severo, a diferença dos poemas severos escritos pelas vidas criadoras dos poetas fortes”. A sublimação, então, viria a ser
uma sabedoria pragmática criada por Freud para consolo dos pobres de
espírito, mas não apta para os poetas fortes, que necessariamente devem
rechaçá-la ou lutar contra ela. Bloom quer apresentar sua teoria da poesia
como um poema severo.
Da luta do poeta contra o poeta precursor, apresenta o que denomina
seis quocientes revisionistas, que são distintas resoluções das divisões
que o precursor produz no poeta ou distintas formas de luta contra o precursor: 1. Clinamen; 2.Tésera; 3. Kenosis; 4. Demonização; 5. Ascese; 6.
Apofrades.
Shakespeare é o único poeta excluído de todas estas postulações,
pois pertence à era dos gigantes ante-diluvianos, antes que a angústia da
influência se convertesse em um assunto central para a consciência poética. Shakespeare teve seu precursor em Marlowe, mas é o exemplo mais
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convincente na língua inglesa de um fenômeno que Bloom mantém fora do
campo de interesse desses livros: a absorção absoluta do precursor.
Harold Bloom coloca Freud, contraditoriamente, encabeçando o que
ele denomina a Escola do Ressentimento; filho como outros, talvez quase
todos, da inveja e angústia das influências de seus predecessores, especial
e fundamentalmente de Shakespeare. E digo que é contraditório porque define na Escola do Ressentimento aos que consideram que os valores estéticos emanam das lutas de classe. Bem, entendo que se refere aos que dissecam a experiência estética, tal como pretende fazer Freud com Shakespeare, Jensen e outros. Freud, para Bloom, viria a ser, às vezes, nada mais
que um plagiário privilegiado de Shakespeare, de quem roubaria todas as
suas idéias, e ainda que o considere um digno plagiário, mas também simplesmente um escritor e ensaísta, e à altura de Montaigne, não o inclui no
cânone, embora o considere repetidas vezes um autor canônico. Um fracassado? Um equívoco?
Freud teria plagiado, fundamentalmente, a teoria da ambivalência afetiva
– a que praticamente reduz toda a psicanálise – que mostram os personagens de Shakespeare; e quanto ao inconsciente seria meramente uma velha
metáfora, e não das melhores, na qual alimenta a imaginação literária. Bloom
chega a dizer, literalmente, que bem se poderia considerar Shakespeare
como o inventor da psicanálise. Bloom é um escritor contraditório, sutil às
vezes e bastante bruto em outras.
Seria fácil aplicar a Bloom o mesmo tratamento que ele aplica a Freud
e aos outros sucessores de Shakespeare, pois é notório que utiliza Shakespeare para afrontar todo mundo, mas não vejo para que nos serviria. É certo
também que ele não fica só nisso.
Seguramente, Bloom é um dos verdadeiros resistentes à psicanálise,
pois a rechaça de imediato como prática ou como terapia, a considera tão
somente uma espécie de xamanismo moderno; e só resgata Freud como
um ensaísta brilhante, mas sempre apesar da psicanálise como prática de
discurso, até o ponto que assegura que Freud como escritor sobreviverá em
muito à pratica de uma psicanálise, que já considera agonizante. Mas, ape-
sar desta consideração literária que faz de Freud e de chegar a dedicar-lhe
um capítulo em “O cânone ocidental”, intitulado “Freud: uma leitura shakespeariana”, de ser um dos autores mais citados em todo o livro, e de denominálo “a melhor inteligência de nosso século”, (é a inteligência de nossa época,
da mesma forma que Montaigne foi a inteligência da época de Shakespeare”,
p. 387) não o inclui no cânone, mas sim a Montaigne. Por quê? É um erro ou
um dos casos de angústia das influências?
Talvez como castigo, ou seja, por ódio e ressentimento contra o que
chama a postura defensiva de Freud, a qual denomina “numantina” (na
Numancia, preferiram incinerar-se na fogueira a render-se). Esta postura defensiva, que tanto ofende e irrita Bloom, seria o fato de que a Freud custava
crer que Shakespeare fosse o filho de um fabricante de luvas de Stratford, e
preferia a hipótese de que realmente era o conde de Oxford, a partir do que
Shakespeare seria um impostor como filho do fabricante de luvas ou um
pseudônimo do conde. É certo que Freud insiste muito a respeito, porque
não podia crer que um pobre ator de Stratford fosse o verdadeiro criador de
tragédias que protagonizavam reis e nobres, e segundo Bloom, o que Freud
desejava com todas suas forças era ler grandes tragédias como revelações
autobiográficas (p.386), o que pode ser certo, mas o que ofende Bloom é que
supõe ali o malévolo desejo de Freud de que Shakespeare não fosse
Shakespeare (p.385), e de que, na realidade, fosse Hamlet quem escreveu
“Hamlet”, Macbeth quem escreveu “Macbeth”, Otelo quem escreveu “Otelo”,
etc. Para Bloom, não resta nenhum tipo de dúvida: “A menos que alguém
seja freudiano fanático, trata-se da antiga história da influência literária e
suas angústias. Shakespeare é o inventor da psicanálise, Freud seu
codificador”(p.387). Seria por isso que para Freud nada é suficiente em relação a Shakespeare, e necessita rechaçá-lo, desmascará-lo e desonrá-lo
como precursor ameaçador.
Obviamente considera Freud como escritor e a psicanálise como literatura, e considera que o verdadeiro êxito de Freud consiste em haver sido
um grande escritor, pois, cito: “Como terapia, a psicanálise agoniza, e talvez
já esteja morta: sua sobrevivência canônica deve-se buscar no que Freud
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escreveu (da psicanálise? Por que Freud não aparece incluído no cânone ao
final do livro, embora talvez seja um lapso, mais interessante que sua própria
inclusão, porque no texto o menciona como um autor canônico, p. 399).
Poderia-se objetar que Freud é um pensador original da mesma forma que
um autor poderoso, o que eu replicaria que Shakespeare é um pensador
ainda mais original.” (p. 388) (O que tem a ver que um seja mais original que
outro? Bloom faz a Freud o que Freud teria feito a Shakespeare: lhe nega
autoridade e existência).
E segue dizendo: “Hamlet não tem complexo de Édipo, mas Freud
desde cedo padece do complexo de Hamlet, e talvez a psicanálise seja o
complexo de Shakespeare!” ( p.388)
Então, o que pode nos ensinar a crítica deste crítico literário que
entroniza Shakespeare ao centro do cânone ocidental e menospreza, com
matizes, a todos os demais autores literários?
Shakespeare é claramente seu objeto fetiche, o que o assegura contra a castração como uma espécie de grande Outro do cânone, ou ao que
identifica como o cânone mesmo, Shakespeare é o ser mesmo do escritor
como espelho da natureza, o pai da literatura que seria o único a não haver
sofrido nenhuma angústia pela influencia nula ou reabsorvida de seus predecessores.
Bloom diz que: “Freud, como poeta em prosa do pós-shakespeariano,
navega no rastro de Shakespeare, e em nossa época não há vítima mais
distinta da angústia de influência que o fundador da psicanálise, que sempre
descobria que Shakespeare havia existido antes dele, e com demasiada
freqüência não podia suportar o confronto com tão humilhante verdade”. Que
fantasma de presumida paternidade desloca Bloom em seus comentários
sobre Freud!
Passando por cima do neo-historicismo que, diz Bloom, “é o
Shakespeare francês: Hamlet sob a sombra de Michel Foucault; temos desfrutado de Lacan, o Freud francês; e de Derrida, o Joyce francês. O Freud
judeu e o Joyce irlandês são mais de meu gosto, como Shakespeare inglês
ou universal. O Shakespeare francês é um absurdo tão delicioso que alguém
se sente um ingrato por não apreciar uma invenção tão cômica”. (p.529)
“A ideologia desempenha um importante papel na formação do cânone
literário, se se insiste que uma postura estética é em si mesma uma ideologia, uma insistência que é comum aos seis ramos da Escola do Ressentimento: feministas, marxistas, lacanianos (sic), neo-historicistas (Foucault),
desconstrucionistas e semióticos”. (p.535)
É realmente um equívoco completo que seguramente tem seus fundamentos, a maneira complexa como inclui Freud e Lacan, mais Lacan que
Freud, no que chama a Escola do Ressentimento, que é o ódio à experiência
estética que representa a grande literatura.
Não esqueçamos que Lacan, em 1976, falando que o analista se
historiciza no passe, ou seja, de que não há ser do analista nem hierarquia
canônica que possa confirmá-lo, comenta que alguém lhe disse que era
analista de nascimento. Lacan é taxativo e diz: “repudio o certificado: não
sou um poeta(!), senão um poema. E que se escreve, ainda que aparente ser
sujeito”.
É interessante a resposta de Lacan, diz que não é um poeta, não que
não é um analista, e diz que é um poema, quer dizer, o produto do poeta. Mas
se não há ser do analista, tampouco há ser do poeta (por mais que Bloom
insista em atribuí-lo a Shakespeare). Mas tampouco poderíamos dizer, ao
inverso, que o analista é filho da análise e o poeta filho do poema, salvo que,
no dizer de Lacan, o poeta seja Freud e o próprio Lacan seu poema.
Um dos aspectos de Freud que indignam Bloom é que tenha se autoanalisado, e que, segundo sua interpretação, tenha proibido a auto-análise
a seus seguidores. Deste modo, Freud teria se auto-engendrado, proibindo
a seus discípulos fazer o mesmo. Mas sabemos que auto-análise é um
mito, que o analista precursor e caduco de Freud foi Fliess (embora talvez
também o tenha sido o texto de Shakespeare), do mesmo modo que o
caduco precursor de Shakespeare foi Christopher Marlowe. E também sabemos, tal como diz Bloom da relacão de Shakespeare com Marlowe, que
ambos precursores foram completamente absorvidos ou devorados por seus
sucessores.
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SEÇÃO TEMÁTICA
PEREIRA, L. S. Sobre “Dom Casmurro...
SOBRE “DOM CASMURRO,
UM NARRADOR INCERTO,
ENTRE O ESTRANHO E O FAMILIAR”1
Para Harold Bloom, o desejo indiscutível de todos é ser original, mas
talvez esse desejo não seja universal, na medida que o desejo é desejo de
não ver e de não saber, talvez o desejo não seja senão um desejo de plagiar
inibido pelo de ser original. E tal como o caso de Kris, que analisa Lacan,
possivelmente todos queremos ser outros, queremos miolos frescos e talvez, inclusive por isso, lemos e escutamos.
Lucia Serrano Pereira
B
entinho pede para ver os olhos de Capitu. Faz o pedido porque lembra, nesse instante, as palavras de José Dias sobre ela, sobre seus
olhos, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Bentinho não entendia bem do que se tratava em oblíqua, mas sabia de dissimulada e quer
sondar essa palavra no olhar.
Não encontra nada de extraordinário nos olhos da “namorada:[…] a
cor e a doçura eram minhas conhecidas”. (Dom Casmurro, p. 843)
Mas esses olhos passam a ficar crescidos e sombrios:
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.
Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas,
aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura,
ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (p. 843)
O momento da virada é apresentado forte, o que parecia familiar e
doce, frente à onda do desejo que irrompe pode transformar-se em devastação, em sumidouro, um lugar de perda.
Bentinho, que se achava em águas conhecidas, está agora prestes a
se afogar. A dimensão da parcialidade vem ao primeiro plano, fantasmática,
quando o sujeito pode ser reduzido a um puro objeto, quase tragado pelos
olhos de ressaca. Ele se agarra, desesperado, às outras partes do rosto
como o náufrago em perigo.
1
Versão da defesa de dissertação de Mestrado apresentada em maio de 2003 no Instituto de
Letras – UFRGS.
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SEÇÃO TEMÁTICA
Jogo entre o familiar e o estranho. Lugar onde ver é perder, e onde o
objeto da perda sem recurso nos olha. É o lugar da inquietante estranheza
(Didi- Hubermann, p.227).
A duplicação da casa, ou “atar as duas pontas da vida” :
Dom Casmurro relata que há anos pensou em reproduzir no bairro do
Engenho Novo (onde vive) a antiga casa, a casa da infância, em que se criou,
a da rua de Matacavalos. A mesma casa, um sobrado; as mesmas peças; a
mesma disposição. “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e
restaurar na velhice a adolescência.” (p. 810)
O que cercava a casa antiga que convocava sua reedição?
A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz
primeiro uma longa visita de inspeção por alguns dias, “e toda casa me
desconheceu”. No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba
velha e o lavadouro, nada sabiam de mim. A casuarina era a mesma que eu
deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de reto, como outrora, tinha agora
um ar de ponto de interrogação; naturalmente pasmava do intruso. Corri os
olhos pelo ar buscando algum pensamento que ali deixasse, e não achei
nenhum.
“Tudo me era estranho e adverso”. (grifos nossos, p. 941)
A CASA QUE LHE ERA TÃO FAMILIAR EM
UM PRIMEIRO TEMPO NÃO O RECONHECE
Tudo agora é estranho e adverso, o ponto de angústia nos detalhes,
nos traços mínimos do que emana desses objetos que de alguma forma o
olham, o interpelam, pode-se dizer, o angustiam.
Uma imagem do eu espelhada na casa pode retornar para Bentinho
em uma dimensão angustiante, como mal assombrada, como desconhecimento. A velha casa deve então ser destruída, ela de alguma forma lhe é
hostil. A casa nova, a réplica, também não vai representá-lo, no fim das
contas. Atar as duas pontas da vida é uma impossibilidade.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
PEREIRA, L. S. Sobre “Dom Casmurro...
ESCOBAR EM EZEQUIEL – OU O MORTO
RETORNA DESDE A SEPULTURA:
Capitu olha o cadáver de Escobar, e, segundo Bento nos conta, o
olhar que lança para o morto é apaixonadamente fixo, de viúva. É como a
vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador.O olhar de
Capitu para o morto ancora o ciúme.
Na seqüência do cotidiano, ela comenta que o filho tem uma expressão nos olhos que lembra Escobar, e isso basta para fixar o encontro
fantasmático: Dos olhos de Ezequiel Bento vê ressurgir Escobar.
Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa
inteira, iam apurando-se com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que
o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir,
palpitar, falar quase, até que a família pendura o quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui podia ser e era. […] Escobar vinha
assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para sentar-se
comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou
pedir-me à noite a benção do costume. (p.932)
Três momentos, em especial, que produzem e evidenciam um movimento de subversão, de ruptura, de virada e ao mesmo tempo de
estranhamento que nos vem pela voz do narrador. Este já não pode se situar
em posição distanciada, inquestionável e tranqüila. O narrador machadiano
aqui está implicado de um modo particular.
Nos pontos que me impactaram, na leitura do romance, foi se formulando uma questão: essa escrita, tensão veiculada pela voz do narrador, não
é justamente uma das formas de por em pauta a subjetividade que estabelece, de certa maneira, nosso tempo?
Dom Casmurro nos leva pela narrativa ficcional de (suas) memórias
sobre um fundo de mal-estar.
A temática do mal-estar é uma das vias pela qual Freud interroga a
condição do sujeito na entrada do século XX, esse sujeito que não é “senhor
em sua própria casa”, com a descoberta/invenção das determinações inconscientes; essa possibilidade de, pelo circuito pulsional se ver jogado do
C. da APPOA, Porto Alegre, n.152, novembro 2006.
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SEÇÃO TEMÁTICA
PEREIRA, L. S. Sobre “Dom Casmurro...
lugar de sujeito a um lugar de puro objeto, (o que vai ser formulado desta
maneira na releitura de Freud por Lacan); e de além disso, no lugar de encontrar um eu, no centro de seu ser, encontra-se com um Outro.
Como a casa que não devolve a Bentinho seu lugar, ou os olhos de
ressaca que transformam Bentinho em objeto a ser engolfado, ou como esse
estranho espelho de semelhanças fantasmáticas onde Bento passa ao lugar
da sombra do outro.
Machado de Assis e Freud foram contemporâneos. Com contextos,
práticas e quadros discursivos bastante diferenciados. Mas a leitura do texto
de Machado, por um lado, e a prática da psicanálise por outro, me fazem
pensar que há um termo entre eles que permite traçar uma conexão: ambos
põe em questão, seja pela arte ou pela clínica, esse sujeito fundado na
relação ao declínio da função paterna, sustentado por uma ética do individualismo e do recalque da tradição. O simbólico já não dá conta da subjetividade nos moldes anteriores, com as grandes representações, com o épico,
com a transcendência. O mal-estar frente ao real, à angústia, ao desamparo
precisam encontrar novas formas de se organizarem, outros sintomas, podemos dizer.
O “inquietante” em Dom Casmurro, me levou ao texto freudiano “O
estranho” (Das Unheimliche, 1919)
É um dos textos fortes da obra de Freud, e, ao mesmo tempo, talvez
um dos que evidencia de forma mais direta a imbricação da literatura e da
psicanálise enquanto possibilidade de pensar a subjetividade: a literatura
não está ali como ilustração, mas sim compondo o caminho de elaboração.
“O Estranho” marca uma posição importante a respeito de seu olhar
sobre a obra de arte: Diz que as aproximações estéticas têm preferido pontuar o grandioso, o atraente, o belo, mais do que os sentimentos opostos, o
desagradável, o repulsivo. Ele vai por esse segundo caminho, tendo por trás
os enigmas, os impasses que a formulação recente da hipótese do inconsciente e que a clínica psicanalítica lhe propõem. Freud se faz acompanhar,
neste artigo, pelo conto de Hoffmann “O Homem da Areia”. Faz um trabalho
extremamente cuidadoso no trato com a linguagem, com os deslocamentos
que levam o termo alemão unheimlich/estranho até a significação de heimlich/
familiar.
É comum pensarmos que o estranho refere-se às situações, experiências as mais afastadas, mais estrangeiras a nós mesmos. O que Freud
evidencia é que, no que diz respeito aos processos inconscientes, o que
produz efeito de estranho, espantoso, angustiante, tem relação com o que é
extremamente familiar, porém recalcado. Assim unheimlich se desloca até
seu oposto – heimlich – em um quadro de mal-estar, deslocamentos e ambigüidades. Não será esse o habitat natural do “narrador incerto” de Dom Casmurro?
Faço aqui um salto para um ponto do artigo freudiano que me parece
central para nosso eixo de discussão: o efeito de “estranho”, na ficção, vai
depender da direção que o autor franqueia; é menos pela temática, e mais
pelo jogo posicional em que o leitor pode ser convocado que o estranho se
articula. Caminho de torção, de movimento que se altera dependendo da
circulação dos lugares. E foram essas torções que me surpreenderam em
Dom Casmurro, momentos que produzem rupturas que podem mudar totalmente a direção das coisas.
Isso me parece fundamental: detalhes, fragmentos, são muitas vezes, em uma análise, os alteradores de um rumo, e mesmo de uma vida.
A prática da letra converge com o uso do inconsciente.O escritor,
assim como o analista ou o analisante, aceita dar ouvidos a significantes
que vem do Outro, significantes enigmáticos aos quais dá, como pode, seqüência e resposta em sua obra. (Chemama, 2002, p.63)
Dom Casmurro é, sem dúvida, concentrador desses significantes, em
grande estilo. A forma pela qual Machado de Assis trabalha com os restos,
os resíduos, com o detalhe, aporta algo que nos concerne – talvez na própria
relação com a obra de arte no século XX, na relação aos traços mínimos, na
desmontagem dos objetos.
O ponto de partida em cada um dos momentos que trabalhei foi o da
inquietante estranheza, do estranho/familiar, mas isso vai derivando e permitindo a aproximação, em especial, com os termos da angústia, do real, do
especular, do fantasma, e do desejo.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
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SEÇÃO TEMÁTICA
PEREIRA, L. S. Sobre “Dom Casmurro...
Por último, ainda um apontamento sobre a forma:
Jean Rousset (1998) ressalta que em toda obra viva, o pensamento
não é dissociado da linguagem que ela inventa para se pensar, a experiência
vai instituir-se e desenvolver-se através das formas.
“Dom Casmurro” se escreve como narrativa ficcional de memórias,
assim que nos perguntamos da forma, do trato da questão da memória no
texto. Roberto Schwarz, faz a crítica de “Dom Casmurro” observar um ponto
específico: a grande virada da posição do narrador no romance, para Schwarz,
é pautada pelo abandono, por Bento Santiago, da posição de filho pela de pai
e proprietário. Parece-nos que esta mudança (operação que fica inconclusa)
pode ser pontualmente situada no jogo de memória que se arma a partir do
Panegírico de Santa Mônica (o tempo de Bentinho no seminário), em um
modo de combinatória que poderíamos relacionar, retomando aqui a contribuição de Walter Benjamin, com a metáfora das constelações. Articulação
entre a história e a memória, entre o passado e o presente, onde novas
conexões surgem pautadas pelo agora, produzindo um “efeito” de origem a
partir de sua formulação, desarticulação de uma leitura linear da história, ou
mesmo de uma narrativa. O Panegírico pode restar como a figuração congelada de uma questão que atravessa todo o romance, em suspensão.
A proximidade com a constelação benjaminiana pode ser um elemento a levar em consideração nessa nova forma de trato com os restos, os
detalhes, os fragmentos da memória na ficção de “Dom Casmurro”.
Quando estava por concluir o trabalho com este romance machadiano,
em algum momento me dei conta de que tudo (e me causou surpresa) passou pela questão do olhar, mas esse fio apareceu no só-depois do trabalho
ao longo de quase dois anos. “O Homem da Areia”, onde o núcleo é a questão dos olhos e do olhar, a duplicação da casa onde Bento Santiago se acha
no estranho pelos objetos que o olham e não o reconhecem, o naufrágio de
Bentinho nos olhos de ressaca, a semelhança entre o filho e o amigo que
depende de diferentes olhares. O olhar está mesmo no ressaltar o visual e o
pictórico na temática da forma, na metáfora das constelações, quase imagens (as imagens dialéticas de Benjamin), e no olhar que em uma tela se
deposita no detalhe para reconhecer o traço singular, o estilo do artista. O
olhar pode ser lido, então, como uma vertente inadvertida do trabalho.
A pergunta que surgiu foi a de se isso teria sido tributário exclusivamente da questão do estranho, que acentua a imagem, mas esta não me
pareceu resposta suficiente. O que pensei, a seguir, foi considerar que a
questão da obliqüidade do olhar, que tanto me ocupou, especialmente em
“olhos de ressaca” e em “olhar de cigana oblíqua e dissimulada” seja algo
que resulta verdadeiramente genial em Machado, e que puxou todo o resto.
O olhar sem mediação, despido, direto em excesso, o convocador do estranho, que pode produzir colapso. A contrapartida, o olhar angulado, implicado
com a passagem pelo Outro, olhar oblíquo, possibilitador de desejo. Em
“Dom Casmurro” há momentos em que Bento Santiago olha sem poder angular, é o estranho, assim como existe um tempo em que o desejo abre
passagem via os olhares oblíquos. Lembremos as palavras de Lacan afirmando que o inconsciente só se abre, só se entrega assim “meio de lado”.
Essa é a conclusão que saltou sem convite, a de que Machado de
Assis nos oferece esse achado extraordinário do oblíquo em movimento,
ensinando-nos com seu texto algo de um movimento extremamente sutil e
nodal da subjetividade. E que se emaranhou na trama de meu trabalho, ganhando terreno, como esses personagens secundários que crescem e terminam por roubar a cena, para além das intenções. Mas não será isso mesmo que podemos esperar de uma obra que seja viva?
Se formos conseqüentes com o que destacamos, o ato criativo não
dissociado da linguagem pela qual se diz, podemos concluir afirmando que
em Dom Casmurro o que trabalhamos tem a ver com a inquietante estranheza que está tramada indissociavelmente com a escrita e os traços que compõe o campo de referências (campo do Outro) da subjetividade em nossa
língua, em nossa cultura.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.152, novembro 2006.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ASSIS, Machado de. Machado de Assis – Obra Completa. v. I e III. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1997.
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SEÇÃO TEMÁTICA
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas – Magia e técnica, arte e política. Tradução
de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha.Tradução de Paulo
Neves. São Paulo: 34, 1998.
FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 2ª. Edição. Tradução de Jayme Salomão.Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
HOFFMANN, E. T. A. O Homem da Areia. Tradução de Ary Quintella. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1986.
ROUSSET, Jean. Forme et Signification, essais sur les structures littéraires de
Corneille à Claudel. Paris: Librairie José Corti, 1979 (primeira edição - 1963).
SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. 3ª. Edição.São Paulo: Duas Cidades, 1988.
______. Duas meninas. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1997.
PINTO, M. R. P. Reencontrando...
REENCONTRANDO LOL V. STEIN
Maria Rosane Pereira Pinto1
R
eler “O Deslumbramento de Lol V. Stein”2, de Marguerithe Duras
revela-se, a cada vez, mais desconcertante, mais fascinante. Ficamos, do nosso lugar de leitor, em pleno estado de arrebatamento
pelo que Duras nos dá a ver, exatamente como nos advertia Lacan, em sua
“Homenagem3”: “(...) Marguerithe Duras é a deslumbradora, nós, os deslumbrados.”4
Aliás, Lacan, neste mesmo texto, já de saída nos chama a atenção
para o que este termo tem de enigmático: Ravissement 5, que em nosso
idioma traduzimos por “deslumbramento”. Certo, “deslumbramento” é o que
efetivamente toma conta de Lol. Mas Lol ravie, deslumbrada, é também Lol
ravie, roubada, em estado de perda. E isto não se decide apenas por uma
questão de polissemia. Lol, que teve seu amado ravi pela última mulher a
chegar ao baile, assume esta cena de rapto nela mesma: fica ravie, deslumbrada e extirpada de si mesma, como que diluída em seu próprio olhar.
Esta famosa “cena do baile” é, como bem nos assinalou Lacan, o
estofo, por assim dizer, do romance inteiro. É a partir dela que começa a
aventura do olhar, esse ”talismã” do qual Lol é a catalisadora. Com efeito,
isso é o que se passa também com nosso olhar de leitor: ficamos “inteiramente Lol”, é como se fossemos “lidos”, por ela.
1
Psicanalista, membro da Association Psychanalyse et Médecine-Paris e diretora clínica do
Instituto Jean Berges - Clínica e Centro de Estudos em Psicanálise e Medicina-Lajeado.RS.
2
Duras, Marguerithe, Le Ravissement de Lol V. Stein, Paris: Gallimard, Folio, 1981. – Editado
em português sob o título “O deslumbramento de Lol V. Stein”. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira, 1986.
3
Lacan, Jacques , Hommage fait à Marguerithe Duras, du ravissement de Lol V. Stein in
Pétits Écrits et Conférences, 1965 .
4
Ibid. p. 294.
5
Ravissement indica, na língua francesa, tanto fascinação, arrebatamento, encantamento
por beleza, quanto o ato de ravir, roubar, arrancar com violência, raptar.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.152, novembro 2006.
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Foi lendo e se deixando ler por Lol V. Stein que toda uma geração de
psicanalistas dos anos 80 e 90 aprendeu a homenagear a literatura, esta
prática da letra que, aprendemos com Lacan, converge com o uso do inconsciente. Entretanto, pelo menos aparentemente, nos últimos dez anos, não
se pratica mais a leitura e o comentário desta obra de Duras. Evitamento ou
recalcamento? Será que do mesmo modo como Lol V Stein passou dez
anos, depois da cena do baile, levando uma vida adequada, pacata, contente, as novas gerações de psicanalistas ficam mais tranqüilas sem o arrebatamento que sua leitura suscita?
Talvez falte apenas contar novamente a história de Lol para que a
reencontremos em qualquer tempo, em qualquer geração. Mas como é perigosamente difícil, senão impossível, contar a história de Lol sem “se contar”,
talvez seja mais instigante examinarmos uma síntese do romance da qual a
própria Duras participe6. Por isso, a título de provocação, mais do que teorizar
sobre o romance, nos interessa aqui relançar os elementos essenciais da
obra, com a pretensão de convocar o olhar do leitor a se deslumbrar com a
leitura do romance inteiro.
“O Deslumbramento de Lol V. Stein”, segundo a própria Marguerithe
Duras, é um romance da abolição da pessoa. Ou seja, ele fala dessa forma
de aniquilamento de si que caracteriza a personagem de Lol V. Stein. É a
história deste estado que ele representa, cujo nó deve ser lido na cena do
rapto de seu noivo por Anne-Marie Stretter durante o baile de T. Beach. A
cena do baile é assim o nó, a temática central do romance que vai fazer
avançar a narrativa. Tudo se produz aqui em um intervalo de silêncio, no
“entre-dois” das danças. Pois Lol, que até ali se acomodara mais ou menos
na aparência que ela devia dar, é, naquele instante, parada. No momento em
que Anne-Marie Stretter entra na sala de baile do Cassino de T. Beach e
PINTO, M. R. P. Reencontrando...
cruza o olhar com o de Michael Richardson, ela é instantaneamente anulada, esta anulação nascendo de sua incompreensão diante da nova distância
que este encontro provoca, a partir de então, entre ela e eles.
“Lol assistiu a este amor nascente. Ela assistiu à coisa tão completamente quanto possível, a ponto de se perder ela mesma de vista.”7
De Lola ela passa simbolicamente, no decorrer dessa noite e para
sempre, a ser Lol, conhecida por ter perdido o controle dela mesma e cuja
crise termina por transformar-se em estado permanente. Lol, a louca de S.
Thala, da qual dizem que “ela ficou sempre ali onde o acontecimento a havia
encontrado, quando Anne-Marie Stretter entrou na sala de baile do Cassino
de T. Beach”. 8
Lol V. Stein não é arrancada (ravie) dela mesma contra sua vontade.
Ao contrário, ela é levada a isso por um desejo extraordinário de saber, de
conhecer (co-naître) esta coisa que se produz sob seus olhos. A “deslumbrada” (ravie) é em todos os sentidos, ao mesmo tempo arrancada dela mesma por uma força indizível e, ao mesmo tempo, entregue a uma alegria primária essencial de viver essa história.
“Ela fica deslumbrada (ravie) por ser arrancada (ravie) dela mesma.
Ela aderiu a este amor nascente. Ela participa dele, ela esqueceu que ela é
quem não é mais amada(...) E é tão maravilhoso, esta evicção, este aniquilamento de Lol [...]”9
Marguerithe Duras explica que Lol não procurou, ela mesma, compreender o que se passava. Foram os outros que imediatamente refletiram sobre as conseqüências que isso traria a ela, ser abandonada na véspera de
seu casamento.
Ora, se Lol não pensou nas conseqüências do que se passava diante
dela, diz Jacques Hold, é por que ela não se deu conta da distância que
7
A seqüência em itálico é tradução nossa de um extrato do artigo de Fréderique R. Marguerithe
Duras: Le syndrome de Lol V. Stein, disponível integralmente e em língua francesa no site
www.e-littérature.net.
Duras, Marguerithe. Entrevista em programa especial, Un siècle d´Écrivains, consagrado
a sua obra, em 13/05/1998 – Cadeia francesa de televisão France 3.
8
Duras, Marguerithe Le Ravissement de Lol V. Stein. Paris: Gallimard, 1964.
9
Ibid.
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6
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necessariamente a separava do casal. M. Duras sublinha o caráter esplêndido e generoso desta sorte de anulação de si. Porque ela escolheu anular-se
nesta visão, porque ela tentou “entrar na inteligência do assassinato que
Anne-Marie Stretter cometia em relação a ela, ela não viveu o ciúme, nem a
dor”. 10
O que Lol descobre neste instante é tão extraordinário que ela é transportada por uma força indizível que a leva a aderir a este novo amor. Desde
que a mulher entrou, ela pressentiu o imenso acontecimento que iria se
produzir. Ela o espreitava, ela o aguardava, ela estava pronta, visivelmente,
a acolhê-lo. De tal modo, diz Jacques Hold, que “se ela tivesse sido o próprio
agente não apenas de sua vinda, mas também de seu sucesso, ela não teria
ficado tão fascinada”. 11 Ela pareceu amá-los. O rapto de seu noivo, cometido
sob seus olhos por uma outra mulher, se manifestou em Lol por um encantamento e por sinais de prazer, em lugar da imensa dor esperada por todo
mundo. No instante do “ravissement”, do rapto do objeto de seu desejo por
uma outra, Lol “exulta”. E na fulgurância do golpe que ela recebe, ele não
atravessa o portal da despossessão.
Por isso, quando ela chama os amantes, no momento em que eles se
dirigem para a saída, ela o faz apenas por que ela sabe, ou acredita saber,
que eles chegaram juntos a um estágio de onde eles nada mais podem
escutar nem ver, e que ela chegou a esse estágio junto com eles. A partir de
então, ela pode gritar o que quiser, nada mais tem importância, e ela sabe,
nada virá mudar o rumo das coisas. Também Lol chama, grita de maneira
irracional, mas consciente, apesar de tudo, que nada mais, a partir de então,
poderá separar o casal. Estranho comportamento e estranho acontecimento, este que faz de Lol, aos olhos de Marguerithe Duras “esta espécie de
equilíbrio do desequilíbrio”. 12 Ora, o que ela não esperava, provavelmente, é
PINTO, M. R. P. Reencontrando...
que eles partiriam sem ela. Lol acreditava poder ir com eles, ter se tornado,
ela também, essencial a este amor.
A partir de então ela está só, e não mais a três. Mas precisamente,
saberá ela separar-se do casal? O que acontecerá com ela quando Michael
Richardson e Anne-Marie Stretter tiverem saído pela porta do Cassino de T.
Beach? É o que tenta contar Jacques Hold, o autor-narrador. Mas nisso já
aparece que ele também adere à história de Lol, que por sua vez ele é tomado por ela. Quem é ela, Lol, para exercer uma tal fascinação? Que crise é
essa? É loucura ou outra coisa? Lol, figura inapreensível, é alguma coisa
além de figura de desejo? Que cada um construa sua opinião, pois Marguerithe
Duras não nos dá a resposta. Ela abre o texto. É tudo o que ela faz. Mas
com que estilo!
Nove versões do texto foram necessárias a um tal projeto de escritura. Isso bem que merece que se dê uma olhada através do buraco cavado
por Jacques Hold, atrás do qual “ela” nos espera...
Lol à espera do reencontro com nosso olhar. Quem sabe um tal reencontro nos permitiria alcançar a invejável intimidade com que Lacan, em sua
homenagem “fala” com Lol, diretamente com ela, para dizer-lhe “Todo olhar
será o seu, Lol, como Jacques Hold, fascinado, se dirá ele mesmo pronto
a amar ‘toda Lol’”. 13
10
_______Le Ravissement., op. Cit. P. 52
_______Le Ravissement, op. Cit. P. 18
12
ibid. p. 19/20
11
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13
Lacan, Jaques.op. Cit. P. 297
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SEÇÃO TEMÁTICA
HORROR E HUMOR NA LITERATURA INFANTIL
STAHLSCHMIDT, A. P. M. Horror e humor...
presença do horror nas criações artísticas voltadas à criança, encarnado em situações e personagens assustadores, não é novidade na
compreensão psicanalítica do tema. Sobre este, se voltaram autores
como Donald Winnicott (1947/1993) e Ana Lúcia Jorge (1988), referindo-se à
música infantil e, em especial, às canções de ninar, assim como Bruno
Bettelheim (1992) e Diana e Mário Corso (2005), enfatizando os contos de
fadas.
Ao mesmo tempo, a clínica com crianças nos demonstra, quase diariamente, a atualidade da função aterrorizante de personagens como bruxas,
monstros, fantasmas e o sempre presente Lobo-Mau, embora os relatos
envolvendo-os muitas vezes sejam complementados pela informação
tranqüilizadora, por parte dos pequenos, sobre a inexistência de tais seres.
Para a discussão proposta neste texto, enfocando o horror e o humor
na literatura infantil, tomarei como ponto de partida as obras de J.K. Rowling
e Isabel Allende, exemplos recentes de livros para crianças que encontraram
ampla repercussão entre leitores de todas as idades.
Nos textos de Rowling, o horror se faz particularmente presente nas
aventuras do bruxinho Harry Potter, sempre às voltas com sua luta contra o
mal, personificado na figura ameaçadora de Voldemort. Através da utilização
de um cenário construído sobre os alicerces da magia, a autora traz, para o
universo infantil, evocações a diferentes formas como observa o mal na
contemporaneidade, atribuindo ao vilão da narrativa e seus seguidores atitudes como racismo, preconceito e intolerância, contra os quais lutam Harry e
seus amigos. Como salientam Diana e Mário Corso (2005), os personagens
de Rowling não são apenas bons ou maus, eles posicionam-se diante de
seu mundo, e os heróis assumem ideais próprios à geração de crianças a
que se destinam os livros. Assim, certamente, o posicionamento dos protagonistas, a articulação do horror a estas faces do mal, a origem inglesa da
autora e o nascimento de sua obra no contexto europeu atual, não são coincidências, o que se torna evidente especialmente se considerarmos as constantes notícias envolvendo relatos de xenofobia e atritos na convivência entre
cidadãos naturais dos países europeus e estrangeiros ou seus descendentes, exemplificados em episódios recentes, como os ocorridos na França,
há aproximadamente um ano.
Na obra de Rowling, não há subterfúgios para o horror, e mesmo o
célebre e típico humor inglês raramente se faz presente. Se a maldade contemporânea aparece sob o disfarce de personagens ligados à magia, o horror que o enfrentamento ao “Lorde das Trevas” desperta em seus opositores
não encontra atenuantes, e o confronto resulta em diversas perdas para Harry
Potter e seus amigos, sentidas por seus leitores de forma intensa, especialmente diante dos fatos descritos no sexto livro da série e último publicado
até o momento (Rowling, 2005). O cenário, evidentemente, é fictício, mas os
sentimentos evocados pela narrativa fazem parte da realidade de todo o público, que se depara com a tristeza que resulta para o personagem dos atos
de seu inimigo. Como lembram Mário e Diana Corso (2005), a dor diante da
irreversibilidade dos acontecimentos é um dos eixos da narrativa de Rowling,
aspecto que distancia sua obra dos contos de fadas, onde mesmo a morte
pode ser revertida.
Os contos de Isabel Allende voltados para crianças, menos conhecidos do público em geral do que suas demais obras e, certamente, menos
lidos do que os de Rowling, são reunidos sob a trilogia denominada “As
memórias da Águia e do Jaguar”. E, embora também denunciem facetas
como o horror se faz presente na sociedade contemporânea e apresentem
elementos relacionados à magia, como a utilização que os personagens
fazem de seus poderes totêmicos, trazem, diferentes da narrativa da autora
inglesa, a marca indelével do humor. De nacionalidade chilena, nascida no
Peru e radicada nos Estados Unidos, Allende transita com desenvoltura pela
realidade de diferentes contextos culturais, enfatizando questões sociais
atuais, especialmente nos países do terceiro mundo, nas aventuras de
Alexander e Nádia, adolescentes cujas origens são, respectivamente, uma
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.152, novembro 2006.
Ana Paula Melchiors Stahlschmidt
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SEÇÃO TEMÁTICA
STAHLSCHMIDT, A. P. M. Horror e humor...
cidade da Califórnia e a Amazônia brasileira. E aborda, com profundidade,
temas como a ecologia, a ética e o respeito a diferentes culturas, valores e
religiões, sem cair em um discurso panfletário em relação às questões que
permeiam sua narrativa, ou prescindir do humor, utilizado com um característico toque latino.
No primeiro volume da trilogia, publicado no Brasil como “A Cidade
das Feras” (Allende, 2002) os personagens vivem uma aventura na Amazônia, para onde o adolescente americano vai acompanhando sua atípica avó,
Kate Cold, periodista da “International Geographic” e, de certa forma, um
auto-retrato humorístico da autora. Na Amazônia, Alexander conhece Nádia,
que, diferente do amigo, circula com naturalidade pelo universo de magia e
mistérios que apresentam as diferentes comunidades e tribos com as quais
convive. Neste cenário, em busca de feras lendárias cujo encontro acaba
vetado aos adultos da expedição, ambos se deparam com questões como a
exploração predatória das riquezas amazônicas por interesses criminosos,
assim como outras mais pessoais, entre as quais o despertar da adolescência e a luta de Alexander para buscar formas de salvar a mãe, vítima de uma
grave doença. Ao mesmo tempo, o preconceito e a desconfiança diante do
outro, percebido como diferente e, por isso, ameaçador, também se fazem
presentes através do antropólogo Ludovic Leblanc, personagem que teme os
índios, supondo-os canibais e reeditando o horror de ser devorado por um
Outro, lembrado por Sales (2005) como um dos temas freqüentes nas histórias infantis, ilustrado de forma contundente na versão de Perrault do conto
“Chapeuzinho Vermelho”, onde a personagem não é salva pela intervenção
ex machina dos caçadores inseridos na narrativa dos Irmãos Grimm.
O segundo livro da trilogia tem como cenário o fictício “Reino do Dragão de Ouro” (Allende, 2004), país localizado na Cordilheira do Himalaia,
onde Nádia e Alexander se deparam com as características que permeiam
as culturas orientais, cujos valores são ameaçados pela cobiça e pela ganância. A narrativa traz interessantes exemplos sobre as semelhanças entre
o modo como a autora lida com os fatos e personagens que compõem sua
criação e os contos de fadas, pois, como nestes, e diferente do que ocorre
na obra de Rowling, tudo pode terminar bem, e, mesmo para alguns vilões,
ainda resta a esperança de regeneração.
Finalmente, o último volume da trilogia apresenta Nádia e Alexander
na “Floresta dos Pigmeus”, local fictício da África, onde enfrentam um regime ditatorial alicerçado pela articulação perversa do governo, da religião e do
exército, percebido como um monstro de três cabeças que age através da
violência e da escravização do povo. Considerando a história pessoal da
autora e sua relação com o golpe militar de 1973, no Chile, este talvez seja
o volume da trilogia em que aparecem mais elementos de suas experiências, tratando de forma bastante crítica, ainda que bem humorada e adaptada
à compreensão do público a que se destina, as ações e os ideais pregados
pelos ditadores. Neste sentido, não podemos esquecer a função sublimatória
da arte literária, assinalada por Lacan (1991) e ilustrada na expressão de
Isabel Allende “si no escribo, se me seca el alma y me muero” (Zapata,
1998, p.252), ao referir-se à importância que desempenha a literatura em sua
vida.
Cabe lembrar, neste contexto, as proposições de Walter Benjamin
(1926/ 1984) sobre o florescimento dos livros infantis na primeira metade do
século XIX, que a semelhança do que observamos na obra de Rowling e
Allende, não surgem com fins pedagógicos, mas de aspectos da realidade
cotidiana de seus autores. Entretanto, não é irrelevante o fato de Allende,
diferente de Rowling, começar a escrever para crianças após já ter obtido
significativo sucesso como escritora, estimulada pela convivência com os
netos, um dos quais homônimo do herói adolescente de suas aventuras.
Seu afeto e o prazer de contar-lhes histórias talvez desempenhem importante função no modo como insere o humor nas suas narrativas para crianças,
possibilitando a estas uma forma mais amena de enfrentar uma forma de
horror que a autora conhece pessoalmente, e ilustrando a proposição de
Lacan (1992) sobre a importância do amor como artesão do humor.
Ao final da trilogia, assim como nas últimas aventuras de Harry Potter,
observamos Nádia e Alexander chegando à vida adulta, e os personagens,
como Allende menciona acontecer com freqüência em suas obras (Zapata,
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.152, novembro 2006.
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SEÇÃO TEMÁTICA
STAHLSCHMIDT, A. P. M. Horror e humor...
1998), parecem ganhar vida própria e decidir, à sua revelia, sobre seus próprios destinos. Entretanto, diferente de Harry, que no sexto livro da série abdica
de sua relação com a recente namorada, Ginny, e deixa “Hogwarts – Escola
de Magia e Bruxaria” para uma clandestina luta contra o mal, Alexander e
Nádia, na narrativa que conclui a trilogia, assumem a atração mútua e descobrem o amor, inserindo-se no contexto do mais tradicional cenário americano escola-universidade. Como na obra de Rowling, as três fontes de sofrimento que, segundo Freud (1930/1996), fazem obstáculo à felicidade do
homem, estão presentes na narrativa de Allende em sucessivas variações: a
força implacável da natureza, a vulnerabilidade do corpo e a inadequação das
normas que buscam ajustar os relacionamentos do ser humano em seus
laços à cultura. Entretanto, ao final da trilogia, e de forma contrastante com
o efeito provocado pela leitura dos livros de Rowling, o sentimento evocado
nos leitores, depois de deparar-se com o mal-estar e suas facetas contemporâneas, é o alívio diante dos desdobramentos das aventuras vividas pelos
personagens.
E, se as situações vivenciadas por Nádia e Alexander, ainda que não
isentas dos elementos mágicos que habitualmente povoam a literatura infantil, acontecem em contextos que, diferentemente dos criados por Rowling,
existem ou poderiam perfeitamente existir na realidade, mesmo que em cenários normalmente percebidos como exóticos, a forma como os personagens de Allende enfrentam e se desvencilham das situações, apresenta o
horror de modo menos direto e, portanto, menos ansiogênico para o público
infantil. O cenário faz parte da realidade vivenciada ou observada nos noticiários por muitos de seus leitores, mas os personagens lidam com o horror
através de inúmeros mecanismos, entre os quais alguns ligados à magia e
ao humor. E as situações de tensão cessam ao final, quando Nádia e
Alexander encontram, diferente de Harry Potter, não o (mal estar) mal-estar,
mas alívio e felicidade.
Por outro lado, ainda que no desenrolar das aventuras de Alexander e
Nádia, esta seja removida de seu contexto original e passe a residir em Nova
York, suas raízes e valores são mantidos e supostamente aceitos na socie-
dade americana, situada como atipicamente tolerante ao aceitar, por exemplo, que a adolescente compareça às aulas em companhia de Borobá, um
macaco amazônico e seu amigo inseparável.
Se a convivência pacífica entre valores destas diferentes culturas mostra-se mais fictícia, para grande parte dos leitores, do que o cenário de magia
que encontramos no mundo de Harry Potter, um dos aspectos que valeu
severas críticas à trilogia de Allende, considerada por muitos previsível e
sem o caráter fluido de suas obras anteriores, a autora consegue, sem
minimizar os efeitos das atitudes predatórias de seus vilões, possibilitar a
seus personagens que combatam o horror através de uma abordagem
permeada pelo humor. Aspecto que Winnicott (1969/1989), em um texto
denominado “A liberdade”, vai ressaltar como também característico do brincar. E, portanto, relativo aos processos que tem lugar na área de experiência
que denominou espaço potencial, onde também encontramos a relação do
ser humano com os fenômenos que descreveu como transicionais e entre os
quais situa a experiência artística, no contexto da qual podemos perceber a
literatura. Como lembra Freud (1927/1996), em seu texto sobre o tema, o
humor pode ser um modo importante de lidar com as dificuldades, tomando
como “brincadeira de criança”, até mesmo o horror do condenado diante da
forca, evocado no exemplo por ele utilizado. Nas narrativas em que se contrapõe ao horror, o humor possibilita ao autor o enfrentamento de questões
de sua própria realidade transformada pela arte, considerada por Freud (1930/
1996) como uma forma – ainda que, para o autor, fugaz – de suportar os
sofrimentos e decepções da vida. E, certamente, pode permitir aos leitores,
e em especial às crianças que se aventuram à leitura destas obras, não
apenas o enfrentamento do medo e do sofrimento individual, mas o exercício
de lidar com a opressão e as questões sociais evocadas por Rowling e Allende
sem, no entanto, sucumbir ao horror inerente a estas.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n.152, novembro 2006.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALLENDE, Isabel. A Cidade das Feras. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
______. O Reino do Dragão de Ouro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
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SEÇÃO TEMÁTICA
______. A Floresta dos Pigmeus. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
BENJAMIN, Walter. Visão do livro infantil (1926). In: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.
BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos Contos de Fada. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.
CORSO, Diana. CORSO, Mário. Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis.
Porto Alegre: Artmed, 2005.
FREUD, Sigmund. El Humor (1927). In: FREUD, Sigmund. Obras Completas.
Madrid: Biblioteca Nueva, 1996.
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JORGE, Ana Lúcia. O Acalanto e o Horror. São Paulo: Escuta, 1988.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed, 1991.
______. O Seminário, Livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
1992.
ROWLING, J.K. Harry Potter and the Half-Blood Prince. London: Bloomsbury, 2005.
SALES, Léa. Uma questão preliminar – Chapeuzinho e o mito da pulsão. In:
SALES, Léa. (org). Pra quê esta boca tão grande? Questões acerca da
oralidade. Salvador: Agalma, 2005.
WINNICOTT, Donald W (1947). O ódio na contratransferência. In: WINNICOTT,
Donald W. Textos Selecionados: da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro:
Francisco Alves Editora, 1993.
______. A liberdade (1969). In: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
ZAPATA, Celia C. Isabel Allende: Vida y espíritus. México: Editorial Plaza y Janés,
1998.
HATOUM, M. Verdades...
VERDADES QUE VÊM DO OLHAR
Milton Hatoum 1
M
inha visita ao Líbano foi uma viagem às origens mais distantes e
apenas imaginadas. Porque nossa origem é sempre plural: Origens, como o título da revista do poeta cubano Lezama Lima.
No romance “Grande sertão: veredas”, de João Guimarães Rosa, o
narrador-personagem Riobaldo diz, poeticamente: Eu sou donde nasci, sou
de outros lugares.
Usei essas palavras de Rosa na epígrafe do romance “Cinzas do Norte” porque traduziam a vida e o destino do personagem Mundo. O sentimento
de pertencer a um lugar não é exclusivo dos autóctones. A passagem do
gaúcho Raul Bopp pelo Pará e a viagem do paulistano Mário de Andrade pela
Amazônia foram viagens de descoberta de um Brasil povoado de mitos, culturas e paisagens que lhes permitiram escrever obras-primas como “Cobra
Norato” e “Macunaíma”.
Algo de essencial e decisivo na poesia de Murilo Mendes surgiu de
sua longa permanência na Itália. A mesma coisa pode-se dizer das muitas
referências a Andaluzia na obra de João Cabral, que trabalhou como diplomata em Sevilha.
Quando afirmo: sou do Amazonas, é como dizer: sou também de
outros lugares. Nas sete ou oito cidades em que morei em meio século de
vida, alguma coisa me tocou: uma paisagem, um corpo amado ou desejado,
ou uma amizade que ficou para sempre na minha memória. O conhecimento
do outro, de outras culturas, é uma das grandes dádivas da vida.
1
Escritor amazonense, vencedor do prêmio Jabuti, autor dos romances: “Dois Irmãos”,
“Relato de um Certo Oriente” e “Cinzas do Norte”. Professor aposentado da Universidade
Federal do Amazonas. [email protected]
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
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SEÇÃO DEBATES
HATOUM, M. Verdades...
II
Até julho de 1992, eu não conhecia a cidade onde meu pai tinha nascido: Beirute. Ele morava no Brasil desde a década de 1930 e se naturalizara
brasileiro. Já era um homem idoso, beirando os oitenta anos. Eu acabara de
ganhar uma bolsa para passar uma temporada numa cidade francesa - SaintNazaire –, ali onde o rio Loire deságua no Atlântico. Então meu pai quis
saber se eu podia acompanhá-lo até o Líbano.
Mas o que era o Líbano? Na memória do meu pai, era acima de tudo
Beirute, a capital de muitas culturas e religiões, o lugar onde tantos Orientes
e Ocidentes se encontram. Uma cidade milenar habitada por várias civilizações superpostas, como se fosse um espaço-palimpsesto. Em seu livro
magnífico e talvez definitivo (Histoire de Beyrouth), o historiador Samir Kassir
mostrou como a cidade, apesar de suas sucessivas destruições, foi e ainda
é uma metrópole cosmopolita que, já no século 19, havia antecipado o
hibridismo das grandes cidades do nosso tempo. A própria paisagem da
cidade é um privilégio da natureza, pois se debruça sobre as margens do
Mediterrâneo e é envolta por montanhas em que a neve e cedros milenares
são paisagens permanentes.
Há mais de dois mil anos evocado por viajantes, poetas e escritores,
o Líbano era comparado a uma Suíça do Oriente: uma denominação bem ao
gosto de orientalistas e visitantes deslumbrados com o único país da região
que não conhece o deserto. Não por acaso o nome do país aparece na mais
bela e poética passagem do Antigo Testamento: o Cântico dos Cânticos.
São tantos os detalhes, emoções, encontros e surpresas, que essa
viagem podia ser matéria de um livro. Meu pai, mais de trinta anos sem ver
seus parentes, reencontrou os sete irmãos. Podia entender algo da conversa
em árabe, podia expressar-me em francês ou inglês, mas eu preferia olhar e
observar. Na perplexidade, na emoção do encontro não havia palavras, só
olhares. Lembro que os parentes chegavam em grupos para conhecer os
“brasileiros”. Ao amanhecer, escutava a voz do muezin no alto do minarete
da mesquita de Borj el-Brajneh. Depois, lentamente, as tamareiras saíam da
noite e recortavam o céu.
III
Não se podia – ou ninguém queria – falar da guerra civil. Em 1992 a
memória do horror ainda era viva. O lixo estava por toda parte. E também
ruínas, escombros. E o luto. Beirute ainda estava caída: era uma cidade
devastada.
Um tio me levou para conhecer Sabra e Chatila, onde moram milhares
de palestinos exilados. Lá, ouvi relatos de um grande massacre.
“Nunca vamos esquecer”, disse um dos sobreviventes.
Referia-se a 1982, quando Ariel Sharon invadiu o Líbano e mais de 17
mil libaneses e palestinos morreram. Em setembro desse mesmo ano, milícias de libaneses cristãos executaram o massacre de Sabra e Chatila sob o
olhar e a permissão do então coronel Sharon, um cúmplice nada secreto.
“Nunca vamos esquecer”.
Porque o esquecimento de todo e qualquer genocídio é uma grave
ofensa moral aos parentes e amigos das vítimas. E também à humanidade.
O esquecimento é a legitimação de um crime. Por isso o mundo não deveria
esquecer tantos holocaustos e massacres.
Não sei se o mundo esqueceu Sabra e Chatila ou se esquecerá dos
dois bombardeios da aviação militar israelense que matou mulheres, crianças, velhos. Os dois em Qana, a pequena cidade que os libaneses chamam
Qana da Galiléia: o primeiro em abril de 1996, quando mais de cem pessoas
morreram num abrigo da ONU. O mais recente, nas primeiras horas do dia
30 de julho de 2006. Nenhum desses massacres está desvinculado dos
ataques recentes à Gaza, onde já morreram mais de 200 palestinos, incluindo dezenas de jovens e crianças.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
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52
IV
É nesse momento trágico para o Oriente Médio que me vem à memória minha viagem ao Líbano. Agora o pesadelo da guerra civil (19751990) e da ocupação israelense (1982-2000) tornou-se realidade. Embora a destruição e o número de vítimas sejam muito maiores no Líbano e
nos territórios palestinos, esse conflito é também desastroso para os
53
SEÇÃO DEBATES
HATOUM, M. Verdades...
israelenses. Depois dos ataques ao Líbano e à Gaza, que outra guerra
será feita para combater o “terrorismo”, essa palavra que estigmatiza até as
crianças palestinas que resistem à ocupação militar atirando pedras em
tanques?
Segundo o pacifista veterano israelense Uri Avnery, “a terrível arrogância (das forças armadas) tornou-se parte do nosso caráter nacional”. E
isso pode ser uma verdadeira catástrofe para toda a região e talvez para o
mundo.Nesse mesmo artigo (The Knife in the Back, 2-08-06), Avnery criticou com contundência essa guerra insana. Para ele, “o único caminho que
leva à resolução do problema é a negociação, e a paz com palestinos,
libaneses e sírios. E com o Hamas e o Hezbollah”.
Quando a esperança por uma paz justa parece uma miragem, leio
uma carta de cineastas israelenses aos seus colegas libaneses e palestinos. Esse documento foi corajosamente endossado por centenas de cineastas e produtores de cinema brasileiros. São palavras de artistas que
lidam com imagens. Às vezes, as palavras expressam verdades que vêm
do olhar. Diante de um desconhecido – seja ele um estrangeiro ou vizinho -, o olhar é a mediação mais íntima do primeiro contato. É o momento inaugural do conhecimento mútuo, da aproximação, aceitação e compreensão. Nós só podemos compartilhar nossa existência com outros
seres humanos se soubermos olhar para eles sem preconceito, arrogância e prepotência.
Essa carta diz muito porque não se deixa impregnar por uma linguagem viciada, que desqualifica o outro. É uma mensagem de pessoas que
sabem olhar e compreender (e não culpar) as vítimas. É honesta e ética
porque não menciona palavras que são usadas para justificar invasões militares e massacres de civis. Certamente alguns cineastas que assinaram
essa carta são filhos, netos ou parentes de vítimas do Holocausto. Também
por isso é uma mensagem poderosa que será lembrada como um dos documentos mais relevantes contra essa guerra.
Há algo mais digno no ser humano do que reconhecer o sofrimento do
outro?
CARTA AOS CINEASTAS PALESTINOS E LIBANESES
“Na ocasião da abertura da Bienal do Cinema Árabe em Paris (22 de
julho de 2006) Nós, cineastas israelenses, saudamos todos os cineastas
árabes reunidos em Paris para participar da Bienal do Cinema Árabe. Por
intermédio de vocês, queremos enviar uma mensagem de amizade e solidariedade aos nossos colegas Libaneses e Palestinos que estão atualmente
acossados e sendo bombardeados pelo exército de nosso país.
Somos categoricamente contra a brutalidade e a crueldade da política
israelense, intensificadas ao máximo nas últimas semanas. Nada pode justificar a continuidade da ocupação militar, do cerco e da repressão na Palestina. Nada pode justificar o bombardeio de populações civis e a destruição da
infra-estrutura no Líbano e na Faixa de Gaza.
Permitam-nos dizer a vocês que os seus filmes, aos quais fazemos tudo
para assistir e circular entre nós, são muito importantes para os nossos olhos.
Esses filmes nos ajudam a conhecer e a compreender vocês. Graças
a esses filmes, os homens, as mulheres e as crianças – que sofrem em
Gaza, em Beirute e em todos os lugares em que nosso exército exerce sua
violência –, têm, para nós, nomes e rostos. Queremos agradecer-lhes por
terem feito esses filmes. E também encorajá-los a continuar a filmar, apesar
de todas as dificuldades.
No que diz respeito ao nosso trabalho, mantemos o compromisso de
expressar – por meio de filmes, de ações pessoais e de voz elevada – nossa
oposição categórica à ocupação militar israelense. E de expressar também
nosso desejo de liberdade, justiça e igualdade para os povos da região.
Nurith Aviv; Ilil Alexander; Adi Arbel;Yael Bartana;Philippe Bellaiche;
Simone Bitton; Michale Boganim; Amit Breuer; Shai Carmeli-Pollack;Sami
S. Chetrit; Danae Elon; Anat Even; Jack Faber; Avner Fainguelernt;Ari Folman;
Gali Gold; BZ Goldberg; Sharon Hamou; Amir Harel; Avraham Heffner; Rachel
Leah Jones; Dalia Karpel; Avi Kleinberger; Elonor Kowarsky; Edna Kowarsky;
Philippa Kowarsky; Ram Loevi; Avi Mograbi; Jud Neeman; David Ofek; Iris
Rubin; Abraham Segal; Nurith Shareth; Julie Shlez; Eyal Sivan; Yael Shavit;
Eran Torbiner; Osnat Trabelsi; Daniel Waxman e Keren Yedaya.”
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
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SEÇÃO DEBATES
LACAN, J. O seminário - Livro XI...
IV
A REDE DOS SIGNIFICANTES *
Jacques Lacan
Tradução: Claudia Berliner
Pensamentos do inconsciente.
O colofão da dúvida.
Subversão do sujeito.
Introdução à repetição.
O real é o que volta sempre ao mesmo lugar.
T
enho o hábito de me ausentar, em geral pelo período que corresponde
a dois de meus seminários, para ir para esse mundo1 de repouso
ritual, que passou a fazer parte de nossos hábitos e que chamamos
de esportes de inverno. Tenho o prazer de lhes anunciar que isso não ocorrerá este ano, tendo a ausência de neve me fornecido o pretexto para renunciar
a essa obrigação.
Quis o acaso que, por esse motivo, eu também lhes possa anunciar
um outro acontecimento que muito me alegra trazer ao conhecimento de um
público maior. O fato é que, ao declinar da entrega de certa soma de dinheiro
à agência de viagens, muito me agradeceram, pois tinham recebido uma
solicitação de viagem para oito membros da Sociedade Francesa de Psicanálise.
Devo dizer que meu prazer em trazer ao conhecimento de vocês esse
acontecimento é ainda maior por ser o que se chama uma verdadeira boa
ação, aquela sobre a qual o Evangelho diz: A mão esquerda deve ignorar o
que a mão direita faz.
*
1
Tradução da aula do Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”.
Modo de repouso ritual, na versão estenografada.
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Oito dos mais eminentes membros da comissão de ensino estão portanto em Londres para discutir meios de se premunir contra os efeitos do
meu. É uma preocupação louvável, e a dita Sociedade não recua diante de
nenhum sacrifício pelo bem de seus membros, a menos que talvez, por reciprocidade, a Sociedade inglesa tenha coberto as despesas dessa viagem,
como tínhamos o costume de cobrir as de seus membros quando vinham se
interessar de muito perto pelo funcionamento da nossa.
Considerei dever fazer esse anúncio para que os cantos de gratidão
encubram alguns sinaizinhos de nervosismo que apareceram, provavelmente
relacionados com essa expedição.
1
Falei-lhes, a última vez , do conceito de inconsciente, cuja verdadeira
função é justamente estar em relação profunda, inicial, inaugural com a função do conceito de Unbegriff – ou Begriff do Un/Um original, isto é, o corte.
Vinculei profundamente esse corte à função como tal do sujeito, do
sujeito na sua relação constituinte com o próprio significante.
Com razão parece novidade eu me referir ao sujeito quando se trata do
inconsciente. Contudo, pensei ter conseguido fazer vocês sentirem que tudo
isso se dá no mesmo lugar, o lugar do sujeito, que, pela experiência cartesiana
que reduz a um ponto o fundamento da certeza inaugural, adquiriu um valor
arquimediano, se é que aquele foi de fato o ponto de apoio que possibilitou
a direção totalmente diferente que a ciência tomou, sobretudo a partir de
Newton.
2
3
A versão estenografada da ELP refere que a palavra em alemão seria Willkür, que significa
arbitrariedade, capricho, despotismo. A citação de Freud que Lacan estaria citando também
é mais extensa nessa versão: “Continuem falando, senhores, desse problema de acaso
[Willkür]. Suponhamos que haja favorecimento quando rogamos ao sujeito que associe,
quando vamos buscar, recolher em sua fala esta ou aquela coisa que nos convém. Eu, na
minha experiência, não constato nisso nenhuma figura, nenhuma arbitrariedade, isso se
cruza de tal modo que é isso que escapa ao acaso.”
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SEÇÃO DEBATES
LACAN, J. O seminário - Livro XI...
No que expus anteriormente, não cessei de sublinhar a função de
certo modo pulsativa do inconsciente, a necessidade de desvanecimento
que parece lhe ser de certo modo inerente – tudo o que por um instante
surge na sua fenda parece estar destinado, por uma espécie de preempção,
a se fechar novamente, metáfora que o próprio Freud empregou, a escapulir,
a desaparecer. Formulei ao mesmo tempo a esperança de que seja em torno
disso que se renove a cristalização terminante, decisiva que já se produziu
na ciência física, e essa vez numa outra direção que chamaremos a ciência
conjetural do sujeito. Isso é menos paradoxal do que parece à primeira vista.
Quando Freud entendeu que era no campo do sonho que deveria encontrar a confirmação do que lhe ensinara sua experiência com a histérica e
começou a embrenhar-se nele com uma ousadia verdadeiramente sem precedentes, que foi que ele nos disse do inconsciente? Afirmou que estava
constituído essencialmente, não pelo que a consciência pode evocar,
explicitar, discernir, fazer sair do subliminar, mas pelo que lhe é, por essência, recusado. E que nome Freud dá a isso? O mesmo com que Descartes
designa o que chamei agora há pouco seu ponto de apoio: Gedanken, pensamentos.
Existem pensamentos nesse campo além da consciência, e é impossível representar esses pensamentos de outro modo que não seja na mesma
homologia de determinação em que o sujeito do eu penso está relativamente
à articulação do eu duvido.
Descartes apreende seu eu penso na enunciação do eu duvido, não
no seu enunciado que ainda carrega tudo desse saber a pôr em dúvida. Digo
que Freud dá um passo a mais (suficiente para dar legitimidade à nossa
associação) quando nos convida a integrar ao texto do sonho o que chamarei o colofão da dúvida – o colofão, num texto antigo, é aquela mãozinha
indicativa que se imprimia na margem, na época em que ainda existia a
tipografia. O colofão da dúvida faz parte do texto. Isso nos indica que Freud
situa sua certeza, sua Gewissheit, exclusivamente na constelação dos
significantes tais como resultam do relato, do comentário, da associação,
pouco importando a retratação. Tudo fornece significantes, e é com isso que
ele conta para estabelecer sua Gewissheit própria – pois sublinho que a
experiência só começa com seu modo de proceder. É por isso que a comparo ao proceder cartesiano.
Não estou dizendo que foi Freud quem introduziu o sujeito no mundo
– o sujeito enquanto distinto da função psíquica, a qual é um mito, uma
nebulosa confusa –, pois foi Descartes quem o fez. Mas digo que Freud se
dirige ao sujeito para lhe dizer isto, que é novo: Aqui, no campo do sonho,
você está em casa, Wo es war, soll Ich werden.
O que não quer dizer, como enuncia sei lá que porcaria de tradução: O
eu deve desalojar o isso [Le Moi doit déloger le Ça]. Vejam só como se
traduz Freud em francês, sendo que uma expressão como essa equivale em
termos de ressonância à dos pré-socráticos. Não se trata do eu nesse soll
Ich werden, trata-se do que o Ich é sob a pena de Freud, do começo ao fim
– desde que se saiba, é claro, reconhecer seu lugar –, o lugar completo,
total, da rede dos significantes, ou seja, o sujeito, lá onde, desde sempre,
era o sonho. Nesse lugar, os antigos reconheciam toda sorte de coisas, e
eventualmente mensagens dos deuses – e por que estariam enganados?
Faziam algo com as mensagens dos deuses. Ademais, talvez vocês o entrevejam na seqüência de minhas colocações, nada impede que continuem aí –
com a ressalva de que isso nos é indiferente. O que nos interessa é o tecido
que engloba essas mensagens, é a rede onde, eventualmente, algo é pego.
Pode ser que a voz dos deuses se faça ouvir, mas faz tempo que, relativamente a eles, nossas orelhas voltaram a seu estado original – todos sabem
que elas são feitas para não ouvir.
Mas o sujeito aí está para se encontrar, aí onde era – antecipo – o
real. Daqui a pouco justificarei o que disse, mas os que me ouvem faz algum
tempo sabem que costumo empregar a expressão: os deuses são do campo
do real.
Onde isso era, o Ich – o sujeito, não a psicologia – o sujeito deve advir.
E para saber que nos encontramos aí não há outro método senão detectar a
rede; mas, como é que se detecta uma rede? Porque vira e mexe cruzamos
seu caminho, e isso se entrecruza sempre do mesmo modo, e não há, nes-
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SEÇÃO DEBATES
se capítulo VII da Interpretação dos sonhos, outra confirmação para sua
Gewissheit senão esta: Falem de acaso3, senhores, se assim lhes aprouver,
eu, na minha experiência, não constato ali nada de arbitrário, pois isso se
entrecruza de tal modo que escapa ao acaso.
Vou evocar de novo, para aqueles que já ouviram minhas aulas sobre
esse tema, a carta 52 a Fliess, que comenta o esquema que mais tarde, na
Traumdeutung, será chamado de esquema ótico. Esse modelo representa
um certo número de camadas, permeáveis a algo análogo à luz, cuja refração mudaria de camada em camada. É esse o lugar onde se põe em jogo a
questão do sujeito do inconsciente. E Freud diz que não é um lugar espacial,
anatômico – senão, como concebê-lo tal como nos é apresentado: imenso
espalhamento, espectro especial4 situado entre percepção e consciência,
entre couro e carne, como se diz. Vocês sabem que mais tarde, quando se
tratar de estabelecer a segunda tópica, esses dois elementos formarão o
sistema percepção-consciência, Wahrnehmung-Bewusstsein, mas, então,
não se deverá esquecer o intervalo que os separa, no qual está o lugar do
Outro, onde se constitui o sujeito.
LACAN, J. O seminário - Livro XI...
[5] Muito bem, se nos ativermos à carta a Fliess, os Wahrnehmungszeichen, os traços de percepção, como isso funciona? Freud deduz de sua
experiência a necessidade de separar de maneira absoluta percepção e consciência – para que algo passe para a memória, primeiro tem de se apagar na
percepção e vice-versa. Indica-nos então um tempo em que esses
Wahrnehmungszeichen devem se constituir na simultaneidade. Que é isso,
5
A versão estenografada da ELP refere que a palavra em alemão seria Willkür, que significa
arbitrariedade, capricho, despotismo. A citação de Freud que Lacan estaria citando também
é mais extensa nessa versão: “Continuem falando, senhores, desse problema de acaso
[Willkür]. Suponhamos que haja favorecimento quando rogamos ao sujeito que associe,
quando vamos buscar, recolher em sua fala esta ou aquela coisa que nos convém. Eu, na
minha experiência, não constato nisso nenhuma figura, nenhuma arbitrariedade, isso se
cruza de tal modo que é isso que escapa ao acaso.”
4
Espacial na versão estenográfica da ELP e na tradução espanhola de Monge.
Como as diferenças entre o texto estenografado e o texto editado são significativas,
reproduzo a seguir a versão não estabelecida dos próximos dois parágrafos:
No entanto, atenção! No intervalo é o lugar, o lugar do Outro onde se constitui o sujeito. E no
primeiro esquema, aquele que ele nos dá na carta 52, ele nos diz que deve haver um tempo,
uma etapa, onde esses Wahrnehmungszeichen, aos quais se pode dar imediatamente, de
acordo com o que lhes ensinei, seu verdadeiro nome, qual seja, o nome de significantes... –
e é até mesmo especificado... pois dizem-nos que os “traços da percepção”, como isso
funciona? Pela necessidade deduzida de sua experiência que Freud nos dá de separar
absolutamente percepção e memória, ou seja, para que isso passe para a memória, precisa
primeiro ter sido apagado na percepção e vice-versa... então, ele nos designa um tempo
onde esses Wahrnehmungszeichen devem ser constituídos na simultaneidade. Que é isso
senão a sincronia significante? E, claro, ele diz tanto mais que não sabe que o diz, cinqüenta
anos antes dos lingüistas! Contudo, quando volta a isso na Traumdeutung, veremos que vai
até o ponto de designar ali, de maneira menos notável, outras camadas: aí eles se constituirão “por analogia”. Reencontramos, parece, os contrastes, as mesmas funções de similitude,
tão essenciais na constituição da metáfora introduzida por uma diacronia.
Em suma, não insistirei pois tenho de ir em frente hoje, encontramos nas articulações de
Freud a indicação sem ambigüidade daquilo de que se trata: não só de uma rede de significantes
constituída por associação de certo modo por acaso e por contigüidade, mas que só puderam se constituir desse modo em razão de uma estrutura muito definida, de uma possibilidade igualmente muito definida do elemento temporal, de uma diacronia constituinte e orientada.
O único ponto que ainda queria acentuar, fazer vocês notarem (o que ele indica com um
caráter de que há verdadeiramente, para nós, milagre!) no nível da última camada do inconsciente, ali onde funciona o diafragma, ou seja, onde são estabelecem essas pré-relações
entre processo primário e o que dele será apreendido, recolhido, utilizado no nível do préconsciente, “isso deve ter”, diz ele, “relação com a causalidade.”
Também para nós também esses entrecruzamentos nos garantem reencontrar, sem que
possamos saber se é daí que vem nosso caminho, nossos fios de Ariadne (porque, claro,
nós o lemos antes de fazer a teoria que damos do significante mas o lemos sem sempre
conseguir, no momento, compreendê-lo) e se foi pelas necessidades de nossa experiência
que pusemos, no âmago da estrutura do inconsciente, essa hiância causal, que encontramos a indicação enigmática, inexplicada no texto de Freud, essa é também para nós a
indicação de que progredimos no caminho de sua certeza.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
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SEÇÃO DEBATES
senão a sincronia significante? Claro que o diz Freud sem saber que o diz
cinqüenta anos antes dos lingüistas. Mas nós podemos de imediato dar a
esses Wahrnehmungszeichen seu verdadeiro nome de significantes. E nossa leitura se consolida ainda mais porque quando Freud volta a esse ponto
na Traumdeutung, designa outras camadas mais, onde os traços se constituem agora por analogia. Encontramos aí as funções de contraste e de
similitude tão essenciais na constituição da metáfora, introduzida por uma
diacronia.
Não insistirei nisso, pois tenho de avançar hoje. Digamos apenas que
encontramos nas articulações de Freud a indicação, sem ambigüidade, de
que, nessa sincronia, não se trata apenas de uma rede formada de associações ao acaso e por contigüidade. Os significantes só puderam se constituir
na simultaneidade em razão de uma estrutura muito definida da diacronia
constituinte. A diacronia é orientada pela estrutura. Freud indica claramente
que para nós, no nível da última camada do inconsciente, lá onde funciona o
diafragma, lá onde se estabelecem as pré-relações entre o processo primário e o que dele será utilizado no nível do pré-consciente, não pode haver
milagre. Isso deve ter relação com a causalidade, diz ele.
Todas essas indicações se entrecruzam, e, também para nós esses
entrecruzamentos garantem que encontramos Freud – sem que possamos
saber se é daí que vêm nossos fios de Ariadne, porque, claro, nós o lemos
antes de formular nossa teoria do significante, mas sem poder sempre
compreendê-lo no momento. Embora sem dúvida tenha sido pelas necessidades próprias de nossa experiência que pusemos no âmago da estrutura
do inconsciente a hiância causal, ter encontrado sua indicação enigmática,
inexplicada, no texto de Freud é para nós a marca de que progredimos no
caminho de sua certeza. Pois o sujeito da certeza está dividido aqui – a
certeza, é Freud quem a tem.
LACAN, J. O seminário - Livro XI...
2
É nessa direção que vai o que está no âmago do problema que levanto. A psicanálise já é uma ciência a essa altura? O que distingue a ciência
moderna da ciência na sua aurora, discutida no Teeteto, é que, quando a
ciência surge, há sempre um mestre presente. Freud é sem dúvida nenhuma
um mestre. Contudo, embora nem tudo que se escreva de literatura analítica
seja pura e simples piada de mau gosto, ele [Freud] funciona sempre como
tal – o que coloca a questão de saber se esse pedículo poderá um dia ser
reduzido.
Em face de sua certeza, há o sujeito, de quem lhes disse há pouco
que está esperando ali desde Descartes. Ouso enunciar como uma verdade
que o campo freudiano só era possível um certo tempo após a emergência
do sujeito cartesiano, pelo fato de que a ciência moderna só começa depois
de Descartes ter dado seu passo inaugural.
É desse passo que depende poder chamar o sujeito de volta para
casa no inconsciente – pois, afinal, importa saber quem se chama. Não é a
alma de sempre, nem mortal nem imortal, nem sombra nem duplo, nem
fantasma, nem mesmo psicosfera, suposta couraça, lugar das defesas e
outros esquematismos. É o sujeito que é chamado, portanto só ele pode ser
escolhido. Talvez, como na parábola, muitos serão chamados e poucos serão escolhidos, mas certamente não haverá outros além dos que são chamados.
Para compreender os conceitos freudianos, deve-se partir do fundamento de que é o sujeito que é chamado – o sujeito de origem cartesiana.
Esse fundamento dá sua verdadeira função ao que se chama, em análise, a
rememoração. A rememoração não é a reminiscência platônica, não é o
retorno de uma forma, de uma impressão, de um eidos de beleza e de bem
que nos vem do além, de uma verdade suprema. É algo que nos vem das
necessidades de estrutura, de algo humilde, nascido no plano dos mais
baixos encontros e de toda a turba falante que nos precede, da estrutura do
significante, das línguas faladas de modo balbuciante, titubeante, mas que
não podem escapar a exigências cujos ecos, modelo, estilo, podem curiosamente ser encontrados em nossos dias na matemática.
Como vocês viram com a noção de entrecruzamento, a função do
retorno, Wiederkehr, é essencial. Não é o Wiederkehr apenas no sentido do
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 152, novembro 2006.
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SEÇÃO DEBATES
LACAN, J. O seminário - Livro XI...
que foi racalcado: a própria constituição do campo do inconsciente funda-se
no Wiederkehr. É aí que Freud funda sua certeza. Mas é evidente que não é
daí que ela lhe vem. Vem do fato de que ele, Freud, reconhece a lei de seu
próprio desejo. Não teria podido avançar apostando nessa certeza se não
tivesse sido guiado, como os textos demonstram, por sua auto-análise.
E que é sua auto-análise, senão a detecção genial da lei do desejo
pendente do Nome-do-pai? Freud avança, sustentado por uma certa relação
com seu desejo e pelo que é seu ato, a saber, a constituição da psicanálise.
Não me estenderei mais sobre isso, embora continue hesitando em
abandonar esse terreno. Se insistisse, mostraria a vocês que a noção em
Freud da alucinação como processo de investimento regressivo sobre a percepção implica necessariamente que nela o sujeito tem de ser completamente subvertido – o que na verdade ele só é em momentos extremamente
fugazes.
Isso sem dúvida deixa totalmente em aberto a questão da alucinação
propriamente dita, na qual o sujeito não acredita e na qual não se reconhece
como implicado. Isso sem dúvida não passa de uma maneira mítica de fixar
coisas, pois não é certo que se possa falar do delírio da psicose alucinatória
de origem confusional como faz Freud apressadamente demais, vendo nela
a manifestação da regressão perceptiva do desejo estancado. Mas, o fato de
haver um modo de Freud poder conceber como possível a subversão do
sujeito, mostra até que ponto ele identifica o sujeito ao que é originalmente
subvertido pelo sistema do significante.
Deixemos, pois, esse tempo do inconsciente e avancemos para a
questão do que é a repetição. Isso ocupará mais de um de nossos encontros.
Essa função, em todo caso, não tem nada a ver com o caráter aberto
ou fechado dos circuitos, que chamei agora há pouco Wiederkehr.
Não digo que Freud a introduz, mas ele a articula pela primeira vez no
artigo de 1914, Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten6, que é justamente
o texto no qual se pautou a maior estupidez na análise, para ir desembocar
no capítulo V de Jenseits des Lustprinzips 7.
Tentem ler esse capítulo V linha por linha numa outra língua que não
seja o francês. Aqueles que não sabem alemão, tratem de lê-lo na tradução
inglesa. Se lerem esta última, seja dito de passagem, terão com que se
divertir. Verão ali, por exemplo, que a tradução de Trieb por instinct, e de
triebhaft por instinctual cria tamanhos inconvenientes para o tradutor que,
embora seja mantida de maneira uniforme – o que situa toda essa edição no
plano do absoluto contrasenso, já que não há nada de comum entre o Trieb
e o instinct –, a inconseqüência nesse texto é tamanha que nem se consegue levar a frase até o fim traduzindo triebhaft por instinctual. Faz-se necessária uma nota escrita – At the beginning of the next paragraph, the word
Trieb... is much more revealing of the urgency than the word instinctual8. O
Trieb açula vocês bem mais, meus amigos; essa é, digamos, toda a diferença com o instinto. Assim se transmite o ensinamento psicanalítico.
Vejamos pois como o Wiederholen é introduzido. Wiederholen tem a
ver com Erinnerung, a rememoração. O sujeito em casa, a rememorialização
da biografia, tudo isso só funciona até um certo limite que se chama o real.
Caso quisesse forjar diante de vocês uma formulação espinosista sobre isso,
diria – cogitatio adaequata semper vitat eamdem rem. Um pensamento adequado enquanto pensamento (no nível em que estamos) evita sempre – fosse para depois se encontrar em tudo – a mesma coisa. O real é aqui o que
3
O que tenho para lhes dizer agora é tão novo – embora, evidentemente, fundado no que articulei sobre o significante – que considerei dever lhes
dizer desde já, sem guardar nenhuma carta na manga, como entendo a
função da repetição.
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Recordar, repetir, elaborar.
Além do princípio do prazer.
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No começo do próximo parágrafo, a palavra Trieb... expressa muito mais a urgência que a
palavra instinctual.
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SEÇÃO DEBATES
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retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito que cogita, o
sujeito como res cogitans, não o encontra.
Toda a história da descoberta por parte de Freud da repetição como
função só se define marcando assim a relação entre o pensamento e o real.
No começo, tudo era lindo, porque se estava lidando com histéricas. Como
era convincente o processo da rememoração nas primeiras histéricas! De
início, contudo, não se podia saber o que está em jogo nessa rememoração
– não se sabia que o desejo da histérica era o desejo do pai, a ser sustentado em seu estatuto. Não é de espantar que, em benefício daquele que toma
o lugar do pai, as coisas sejam rememoradas até a última gota.
Aproveito a oportunidade para lhes indicar que nos textos de Freud
repetição não é reprodução. Nenhuma oscilação sobre esse ponto:
Wiederholen não é Reproduzieren.
Reproduzir era o que se acreditava poder fazer no tempo das grandes
esperanças da catarse. Conseguia-se uma reprodução da cena primitiva assim
como hoje se conseguem quadros de mestres da pintura por nove francos e
cinqüenta centavos. No entanto, o que Freud nos indica quando dá os próximos passos, e não leva muito tempo para dá-los, é que nada pode ser apreendido, destruído ou queimado, senão de maneira, como se diz, simbólica,
in effigie, in absentia.
A repetição aparece primeiro de uma forma que não é clara, que não é
evidente, como uma reprodução, ou uma presentificação em ato. Eis porque
pus O ato com um grande ponto de interrogação na parte inferior do quadro,
a fim de indicar que esse ato permanecerá, enquanto estivermos falando das
relações da repetição com o real, no nosso horizonte.
É bastante curioso que nem Freud nem nenhum de seus epígonos
jamais tenha tentado rememorar o que, no entanto, está ao alcance de todo
o mundo no tocante ao ato – acrescentemos humano, se quiserem, pois de
nosso conhecimento não há ato senão de homem. Por que um ato não é um
comportamento? Concentremo-nos, por exemplo, nesse ato sem qualquer
ambigüidade, o ato de abrir o ventre em certas condições – não digam harakiri,
o nome é seppuku. Por que eles fazem isso? Porque acreditam que isso
aborrece os outros, porque, na estrutura, é um ato que se faz em honra de
algo. Aguardemos. Não nos apressemos antes de saber, e reparemos que
um ato, um verdadeiro ato, tem sempre uma parte de estrutura, por dizer
respeito a um real que não é evidente.
Wiederholen. Nada foi mais enigmático – especialmente a respeito
dessa bipartição, tão estruturante de toda a psicologia freudiana, do princípio
do prazer e do princípio de realidade –, nada foi mais enigmático que esse
Wiederholen, que se aproxima muito, segundo os etimólogos mais comedidos, do sirgar – como se faz nos caminhos de sirga – se aproxima muito do
sirgar do sujeito, que vai sempre puxando seu trem9 por um certo caminho do
qual não pode sair.
E porque a repetição apareceu em primeiro lugar no âmbito da chamada neurose traumática?
Freud, ao contrário de todos os neurofisiologistas, patologistas e outros, frisou bem que, embora para o sujeito seja um problema reproduzir em
sonho a lembrança, por exemplo, do intenso bombardeio de que decorre sua
neurose, em estado de vigília isso o deixa indiferente. Qual é, então, a função da repetição traumática se nada parece justificá-la do ponto de vista do
princípio do prazer, muito pelo contrário? Dominar o acontecimento doloroso,
dirão – mas quem domina, onde está aqui o amo a dominar? Por que sair
falando tão rápido se, precisamente, não sabemos onde situar a instância
que se dedicaria a essa operação de domínio?
Freud, ao final da série de escritos, dos quais mencionei os dois essenciais, indica que nesse caso só podemos conceber o que acontece nos
sonhos da neurose traumática no âmbito do funcionamento mais primitivo –
aquele em que se trata de obter a ligação da energia. Portanto, não presumamos de antemão que se trata aí de uma disparidade qualquer ou de uma
distribuição de funções como aquela que podemos encontrar num nível infinitamente mais elaborado de abordagem do real. Ao contrário, vemos aqui um
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Devo essa tradução do francês truc a M. D. Magno.
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SEÇÃO DEBATES
RESENHA
ponto de que o sujeito só pode se aproximar dividindo-se em um certo número de instâncias. Poder-se-ia dizer o que se diz do reino dividido, isto é, de
que aí perece toda concepção de unidade do psiquismo, do pretenso psiquismo
totalizando, sintetizando, ascendendo para a consciência.
Enfim, nesses primeiros tempos da experiência em que a rememoração
pouco a pouco substitui a si mesma e se aproxima cada vez mais de uma
espécie de foco, de centro onde todo acontecimento pareceria dever se revelar, precisamente nesse momento vemos manifestar-se o que também chamo – entre aspas, pois também é preciso mudar o sentido das três palavras
do que vou dizer, é preciso mudá-lo completamente para lhe dar seu alcance
– “a resistência do sujeito”, que se torna nesse momento repetição em ato.
O que articularei a próxima vez lhes mostrará como podemos nos
apropriar para isso dos admiráveis quarto e quinto capítulos da Física de
Aristóteles. Este revira e manipula dois termos que são absolutamente resistentes à sua teoria, apesar de ser a mais elaborada já feita sobre a função
da causa – dois termos impropriamente traduzidos por acaso e fortuna. Trataremos, pois, de revisar a relação que Aristóteles estabelece entre o
autômaton – e, no ponto da matemática moderna em que nos encontramos,
sabemos que é a rede dos significantes – e o que ele designa como a tiquê
– que para nós é o encontro com o real.
Faltam as perguntas e respostas.
5 de fevereiro de 1964.
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AS AVENTURAS DE PINÓQUIO
Collodi, Carlo. As aventuras de Pinóquio. São Paulo, Cia.
das Letrinhas, 2002. 191p.
Q
ual não foi a minha surpresa depois de
tendo, há muitos anos, ouvido e assistido a história de Pinóquio no cinema,
encontrar o texto de suas aventuras. Foi realmente uma grata surpresa, que permitiu, agora
de uma posição mais distanciada da infância,
perceber nuances antes impossíveis de serem
navegadas.
A história nos faz mergulhar no universo
da construção de um sujeito e das desventuras de constituir uma família e
tornar-se menino e não mais marionete. Desde sua origem - um pedaço de
madeira de cerejeira encantada – Pinóquio nos revela poeticamente as suas
gradativas mudanças de posição. Cada pequeno capítulo é rico em diálogos
em que podemos pensar que o personagem se dirige às crianças, mas aos
pais também. E nos encontramos navegando por questões muito próprias ao
nosso cotidiano relacionado à parentalidade. Cada situação traz um desafio
psíquico e é a interação com outros personagens que vai de alguma forma,
burilando o longo trabalho de elaboração – construção.
Talvez pudéssemos pensar nas aventuras de Pinóquio como muitas
análises de nossos pequenos pacientes, que vão compartilhando com seus
analistas suas histórias, tropeços e crescimento. O universo da escola e do
grupo de amigos também é contemplado, exigindo de Pinóquio superar desavenças e conquistar o seu espaço. Quantas vezes trabalhamos com crianças nessa direção? Quantas vezes não ocupamos o lugar da Fada Azul
ou do querido carpinteiro Gepeto? Os dois personagens vão “esculpindo” aos
poucos a Marionete, supondo e acreditando enxergar ali um menino em potencial. No entanto, tornar-se menino exige coragem, exige enfrentar o medo
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RESENHA
AGENDA
e, sobretudo, exige uma medida de tempo, tempo psíquico que se desdobra
na singularidade de cada pequeno sujeito e revela as aventuras mais pitorescas! Como nos diz a Fada Azul: “Os meninos são rápidos para prometer,
mas na maioria das vezes demoram para cumprir”. Essa demora para cumprir faz parte da navegação em um mundo imaginário que, nas aventuras de
Pinóquio, é traduzido pelo país dos brinquedos, onde não tem escola, não se
precisa aprender nada, mas onde ele e os outros meninos vão se transformando aos poucos em burrinho e não em criança. Quando Pinóquio se dá
conta de suas novas orelhas e de seu rabo, começa a trabalhar para reverter
a situação. E passa pela última transformação na qual se implica e se responsabiliza por seus desejos, sua fala e suas ações, pois como nos diz
Saramago “Não é só de direitos que precisamos, mas também de deveres!”
(Saramago e a Universidade, 2002).
No desfecho da história, Pinóquio se livra da transformação em burrinho,
reencontra seu pai (Gepeto) dentro do tubarão e, depois de passar por mais
esta proeza-desafio, torna-se finalmente um menino.
Deliciem-se e boa leitura!
NOVEMBRO – 2006
Dia
09, 16,
23 e 30
09
10 e 24
13 e 27
10, 17
e 24
30
Data
23
Hora
19h30min
Local
Sede da APPOA
21h
8h30min
20h30min
15h15min
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
21h
Sede da APPOA
Hora
21h
Local
Sede da APPOA
Atividade
Reunião da Comissão de Eventos
Reunião da Mesa Diretiva
Reunião da Comissão de Aperiódicos
Reunião da Comissão do Correio
Reunião da Comissão da Revista
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Membros e Participantes da APPOA
Evento
Conferência com Alfredo Jerusalinsky
Tatiana Guimarães Jacques
PRÓXIMO NÚMERO
VIOLÊNCIA
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in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
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RESENHA
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N° 152 – ANO XIII
NOVEMBRO – 2006
PSICANÁLISE E LITERATURA
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