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26/10/2012 ­ 00:00
Graciliano era contra "foot ball"
Por Noemi Jaffe
modismos dos anos 30
Graciliano: em "Garranchos", vê­se que escritor deplorava alguns
Um conto de Karel Capek fala de uma família da idade da pedra lascada, cuja filha sai todas as noites para um
lugar misterioso. Algum tempo depois, o pai, furioso, descobre que ela está frequentando uma caverna onde já se
fabrica pedra polida, ao que ele reage, protestando e perguntando aonde essa juventude vai parar. Um amigo
meu, professor há dezenas de anos e politicamente progressista, chama os professores, de forma geral, de
conservadores. Afinal, o que eles fazem, em nome do presente, é tentar conservar minimamente o passado.
Sem tanto apego ao passado, penso que uma vivência quase ideal do tempo presente se constitua a partir de uma
tensão permanente entre uma nostalgia algo fantasiosa do passado e uma projeção igualmente sonhadora do
futuro. De qualquer maneira, parece que as gerações se sucedem não por e nessa tensão, mas, infelizmente,
através de polarizações para um e outro lado: os nostálgicos extremados e os futurólogos sem noção. Uns querem
extinguir o computador e o capitalismo e outros anseiam pelo pós­humano ou por uma criatura teleguiada por
chips plurifuncionais.
Reclamamos do trânsito, da má qualidade das comidas industrializadas, do serviço de telefonia celular, da
violência, das crianças que brincam de videogame e não saem mais às ruas. Retroprojetamos um passado mais
tranquilo. Mas, da mesma forma, nossos pais e avós também lamentavam os progressos de sua época e se
lembravam de um passado melhor.
Karel Capek estava certo. Essa idealização do tempo perdido deve remontar à idade das cavernas. Ou na Grécia
Antiga já não havia a nostalgia da Idade do Ouro? Será que, na Idade Média, um copista da corte de algum rei
Leopoldo perdido, na Germânia, não se lamentava pelo fim do uso das penas de avestruz? Ou os frequentadores
de apedrejamentos, será que não reclamavam de uma época em que as pedras eram menos lisinhas?
Todos se queixam, sonhadores de um passado que, ele mesmo, era pior do que outro que veio antes dele. Até
Graciliano Ramos, o prefeito comunista mais eficiente da história do país, que soube como ninguém levar o
progresso a Palmeira dos Índios, em Alagoas, e em cuja escrita não há um pingo de sentimentalismo, era,
pasmem, um nostálgico. No livro "Garranchos", de achados inéditos do escritor, o futuro autor de "Memórias do
Cárcere" reclama, na década de 1930, do uso de palavras como foot ball, jazz, charleston e box e pergunta se não
seria melhor se todos continuassem a cultivar o terço, o reisado, o pastoril e a quadrilha.
Também imagina que, no passado, as pessoas teriam sido mais éticas do que no então presente ­ 1921 ­, além de
reivindicar que a água não fosse transportada "entre as paredes redondas de canos americanos caros". Pedia que
se deixassem as fontes em paz, "se é que não queremos morrer de sede". Em compensação, é o próprio Graciliano
que antevê, depois de um elogio às mulheres, que um dia elas ainda governarão o país. Sua escrita reduzida,
lúcida, seca, é a mais duramente realista de nossa literatura. E não há dúvida de que, nessa aridez ­
desadjetivada, direta ­ o apelo não é o de um retorno ao passado, mas o de transformar o presente, como ele o fez,
em seus livros e em sua prática política.
O passado era melhor? O futuro também será? Provavelmente. Ou não. Mas não importa tanto. Os tempos verbais
do agora são o particípio presente ou o futuro do pretérito ­ um passado em processo contínuo ou um futuro já
acontecendo. Perdoemos a Graciliano sua fraqueza nostálgica e que ele me perdoe minha ojeriza à palavra
delivery, saudosa que sou de uma simples entrega.
"Garranchos ­ Achados Inéditos de Graciliano Ramos".
Thiago Mio Salla (org.). Record, 378 págs., R$ 49,90
Noemi Jaffe é doutora em literatura brasileira pela USP e autora de "Quando Nada Está
Acontecendo" (Martins Editora)
E­mail: [email protected]
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