A novação tácita em contratos de propriedade industrial Marcelo Mazzola Introdução Na área da propriedade industrial, onde os contratos possuem prazos de vigência normalmente longos e envolvem bens intangíveis que muitas vezes são os ativos mais valiosos das empresas, a novação tácita não é um tema muito explorado, mas de fundamental importância nas relações negociais. Isso porque, após as modificações trazidas pelo Código Civil de 2002 em relação ao instituto em questão, determinadas cláusulas contratuais - antes dogmas absolutos – podem vir a ser relativizadas pelo Poder Judiciário em ações judiciais, diante das nuances e peculiaridades do caso concreto. Como será demonstrado adiante, uma vez configurada a novação tácita, clássicas disposições contratuais, como, por exemplo, aquelas que estabelecem que “mera tolerância não configurará novação” e “alterações contratuais devem ser expressas”, podem ser flexibilizadas e interpretadas com temperamento pelo Poder Judiciário, convalidando-se alterações contratuais consolidadas no tempo, ainda que não formalizadas por escrito. Breves considerações sobre o instituto da novação Como se sabe, as hipóteses de novação estão previstas nos três incisos do artigo 360 do Código Civil. Neste trabalho, focaremos apenas na hipótese do inciso I, pois é o dispositivo legal que tem relação direta com o tema em discussão. Em linhas gerais, a novação é a criação de uma obrigação nova com o objetivo de extinguir a anterior, ou seja, é a substituição de uma dívida por outra, extinguindo-se a primeira: Art. 360. Dá-se a novação: I - quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior; Para haver novação, devem estar presentes três requisitos essenciais, quais sejam: a existência de uma obrigação anterior válida; a criação de uma nova obrigação, com a extinção da anterior; e o animus novandi, isto é, a vontade de novar das partes. Na vigência do Código Civil de 1916, o instituto da novação era disciplinado pelos artigos 999 e seguintes, enquanto no Código Civil de 2002 a matéria é tratada nos artigos 360 e seguintes. Quanto às hipóteses de novação, o Código Civil de 2002 não trouxe qualquer alteração, se limitando a reproduzir integralmente o texto do artigo 999 do CC de 1916. A novidade _ e este é o ponto que interessa neste trabalho _ versa sobre a possibilidade de novação tácita trazida pelo Código Civil de 2002. No Código Civil anterior, o artigo 1.000 não fazia qualquer menção ou alusão à possibilidade de novação tácita, dispondo apenas que “Não havendo ânimo de novar, a segunda obrigação confirma simplesmente a primeira”. Por conta disso, a jurisprudência relutava em admitir a ocorrência de novação tácita quando não houvesse expressa manifestação de vontade: "Procedimento ordinário. Ação de cobrança. Saldo devedor em conta-corrente. Apuração adequada. Encargos contratuais. Inexistência de excesso. Novação não demonstrada. (...) Por outro lado, não se presta a demonstrar a novação de divida o documento que não contem a assinatura das partes, porquanto inexistente a expressa manifestação do "animus novandi", um dos requisitos fundamentais da modificação ou substituição de uma obrigação por outra." (MSL) (TJ/RJ, Apelação Cível nº 1996.001.07390, Des. Antonio Eduardo Duarte, julgamento: 04/03/1997) A inovação trazida pelo Código Civil de 2002 e seu reconhecimento pela doutrina e jurisprudência No entanto, o artigo 361 do Código Civil de 2002 inovou e passou a regular expressamente o instituto da novação tácita: Art. 361. Não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito mas inequívoco, a segunda obrigação confirma simplesmente a primeira. Portanto, a partir da vigência do novo Código Civil, a novação tácita passou a ser uma figura jurídica relevante e não pode ser ignorada nas relações contratuais. Porém, para que se possa falar em novação tácita, além dos requisitos indicados acima, deve estar caracterizado o animus novandi tácito, isto é, a vontade inequívoca de novar das partes materializada por condutas, atos e comportamentos. Por se tratar de novação tácita, é evidente que as novas bases e os ajustes contratuais - capazes de substituir os originalmente firmados -, não dependem de formalização expressa ou materialização em documento escrito, bastando que as circunstâncias do caso concreto evidenciem a inequívoca intenção de novar das partes. Sobre o tema, são preciosos os comentários dos doutrinadores THEREZA ALVIM e ARRUDA ALVIM: “O direito moderno não requer contrato formal, nem uma declaração expressa e com fórmulas sacramentais de novar a obrigação, para dar vida à novação. (...) A intenção de novar deve ser expressa ou resultar inequivocamente dos termos do ato, ou das circunstâncias. Assim, encontramos no Código francês a necessidade de resultar inequívoco do ato, ou nos Códigos espanhol e argentino, da circunstância de ser incompatível com a antiga a nova obrigação. Propugna-se que o critério mais seguro para o reconhecimento da intenção tácita de novar é a incompatibilidade entre o procedimento das partes, por meio de palavras ou ações, e a permanência da primitiva obrigação. Radica essa condição volitiva, não havendo consignação expressa, na incompatibilidade entre a antiga obrigação e a nova, instada a insustentável coexistência de ambas.” (Comentários ao Código Civil Brasileiro, vol. IV – Rio de Janeiro, RJ: Forense - 2006 – 1ª Edição, págs. 271 e seguintes) Nesse contexto, o exame das nuances e peculiaridades do caso concreto constitui elemento fundamental na análise da real vontade dos contratantes, pois podem revelar a intenção de novar das partes, ainda que de forma tácita. Com a precisão jurídica que lhes é peculiar, assinalam os doutrinadores GUSTAVO TEPEDINO, HELOISA HELENA BARBOZA e MARIA CELINA BODIN DE MORAES: “O animus novandi pode ser expresso ou tácito, desde que inequívoco, segundo a nova dicção do dispositivo em exame. Assim já se inclinava a jurisprudência no regime anterior. Com efeito, a vontade de novar pode ser manifestada de modo direto – isto é, dirigida ao fim pretendido, à celebração da novação –, e assim se diz que houve ânimo expresso, ou defluir da incompatibilidade entre a obrigação nova e a antiga, hipótese em que tacitamente se conclui pela ocorrência de animus novandi. Quando o ânimo de novar não está expresso, o juiz pode, examinando as circunstâncias, do caso concreto, admitir a existência da novação se, dos elementos probatórios constantes dos autos, ‘ficar ressaltada a incompatibilidade entre a antiga e a nova obrigação’ (TJPR, 2ªC.C., Ap. Cív. 113693-2, Rel. Des. Accacio Cambi, julg. 20.02.2002). Washington de Barros Monteiro, discorrendo sobre a matéria, explica que a doutrina não ministra critério seguro e certo para identificação do animus novandi. Deve este ser investigado em cada caso, tendo em vista suas peculiaridades. Urge, porém, que o ânimo de novar resulte claro, induvidoso, ainda que para tanto não existam palavras sacramentais ou fórmulas predeterminadas (Curso, pp. 296-297).” (Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República – Rio de Janeiro, RJ: Renovar – 2004 – 1ª Edição, pág. 660) Sem dúvida que, nesse movediço terreno das incertezas, o conjunto fático probatório tem especial importância, sobretudo em casos onde se discute a existência de novação tácita no âmbito de determinados negócios jurídicos. Por essa razão, a conduta e o comportamento das partes, os atos comissivos ou omissos dos envolvidos e o lapso temporal transcorrido sem qualquer impugnação dos contratantes podem dar novos contornos ao negócio jurídico, independentemente de formalização expressa ou materialização em documento escrito. Veja-se, a propósito, os comentários do doutrinador CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA e dos Professores NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, respectivamente: “Na ausência, porém, de menção específica, deve ser apurado se o conjunto de circunstâncias autoriza afirmar se se configura implicitamente, porém de maneira inequívoca. Quer isto dizer que nunca se presume a novação, pois o contrário dissonaria da sua natureza extintiva do vínculo, devendo resultar sempre da vontade das partes. O que se faculta é, tão-somente, na apuração desta vontade, aceitar-se, a par da declaração explícita, a claramente dedutível dos termos da nova. Na prática há dificuldade, às vezes, no verificar se ocorre efetivamente novação, ou se se verifica a criação de outra obrigação sem o propósito de novar. Reconhecendo-o, os doutores apontam um critério altamente prestimoso, no esclarecimento das dúvidas. É o da incompatibilidade. Há novação, quando a vontade das partes milita no sentido de que a criação da segunda resultou na extinção da primeira. Ao contrário, não há se elas podem coexistir, como igualmente, não nova o terceiro que intervém e assume o débito, reforça o vínculo ou pactua uma garantia real, sem liberação do antigo devedor. (...) Diz-se, então, que a novação pode ser objetiva ou subjetiva e a isto se reduzem os três casos mencionados na lei (Código Civil de 2002, art. 360). É objetiva quando entre as mesmas partes a obligatio sofre uma alteração quantitativa, qualitativa ou causal, modificando-se a prestação, sem substituição dos sujeitos (Código Civil de 2002, art. 360, inciso I).” (Instituições de Direito Civil, vol II - Rio de Janeiro, RJ: Forense – 2003 – 20ª Edição, págs. 248/249) “O ânimo de novar verifica-se na declaração das partes ou resulta de modo inequívoco de obrigações incompatíveis (2º TACivSP, 10ª Câm, Ap 604309-0/4, rel. Juiz Soares Levada, v.u., j. 31.1.2001).” (Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados – São Paulo, SP: Editora Revista dos Tribunais – 2002 – 1ª Edição, pág. 161) Atualmente, a jurisprudência reconhece de forma pacífica a possibilidade de novação tácita: “O instituto da novação exige o elemento subjetivo, denominado pela doutrina de animus novandi. Assim, para se caracterizar a novação é necessário que esteja presente a intenção das partes em extinguir uma dívida e substituí-la por outra. A existência deste ânimo de novar, nos termos do disposto no artigo 361 do Código Civil, é indispensável, seja ele expresso ou tácito. No caso em análise o que se observa é o animus novandi inequívoco, ainda que não tenha restado expressamente consignado. (...) Da simples leitura do trecho acima transcrito verificase que a decisão embargada entendeu ser perfeitamente possível o reconhecimento da novação no presente caso, vez que a mesma se mostrou inequívoca frente aos documentos acostados (fls. 29/30), e frente ao que dispõe o Código Civil que prevê que a mesma poderá ocorrer tacitamente. (...)” (TJ/PR, EMBDECCV 533078901 PR 0533078-9/01, Relator Edison de Oliveira Macedo Filho. julgamento:17/03/2009) “Ação de cobrança julgada improcedente - Julgamento extra petita não caracterizado – Ajuste verbal do valor do aluguel, diferente daquele previsto no contrato escrito firmado pelas partes - Pretensão de recebimento do valor contratado por escrito - Pagamentos dos alugueis pelo valor ajustado verbalmente que perduraram por onze anos sem oposição, judicial ou extrajudicial, do locador Ausência de prova de que o ajuste verbal teve vigência por prazo determinado - Inferência da existência de novação tácita -Honorários advocatícios corretamente dimensionados Recurso não provido. (...) É verdade que existindo contrato escrito, exigível dos contratantes que todas as alterações do ajuste se deem da mesma forma. Não menos verdade é, entretanto, que a não observação disso pelos contratantes, aliada à execução do contrato de modo diferente do ajustado por escrito por largo período de tempo, sem ressalvas ou reclamações, autorizam, induvidosamente, a adoção da solução de primeiro grau, vale dizer, por força do animus novandi, operou-se a novação tácita do contrato, quanto ao valor do aluguel, não havendo que se cogitar de ser devido algum valor, a título de ressarcimento do desconto concedido.” (TJ/SP, APL 990093514702 julgamento: 28/06/2010) SP, Relator Sá Duarte, Como se pode notar, o fator tempo (período transcorrido sem qualquer impugnação ou reclamação de um dos contratantes) também é fundamental na análise da ocorrência de novação tácita. Isso porque, diante de tanta subjetividade e dificuldade de se aferir a real intenção das partes, o lapso temporal é um importante elemento objetivo para sopesar os interesses em jogo e avaliar o verdadeiro animus das partes. O silêncio capaz de corroborar a novação tácita Por outro lado, não se pode olvidar que o silêncio de um dos contratantes pode significar anuência, nos termos do artigo 111 do Código Civil: Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa. Sobre o tema, vale conferir a lição do Desembargador NESTOR DUARTE, membro do e. TJ/SP: “(...) Para que o silêncio opere juridicamente, é preciso, consoante as conclusões de Serpa Lopes: a) a manifestação da vontade mediante um comportamento negativo; b) que as circunstâncias sejam concludentes; c) que a parte tenha o dever ou obrigação, bem como a possibilidade de falar; d) a convicção da outra parte de haver no comportamento negativo uma direção inequívoca e incompatível com a expressão de vontade oposta. Há, portanto, exigência de boa-fé bilateral. Dentre esses requisitos sobrelevam as circunstâncias, pois, conforme Manuel A. Domingues de Andrade, ‘o silêncio não pode interessar quando isolado de qualquer circunstância anterior ou concomitante – máxime um comportamento da contraparte ou de outrem’ (Teoria geral da relação jurídica, 4. reimpr. Coimbra, Almedina, 1974, v. II, p. 138). O silêncio opera como produtor de efeitos, por exemplo, nos casos de contrato renovados ou prorrogados, destacando-se o de locação de imóveis, em que é usual a inclusão de cláusula pela qual entende-se prorrogado o prazo caso não haja manifestação em sentido contrário de uma das partes, sem embargo de, na hipótese, ocorrem prorrogações legais (arts. 46, § 1º, 50 e 56, parágrafo único, da Lei n. 8.245/91), ante a falta de oposição do locador.” (Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência – Coordenador Ministro Cezar Peluso - Barueri, SP: ed. Manole – 2011 – 5ª Edição, pág. 102) Comungam do mesmo entendimento os doutrinadores SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA e EDUARDO ANDRADE RIBEIRO DE OLIVEIRA: “O silêncio, por si só, desvinculado de outros elementos, nada representa que interesse ao mundo jurídico. Sucede, entretanto, que, por força mesmo das circunstâncias em que se haja verificado, possível seja interpretado como manifestação de vontade. (...) O silêncio, repita-se, significará manifestação de vontade, se isso justificar-se em um dado contexto. Necessário que dele seja possível extrair a conclusão de que houve a concordância. (...) Faz-se comumente referência a que o silêncio é de ter-se como capaz de levar a conseqüências jurídicas, quando se possa considerar presente o dever se manifestar-se. Ocorreria quando o silente pudesse e devesse falar (loqui potuit et debuit). É o que consta de trecho da valiosíssima monografia de Serpa Lopes a propósito do tema: ‘Se o silêncio diante de um ato que me diz respeito, se calo quando razões havia e ponderosas, dando a consciência de um dever de falar, por certo que essa atitude é portadora de conseqüências modificativas das relações ou do objeto que se prendia a meu silêncio. Em tais casos, não posso pretender uma inocuidade de efeitos no meu comportamento. Não foi simplesmente um ‘não dizer nada’ mas um ‘não dizer nada’ que implicou em afirmar algo.’ (...) Tratando-se de forma de declaração da vontade, parece-nos que, como recomenda, aliás, o próprio Serpa Lopes, o melhor fundamento há de ser aquele que se encontra na teoria da confiança, mencionada nos comentários ao artigo antecedente. O silêncio releva, enquanto capaz de significar manifestação de vontade, tendo em vista as circunstâncias e os usos. Se apto a criar a convicção de que houve anuência, é o que importa. Trata-se de circunstância que há de ser aferida em face do caso concreto.’ (Comentários ao novo Código Civil, volume II – Rio de Janeiro, RJ: Forense – 2008 – 1ª Edição, págs. 236 e seguintes) Com efeito, o silêncio é uma modalidade de manifestação de vontade e pode ser interpretado como anuência da parte quando esta tiver o dever, a obrigação ou a possibilidade de falar e, no entanto, permanecer silente (comportamento negativo e incompatível com a manifestação de vontade oposta). Nesse ponto, vale trazer à baila o seguinte trecho extraído do v. acórdão de julgamento proferido pelo e. TJ/SP, nos autos da Apelação Cível nº 9168514452009826 SP (9168514-45.2009.8.26.0000), julgada em 17/02/2011: “(...) Ainda que existisse previsão contratual de cobrança do IPTU, a omissão do locador em cobrá-lo demonstra sua aquiescência tácita quanto a sua não exigência, de acordo com a cláusula geral da boa-fé objetiva como elemento de limitação ao exercício de direitos: proibição de venire contra factum proprium, isto é, vedação de agir contra fato próprio (teoria dos atos próprios)”. Muitas vezes, esse comportamento (omissivo) acaba corroborando a existência de novação tácita, conforme lecionam os Professores GUSTAVO TEPEDINO, HELOISA HELENA BARBOZA e MARIA CELINA BODIN DE MORAES: “O CC atribui valor jurídico ao silêncio das partes, de modo que sua existência poderá configurar consentimento desde que o conteúdo do comportamento e o negócio jurídico em tela admitam. Vale dizer, conjugada a possibilidade de declaração de vontade tácita com a natureza do negócio e a apuração de real vontade das partes (v. comentário ao art. 112), é possível que ao silêncio seja atribuído valor positivo, constitutivo de negócio jurídico. (...) Para que o silêncio importe anuência, exige-se que ele traduza um comportamento, um querer positivo, e não somente uma abstenção de pronunciamento de uma pessoa em relação ao seu ambiente externo (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições, vol. I, p. 483), pois, a rigor, aquele que simplesmente cala, não quer, em princípio declarar vontade. Neste sentido, a decisão do TJSP, emitida sob a vigência do código anterior: ‘O silêncio, como demonstração de aceitação, ou seja, na elaboração de um negócio jurídico, seja na novação, transformação ou cessação do negócio já existente, é o silêncio intencional, refletido e amadurecido. É a concordância fruto de firme deliberação’ (TJSP, 9ª C. Dir. Priv., Ap. Cív. 2743892, Rel. Des. Franciulli Netto, julg. 26.08.1997). Segundo Rose Vencelau, ‘O silêncio não se confunde com a declaração tácita, uma vez que esta se apresenta com atitudes do declarante que tornam clara a sua vontade (...). O silêncio é a inércia do agente, que, de acordo com a análise das circunstâncias do caso, pode provocar efeitos de uma declaração volitiva.’ (‘O Negócio Jurídico’, p. 196).” (Código Civil interpretado conforme a Constituição da República – Rio de Janeiro, RJ: Renovar – 2004 – 1ª Edição, págs. 223/224) De qualquer forma, o silêncio não pode ser interpretado isoladamente, ignorando-se os demais elementos existentes no caso concreto, mas sim dentro do respectivo contexto fático. A novação tácita nos contratos de propriedade industrial Como já destacado, os contratos de propriedade industrial possuem prazos de vigência normalmente longos e envolvem bens intangíveis que muitas vezes são os ativos mais valiosos das empresas. Portanto, a questão novação tácita não pode ser ignorada pelos contratantes. Há casos onde é inequívoco o animus novandi das partes, embora os contratantes não cheguem a materializar ou formalizar qualquer instrumento escrito. São situações que se consolidam no tempo, com a ciência de todos os envolvidos, sem qualquer questionamento de parte a parte, criando não apenas meras expectativas de direito, mas sim legítimos interesses que refletem na conduta das partes. A análise do tema ganha especial importância quando a discussão deságua no Poder Judiciário, que, quase sempre, tem a difícil tarefa de decidir sobre a existência de novação tácita ou não, com base nos elementos e nuances do caso concreto, contrariando invariavelmente os interesses de um dos contratantes. Convém esclarecer que não se pode falar em novação tácita quando um dos contratantes simplesmente autoriza o parcelamento de determinada dívida ou alonga o prazo do respectivo pagamento, já que nessas hipóteses não há a substituição da obrigação antiga por outra nova, mas apenas ajustes laterais e secundários referentes à mesma obrigação. Sem a menor pretensão de exaurir o tema, podemos citar algumas situações, meramente ilustrativas, que podem, eventualmente, caracterizar a ocorrência de novação tácita em contratos de propriedade industrial. Contratos de licença de uso de marca: a) após avaliar que está pagando royalties fora da realidade do mercado, o licenciado passa a desembolsar apenas 50% (cinquenta por cento) do montante ajustado contratualmente. O licenciante toma conhecimento da redução, mas, acreditando se tratar de redução pontual em razão de conjuntura mercadológica, não toma as providências cabíveis. A situação se consolida no tempo, por vários anos, sem qualquer questionamento do licenciante, quando este então resolve cobrar judicialmente a alegada dívida, seja em ação própria, seja via reconvenção oferecida nos autos de ação proposta pelo licenciado; b) embora ciente de que só tem o direito de usar a marca em determinado segmento, nos moldes do instrumento assinado, o licenciado vislumbra nova oportunidade de negócio e deixa de utilizar o sinal no segmento originalmente contratado, passando a empregar o sinal em outro ramo absolutamente distinto, com o conhecimento do licenciante. A situação se consolida no tempo, transcorrendo período considerável, sem qualquer impugnação do licenciante, quando este então decide questionar o descumprimento contratual nos autos de eventual ação judicial; c) mesmo ciente de que não pode sublicenciar o uso da marca para terceiros, nos termos do instrumento assinado, o licenciado o faz, com o conhecimento do licenciante, prestando contas das respectivas receitas. A situação se consolida no tempo, sem qualquer questionamento do licenciante, quando este então resolve processar o licenciado para cobrar a multa fixada no contrato decorrente de suposto descumprimento contratual. Contratos de licença de patente: a) o licenciado tem o direito de explorar a patente apenas para determinado produto, porém, com a ciência do licenciante, deixa de utilizá-la para o fim contratado, fazendo um “segundo uso” dessa invenção, sem pagar royalties relativos à nova modalidade. A situação se consolida no tempo, por vários anos, sem qualquer questionamento do licenciante, quando este então resolve cobrar judicialmente eventual diferença de royalties que entende devidos, seja em ação própria, seja via reconvenção oferecida nos autos de ação proposta pelo licenciado. Obs: É evidente que não se pode cogitar de animus novandi nos casos onde a exploração da patente se refere a um processo de fabricação e o licenciante não tem ciência desse “segundo uso” - não regulado originalmente no contrato – em razão do processo de produção acontecer dentro da fábrica do licenciado. Isso porque, como visto, não se pode falar em novação sem a presença de elementos concretos que demonstrem a inequívoca intenção de novar, ainda que tacitamente. Contratos de transferência de tecnologia: a) o cessionário ajusta com o cedente um valor referente à transferência de determinada tecnologia, mas, durante a relação contratual, parte da tecnologia se torna obsoleta e o cedente resolve transferir tecnologia distinta, que passa a ser utilizada e explorada pelo cessionário por um considerável lapso temporal, sem qualquer questionamento do cedente. A situação se consolida no tempo e o cedente resolve então cobrar do cessionário quantias adicionais referentes à transferência da nova tecnologia que jamais foram pactuadas. Contratos de licença de desenho industrial: a) uma empresa automobilística licencia seu desenho industrial para o licenciado aplicá-lo em seus automóveis. Com o passar do tempo, o modelo sai de linha de produção e o licenciado, com a ciência do licenciante, passa a aplicar o design apenas em souvenirs e brinquedos. A situação se consolida no tempo e, ao final da relação contratual, o licenciante, que não possui registro de marca, tenta cobrar do licenciado valores pela exploração não autorizada. Em suma, o que se pretende demonstrar é que nos casos onde o consentimento dos contratantes é inequívoco e está consolidado no tempo, embora não formalizado por escrito, pode-se sustentar a ocorrência de novação tácita. Nessas situações, pode o Poder Judiciário, se assim entender, relativizar a interpretação de determinadas cláusulas contratuais que conflitem com o verdadeiro animus novandi das partes. Até porque, não se afigura razoável que um contratante aceite por anos e anos determinada situação, criando não apenas meras expectativas, mas sim legítimos direitos e perspectivas para o outro contratante, para, no futuro, defender que apenas “tolerou” o fato sem o aceitar, ou que inexistiu consentimento expresso de sua parte. CONCLUSÃO Após a vigência do Código Civil de 2002, a novação tácita passou a ser um importante instituto jurídico que não pode ser ignorado, sobretudo por aqueles que militam na área da propriedade industrial. O tema é complexo, sensível, sobrevoa pelo campo da boa fé objetiva (arts. 113 e 422 do CC) e do chamado “venire contra factum proprium”, demandando sempre uma cuidadosa análise de todos os elementos e nuances do caso concreto. Embora a análise do julgador seja subjetiva, o fator tempo é um importante elemento objetivo para sopesar os interesses em jogo e avaliar o verdadeiro animus das partes. Da mesma forma, o silêncio pode ser um relevante ingrediente para corroborar a existência de novação tácita. Nos contratos de propriedade industrial podem ocorrer situações de novação tácita. Nesses casos, poderá o Poder Judiciário interpretar com temperamento eventuais cláusulas que conflitem com o verdadeiro animus das partes, a fim de que sejam respeitadas e observadas as novas bases ajustadas pelos contratantes, ainda que tacitamente. Todavia, não se deve generalizar e forçar a aplicação do instituto indiscriminadamente, pois muitas vezes os elementos existentes nos autos afastam a possibilidade de novação tácita. Diante de tantas peculiaridades, é importante que os contratantes deem atenção especial ao tema, não apenas no momento da elaboração dos contratos de propriedade industrial - inserindo cláusulas que dificultem a caracterização do instituto e documentando eventuais liberalidades por escrito, com limitações de tempo e outros aspectos claramente definidos -, mas também acompanhando o desenvolvimento do próprio negócio jurídico, a fim de que o escopo do instrumento celebrado seja respeitado e observado.