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13 mai 2015 O Globo [email protected] MERVAL PEREIRA
Não vale o que está escrito
De duas, uma. Ou a presidente Dilma está arrependida de ter indicado o jurista Luiz Edson Fachin para
a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal ou está dando gargalhadas diante das respostas dele na
sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Porque o Fachin que esteve ontem a
responder aos senadores não é o mesmo que escreveu textos que colocavam em dúvida o direito à
propriedade ou questionavam a família tradicionalmente formada.
Fachin ontem nem precisou explicitar o pedido para esquecerem o que escreveu. Ele mesmo tratou de
fazer uma releitura de anos e anos de militância jurídica, explicando que todas as ideias polêmicas que
defendeu ao longo de sua vida eram apenas questões que estavam sendo “problematizadas” em
discussões acadêmicas, e não representam o pensamento que vai guiá­lo se for aprovado pelo Senado
para o STF.
Na verdade, o que se viu ontem no Senado foi um jurista quase conservador, defensor da tradição,
família e propriedade. Ao jurista que escreveu um prefácio de um livro a favor da bigamia, afirmando que
as ideias pertenciam a “mentes generosas e corajosas, preocupadas incessantemente com o que nos
define como humanos”, o jurista sabatinado respondeu ontem: “sempre acreditei que os valores da
família, de pátria e de nação são fundamentais para progredir”.
O jurista “que tem lado” escreveu, sobre a bigamia, que “quem se acomoda no dogmatismo
enclausurado ou (...) elimina a instância jurídica como instrumento de emancipação” não cabe em um
bonito sonho sobre “(...) as propostas que embalam significantes e significados no berço que desempacota
os nós de alguns ninhos”. Mas ontem foi às lágrimas quando se referiu ao casamento de quase 40 anos
com a desembargadora Rosana Amara Girard Fachin, e aos filhos, todos presentes.
Sobre propriedade privada, Fachin escreveu que “o instituto da propriedade foi e continuará sendo
ponto nevrálgico das discussões sobre questões fundamentais do país. (...) De um conceito privatista, a
Constituição em vigor chegou à função social aplicada ao direito de propriedade rural. É um hibridismo
insuficiente, porque fica a meio termo entre a propriedade como direito e a propriedade como função
social. Para avançar, parece necessário entender que a propriedade é função social.”
Nos vídeos que mandou colocar na internet e nas palavras que disse ontem no Senado, Fachin acha
que a propriedade é um direito fundamental e, como tal, nós devemos seguramente obediência a esse
comando constitucional. “Porque a Constituição é o nosso contrato social. [...] Nenhum de nós pode ter
uma Constituição para chamar de sua”.
Garantismo constitucional e valores cristãos e democráticos podem ser as definições de seus
compromissos mais profundos, segundo afirmou ontem. A certa altura, como quem não queria nada,
lembrou que fora coroinha de igreja quando criança, a ressaltar suas raízes católicas.
Fachin ressaltou sua formação civilista com louvores à democracia e à necessidade de o Poder
Judiciário não assumir funções que são próprias do Legislativo: “O juiz não pode nem deve substituir o
legislador”, disse numa homenagem aos sabatinadores.
Foi de tal ordem a diferença entre o Fachin de antes e o de depois da indicação, que parece que ele foi
indicado por certas virtudes na visão de Dilma que fez questão de negar no Senado, talvez sentindo que
seus pensamentos não correspondiam ao pensamento médio dos senadores.
O senador Ricardo Ferraço, que foi o primeiro a levantar a questão da dupla militância como advogado
— procurador do estado do Paraná e advogado particular ao mesmo tempo, o que era proibido pela
Constituição do estado quando assumiu a função na Procuradoria — insistiu na denúncia, que foi rebatida
por Fachin com os mesmos subterfúgios de “expectativa de direito” pois era permitido quando fez o
concurso, e teve permissão da OAB local.
O senador definiu Fachin, logo no início da sabatina, como “vítima das suas convicções”. Deve ter
chegado ao final com a convicção de que Fachin não tem convicções, apenas se dispõe a “problematizar”
os temas pelo gosto de um bom debate acadêmico.
Tamanha a diferença entre um Fachin e outro que o senador Cássio Cunha Lima teve que perguntar
se ele garantia que sua posição no Supremo corresponderia ao seu depoimento, e não aos textos que
escrevera até então. Fachin garantiu que o que vale não é o que está escrito, mas o que falara naquela
sessão.
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