UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO O que está em jogo no jogo: cultura, imagens e simbolismos na formação de professores TANIA MARTA COSTA NHARY Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profª Drª Iduína Mont’Alverne Brum Chaves Co-Orientadora: Profª Drª Helena Amaral da Fontoura TANIA MARTA COSTA NHARY O QUE ESTÁ EM JOGO NO JOGO: CULTURA, IMAGENS E SIMBOLISMOS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES BANCA EXAMINADORA __________________________________________________ Profª Drª Iduína Mont’Alverne Chaves - Orientadora Universidade Federal Fluminense __________________________________________________ Prfª Drª Helena Amaral da Fontoura- Co-Orientadora Universidade do estado do Rio de Janeiro Prfª Drª Célia Frazão Linhares Universidade Federal Fluminense Prfº Drº Cleomar Ferreira Gomes Universidade Federal do Mato Grosso Niterói, _________de ______________de 2006. 2 Aos alunos do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ, pela partilha da alegria nos jogos. 3 Ao Luiz Carlos, mais que marido, parceiro do jogo da vida e do jogo do amor. Aos meus filhos, Paulo Henrique e Camila, por me permitirem ser uma eterna brincante. Ao meu filho de alma, David Ricardo pelo incentivo e torcida. Aos meus familiares, pelo carinho e apoio. AGRADECIMENTOS 4 5 O objetivo do conhecimento é dialogar com o mundo. Edgar Morin NHARY, Tania Marta Costa. O que está em jogo no jogo: cultura, imagens e simbolismos na formação de professores. 2006. Dissertação ( Mestrado em Educação)Universidade Federal Fluminense RESUMO Esta pesquisa buscou compreender os sentidos dos jogos para professores em formação no Curso de Pedagogia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP/UERJ. Como base teórica, foi utilizada a perspectiva da socioantropologia do cotidiano de Michel Maffesoli e o paradigma da complexidade de Edgar Morin, para explicitar a cultura e os simbolismos revelados nas vivências de jogos destes sujeitos, apreendendo os sentidos e significados da relação jogoeducação.Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa que, como instrumentos de registros do cotidiano, utilizou questionários , entrevistas e fragmentos de histórias de vida, tendo a narrativa como método. Desta forma, nesta investigação fenomenológica compreensiva, foi possível captar e apreender o sistema simbólico, através das imagens evocadas pelos sujeitos da pesquisa, assinalando um ideário pedagógico em relação ao jogo 6 na escola que o remete à noções apolíneas e dionisíacas, de forma concorrente, antagônica e complementar. Instaurou-se, assim, uma mudança de olhar onde o pensamento simbólico/mitológico ganha valor e sentido , evidenciando a crise do paradigma clássico de simplificação, substituindo-o pelo paradigma da complexidade sociocultural. Como principais conclusões, constata-se que “O que está em jogo no jogo” para estes alunos em formação é a tensão entre compreender o jogo como recurso metodológico, logo com intencionalidade pedagógica, e o jogo como atividade recreativa, considerando-o, no entanto, como fenômeno sócio-cultural revelador dos modos de sentir, pensar e agir. Destaca-se, também, uma reflexão quanto à perspectiva epistemológica dos saberes e práticas lúdicas na formação docente, que implica em propostas de políticas públicas e (re)construções de conhecimentos, que dêem aos jogos e brincadeiras um papel relevante no âmbito educacional. Palavras-chaves: jogo, educação, formação de professores, pesquisa narrativa NHARY, Tania Marta Costa. O que está em jogo no jogo: cultura, imagens e simbolismos na formação de professores. 2006. Dissertação ( Mestrado em Educação)Universidade Federal Fluminense ABSTRACT 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO - Entrando em campo: o caminho profissional - Ponta pé inicial: construindo o tema .................................11 .................................12 ..................................15 PRIMEIRO TEMPO - OS ESTRATAGEMAS DE COMPREENSÃO .....................28 - Paradigma da complexidade: um foco no jogo. .................................29 - Socioantropologia: o jogo como prática do cotidiano ................................38 SEGUNDO TEMPO- A DELEGAÇÃO: ALGUNS TEÓRICOS SOBRE O JOGO..50 - O uso do termo - Concepções históricas - Jogo e educação ................................51 ................................56 ................................81 TERCEIRO TEMPO - O TIME: OS PARTICIPANTES DA PESQUISA ................89 8 - Formação de professores - Formação de professores na FFP/UERJ ................................90 ...............................111 A SÚMULA .................................127 QUESTIONÁRIOS - O QUE ESTÁ EM JOGO NO JOGO ..................................130 - Sobre o jogo - Das lembranças dos jogos - Do jogo na formação de professores - Do uso do jogo na escola - Das marcas deixadas pelo jogo NARRATIVAS- (RE)VISITANDO O ATO DE JOGAR - Memórias de Emília - As aventuras do Capitão Gancho ...............................131 ...............................134 ...............................140 ...............................147 ...............................153 ...............................157 ................................159 ................................188 PRORROGAÇÕES - CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................214 REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO ...............................225 ANEXOS ...............................233 9 INTRODUÇÃO 10 Aula de Recreação e Jogos- FFP/UERJ- 2005 INTRODUÇÃO _________________________________________________________________________ Entrando em campo: o caminho profissional “A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Gabriel Garcia Márquez (2003) Mais da metade de minha vida passei como docente na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP /UERJ. Neste momento, resgatar minha memória de formação serve de chave para entender a minha práxis1 no cotidiano de formação de professores. 1 O sentido de práxis não significa a mera prática pela prática, mas um conjunto de posturas, atitudes, formas de pensar e agir, ações ou intervenções deliberadas. Portanto, a prática aqui é situada numa perspectiva dialética e entendida como práxis. Kosik (1976) afirma que a práxis 11 António Nóvoa tem valorizado a história de vida dos professores: “Como é que cada um se tornou no professor que é hoje? E porque? De que forma a acção pedagógica é influenciada pelas características pessoais e pelo percurso de vida profissional de cada professor? As respostas levarnos-iam longe demais. Mas talvez valha a pena mencionar brevemente os três AAA que sustentam o processo identitário dos professores: A de Adesão, A de Acção e A de Autoconsciência “. ( NÒVOA, 1995, p.16) Refazer este percurso profissional, tal qual se faz uma viagem no tempo, me leva a compreender como fui apreendendo estes ‘As’, chegando ao tema de pesquisa: O que está em jogo no jogo: cultura, imagens e simbolismos na formação de professores. Graduei-me em Educação Física sob a égide do regime militar transitando por um currículo muito tecnicista onde reflexão, autonomia e crítica não eram as palavras de ordem na formação acadêmica. Nesta ocasião, a educação física era considerada competitivista, segundo Ghiraldelli Júnior (1998), pois o sustentáculo ideológico dessa concepção era a própria ideologia disseminada pela tecnoburocracia militar e civil, cujo tom principal era a tecnização da educação e da educação física. Muito se treinava, mas pouco se pensava sobre as possibilidades emancipatórias desta área do conhecimento. Tratava-se de uma formação com enfoque desportivo, pois a grande preocupação política, refletida na educação, e, sobretudo na educação física, encontrava no esporte um fértil terreno para disseminar a idéia de um Brasil Forte, Brasil Potência. O caráter utilitário e tecnicista da Educação Física tomava corpo com a preocupação na preparação de homens fortes e saudáveis, entendendo como grande aliado o esporte, então oferecido no contexto escolar. Assim, na ocasião, os cursos de graduação em Educação Física passaram a ter como maiores componentes curriculares as diferentes modalidades desportivas (atletismo, natação, handebol, basquetebol, voleibol e futebol). Desta forma, o trabalho pedagógico no contexto escolar se voltava para o ensino-aprendizagem de esportes com caráter prático. Assim que concluí o curso, ingressei como docente na Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo - FFP/UERJ2. Meu processo identitário passaria, assim, pelo primeiro ‘A’ proposto por Nóvoa (1995), o ‘A’ de Adesão, pois fazia parte de uma Unidade "não é um conceito filosófico, mas uma categoria da teoria dialética da sociedade" (p.199). O seu sentido é a liberdade, a autonomia, a auto-realização e o trabalho coletivo. 2 No ano de 1981 a FFP ainda não pertencia a UERJ , e sim a FAPERJ ( Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), conforme apresentado no capítulo sobre Formação de Professores desta dissertação. 12 Acadêmica de uma Universidade e estava vinculada diretamente a um Departamento, o de Educação. Aderi desta forma, ao campo educacional de formação de professores. Concomitantemente à minha atuação na FFP, dava aulas para educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental numa escola particular de classe média3. Uma escola pequena física e simbolicamente, mas imensa em se pensando na experiência profissional que pôde me proporcionar. O grande lócus de formação docente é a prática, é nesta instância que o professor se faz professor, onde prática-teoria-prática imbricam-se num processo cíclico, renovador e estimulante. Encontrava-me, com estas experiências profissionais, em constante exercício epistemológico refletindo sobre, no e com o cotidiano da escola na busca de novos caminhos para educação física escolar apreendendo o ‘A’ de Ação apontado por Nóvoa (1995). Repensar meu cotidiano pedagógico tornava-se estimulante e desafiante Buscando fazer de minha Ação docente algo mais significativo e consciente do papel do professor como elemento facilitador e orientador do processo educativo, recorri a referenciais sobre educação física escolar que, até então, tinha visto em minha formação, como a obra4 e as idéias discutidas com o Prof. Darcimires do Rego Barros , as reflexões de Helder Resende Guerra e as orientações de Vera Lúcia Menezes Costa, que foram ampliadas pelo prisma trazido por Listello (1979) , Santos (1977), Diem (1991), Miranda(1993), dentre outros livros, textos e artigos que passaram por minhas mãos e pensamentos e de que hoje não disponho para citá-los. Por ter sido uma criança muito brincante, estava impregnada da minha própria história e acreditava que a brincadeira, a fantasia e a imaginação deveriam estar presentes na vida escolar tornando esta vivência mais alegre e prazerosa, sobretudo na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, segmentos em que eu atuava. Estas experiências, assim, iam resignificando minha práxis na formação de professores da FFP. Trabalhar com criança da rede privada ou pública torna-se uma experiência positiva para docentes de formação de professores, apresentando-se como uma referência importante para a compreensão do cotidiano escolar. Minha passagem pelo ‘chão da escola’ na condição de professora foi fundamental no meu fazer pedagógico na universidade e “... 3 4 Centro Educacional Maciel Pinheiro Refiro-me ao livro Educação Física na escola primária, Barros, Ed. José Olympio, 1970. 13 nos damos conta da necessidade vital de, mesmo estando na universidade, nunca nos distanciarmos das escolas por onde um dia passamos, as quais nos possibilitaram chegar aonde chegamos, como chegamos”.( FERRAÇO, 2003, p.158). Paralelamente, dava aulas de educação física como disciplina obrigatória do currículo das licenciaturas da FFP. Só posteriormente esta disciplina assumiu o caráter de eletiva, o que fez com que passassem a participar das aulas os alunos que se identificavam com a educação física. No início da década de 90, nossa Unidade Acadêmica recebeu a proposta de criação do Curso de Pedagogia: Habilitação Magistério das séries inicias do ensino fundamental licenciatura plena5 , o que foi aceito pelo Departamento de Educação. Em 1994, iniciava-se o curso na FFP São Gonçalo e, em 1995, o mesmo curso foi implantado por convênio no Município de Araruama, contendo em sua “grade curricular” 6 a disciplina de Recreação e Jogos I e II. A oportunidade de redimensionar a área do saber da educação física estava criada. Frente à este desafio, mergulhei num processo de perplexidade produtiva, como mencionado por Boaventura Santos (2005, p.19), percorrendo caminhos epistemológicos que dessem sentidos a um fazer docente de ‘fazer docentes’. Somava-se aos outros ’As’ o ‘A’ de Autoconsciência sugerido por Antonio Nóvoa. Aproximando-me da área de recreação e jogos infantis, fiz um curso de Psicomotricidade 7 que, aliado à leitura de diferentes autores como Freire (1997) , Kishimoto (2002) , Almeida (2002) , Brougère (1998) , Huizinga (2004) e outros, levoume não só a conhecer mais, como a me identificar muito com a temática. Depois de pesquisar inúmeras teorias sobre recreação e jogos, organizei o curso de modo a imbricar prática-teoria-prática. Esta seria uma proposta a ser levada aos alunosprofessores, o que implicaria em estimulá-los à experimentação dos sentidos do ato de jogar, onde as teorias discutidas sobre jogo e educação passassem a ter um caráter singular 5 Sobre a criação do Curso de Pedagogia FFP/UERJ ver capítulo de formação de professores deste trabalho Grade que se mantém até hoje, o que implica, no próprio sentido da palavra, no aprisionamento dos saberes em espaços limitados. Muito embora um novo currículo já tenha sido efetivamente implantado no 1º semestre de 2006 , ainda teremos em vigor o currículo antigo no sentido de formar os alunos mais antigos que ainda estão cursando Pedagogia. 7 Curso de Atividades Psicomotoras na Aprendizagem - Recrearte 6 14 a partir da prática do jogo. Mas de que forma fazer com que isto acontecesse se a disciplina de Recreação e Jogos não tem em sua ementa uma carga horária destinada à prática? A compartimentalização dos saberes no curso de pedagogia na formação de professores da FFP consagra como dimensão prática, apenas os estágios nas escolas ligados à disciplina de Prática de Ensino8. As demais disciplinas não são contempladas com esta carga horária9. Como, então, dar um caráter de experimentação à Recreação? Como religar saberes estando estes tão segmentados no currículo de formação de professores? Mergulhada num universo de dúvidas e imbuída em encontrar uma saída para aliar teoria e prática, fui dando continuidade ao curso proporcionando, em sala de aula, a oportunidade dos alunos-professores participarem de vivências lúdicas, de forma que estes pudessem contextualizar e refazer os saberes que naturalmente possuíam, reelaborando suas práticas. O Curso de Pedagogia da FFP desde sua criação, em 1994, contou com a disciplina de Recreação e Jogos e sempre ministrei aulas na mesma, o que despertou em mim um desejo e uma necessidade de resignificar o papel da Educação Física no campo de formação de professores da educação básica. Desta forma, fui em busca de novas oportunidades para além das disciplinas de Recreação e Jogos e de Educação Física, esta oferecida como eletiva nas demais licenciaturas. Passei então a atuar em Prática Pedagógica nas diferentes Licenciaturas e em Tópicos Especiais no Curso de Pedagogia em São Gonçalo e em Araruama. São disciplinas com um perfil parecido, pois têm uma ementa aberta que possibilita discussões de diferentes temáticas de interesse dos alunos, em acordo com o professor. Foi assim que comecei a atuar em tais disciplinas, discutindo os jogos e as atividades recreativas na formação de professores. Abordando questões que envolvem ludicidade e educação venho construindo um campo de reflexões e debates que hoje culminam com o presente trabalho de pesquisa de Mestrado, acreditando como Linhares ( 2002) que 8 Prática de Ensino I e II totalizando 180 horas/aula. Com a reformulação do curso da FFP a dimensão prática dos cursos de formação de professores da educação básica perpassará todo o currículo, conforme resolução CNE/CP 2, 2002 . Art 1º, inciso I: 400(quatrocentas) horas de prática como componente curricular, vivenciadas ao longo do curso. 9 15 “A sala de aula é um espaço repleto de signos e significações que tomam forma e cor através da linguagem. A aprendizagem se concretiza através do diálogo entre sujeitos que interagem com o mundo e produzem cultura. O professor se transforma em mediador da discutibilidade emancipatória no seu ato ou ação educativa”. ( LINHARES, 2002, p.190) No entrelaçamento dos momentos acadêmico-político-pedagógicos por mim vividos ao longo de vinte e cinco anos nesta Instituição, fui descobrindo diferentes formas de linguagens, sobretudo as corporais, fruto das fruições dos alunos em aulas de Recreação, Prática Pedagogia, Tópicos Especiais e Educação Física que gradativamente levaram-me a posturas cada vez mais dialógicas resignificando minha própria práxis. Neste processo, passam por reformulação não só os princípios norteadores do Curso, mas também os próprios pensamentos dos professores. Ponta pé inicial: construindo o tema “Sei que todo conhecimento de uma sociedade, de uma história, uma vida, inclusive a própria, é, ao mesmo tempo, uma tradução e um reconstrução mental. Sei não apenas que a percepção de um acontecimento pode incluir seleção do que se parece principal, ocultação ou esquecimento do que incomoda, mas também que a lembrança pode alterar seriamente o que ela rememora... sei também que o olhar do presente retroage sempre sobre o passado histórico ou biográfico que examina”. Edgar Morin ( 2000) Neste percurso profissional, algumas questões que me incomodavam e me faziam (e fazem) refletir constantemente sobre o meu fazer pedagógico, dizem respeito ao encaminhamento da temática ludicidade no campo de formação de professores. 16 As fronteiras disciplinares e a dimensão teórica dissociada da prática têm levado alguns professores à construção de novos modos de ‘pensar’ e de ‘fazer’ a sua prática docente. Foi nesta perspectiva que, nas aulas de Recreação e Jogos do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ, passamos a analisar e discutir as teorias, funções, conceituações e sentidos dos jogos com os suportes teóricos de Gilles Brougère (1998), Johan Huizinga (1971), Jean Chateau (1987), Roger Caillois (1990) e João Batista Freire (2002), Tisuko Kishimoto (1993) dentre outros, vivenciando as atividades lúdicas e relacionado-as com as teorias apresentadas. Brincando e jogando seria possível fazer com que os alunos-professores resignificassem as atividades recreativas no âmbito escolar. Era preciso insistir nas vivências lúdicas para que os alunos-professores se sentissem aptos e seguros para levar esta experiência para as suas práticas enquanto docentes. O ato de jogar precisava, então, ser significativo para eles. Se todo movimento humano apresenta uma intenção, e isto desde o início de nossas vidas, jogar deveria ter um significado, uma razão de ser. Por que e para que agir e se sentir como uma criança brincante estando numa Universidade? Tratando-se de uma faculdade de formação de professores, consequentemente estes profissionais contribuirão na formação de crianças. Fazer estes universitários sentir as sensações e emoções promovidas por atividades lúdicas é levá-los a respeitar e compreender melhor seus alunos, sobretudo valorizando o componente lúdico que habita cada um deles. Apesar de ser uma atividade natural para o homem, o desejo de jogar só se manifesta em toda a sua intensidade se encontrar um ambiente facilitador. Assim, cabia-me a função de estimular os alunos-professores, propiciando um ambiente de alegria, descontração e que fosse adequado para a realização das atividades. Ocupávamos, assim, as salas de aula, a quadra da Universidade, a sala de educação física e áreas ao ar livre no entorno da FFP. 17 Aulas práticas de Recreação na sala de educação física e na quadra da FFP/UERJ, 2005 Na medida em que os alunos/professores se motivavam pelas atividades e se deixavam envolver por elas, revelavam-se tais quais crianças ativas, curiosas e ansiosas por novas experiências. A grande maioria dos participantes expressava alegrias, prazeres e fruições de forma verbal ou por manifestações corporais como riso, pés descalços e muita algazarra. A entrega ao jogo era inevitável para muitos, como registrado nas fotos a seguir. Atividades práticas nas aulas de Recreação e Jogos I e II na FFP/UERJ, 2005 18 Atividades práticas nas aulas de Recreação e Jogos I e II na FFP/UERJ, 2005 O que sentiam os alunos ao rolarem e se atirarem no chão, ao rir às gargalhadas, ao correr freneticamente, a torcer, a ganhar e a perder era por eles relatado ao final de cada aula. Nestas avaliações sistemáticas, dimensões como prazer, euforia, solidariedade, respeito às regras, conflitos, resoluções de problemas, transgressões, sorte, acaso, ordem, desordem e reorganizações, dentre outras, foram emergindo e possibilitando a compreensão dos jogos como conhecimento científico, indissociável do senso comum, visto que as atividades faziam parte, em sua maioria, da cultura lúdica infantil dos alunos, muitas delas sendo resgatadas por suas memórias e redimensionadas pela autonomia e criatividade do grupo. Todos sabiam brincar, mas muitos só não o faziam junto com as crianças nas escolas por medo, insegurança ou falta de espaço e oportunidade. Eram brincantes com medo de brincar. Seria preciso então pensar na possibilidade de romper com os limites 19 impostos pelas escolas com relação à utilização de jogos, legado este que tem acompanhado as práticas lúdicas na longa história da educação10 A concepção de ‘dupla ruptura epistemológica’ de Boaventura Santos (2005) é, neste sentido, de grande importância, pois, para este autor, a ciência moderna ao separar-se do senso comum existente, tornou possível uma ruptura epistemológica, a primeira, que deve ser revertida no sentido de fazer com que o conhecimento científico se transforme num novo senso comum, estabelecendo-se, assim, a sua proposta de dupla ruptura epistemológica, a ruptura da ruptura. A complexidade do uso do jogo aproxima-o do senso comum, pois muitas das atividades lúdicas têm suas matrizes na cultura popular, estando esta impregnada de saberes e fazeres de um determinado grupo. Assim, atividades naturais como jogos de pique, jogos com bolas e outros se tornam os preferidos no cotidiano das escolas, nos levando a refletir: Por que se joga? Onde se joga? Com quem se joga? Como se joga? Quando se joga? Neste estudo investigativo, somos movidos pela curiosidade epistemológica à buscar respostas para estas indagações pautadas em estudos e conhecimentos científicos que norteiam a temática. No final do século XIX, o jogo, do ponto de vista científico, torna-se alvo de estudo de psicólogos, psicanalistas e de pedagogos em geral, surgindo a partir daí um rol de teorias na tentativa de explicar seus significados. O ato de jogar (brincar) passa a ser considerado como um fator fundamental no processo de desenvolvimento humano e os jogos passam a ter abordagens de um paradigma naturalista, onde as atividades lúdicas espontâneas tornam-se alvos de investigações. Mas, afinal, o que as crianças aprendem e nos ensinam quando estão jogando? Que conhecimentos estão sendo (re)construídos no ato de jogar? Estas questões nem sempre são consideradas pelos formuladores de projetos pedagógicos da escola, pois consideram o jogo como atividade e não como um conhecimento que faz parte de movimentos instituintes, latentes e cotidianos, o que dificulta a compreensão de seu uso no espaço escolar. Num processo de construção compartilhada de conhecimento, os alunos-professores da disciplina Recreação e Jogos elaboraram uma atividade na FFP denominada “Dia 10 A este respeito ver o capítulo sobre “Concepções históricas sobre os jogos” deste trabalho. 20 Lúdico”. Eles se envolveram na organização desta atividade com muito esmero, preparando e arrecadando material que pudessem atender aos seus projetos. Na ocasião, foram organizadas diversas oficinas que ofereceram uma gama de atividades lúdicas com o propósito de, na prática, observar, analisar e compreender os sentidos do ato de jogar. Foram convidados a participar todos os alunos do Curso de Pedagogia da FFP e aproximadamente quarenta crianças de uma escola municipal das proximidades. As fotos que se seguem ilustram este evento. “Dia Lúdico” na FFP/UERJ, 2004 21 Alguns alunos/professores sentiram-se perplexos frente ao inesperado, pois muitas das atividades programadas não foram cumpridas. Podemos observar isto em seus relatos: “Preparei inúmeros jogos, mas as crianças só queriam saltar entre os arcos” (G. aluna/professora do 6 º p.) Compreender o envolvimento das crianças nas brincadeiras, respeitar seu tempo de experimentação e seus desejos, faz parte de um fazer docente onde educar pela sensibilidade torna-se tão (ou mais) importante quanto seguir metodologicamente os conteúdos programados. Segundo Michel Maffesoli: “o sensível não é apenas um momento que se poderia ou deveria superar no quadro de um saber que progressivamente se depura. É preciso considerá-lo como elemento central no ato do conhecimento”. ( MAFFESOLI, 1998,p.89). E assim relata outra aluna/professora: “Preparamos uma atividade de boliche com garrafas plásticas, mas os meninos pediram para jogar futebol, aí nós ajudamos a selecionar as equipes e nos tornamos técnicos e juízes marcando as faltas e o placar. Foi tão bom que acabamos jogando futebol também” (L. aluna/professora do 6 º p.) Percebendo o corpo como uma forma de linguagem, os alunos-professores passaram a ‘ouvir’ os saberes das crianças que expressavam satisfação e eram remetidas à dimensões como desafio, domínio, criatividade, autonomia e crítica. Puderam partilhar com elas os sentidos do ato de jogar associando-os ao próprio sentido da educação. Senso comum (a vivência das crianças) e ciência ( teorias sobre jogos), ligavam-se. Na tentativa de aproximação dos alunos-professores com o cotidiano escolar, a participação das crianças neste trabalho, mesmo por pequeno período de tempo, foi de grande valia, pois os levou a perceber na prática as diferentes dimensões da ludicidade. Foi o momento de (re)fazer saberes que emergiam da complexidade das atividades praticadas. A experiência de jogar/brincar com as crianças foi um marco na compreensão das relações entre as teorias discutidas e o fazer docente, levando à reflexão quanto ao espaço/tempo que o jogo deve ocupar na escola. A proposta da utilização do jogo na escola (em sala de aula, nos momentos de 22 recreação, na disciplina de educação física, ou mesmo no recreio escolar) proporcionaria uma interseção de múltiplos saberes? Estabeleceria relações de conhecimentos? Algumas destas questões provocativas me conduziram a participar de um curso de aperfeiçoamento e aprofundamento em Educação Física e Cultura11. As temáticas de lazer, jogo e educação física escolar tornaram-se preciosos pontos de partida para o meu caminhar investigativo. Pelas mãos da Profª Drª Nilda Teves Ferreira o estudo do imaginário, mitos e ritos nas atividades lúdicas parecia-me um coerente elo entre educação, formação de professores e ludicidade, pois o espaço escolar é compreendido pelas múltiplas relações e as possibilidades de produções imaginárias que se dão de forma simbólica nos pensamentos e ações de seus sujeitos. O cotidiano consubstancia-se como lugar próprio da produção de sentido e o contexto sócio-cultural onde a escola está inserida revela-se no seu cotidiano, através das práticas de seus alunos, onde se incluem as práticas de jogos. A partir destas reflexões, percorri o caminho epistemológico que me foi apresentado pela professora Drª Iduína Mont’Alverne Chaves no Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal Fluminense, levando-me ao encontro do “paradigma da complexidade” de Edgar Morin, pois pensando como ela “ser a escola um sistema aberto às múltiplas dimensões da realidade bio-psico-sócio-cultural” (CHAVES, 2000, p.24), abre-se uma perspectiva de compreensão que poderá levar o jogo, no paradigma da complexidade, a ser compreendido como objeto transdisciplinar, podendo atravessar as disciplinas porque faz parte do próprio processo de auto-formação do indivíduo, conduzindo-o ao aprender a aprender. O olhar atento da Profª Drª Helena Amaral da Fontoura, partícipe na construção desta pesquisa como co-orientadora, me apontou reflexões, caminhos e conexões, sobretudo no campo de formação de professores. Sua orientação permitiu a re-ligação de diferentes saberes do campo de formação docente, práticas de ensino, educação e ludicidade. Estando o jogo ligado as manifestações mais simples e cotidianas do homem, relacionados aos ritos e festas, o estudo da socioantropologia do cotidiano de Michel Maffesoli, em que também se pauta a proposta de Chaves (2000), foi como o fio condutor na compreensão da relação jogo/educação. 11 Curso oferecido pela Universidade Gama Filho no ano de 2004. 23 A Socioantropologia leva-nos a compreender a organicidade do social, a interação dos múltiplos e complexos elementos que o compõem e que se manifestam no que é vivido cotidianamente, lugar privilegiado de análise social, ao permitir a apreensão da socialidade colocando em evidência as minúsculas situações das atividades humanas. Desta forma, considera o imaginário que se manifesta no cotidiano como um dos elementos estruturantes do social, na medida em que nele se organiza um espaço vital que garante a sobrevivência dos indivíduos, o que nos possibilita apreender as diferentes dimensões das práticas de jogos nas escolas, enquanto fenômeno social natural e espontâneo do homem. Trata-se de uma mudança no olhar, outro modo de olhar a realidade da escola, cujos pressupostos de Marcos Ferreira Santos, vêm de encontro a esta perspectiva. “A colocação da questão antropológica testifica a necessidade de um outro olhar na investigação. Da trama do tecido social é preciso avançar para o algodão com que se fazem os fios desta trama. Algodão que colhemos e que semeamos, ora ansiando a chuva, ora pelo sol. Este anseio, esta esperança que norteia as ações concretas pertence ao domínio do imaginário”. (SANTOS, 2004,p.3). As idéias de Edgar Morin nos apontam que “a ambição da complexidade é prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimentos” (MORIN, 1996, p.176). Pensando-nos como seres ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, passa a complexidade a ser o que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos esses aspectos. Portanto, apropriar-se das atividades lúdicas com o objetivo de formação cultural, social, afetiva, emocional, cognitiva e psicomotora da criança se faz cada vez mais necessário, frente à multidimensionalidade do processo ensino-aprendizagem. Do meu encontro com este paradigma, do qual partilham os autores Michel Maffesoli e Edgar Morin, senti-me estimulada a fazer uma pesquisa que tivesse uma abordagem compreensiva por possibilitar um olhar estereoscópico, em todas as direções, a apreensão das diferentes dimensões da realidade e uma escuta sensível sobre o campo da pesquisa. Compreender a relação jogo e educação a partir do paradigma da complexidade, tendo como vertente a socioantropologia e buscando na sua análise significados relativos à formação de professores e seus modos de pensar e agir frente às atividades lúdicas nas 24 escolas, torna-se um caminho investigativo interessante. Pautada nas idéias de Morin, passei a olhar e compreender melhor que o ato de jogar ou brincar envolve ordem, desordem, interações e reorganizações, remetendo-nos à fórmula paradigmática de seu tetragrama (MORIN, 1996, p.204), onde na atividade lúdica cada termo precisa do outro para se constituir, sendo concorrentes, inseparáveis, complementares e antagônicos, estabelecendo o princípio dialógico deste autor 12 . Com o suporte teórico de Michel Maffesoli, busquei compreender o que é vivido no cotidiano em sua latência social, o que o autor denomina por socialidade, uma trama social que envolve as manifestações humanas mais banais e efervescentes como ritos, festas e atividades lúdicas. Para o autor, existe na cultura uma invariância de atitudes populares nas aparentes modificações, “tudo o que concerne à arte de viver ou aos modos de vida é extraordinariamente invariável” (1984, p.23) e, neste sentido, os jogos se encaixam, pois são transmitidos e vividos num processo cíclico que conserva sua essência por mais que sofram as tendências do tempo em que se inscrevem. Resgatar as fruições provocadas pelo ato de jogar dos alunos-professores servirá de chave para que possamos re-significar o jogo e seu uso no contexto educacional. Desta forma, este trabalho objetivou apreender os sentidos do ato de jogar para alunos-professores em formação buscando compreender as idéias desses alunos a respeito das atividades que envolvem jogos no contexto educacional. Pretendo, assim, investigar como os alunos-professores utilizam o tempo destinado à recreação na escola e como trabalham com jogos em sala de aula ou em outros espaços a partir das reflexões sobre jogo-educação em seu processo de formação docente. A partir do reconhecimento de que nos cursos de formação de professores a concepção de lúdico se faz presente, novas re-ligações de saberes vão surgindo entre as práticas incorporadas e os contextos epistemológicos sobre jogo e educação, passando a ser também objetivo deste trabalho compreender a contribuição dos jogos, tanto na parte prática quanto na teórica, no Curso de Pedagogia da FFP/UERJ na busca de sentidos na relação jogo-educação. 12 Este princípio aparece explicitado no capítulo 1 deste trabalho e em sua obra Ciência com consciência, 1996. 25 Pretendi nesta pesquisa tecer um texto que, à luz do paradigma da complexidade de Edgar Morin e da socioantropologia de Michel Maffesoli, como já mencionado, possibilitasse cerzir as teorias de jogos e o processo de formação de professores. Assim, organizei a apresentação do trabalho em partes denominado-as por termos do jogo que remetem o leitor as etapas que compõem as partidas de um jogo. As três primeiras partes são importantes fios condutores e articuladores da pesquisa, aqui apresentados em três tempos e que entretecidos formam a base da compreensão teórica sobre jogo, formação de professores, pensamento complexo e socioantropologia do cotidiano. No primeiro tempo desta parte do trabalho intitulada Os estratagemas de compreensão, apontei o modo como olhei e busquei compreender o jogo no contexto sócioeducativo. No segundo tempo: A delegação: alguns teóricos sobre o jogo, trago uma gama de concepções sobre o jogo em diferentes contextos sócio-históricos que vão delineando o pensamento sobre jogo que se tem hoje no contexto educacional. O terceiro tempo compreende a concepção de formação de professores pelo viés de seu lócus de formação e uma reflexão a cerca de como ‘pensamos’ e de como ‘fazemos’ a docência. No sentido de perceber como as atividades de jogos foram perpassando o contexto educacional, abordei também concepções históricas da educação física escolar, campo mais próximo do jogo na escola. Denominei esta parte do trabalho por O time: participantes da pesquisa e inclui ainda um panorama sócio-histórico e estrutural do campo específico desta pesquisa, a Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Na parte denominada Súmula, compreendendo-a como uma das sessões mais nobres de um trabalho científico, trouxe os registros da pesquisa no campo. Pretendi colocar em questão os pressupostos encontrados a partir do referencial da pesquisa qualitativa. Tendo como instrumento investigativo os questionários respondidos por trinta e cinco alunos-professores do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ e duas narrativas destes que apontam, através das histórias de vida, as imagens e simbolismos evocados a partir do envolvimento destes com jogos em diferentes períodos de suas vidas, fui levada a compreender a significação dos sentidos do ato de brincar e jogar na vida pessoal e profissional dos sujeitos que fizeram parte da pesquisa. 26 Os dados encontrados foram analisados e interpretados na parte intitulada Prorrogações, entendida como considerações finais, onde pude apreender a dimensão do imaginário do jogo no contexto escolar a partir dos dados coletados da pesquisa. A vida do jogo e o jogo da vida que se apresentam a partir das próximas páginas, tornam-se possibilidades de um mergulho na relação jogo-educação, emergindo novas propostas e novas formas de compreensão do uso do jogo no contexto escolar, alertado-nos para as políticas educacionais sobre ludicidade e para as práticas docentes que envolvem atividades de brincadeiras e jogos. Primeiro tempo 27 Aula de Recreação e Jogos – FFP/UERJ – 2005 Primeiro tempo _________________________________________________________________________ Os estratagemas de compreensão. Paradigma da complexidade de Edgar Morin “Se a complexidade não é a chave do mundo, mas o desafio a enfrentar, o pensamento complexo não é o que evita ou suprime o desafio, mas o que ajuda a revelá-lo e , por vezes, mesmo a ultrapassá-lo” Edgar Morin ( 1990) 28 No meio acadêmico temos nos familiarizado com o termo “paradigma”. Mas o que é paradigma? Algumas propostas de explicação nos remetem à idéia de horizonte metodológico, de modelo, de epistema, ou ainda a noções de estrutura absoluta de pressupostos, muito usada no meio científico e da qual estamos nos distanciando. Quando surge um novo paradigma significa que o anterior a este não está dando conta da compreensão de uma dada realidade. Para Kun (2005), “após uma mudança de paradigma o cientista trabalha num mundo diferente”. ( p. 159) Podemos então considerar que um novo paradigma nos remete a uma nova forma de olhar a realidade? Seria uma nova maneira de compreender e refletir sobre determinado contexto? Acreditando numa resposta positiva, temos no paradigma um norteador para a compreensão de fatos, manifestações, acontecimentos e questionamentos que se colocam nos nossos fazeres cotidianos, e neste caso no cotidiano escolar, pois um novo paradigma implica numa definição nova e mais rígida do campo de estudos ( Idem,p.39) O avanço do conhecimento científico (principalmente da microfísica, da química e da biologia), ao longo de décadas, tem levado à crise o paradigma dominante (Santos, 2003) que fundamenta-se numa razão fechada, de simplificação , generalização e disjunção, negando a complexidade da ciência clássica. Este paradigma separa a realidade em fragmentos, rejeita o acaso, a desordem, o singular, a incerteza, a ambigüidade e o contraditório. Estes são termos que se apresentam no contexto da grande maioria das atividades lúdicas, principalmente nos jogos, tornando-se assim necessário compreendê-los por uma nova proposta paradigmática. Boaventura de Sousa Santos (2003) aponta como saída para a crise atual do paradigma dominante o aparecimento de um novo paradigma, que não negue o anterior, mas que transforme o “olhar” do homem para a realidade dada. O autor questiona a representação da verdade no conhecimento científico, defendendo que todo este conhecimento é socialmente produzido. A gama de implicações da racionalidade do paradigma dominante aponta um novo paradigma, por ele denominado “ paradigma emergente “, onde as ciências sociais ocupam um lugar de centralidade. Ele acredita que a concepção de conhecimento científico, que data desde o século XVI, nos deixou marcas no campo teórico que, de certo modo, ameaçam o futuro das ciências, sendo 29 necessária uma reorganização deste campo fundada num novo paradigma que tenha como preocupação o acúmulo tecnológico do conhecimento adquirido, a superação de suas carências e um olhar para os limites do rigor científico que acabam afetando drasticamente a natureza e o homem. Kun (2005) infere que a estrada de uma pesquisa é extraordinariamente árdua quando há ausência de um paradigma e, sendo o jogo uma temática geradora de inúmeras teorias ao longo de décadas, não poderia estar submetido a uma nova abordagem, principalmente no campo educacional? Não poderia ser compreendido por um novo paradigma de interface com as ciências sociais? Não seria o jogo um conhecimento socialmente produzido e por isto passível de compreensão também a nível científico? As teorias existentes ainda não deram ao jogo um lugar relevante no contexto educacional, necessitando desta forma novas visitações e novas propostas reflexivas. Considerando que em toda e qualquer sociedade a cultura lúdica se faz presente, compreendo que o jogo, enquanto prática social possibilita formas de preparar o homem para a vida e para si mesmo. Valores, conceitos, atitudes, comportamentos e sentimentos perpassam o jogo como forma de construção do sujeito enquanto ser complexo e suas relações, favorecendo aquisições importantes que o homem carrega por toda vida. Acredito, assim, que no viés de um novo paradigma possamos contribuir para a compreensão do uso do jogo no âmbito escolar, na medida em que a partir dele se emanem novos modos de pensar o homem e sua relação com o mundo e com seus pares, possibilitando uma nova forma de conceber a escola, seus atores e suas práticas. Para Santos (2003), o paradigma emergente supera as distinções entre natureza e cultura; natural e artificial; vivo e inanimado; mente e matéria; observador e observado; sujeito e objeto; coletivo e individual; animal e pessoa, se fazendo necessário conhecer o sentido e o conteúdo da superação de tais dicotomias. Para o autor, as ciências precisam se humanizar e a humanidade precisa se cientificizar, onde a compreensão da natureza lúdica humana no campo epistemológico pode, de alguma forma, trazer algumas contribuições para esta proposta. Sendo a escola, historicamente, uma instituição de estrutura racional, (re)produtiva e organizativa , fica, em nível organizacional, submetida ao paradigma da racionalidade não 30 nos permitindo compreender as pulsões humanas e os subterrâneos das relações dos sujeitos escolares. Surge, assim, a necessidade de se lançar sobre ela um outro olhar para uma nova compreensão, quando então, a proposta de um novo paradigma aparece-nos apropriada. Concebendo o homem como um ser bio-psico-sócio-cultural, entende-se seu desenvolvimento nestes aspectos como um processo contínuo de manifestações individuais e coletivas, inseridas no contexto em que vive, estando sempre submetido a alguma forma de educação. Neste sentido, não estariam os jogos compreendidos netas manifestações perpassando estes aspectos da natureza humana? Não fariam parte da complexidade humana? Não fariam parte do processo de educação? O pensamento complexo aspira ao conhecimento multidimensional, “onde a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinação, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal”. (Morin,2003p.20). Complexo, é, então, aquilo que é tecido junto13. Ao nos aproximarmos das idéias de Edgar Morin, historiador, filósofo e sociólogo francês empenhado nos desafios da pós-modernidade a serem enfrentados por um pensamento complexo, poderemos lançar sobre o jogo um novo olhar para além de sua compreensão no campo psicológico, filosófico e sociológico, tendo na ciência uma grande contribuição. Este pensador contemporâneo tem, em suas obras, instigado inúmeros educadores a uma reforma de pensamento. Para ele esta reforma está associada a um (re)pensar as instituições de ensino em todos os seus aspectos ( físico, cultural, de relações humanas , de papel social, e de relação com o meio) , visto que o neoliberalismo nas últimas décadas tem levado à uma fragmentação do saber , também escolar, e conseqüentemente disjunção homem/natureza, sujeito/objeto , corpo/alma e existência/essência . A visão racionalista e fechada do século XVIII desprezou os sentimentos, as emoções e a imaginação e fez uso de práxis educativas compartimentalizadas por meio de um conhecimento pragmático e simplificador, com excessiva disciplinarização do currículo e dos cursos. 13 Trago, na abertura desta parte do trabalho, a imagem das alunas de Pedagogia da FFP/UERJ em momentos de jogos, em que o entrelaçamento de vossos braços remeta o leitor ao sentido moriniano de complexo, o que é tecido junto. 31 A proposta de Edgar Morin para a educação do futuro, passa pela reforma de pensamento dos educadores, despertando-os para uma razão aberta capaz de reproduzir mutações e reorganizações profundas, encorajando-os a uma ética de formação do cidadão, ao uso da criatividade, da reflexão e da compreensão para entender o homem no paradigma da complexidade envolvendo a auto-organização, o inacabamento e o pertencimento à Terra. Para ele, a escola deve remeter-se à ordem acolhendo a desordem, estabelecendo união, aceitando as diferenças, o singular e compartilhando-se saberes na busca de uma reorganização permanente, onde a transdisciplinaridade envolva uma participação que respeite a natureza bio-psico-social da criança, levando-a a pensar, criar, transformar, organizar-se e ser autônoma e dependente reciprocamente de sua cultura . Associam-se a ele, autores como Iduína Mont’ Alverne Chaves, que propõe se “pensar a escola como um sistema aberto às múltiplas dimensões da realidade bio-psicosócio-cultural “ , entendendo que : “Na Educação, estamos buscando formas opcionais de compreensão da formação do professor, do cotidiano escolar, da prática pedagógica etc. Sentimos a necessidade de adotar uma nova forma de olhar a realidade educacional, de ver o mundo, o homem, a cultura, o ensino, a aprendizagem, através da óptica da inclusão, da lógica do “ser estar junto com” . O projeto de educação , ora vigente, não tem levado à qualidade que pretendemos para formação/preparação do homem para o terceiro milênio”. (CHAVES, 1999, p.124) Assim, a proposta paradigmática da complexidade de Morin vem de encontro à necessidade da escola ter um novo papel social, revendo seus saberes e fazeres através de uma mudança de sentimentos, valores, pensamentos, visão do mundo, discurso, argumentação e ação. “O paradigma da complexidade surgirá do conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que vão conciliarse e juntar-se”. ( MORIN, 1990,p.112) A realidade é complexa e para a compreendermos, nosso pensamento tem que seguir a mesma linha de complexidade. Não adianta tentarmos simplificá-la, pois que, assim fazendo, temos uma noção parcial, artificial e até mesmo tendenciosa da realidade. “É preciso ver a complexidade onde ela parece em geral ausente como, por exemplo, na vida quotidiana” ( MORIN, 1990,p.83). Em pesquisa é muito importante não esquecermos este preceito, visto que nosso interesse é investigar e compreender a realidade, retratando-a 32 tal como ela é percebida por nós. Desta forma, não se pode se desvencilhar de sua complexidade, não se pode tentar simplificar os processos que nela ocorrem. A complexidade é dialógica, “ é o princípio regulador que não perde de vista a realidade do tecido fenomenal no qual nos encontramos e que constitui o nosso mundo”. ( MORIN, 1990, p.152) Neste sentido, podemos compreender o jogo como um sistema, uma unidade que faz parte da complexidade da realidade escolar. Partindo dos princípios de Morin, considero que cada realidade consiste num sistema que é composto de relações sociais, interações, trocas simbólicas que são particulares a cada realidade em especial. Cada realidade é composta por seus próprios elementos e suas próprias significações, de forma que nos deparamos com uma gama de diversidade intensa, constituinte de um todo que, através de uma visão superficial, se mostra homogêneo, no entanto, basta que acuremos nosso olhar para percebermos a heterogeneidade que a forma: “Ao mesmo tempo, devemos considerar o sistema não só como unidade global ( o que equivale pura e simplesmente a substituir a unidade elementar e simples do reducionismo por uma macrounidade simples), mas como unitas-multiplex; também aqui estão necessariamente associados termos antagônicos. O todo é efetivamente uma macrounidade, mas as partes não estão fundidas ou confinadas nele; têm dupla identidade, identidade própria que permanece ( portanto não redutível ao todo), identidade comum, a da sua cidadania sistêmica”. ( MORIN, 1996, p.260) Uma unidade é composta por diversidades. Para que o todo seja formado como um conjunto único, uma “realidade coesa”, é necessário que haja diversidades que sejam contestadas, negociadas, interagidas pelos elementos do sistema. Na constituição de uma unidade, ou seja, de um sistema – em particular, relações sociais estabelecidas em atitudes lúdicas -, as características peculiares de cada indivíduo, suas vivências, convicções e crenças se colocam em choque. Vemos então a diversidade que forma a unidade. Pode-se, então, conceber o jogo como conjunção do uno e do múltiplo -unitas multiplex- (MORIN, 1990, p.18), que unifica abstratamente sem anular a diversidade, ou, 33 pelo contrario, justapõe a diversidade sem conceber a unidade, tornando-se um sistema aberto14 O ato de jogar envolve ordem (a obediência às regras estabelecidas pelos participantes), desordem ( a tática e as adaptações técnicas dependentes de uma situação própria do jogo), a interação entre os participantes ( quanto maior , melhor o resultado do jogo) e a reorganização ( um jogo nunca é igual ao outro, ele tem tempo e espaços próprios exigindo a cada instante um novo modo de agir). Tem-se, assim, o tetragrama de Edgar Morin (1996,p.204). Desordem Interações Organização Ordem Uma fórmula paradigmática que nos permite conceber o jogo de formações e transformações na complexidade do próprio ato de jogar. Na atividade lúdica cada termo do tetragrama precisa do outro para se constituir. São concorrentes, inseparáveis, complementares e antagônicos, estabelecendo o “ princípio dialógico” de Edgar Morin(1996) . O jogo aparece, assim, tal qual o conceito de sistema deste autor, onde a relação todo-partes (o jogo em si e seus participantes) depende de interações e organizações. A organização do jogo é o conjunto das interações nele ocorridas, assim como a organização de um sistema é o conjunto de suas interações, onde se concebe a organização como uma reorganização permanente do sistema que tende a desorganizar-se. Como cita Edgar Morin, “ trata-se de uma organização auto-geno-feno-reorganizadora” (Idem , p.266) A organização deste paradigma não substitui a ordem, mas a associa e a introduz simultaneamente com a desordem, pois a organização cria a ordem e também a desordem, 14 Ver teoria dos sistemas em Morin, 1990. 34 onde o determinismo sistêmico pode ser flexível, comportar suas zonas de aleatoriedade, de jogo, de liberdade (Idem, p.267). Não há jogo sem aleatoriedade, os fatores ditos como sorte ou azar estão sempre presentes, a incerteza do placar está sempre por vir. Por melhor que seja a técnica e a tática de um jogo, a liberdade do jogador ganha espaço, o que torna imprevisível cada jogada onde o rendimento do jogo depende diretamente das interações entre seus participantes. O pensamento complexo integra o pensamento simplificador, e com todas as regras estabelecidas no jogo temos as incertezas como formas de (re)organização. A cada momento que algo desestrutura a equipe (o sistema) o técnico ou mesmo os jogadores necessitam de tempo para buscar a reorganização, uma retroação estabelecida no retorno ao ato/jogo “ retroagindo sobre a causa e tornando-se causal” (Idem , p.312), e, no entanto, reguladora da (re)organização do jogo. O acaso (sorte) conduz a uma estratégia e as táticas que são estabelecidas no ato de jogar. “A estratégia pode modificar o roteiro de ações previstas, em função das novas informações que chegam pelo caminho que ela pode inventar” (Idem, p. 220) . Todos os jogadores se utilizam de estratégias mais ou menos refinadas, no que acompanhamos o pensamento de Morin: “...imaginamos nossas ações em função das certezas (ordem), das incertezas (desordem e eventualidades) e das nossas aptidões para organizar o pensamento (estratégias cognitivas, roteiro da ação) e agimos modificando , eventualmente, nossas decisões ou caminhos em função das informações que surgem durante o processo . A ação, vamos pensar nisso, só é possível se houver ordem, desordem e organização. Ordem demais asfixia a possibilidade de ação. Desordem demais transforma a ação em tempestade e ela passa a ser uma aposta ao acaso”. (1996, p.220). As atitudes num jogo são tecidas com o fio do acaso misturado ao fio da necessidade. As atividades lúdicas, a brincadeira e os jogos são movimentos de associação entre o todo (o jogo em si) e as partes (os jogadores), sendo impossível conhecer os jogadores (partes) sem conhecer o jogo (todo), como conhecer o jogo (todo) sem conhecer particularmente os jogadores (partes) (Idem, p. 259), formando-se, assim, um circuito ativo ( a duração de uma atividade ), onde se concebe que a diversidade organiza a unidade, que organiza a diversidade (Idem, p.261). 35 Para Edgar Morin (1996), o caráter complexo das relações todo/partes, o princípio unitas-multiplex, é assim formulado: - “o todo é mais do que a soma das partes” (o jogo enquanto macro-unidade) - “o todo é menos do que a soma das partes” (se os jogadores não interagirem o objetivo do jogo se perde) - “o todo é mais do que o todo” (o jogo retroage sobre os jogadores que, por sua vez, retroagem sobre o jogo num dinamismo organizacional) O paradigma da complexidadde como referencial de compreensão das funções do jogo, das relações nele estabelecidas e da construção dos sujeitos, é de fundamental importância para compreensão do valor da ludicidade no espaço escolar. Através do entendimento das operações que envolvem as atividades lúdicas, da sua relevância na formação da personalidade dos indivíduos, na socialização e nas manifestações culturais nelas contidas, podemos dar-lhes o lugar de destaque no processo ensino-aprendizagem. As brincadeiras e os jogos são fundamentais para as crianças, pois envolvem um trabalho de elaboração e de ação, possibilitando as relações interpessoais, uma relação com o vivido e a transgressão do real, o “lugar sagrado” de Huizinga (2004) e o mimicry de Caillois (1990). Exige também, o vínculo às regras estabelecidas e a possibilidade de recombinações criativas das experiências, assim como a apropriação e troca de códigos culturais. É uma mistura de realidade e fantasia em que o cotidiano toma outra aparência adquirindo um novo significado. O pensamento complexo nos leva a compreensão deste processo lúdico onde está presente uma rede de interações tecida com encontros, turbulências, determinações, associações, combinações, certezas e incertezas, ordem e desordem. A criança em contato com estas experimentações de forma lúdica vai criando a possibilidade de construção de seus modos de pensar, agir e sentir o mundo. Desta forma, o jogo nasce na cultura como nos propõe Brougère (1998). Pensando a escola como um sistema aberto às múltiplas dimensões da realidade do educando, poderá o jogo no paradigma da complexidade, ser compreendido como objeto transdisciplinar porque faz parte da auto-formação do indivíduo, conduzindo-o ao aprender a aprender, desta forma circulando no processo ensino-aprendizagem. 36 “Com efeito, a natureza interactiva do brincar das crianças constitui-se como um dos primeiros elementos fundacionais das culturas da infância. O brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da aprendizagem da sociabilidade”. (SARMENTO IN: CERISARA, 2004, p.9). As propostas de articulação das disciplinas, a transversalidade, ou como nos coloca Edgar Morin (1996) a “ inter-trans-poli-disciplinaridade” , possibilitando o livre trânsito entre os saberes e a criação de outros espaços /tempos de conhecimento, nos levam ao rompimento das fronteiras disciplinares e a criação de redes de relações , de intercâmbio de saberes de comunicação e de conhecimento que permitem aos professores/educadores buscarem alternativas criativas de ações metodológicas em suas práxis escolares, e estes acabam por inúmeras vezes recorrendo à jogos educativos. Cada vez mais a pedagogia e suas matrizes nos levam, movidos pela curiosidade epistemológica, a criar possibilidades para produção e (re)construção do conhecimento no campo da educação/ludicidade . Socioantropologia: o jogo como prática do cotidiano. “ É possível compreender a vida social, e, se for, de que modo? ” Michel Maffesoli (1998) O sociólogo francês contemporâneo Michel Maffesoli tem se mostrado um pensador inquieto com as questões comportamentais do homem em sociedade. Seus estudos já abrangem países como o Brasil, e, com um olhar atento e livre de dogmatismos, este autor se lança à projetos explicativos sobre a sociedade brasileira. Em constante diálogo sobre a pós-modernidade com pensadores nacionais, Maffesoli visitou diversas vezes o Brasil revelando ter por este país um profundo apreço. Passou por São Paulo, Rio 37 de Janeiro, Recife, Fortaleza e outras cidades fundamentando-se na temática sobre a violência cotidiana. Em outubro de 1996, durante a Semana do Pensamento Francês realizada no Rio de Janeiro, quando lançou sua obra No fundo das aparências15, formou um grupo de estudos com Jean Baudrillard e Edgar Morin cujo objetivo pautava-se na busca de soluções para os desafios da pós-modernidade, sobretudo, focando as formas de manifestações e de relações sociais, chamadas por ele de tribalismos. Em entrevista ao Jornal do Brasil, caderno B de 11 de outubro de 1996, ( In DaCosta, 1997) Michel Maffesoli afirma que “ A pós-modernidade escapa ao racionalismo de muitos autores . Os mega-shows de música e os jogos de futebol e outros esportes mostram que a paixão e o afeto estão em primeiro plano, em muitas manifestações sociais hoje”(p.10) apontando que o pós-moderno tem perfil emocional. Cientista social, catedrático de Sorbonne (Paris V), seguidor de Gilbert Durand, do qual foi aluno, Maffesoli se aventura nas entranhas das sociedades contemporâneas tentando compreender o amálgama e a efervescência das relações sociais. Sua perspectiva epistemológica aponta uma cultura dos sentimentos baseada na emoção, nos afetos, no estar-junto, nos prazeres das relações e numa socialidade para além dos valores racionais, indo de encontro a uma cultura baseada em relações táteis, em formas coletivas de empatia que se inscrevem no presente vivido coletivamente. Conhecido na pós-modernidade como sociólogo da orgia social, Michel Maffesoli privilegia em suas obras os gestos mais banais, o viver cotidiano, as festas, os ritos, os jogos, as associações, os grupamentos que ele denomina de tribos16 . O olhar de Maffesoli se volta para uma realidade mais do que qualquer teoria que dela tente dar conta. Seu foco recai para uma estética social, compreendida no sentido da “empatia, do desejo comunitário, da emoção ou da vibração em comum” (MAFFESOLI, 1995, p. 11), ligação entre o presente, o cotidiano e o imaginário. Os múltiplos e complexos gestos do cotidiano, o movimento da vida em sociedade, traça, na visão de Maffesoli, o trajeto antropológico do homem, tema-força de suas grandes obras. A perspectiva fenomenológica de Michel Maffesoli pretende dar conta do hedonismo do cotidiano que perpassa a vida, que permite compreendê-la em toda sua 15 16 Maffesoli, No fundo das Aparências, 1999 A este respeito consultar a obra “ O tempo das tribos” , MAFFESOLI, 1987 38 concretude, seus antagonismos, heterogeneidades, paradoxos, sua dinâmica de contradições e suas ações plurais que acabam por integrar o que o autor chama de centralidade subterrânea das ações sociais, ou lado sombra, cuja inquietude carrega a emblemática de Dionísio 17. Para o autor, o desafio cotidiano é o reencantamento do mundo a partir de sua latência social, o que ele denomina de socialidade . “ Cumpre-nos voltar os olhos para esta vida de todo dia que, de modo caótico e aleatório, no tédio e na exuberância, prossegue seu caminho de modo obstinado e um tanto incompreensível” ( MAFESSOLI, 1984, p.11), o que significa mostrar como a vida cotidiana se exprime de forma fragmentada e totalmente plural, identificando as pistas que ela nos abre e as várias máscaras com as quais se adorna para prosseguir . Por trás de uma invariante de atitudes, fruto de uma visão da técnico-estrutura contemporânea, de uma representação homogênea e globalizante do dado social, existe uma socialidade multiforme, subterrânea e tenaz, uma vontade de viver a plenitude de toda existência individual e social. Constata o autor que a centralidade subterrânea implica em apreender o social por uma sociologia específica, que perceba o que está ‘por dentro’ dos fatos sociais, sejam eles significativos ou simplesmente banais. O observador precisa ir ao âmago das aparências apreendendo o subjacente a partir das aparências expressas no cotidiano. A ênfase dada a centralidade subterrânea surge como constituinte da socialidade e diz respeito a clandestinidade, aqueles pequenos fatos aparentemente sem importância, mas que têm valor em si próprios, e que para percebê-los deve-se estar atento ao instante, ao presente. Não estariam os jogos circunscritos nesta centralidade subterrânea? Não seriam os jogos facilitadores e reveladores de vivências cotidianas? Não fariam eles parte da efervescente dinâmica social? Ocupariam os jogos o ‘lado sombra’ das relações humanas? São estes questionamentos que me induzem a pesquisar o papel do jogo no meio educativo, principalmente na formação de professores, buscando o lugar que ocupa no cotidiano escolar, ou sob o olhar de Maffesoli, 17 Dionísio é o deus grego equivalente a Baco no panteão romano, deus das festas, do vinho e do lazer. Filho de Zeus e da princesa Semele, é o único deus filho de uma mortal. Passou parte de sua gestação na coxa de seu pai, pois sua mãe morreu antes de ele nascer. As ninfas cuidam de Dionísio durante a infância e, ao se tornar homem, ele se apaixona pela cultura da uva e descobre a arte de extrair o suco da fruta (BRANDÂO, 1991) 39 compreender a socialidade vivida no interior das escolas por meio das atividades lúdicas. É o cotidiano na sua dinâmica, na sua polissemia, na sua pluralidade, na sua contraditoriedade que deve ser apreendido por meio da sensibilidade do pesquisador, onde a sociologia compreensiva de Michel Maffesoli poderá dar conta de tantos questionamentos. Para Maffesoli,(1984) o essencial da trama social está na atenção aos pequenos fatos da vida cotidiana, assim como no reconhecimento dos microagrupamentos (família, associações, partidos, escolas, etc...) como reveladores desta trama de relações. A proposta de uma sociologia compreensiva, objetivando o cruzamento do social com o individual, tende a se desenvolver ocupando lugar no debate científico. Ao lado do devir racional da civilização existe o minúsculo, os nadas, carregados de intensidade que jorram da própria textura (Idem, p.153) do que constitui o cotidiano e perfaz toda a existência. O princípio lógico não conduz a apreensão do heterogêneo, “essa tendência que representa uma constante na tradição ocidental conduziu ao desenvolvimento de um pensamento estritamente científico, operando sobre o geral e deixando de lado todas as variações individuais que, por fim, constituem a harmonia social”.(Idem, p.152). Desta forma, a análise do cotidiano necessita de uma abordagem fenomenológica que deixe transparecer esses nadas, mesmo quando apenas os indica. A proposta metodológica de Maffesoli, intercruzada com o pensamento complexo de Edgar Morin, poderão nos conduzir a compreensão do ato social, da socialidade presente dentro e fora da escola, em suma, presente na vida dos jogos, na vida de todo dia, de todos os lugares. No cruzamento das ações cotidianas, na multiplicidade de sinais, valores, condutas, sentimentos, atos espontâneos e formas de convivência poderemos alicerçar os pressupostos deste trabalho na busca dos sentidos do ato de jogar, pois “ o lúdico, é uma maneira de dizer a sociedade, é uma maneira que tem a sociedade de se dizer” (MAFFESOLI, 1984, p.145) . Com olhar de contemplador do mundo, Maffesoli observa que o movimento da trama social se dá por conta de uma energia irreprimível que garante seu equilíbrio, fundamentando-se no desejo de viver o presente, na aceitação do destino, no instinto do coletivo e na dimensão do fantástico compreendidos na esfera imaginativa. Propõe o autor que se valorize a formas anódinas, aparentemente insignificantes de se viver o dia-a-dia 40 para a compreensão da estrutura do corpo social, alertando para uma estreita relação entre o sonho e o pensamento, apontando que o primeiro, enquanto faculdade onírica, fica subjugado a um plano inferior em nossa sociedade nos levando a crer que, embora a força da imaginação ocupe um papel importante na estruturação da vida coletiva, a ela é atribuída pouca relevância, principalmente no contexto educativo. Para o autor, na constante história da humanidade “os poderes dormem em paz, enquanto ninguém pode mais, não sabe mais ou não ousa mais sonhar” (MAFFESOLI, 1995, p.11). Entendendo o ato de jogar como um ato de realização de sonhos e fantasias, portanto pertencente à faculdade onírica dos homens, cabe-nos compreendê-lo pela ótica maffesoliana, que mergulha na teia das manifestações cotidianas em busca do fantástico, do efervescente, das banalidades que dão o tom das relações entre os homens em sociedade. A parte imaginativa de uma sociedade, segundo Michel Maffesoli, sempre agiu poderosamente em todo lugar sobre os homens, cabendo assim aos investigadores, cientistas sociais, explorar este vasto domínio do imaginário vivido no seio da vida corrente, mesmo contra as resistências que se postem frente a este empenho. Isto não se circunscreve na órbita do irracional, mas sim do não-lógico, não-racional, cuja pregnância social não pode ser negada. A intenção do autor não é a de produzir ou de revelar verdades quanto aos desafiadores problemas sociais, mas, sobretudo, “colocar os problemas, mais do que lhes dar soluções” (Idem, p.12), não se concluindo jamais as análises que se façam, pois o investigador social é sempre tributário de sua época e do foco que atribui as suas investigações, por isso o objeto do estudo no campo social não é jamais explicável em sua totalidade, pois têm nuances próprias e é dependente das características que lhe atribuem no processo investigativo. Direcionar o foco para o imaginário, para o sonho, para os atos complexos, banais e corriqueiros do cotidiano, é, sem dúvida, um desafio investigativo que me proponho a seguir, acompanhada das grandes idéias trazidas por Edgar Morin e Michel Maffesoli. Para Maffesoli (1995), numa sociedade pautada em valores cartezianos e racionalistas, esta linha de investigação do comunitarismo, do cotidiano, do localismo, do presente e das banalidades da vida e certamente do imaginário, não gozam de muito prestígio acadêmico, mas para o autor “ a saturação dos valores da modernidade tende a dar lugar a valores alternativos, de contornos ainda imprecisos , mas cuja eficácia não se 41 pode negar” ( idem, p.15). Neste sentido, Maffesoli alerta para a ‘intuição’ do pesquisador, que, antes de mais nada , deve ser entendido como um ‘farejador social’. “ Isto é, alguém que saiba reconhecer que, no devir cíclico das histórias humanas, o instituinte, aquilo que periodicamente (re)nasce, nunca está em perfeita adequação com o instituído, com as instituições, sejam elas quais forem, que sempre são algo mortíferas. De certa forma, a intuição como forma de antecipação”. ( MAFFESOLI, 1998,p.131) A proposta de uma abordagem compreensiva abre espaço para a intuição, considerando a dimensão sensível da existência humana e cria a possibilidade de entendimento entre as relações do instituído com o instituinte. A modernidade foi marcada por um ideal democrático e a pós-modernidade tende a substituí-lo pelo ideal comunitário, que em estado re-nascente é elaborado na dor e na incerteza, na alegria e na tristeza dando sentido a elementos arcaicos soterrados pela racionalização do mundo onde se apresentam materializados pelas tribos, festas, ritos, efervescências sociais que afloram para o bem ou para o mal ( Maffesoli, 1995). Sendo assim, surge algo de transe arcaico que tem por função resgatar e reforçar o estar-junto dos que partilham dos mesmos mistérios, expressos nas manifestações desportivas, festivais, shows e eventos que permeiam a vida social. Com isto o autor quer dizer que: “ o vínculo social não é mais unicamente contratual, racional, simplesmente utilitário ou funcional, mas que integra uma boa parte de não-racional, de não-lógico, e exprime isso em efervescências de toda ordem que podem ser ritualizadas ( esporte, música, canto) ou, de modo mais geral, são espontâneas.” ( MAFFESOLI, 1998,p. 136) O ideal comunitário, carregado de afetos dos que o partilham, revela-se em forma de solidariedade, generosidade e cumplicidade que são elementos importantes da socialidade de base, onde se busca viver uma forma de estar-junto para a realização de uma sociedade, não necessariamente perfeita no porvir, mas que preza o hedonismo do presente. Sendo o jogo uma das atitudes do homem que se vincula ao prazer, a satisfação de estar-junto, ao companheirismo, aos antagonismos (competição), as complementaridades (equipes), faz-se presente cotidianamente, sobretudo entre crianças, levando-nos no campo da educação a investigá-lo com um olhar sensível, capaz de compreendê-lo como fenômeno social e cultural onde o brincar/jogar faz parte do aprendizado dos indivíduos, 42 levando-os a vivenciar emoções e situações próprias da natureza humana. Os sentidos do ato de jogar extrapolam a racionalidade com que a escola tenta lhes impor, ou seja, como atividade recreativa e compensadora das demais disciplinas, parte do instituído. O jogo também se inscreve na esfera do não-racional, não lógico, do desejo humano, do latente, do instituinte, mas nem por isso deixa de ser importante no processo de formação do homem. Para Maffesoli, a sensibilidade que sustenta as diferentes ações do homem pertence a “ cultura do sentimento” que nos coloca diante de um “mundo imaginal ”, entendido como um conjunto complexo no qual as diversas manifestações da imagem, do imaginário, do simbólico, do jogo das aparências ocupam, em todos os domínios, um lugar primordial (MAFFESOLI, 1995, p.17). O jogo perpassa o imaginário, o simbólico, os mitos e outras instâncias do mundo imaginal, sendo assim, é passível de compreensão e contemplação com um olhar guiado pela sensibilidade. A proposta do autor, sobretudo na obra “A contemplação do mundo”18, compreender o ideal comunitário pautando-se nos conceitos de estilo e imagem. é O primeiro remete-se aquilo que define uma época, aquilo que indica um tempo traçando um quadro onde se exprime a vida social em dado momento. É por meio de determinação do estilo de vida de uma época, de uma sociedade ou de um grupo, que se atinge o conhecimento da socialidade, vista pelo autor como a alma da coletividade. A efervescência própria de cada grupo em sociedade acaba por determinar o seu estilo. Nas concepções sócio-históricas sobre jogos percebe-se o tom dado a esta prática lúdica em função dos estilos sociais em diferentes épocas e sociedades, passando de atividade natural a um utilitarismo seja em nível científico ou educacional19. Quanto à imagem, Maffesoli compreende que esta se toma como religante, surgindo ilustrada como ‘objeto’, objeto que não isola, mas que é vetor de comunhão - objeto imajado - (1995 p.18). A imagem, enquanto signo transfigurador, pode conduzir o imaginário provocando uma projeção na realidade, expressando assim, sob múltiplas formas, o viver cotidiano. O poder das imagens permite a vivência dos sentidos sociais. “ A sensibilidade fenomenológica ou a perspectiva imaginal permite, por um lado, estar-se atento aos objetos e/ou aos eventos por si mesmos, em toda sua concretude, sua presença e sua dinâmica própria”. (MAFESSOLI, 18 19 Maffesoli, A contemplação do mundo, 1995 A este respeito ver o Capítulo 2 deste trabalho. 43 1995, p.95). A imagem faz participar, sentir em comum, o que caracteriza o estilo estético que religa os indivíduos pelo poder do imaginário social. Na concepção de Maffesoli, o estilo, sendo revelador da complexidade social, pois é a cristalização de uma época em que se vive, manifesta-se nas artes, no comércio, na produção de bens e mesmo nas relações sociais caracterizando os valores da sociedade e sua época. Admite o autor que o estilo carrega um princípio de unidade, um processo de interação das diferentes instâncias (arte, política, economia, educação, esporte). O estilo projeta o pensamento e o sentimento do coletivo partilhado por uma mesma cultura durante um período. “ Em certos momentos, e este foi o caso das sociedades tradicionais, predominava a estética, e somente tinham importância as referências ao espaço, à forma, ao território e ao corpo. Há outros, entre eles a modernidade, em que o que predomina é a dinâmica. Neste caso, apenas a história, o desenvolvimento, o crescimento, o futuro e suas diversas conseqüências são levados em conta e servem de referências às diferentes construções racionais que os justificam. Há um terceiro caso, ao qual se pode incorporar a pós-modernidade, que ao mesmo tempo, acentua os invariantes, as constantes, no que possuem de estático, sem negligenciar as modulações, as variações, com sua dinâmica” ( MAFFESOLI, 1995, p.38) A partir destes pressupostos, busco compreender o sentido dos jogos na pósmodernidade, num estilo que coloca em foco o coletivo, o afetual, os sentimentos e as emoções partilhadas, ou seja, onde predomina um estilo estético na visão maffesoliana. Para Michel Maffesoli, as civilizações modernas buscam a afirmação de suas maneiras de ser tradicional, de acentuação de costumes locais, de buscar solidariedade, comunitarismo, vivendo uma nova pulsão estética nos modos de sentir, pensar e agir cotidianamente, um novo estilo. Trata-se de uma estética da existência que será, segundo o autor, a marca da pós-modernidade. Esboça-se um novo tempo, “ em que o estilo de ver, de sentir, de amar, de se entusiasmar em comum e no presente se impõe, sem dificuldade, às representações racionais voltadas para o futuro”. (MAFFESOLI, 1995, p.35) Um tempo em que, no corpo social, o homem “dedica-se, mais ou menos inconscientemente, a reencontrar seu equilíbrio, pondo em ação suas potencialidades de fantasia, suas faculdades oníricas, os lazeres ou outras formas de férias do espírito e do corpo” ( Idem , p.41). O autor refere-se à retomada do imaginário que, (re) investindo em estruturas 44 arcaicas, recriam mitologias que restauram o equilíbrio perdido no liame social. Este novo estilo tende a integrar as dimensões oníricas, lúdicas e simbólicas que se revelam em cada momento da vida cotidiana. Numa espécie de transmutação, o mito faz renascer um estilo onde a saturação de um dado conjunto social permite que surjam outras formas de socialidade, que não fogem ao mito fundador, matriz em sucessivas transmutações. Tendo em vista o componente imaginário presente nas estruturações coletivas e individuais, tornase necessário levar em conta os arquétipos, onde se encontra a dimensão racional e a do imaginário. Arquétipo dinâmico que denota a polarização que caracteriza a cotidianidade revestida por uma carga mítica que move a socialidade de base. Para o autor, a transmutação de valores nos tem levado a socialidade que valoriza o viver coletivamente no presente, onde a vida, de forma estética, se revela na maneira de sentir e experimentar coisas em comum. “Empiricamente, isso nos remete a todas as formas de conjuntos musicais, esportivos, de consumo ou religiosos, que, embora sempre tenham existido, em certas épocas (re)encontram uma amplitude que tinha perdido, ou que tinha sido relativizada” ( Idem, p.53), onde o estilo estético passa a ser um processo de correspondência entre o ambiente social e o ambiente natural que favorece a um estar-junto empenhado em usufruir os prazeres, emoções e sentimentos comuns que se fazem sentir nas agregações, tribos, que se constituem a partir dos gostos ( musicas, sexuais, culturais, desportivos, religiosos, políticos, etc...). Este vínculo social caracteriza-se, como diz Maffesoli, por um ‘pontilhamento’ abalado por sobressaltos, mas que, contudo, não deixam de gerar uma organicidade estabelecida nas relações forçadas, violentas ou agressivas, às vezes, ou, ao contrário, relações de cumplicidade, de aliança, ou simplesmente afetivas, mas que, de uma forma ou de outra, demonstram um estilo estético. (Idem p.56). Este vínculo ‘pontilhado’ é uma das características das relações estabelecidas entre os jogadores ou entre aqueles que partilham o mesmo gosto lúdico. A partir destes conceitos, segundo o autor, pode-se fazer um inventário pelos quais uma sociedade “se diz e se vive” (p.18), pois o racional, o mecânico, por si só não dão conta da configuração social da atualidade, cabendo desvendá-la pelo emocional, pelo sentimento partilhado, pela paixão, pelos valores dionisíacos e hedonistas do humano. O jogo aparece como uma das instâncias de convívio social de fácil percepção deste estilo estético que enfatiza o sensível e o hedonismo. Compreenderemos isto melhor nas 45 palavras de Maffesoli: “ São muitos os exemplos que vão neste sentido, e a vida quotidiana nos oferece muitas ilustrações disso. Que vão das formas de simples socialidade, elaboradas nas salas de ginástica, aos vínculos estreitos que se constituem nos grupos de esportes de risco, passando pelas amizades, pelas relações induzidas pelos clubes, viagens e circuitos de grupos, sem esquecer o sentimento de pertença, que é a causa e o efeito da maneira de trajar e de outros mimetismos corporais , gestuais e de linguagem, que são bem a marca das sociedades contemporâneas” ( MAFFESOLI,1995, p.57) . Segundo o autor, frente ao mundo moderno, saturado por individualismos, por uma razão fechada e de onipotência técnica, haverá de surgir um novo estilo existencial que apela para o coletivo, para o imagético, para um estilo onde o querer-viver impulsiona para o estar-junto, onde estilo e imagem tomam lugar de centralidade. Estaríamos vivendo sob um novo signo de tom comunitário e grupal, um novo signo que clama sentimento da origem de um tempo fundador, arquetipal. Uma sociedade é constituída por um caldo de cultura que busca o retorno das imagens, do contágio emocional, os múltiplos simbolismos de identificação religiosa. Para Mircea Eliade, trata-se do eterno retorno (ELIADE, 1984). Ao imitar seus deuses, o homem religioso pode viver o ‘tempo de origem’, o tempo mítico, saindo da duração profana para a eternidade. Os fatos reatualizam um acontecimento primordial cujos autores são os deuses e seres divinos, conseqüentemente os fatos tornem-se contemporâneos dos deuses. Desta forma, o homem religioso não esquece a história sagrada e seus mitos, mesmo que estes representem o sacrifício dos deuses para a criação primeira dos atos no cosmos. As atitudes humanas passam a se justificar pela aproximação com o sagrado, com a vida em sua essência na partilha com seus pares, sejam estes deuses ou humanos. O coletivo adquire, assim, conotação de coesão, de comunhão com um ideal, com algo sagrado que transcende a própria existência. Viver coletivamente passa a ser significativo no andamento social alimentado na esfera do sagrado. Para Eliade ( Idem), este desejo de santidade é uma nostalgia ontológica que garante um eterno retorno para a purificação, com a esperança de transfigurar sua existência, tornando-a semelhante ao modelo divino. Nenhum acontecimento é único, levando os mitos a aparecerem e reaparecerem num movimento sobre si mesmos, o eterno retorno. A adoração a ídolos da música, do esporte, o fanatismo religioso-político, as tendências que norteiam os modos de sentir e agir em 46 determinados grupos, as manifestações conturbadas de grandes grupos reveladas em shows, eventos desportivos, e diferentes grupamentos (fankeiros, metaleiros, roqueiros, pagodeiros, torcidas organizadas, etc) evidenciam a tendência do coletivo de veneração, de ideologia, de sacralização. As sociedades pós-modernas, na visão de Maffesoli, vão se caracterizando por uma regularidade de retorno as idéias originais, aos mitos comuns e fundantes que potencializam a vida em sociedade. Há de se lançar atenção aos sonhos coletivos (para o bem ou para o mal), as pulsões primitivas, ao arcaísmo que na maioria das vezes se circunscreve no não-racional mas que fomenta o vínculo social (MAFFESOLI, 1995, p.25). É a circulação dos mitos que define uma sociedade, configurando-a miticamente, onde estes emergem triunfalmente na consciência coletiva, modificando a visão de mundo dominante. Estamos vivendo atualmente um esgotamento do universo mítico que modelou a modernidade, onde os deuses se retiram pouco a pouco para as profundezas do inconsciente, dando lugar a uma nova atitude imaginativa, que se desenha com a emergência de mitos. São mitos que promovem a religação natureza-cultura, conduzindo a uma ecologização do mundo, a uma naturalização da cultura e que vão dando forma aos modos de sentir, pensar e agir em sociedade. Surge um imaginário cósmico que tece uma nova trama simbólica, na qual homens, deuses e cosmos se religam em torno da natureza e de seus homens. Pautando-nos nos pressupostos de Maffesoli, o resgate a um estilo existencial do coletivo, das festas, das tribos, dos ritos e dos jogos, surge como necessidade ontológica de circularidade das origens, dos modos de ser, dos costumes, das representações que permitem que a vida se expresse em toda sua plenitude. Numa breve reflexão sóciohistórica 20 ,compreendemos que os jogos e as manifestações coletivas fazem parte das sociedades antigas onde o aprender e o ensinar aconteciam de forma espontânea, não sistematizada, fazendo parte da própria natureza de coletividade humana, ligavam-se à ritualizações. Neste sentido, podemos apontar o resgate do homo ludens na pós-modernidade, abafado pelo homo faber do mundo moderno. O espírito hedonista, a necessidade de viver intensamente o presente, são traços marcantes da pós-modernidade. A escola, enquanto 20 O capítulo 2 deste trabalho, com base na obra de Philippe Áries (1978 ) , aborda a vida em sociedades primitivas em que o aprender e o brincar caminhavam lado a lado. 47 instituição disciplinadora, sufoca o espaço lúdico em função do espaço do aprender sistematizado, do aprender programado por um currículo conteudista que, na maioria das vezes, não considera o espaço das atividades lúdicas, da brincadeira, do jogo como espaço de cognição, de aprendizagens, de vivências e experiências, principalmente porque este espaço quase sempre fica estigmatizado como lugar de prazeres, devaneios e orgia vivida coletivamente. Embate de difícil compreensão que nos leva à busca de referenciais pautados numa abordagem compreensiva. Concordo com Michel Maffesoli, que ao fazer o apelo ao coletivo , ao querer-viver -junto, não tornamo-nos nostálgicos, mas demonstramos um desejo de viver um outro estilo de existência humana pautada na cultura dos sentimentos, do afetual, das trocas, numa espécie de atração social, onde “ a solidariedade vivida é a única coisa que permite o aumento da complexidade”. (MORIN, 1990, p.136) Em diferentes épocas, a história da política, da música, das artes, demonstra uma mudança de estilo em função de uma mudança de sensibilidade. A passagem do romano ao gótico, da renascença ao barroco, são exemplos trazidos por Maffesoli (1995, p. 26). Instâncias como as educativas vêm, também, atravessando mudanças. Da educação jesuíta, passando pela Escola Nova, construtivismo e outros, somos remetidos à percepção de grandes mudanças no pensamento pedagógico brasileiro nos levando a questionar se esse tipo de educação apela para uma nova sensibilidade mítica., compreensiva. Que contribuição trará a educação para esse processo de remitologização da sociedade pós-moderna? Estariam os modos de vida, o estilo de existência coletivo dando conta de uma nova educação? Estas novas configurações míticas são trazidas para a educação? Há consonância entre o desejo coletivo e os pressupostos educativos institucionalizados? Os mitos, ritos, manifestações, representações, o que é instituinte, o que é latente para o homem ocupa espaços no contexto educacional? São inúmeros questionamentos que se apresentam, sobretudo, para os profissionais da educação, que partem para pesquisas, estudos e diálogos que possam dar conta dos desafios pósmodernos. Precisamos estar atentos a uma “lógica do instante, apegada ao que é vivido aqui e agora” ( MAFESSOLI, 1998, p.57) 48 Nesta mudança paradigmática de conceber a sociedade, somos movidos a pensar numa educação pela (para) sensibilidade, pondo em ação um pensamento que se reconcilie com a vida, pois, segundo Maffesoli, “ Há, com efeito, algo de sensível , de sensual, sensualista, numa relação com o mundo e com o outro, vivida dia a dia e assentada na experiência, seja na interior, do microcosmo, ou a outra, mais ambiental, ecológica, do macrocosmo matriarcal”. ( 1998, p.191) Michel Maffesoli nos convida a conhecer um instrumental conceitual renovado que aposta em traduzir as realidades sociais atuais. A partir da compreensão dos costumes, das atitudes surpreendentes ou banias, das relações entre indivíduos, abarcamos uma razão sensível, uma maneira de abordar o real em sua complexidade, com o que tem de imprevisível, de incerto, de antagônico, de concorrente, de efervescente e que se complementam ( Edgar Morin, 1990) Estas questões, que não passam pelos canais aos quais a modernidade nos habitou a olhar, nos levam a reconhecer que “...a verdadeira vida está no particular, no concreto, no próximo, coisas que não adiam a fruição para hipotéticos amanhãs mas, pelo contrário, empenham-se em vivê-la, bem ou mal, aqui e agora, num dado lugar e em dada sociedade” (Idem, p.191) . A pós-modernidade, deve, então, ser compreendida a partir dos sentimentos dionisíacos vividos em comum, das fruições partilhadas no aqui e agora, no espaço-tempo presente vividos em sua plenitude e concretude. Segundo tempo 49 Pieter Bruegel - Children's Games Segundo tempo __________________________________________________________________ A delegação: alguns teóricos sobre o jogo “ É ouvindo denominar e denominando atividades por esse termo que a noção de jogo se constrói para cada um de nós”. Gilles Brougère (1998) 50 O uso do termo jogo Jogo e brincadeira são a mesma coisa para muitos autores, mas entendo que há uma tênue diferença entre as brincadeiras livres que as crianças manifestam de formas espontâneas na hora do recreio e em outras oportunidades e os jogos proporcionados pelas aulas de educação física, na recreação, enquanto atividade acompanhada pelos docentes, e os jogos praticados em sala de aula com intencionalidade pedagógica (jogos educativos). Desta forma, percorrerei alguns conceitos e definições do termo com a intenção de pontuar o que entendo por jogo e de que forma será abordado na presente pesquisa. Alguns autores fizeram uma varredura sócio-cultural-histórica sobre o termo jogo. Huizinga (2004) apresenta uma pesquisa do vocábulo em línguas como o francês, o grego, o chinês e outras, salientando que não se encontra a mesma idéia e a mesma palavra para se expressar uma noção única de jogo. Há, portanto, uma abstração no conceito geral de jogo. As abordagens de Brougère (1998) também são de grande valia para a compreensão da gama de interpretações do termo e do sentido do jogo. O autor nos conduz à polissemia do termo ‘jogo’, que por si só, não demandaria nenhum esclarecimento ou elucidação, tornando-se necessário percorrer as configurações de sentido que correspondam a seus empregos e a rede de significações implícitas e explícitas resultante do uso da palavra jogo. O que significa chamar de jogo determinada situação e determinado comportamento? Devemos considerar a diversidade de fenômenos denominados jogo e a variedade de empregos metafóricos. Desta forma, Brougère nos alerta que jogo de xadrez (no sentido do objeto), jogo de engrenagens (peças de um maquinário), jogo político (estratégias de negociações), jogos olímpicos (um evento), jogo de chaves, jogo de sedução, jogo de linguagem e jogo da vida têm significados próprios que complexificam a elucidação do termo jogo. Assim, o jogo pode ser considerado como um fato social que compreende fenômenos tão diferentes que partilham o mesmo nome. O vocábulo 51 pode ser o mesmo para indicar ‘coisas’ diferentes, e, neste sentido, brincar e jogar, enquanto palavras, ficam muito próximas. A questão é procurar entender porque atividades diferentes foram, em algumas línguas, designadas pelo mesmo termo. Brougère (1998) leva-nos a compreensão do que seja jogo em diferentes culturas em função de diferentes épocas e línguas trazendo exemplos de como algumas concepções foram surgindo: para os romanos, por exemplo, os jogos divertimento; os jogos gregos têm um caráter competitivo; são mais ligados ao e nos jogos astecas o simulacro é sua função principal. Isto mostra como, na história, o jogo vai adquirindo configurações que dependem do seu uso. Para Brougère três níveis de interpretação são perceptíveis numa rápida análise léxica: 1- “ jogo é o que o vocabulário científico denomina “atividade lúdica”, quer essa denominação diga respeito a um reconhecimento objetivo por observação externa ou ao sentimento pessoal que cada um pode ter, em certas circunstância, de participar de um jogo” , o autor reconhece, assim, o que se designa por jogos políticos, por exemplo. 2- “ O jogo é também uma estrutura, um sistema de regras (game, em inglês) que existe e subsiste de modo abstrato independentemente dos jogadores, fora de sua realização concreta em um jogo entendido no primeiro sentido” . Este princípio refere-se ao jogo de dama, de xadrez, de futebol, jogo da velha e tantos outros21. 3- “Jogo entendido como material (objeto) que se utiliza para jogar/brincar, mais associado ao termo brinquedo com maneiras de jogar prescritas por regras” (1998, p.14). Dentre estas concepções apresentadas acima: atividades lúdicas (ligadas ao prazer), sistema de regras (competição e concurso) e brinquedo (objeto), aproximo-me dos dois primeiros conceitos para compreender o jogo nesta pesquisa, pois o caráter do jogo associado ao prazer e à competição, quando se trata de recreação, são recorrentes no campo educacional, o que não significa que o jogo, enquanto objeto,deixe de estar implícito nas atividades lúdicas aqui tratadas, mas, no entanto, não são o foco específico do presente trabalho. 21 De forma ilustrativa, trago a imagem do quadro Children’s games de Bruegel, na abertura desta parte do trabalho, nos levando a refletir quanto ao uso do termo (game) para as atividades retratadas que envolvem tanto jogos, como brincadeiras ( se é que podemos distinguir um termo do outro ou mesmo uma atividade da outra) 52 Como sugere o autor, podemos pensar na sobreposição destes conceitos, e, sendo assim, no sentido de situação lúdica, há jogo tanto quanto no sentido de sistema de regras. É, então, na justaposição destes conceitos que compreenderei o jogo e a busca de sentidos do ato de jogar, de modo a se refletir sobre a relação jogo e educação, pois pretendo investigar como o aluno-professor utilizará o tempo destinado à recreação na escola ou como trabalhará com jogos em sala de aula ou em outros espaços, logo com atividades lúdicas propostas e com um princípio norteador para seu funcionamento, utilizando ou não um objeto para jogar. A diversidade do uso que se faz da palavra jogo é fonte de riquezas, mas também de indeterminações. “A noção de jogo como o conjunto de linguagem funciona em um contexto social; a utilização do termo jogo deve, pois, ser considerada como um fato social: tal designação remete à imagem do jogo encontrada no seio da sociedade em que ele é utilizado”. (BROUGÈRE, 1998, p.16). Desta forma, acompanhando o pensamento de Brougère, optei por compreender o jogo como atividade lúdica que implica num sistema de regras, ou seja, com padrões préestabelecidos para seu funcionamento. Sendo assim, o jogo se difere da brincadeira, pois nestas as regras vão surgindo no seu desenrolar. Uma criança pode brincar de casinha com regras, mas elas vão se dando na medida da necessidade. Existe algo pré-estabelecido que se refere mais ao papel que vão representar (mãe ou filha, por exemplo) e a resignificação dos objetos (folha de árvore para comidinha, por exemplo), mas são formas espontâneas de comportamentos do próprio ato do brincar, e não exatamente regras. Normalmente não há competição na brincadeira e esta pode ser interrompida e retomada a qualquer hora, podendo entrar outros participantes a qualquer momento. Esta é uma das diferenças que aponto como facilitador para compreensão do que vou aqui tratar por jogo. O jogo é algo de que todos falam, que todos consideram como evidente e que ninguém consegue definir. “Em suma, cada sociedade determina um espaço social e cultural onde o jogo pode existir legitimamente e tomar sentido “ ( Idem,p.49) Brougère compreende que “ o jogo do qual se fala é o jogo tal qual é pensado por nossa sociedade e não parece haver outra realidade além da palavra na diversidade de seu uso” (Idem, p.17). Para o autor, um termo pode ser empregado dependendo do 53 entendimento que tenha o grupo social que vai tratá-lo. Deve existir um sentido para o conjunto de seres que vão falá-lo e pensá-lo, logo, depende de uma atividade mental que remeta a idéia que se tem do que é jogar. Huizinga (2004) analisa esta questão salientando a variedade das línguas nas quais não encontramos um conceito fechado sobre jogo. O autor busca a lógica própria de cada língua, não vendo o jogo como uma noção em si, como conceito isolado. “Ao falarmos do jogo como algo que todos conhecem e ao procurarmos analisar ou definir a idéia que essa palavra exprime, precisamos ter sempre presente que essa noção é definida e talvez até limitada pela palavra que usamos para exprimi-la. Nem a palavra nem a noção tiveram origem num pensamento lógico ou científico, e sim na linguagem criadora, isto é, em inúmeras línguas, pois esse ato de “concepção” foi efetuado por mais do que uma vez”.(Idem, p.33) No espaço escolar, a palavra jogo nos remete a inúmeras concepções: o jogo desportivo das aulas de educação física, os jogos populares, os jogos livres onde as crianças se auto-organizam, os jogos com conteúdo de uma disciplina, os jogos dos horários de recreação, os jogos de computador e tantos outros. Considerarei, neste estudo, esta gama de concepções como jogos que estão presentes no contexto educacional, dotados de um sentido pedagógico e fazendo parte de uma cultura que se revela neste espaço. O interpretarei como movimentos instituintes, naturais e espontâneos que brotam na cotidianidade, principalmente da infância. Deparando-nos com uma gama de concepções que envolvem a palavra jogo, podemos nos aproximar da compreensão de que o jogo tem uma estrutura organizativa maior do que a brincadeira. O ato de brincar é mais descompromissado, enquanto que o jogo, embora podendo ser também uma brincadeira, exige padrões de comportamento mais rígidos, o que, no entanto, não chega a engessá-lo como um sistema fechado, que não permita modificações e reorganizações. Um jogo de futebol o é no campo, na quadra, na várzea ou no pátio da escola. Desta forma, compreendo algumas distinções entre jogo e brincadeira, principalmente nos animais. Um jogo se repete inúmeras vezes com tempo e espaço próprios, não tendo um momento ou uma jogada igual a outra, mas preserva características próprias, enquanto que a brincadeira , principalmente a dos animais, não obedece a um regulamento rígido. Os animais brincam, mas só os homens jogam. O não morder, o não 54 machucar, estão mais próximos do instinto de preservação do que da noção de regras, visto que os jogos envolvem esquemas mentais (técnicas e táticas) que a ciência ainda não descobriu se fazem parte das estruturas cognitivas dos animais. Brougére, pesquisando o sentido do termo jogo, adverte-nos que em francês “ jeu” está associado à brincadeira e em português a atividades lúdicas com regras , enquanto que o termo brincadeira em nossa língua remete-nos mais para atividades lúdicas infantis. Esta noção apresenta-se adequada para o entendimento do uso do termo ‘jogo’ nesta pesquisa. Desta forma, podemos nos referir tanto a jogo quanto a atividades lúdicas expressando, assim, um mesmo sentido. A abordagem nominalista do uso da palavra jogo expressa um relativismo que autores como Huizinga, tentam dar conta da idéia de jogo apontando a variedade das linguagens nas quais se encontram as diferentes noções de jogo. Uma só palavra pode, então, ser tão restrita e ao mesmo tempo tão ampla. A investigação lingüística apresentada por Huizinga não relativiza a noção de jogo e sim busca validá-la, como diz Brougère. Sendo a língua um aspecto da cultura, o problema passa a ser menos lingüístico e mais cultural. A pluralidade de sentidos para o termo jogo, longe de impedir seu uso, possibilita sua utilização dentro de um contexto explicitado, como é o caso da presente pesquisa. Concepções históricas Uma trajetória reflexiva sobre as implicações da ludicidade na formação de professores e conseqüentemente em suas práxis educativas, nos leva a busca de caminhos que exigem algumas visitações, revisões, construções e reconstruções teóricometodológicas. 55 Demarcarei, assim, alguns referenciais como perspectivas teóricas para início de uma investigação reflexiva. Da liberdade à moralidade Para compreendermos o valor e a relevância do jogo na vida humana, torna-se necessário entendermos o seu processo de desenvolvimento e sua origem. Edgar Morin, autor francês de inúmeros estudos sociológicos que perpassam questões culturais, políticas econômicas e históricas, nos faz ver que a trajetória do desenvolvimento humano, desde a pré-história, torna-se uma ciência fundamental da ‘hominização’22,desde o aparecimento de novas espécies ao desaparecimento das precedentes, levando o homem, através de caracteres fisiológicos e de complexificação social, ao surgimento da linguagem e da cultura. Adquirimos um patrimônio de saberes, know-how, crenças, e mitos transmissíveis através de gerações: “a hominização teve início há milhões de anos e adquiriu um caráter não apenas anatômico e genético, mas também psicológico e sociológico, para tornar-se cultural, a partir de um certo período. A hominização resulta em num novo ponto de partida: o homem”(MORIN, 2004, p.39). Compreendendo este homem como homo complexus, abordarei sua faceta lúdica. Partindo-se deste contexto, sabemos que culturalmente o ato de jogar é tão antigo quanto o próprio homem, fazendo parte da condição humana que sempre manifestou impulso para o jogo. (HUIZINGA,2004). Isto pode ser observado nas sociedades mais arcaicas, pois, mesmo as atividades que visam às necessidades vitais primitivas são assumidas com caráter lúdico. À medida que o homem primitivo foi desenvolvendo habilidade para o trabalho é que sua ludicidade passou a ser controlada. O homem, enquanto sujeito bio-psico-socio-cultural, se constitui de forma complexa em múltiplos homos. Temos como exemplos o homo sapiens , o homo faber e o homo ludens. Este último foi se perdendo na espécie humana em função da necessidade de trabalho do homem. O homo sapiens, de racionalidade e sabedoria faz surgir o homo faber, o homem ferramenteiro que extraiu da pedra (antes seu brinquedo) sua ferramenta 22 Processo de desenvolvimento humano nos aspectos bio-psico-sócio-culturais desde a sua gênese, passando a ter não somente um aspecto anatômico e técnico, mas também ecológico, genético, etológico, psicológico, sociológico e mitológico ( Morin, 2004) 56 de trabalho. O trabalho, assim, ocupou grande parte da ludicidade humana e o homo faber derrotou o homo ludens. Cleomar Gomes assim se refere: “Os homens só sabiam se exprimir, mas quando aprenderam a importância do trabalho, impressa na palavra instrumento - uma coisa que serve para outra coisa - deixaram de ser lúdicos, restringindo, de quebra, o seu tempo de brincar”. (GOMES, 2003, p.9) A criança nasce lúdica, sem noção do que seja trabalho, toda sua atmosfera é de ludicidade, onde o prazer acompanha suas atividades espontâneas, fazendo parte da etologia humana. Para a criança o homo ludens não sucumbiu. Os jogos e as brincadeiras podem ter sofrido inúmeras transformações em diferentes contextos sociais, mas o prazer de brincar e o impulso para jogar não mudaram. “A ludicidade constitui um traço fundamental das culturas infantis. Brincar não é exclusivo das crianças, é próprio do homem e uma das suas actividades sociais mais significativas. Porém, as crianças brincam, continua e abnegadamente. Contrariamente aos adultos, entre brincar e fazer coisas sérias não há distinção, sendo o brincar muito do que as crianças fazem de mais sério”. ( SARMENTO,2004, p.10) Desde o homem primitivo até o advento das instituições educativas, as atividades lúdicas perpassaram o contexto social e familiar de forma natural e espontânea. A evolução do homem na sociedade é que vai aos poucos desprezando o lúdico, e o que é pior, o associa ao ócio, como se este fosse pernicioso e miserável. Começa a se estabelecer o tempo e o lugar para as atividades lúdicas, para as brincadeiras e para os jogos, cabendo à escola grande responsabilidade sobre o uso deste espaço/tempo. Assim, buscarei compreender, neste recorte histórico, como o lugar do homo ludens no contexto social e como a brincadeira, o jogo e a ludicidade foram ora ganhando e ora perdendo espaços no cotidiano infantil. Philippe Ariès (1978), historiador francês, é um pesquisador da história social da família européia que privilegiou seus estudos no período que vai do século XVI até o século XVIII, onde a existência de fontes documentais mais ricas contribuiu para tal. Em sua obra “História social da criança e da família” temos um panorama da evolução dos jogos, principalmente, no capítulo “Pequena Contribuição à História dos Jogos e das 57 Brincadeiras”, onde o autor nos traz um relato histórico de grande importância, apontando como a ludicidade envolvia o cotidiano da família e da sociedade. Nas sociedades européias, a partir do século XV, analisada por Áries (1978), podese perceber que as relações sociais eram estabelecidas em nível de trocas afetivas e comunicações que ocorriam fora da família, dando-se entre amigos; crianças e adultos; mulheres e homens; amos e criados e em outras relações que eram manifestadas livremente. Desta forma, o jogo aparece como facilitador destas relações por um longo período da história da sociedade européia. Os jogos eram praticados com naturalidade em toda a sociedade, independentemente da classe social e da faixa etária, fazendo parte do impulso humano para o jogo. A comunicação entre as crianças e os adultos, desde a Idade Média, provocava uma aprendizagem que passou a ser um traço dominante até o século XVII, e principalmente nos jogos, nos ritos, festas familiares e populares percebe-se este fenômeno: “era comum, do século XIV ao XVII, o hábito de confiar às crianças uma função especial no cerimonial que acompanhava as reuniões familiares e sociais, tanto ordinárias como extraordinárias” (ARIÈS, 1978, p.98) Esta oportunidade de trocas sociais era proporcionada por relações espontâneas, indistintas de diferenças de idade ou classes sociais. O cotidiano era vivido em sua plenitude. Hoje, este estilo de trocas encontra-se reduzida em nossa sociedade, e a sociologia moderna tenta compreende-las, onde quer que estas trocas se estabeleçam, mesmo que nas atitudes mais banais de convívio humano. A socialidade de todos os dias que Michel Maffesoli (1984), sociólogo francês contemporâneo nos apresenta, é o lugar onde a potência social tenta se exprimir, cujo único sentido é o de viver junto, viver coletivamente. Assim, compartilho com Nilda Teves Ferreira a idéia de que “É na nossa vida cotidiana de contornos simbólicos intensos que o jogo se assume como um fenômeno sócio-cultural impregnado e transpirado dos poros do homem moderno” (FERREIRA, s/d, p.2). Para os homens da sociedade européia dos séculos passados, o jogo era pensado como fenômeno natural vivido coletivamente que transpirava também nos poros dos homens daquela época, ou melhor, de qualquer época e em qualquer sociedade. 58 Desde o século XV, já havia registros iconográficos de representações de crianças brincando de balanço, cata-vento, cavalo de pau, pássaros presos a cordões e até bonecas, permitindo-nos imaginar como eram estas brincadeiras. Estas atividades se mantêm até hoje em diferentes culturas, apontando que os brinquedos e as brincadeiras atravessam e permeiam a caminhada humana. Dentre atividades como o canto e a dança, brincava-se de soldadinho de chumbo, jogos de pelotas (bolas) e brinquedos em miniaturas, que, nesta ocasião, também eram apreciados pelos adultos colecionadores. Áries (1978) acredita num espírito de emulação23 que as crianças tinham na época, ou seja, brincavam para viver as atividades do mundo dos adultos por meio dos brinquedos em miniaturas. Na idade moderna as bonecas e os brinquedos em miniaturas passaram a ser monopólio das crianças, e, no século XIX, então chamados de bibelôs, tornam-se objetos de colecionadores nas vitrinas. Percebe-se também que os pequenos participavam dos rituais dos adultos e das festas populares da mesma forma como os adultos brincavam com as crianças de jogos de mímica, jogos de azar e de salão (cartas, dados, dentre outros). “Parece, portanto, que no início do século XVII não existia uma separação tão rigorosa como hoje entre as brincadeiras e os jogos reservados às crianças e os jogos dos adultos. Os mesmos jogos eram comuns a ambos”. (1978, p.88). As brincadeiras também faziam parte de rituais de caráter religiosos na sociedade européia do século XVII, como nos aponta Ariès: “Existia uma relação estreita entre a cerimônia religiosa comunitária e a brincadeira que compunha seu rito essencial. Com o tempo, a brincadeira se libertou de seu simbolismo religioso e perdeu seu caráter comunitário, tornando-se ao mesmo tempo profana e individual. Nesse processo, ela foi cada vez mais reservada às crianças, cujo repertório de brincadeiras surge então como o repositório de manifestações coletivas abandonadas pela sociedade dos adultos e dessacralizadas. (ARIÈS,1978,p.89) Da idade média até o século XVII, percebe-se que as brincadeiras e o jogo, como divertimento, ocupavam a vida social desde a infância até a idade adulta. “As trocas afetivas e as comunicações sociais eram realizadas, portanto fora da família, num meio muito denso e quente, composto de vizinhos, 23 Sentimento que incita a imitar ou a exercer outrem em merecimentos; estímulo; rivalidade. 59 amigos, amos e criados, crianças e velhos, mulheres e homens, em que a inclinação se podia manifestar mais livremente. As famílias conjugais se diluíram neste meio. Os historiadores franceses chamariam hoje de “sociabilidade” essa propensão das comunidades tradicionais aos encontros , às visitas, às festas. É assim que vejo nossas velhas sociedades, diferentes ao mesmo tempo das que hoje nos descrevem os etnólogos e das nossas sociedades industriais”. (Idem, p.11). Havia então, na sociedade européia, um contexto social que cumpria desde cedo a função educativa pela vivência, pelo estar junto, até que a idade escolar se aproximasse reorganizando as formas de convivência. A idade dos sete anos na sociedade européia é fixada como marco de transformações comportamentais pela leitura moralista e pedagógica do século XVII (ARIÈS, 1978). A criança, ao entrar na escola ou começar a trabalhar, é chamada para a responsabilidade. A escola substitui a aprendizagem como meio de educação e a criança se afasta do adulto num processo que o autor denominou de enclausuramento, ou seja, a escolarização limitou as trocas sociais onde o contato com a vida adulta ficou reduzido. Foram sendo atribuídos aos jogos de salão, de cartas, de dados, jogos de azar e a dinheiro um valor moral de negatividade, principalmente para os representantes da Igreja e para os educadores no decorrer dos séculos seguintes, pois estes eram destituídos de sacrifício para o ganho financeiro. Assim, ganhava-se dinheiro fácil. Este fato afetou diretamente as práticas dos jogos, mas, por mais que um cunho moralista estivesse presente na educação dos pequenos, eles não abandonavam os jogos e brincadeiras, mostrando que a necessidade do lúdico é mais forte que as regras sociais. O homo ludens persiste em habitar o homo complexus e o homo faber tenta manter o convívio com o homo ludens. Esta transformação na ocupação do lugar social da criança levou as famílias européias à criação de laços de afeição entre os cônjuges. Pais e filhos passaram a caracterizar um novo quadro de família com preocupações quanto à educação, diferentemente da composição anterior que incluíam diversos familiares com diferentes graus de parentesco vivendo numa mesma morada, onde se aprendia e se ensinava naturalmente. Portanto, a família passou a se organizar em torno da criança, tirando-a, até então, do anonimato. Este processo originou um movimento de moralização promovido pelos reformadores educacionais católicos ligados à Igreja, às leis e ao Estado. 60 A distinção entre trabalho e lazer começa a acentuar-se, desde então, e a desvalorização dos jogos, como elemento pertencente ao cotidiano tanto do adulto quanto da criança, começa a ser percebida. Neste sentido, o homo ludens perde terreno para o homo faber, refletindo-se no contexto educativo que julga, na maioria das vezes, as atividades das disciplinas com conteúdos escolares como atividades sérias (trabalho para a mente) e atividades de jogos como atividades recreativas (lazer para o corpo e para o espírito), constituindo-se numa dicotomia presente nos tempos modernos no âmbito educacional. O caráter que os jogos vão assumindo no processo de evolução da sociedade vai relacionando-os ao divertimento, com espaço e tempo delimitados. A oportunidade do homo ludens não sucumbir por completo, frente às exigências do homo faber, restringe-se a um tempo/espaço próprios para a diversão e o lazer. “Na sociedade antiga, o trabalho não ocupava tanto tempo do dia, nem tinha importância na opinião comum: não tinha o valor existencial que lhe atribuímos há pouco mais de um século. Mal podemos dizer que tivesse omesmo sentido. Por outro lado, os jogos e os divertimentos estendiam-se muito além dos momentos furtivos que lhes dedicamos: formavam um dos principais meios de que dispunham uma sociedade para estreitar seus laços coletivos, para se sentir unida”. (ARIÈS,1978, p.94) Com relação aos jogos, que ocupavam lugar tão importante nas sociedades antigas, podemos observar que, ao final do século XVIII, lhes são atribuídos valores morais, por esta razão passam a ser controlados. Para Áries(1978) esta atitude tem dois aspectos contraditórios: “De um lado, os jogos eram todos admitidos sem reservas nem discriminação pela grande maioria. Por outro lado, e ao mesmo tempo, uma minoria poderosa e culta de moralistas religiosos os condenava quase todos de forma igualmente absoluta, e denunciava sua imoralidade, sem admitir praticamente nenhuma exceção. A indiferença moral da maioria e a intolerância de uma elite educadora coexistiram durante muito tempo. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, porém, estabeleceu-se um compromisso que anunciava a atitude moderna com relação aos jogos, fundamentalmente diferente da atitude antiga”. ( Idem, p.104) Surge, assim, um novo sentimento da infância com uma preocupação até então desconhecida de preservar sua moralidade e também de educá-la, sendo proibidos os jogos maus e reconhecendo-se os jogos bons. Mas quais seriam os bons e os maus jogos? Ariès 61 nos ajuda nesta compreensão. Os jogos de azar e a dinheiro passavam a ser considerados perigosos e sem valor moral, atribuídos principalmente pelo clero e pelos moralistas conservadores da época, pois proporcionavam uma renda que não era derivada do trabalho. Os jogos bons tendiam para o desenvolvimento motor da criança. No século XVII os jogos de exercício ou de movimentos físicos são apreciados como recreativos e aceitos como relaxamento das demais atividades escolares, como alívio do trabalho e justo repouso. A adequação dos diferentes tipos de jogos à capacidade física e intelectual das crianças foi sendo motivo de preocupação dos educadores deste período. Trata-se dos jogos que, posteriormente, passaram a compreender o objetivo principal da educação física, cujo caminho começava a se trilhado a partir das raízes européias (SOARES, 2001). No final do século XVIII, além dos jogos motores (bons) serem valorizados, sobretudo pela área médica, passam a ter valor formativo, pois o caráter disciplinador contemplaria as exigências de um exército forte em situações de guerras. Desta forma, os jogos passam a fazer parte das propostas educativas por proporcionarem o bem estar físico e moral. “No fim do século XVIII, os jogos de exercícios receberam uma outra justificativa, desta vez patriótica: eles preparavam os rapazes para a guerra. Compreenderam-se então os benefícios que a educação física podia trazer à instrução militar. Nesta época, que assistiu ao nascimento dos nacionalistas modernos, o treinamento de soldados tornou-se uma técnica quase científica” ( ARIÈS,1978, p.113). Esta foi uma das mais fortes marcas na área de educação física brasileira, cujos jogos no interior das escolas surgem como atividades de cunho moral, disciplinador e formador de corpos saudáveis. Esta evolução foi acompanhada pela preocupação com a saúde, a moral e o bem comum, onde jogos de movimento corporal contemplavam os interesses educativos bem mais do que os jogos de salão. Este foi um legado percebido até hoje em concepções sobre a educação física no contexto educacional, principalmente em suas práticas por meio de jogos. A burguesia européia que começa a surgir no século XVIII, tende a abandonar os jogos tradicionais de salão porque os nobres passam a evitar se misturar com os plebeus e, principalmente, distrair-se com eles. Esta mentalidade, no entanto, segundo Áries (1978), não conseguiu se impor completamente, só depois da consolidação da substituição da 62 nobreza pela burguesia, no decorrer deste mesmo século, é que se percebe de fato este fenômeno. Uma grande parte dos jogos antigos passou gradualmente para o repertório dos jogos infantis e populares na medida em que a burguesia os abandonava. A classe burguesa, no entanto, retoma o jogo no século XIX valorizando-o pelo esporte, ou melhor, pelas diferentes modalidades desportivas que apareceram na época, principalmente na Inglaterra. A educação física passa a ser a própria expressão física do capitalismo que surgia, integrando a construção de uma nova sociedade calcada nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, criando-se o que Soares (2001), designa por ‘social biologizado’24. O papel que o jogo passa a tomar lhe confere um aspecto de frivolidade e lazer que, por sua vez, é necessário para o espírito, para o descanso e para o melhor funcionamento orgânico. Da moralidade à racionalidade Como podemos observar, os jogos fizeram parte das sociedades antigas de forma espontânea e se naturalizaram como forma de rituais pertencentes às diferentes classes sociais e a diferentes idades. Não havia preocupação educativa, pois o aprendizado dos pequenos em diferentes aspectos se fazia em conformidade com as práticas sócias. O campo educacional, atendendo a uma visão positivista, começa a se estabelecer e coloca o homem sob novas bases, onde o cuidado refere-se igualmente aos aspectos mentais, intelectuais, morais e físicos. O jogo, no contexto social, vai, com isto, adquirindo um caráter profano enquanto prática recreativa, livre e espontânea que o remete ao nãoracional. Sua prática, mesmo que limitada aos jogos motores, se compartimentaliza no campo da educação física, não sendo abandonado por completo no interior da escola. Valoriza-se, desta forma, seu caráter motor e moral enquanto prática desportiva e atividade física sistematizada. 24 O homem biológico passa a ser o centro da nova sociedade exigindo leis próprias para o mundo físico e o humano, devendo a ciência cumpri-las. (Soares, 2001) 63 O desenvolvimento das ciências matemáticas, no final do século XVII, contribuiu também para uma nova mentalidade com relação aos jogos, pois passam a ser aceitos com reservas por seu valor intelectual, embora continuem sendo entendidos como pertencentes ao mundo do ócio. Duflo (1999) é mais um dos autores que nos oferece dados importantes na compreensão da trajetória social dos jogos, muito embora seus estudos estejam mais voltados para os jogos que os moralistas da sociedade européia do século XVIII denominavam de ‘jogos maus’ ( jogos de sorte, apostas e disputas), mas que pertenciam tanto ao contexto social quanto ao educacional. As citações históricas que apresento a seguir estão na obra de Duflo (1999) e nortearão nosso entendimento sobre as diferentes concepções que o jogo veio adquirindo ao longo da história. As noções sobre jogos nos séculos passados deixaram suas marcas através de alguns pensadores clássicos que Duflo (1999) resgata para compreensão do desenvolvimento do jogo no contexto social. Aristóteles, por exemplo, entende que o jogo não é um fim em si mesmo, mas uma atividade de descanso para compensar o tempo de trabalho25. Este pensador teve, sem dúvida, um papel muito importante para o desenvolvimento da ciência no lado ocidental do mundo. Seus trabalhos constituem quase uma enciclopédia do pensamento clássico pela profundidade e variedade de seus conhecimentos que continham escritos sobre lógica, filosofia, física, astronomia, biologia, psicologia, política e literatura. Sua concepção de jogo é um norteador para reflexão de posteriores pensadores. A felicidade, para este filósofo, é um ato ao qual não falta nada, sendo o jogo uma das atividades que promove a felicidade. “O que procura, com efeito, aquele que joga, senão o prazer do próprio jogo? Eis uma ação que é desejável em si: a causa final do jogo é o próprio jogo”. (apud DUFLO,1999) Jogos e brincadeiras nas escolas sempre estiveram associados ao divertimento que, por sua vez, é associado ao prazer. Neste sentido vamos ao encontro do pensamento aristotélico quando julga que ao nos divertirmos alcançamos a felicidade necessária à plenitude humana. 25 Texto Ética a Nicômaco,X,6. 64 Tomás de Aquino, filósofo e teólogo italiano do século XIII, seguidor de Aristóteles e Santo Agostinho, já apontava que o jogo tem dupla positividade: pertence ao domínio do repouso necessário ao espírito e leva o indivíduo à alegrar-se, pois trata-se de uma atividade agradável. Para ele, o jogo deve ser praticado comedidamente, pois poderá passar do plano da recreação para o da ocupação que tenderá ao aniquilamento do homem. Pelo vício o homem torna-se “uma presa fácil da magia do ato de jogar. O que começa pelo lúdico, pelo prazer, alimentado pelo sonho, pelo desejo, pode transformar-se em vício”. (FERREIRA, s/d, p.4) Mas qual o limite do sonho humano? Como controlar os desejos do homem? Tomás de Aquino acreditava que o jogo cumpre sua função se não for praticado em excesso, daí a necessidade de auto-controle em sua prática para não levar o sujeito a angústia e ao desprazer. Mas como separar e controlar a emoção e a razão quando a atividade torna-se prazerosa ou desafiante? Qual a medida deste controle? Estaria a escola partilhando dos princípios de Tomás de Aquino ao considerar o jogo apenas relaxante e recreativo? Faria ela restrições às atividades de jogos por receio de embotar em seus alunos valores morais reprováveis socialmente? Marcas de um velho tempo nos novos tempos, e só buscando um outro paradigma para olhar o jogo poderemos compreender seus sentidos para as pessoas. Uma das observações que podemos fazer é que o tempo do jogo e o tempo das demais atividades, de um modo geral, aparecem de forma compartimentalizada no interior da escola, onde a hora de estudar e a hora de brincar têm tempos distintos. Os pensamentos de Aristóteles e Aquino são contemplados por esta lógica. O jogo deve ser controlado, mas é necessário para descanso e alegria das crianças. Para Aquino “ É preciso distinguir não só os jogos bons dos maus, mas também o bom e o mau uso do jogo”.(apud DUFLO, 1999, p.21) Gottfried Wilhelm Leibniz, pensador alemão do final do século XVII e início do XVIII, dedicado às teorias matemáticas que dominaram o pensamento social do século XVII, acreditava que as pesquisas desta área provocavam uma reavaliação intelectual do jogo: “ muitas vezes tenho observado que os homens nunca são mais inteligentes que em seus divertimentos, o que torna os jogos dignos do interesse dos matemáticos , não por eles mesmos, mas pela arte de inventar” (Idem,p.27) Com isto Leibniz dá ao jogo uma dignidade antropológica, da qual alguns pensadores tirarão partido nos séculos seguintes. 65 Com esta espécie de legitimação, o jogo tornou-se objeto do campo científico, e no rastro de Leibniz, segue Blaise Pascal, matemático francês do mesmo século, inventor da primeira calculadora aritmética, que dedicado aos jogos de dados, conduz-se ao estudo das probabilidades matemáticas que ele denominou Aleae Geometria (Geometria do Acaso). Para este cientista, não interessava fazer juízo de valor sobre o jogo, mas sim compreender porque jogam e que sentido tem o jogo para quem joga. Não apenas como cientista Pascal investiga o jogo e os jogadores, mas, sobretudo, como observador da condição humana. A teoria de Pascal sobre divertimento pauta-se na concepção sobre o movimento humano. Para ele, o divertimento é a paixão pelo movimento e o repouso completo leva o indivíduo à morte. O homem que se diverte foge das infelicidades da vida, se envolve num outro movimento para si mesmo em busca do prazer e da própria felicidade. O jogo é motivado pelo divertimento que pode gerar, ele é entretenimento no mundo moderno. O caráter recreativo do jogo, por esta concepção, prevalece como compensador das demais atividades cotidianas. Neste sentido ‘viver o jogo’ é viver um outro tempo que escapa da realidade. Nos momentos de transgressão no mundo do lazer, o jogador encontra uma saída para as limitações da vida real e a saída se alimenta de sonhos, de desejos e de fantasias que o afastam da racionalidade socialmente desejável. Assim como os jogos de sorte, os jogos de estratégias também são valorizados no contexto sócio-histórico do século XVIII. Temos, como maior exemplo, o jogo de xadrez26 que acreditava-se desenvolver mecanismos mentais e estratégias úteis em manobras militares. Hoje, os jogos de estratégia são valorizados por despertarem o jogador para o raciocínio, a inventividade, a criatividade e a capacidade de resolução de problemas, por esta perspectiva a escola passa a acatar, de certa forma, os chamados jogos educativos. Até mesmo os princípios de transgressão foram pensados também a partir dos jogos no século XVIII. Para os pensadores da época, era benéfico pensar e saber agir perante o desrespeito às regras. Em Duflo (1999), encontramos o princípio de trapaça no jogo veiculado por alguns pensadores do século XVIII: “De maneira geral, o jogo é uma escola, 26 Segundo Santos e Araújo ( 2003), o jogo de xadrez é milenar . foi criado na Índia, passou pela Pérsia e pela Arábia, chegando a Europa pelos mouros. Modificou-se as formas, as peças de jogar e os movimentos destas , incorporando-lhe aspectos dessas diferentes culturas ( In FERREIRA COSTA, 2003) 66 pois pressupõe e estimula a atenção, qualidade essencial do espírito inventivo que só o é porque é primeiro espírito atento” (Idem, p.25). Duflo (1999) aponta ainda que Johan Cristoph von Schiller, poeta e filósofo alemão do século XVIII, fundador na história da noção do jogo em filosofia, faz de sua obra “As cartas sobre a educação estética do homem” um marco importante e revelador do princípio filosófico sobre ao jogo. Segundo Schiller, “ o homem não joga senão quando, na plena concepção da palavra, é homem, e não é totalmente homem senão quando joga” (apud DUFLO, 1999, p.77) A partir desta reflexão foi atribuído ao jogo um novo olhar que gerou um marco significativo na história: o século XVIII foi o século das Luzes e das teorias sobre jogo. Buscava-se o entendimento racional do jogo como manifestação social, pois, até então, o jogo era discutido e investigado por seu valor ético e por aspectos epistemológicos da questão, onde, paradoxalmente, incentivavam e reprimiam suas práticas no contexto educacional e social em função de seus valores, ora de divertimento, ora como formador moral e físico, colocado-o assim em dois pólos distintos, independentemente do tipo de jogo que se queira pensar. Schiller (apud DUFLO, 1999) eleva a noção de jogo a um grau, até então, inigualável. Na vertente antropológica o jogo não deve ser questionado apenas por possuir um sistema de regras e estratégias, mas, sobretudo, enquanto fenômeno que implica num comportamento de impulso lúdico, o que Schiller (idem) chama de tendência ao jogo e que posteriormente Huizinga (2004) veio chamar de instinto para o jogo, sendo que Schiller não considerava esta tendência como um instinto. Não podemos dizer, segundo Schiller, que encontramos na humanidade a tendência ao jogo, mas sim deduzir que ela existe a partir de uma exploração antropológica ao longo de séculos. Entendo que o jogo é parte da condição ontológica do ser humano, sendo criado pelo homem para atender suas necessidades de ludicidade, lazer e escape. O homo ludens está compreendido no homo complexus. Na conciliação entre a razão e a sensibilidade humana surge a tendência ao jogo, como julga Schiller “O que se passa aqui é o pensamento de uma relação possível que não seja simplesmente de exclusão entre a sensibilidade e a razão , entre a passividade e a liberdade, a forma e a matéria, que cria um ser humano total , livre em sua sensibilidade e sensível em sua liberdade, um ser humano que queira a forma e seu conteúdo sensível, sem relação de 67 assujeitamento de um ao outro, mas em relação de harmonia”. (Idem, p.74) Na visão de Schiller, o jogo é síntese livre e o trabalho é disciplinar e analítico. O jogo é harmonia entre a beleza e o equilíbrio, tanto para o físico quanto para o espírito humano. O caráter de lazer, de divertimento, de seriedade e de trabalho, de Aristóteles a Schiller, vai dando ao jogo um novo estatuto no campo educacional. Para muitos docentes, o jogo na escola é um momento de lazer e suas regras levam o aluno a uma certa disciplina que é imposta pelo próprio jogo, o que torna-se um facilitador para incutir nas crianças princípios de normas sociais. No contexto educacional da atualidade, os jogos têm caráter recreativo nas aulas de recreação, nas atividades de recreio e muitas vezes, para alguns professores, nas aulas de educação física. Seu valor educativo não é percebido para além do conceito de descanso, compensação das outras atividades e valores físicos e morais. Mesmo quando o professor do ensino fundamental o utiliza com um conteúdo didático, o faz de forma a alegrar a turma, de forma a motivar os alunos para o aprendizado do conteúdo programado. As raízes da concepção do jogo da era da racionalidade ainda estão presentes no contexto educacional da modernidade, e, para tanto, é preciso um novo olhar para a descoberta dos sentidos do ato de jogar. Da racionalidade à complexidade Percorrendo as diferentes abordagens sobre a temática jogo, encontramos referências oportunas de autores que servem como janelas abertas à visões diferenciadas do tema. A partir de uma visão sócio histórica de Áries, de uma postura filosófica trazida por Johan Huizinga, da associação de jogo e educação na abordagem de Gilles Brougère e ainda com as propostas de classificação dos jogos apontadas por Roger Caillois, passarei para uma proposta de abordagem compreensiva que relacione o jogo à teoria da complexidade de Edgar Morin, compreendendo-o como um dos fenômeno sócio-culturais que atravessa a existência humana em suas práticas cotidianas, que serão aqui compreendidas também sob a ótica de Michel Maffesoli. 68 A polaridade prazer/trabalho incutida aos jogos foi, ao longo dos séculos, se acentuando no contexto educacional e levando professores a entender estes momentos como distintos, ou de forma enganosa, fazendo com que seus alunos acreditem que estão brincando quando na verdade estão cumprindo tarefas por meio de jogos. Professores passam a utilizar o jogo como atividade, mas com que sentido? Uma das maiores observações que tenho feito é que o tempo do jogo e o tempo das demais atividades, de um modo geral, têm aparecido de forma compartimentalizada no interior da escola, onde a hora de estudar e a hora de brincar têm tempos distintos, ou, quando não, para estudar de forma prazerosa é preciso brincar, surgindo assim os jogos educativos, que sendo uma tarefa ‘mascarada’, cumprem com sua finalidade de transmissão de um conteúdo. O caráter sério, não-sério mescla-se de tal forma que torna-se difícil apreender quando se está fazendo uso de uma ou outra intenção. Os sentidos dos jogos passam a ser, segunda esta concepção, divertir os alunos enquanto executam uma atividade programada, ou, enquanto recreação, compensá-los das exigências das tarefas escolares. Abre-se espaço desta forma para os jogos didáticos e para as atividades de recreação. Compreendo que, para além de se atribuir funções e objetivos para o jogo, é preciso interpretá-lo como fenômeno que revela a atitude lúdica do homem. Envolvido por regras, acasos, competição, simulacros e outras tantas instâncias ligadas à razão e a emoção, o jogo faz parte das atividades humanas, principalmente infantis, sendo assim pertencente ao campo educacional. Escola também é espaço/tempo de jogo. O jogo é campo das fruições do homem, tem sentido de evasão do real, permitindo aos jogadores vivenciarem um outro tempo/espaço, fazendo valer a liberdade e a sua criação. Vivido como em um ‘lugar outro’ (Huizinga,2004), fora da mundanidade, o espaço do jogo assume uma dimensão plena de escape como nos faz ver Ferreira: “O jogo para o ser humano tem características próprias onde imaginação/razão/emoção norteiam suas ações. Talvez seja uma das funções primordiais do lúdico para o homem: a evasão da realidade; um lugar privilegiado de tensão onde emergem acontecimentos imprevisíveis”.( FERREIRA,s/d, p.3 ) Na concepção de Brougère, o jogo se apóia na realidade para fazer dela outra. É criado um mundo imaginário levado a sério e com investimento de afetos. O jogo é um devaneio para aquém da realidade. O jogo é alimentado pelo desejo que acaba, por sua vez, contribuindo no desenvolvimento da criança, educando-a para crescer e preparando-a para a 69 realidades futuras. O jogo é analisado pelo que ele gera e não por si mesmo. Para além de se analisar o jogo é preciso que se analise o ato de jogar. Huizinga (2004) nos aponta algumas características, para ele fundamentais no jogo: o fato de ser livre; ser uma evasão da vida real; situar-se em certo limite de tempo e espaço e criar a ordem. A competição, as regras, a tensão, a incerteza e o acaso também fazem parte de suas reflexões, o que faz com que sua obra torne-se um referencial importante na relação jogo/educação. Para este autor "A criança joga e brinca dentro da mais perfeita seriedade, que a justo título podemos considerar sagrado." (Idem, p. 11). Estando o jogo intrínseco a criança, é exteriorizado pelas características extrínsecas que os jogos possuem. Fazendo parte do crescimento e do desenvolvimento do indivíduo, o jogo é inerente ao ser humano, sendo apresentado pelo autor uma nova designação para a espécie humana: "Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens [!] merece um lugar em nossa nomenclatura”.(HUIZINGA,1996, prefácio). Caillois é autor de diversas obras que incidem sobre a criação artística, literária e os mitos sociais, com grandes contribuições nas reflexões sobre Imaginário e Imaginação Simbólica no Círculo de Eranos ( Ascona- Escócia)27. Suas obras mais importantes datam do final da primeira metade do século XX28. Este pensador francês faleceu em 1978 e nos deixou um precioso registro sobre a temática jogo cujo objetivo principal é a compreensão do jogo como fenômeno sócio-cultural. Para o autor, apesar de inúmeros entendimentos, o jogo em si se relaciona aos princípios de limite, liberdade e invenção, remetendo-nos à idéia de facilidade, risco ou habilidade contribuindo para uma atmosfera de descontração e diversão, infalivelmente. O jogo opõe-se ao trabalho e ao caráter sério da vida real, portanto sendo considerado uma atividade frívola, que nada produz e que nada deixa de conseqüências na vida real. Para Caillois, este descompromisso e indiferença para com o jogo possibilitam a entrega do homem a tal atividade. “Assim, desde o primeiro instante, cada um de nós se convence de que o jogo não passa de uma fantasia agradável e de uma vã distração, quaisquer 27 Ver sobre o Círculo de Eranos a apresentação da obra Variações Sobre o Imaginário de Alberto Filipe Araújo e Fernando Paulo Baptista ( orgs.) - Instituto Piaget, 2003 28 São obras de Roger Caillois com datas da primeiras edições: Os jogos e os homens( 1958), O mito e o homem ( 1938) e O homem e o sagrado ( 1950) 70 que sejam o cuidado que nele se ponha, as faculdades que nele se mobilizem, o rigor que ele exija”. ( CAILLOIS, 1990, p.9) O autor nos adverte que mesmo sendo o jogo considerado divertimento e atividade menor, inúmeros autores de diferentes áreas e diferentes épocas fizeram do jogo uma das molas principais do desenvolvimento de manifestações culturais em cada sociedade com repercussões na educação moral, ou seja, atribuíram-lhe valores culturais e educacionais. O jogo aparece como uma noção complexa, e Caillois tenta compreendê-lo da seguinte forma: “Todo jogo é um sistema de regras que definem o que é e o que não é do jogo, ou seja, o permitido e o proibido. Estas convenções são simultaneamente arbitrárias, imperativas e inapeláveis. Não podem ser violadas sob nenhum pretexto, pois, se assim for, o jogo acaba imediatamente e é destruído por esse facto. Porque a única coisa que faz impor a regra é a vontade de jogar, ou seja, a vontade de a respeitar”. (idem ,p.11) O ato de jogar remete a idéia de movimento onde fica implícita a liberdade que deve permanecer no seio do próprio rigor do jogo para que ele conserve sua eficácia. Estar no jogo é estar livre e ao mesmo tempo preso a seu mecanismo “ o que se designa por jogo surge, desta vez, como um conjunto de restrições voluntárias, aceites de bom grado e que estabelecem uma ordem estável, por vezes uma legislação tácita num universo sem lei” (Idem,p.12). Os limites do jogo estimulam a faculdade inventiva dentro destes próprios limites. O jogo é o campo para a criatividade que objetiva alcançar a vitória, o triunfo, dependentes de fatores aleatórios (sorte ou azar) e de combinações imperiosas. O jogo é tensão dos opostos, onde há uma relação que se mantém entre um e outro, onde “essas estruturas, essas concorrências são, igualmente, modelos para as instituições e para os comportamentos individuais”. ( Idem, p.13). No próprio âmbito escolar esta tensão se faz presente fazendo com que o jogo seja ora aceito, ora negado, dependendo da intencionalidade pedagógica que lhe queiram atribuir. Para Caillois, o jogo não é aprendizagem para o trabalho. Por mais que as crianças brinquem simulando situações da vida dos adultos, não significa necessariamente uma preparação para tal. O jogo “introduz o indivíduo na vida, no seu todo, aumentando-lhe as capacidades para ultrapassar os obstáculos ou para fazer face às dificuldades” (Idem,p.16). 71 Estas análises remetem à compreensão de que o jogo leva-nos a descoberta de nós mesmos e a um brotar de atitudes que se revelam para nós e para o corpo social que nos cerca. Se a vida é um jogo, é no jogo que valores para a vida são vividos pelos jogadores. A complexidade humana se potencializa de forma prazerosa, contribuindo então para seu desenvolvimento bio-psico-socio-cultural. Sendo o jogo um estado de efervescência, fica condenado à função de não produzir nada enquanto a ciência e o trabalho capitalizam resultados que muito ou pouco transformam o mundo. Se nada produz, se é só divertimento, o que de atrativo há no jogo? Por que tantas tentativas de definições, noções e classificações? Por que é uma prática que, individual ou coletivamente, não se extermina? Caminho na busca de seus sentidos acompanhada das idéias de Caillois. “Numa palavra, o jogo assenta indubitavelmente no prazer de vencer o obstáculo, mas um obstáculo arbitrário, quase fictício, feito à medida do jogador e por ele aceite. A realidade não tem estas atenções”. (1990, p.18). Caillois, ao elaborar sua tese sobre jogo, passa por definições e classificações que poderão contribuir na busca do nosso entendimento sobre os sentidos do jogo no contexto educacional e socioantropológico. Para definir jogo o autor recorre a Johan Huizinga (2004), fazendo-lhe grandes elogios e diversas críticas. Reconhece sua presença e influência como abertura fecunda para pesquisas e reflexões, assim como valoriza a importância dada por este autor ao papel do jogo no próprio desenvolvimento civilizacional e de sua predominância nas manifestações essenciais de toda e qualquer cultura. A falha apontada por Caillois na obra de Huizinga , Homo ludens, é que esta omite a descrição e a classificação dos próprios jogos, o que remete a idéia de que todos respondem as mesmas necessidades e exprimem a mesma atitude psicológica. “ a sua obra não é um estudo dos jogos, mas uma pesquisa sobre a fecundidade do espírito do jogo no domínio da cultura e, mais precisamente, do espírito que preside a uma determinada espécie de jogosos jogos de competição regrada”. (CAILLOIS, 1990, p.23) Para uma melhor compreensão da crítica de Caillois a Huizinga transcreverei as definições deste autor usadas como base investigativa: 72 “Sob o ponto de vista da forma, pode resumidamente, definir-se jogo como uma ação livre, vivida como fictícia e situada para além da vida corrente, capaz, contudo, de absorver completamente o jogador; uma ação destituída de todo e qualquer interesse material e toda e qualquer utilidade; que se realiza num tempo e num espaço expressamente circunscritos, decorrendo ordenadamente e segundo regras dadas e suscitando relações grupais que ora se rodeiam propositadamente de mistério ora acentuam, pela simulação, a sua estranheza em relação ao mundo habitual”. (HUIZINGA,2004 p. 16 ) Passemos à outra definição: “O jogo é uma ação ou uma atividade voluntária, realizada dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana”. (Idem,, 2004, p.33) Na opinião de Caillois, a definição dada por Huizinga para o jogo é fecunda por ter detectado a afinidade existente entre o jogo e o sagrado, ou o mistério, no entanto, não pode esta relação estabelecer-se como definição. “Tudo o que é naturalmente mistério ou simulacro está próximo do jogo. Mas é também preciso que o componente de ficção e de divertimento prevaleça, isto é, que o mistério não seja venerado e que o simulacro não seja início ou sinal de metamorfose e de possessão”.(CAILLOIS, 1990, p.24) Além do que, continua Caillois, a definição de Huizinga para jogo é demasiado ampla e demasiado restrita, apresentando-o como excludente de apostas por tratar-se de uma ação destituída de qualquer interesse material. Caillois se contrapõe exemplificando: “...as casas de jogos, os cassinos, os hipódromos, as loterias que, para o bem ou para o mal, ocupam precisamente uma parte importante na economia e na vida quotidiana de vários povos, sob formas, é certo, infinitamente diversas, mas em que a constância da relação azar e lucro é assaz impressionante”.(Idem, p.24) Todavia, Caillois aproxima-se do pensamento de Huizinga na definição de que o jogo é uma atividade livre e voluntária, fonte de alegria e divertimento cujo jogador se entrega espontaneamente por puro prazer podendo a qualquer momento optar pelo abandono. Só existe jogo quando os jogadores querem jogar e jogam. Estes dois autores concordam que “o jogo é essencialmente uma ocupação separada, cuidadosamente isolada do resto da existência, e realizada, em geral dentro de limites precisos de tempo e de lugar. 73 Há um espaço próprio para o jogo” (CAILLOIS, 1990, p.26), portanto o domínio do jogo é reservado, protegido, é um autêntico espaço. Para Caillois, o jogo mesmo tendo regras e leis, substitui as leis da vida ordinária cotidiana ocupando um espaço que, para Huizinga, é considerado como um ‘lugar outro’, que permite uma atividade livre e incerta. A incerteza no jogo é que o alimenta. “A dúvida acerca do resultado deve permanecer até o fim. Quando, numa partida de cartas, o resultado já não oferece dúvida, não se joga mais, os jogadores põem as suas cartas na mesa” (CAILLOIS,1990, p.27). A previsibilidade de um resultado ou a discrepância de igualdades entre os jogadores leva o jogo à perda da ludicidade. “ O jogo consiste na necessidade de encontrar, de inventar imediatamente uma resposta que é livre dentro dos limites das regras. Essa liberdade de acção do jogador, essa margem concedida à acção, é essencial ao jogo e explica em parte, o prazer que ele suscita.” (Idem, p.28) Caillios, essencialmente, define o jogo como uma atividade livre, cuja obrigação levaria à perda da diversão; delimitada, pois tem limites de tempo e espaço previamente estabelecidos; incerta, sem resultado prévio e dependente da liberdade de inventar do jogador; improdutiva, por não gerar bens e conduzir a uma situação idêntica ao início da partida; regulamentada, pois tem uma única legislação que conta e é fictícia, por ser uma outra realidade, ou seja uma irrealidade em relação a vida normal. Trata-se, portanto, de uma atividade complexa. A infinidade de jogos de que se tem conhecimento que existam, segundo o autor, dificulta um princípio de classificação, visto que apresentam aspectos tão diversos: jogos de cartas, de destreza, jogos sociais, de competição ou de azar remetem a diferentes possibilidades classificatórias. Caillois se deterá em quatro rubricas principais conforme a predominância da competição, da sorte, do simulacro e da vertigem, chamando-as respectivamente de agôn, alea , mimicry e ilinx . Os jogos, como afirma Caillois, se inscrevem na esfera da paidia e do ludus, entendendo-se que paidia é o estado de euforia, manifestação espontânea que leva o indivíduo a flutuações de sentidos que são controlados pelo ludus, que pode ser entendido como o elo norteador do jogo, a regra que controla a euforia. Desta forma, o ludus adestra a paidia. 74 Podemos compreender melhor o que Caillios diz utilizando-nos das palavras de Costa (1999) “Os jogos transitam entre dois pólos, duas maneiras de jogar: a paidia e o ludus. A paidia tende à diversão, à turbulência, às improvisação, às proezas, às manifestações espontâneas do instinto do jogo e à expansão; o caráter desregrado, inesperado, é a única razão de ser da paidia. Já o ludus é complemento e adestramento da paidia, e propende a uma intenção civilizadora dos comportamentos, à disciplinarização, à subordinação as regras convencionais. O ludus tende à satisfação pela tranqüilidade, ao autodomínio, à capacidade de resistir à fadiga, ao sofrimento”. (COSTA, 2000,p.115) O ludus, assim como a paidia, não são categorias de jogo, mas sim maneiras de se jogar. Neste sentido priorizarei a análise dos jogos no espaço escolar sob estas duas categorias por sobressaírem e se aproximarem mais do contexto das aulas de recreação, educação física e jogos na hora do recreio, cuja motivação é grande e os padrões de comportamento impostos para quem joga são desejáveis. Para Caillois, todas estas rubricas (agôn, alea, mimicry e ilinx) se inserem no domínio dos jogos, mas, no entanto, não abrangem por inteiro todo o universo do jogo e ainda pode-se hierarquizá-las, simultaneamente entre pólos antagônicos: paidia e ludus. “Numa extremidade, reina, quase absolutamente, um princípio comum de diversão, turbulência, improviso e despreocupada expansão, através do qual se manifesta uma certa fantasia contida que se pode designar por paidia. Na extremidade oposta, essa turbulência alegre e impensada é praticamente absorvida, ou pelo menos disciplinada, por uma tendência complementar, contrária nalguns pontos, ainda que não em todos, à sua natureza anárquica e caprichosa: uma necessidade crescente de a subordinar a regras convencionais, imperiosas e incômoda, de cada vez mais a contrariar criando-lhe incessantes obstáculos com o propósito de he dificultar a consecução do objetivo desejado. Este torna-se, assim, perfeitamente inútil, uma vez que exige um número sempre crescente de tentativas, de persistência, de habilidade ou de artifício. Designo por ludus esta segunda componente”. (CAILLOIS, 1990,p.32) Paidia e ludus , mesmo estando em pólos antagônicos, como aponta Caillos, tornam-se complementares e concorrentes, aproximando-se do paradigma da complexidade de Morin29. 29 No Primeiro tempo deste trabalho apresento o paradigma da complexidade de Edgar Morin. 75 O autor tentou, em cada rubrica da classificação de jogos, realçar as semelhanças e diferenças em diversos jogos, independentemente de serem destinados às crianças ou aos adultos, cabendo um aligeiramento nesta classificação que permita combinações de rubricas, podendo cada uma delas se encontrar, por seu termo, associada a uma das outras três. O autor a isto denomina de ‘teoria alargada dos jogos’. Passemos agora à compreensão de cada uma das rubricas apresentadas por Caillois. - AGÔN : São jogos sob a forma de competição com igualdades de oportunidades criadas para que os jogadores se defrontem nas mesmas condições ideais, mas sujeitas incontestavelmente a dar o triunfo a um vencedor. Trata-se de uma rivalidade que se baseia em qualidades como rapidez; resistência; vigor; memória; habilidade; engenho, exercendo-se em limites definidos e sem auxiliar exterior. É dada a igualdade na busca da desigualdade. Um jogador deverá se sobrepor ao outro em vantagem. Ressalta o autor que é uma igualdade de oportunidade absoluta, mas que, “ por mais cuidadosos que sejamos ao criá-la, uma igualdade absoluta nunca é inteiramente realizável.” (Idem, p.34) O que caracteriza a prática do agôn é que “o interesse do jogo é para cada um dos concorrentes o desejo de ver reconhecida a sua excelência num determinado domínio” (Idem,p.35). O agôn exige atenção persistente, treino apropriado, muito esforço e vontade de vencer que manifesta-se pelo mérito pessoal na tentativa de garantir o melhor resultado. Para a criança, segundo o autor, jogar é agir, por esta razão ela se distancia mais dos jogos de alea e se aproxima dos jogos de agôn. -ALEA: Para Caillois são os jogos baseados em clara oposição ao agôn. “Alea, ao invés, surge como uma aceitação prévia, incondicional, do veredicto do destino. Essa renúncia significa que o jogador confia numa jogada de dados e que se limita a lançá-los e a ver o resultado. A regra é ele abster-se de agir a fim de não falsear ou forçar a decisão da sorte“.(Idem, p.98). A decisão não depende dos jogadores e sim do destino para vencer o adversário. O destino é o único artifício da vitória, o que significa que apenas o vencedor será bafejado pela sorte. 76 Nesta rubrica, Caillois coloca os jogos como dados, roleta, loterias e outros, cujo interesse do jogo é a arbitrariedade do acaso. O jogador é passivo face ao destino, não fazendo uso de recursos como habilidade, inteligência ou força. “Limita-se a aguardar, expectante e receoso, as imposições da sorte. Arrisca uma aposta”. (Idem, p.37). É uma entrega ao destino. As habilidades naturais são abolidas e todos ficam submetidos ao acaso, em pé de igualdades. O autor explica que há casos que agôn combina-se com alea, onde há uma simetria surgida entre estas naturezas sendo paralelas e complementares “Ambas exigem uma equidade absoluta, uma igualdade matemática de probabilidades que, pelo menos, se aproxima o mais possível de um perfeito rigor” (Idem, p.96). Alea e agôn, a este nível, ocupam o domínio da regra. Neste exemplo combinatório de rubricas incluem-se jogos como dominó, gamão e a maioria dos jogos de cartas. Podemos observar que esta é uma combinação muito freqüente na maioria dos jogos escolares, mesmo que apareçam em jogos que envolvam mais o esquema motor. - MIMICRY: Para o autor, o que caracteriza os jogos de mimicry é sua entrada para um universo imaginário. O jogo pode pautar-se, sobretudo, na evocação de um personagem ilusório, na adoção de um respectivo comportamento. “Encontramo-nos, então perante uma variada série de manifestações que têm como característica comum a de se basearem no facto de o sujeito jogar a crer a si próprio ou fazer crer aos outros que é outra pessoa. Esquece, despoja-se temporariamente da sua personalidade para fingir uma outra”. (Idem, p.40) Nesta rubrica, a mímica e o disfarce são fundamentais. Na criança esta característica manifesta-se pela imitação do adulto, de um herói, de uma personagem ou mesmo de um animal. As brincadeiras de simulação do cotidiano, os brinquedos em miniatura são condutas de mimicry. “Abrangem igualmente toda a diversão a que nos entregamos, mascarados ou travestidos, e que consista no próprio fato de o jogador/actor estar mascarado ou travestido, bem como nas suas conseqüências”(Idem, p.41) O prazer é ser ou passar-se por outro, não abandonando o verdadeiro sentido de ser ele próprio. É por isso que, por exemplo, por mais que a criança imite uma ave ao brincar não desconhece as limitações de voar, portanto simbolizando o vôo. E como coloca 77 Caillois, a criança “sente-se a representar, sente-se obrigada a jogar o melhor possível, ou seja, por um lado, com uma total correção, esforçando-se ao máximo para conseguir a vitória” (Idem,p.96). “A mimicry consiste na representação deliberada de um personagem, o que facilmente se torna uma obra de arte, de cálculo e de astúcia. O actor deve compor o seu papel e criar a ilusão dramática. É forçado a estar atento e a manter uma presença de espírito contínua, exatamente como quem disputa uma competição”. (Idem, p.98) Para a criança, a identificação com um campeão constitui-se em mimicry, mesmo que ela esteja na condição de espectadora e não de jogadora. É semelhante ao telespectador se identificar com o herói de um filme que assiste. A mimicry apresenta características de jogo como liberdade, suspensão da realidade e espaço e tempo delimitado onde só as regras se mantém imperativas. - ILINX: A característica desses jogos é à busca da vertigem que “... consiste numa tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da percepção e infligir à consciência lúcida uma espécie de voluptuoso pânico. Em todos os casos, trata-se de atingir uma espécie de espasmo, de transe ou de estonteamento que desvanece a realidade com uma imensa brusquidão”. (Idem,p.43) A perturbação é procurada com um fim em si mesma. Muitas brincadeiras infantis têm esta característica de ilinx. Marcar o tempo para se manter o máximo possível submerso na água, rolar num plano inclinado para ver quem chega primeiro, girar sobre um dos calcanhares ou girar de braços esticados e mãos dadas com um colega sobre um dos pés com a impulsão do outro (currupio), correr em fuga, são exemplos de brincadeiras praticadas pelas crianças na busca da vertigem de forma competitiva como num jogo. Pode ocorrer o ilinx também em brincadeiras não competitivas como em brinquedos como o carrossel, balanço, tobogã, escorrega, montanha russa e outros. São sensações e fruições que levam a um atordoamento ao mesmo tempo físico e psíquico. “O essencial reside na busca deste distúrbio, desse pânico momentâneo que o termo vertigem define e das indubitáveis características do jogo que lhe estão associadas, ou seja, liberdade de aceitar ou de recusar a prova, limites precisos e imutáveis, separação da restante realidade”. (Idem,p..47). 78 Para o autor, os aspectos fundamentais do jogo são identificáveis, independentemente das rubricas a que se aproximem, por se tratarem de atividade voluntária, convencionadas, separadas e dirigidas onde há gosto pelas regras na forma de uma submissão teimosa. A tendência para a competição conduz ao estabelecimento de regras. Algumas brincadeiras infantis tornam-se jogos competitivos, principalmente no âmbito escolar onde existem diversos parceiros com a mesma intenção, caracterizando a vocação social dos jogos mencionada por Caillois. “A maioria deles, efectivamente, sugerem pergunta e resposta, desafio e réplica, provocação e contágio, efervescência ou tensão partilhada. Têm necessidade de presenças cativas e aderentes. E é verdade que nenhuma categoria de jogos escapa a esta lei. Até os jogos de azar parecem ter maior atractivo no meio de uma multidão, para não dizer no meio da confusão”. (Idem, p.61) A partir destas exposições do autor, ao longo de sua obra, fica-nos a seguinte pergunta: Como surgem as dimensões de agôn, alea, mimicry e ilinx nos jogos praticados nas escolas? Parece-nos que aceita-se ou recusa-se a competição, a sorte, a mímica e a vertigem em função dos princípios culturais e comportamentais estabelecidos por cada sociedade, independentemente de serem a própria natureza dos jogos, o que de certa forma impossibilita o reconhecimento do seu valor educativo em seus múltiplos aspectos. O princípio de alea trazido por Caillois, como vimos, não pode ser desprezado, pois segundo diferentes pensadores sobre jogos, a competição é a essência da grande maioria dos jogos. O desafio, a vontade de superar-se a si e aos outros são atitudes intrínsecas a natureza humana. Culturalmente a luta por melhores condições econômicas, políticas e sociais acompanham o ser humano nas mais remotas formas de organizações, o que não pode, desta forma, ser negado no interior do próprio jogo, visto que este está em consonância com a cultura. O que devemos refletir é a forma como os diferentes tipos de competição aparecem no interior da escola (e não só nas atividades de jogos), para, conscientes disto, trabalhar a inclusão, as diferenças culturais, a solidariedade e outros princípios que eliminam da competição o individualismo e o egocentrismo. Desta forma, 79 faz-se necessário a intervenção do professor nas atividades de jogos direcionando-as de modo a tornar a competição algo positivo30. Quanto a mimicry, o simulacro e as personificações de heróis, mitos e ídolos, ficam mais próximos do ato de brincar de faz-de-conta31 do que da atitude de jogo, embora este também a envolva, pois ser o melhor jogador, o ídolo da turma, amado e venerado é desejo da grande maioria dos que jogam, levando-os a imitar ícones de alguns esportes. Vive-se uma fantasia onde a representação é mola mestra. A ilinx está mais presente em atividades de brincadeiras na escola que dependam de um segundo elemento, normalmente o escorrega, o balanço e outros brinquedos que fazem parte do parquinho, o que não elimina formas de competição que levam à vertigem e ao pânico como forma de superação. Disputar quem consegue superar por mais tempo ou da melhor forma uma situação de risco são atividades que atraem as crianças que, por sua vez, podem levá-las ao simulacro, considerando-se o herói de tal sacrifício, um deus do jogo. Conta-nos Caillois que o simulacro e a vertigem por muito tempo foram associados ao universo alucinado e, no entanto percebe-se que na sociedade moderna há uma tendência de se praticar atividades que façam fruir estas sensações. Refiro-me à busca por esportes radicais que surgem em diferentes modalidades como montanhismo, canoagem, rafiting, pesca submarina, saltos, corredeiras e outros32. No entanto, no interior da escola, os jogos não valorizam estas sensações, talvez pelos riscos acidentais que elas possam provocar ou por não se compreender, principalmente a vertigem, como pertencente a natureza humana, associando-a ao não-racional, não-lógico. A obra de Caillois permite-nos uma excelente entrada para a compreensão dos sentidos dos jogos e das funções implicadas no ato de jogar, possibilitando-nos refletir sobre a utilização dos jogos no contexto educacional. A classificação realizada por esta autor não é definitiva nem fechada, nos remetendo a compreender o jogo por um paradigma complexo (Morin) e como fenômeno sócioantropológico (Maffesoli) que perpassa o cotidiano escolar nos alertando para a relação jogo/educação. 30 Vale ressaltar que hoje a competição é muito discutida, principalmente no âmbito da educação física surgindo inúmeras propostas de jogos cooperativos que buscam sua eliminação. A este respeito, consultar BROWN ( 1995), SOLER ( 2002) e CORREIA ( 2006) 31 Expressão usada por autores como B. Bettlhem (1988), Kishimoto (1993) e Winnicott (1971) que se referem aos jogos de simulacros. 32 Diversos trabalhos de pesquisa no Programa de Pós Graduação de Educação Física da Universidade Gama Filho vem abordando esta temática 80 Jogo e educação Quando a educação é ligada ao jogo, é a própria maneira de pensá-lo que se transforma profundamente. Por isso, não é possível haver interesse pelo jogo, na prática pedagógica, se não houver informações sobre os fundamentos de tal associação. Brougère (1998), autor francês mundialmente consagrado neste campo, faz uma análise das diferentes formas de pensar a relação jogo e educação na tentativa de entender esta relação e as noções que perpassam o meio educativo. Ele vai colocando-nos outras questões instigantes para análise: “Todos aqueles que falam de educação e jogo falam da mesma coisa? Qual o sentido real dessa associação? Como passamos da atividade do jogo como atividade fútil à idéia de seu valor educativo? É possível conciliar essas duas visões do jogo aparentemente opostas? (Idem, p.9). Para este autor, a relação jogo e educação oscila constantemente entre a frivolidade e a seriedade, evidenciando um pensamento paradoxal, nos remetendo às noções de sério e não-sério e jogo como brincadeira e /ou trabalho. Ainda segundo o autor, “ A oposição jogo-trabalho que estrutura nossa representação do jogo é encontrada operando em outro lugares além da linguagem cotidiana. Com efeito, expressa-se em textos fundadores do pensamento ocidental”.(p.26). Aponta, então, que desde o pensamento aristotélico a noção de jogo como oposição e complementaridade do trabalho já se delineava, pois o jogo relacionado à exaltação da criança, ao imaginário e ao artista passa a ser compreendido como espontâneo e natural, levando-o pouco a pouco a ser considerado educativo, mas parece que nos tempos modernos a lógica social subjacente ao termo ainda o mantém ligado à oposição ao trabalho e à utilidade. Possivelmente a matriz deste entendimento venha do período em que o jogo, por conta de um pensamento racionalista provocado pelo avanço das ciências, foi remetido ao caráter de fútil divertimento. Percebe o autor que estamos diante de uma concepção complexa do que seja jogo, visto a gama de significações diferentes que o rodeiam, sendo assim uma noção aberta e passível de novas possibilidades de análise. Deparamo-nos com um paradigma que ora se fixa em definições negativas em relação ao trabalho, à seriedade e à utilidade e ora reivindica o sério ao associá-lo às atividades educativas. Esta é a tensão que circunda o 81 tema, segundo Brougère: “ Fiquemos por enquanto com a noção de que o jogo se expressa socialmente sob o signo da frivolidade e da futilidade, e que essa dimensão não desaparece totalmente sob o novo paradigma surgido no século XIX” (Idem, p.32). O jogo passa a ser marcado por um duplo signo: frivolidade e aposta, traduzindo-se no espírito humano de nossa sociedade. A Época das Luzes constrói este discurso científico sobre o jogo que se reflete no termo jogar e jogo e em suas significações atribuídas nesta época, mas o que vale para o autor é que “...não se trata de se ocupar do que ele significa, mas ver, entre as múltiplas ações e comportamentos aos quais remete, aquelas que são objeto de uma elaboração do pensamento, de uma reflexão organizada, aquelas que são assumidas pelo discurso, pelo conhecimento”. (Idem, p.46). O nosso sistema de analogias tem uma dependência histórica, que resulta em nossas práticas sociais relativas ao jogo que, segundo Brougére, não são verdades absolutas e eternas: ”Em suma, cada sociedade determina um espaço social e cultural onde o jogo pode existir legitimamente e tomar sentido” (Idem, p.49) Ainda que o jogo esteja associado à frivolidade, seu valor educativo tem sido evocado no decorrer dos últimos dois séculos. A partir do pensamento romântico do século XIX, o jogo passa a ser visto por seu valor educativo, o que Brougère chama de ‘ruptura romântica’, ou seja, um novo olhar que rompe com o olhar anterior de divertimento e frivolidade, trazendo um novo paradigma com uma nova concepção de criança e natureza que passa a considerar o jogo uma atividade33. Até então, não se pensava no jogo com intenção educativa e lhe era atribuído o caráter de frivolidade principalmente por conta dos jogos de apostas (considerados como jogo por excelência) e que se caracterizavam como atividades inúteis, até mesmo profanas e por vezes compulsivos34. Brougère (1998) constrói um pensamento que associa jogo e educação e descobre em tais atividades valores educativos, dando a estas um caráter sério, pelo menos para as crianças. O que desencadeou esta mudança paradigmática foi o pensamento romântico e a 33 As idéias de J.J. Rousseau trouxeram ao jogo um novo estatuto no campo educacional. A este respeito ver Colas Duflo, (1999) e Gilles Brougére, (1998) 34 Sobre jogos de apostas no século XVIII ver Duflo, (1999) e sobre jogos compulsivos ver Retondar, (2004). 82 partir desta fundamentação, este autor apresenta três modos de estabelecer relações entre jogo e educação: 1º - caráter recreativo e compensador das demais tarefas. “ o jogo é o relaxamento indispensável ao esforço em geral, o esforço físico em Aristóteles, em seguida esforço intelectual, e, enfim, muito especificamente, o esforço escolar. O jogo contribui indiretamente à educação, permitindo ao aluno relaxado ser mais eficiente em seus exercícios e em sua atenção”. A idéia de jogo como recreação, desde os tempos de Aristóteles e Tomás de Aquino, subsiste ainda hoje no âmbito educacional, concebido como repouso necessário para a retomada dos trabalhos escolares. “ O jogo não pode ter um fim em si mesmo, não pode ter valor próprio , ele vale em função de sua submissão ao trabalho, aos estudos” . O abuso nas práticas de jogos levaria o indivíduo a perda de energia e vigor, por isso deve ser controlado, no caso escolar, encerrado no espaço da recreação e da educação física. A oposição entre recreação e ensino revela a oposição entre jogo e seriedade. Desde muito tempo o lugar do jogo na escola se limitou a estes dois espaços: recreação e educação física, por estar presente no imaginário dos sujeitos escolares esta concepção de caráter contraditório entre jogo e trabalho. Ao se associar jogo e educação rompe-se a lógica de recreação, de jogo como relaxamento. 2º - a motivação para jogar: “ o interesse que a criança manifesta pelo jogo deve poder ser utilizado para uma boa causa” . O que favorece a aproximação do jogo à educação é a sedução que ele provoca na criança, desta forma as informações de intencionalidade educativa podem ser transmitidas de forma prazerosa e motivadora. “ É preciso enganar a criança para fazê-la trabalhar, sem que se dê conta realmente disso. Para a criança, o trabalho deve assemelhar-se, de maneira subjetiva, ao jogo, porém não se trata de um jogo, só guarda sua aparência”. Desta forma o jogo, em si, não tem valor educativo, suas virtudes básicas não são questionadas. O jogo é, na verdade, uma ilusão da qual faz uso o professor como trabalho, de certa forma agradável, mas que na verdade carrega uma intenção pedagógica. No final do século XVIII professores propunham exercícios divertidos como jogo, influência dos pensamentos de Rousseau, que sugere um ensino mais próximo do real e propõe um método baseado nos jogos de conversação, de imagens, de lições das coisas de 83 maneira sistemática. Os jogos serviriam para exercitar a inteligência facilitando a aprendizagem das crianças de forma natural. Brougère se remete a Erasmo, que já apontava uma desconfiança na relação jogo e educação, pois, para este pensador não se deve inserir o jogo à educação, isto seria como acrescentar um trabalho a outro, e segundo ele esta pedagogia não se baseia na valorização do jogo enquanto atividade espontânea, trata-se de dar a ele um sentido de recuperação. Este método, cujo centro é o jogo, não é aprovado sob a perspectiva de Erasmo, da qual concorda Brougère com as seguintes palavras: “ O jogo faz parte da instrução, tem um valor, mas é controlado em uma lógica do artifício pedagógico” ( BROUGÈRE, 1990, p.56). Ao se aproveitar da natureza da criança de manifestação para o jogo, o jogo passa a ser imposto pelos educadores com um conteúdo a ser transmitido, onde a seleção dos jogos dentre os disponíveis na cultura lúdica infantil, correspondam aos objetivos pedagógicos identificáveis. 3º - o jogo como revelador do comportamento infantil: “o jogo permite ao pedagogo explorar a personalidade infantil e eventualmente adaptar a esta o ensino e a orientação do aluno” . Esta relação, segundo o autor, se vincula à educação física, que, fazendo uso de certos jogos, os consideram, sobretudo, como atividades físicas para uma educação completa que não omite o corpo. Favorecendo o desenvolvimento físico, intelectual, a memória e até futuras verdades (valor moral), o jogo passa a ser organizado e incentivado pelos educadores proporcionando uma oportunidade de testar e observar as crianças em suas atividades naturais e espontâneas. Como diz este autor, “ aqui o jogo não é formador, mas revelador. Esta concepção, pautada nos pressupostos da psicologia, leva o jogo para a margem da educação sendo utilizado como meio de transformação do comportamento infantil. O texto a seguir resume os três princípios apresentados que deram origem a ‘ruptura romântica’ concebida por Gilles Brougère que resgata o valor educativo do jogo: “Todos esses exemplos mostram, de um lado, que a consideração pela criança no processo de aperfeiçoamento da pedagogia implica um olhar sobre o jogo, embora este permaneça fundamentalmente uma atividade fútil que só tem valor educativo se valorizado pelo educador. O jogo não é educativo em si mesmo, é um dado da natureza infantil que deve ser utilizado para aprimorar a eficácia pedagógica do professor. O jogo pode 84 ser usado para permitir um relaxamento necessário cujo objetivo é propiciar um novo esforço intelectual, ou então tornar lúdico um exercício didático, tal como o aprendizado do alfabeto. O educador pode compreender seus alunos, observando seus jogos, ou utilizar, na falta de algo melhor, os jogos coletivos tradicionais para não esquecer a educação do corpo, aliás isso pode ser feito durante a recreação”. (CAILLOIS, 1990, p.58) Não se pode julgar o jogo somente por seus objetivos, e nem tampouco apenas por suas funções. Para a escola, o objetivo do jogo é descansar, compensar a seriedade do ritmo de trabalho escolar ou atribuir prazer a uma tarefa planejada, já para a psicologia o objetivo do jogo é compreender e favorecer o desenvolvimento da criança. Mas qual será então a função do jogo? Poderíamos arriscar aqui uma imensa lista de funções do jogo que passam por divertimento, cooperação, valores morais e sociais, competição, socialização, controle e extravasamento de emoções, respeito a regras e ao próximo, transgressão, resolução de conflitos, solução de problemas, ordem, etc... Huizinga (2004) aponta uma gama de divergências nas funções que o jogo envolve, pois encontram-se definições como: descarga de energia, instinto de imitação, preparação para tarefas da vida , exercício de auto-controle para o indivíduo, impulso inato para a competição, escape para impulsos prejudiciais, restaurador de energia, realização de desejos dentre tantas outras funções. Busca-se, através de suas funções, a compreensão racional do porque se joga, para que se joga, quando se joga, onde se joga Para a maioria das teorias existentes, o jogo está ligado a finalidades biológicas e passa a ser analisado pela racionalidade científica, sem considerar seu caráter estético. A fascinação que ele exerce nas pessoas, a motivação para o jogo, não encontra explicações racionais via teorias existentes. Como explicar o divertimento produzido pelo jogo como uma função não só biológica e funcional? Esta é a tentativa de Huizinga, pois para ele, o divertimento não aparece como resposta mecânica do organismo para atender às necessidades biológicas do homem. O divertimento é uma chave para a análise do jogo em si, considerando-se ainda a tensão e a alegria que o acompanham. Huizinga aponta um elemento comum a todas as teorias existentes sobre jogos: “todas partem do pressuposto de que o jogo se acha ligado a alguma coisa que não seja o próprio jogo , que nele deve haver uma espécie de finalidade biológica”(2004,p.4). Para o 85 autor, o que leva o ser humano ao jogo transcende explicações a nível biológico, para ele há no jogo uma fascinação que pode ser a própria essência do jogo. Joga-se porque se quer jogar. Na tensão e na alegria do jogo podemos, pela própria natureza humana, cumprir com as funções do jogo apontadas pelas inúmeras teorias existentes. Huizinga define a essência do jogo relacionada ao divertimento, ao agrado e a alegria Há, para o autor, uma absoluta independência do conceito de jogo por aproximação ou afastamento a conceitos como divertimento, beleza, vivacidade, graça, ritmo, harmonia. Para ele estas categorias estão ou não explícitas nos jogos, mas não são capazes de contribuir incisivamente para sua definição. “... o jogo é uma função da vida , mas não é passível de definição exata em termos lógicos , biológicos ou estéticos. O conceito de jogo deve permanecer distinto de todas as outras formas de pensamento Através as quais exprimimos a estrutura da vida espiritual e social”. (HUIZINGA, 2004,p.10). Não há conceito de jogo pronto para o uso, seus objetivos e suas funções também são complexos, desta forma nos aproximamos, não só das idéias de Huizinga, como das idéias que Brougére apresenta como as características do jogo e que aqui enunciaremos: 1- “ O jogo é o resultado de relações interindividuais, portanto de cultura” 2- “O jogo pressupõe uma aprendizagem social. Aprende-se a jogar. O jogo não é inato, pelo menos nas formas que assume no homem” 3- “ Para que haja jogo , é preciso que os parceiros entrem em acordo sobre as modalidades de sua comunicação e indiquem (é o conteúdo dessa metacomunicação) que se trata de um jogo” 4- ” O jogo é uma mutação do sentido, da realidade: nele as coisas se tornam outras. É um espaço à margem da vida comum que obedece a regras criadas pela circunstância” 5- “ Sem livre escolha, isto é, possibilidade real de decidir, não há mais jogo, e sim sucessão de comportamentos que têm sua origem fora do jogador. Se um jogador de xadrez não é livre para decidir sua próxima jogada , não é mais ele quem joga” 6- “ A decisão pode resultar de uma elaboração coletiva que supõe negociação e, por vezes, aceitação da decisão do outro, o que também é decidir” 86 7- “Para jogar, há acordo sobre as regras (caso dos jogos clássicos preexistentes, mas cujos jogadores, de comum acordo, podem transformar certos aspectos das regras) ou criação de regras” 8- “O jogo é um espaço de experiência único para o jogador. Ele pode tentar, sem temor, a sanção do real”. 9- “ Sério ou frívolo, o jogo é ao mesmo tempo ambos, sério porque é este espaço essencial de frivolidade” 10- “ Se o jogo permite experimentar, e talvez aprender, é por se opor ao sério, por estar do lado do frívolo, do fútil” 11- “ O jogo é então um espaço social, já que não é criado por natureza, mas após uma aprendizagem social e supõe uma significação conferida por vários jogadores ( um acordo). Nada mantém o acordo senão o desejo de todos os parceiros. Na falta de acordo, que pode ser negociado longamente, o jogo desmorona” 12- “ A regra produz um mundo específico marcado pelo exercício, pelo faz-de-conta, pelo imaginário. Sem riscos se pode inventar, criar, experimentar este universo” 13- “ O jogo é um mundo aberto e incerto. Não se sabe de antemão o que se encontrará; o jogo tem uma dimensão aleatória.” 14- “O jogo não dá uma importância excessiva aos resultados:” A atividade lúdica se caracteriza por uma articulação muito frouxa entre o fim e os meios “(p.189-193)”. Para além destas características, é consenso de que o jogo se inscreve na esfera do simulacro, de um viver paralelo à vida real, mas que dela não se desprende. O jogo evoca a imaginação e a liberdade exercidas dentro de padrões de comportamentos partilhados. Jogo envolve fantasia, emoção e razão. No jogo as trocas de vivências e experiências acontecem naturalmente, sendo um espaço de novas aprendizagens e ensinamentos. A competição no jogo envolve esforço, trabalho e seriedade o que leva o indivíduo a um comprometimento pessoal e coletivo. O jogo é prazer, frivolidade, desejo de uma ação e facilitador de fruições. O jogo é uma forma de expressão onde o homem manifesta seus modos de sentir, pensar e agir no mundo. Jogar é entregar-se ao acaso, a um devir imprevisível que de uma forma ou de outra (ganhando ou perdendo), impulsiona o sujeito a novas tentativas, 87 exercendo assim uma espécie de fascinação pelo ato de jogar. O jogo passa a ser um desafio que envolve superações. O jogo é um fenômeno onde jogar passa a ser uma atitude. O jogo é um espaço/tempo que se concretiza nas práticas escolares e tende a ser negado. A racionalidade nega a importância da imaginação, do simulacro, da desordem e do acaso e, neste sentido, os jogos atendem a estas manifestações. Mas até que ponto elas são ou não parte do processo de ensino-aprendizagem? Que espaço a imaginação e as manifestações espontâneas ocupam no processo educativo? Não abrangeria o jogo, à luz do paradigma da complexidade de Morin (1996), a ordem, a desordem, o acaso estando em constante reorganização? E por esta mesma razão não seria elemento colaborador na formação bio-psico-sócio-cultural dos sujeitos escolares? O presente estudo aproxima-se da intenção dos referidos autores na busca da natureza do jogo, das suas características, suas leis, os instintos que o pressupõem e a satisfação por eles proporcionada. Daí a intenção de compreender os sentidos dos jogos e mais particularmente a inscrição destes sentidos no universo dos professores em formação. Cabe-nos, assim, refletir sobre o lugar do lúdico no contexto escolar e apreender como os professores no seu processo de formação o analisam, o discutem, o fazem de metodologia e o utilizam em práticas pedagógicas. Terceiro tempo 88 Faculdade de Formação de Professores - Universidade do Estado do Rio de Janeiro Terceiro tempo __________________________________________________________________ O Time: os participantes da pesquisa Formação de professores: onde e para que pensamos e fazemos a docência 89 “Não há ensino de qualidade nem reforma educativa, nem inovações pedagógicas, sem uma adequada formação de professores”. António Nóvoa (1991). O processo de formação de professores vem sofrendo diversas tentativas de delineamento há várias décadas. Leis, ideologias, interesses políticos e econômicos e o próprio imaginário que cerca a profissão docente vem contribuindo, ora com avanços e ora com retrocessos que acabam por alterar as percepções sobre o papel social do professor, seja ele de educação física ou das demais áreas da educação básica. Desde as questões relativas ao lócus de sua formação, passando por propostas de currículos e diretrizes para os cursos de formação de professores, as discussões vão se acalorando e nos levando cada vez mais a tentar compreender como ocorre este processo formativo e o que se espera do papel que desempenha este profissional, sobretudo no que tange á sua prática no cotidiano escolar. Estarei desta forma, tecendo trajetórias da docência em formação, o que englobará a área de educação física, buscando apreender os contextos sócio-políticos que influenciaram tais trajetórias. Quando penso em ‘formação de professores’ uma das primeiras indagações que me chega é sobre como se formam sujeitos para exercer esta função. Neste ‘como’, de forma abrangente, poderia incluir o ‘onde’ e o ‘para que’ se formam sujeitos que contribuirão na formação de outros sujeitos. O que se torna necessário fazer para se preparar este profissional para exercer esta complexa função? Quais as exigências para isto? O que se espera destes profissionais? Construindo um campo reflexivo a respeito de tais interrogativas, percorrerei um caminho que não se pretende linear e cronológico, mas que remetido à complexidade dos contextos sócio-históricos do processo de formação docente, poderão contribuir para o nosso ‘pensar’ e o nosso ‘fazer’ enquanto professores que formam professores, ou melhor, enquanto sujeitos que formam sujeitos que formarão sujeitos. Na perspectiva do ‘onde’ se formam professores da educação básica, encontraremos uma gama de espaços (escola normal de nível médio, escola normal de nível superior, faculdades de pedagogia, faculdade de educação, licenciaturas, curso normal superior e a 90 própria escola) que, em diferentes épocas e diferentes contextos históricos, acabaram por contribuir para dificuldade atual de se definir o perfil do professor (educador / docente / mestre/ pedagogo / profissional de ensino / professor). Numa rápida retrospectiva histórica, tentarei buscar pistas que facilitem a compreensão das tramas do sistema educacional brasileiro e suas relações com o contexto histórico, apreendendo os diferentes lócus de formação docente e a intencionalidade com que esta se dá, tanto na educação fundamental, de modo geral, como na formação em educação física, de forma mais específica. Do Brasil colônia até o ano de 1808, período em que o país sofreu a primeira reforma revolucionária, Marques de Pombal, o sistema de ensino modelou-se por princípios religiosos da educação jesuíta, sobretudo elitista, vocacional e segregadora. A escola era freqüentada somente pelos filhos homens de uma minoria de donos de terras e senhores de engenho, excluindo-se os primogênitos, já que a estes cabia uma educação rudimentar a fim de que pudessem assumir a direção do clã, da família e dos negócios futuros, e como aponta Romanelli, “ Era, portanto, a um limitado grupo de pessoas pertencentes à classe dominante que estava destinada a educação escolarizada” (1995, p.33). Importavam-se formas de pensamentos e as idéias dominantes da cultura medieval européia. A cultura humanista era ministrada nos colégios secundários para uma elite, porém, não havia em nível superior instituições para preparar professores a fim de ministrar esta cultura clássica. Esta educação, dada pelos jesuítas, atravessou o período colonial e imperial atingindo o período republicano sem sofrer mudanças em suas bases, o que nos leva a entender que a educação dos pequenos que não chegavam às instituições escolares dava-se de forma não sistematizada. Os valores e conceitos do poder hegemônico, que eram transmitidos na escola pela figura do professores, ficavam a cargo das pessoas que pertenciam ao âmbito familiar e social das crianças. Era, assim, uma educação mais natural e espontânea transmitida cotidianamente nas relações sociais, onde os jogos e as brincadeiras perpassavam a educação infantil e que, por sua natureza, tornavam-se também elementos formativos, a exemplo do que acontecia na Europa nos séculos anteriores35. O brincar era 35 Na obra de Philippe Áries (1978) e no capítulo 2 deste trabalho se encontram melhores esclarecimentos sobre este processo formativo da criança na Europa nos séculos XVII e XVIII. 91 mais intenso e mais permitido pela ausência do esquadrinhamento do tempo e do espaço escolar e tinha raízes no próprio processo de colonização no Brasil. 36 Só a partir do início do século XIX, quando surge uma estratificação social mais complexa que a predominante no período colonial, é que, segundo Cunha (1981), surgem os cursos destinados a formar burocratas de bens simbólicos e ainda, formar profissionais liberais, despertando as primeiras críticas ao sistema educacional vigente. Mesmo com a criação dos cursos superiores, após a Independência do Brasil, não havia preocupação com a formação de professores, do intelectual da área educacional, e o ensino universitário limitava-se ao ensino profissional, destinado principalmente à administração e à política. As primeiras escolas normais brasileiras37, criadas nas províncias para formar professores, marcam o início do movimento de formação de professores no Brasil, que vai surgindo paulatinamente marcado pelas instabilidades do período anterior. “Não tinham, porém, essas escolas, organização fundada em diretrizes estabelecidas pelo Governo Federal. Tal como o ensino primário, o ensino normal era assunto da alçada dos Estados, ficando restritas as reformas até então efetuadas aos limites geográficos dos Estados que as promovessem”. (ROMANELLI, 1995, p.163) Mesmo com acanhadas e restritas reformas educativas, a formação do magistério antes do período republicano efetivava-se, de fato, na Escola Normal que, com raras exceções, consistia em cursos anexos aos já criados liceus 38. A instabilidade sofrida durante o período imperial impedia o cumprimento maior da função das Escolas Normais, qual era a de formar professores primários. Vale destacar que no ano de 1879 a reforma Leôncio de Carvalho acentuou a pseudo-profissionalização do professor com a permissão para o exercício da profissão do ‘professor leigo’. Em pari passu com este profissional que atua na área educacional, surge a figura do ‘médico higienista’ no campo da educação física, como responsável pela educação do corpo das crianças e jovens nas escolas, delineando uma ação social que tinha por intenção cuidar da 36 A este respeito consultar a obra Jogos tradicionais infantis: o jogo, a criança e a educação de Kishimoto, 1993, que aponta a origem dos jogos no Brasil influenciado pelas matrizes européias, indígenas e africanas. 37 A primeira escola normal foi criada em 1830, em Niterói, sendo a pioneira na América Latina e de caráter público ( ROMANELLI,1995), hoje IEPIC- Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho 38 Os liceus eram escolas públicas de nível médio, de cunho propedêutico que atendiam as elites, sobretudo masculinas, e que tinham o intuito de reunir diversos professores num mesmo ambiente escolar. 92 saúde física e mental, como regeneradora da raça, das virtudes e da moral. Desta forma a dicotomia corpo e mente se instala no campo da recreação, via educação física, então denominada ginástica. “O adestramento físico e a disciplina do corpo faziam parte de uma política higienista que procurava alterar o corpo produzido por quase três séculos de colonização”. (OLIVEIRA, 2005,p.25). A educação física escolar surge, assim, para atender as propostas de disciplinamento dos corpos, dos hábitos e da vida dos indivíduos. Exigia-se uma recreação formativa com a escolha ‘correta’ das brincadeiras, dos exercícios e do entretenimento no interior das escolas. O exercício físico sistematizado, pautado no método francês de ginástica39, passava a ser o fator capital na (trans)formação social. Os objetivos da educação são determinados politicamente conforme os interesses em jogo nas relações sociais. A burguesia à época acenava o lema ‘escola para todos’ expressando seus interesses e o das demais classes. A nova sociedade capitalista contava, então, com a escola para atender as necessidades de uma nova sociedade, preparando-a não só política e intelectualmente, mas também fisicamente. Nestas bases o cuidado com o corpo ficava também a cargo da escola, pois a sociedade industrial exigia corpos preparados para o trabalho e livre de doenças. Recrear-se passa a ser sinônimo de exercitarse. Mas que preparação deveria ter o profissional responsável para tal função? Nem bem fixavam-se os cursos de formação de professores primários, nem bem se refletia sobre as bases de sua formação e já se pensava num outro profissional ocupando o espaço escolar. A Educação Física, enquanto disciplina escolar para tender tais finalidades sociais, surge de forma totalmente dissociada do projeto da escola e, com caráter formativo, pauta-se na área médica sem estar engajada numa discussão mais ampla de formação de professores.. A visão positivista do final do século XIX e início do século XX, faz-se presente no contexto educacional, também nesta área de conhecimento. Segundo Romanelli (1995), o ensino superior no Brasil, criado desde 1808, foi sofrendo transformações acarretadas pela influência positivista na política educacional marcada pela atuação de Benjamim Constant que consagrou o ensino seriado, o currículo 39 O método francês era conhecido como Regulamento nº 7 (GHIRALDELLI JR, 1998), que oficialmente obrigatório como diretriz pedagógica da educação física escolar brasileira, consistia em cuidar das instâncias físicas, morais e psicológicas dos indivíduos no campo educacional para a formação do cidadão e consequentemente melhoramento da espécie humana. Seu fundador foi D. Francisco de Amoros y Ondeaño , baseado nas idéias dos alemães Jahn e Guts Muths ( SOARES, 1994) 93 enciclopédico, reformas nas escolas primárias, secundárias, superiores e normais, sobretudo com a criação do Pedagogium , nos anos de 1890 e 1891. Este foi instalado com o objetivo de ser o primeiro centro de aperfeiçoamento do magistério organizado no país após a Proclamação da República e constituía a primeira iniciativa de organização pelo poder central dos estudos pedagógicos de nível superior, porém, de duração efêmera. Experiência semelhante teve a Escola Normal Superior criada em São Paulo em 1892, cuja exigência de sua criação desapareceu dos textos regulamentares (Cunha, 1986). Dentre as principais políticas educacionais deste período, por iniciativa de Rui Barbosa, o decreto n º7.247 de 19 de abril de 1879 torna obrigatório o ensino de ginástica na grade curricular das escolas primárias e secundárias ( SOARES, 2001). No ano de 1882, pelo parecer n º 224 sobre a Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições Complementares da Instituição Pública (Idem) a ginástica se sistematiza nos currículos escolares em horário distinto da hora do recreio, sendo considerada não pelo seu caráter recreativo, mas sim formativo e disciplinador , ficando na responsabilidade do ‘médico higienista’ este componente curricular. Quanto à preocupação com o professor primário, em 1901 cria-se a primeira faculdade de filosofia, ciências e letras em São Paulo, com intuito de educação anexo em decorrência de debates e congressos católicos, mas que não chegou a atender as condições para o preparo de mestres nesses campos, ficando o país até 1930 sem perspectivas efetivas de formação de professores. Os cursos particulares assumem essa formação com mais vigor que os cursos oficiais e a desvalorização do magistério fica marcada, desde o início, pela oficialização da atuação do leigo no ensino. O Brasil defendia uma educação superior utilitária e restrita à profissionalização, esquecendo-se da função formadora da cultura e dando pouca importância à formação de professores. A origem do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, elaborado por Francisco Campos e publicado em 1932, marca a práxis de reformadores e de movimentos de luta pela organização dos educadores da década de 30. Desse modo, as décadas de 20 e 30 foram palco de movimentos da educação e do ensino no Brasil em defesa da escola pública, obrigatória, laica e gratuita, e, ainda, com o intuito de afirmar o caráter profissional das Escolas Normais. Como nos aponta Nunes “A qualificação passaria, dentro dessa estratégia, pela articulação dos centros de formação com as escolas primárias, que servia 94 de campo de aplicação de estudos e técnicas ali aprendidos pelos alunos normalistas” (2004, p.30). Os estágios nestas escolas surgem em destaque na formação de professores, mas longe de serem uma reflexão sobre o ‘fazer’ e o ‘pensar’ da prática docente, tomam o caráter de laboratório de aplicação das teorias estudadas, pautadas no modelo dos laboratórios da psicologia experimental, caracterizando um paradigma de racionalidade técnica. Nos dizeres de Nunes (2004) compreendemos este princípio formativo de professores: “O que distinguia os laboratórios desses cursos superiores, nesse momento histórico, era justamente a presença da pesquisa. A partir dos laboratórios foi sendo articulada uma vertente psicológica de interpretação da realidade, mais analítica do que sintética, apoiada na experiência e que, portanto, fazia prevalecer os dados empíricos sobre as generalizações. Essa vertente tornou-se hegemônica na construção da secularização do campo educacional ou, em nosso país, de profissionalização docente” ( idem, p.30) Algumas capitais brasileiras tiveram estas Escolas Normais transformadas em Institutos de Educação por conta das reformas republicanas. Com o início da política educacional da Era Vargas, desencadeada nos anos 30 e 31, o Brasil viveu uma efervescência ideológica marcada de forma muito rica pela diversidade de projetos distintos, incluindo-se uma política educacional nacional (Ghiraldelli Júnior, 2001), que acarretou na expansão do sistema de ensino como conseqüência da demanda social, que, até então, estava pautado num modelo antigo que não acompanhava o desenvolvimento nacional. Nesta ocasião, surgiram diferentes pensamentos pedagógicos importados da Europa e dos Estados Unidos que influenciaram o campo da educação como um todo, o que engloba a área da educação física. Por um lado os conhecidos ‘profissionais da educação’, pioneiros, apoiados no ideário da Escola Nova do americano John Dewey, com propostas que enfatizavam o ensino ativo e criativo, baseado na iniciativa e experiência do aluno. O principal articulador deste projeto no Brasil foi, segundo Cunha (1986), Anísio Teixeira. Este grupo era composto por reconhecidos intelectuais liberais que desejavam a construção de um país em bases urbano-industriais democráticas, com um plano educacional de bases pedagógicas renovadas e uma proposta de reformulação da política educacional e, por outro lado, por católicos conservadores, entusiastas, 95 considerados utópicos idealistas e defensores da pedagogia tradicional de base ultraconservadora que se opunham às teses escolanovistas. Com o crescimento dos sistemas de ensino, com as mudanças políticas e o movimento dos educadores, surgem propostas na área educacional que reivindicavam que a educação passasse a ter um caráter de reconstrução social identificada com os progressos técnicos advindos do avanço científico. Os olhares se voltam para a educação física, que tendo como referencial os princípios de Escola Nova, produto do pensamento liberal40, vêem nesta área a possibilidade da construção social pelo viés da formação do corpo, corpo este manipulável, hábil e multiplicador de força. Pela metodologia do treinamento físico, as aulas de educação física passam a adotar, além da ginástica, as práticas desportivas como promotoras da saúde física e moral, muito mais do que mental. Assim atividades ligadas ao esporte e a ginástica natural como jogos ao ar livre, corridas, saltos, natação, remo, passeios, etc. passaram ao campo de práticas pedagógicas, correspondendo aos princípios higienistas na vertente eugênica do ideário de Fernando de Azevedo41. No que se refere a preocupação com a formação de professores da educação básica, as inúmeras tentativas emancipatórias para a educação da década de 30, particularmente as reformas educacionais de Fernando de Azevedo e Francisco Campos, estiveram mais à margem do que no centro das preocupações governamentais, e, a formação de professores, não parecia estar efetivamente inserida num consenso das novas propostas políticas apresentadas. Criadas na década de 30, as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras respaldavam a formação de professores secundários. Por iniciativa do educador Anísio Teixeira, cria-se em 1935, a primeira faculdade própria para a educação, o Instituo de Educação e a Faculdade de Filosofia e Letras do Distrito Federal que foi incorporado à Universidade do Distrito Federal (UDF), hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, configurando-se num projeto pioneiro de formação intelectual e de elevação dos estudos pedagógicos de nível superior que incluía a formação dos professores primários. No entanto, foi extinto no final da década de 30, pelo então Ministro Gustavo Capanema, por interesses da Igreja temerosa 40 Segundo Ghiraldelli Júnior, o liberalismo do início do século XX em nosso país acreditou na educação, e particularmente na escola, como redentora da humanidade (1998, p.22) 41 Para este educador o destaque dado á educação física seria fundamental na regeneração e revigoramento da raça brasileira. ( SOARES, 2001, p.119) 96 de uma disseminação da mentalidade científica e democrática. “ Essa decisão retirou do professor a instância mais prestigiada da consagração intelectual e esvaziou o significado de sua atuação. O professor não mais foi visto como pesquisador das sua prática, mas como técnico à serviço do Estado” ( NUNES, 2004, 31). O lócus de formação de professores, ainda não definido, não tirava até então, o status da profissão docente do imaginário social42. Até o início dos anos 30, a função profissional do professor era quase sacerdotal, exigindo além de conhecimentos, uma extraordinária vocação. (Ferreira, 2002). Talvez se deva a isto o não abandono das tentativas de se estabelecer os princípios e o locus da formação docente. No entanto, segundo Nunes (2002), com o boicote do Ministro Capanema, o professor foi destituído da instância de consagração intelectual impedindo a melhoria da qualidade de formação deste profissional e frustrando a instituição de educação como área de investigação acadêmica. Em 1939, inaugura-se a Faculdade de Educação, Ciências e Letras que abrangia o curso de Pedagogia, instituído a partir da organização da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil pelo Decreto-Lei nº 1190 de 4 de abril de 1939, com a finalidade de formar bacharéis, que dirigiam-se aos cargos técnicos e os licenciados para várias áreas com a função de preparar candidatos ao magistério do ensino secundário e normal. Esta dupla formação gera um perfil dicotômico voltado para a racionalidade técnica, que ao invés de clarear, obscureceu a função docente. O mesmo acontece com o professor de educação física que, além do ‘médico higienista’ como técnico corporal, vai contar com as instituições militares43 para atender as demandas da área, sobretudo pela inclusão do desporto no currículo escolar. Têm-se, na compreensão de Ghiraldelli Júnior (1998) a ‘educação física militarista’, onde, pelo desporto, alcança-se a formação do homem obediente e adestrado ( Idem, p.26), continuando a instância recreativa como atividade formativa. 42 Na visão de Ferreira ( 2002 ) o imaginário social , enquanto sistema de representação, existe em toda e qualquer sociedade expressando e reproduzindo as necessidades de um grupo, seus objetivos, seus desejos e sua cultura. Ele é instituído e legitimado por uma comunidade que se faz hegemônica. 43 Em 1933 foi fundada a Escola de Educação Física do Exército como pólo aglutinador e coordenador do pensamento sobre educação física existente até o final da década de 60 ( GHIRALDELLI JÙNIOR, 1998). Logo após a Reforma Universitária de 1968, a resolução 69/69 do CFE organiza os cursos de Educação Física , até então fundados , estabelecendo a carga horária, a duração e o currículo mínimo. 97 Observa-se que não havia um entendimento sobre as funções dos professores de um modo geral, nem sobre o campo de atuação destes profissionais, acentuando a tendência profissionalizante. Esta visão na atuação profissional, principalmente dos professores da escola primária, contribuiu para uma segregação institucional da seção de pedagogia da Faculdade de Educação Ciências e Letras (assim chamadas as instituições que formavam professores em nível de graduação), o que, por muitos, foi visto como uma valorização, mas que resultou, na verdade, em perda dos efeitos positivos oriundos da interação com outras seções, em especial de filosofia, história, ciências sociais, psicologia e letras. Conforme nos aponta Nunes: “Nas décadas de quarenta e cinqüenta do século XX, sob a égide das Leis Orgânicas, vai-se consolidando uma organização técnica do trabalho escolar com a presença de funções especializadas que segmentaram o ato de educar, as responsabilidades educativas, as áreas de atuação dos profissionais da educação, levando-as a criar e reforçar representações muito fortes de divisão interna na própria prática de trabalho”.( NUNES, 2004, p.34) Como vimos, esta fragmentação do ato de educar também incluiu o professor de educação física, que de forma isolada cumpre com seu trabalho técnico no campo educativo. A partir de 1940, com a expansão do ensino primário, os espaços de formação de professores entram em expansão por faculdades, escolas normais, institutos de educação e inserções em universidades. As Leis Orgânicas do Ensino, promulgadas entre 1942 e 1946 e que abrangiam todos os ramos do ensino primário e médio, pela primeira vez em nível nacional, organizavam o ensino de formação de professores e o fizeram de uma forma diferenciada ao incorporar as escolas normais de nível médio e os Institutos de Educação que formavam regentes do ensino primário. Chegava-se à década de 50 com dezenas de instituições formadoras de docentes que não passavam, muitas vezes, de precárias escolas normais de preparo do professor. Ressalto que esta década marca a área de educação física escolar pelo caráter pedagogicista, segundo Ghiraldelli Júnior (1998), compreendendo que, como atividade prioritariamente educativa, a educação física passa a fazer parte, enquanto disciplina, do currículo escolar. “ A Educação Física Pedagogicista é, pois, a concepção que vai reclamar da sociedade a necessidade de encara a Educação Física não somente 98 como um prática capaz de promover saúde ou disciplinar a juventude, mas de encarar a Educação Física como uma prática eminentemente educativa” ( Idem, p.19) . O respeito às peculiaridades culturais, físico-morfológicas e psicológicas é colocado, então, na pauta das discussões das diretrizes para o campo da educação física. Voltando a pensar na formação de professores primários, aponta-nos Romanelli (1995), que a finalidade do ensino normal era prover a formação do pessoal docente necessário às escolas primárias, habilitar administradores escolares destinados às mesmas escolas, desenvolver e propagar os conhecimentos e técnicas relativas à educação da infância. Estes pressupostos de multifuncionalidade levaram a uma degradação progressiva da formação docente e do locus de formação, sobretudo, um distanciamento da prática enquanto vivência, se direcionando para a técnica e para a racionalidade a condição de ser professor. Como nos faz ver Nunes, “A prática de ensino e os estágios, com raras exceções, viram-se cada vez mais esvaziados da reflexão substantiva sobre os problemas pedagógicos concretos vividos na escola [...] e os estagiários transformaram-se em meros executores de tarefas solicitadas pelos professores regentes”. (2004, p.31). Percebe-se que, a partir da década de 50, os espaços de formação de professores entram em expansão por faculdades, escolas normais e inserções em universidades, e o lugar social do professor passa a ocupar posição de destaque até o início dos anos 60. Vejamos como se destaca este profissional no trabalho de pesquisa realizado por Ferreira, tendo por base as notícias veiculadas nos jornais da época. “O professor tem, quase sempre, a sua imagem relacionada ao sacerdócio, à missão nobre, ao sacrifício, ao dom, à vocação. Por diversas vezes a figura do mestre é remetida a algo de transcendental, chegando até mesmo a ser comparada aos anjos e a Deus”. ( FERREIRA, 2002, p.71) Independentemente da imagem positiva deste profissional, podemos compreender que os estudos pedagógicos de nível superior tiveram uma evolução lenta e irregular, pois sabemos que a educação é um dos setores da sociedade em que os mecanismos de resistência a mudanças atuam com mais intensidade. Acrescenta-se à resistência, o tradicional desprestígio desses estudos destinados à formação de professores em relação às outras áreas do saber. As escolas que se dedicavam a tais estudos não eram especialmente 99 instaladas para desempenharem essa função. Adaptações sucessivas foram sendo feitas nas escolas normais e institutos de educação, que, a cada decreto reformador do ensino, se ajustavam ou se elevavam progressivamente ao nível superior. Ao considerarmos a expansão do ensino superior, devemos ter em vista que ela se fez ao correr das circunstâncias, sem planos de previsão ou mesmo propósito deliberado. Instituiu-se um longo período de reflexões e debates na área educacional iniciado na década de 20, não mais se interrompendo até a votação da Lei da Educação, em 1961, fruto da Constituição de 46, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana. Vale ressaltar que a lei 4.024 de 20 de dezembro de 1961 no Artigo 22, torna obrigatória a educação física em todos os níveis e ramos de escolarização, alinhando-se aos ditames da época. No entanto, como infere Romanelli, “nenhuma lei é capaz, por si só, de operar transformações profundas, por mais avançada que seja... enfim, a eficácia de uma lei depende dos homens que a aplicam” (1995, p.179) Como acreditar numa lei que levou 13 anos para ser promulgada? O anteprojeto foi encaminhado à Câmara Federal em 1948, marcado por longas lutas, veio a resultar na Lei 4.024/61 que acabou sendo ‘atropelada’ pelo golpe militar de 1964. Foi um verdadeiro ‘cala boca’ nacional, como afirmam Cunha e Góes (2002, p.13). No entanto, os propósitos políticos e econômicos deste período fazem emergir a Educação Física Competitivista (pós 64) à serviço de uma hierarquização e elitização social onde o “seu objetivo fundamental é a caracterização da competição e da superação individual como valores fundamentais e desejados para uma sociedade moderna” (GHIRALDELLI JÙNIOR, 1998,p.20). O desporto ganha terreno no campo da educação física escolar alinhavando-se à ideologia dominante de ‘Brasil Gigante’. No decorrer da década de 60, as representações simbólicas que a sociedade faz do professor primário apresentam indícios de mudanças e esta atividade passa a ser compreendida como profana44. Para Ferreira, “ a intensidade das referências que tomam o magistério enquanto atividade sagrada se dialetiza e começa a aparecer, também, nas que a admitem enquanto atividade profana” (2002,p.78). Ainda, segundo este autor, as freqüentes reivindicações por melhores salários e melhores condições de trabalho podem 44 Segundo Ferreira(2002) , pautado nos pressupostos de Émile Durkheim e Mircea Eliade, o sagrado e o profano estão presentes nas manifestações das representações coletivas de toda e qualquer sociedade, logo a imagem do professor pode ser associada a uma dessas duas situações existenciais. 100 ter contribuído para a ‘profanação’ da profissão. Nota-se que, mesmo sem ter se definido o papel do professor e o lócus de sua formação, a categoria lutava para se profissionalizar. Este período traz uma perspectiva de adaptação do pedagogo, e, de um modo geral, ao trabalho especializado e tecnocrático, enquanto que o professor de educação física torna-se técnico desportivo no campo educativo. Esta concepção tecnicista gera uma dicotomia materializada na formação de professores das diferente áreas, sobretudo, para o ensino normal e especialista para as áreas de administração, supervisão, inspeção e orientação educacional. Com a reforma universitária, promulgada em 1968, os cursos de licenciaturas, também em educação física, aparecem como mais uma oportunidade de formação docente e as universidades brasileiras têm sua estrutura regulamentada pela lei nº 5.540/68, no entanto, a área pedagógica destas instituições sempre foi percebida como objeto menor, secundário. Esta reforma não se fez dentro da universidade pelo debate e resultante consenso do magistério, mas por atos legislativos, a princípio coercitivos, com proliferação de leis e decretos reformuladores numa perspectiva reestruturadora, pautada na ideologia tecnocrática da ordem e pertencente a uma política hegemônica originária do regime político militar autoritário. “ A educação física escolar alinhou-se facilmente a esses desígnios . Não foi por acaso que a Reforma Universitária de 1968, com a lei 5.540, veio acompanhada de um parecer que confere ao profissional de educação física o título de técnico desportivo” ( NHARY, 2005,p.137) . A lei da reforma universitária associa-se à Lei 4.024 da educação, garantindo não só a educação física em todos os níveis escolares, como também no ensino superior através do Capítulo III, Artigo 40 alíneas b e c que asseguram a realização de projetos culturais, artísticos, físicos e desportivos estimulando a atividade física em diferentes modalidades desportivas (BRASIL, 1997 p.21). O campo de atuação do professor de educação física , até então sem definição quanto ao lócus de formação(escolas militares e faculdades de educação física), na vertente dos professores de um modo geral, não tem propósitos e nem papel sócio-educativo definidos, mas, no entanto, “surge o fenômeno da multiplicação exacerbada das escolas superiores, que se estendeu aos cursos de formação de professores de Educação Física”( OLIVEIRA, 2005,p.26) A trajetória de formação de professores dos diferentes campos continua confusa, tanto em seu lócus, quanto em seus eixos formadores. 101 As faculdades de educação, com seus centros e departamentos, resultaram, como vimos, da obrigatória fragmentação da faculdade de filosofia, ciências e letras, abrindo caminho para uma instrumentalização da educação por uma compreensão psicologista e tecnicista na formação de professores e especialista em educação, onde este espaço, local próprio de produção da educação e de seu saber, acaba por consagrar a separação entre cultura e educação, entre teoria e prática. Ou seja, separou o que por natureza é inseparável. No caso da educação física, mesmo com a lei 5.540/68 fazer alusão a programas culturais e ter em seu bojo o destaque às práticas desportivas, a cultura lúdica infantil mantêm-se formativa, longe de focar a cultura popular, o que incluiria os jogos, como viria a acontecer mais tarde nas leis de educação subseqüentes. Em decorrência da concepção e das finalidades da faculdade de educação para formação de professores, sua estrutura básica deveria abranger as áreas de graduação, com o oferecimento dos cursos de formação de professores primários, de professores da escola normal, de pedagogos especialistas e cursos de formação pedagógica dos licenciados; área de pós-graduação destinada à pesquisa a fim de formar especialistas de altos estudos pedagógicos e para o magistério do ensino superior e a área de capacitação supletiva, como era tratada na época, para formação permanente do professor, o que hoje compreendemos como educação continuada. O perfil do professor custa a se delinear,e , mesmo que surjam propostas legais mais concretas, a dicotomia das funções, sem uma proposta integradora e sem a proposição da docência como eixo formador, só proporciona mais desprestígio para a profissão. A partir de 1971, com a promulgação da Lei 5.692/71, as escolas normais se remetem a cursos profissionalizantes de habilitação para o magistério, perdendo sua identidade formadora e caminhando principalmente para o tecnicismo. O pensamento dominante apontava a formação através da universidade, dos cursos de pedagogia ou em licenciaturas de disciplinas específicas. A formação do professor primário foi elevada legalmente ao nível superior nos cursos de licenciatura plena (universidades, institutos superiores de educação e outras instituições congêneres). Esta lei também vinculou as remunerações dos docentes em função do seu nível de formação e não ao nível de seu exercício profissional, possibilitando lutas de negociações. O antigo ensino primário vincula-se ao ginásio numa perspectiva de orientação para o trabalho e tornou compulsória 102 a profissionalização do ensino médio, transformando o magistério numa das habilitações do ensino de segundo grau. As Escolas Normais e os Institutos de Educação perdem suas características, o que acarreta uma procura pelas Faculdades de Educação que passavam a integrar o sistema universitário. Ainda segundo Nunes, “O paradigma da racionalidade técnica, que informara a prática de ensino e os estágios, embora vivo, dava sinais de esgotamento. Foi ficando cada vez mais evidente que esse paradigma não oferecia instrumentos teóricos necessários para responder aos desafios do cotidiano escolar, mas não se ofereceram alternativas de mudanças”. (2004,p.32) . O distanciamento entre a prática e a teoria tornara-se evidente e o tecnicismo passou a ser a ‘ordem do dia ’nos diferentes campos educacionais, onde “ A legislação autoritária da Educação Física entra no interior das escolas e na maioria delas parece vigorar até hoje” ( NHARY, 2005, p.138). Neste período, início da década de 70, surge a Faculdade de Formação de Professores do município de São Gonçalo. Por se tratar do local de realização desta pesquisa, veremos mais adiante como ela se constituiu no cenário educacional. O enfoque mecânico-tecnicista vai predominar durante a década de 70 e só no final desta a problemática educacional passa a requerer mudanças, surgindo propostas de definição do perfil profissional do professor da educação básica e voltando-se para os professores de educação física escolar, abre-se espaço para sua interseção com os diferentes campos da escola, visto que a Lei 5.692/71, Artigo 7 aponta que, embora ainda calcada na proposta competitivista, a Educação Física se abre para a reflexão e a produção. A criação da Revista Brasileira de Educação Física do Ministério da Educação e Cultura, (OLIVEIRA, 2005) vai levá-la a uma nova concepção a partir do final dos anos 70 e início dos 80, remetendo-a para questões do lazer e da ludicidade. Na década de 80, afirmam-se movimentos de educadores enriquecendo os debates educacionais mais amplos, fruto do processo de abertura política que se instala no Brasil, permitindo um novo olhar sobre a educação , a educação física e suas práticas. Associações e entidades de educadores foram fundadas (Anped, Ande, etc.)45 criando espaço para a discussão teórica e para a mobilização política, levando os profissionais da educação a uma participação mais efetiva e eficaz no encaminhamento de 45 Anped - Associação Nacional dos Profissionais da Educação ; Ande- Associação Nacional de Educadores 103 muitos problemas que afligiam a área. É a fase do incremento à pesquisa, publicação científica e organizações em associações que buscam reflexão teórica, análise crítica e debates no campo da educação, onde na educação física, a psicomotricidade e a cultura corporal levam à reflexões quanto as teorias pedagógicas. “ A produção teórica da Educação Física brasileira sofreu um impulso significativo a partir do início dos anos 80. A Educação Física tornou-se,efetivamente, um espaço multidisciplinar em busca da sua compreensão como prática social.” ( OLIVEIRA, 2005, p.31) Em conferência realizada na FFP/UERJ 46, a Professora Ângela Martins, em breves reflexões sobre o trabalho do professor da educação básica e a política para sua formação, lembra-nos que a fim de revitalizar os cursos de formação de professores nas escolas normais e nas faculdades de educação, surgem movimentos , sobretudo a Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação de Professores (CONARCFE), em 1983, dando origem à Associação Nacional pela Formação de Profissionais em Educação (ANFOPE), que reivindica uma ‘ base comum nacional’. A proposta pautava-se na formação do educador, tendo como núcleo integrador a relação teoria/prática e a docência como base da identidade profissional de todo educador, entendo-se por ‘base comum nacional’ o conjunto de conhecimentos imprescindíveis à formação do educador, fundamentado em áreas correlatas á educação (filosofia, sociologia, psicologia, história, economia e política), possibilitando a articulação dialética entre teoria e prática, o mesmo ocorrendo no campo da educação física A década de 90 contemplou discussões sobre políticas de formação docente, o que também vai perpassar a área de educação física escolar na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nº 9.394/96 que em seu inciso 3º integra a Educação Física como componente curricular à proposta pedagógica da escola, assim como os Planos Curriculares Nacionais ( PCNs) reconhecem a importância da educação física, não só no aspecto fisiológico, como por sua dimensão cultural, política, afetiva e social. Com base nestas concepções privilegiam-se os jogos, o esporte, a dança, a ginástica e a luta como conteúdos curriculares porque são pertencentes a cultura humana. Os objetivos propostos nos PCNs das diferentes áreas se 46 MARTINS, in Anais II Seminário Educação Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2004, p.43-51. 104 definem em termos de capacidades de ordem cognitiva, física, afetiva, de relações interpessoais e inserção social, ética e estética como formação ampla. Então, como de forma interdisciplinar, preparar os professores dos diferentes campos para atender tais objetivos a partir dos pressupostos apontados pelos PCNs e pela nova LDB? Como ‘pensar’ e ‘fazer’ não só a docência em si como a própria formação para ela? Como não dicotomizar os saberes dos diferentes campos? Não seriam as diferentes capacidades definidas nos PCNs concepções de educação comuns aos diferentes campos de ensino? Os sistemas educacionais, como um todo, apresentam uma enorme defasagem com relação às demandas da sociedade. Uma ‘tempestade de leis’, como dizem Linhares e Silva (2003, p.16), veicula a pretensão de uma reforma educativa. O aceleramento das leis que se deu no período FHC (mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso), a complexidade dos processos políticos e históricos na arena de disputas de interesses na formação de professores se traduzem numa variada gama de concepções e leis que norteiam este campo. As reformas educacionais tornam-se alvo das políticas neoliberias e as propostas de formação de professores recebem uma ‘tempestade de leis’ que envolvem as suas diretrizes. Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Nº 9394 de 1996, é dado ênfase à formação de professores para atuar na educação básica, através do decreto 3.276 de 06 de dezembro de 1999, que deverá ocorrer em nível superior, em cursos de licenciaturas de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação. Não é retirada a universidade como instância formadora. , mas colocado outros lócus de formação deste profissional, alterando o caráter de obrigatoriedade desta formação em nível superior, que acaba por ser substituído pelo termo preferencialmente por despacho do ministro da Educação pelo decreto 3.554 de 04/08/00. Linhares e Silva interrogam: “ teria sido essa substituição um ganho momentâneo e circunstancial, sem maiores desdobramentos, dentro de uma orientação de políticas públicas marcadas pelas opções do neoliberalismo e neoconservadorismo?” (2003,p.17). Isto instiga-me a compartilhar reflexões e compromissos com a educação, sobretudo enquanto formadora de professores, na busca de uma revitalização das concepções que abarcam as perspectivas do perfil do professor que desejamos formar. Alicerçando-me nas palavras dos autores: 105 “É sempre bom voltar a lembrar que na construção deste espaço público de debates sobre os rumos da educação nacional também cabe a nós, como professores pesquisadores, ocuparmos territórios em que possamos exercer discussões e formular propostas, que no exercício de nossa autonomia pedagógica, escolar e universitária, representem as necessidades específicas de cada setor educacional, sempre em diálogo com os interesses maiores da sociedade”. (idem, p.25) Na perspectiva do ‘para que’ se formam professores, que se entrecruzam com as perspectivas do ‘onde’, dúvidas também eclodem. A sociedade parece que deixou de acreditar na educação como promessa de um futuro melhor, os professores enfrentam sua profissão com desilusão e desinteresse. A vocação docente vai perdendo espaço para a educação enquanto mercadoria. Estamos caminhando para a mercantilização do ensino. O lugar social do professor, que era sagrado, vai tornando-se profano pelo desprestigio da categoria (Ferreira, 2002). O julgamento social tende a considerar o professor como principal responsável pelas múltiplas deficiências do sistema de ensino. O professor precisa esclarecer suas incertezas e dificuldades para reencontrar sentido e significado para suas práticas. Como pudemos observar, a problemática da formação inicial de professores não é atual, o mesmo ocorrendo com o professor de educação física. Indefinições quanto ao papel social destes professores atropelam seus ‘fazeres’. As Diretrizes Nacionais dos Cursos de Pedagogia, aprovadas em 13/12/2005 pelo parecer CNE/CP n º 5/2005, colocam a docência em Educação Infantil e Séries Iniciais como eixo na formação do professor, incorporando a esta formação a gestão educacional ( supervisão, orientação , administração e inspeção), ampliando o campo de atuação do docente. Ampliação esta que chega a atribuir a estas profissionais, além do ensino de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia e Artes, a Educação Física. Volto, então, a indagar: Que formação deve ter este profissional para assumir tais funções? Quais as expectativas para isto? O que se espera desses profissionais? Acredito que a formação de professores envolve a própria complexidade humana. Para além de um pensamento simplificador e redutor que acompanha o paradigma racionalista, compreendo que a construção do perfil do professor se entrelaça nas dimensões pessoal e profissional, não sendo o trabalho pedagógico apenas um ato educativo intencional. As propostas de formação de professores devem, desta forma, 106 compreender os diferentes campos de atuação deste profissional, como espaços formativos, onde as vivências proporcionadas pelos cursos levem-nos a entrelaçar os diferentes campos de conhecimentos resignificando seus saberes e fazeres. O professor aprende também com suas práticas e interagindo com outros, refletindo sobre suas dificuldades e seus êxitos, avaliando sua forma de proceder cotidianamente, interagindo com os modos de sentir, pensar e agir de seus discentes. Assim como Nóvoa, acredito que “ a formação do professor não se constrói por acumulação ( de cursos, conhecimentos ou técnicas), mas sim por meio das práticas e de reconstrução permanente de uma identidade pessoal”( 1991,p.108) É preciso desmistificar a situação que vem se tornando comum quando se fala em profissão docente. O processo de sua formação deve identificar o local desta, passando pela própria escola, pela educação superior e pela pesquisa constante dos princípios de sua formação, não rompendo teoria e prática e buscando a compreensão das relações simbólicas de opressão que acabam por atrofiar a autonomia intelectual, institucional e profissional. Torna-se imperioso, como saída, os movimentos instituintes47 que possibilitem a reinvenção da escola (Linhares e Silva, 2003) como lugar de trocas, afetos e prazeres, onde as experiências pedagógicas instituintes sejam concebidas como um tipo de invenção social e política que (re)considera projetos marginais ou derrotados como espaços abertos para novas aprendizagens. Estes são desafios e enigmas contemporâneos, onde também os jogos e as atividades lúdicas, não só ligados à educação física, mas as diferentes áreas de atuação dos demais professores, tornam-se campos educativos. É preciso ‘estar aberto’ a tudo o que se passa no ambiente escolar, tornar-se sensível às questões não só patentes, mas, também às questões latentes reveladoras da complexidade que é a escola. Devemos incitar propostas a todo instante nos cursos de formação que levem o aluno-professor a (re)organizar pensamentos, fazer e refazer fazeres, rememorar suas histórias de vida, questionar sobre suas vivências e experiências.”Quando investigam o significado do ensino, dão início à tarefa árdua, 47 Para Linhares (2002), as experiências instituintes constituem-se como circuitos de vida...alimentam-se de trânsitos incessantes de religações entre passado e futuro, entre diferentes esferas da atuação humana , entre afetos e produções de linguagens, saberes e conhecimentos materializados nos intercâmbios produzidos pela vida (p.118). 107 tonificante e reconstituinte, de se localizarem a si próprios e aos seus alunos em contextos sociais, históricos e políticos mais latos” (HOLLY, 1995, p.90). O papel social do professor assume, assim, uma complexidade escolar e não-escolar que o remete à função de sujeito que contribui na formação de outros sujeitos, e não mais simplesmente na função de um professor que ensina aos alunos. Resignificar o papel social do professor significa dar visibilidade a todas as suas dimensões, o que inclui as pessoais, como o exemplo dos poucos que hoje atuam como professores invisíveis, aqueles que por vocação, por mistério, magia ou mestria48, acreditam num futuro melhor, mais afetuoso e prazeroso. Nesta perspectiva, proponho que se reflita sobre as atuais e propagadas relações entre o ‘pensar’ e o ‘fazer’ docente, que em linhas gerias não atendem à compreensão do complexo cotidiano escolar, sobretudo no que diz respeito a ludicidade, que podendo ser considerada como um movimento instituinte, é silenciada em nome da ordem e das tarefas escolares da racionalidade educativa. Remetendo-nos à Foucault (1987), é como se os corpos precisassem estar quietos e controlados para o momento do aprendizado. Como nos diz Linhares: “ É impressionante como a escola ainda retém concepções e práticas que mais parecem alinhadas à idéia de sujeito cartesiano- que faz da plenitude de sua razão um penhor não só de sua existência, mas de sua onipotência” (2003, p.50). Reinventar o jogo e sua relação com e na escola, parece-me possível. Como se coloca o professor diante das atividades que envolvem jogos? Como compreendem o lúdico na cultura humana? O que aprendem as crianças quando jogam? Que sentimentos o jogo envolve? A condição das atividades lúdicas infantis e do jogo como elemento de cultura, promotor de relações sociais, como riqueza e diversidade do imaginário social e revelador de uma multiplicidade de sentidos, nos impulsionam a compreendê-lo numa rede de significados postos no processo de formação de docentes das diferentes áreas. O ‘fazer’ docente é multidimensional e os ‘saberes’ devem ser complexos no entendimento moriniano, valendo-nos mais uma ‘cabeça bem feita’ do que uma ‘cabeça bem cheia’ (Morin, 2004) no sentido de acúmulo de informações A década de 70, cunhada pelo tecnicismo, deixou marcas que ainda impulsionam o 48 Ferreira refere-se à “mestria” como sendo não apenas talento, mas a manifestação de uma vocação (2003, p.42) 108 professor para um fazer sistematizado, onde o jogo passa a ser visto como atividade programada, útil para o aprendizado de um conteúdo (jogos didáticos), como bem estar físico e mental (ligados à educação física) ou como recreação (hora do recreio, intervalos de aluas e o próprio horário destinado à recrear as crianças). Romper com esta visão é associar as atividades lúdicas à fenômenos sócio-culturais reveladores dos modos de sentir, pensar e agir no mundo. Para tal, torna-se necessário que o professor compreenda sua função social, reflita sobre seus modos de ‘pensar’ e ‘fazer’ a docência, compreendendo que o lócus de sua formação, seja qual for, deve conduzi-lo à uma práxis consciente e transformadora. Acredito numa formação de professores que os estimulem como partícipes de um processo onde o ‘dever-ser’ na lógica escolar coexista com o ‘estar-junto’ nas manifestações cotidianas. Uma mudança paradigmática na concepção de formação de professor passa pela busca de um olhar sensível, capaz de captar as partes, os sujeitos, as relações, as manifestações latentes que se expressam no todo, nas regras, nas normas, no instituído. Captar esta rede de relações e compreendê-las para transformá-las é também papel social do professor. Neste sentido, esta nova trama paradigmática pode constituir-se pela religação de saberes que entendemos em Edgar Morin, saberes instituídos e instituintes (LINHARES, 2004) que se entrecruzam no cotidiano escolar. Na busca deste ‘estar-junto-com’ no ambiente escolar, como proposto por Maffesoli ( 1998), precisamos nos distanciar da força simbólica da homogenização que nos conduz como máquinas capazes de dar nossas aulas sem perceber o que pensam e como agem nossos alunos. Buscar relações com outros sujeitos, se envolver efetivamente com os projetos da comunidade escolar e fora-escolar, perceber como sentem , pensam e agem os atores da escola em suas mais simples e cotidianas manifestações é religar saberes, não necessariamente os científicos, mas os saberes humanos complexos, carregados de sentidos, emoções, conflitos e afetos. Formar professores passa a ser sensibilizá-los para acolher as diferenças, estabelecer trocas, refletir sobre suas experiências e vivências, veicular afetos, superar conflitos, questionar mais do que responder, criar, imaginar, sonhar. É ‘viver-sentir-estar-junto-com’ a comunidade escolar (CHAVES, 2000). Neste sentido, esta autora, pautada em Morin, nos move a uma tomada de consciência de que a formação de professores deve sair desta visão simplificadora, unidimensional, parcelarizada, que nos 109 coloca como máquinas que fazem e produzem em prol dos ditames escolares, para uma mudança paradigmática multidimensional, de conhecimentos integradores capazes de transformar as relações da escola e de seus sujeitos. Defendo a perspectiva de compreender o professor como sujeito de transformação aplicada às várias dimensões da sua existência e da complexa realidade que o cerca, desde a pessoal até a social mais ampla. Imbricam-se sujeito e professor A realidade educacional leva o professor à procura de novas formas de lidar com a relação ensino-aprendizagem, o que revela a complexidade das ações docentes. Muitas destas ações são revestidas por um caráter lúdico, sendo o jogo uma atividade motivante e socializadora, onde o aprender e o ensinar manifestam-se naturalmente. São práticas que envolvem conceitos, imagens, produção de valores, idéias, deveres, direitos, visão de mundo, decifração e desvelamento da realidade, propostas que abarcam a (re)construção e a (trans)formação de sujeitos em desenvolvimento. O professor lida com o conhecimento historicamente elaborado, o que implica, entre outras coisas, na (re)(des)construção de conhecimentos , na (re)leitura da realidade dada e sobretudo na produção de sentidos. Buscar os sentidos dos jogos passa a ser também educar. O processo formativo deste profissional e também do professor de educação física, deve, então, se pautar numa proposta amplificada de interatividade entre a teoria e a prática, ou seja, entre os saberes academicamente adquiridos e os socialmente construídos no ‘chão da escola’. Da articulação destes campos do saber poderá surgir um fazer transformador que possibilite uma cultura de sentimentos baseada em valores também não-racionais como o sonho, o afeto, o prazer e a efervescência lúdica. Aceitemos o convite de Linhares “ para cada um de nós procurar conhecer, entender, mas, sobretudo, participar de reinvenção da escola, abrindo e compartilhando experiências, como as que irrompem em tantos e tão diferentes espaços” (2002,p.128) Tendo como suporte o paradigma da complexidade de Edgar Morin e a socioantropologia de Michel Maffesoli, buscarei compreender os sentidos do jogo para quem joga e os diferentes espaços onde se joga e sua relação com a educação. O jogo, na esfera do vivido, é interpretado como movimento instituinte que aproxima sujeitos, que possibilita trocas de afetos, de prazeres, de conhecimentos e idéias e que, marcado por ordem, desordem, incerteza e interações atinge a esfera da complexidade bio-psico-sócio- 110 cultural dos sujeitos em desenvolvimento. Sendo assim, a temática jogo passa a ser uma reflexão importante no processo de formação de professores que podem dele se utilizar em seu ‘fazer’ e seu ‘pensar’ nas práticas cotidianas escolares mais complexas, reinventando a escola de forma alegre e prazerosa, não rompendo com a lógica tecnicista, racional, mas associando e compreendendo o não-racional, o onírico , o lúdico. Formação de professores na FFP/UERJ Com a intenção de dar maior visibilidade ao campo desta pesquisa, apresento alguns dados, informações e documentos pesquisados que contam o caminhar e a história vivida pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). Fazendo parte desta história desde 1981, recordo-me, ao escrever este capítulo, das lutas e das manifestações que pleiteavam garantir a sobrevivência desta Instituição de Ensino no cenário educacional brasileiro. Desta forma, compreendendo melhor a política educacional em nosso país, me envolvendo com estas questões e adquirindo maturidade profissional fui .... Vivendo e aprendendo a jogar Vivendo e aprendendo a jogar49 Entre tantas jogadas... 49 Metáforas da canção Vivendo e aprendendo a jogar de Guilherme Arantes 111 Em pari passu com as concepções trazidas com a LBD 5.692/71, sobretudo o artigo 30 que aponta a qualificação de pessoal docente para o ensino de 1o e 2o Graus, e, no bojo da proposta, estando contida a necessidade de existirem cursos, em nível de 3º Grau para a formação de docentes de 5ª a 8ª séries do 1º grau (assim designado o ensino fundamental à época), surge no cenário educacional do Estado do Rio de Janeiro, mais especificamente no município de São Gonçalo, a Faculdade de Formação de Professores -FFP- sem grandes interesses por parte dos representantes das políticas de formação de professores, o que acarretou algumas idas e vindas com relação aos órgãos mantenedores desta Instituição. Na década de 70 o governo do Estado do Rio de Janeiro cria o Centro de Treinamento de Professores do Estado do Rio de Janeiro – CETRERJ-, regulamentado pela Lei nº 6.598 de 20/08/71, organizado como fundação e vinculado à Secretaria de Educação e Cultura com o objetivo de aperfeiçoar e atualizar os professores da rede de ensino, tornando-se, assim, a primeira instituição mantenedora da FFP. Começando seu funcionamento em setembro de 1973, autorizada pelo Decreto nº 75.525, de 25 /07/73, no governo do Presidente Médice, com instalação e funcionamento no bairro do Paraíso no município de São Gonçalo (local em que se mantém até hoje) e atendendo a diversos municípios vizinhos, a FFP vai iniciando uma história de lutas no contexto educativo. Fazendo parte de uma política que objetivava oferecer certificação com vistas a alteração do nível de atuação dos professores da rede estadual de ensino e com conseqüente mudança de nível salarial, a FFP é concebida como uma instituição para capacitar professores através de cursos de curta duração, cuja ideologia era de formar os profissionais que iriam implantar em seus municípios de origem, atividades de supervisão escolar, conforme indicativos da LDB nº 5692/71. Com esta estrutura inicial, a FFP/CETRERJ cumpre seu papel de formar multiplicadores, assim denominados os docentes ali preparados. Com a marca da formação e capacitação, oferecendo treinamento para professores do interior do estado e cursos regulares para os professores do Município de São Gonçalo e vizinhanças, a FFP surge, no cenário de formação de professores, com a implantação de cursos de licenciatura de 1 º grau em Letras, Ciências e Estudos Sociais, reconhecidos pelo Decreto n º 79.679, de 10/05/77, do então Presidente Ernesto Geisel. 112 Com a fusão dos antigos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro e com propostas de reorganização do novo estado, esta Instituição é pela primeira vez em 11/04/75 incorporada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, condição esta que durou apenas três meses, visto que este ato foi revogado em 15/07/75. Nesta mesma ocasião, com perspectivas de desenvolvimento de recursos humanos, o CETRERJ tem ampliado seu objetivo para o atendimento a uma clientela tanto de dentro como de fora da rede estadual de ensino, o que acarretou a passagem de sua denominação para Fundação Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Educação e Cultura (CDRH), mantendo a FFP em sua estrutura básica. Desta forma, a Faculdade Formação de Professores mantém-se vinculada ao CDRH ampliando sua forma de atuação, mantendo os cursos de licenciatura curta, mas atingindo uma maior clientela de professores de todas as redes de ensino público ou particular. Vinculada ao CDRH, o Decreto Presidencial n º 81.905 de 10/07/78 e o parecer n º 11/78 do Conselho Estadual de Educação (CEE) levam as Licenciaturas em Letras e Ciências a se converterem em Licenciaturas plenas. A primeira com habilitação em Português/Literatura e Português/Inglês e a segunda com habilitação em Biologia e Matemática. Esta transformação implicou na ampliação do currículo com o acréscimo das disciplinas de Metodologia nas áreas específicas e também a inclusão da disciplina de Prática de Ensino voltada para o 2º Grau. O início da década de 80 é marcado por uma instabilidade e por um esvaziamento institucional provocado pela saída significativa de docentes qualificados e comprometidos com a Licenciatura, mas que, por medidas restritivas, não poderiam acumular cargos, pois da união do CDRH com a Fundação Instituto de Desenvolvimento Econômico Social do Rio de Janeiro - FIDERJ -, nasce, em 20/06/80 pelo Decreto 3.290/80, a Fundação de Amparo à pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ -, que embora sendo uma instituição voltada para a pesquisa, passa a ser a mantenedora da FFP que agora, como parte de um sistema fundacional, corre o risco de perder seu caráter gratuito. Percebe-se que o período entre 1971 e 1982 caracterizou-se como a época de instalação e luta pela manutenção da Faculdade de São Gonçalo, período este em que passei a fazer parte do quadro docente desta Instituição em 1981. 113 Nos primeiros anos da década de 80 todo o quadro docente é surpreendido com medidas governamentais inesperadas, o que acarreta lutas pela manutenção da FFP no município de São Gonçalo, culminando num confronto entre governo do Estado e os professores, pautados na garantia da autonomia acadêmica institucional. Ao final do governo Chagas Freitas, com dez anos de existência da Faculdade de São Gonçalo, em função das articulações políticas do estado, acontece a segunda tentativa de vinculação da FFP à UERJ através do Decreto Estadual nº 6.570 de 05/03/83, o que não se efetivou. Transcorridos 10 dias, na tentativa de enquadramento no sistema escolar, o governo do Estado, na figura de Leonel Brizola, altera a vinculação da FFP integrando-a à Secretaria Estadual de Educação através do art.7o do Decreto 6625, de 15/3/83. Porém, como se trata de uma instituição de formação em graduação, logo a seguir a FFP é novamente reintegrada à FAPERJ pelo Decreto 6.229/83. A política educacional no primeiro governo Brizola no Rio de Janeiro, entre 1983 e 1986, é marcada por concepções e conduções dos princípios educacionais do professor Darcy Ribeiro, vice-governador e presidente da FAPERJ, com forte vínculo com a Secretaria Estadual de Educação. Surgem, então, questões e impasses quanto às vinculações e inserção administrativa da FFP e em dezembro de 1983 é criado um grupo de trabalho para avaliar a implementação do Complexo Educacional São Gonçalo - CESG-, onde passariam a fazer parte deste conjunto a FFP, O Centro Interescolar Walter Orlandine e a Escola Estadual Coronel Tarcísio Bueno, todos vizinhos do mesmo lado da calçada da Rua Francisco Portela, com o objetivo de oferecer educação do pré-escolar ao 3º grau, bem como o Curso Normal Superior. “O período de estudos, planejamento e funcionamento do CESG confundem-se com sua efetiva implantação, já que estas escolas funcionavam regularmente”. ( PIERRO, 2005, p.57) Na concepção dos governantes, a inserção da FFP neste complexo educacional facilitaria a questão da alocação de verbas, dado o vínculo com a FAPERJ. Outro aspecto favorável com a integração da FFP ao complexo educacional era a questão do espaço físico e da relação de pessoal, já que a FFP poderia disponibilizar salas, espaços e funcionários para o CESG. Tanto foi assim que, por exemplo, todo o material que atendia as atividades desportivas da FFP vinculadas à disciplina de Educação Física foi cedido ao Complexo 114 Educacional de São Gonçalo, assim como foi proposto um rodízio no uso dos espaços da quadra desportiva e da sala de ginástica50. No entanto, a comunidade acadêmica da FFP não aceita sua subordinação ao Complexo Educacional, já que sua luta estava voltada para a garantia da gratuidade de todos os seus cursos, para a criação e implantação de novas propostas curriculares para as Licenciaturas, plano de carreira docente e oferta de concursos públicos. As duas primeiras reivindicações foram conquistadas em 198451. Como se pode perceber, neste jogo de interesses políticos, a proposta do Complexo Educacional parece não vir ao encontro dos anseios de professores e funcionários da Instituição, além de que com o seu funcionamento a ocupação das salas de aulas e a convivência de alunos da educação infantil até o ensino superior, trouxeram certa desorganização no andamento das atividades da faculdade. Neste momento também, a situação administrativa na FFP referente à definição e plano de carreira para professores e funcionários gerava movimentos de greve de alunos e professores. Ocorre uma desestabilização do cronograma de oferecimento de cursos diurnos ao invés dos noturnos e de fim de semana e o possível risco, por parte do corpo docente e discente, de fechamento dos cursos existentes na faculdade. “Além das reações ocorridas na FFP, várias foram as dificuldades que não favoreceram com que o Complexo Educacional de São Gonçalo fosse adiante, dificuldades estas nascidas inclusive no cotidiano das instituições escolares que compunham esta proposta e suas relações políticoadministrativas com o Estado”. ( PIERRO, 2005 p.59) Num processo de estruturação interna, a FFP realiza a avaliação de seus cursos pautada no Encontro Nacional do Projeto de Reformulação dos Cursos de Preparação de Recursos Humanos para a Educação, realizado em novembro de 1983 em Belo Horizonte, dando início à reformulação de seus currículos de Licenciatura, que, a exemplo dos anteriores, mantém como princípio norteador para esta reformulação, a preocupação de 50 Situação por mim vivenciada no período em questão, enquanto professora da disciplina de Educação Física da FFP. 51 Vale ressaltar que, neste mesmo ano, compúnhamos um quadro docente de 53 professores, que juntamente com os funcionários técnico-administrativos, recebemos carta de demissão em pleno processo de negociação com o Governo do Estado. Em face destas lutas, as cartas acabaram sendo desconsideradas pelo Governo e as negociações foram retomadas. 115 garantir a articulação entre teoria-prática-teoria, com as disciplinas didático-pedagógicas integradas aos conteúdos específicos do primeiro ao último período de seus cursos. ( ASSIS & SILVA, UERJ, 2000) Esta reformulação, implantada em 1984, ocorre de forma a repensar a estrutura dos cursos e a incluir também a disciplina de Prática Pedagógica no módulo da educação, no caso das Licenciaturas Plenas que já funcionavam desde 1978, nas habilitações em Português/Literatura; Português/Inglês; Matemática e Biologia. A licenciatura curta em Estudos Sociais que ainda vigorava, a partir desse processo de reformulação, é alterada e em outubro de 1985 houve a conversão deste curso em Ciências Sociais em Licenciatura Plena com habilitação em História e Geografia, seguindo os princípios norteadores e a concepção de curso da unidade. No período de 1985 a 1987 a FFP vive novamente uma fase de acentuado embate na relação com o governo do Estado, acarretando um novo e maior esvaziamento institucional, com a suspensão de seus vestibulares e a redução de seu quadro docente. Em julho de 1986, sobrevivendo aos ataques das instituições privadas do município e ao desinteresse do Estado, a comunidade acadêmica congrega esforços e com a autorização do Conselho Estadual de Educação – CEE -, organiza e realiza o concurso vestibular para ingresso de alunos, ocorrido em janeiro de 1987, caracterizando-se como o último processo seletivo realizado pela FAPERJ. Através da Lei Estadual nº 1.175, de 21/7/87, no início do governo de Moreira Franco, a Faculdade de Formação de Professores, como unidade acadêmica, foi vinculada definitivamente à Universidade do Estado do Rio de Janeiro -UERJ -. Comprometida com o desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro e com uma proposta de interiorização da Universidade, a UERJ incorpora a FFP, condição que permanece até os dias de hoje, oferecendo especificamente licenciaturas plenas e consolidando sua organização pedagógico-administrativa. A partir da incorporação da FFP, a UERJ passou a ser a única universidade pública do município de São Gonçalo, exercendo um importante papel na reflexão e debates sobre os problemas educacionais, sobretudo na formação de professores. “Este período de aproximadamente 15 anos na história da FFP, da sua fundação à sua vinculação pela UERJ, está marcado por diferentes vínculos administrativos assumidos no Estado, porém sempre reafirmando 116 sua vocação institucional com a formação docente tendo como finalidade superar a insuficiência de professores com formação superior, especialmente no interior do Estado do Rio de Janeiro”. ( PIERRO, 2005, p.60) Passando por uma nova reforma curricular em 1987, alguns cursos sofreram transformações em suas estruturas. As licenciaturas em Ciências e Estudos Sociais foram desmembradas em Licenciatura em Matemática e em Biologia, no primeiro caso, e no segundo caso, em Licenciaturas em Geografia e em História. Apenas o Curso de Letras manteve o formato anterior, de um curso com dupla habilitação: Língua Portuguesa/Literatura e Língua Portuguesa/Inglês. Estes currículos foram implantados em 1991, com a realização do primeiro vestibular na FFP na gestão da UERJ. Atualmente os cursos oferecidos estão em reformulação, com vistas a se adequarem às novas exigências legais. Hoje, a FFP conta com mais de três mil alunos distribuídos em sete licenciaturas, seis mencionadas acima e o Curso de Pedagogia Habilitação em Magistério das Series Iniciais do Primeiro Grau onde o ingresso a estes cursos ocorre por Concurso Vestibular, promovido anualmente pela UERJ.. A FFP/UERJ também oferece cursos de pósgraduação lato sensu: História Social do Brasil, Estudos Literários , Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Educação Básica. O curso de pós-graduação stricto sensu, Mestrado em Educação, está atualmente tramitando nas instâncias competentes no aguardo de sua aprovação para início de atividades. O ingresso no programa de pós-graduação se dá por processo seletivo realizado na própria FFP. Funcionando com uma estrutura de seis Departamentos, a FFP se volta como um todo para a formação de professores do Ensino Básico “considerando que a construção/reconstrução de saberes fundamentais para sua atuação deve dar lugar às múltiplas conexões produzidas nas zonas de contato entre as disciplinas de conteúdo específico e as disciplinas da área didático-pedagógica”. (Assis & Silva, 2000, p.96) Com base neste pressuposto, estas disciplinas distribuem-se uniforme e seqüencialmente, nos currículos dos cursos oferecidos pela FFP, do primeiro ao último semestre, atingindo os diferentes momentos da formação dos licenciandos. 117 Vivendo um novo processo de reestruturação curricular, desta vez provocada pela nova regulamentação do Conselho Nacional de Educação, a FFP ainda atravessa problemas relacionados à falta de pessoal, quer no quadro de docentes, quer no quadro técnico-administrativo, questões estas enfrentadas pelas Universidades Públicas em geral, e o crescimento da demanda trouxe como conseqüência a necessidade de ampliação do espaço físico. Por outro lado a FFP, cada vez mais, se fortalece nos três níveis do ensino superior: a graduação, a extensão e a pesquisa. A FFP pauta-se no princípio e no compromisso com a formação dos professores, como afirma um texto escrito pelos componentes da Direção no período 2000 - 2003: “Essa possibilidade de formação docente em um espaço no qual o magistério não é conotado pejorativamente como opção secundária, abre um campo de possibilidades muito rico na abordagem dos problemas, desejos e sonhos sobre a educação, a educação de qualidade que tanto queremos como projeto para nossas cidades e nosso país. Cabe ressaltar que, uma vez que os cursos estão distribuídos em um mesmo espaço físico, eles podem estabelecer relações diretas entre si, além de poderem usufruir contatos imediatos e permanentes com o Departamento de Educação, responsável pelas disciplinas didático-pedagógicas”. (ASSIS & SILVA, 2001,p. 94). O Departamento de Educação - DEDU-, criado desde as origens da Instituição como integrador das atividades administrativas e acadêmicas da FFP, atende a todas as licenciaturas da Unidade com o oferecimento de disciplinas didático-pedagógicas nos diversos cursos de Licenciatura da FFP/UERJ. Quanto à integralização curricular para os cursos da Unidade em Letras Português/Literaturas, Letras Portugês/Inglês, Matemática, Biologia, História e Geografia, o DEDU oferece disciplinas de natureza obrigatória que são: Filosofia da Educação, Psicologia da Educação, Sociologia da Educação, Didática, Políticas Públicas, Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado e de natureza eletivas: Arte e Educação, Educação Física, Educação Popular, História Eletiva, Tópicos de Filosofia e Linguagem, Ensino Supletivo, Metodologia Científica e Política Educacional. Pautados numa proposta de interdepartamentalidade, o que favorece uma interlocução entre as diferentes licenciaturas da Faculdade de Formação de Professores, os demais departamentos da FFP, igualmente oferecem disciplinas obrigatórias para a 118 integralização do currículo do Curso de Pedagogia, o mais recente Curso da FFP, que será apresentado no próximo tópico deste capítulo. As disciplinas oferecidas pelo DEDU são agregadas em Núcleos de Referência, com a intenção de que estes núcleos sejam instâncias de diálogo, debate, organização e acúmulo compartilhado sobre cada grupo de disciplinas. Neles, os professores poderão encontrar orientação e interlocução a respeito das disciplinas sob sua responsabilidade e, certamente, nesta relação, estarão também enriquecendo com suas contribuições e ajudando a perceber por onde ainda se pode crescer e caminhar na construção de projetos mais integrados. Quanto ao seu quadro docente, o Departamento de Educação conta atualmente com mais de 60 % de professores Doutores e o restante em processo institucional de formação em Programas de Pós-graduação de excelência acadêmica. Com relação à estruturação e à consolidação das áreas de pesquisa e extensão, no DEDU, existem os seguintes Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa e Extensão: Vozes da Educação: memória e história das escolas de São Gonçalo; Práticas de Ensino e Formação de Professores; Educação, Políticas Públicas, Novas Tecnologias; Cultura, Subjetividade, Linguagem e Educação. Os projetos de extensão articulados com a comunidade, principalmente em São Gonçalo e no seu entorno, são oferecidos em diferentes especificidades, a saber: Educação de Jovens e Adultos; Políticas Educacionais e Poder local; A questão das etnias e dos afrodescendentes; Estatuto da Criança e do Adolescente; Imagens e Representações; Arte e Ludicidade; Taekwondo; Quem dança faz Arte; Tecnologias e Informatização, que são coordenados pelos professores do departamento, que em sua maioria contam com alunosbolsistas. Há ainda projetos acadêmicos, subordinados à Sub-reitoria de Graduação dentre os quais ‘Iniciação à Docência’ que desde 1994, oportunizando a vivência em atividades docentes dos alunos das licenciaturas em escolas do município de São Gonçalo. Como um espaço único voltado exclusivamente para a formação de professores, a FFP têm possibilitado experiências inovadoras na área, onde o Departamento de Educação tem tido como ponto de partida, em sua rotina cotidiana, o crescimento da produção, seja em termos da pesquisa, da extensão ou da necessidade de ampliar os espaços de docência. Desta forma este departamento vem assumindo desde 1994 o Curso de Pedagogia com Habilitação em Magistério das Séries Iniciais do Ensino Fundamental, ou como é mais 119 conhecido, Curso de Pedagogia da FFP, levando assim esta Unidade Acadêmica da UERJ a assumir sete Licenciaturas. Uma bela jogada... A história de criação do Curso de Pedagogia: Habilitação das Séries Iniciais do Ensino Fundamental - Licenciatura Plena da FFP/UERJ não poderia deixar de ser contada, pois além de ter um papel representativo não só no município de São Gonçalo, como na própria estrutura organizativa da UERJ, os alunos deste Curso são o foco do presente trabalho, mais precisamente os graduandos do quinto período em diante que já cursaram a disciplina de Recreação e Jogos I e II e que contribuirão para esta pesquisa com respostas dadas a um questionário investigativo e com seus relatos em forma de narrativas. Em consulta recente aos dados estatísticos do IBGE 52, têm-se o ano de 2000 como ano base de referência sobre os dados do Município de São Gonçalo que passarei a descrever. O Município de São Gonçalo possui uma área de 251 km2 e apresenta uma população totalmente urbana constituída de 429.404 homens e 461.715 mulheres. A taxa de alfabetizados, considerando a população residente de 10 anos ou mais, é de 94,5%. Quanto aos estabelecimentos de ensino, registram-se 177 de Educação Infantil; 311 de Ensino Fundamental e 81 de Ensino Médio. Tanto no Ensino Fundamental quanto na Educação Infantil, registra-se maior índice de matriculados na rede pública estadual. Quanto ao quantitativo de docentes no Ensino Fundamental, concentram-se em maior número da rede estadual, já na Educação Infantil na rede privada. Os dados estatísticos, mas especificamente o conhecimento acerca da realidade, aponta a grande demanda por ações educativas no campo de formação de professores para atuação nos sistemas de ensino. Num contexto concreto surge a necessidade de implantação de um curso de Pedagogia compromissado com as políticas educativas e consciente do papel a desempenhar no quadro 52 Consulta realizada ao site do IBGE em fevereiro de 2006 120 educacional, não só do Município de São Gonçalo, mas no Estado do Rio de Janeiro como um todo. Concebido sob a influência do Curso de Pedagogia denominado Magistério (CPM)53, da Faculdade de Educação da UERJ no campus Maracanã, o curso de Pedagogia na Faculdade de Formação de Professores -FFP- iniciou sua primeira turma no 2º semestre de 1994. Para compreendermos melhor, o CPM surgiu na UERJ nos anos 198054, através de um convênio firmado com a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, para formação em nível superior dos profissionais que atuavam nas séries iniciais do antigo 1º Grau, por isso a sigla CPM significava Convênio com a Prefeitura Municipal. Mesmo com o término do convênio, e a mudança de denominação da sigla, o CPM continuou a funcionar. Forjado sob o princípio de educação continuada, esta graduação era oferecida somente aos professores das redes de ensino Municipal. Na FFP, foi implantado sob a responsabilidade do Departamento de Educação, mesmo sem a unidade ter firmado convênio com nenhuma das redes de ensino público da região. No entanto, como exigência para a inscrição via exame de vestibular isolado55, era necessário que os candidatos fossem professores em exercício nas séries iniciais do Ensino Fundamental na rede pública ou na rede privada, que retomando os estudos, graduavam-se em nível superior à docência daquelas mesmas séries. Em suma, era necessária a diplomação no curso de formação de professores ao nível do ensino profissional de 2º Grau, atual Ensino Médio, para o ingresso na FFP. Em 2002, o ingresso no curso passa a fazer parte do vestibular geral da FFP/UERJ, perdendo o caráter de vestibular isolado, como também se abandona à exigência de comprovação de exercício do magistério, modificando claramente o perfil dos alunos que agora, não mais sendo obrigatoriamente professores antes de ingressar na FFP, atuam nas mais diferentes áreas profissionais. A criação deste curso não se limitou ao Município de São Gonçalo, e em 17 de novembro de 1994 foi firmado um convênio com a Prefeitura Municipal de Araruama 53 - A sigla CPM, abreviação de Convênio com a Prefeitura Municipal, foi reinterpretada para Curso de Pedagogia: Magistério, após a interrupção do acordo com a prefeitura do Rio. 54 - Sobre o CPM/ Maracanã, ver CARNEIRO DA SILVA, W, Tese de doutorado, Sorbonne, Paris, 1997 55 - Vestibular isolado refere-se a um procedimento de seleção organizado pelos órgãos competentes da universidade, porém acontecendo em período diferenciado da seleção geral, e que segue regras específicas. 121 PMA - com a intenção de qualificar seu quadro docente do 1º segmento do Ensino Fundamental, quando então, esta Prefeitura, através de sua Secretaria de Educação recorreu a FFP/UERJ para o oferecimento do Curso Superior em Pedagogia. Prontamente o Departamento de Educação desta Unidade concorda em aceitar o desafio de gerenciar um curso de graduação fora de seu ‘campus’, acreditando numa experiência enriquecedora para uma instituição comprometida com a formação de professores. Desta forma, este convênio contribuiu para que a UERJ pudesse atender uma clientela que não se concentra tão somente no Município de Araruama, mas também nos municípios adjacentes como Saquarema, Cabo Frio, São Pedro D’Aldeia, Iguaba, Rio Bonito, Itaboraí e outros. Inicia-se o convenio com o primeiro vestibular realizado em junho de 1995 e com o oferecimento de uma primeira turma com quarenta vagas para o referido curso, que funcionou até o final do último convênio em 2000 graduando um total de 156 professores com a mesma estrutura curricular do Curso de Pedagogia: Habilitação das Séries Iniciais do Ensino Fundamental Licenciatura Plena- de São Gonçalo56. Desde a implantação do Curso de Pedagogia, o DEDU vem perseguindo o desafio de formar professores do primeiro segmento do ensino fundamental, compromissados com a reflexão na/sobre a prática, sendo protagonistas da implementação de políticas educativas, sujeitos de práxis transformadoras e conscientes do papel que ocupam no cotidiano escolar. Tendo passado por recente reformulação a concepção curricular o curso de Pedagogia da FFP atua em sistema seriado57 (para atender aos alunos do currículo antigo) e sistema de crédito (para os alunos que ingressaram no primeiro semestre de 2006 e para os que solicitaram migração de currículo – do antigo para o novo). Integraliza atualmente uma carga horária de 3.245 h/a no currículo novo e 2430 horas/aula no currículo antigo. Esta última distribuída em oito períodos num fluxograma58 composto por disciplinas obrigatórias de fundamentação teórica e prática onde o DEDU tem sob sua condução e planejamento as disciplinas de: Alfabetização I e II; Avaliação Educacional; Didática; Educação e Cultura Brasileira II; Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º graus; 56 Tive a oportunidade de atuar como docente neste curso desde a primeira até última turma formada em 2004, assim como também por um período de aproximadamente três anos pude contribuir na coordenação do Curso, não apenas em Araruma, como também em São Gonçalo 57 Com a reformulação o Curso de Pedagogia passará a funcionar sob o sistema de créditos e não mais seriado. 58 Ver fluxograma em anexo. 122 Filosofia da Educação; Fundamentos da Educação Artística; História da Educação II; Educação Brasileira; Metodologias do Ensino das Séries Iniciais; Pesquisa em Educação I, II e III; Políticas Públicas; Prática de Ensino I e II; Psicologia da Educação I e II; Recreação I e II; Sociologia da Educação; Técnicas de Estudo I; Tópicos Especiais I, II, III, IV, V e VI. Fazem parte também do fluxograma de disciplinas obrigatórias àquelas relativas às áreas do conhecimento ensinadas nas séries iniciais do Ensino Fundamental e que são de responsabilidade dos outros departamentos da FFP (Ciências, Geografia, História, Letras, Matemática e Ciências Humanas). Essas disciplinas são oferecidas nos primeiros anos do curso e têm carga horária de 480 horas. São elas: Fundamentos das Ciências da Natureza I e II; Fundamentos do Trabalho de Leitura e Expressão Escrita no Ensino de 1ºgrau I e II; Fundamentos do Trabalho com o Texto Literário no Ensino de 1º grau I e II; Geografia; História; Língua Portuguesa I e II e Matemática I e II. A disciplina Tópicos Especiais, apresentada como uma disciplina de ementa livre e também obrigatória, é oferecida em seis períodos ao longo do curso num total de 210 horas/aula. O Curso de Pedagogia passou recentemente por um processo de reformulação que tem como intuito ampliar a oferta da docência também para Educação Infantil e Ensino Médio (Normal), bem como no campo da Gestão Educacional através de múltipla habilitação. A proposta, implantada no primeiro semestre de 2006, reafirma a centralidade da docência e a Universidade como lócus da formação de Professores. Este projeto de reformulação nasceu do debate entre os professores que compunham o Departamento de Educação e, trazia em seu bojo, a busca da inclusão da pesquisa como eixo norteador do curso, já que o currículo anterior, além de muito reduzido, não enfatizava os demais campos da formação universitária. O desejo dos alunos coadunou-se à idéia dos professores, pois os mesmos reivindicavam uma formação mais ampla do que somente a Licenciatura das Séries Iniciais. Estas foram as primeiras modificações implementadas para dar um novo caráter à formação de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental na FFP. Interessa-nos dar ênfase a este processo de reformulação do Curso por estar diretamente ligado a esta pesquisa o processo de transformação da disciplina de Recreação e Jogos I e II em Educação, Artes e Ludicidade I, II e III. As ementas e programas que se encontram em 123 anexo apontam uma mudança de enfoque que veio sofrendo a disciplina, onde destaco a consagração de 2/3 da carga horária destinados à pratica. A nova proposta tem a intenção de não se distanciar da temática ludicidade e manter como foco a integração dos princípios cognitivos, afetivos, psicomotores, sociais e culturais, compreendendo o jogo como fenômeno que faz parte de movimentos instituídos (aulas de educação física e recreação) e instituintes ( atividades espontâneas e desejadas) vivenciadas não apenas no interior das escolas, assim como relacionando-as com a arte e a educação e reconhecendo estes campos como importantes no processo de formação humana. Passarei, assim, a alguns esclarecimentos da grade curricular do Curso de Pedagogia que se fazem necessários: A disciplina de Recreação e Jogos I é oferecida no 5 º período com 30 horas/aulas distribuídas em dois tempos semanais, o mesmo ocorrendo com a disciplina Recreação e Jogos II, oferecida no 6 º período, também com 30 horas/aula, perfazendo-se um total de 60 horas/aulas desta temática no Curso. Com a reformulação ela se fundiu com a disciplina Fundamentos da Educação Artística, que também integraliza uma carga horária de 60 horas/aula oferecida no 4 º período. Temos, oferecimento das disciplinas Educação, Artes e Ludicidade I, II e III assim, o no três primeiros semestres letivos com carga horária total de 135 horas ( 45h/aulas cada). Entendendo que o currículo deva ser pensado como uma estratégia que concretize os princípios e o perfil do profissional, objetivados na proposta de reformulação, identificase como grande eixo do novo currículo a formação do professor/pedagogo/pesquisador que se dá na articulação inter e transdisciplinar através da organização de sub-eixos que integram as disciplinas na busca de interlocução com diferentes saberes. Com base nestes indicativos, as disciplinas do curso no currículo novo de Pedagogia arrolam-se nos seguintes eixos temáticos: Docência e Pedagogia na Educação Básica, Fundamentos Teóricos e Educação, Gestão e Organização do trabalho na Escola, Temáticas Contemporâneas na Educação, Atividades Complementares, Pesquisa em Educação, Estágio Supervisionado e Conhecimento e linguagem na Educação Básica, do qual fazem parte as disciplinas de Educação, Artes e Ludicidade I, II e III, pois compreende-se que as múltiplas linguagens da arte, da ciência, da técnica, da filosofia vão constituindo a cultura que simultaneamente é processo e produto, onde as relações estabelecidas entre educação e cultura, sobretudo artística e lúdica, abrem caminho para o 124 entendimento da educação como prática permanentemente atenta aos movimentos, não só instituídos como também aos educacional. Neste sentido, movimentos instituintes que afloram no contexto a nova proposta para a temática ludicidade/jogo/recreação/artes/educação atende a perspectiva do currículo e do professor que se pretende formar no Curso de Pedagogia da FFP. A complexidade da trama social contemporânea nos coloca diante do desafio de repensar a formação de professores bem como avaliarmos, num processo contínuo, o nosso ‘fazer’ e o nosso ‘pensar’ a docência. Não nos cabe mais apenas uma ‘cabeça bem cheia’ onde o saber é acumulado não dispondo de uma organização que lhe dê sentido, necessitamos de uma “cabeça bem feita” no sentido moriniano (MORIN, 2004), onde o mais importante é dispor ao mesmo tempo de uma aptidão geral para colocar e tratar os problemas, permitindo ligar saberes atribuindo-lhes sentido. Pautada nestes pressupostos, a reformulação do Curso de Pedagogia pretende ter a docência como eixo da formação do pedagogo, o atravessamento teoria-prática e a formação do professor pesquisador com pleno domínio e compreensão da realidade de seu tempo, com consciência que lhe permita analisar, interferir e transformar. Nesta perspectiva, a proposta do Curso para a temática recreação e jogos/ ludicidade e artes é de grande importância , pois passa a atender as prerrogativas das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Pedagogia que em seu Artigo 5º inciso VI, aponta a educação física como parte do programa deste curso. Na busca da superação das dicotomias na formação dos profissionais da educação, procuramos adquirir um olhar sensível e uma escuta atenta, tornando-nos capazes de perceber a ‘socialidade em ato’ de Michel Maffesoli (1984), entendida como um conjunto de práticas cotidianas que constituem o substrato de toda vida em sociedade. É a socialidade que faz a sociedade, onde também “ é preciso ver a complexidade onde ela parece em geral ausente como, por exemplo, na vida quotidiana” ( MORIN, 2004, p.83). A realidade é complexa e para a compreendermos, nosso pensamento tem que seguir a mesma linha de complexidade. Morin reivindica uma percepção global e integradora da realidade através da ciência. É importante que não se deixe de lado elementos fundamentais do conhecimento: o contexto, o global, o multidimensional, o complexo. Enquanto 125 educadores, percebendo e compreendendo a efervescência do cotidiano social dentro e fora da escola, tornamo-nos mais aptos na formação de sujeitos. O “homem complexo” de Edgar Morin (2003), com suas facetas bio-psico-sócioculturais, vivencia atividades coletivas cotidianas dentro e fora da escola e de outras instituições, incentivando e gerando a formação cultural e artística de forma dialética, possibilitando a construção permanente de saberes fundamentais ao professor transformador, onde as disciplinas que abordam o lado lúdico do ser humano redimensionam a compreensão de mundo e de homem em sociedade. Sendo assim, ‘aposto’ na reformulação do Curso de Pedagogia da FFP como um campo privilegiado de formação de professores comprometidos com a sociedade brasileira. A Súmula 126 Aulas de Recreação e Jogos - FFP/UERJ - 2005 A Súmula __________________________________________________________________ Afinal o espaço pedagógico é um texto para ser constantemente “lido” , interpretado, “escrito” e “relido”. Paulo Freire (1996) 127 No campo dos jogos desportivos, a súmula é uma espécie de relatório onde ficam registrados todos os acontecimentos de uma partida, tornando-se um documento importante para posterior avaliação dos fatos transcorridos59. É um registro para ser lido e relido de forma que, para além de registrar oficialmente o jogo jogado, possa servir de elemento norteador para jogos futuros, principalmente quando analisados por técnicos, árbitros, dirigentes e pelo próprio jogador. Ao apresentar esta parte do trabalho intitulada Súmula, pretendo levar o leitor à observar os dados da pesquisa coletados por meio de questionários e por duas entrevistas numa abordagem qualitativa. Nos últimos anos, os procedimentos experimentais e de análises estatísticas de dados, têm levado as pesquisas quantitativas a um crescente desuso, principalmente na área de ciências sociais. Percebe-se, então, um maior interesse de pesquisadores das áreas humanas e sociais pelo uso de pesquisa qualitativa, tornando-se esta uma das metodologias para ler, interpretar, escrever e reler os espaços pedagógicos, conforme apontado na epígrafe supracitada. Fontoura (1997) entende que este estilo de pesquisa “tem como fonte direta de seus dados o ambiente onde acontecem os eventos e o pesquisador como agente, pressupondo um contato direto do pesquisador com o ambiente e com a situação investigada”. (FONTOURA, 1997, p.68). No presente estudo, torno-me este pesquisador/agente, pois trata-se de uma investigação a partir de minha práxis docente na disciplina de Recreação e Jogos I e II do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ. Seguindo esta linha de compreensão, a autora citada entende que “sujeito e objeto são da mesma natureza, e suas relações são portadoras de significado”. (Idem, p. 64) “A preocupação maior da pesquisa qualitativa é com o processo, portanto, ao estudar um determinado problema, o interesse do pesquisador concentra-se em verificar como este processo se manifesta nas atividades observadas, nos procedimentos e nas interações cotidianas”. (FONTOURA, 1997, p.68) Nesta visão, temos uma abordagem dialética, cujas etapas de investigação, interpretação, análise e suas contradições, são parte do processo social analisado no cotidiano, devendo ser incorporadas a este trabalho investigativo. Fontoura (1997) ainda 59 Ao final das aulas de Recreação e Jogos no Curso de Pedagogia da FFP/UERJ, as alunas faziam comentários e apontamentos sobre as atividades vivenciadas, uma espécie de súmula para ser lida e interpretada. A imagem de abrtura desta parte do trabalho revela um destes momentos 128 nos alerta que “há o limite de nossa capacidade de investigação e a certeza da dinâmica no fazer ciência, sem reduzi-la à experiência” (p.68) nos levando a buscar os significados latentes que emergem de nossas vivências profissionais e a interpretação destes como forma importante de análise. O resultado de uma pesquisa pode ser considerado como um momento da práxis do pesquisador reveladora de seus próprios condicionamentos. As pesquisas qualitativas têm adotado diferentes métodos para análise-interpretação do contexto social e suas dimensões multifacetadas. O estudo da temática “jogo” e a sensibilidade por mim desenvolvida nos últimos anos de observações e reflexões sobre as aulas e as fruições demonstradas pelos alunosprofessores, constituíram-se numa “memória de campo” que levou-me a optar pela pesquisa qualitativa cuja “investigação social enquanto processo de produção e enquanto produto é ao mesmo tempo uma objetivação da realidade e uma objetivação do investigador que se torna também produto de sua própria produção” (FONTOURA, 1997, p.69). Assim, sigo com ‘espírito do vale’ ( MORIN, 2005, p.39), ou seja, aquele que recebe todas as águas que derramam dele, buscando desta viagem uma articulação da educação com a temática jogo pelo viés da socioantropologia do cotidiano. Parta tal, a metodologia desta pesquisa se utilizou de duas heurísticas mais específicas: questionários investigativos e narrativas. A expressão ‘sumula’, encampa estas heurísticas, ou seja, um registro do que ocorreu em campo de forma a ser escrito, lido, relido e interpretado como sugerido por Freire (1996), levando-me a entender, apreender e interpretar O que está em jogo no jogo. Questionários: O que está em jogo no jogo 129 Nesta parte do trabalho, apresento algumas respostas dadas às oito questões do questionário que apontam os temas mais significativos na relação jogo/educação, servindo assim de base para análise. A categoria central investigada é a relação entre jogo e educação, revelando de que forma o jogo é (re)significado a partir da participação em vivências lúdicas durante o processo de formação do professor e a relação das mesmas com os aportes teóricos discutidos na disciplina Recreação e Jogos I e II, concretizando a relação prática-teoriaprática nas atividades lúdicas. A partir dos dados obtidos, busquei compreender o significado do jogo, enquanto uma prática pedagógica, como os alunos-professores o pensam e o utilizam em suas práxis, as sensações que dele emergem e as marcas que estes sujeitos trazem das atividades lúdicas que experimentaram na infância nas escolas em que estudaram, transferidas, ou não, para a função docente. A categoria de escolha para a participação na pesquisa na seção questionário obedeceu ao seguinte critério: alunos voluntários do quinto período em diante do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ, com ou sem experiência na docência. Foram distribuídos cinqüenta questionários nas turmas de Recreação I e Recreação II, dos quais trinta e cinco foram respondidos e devolvidos. Estes questionários contêm oito perguntas que serão aqui apresentadas em blocos que contemplem um mesmo eixo de análise. Apresento os temas recorrentes nas respostas dadas aos questionários investigados60. Sobre o jogo Pergunta 1- O que você entende por jogo? 60 Apresento as respostas dadas pelos alunos-professores coletadas a cada pergunta das questões formuladas, sem, no entanto, apresentar todas as respostas na íntegra, trazendo as mais significativas e evitando repetições. Os temas recorrentes estão destacados em negrito. 130 A associação de jogo aos termos lúdico e ludicidade foi recorrente em doze das respostas dadas. Entendendo-se ludicidade como uma atividade prazerosa, quatorze investigados a relacionaram à prazer, diversão, lazer, entretenimento, sonhos e a emoções, sem necessariamente usarem os termos lúdico ou ludicidade. Sendo assim, poderíamos identificar esta categoria como a mais relevante nas respostas desta primeira questão, pois perfazem um total de vinte e seis incidências no mesmo tema: prazer/ludicidade.. Observemos algumas das respostas: “ Atividades lúdicas que têm por objetivo entreter, ensinar atitudes e algumas vezes os conteúdos escolares.” (P, 5º p.) “ Ludicidade, prazer, momento único em que só interessa brincar.....”( S, 5º p.) “ É uma atividade lúdica competitiva” (A ,6 º p.) “ Atividade lúdica sistematizada” (F, 6 º p.) “ uma atividade lúdica que envolve regras, ordem,competição, fantasias e grandes emoções” (J, 6 º p.) “o jogo é uma atividade lúdica onde todos se integram ,..”.(I, 8 º p.) “ Jogo é aquilo que remete a interação e a diversão” .( B, 5º p.) “Algo que traz prazer. È uma atividade natural que faz parte principalmente da infância, onde o sonho vivido no jogo é socialmente aceito”. (M, 5º p.) “ É uma forma de ensinar o aluno, transformando assim a aula prazerosa e também a oportunidade de trabalhar coordenação motora. ( K, 7º p.) “É um tipo de lazer onde seus participantes possuem a flexibilidade de mudar regras”. (M,7 º p.) “Atividades competitivas, com regras, que nos dão muita emoção e ao mesmo tempo ansiedades e alegrias”. (L, 7º p.) “Atividade física ou metal em que a criança se diverte e adquire conhecimento. O jogo é baseado em regras que definem quem ganha ou perde. (A, 8º p.) 131 “O jogo é uma atividade lúdica onde todos se integram, como forma participativa e prazerosa. (I, 8 º p.) Uma das características do jogo apontada por Huizinga (2004), é a de que esta atividade é fonte de alegria e divertimento. O jogador decide espontaneamente se entregar em busca de prazer. A frivolidade é uma característica fundamental do jogo para Brougère (1998), o que não exclui a seriedade do ato de jogar. Há no jogo um estado de euforia, a paidia (CAILLOIS, 1990), que o garante. Como se pode perceber, as palavras diversão, lazer, prazer e alegria foram as marcas do que estes sujeitos entendem por jogo Ainda na primeira questão, podemos observar que algumas respostas pautam-se na relação jogo/trabalho, onde o jogo pode ser compreendido no sentido de uma tarefa escolar, ou seja, com intencionalidade pedagógica, o que ficou evidente em quinze respostas. Para estes alunos-professores, o jogo pode ser utilizado como método de ensino de um conteúdo do programa, ligado diretamente ao processo ensino aprendizagem, e que ainda proporciona os desenvolvimentos físicos, intelectuais e mentais das crianças, onde, na maioria das vezes, possibilita também a diversão. “Uma forma de aprender brincando. É uma nova forma de ensinar.( C, 5º p.) “Uma forma mais divertida de ensinar”. (M, 5º p.) “Jogo ajuda na construção do raciocínio lógico e na aprendizagem”(S, 7º p.) “É uma forma de ensinar o aluno, transformando assim a aula prazerosa e também a oportunidade de trabalhar coordenação motora.” (K, 7p) “É uma forma de diversão e de aprendizagem, pois no jogo se é capaz de adquirir habilidades motoras, intelectuais, etc..”. (J, 8º p.) “Atividades lúdicas que tem por objetivo entreter e ensinar atitudes e conteúdos escolares”.( P, 5º p.) algumas vezes os “Jogo é uma ação lúdica onde o professor pode mediar aquisições de conhecimento tanto curricular quanto comportamentalistas e até mesmo de regras para a vida social. Já para a criança acredito que ela o entenda como meio de extravasar o que não pode ser feito na sala de aula, trata-se apenas de diversão”. (S, 7º p.) 132 A relação jogo-trabalho foi muito bem apontada por Brougère (1990). Para este autor quando o jogo torna-se ferramenta metodológica no ensino de um conteúdo, acaba adquirindo um sentido de tarefa a ser realizada pelos alunos. Esta é uma noção muito freqüente nas práticas educativas que fazem opção pelo uso do jogo. Na intenção de motivar o aluno e julgando não estar desperdiçando o tempo de aula destinados aos conteúdos, o professor leva o aluno à aprender brincando, não levando em conta que a recíproca é verdadeira, ou seja, brincando e jogando também se aprende. No sentido de Competição encontramos treze respostas dadas a primeira questão que envolvem disputa, regras, normas e sistematização das atividades. “Uma atividade de recreação que possui regras”. (K, 5º p.) “... Antes eu pensava no jogo como competição, disputa e entretenimento..”. (G, 6º p.) “É uma atividade lúdica competitiva” (A, 6º p) “Toda brincadeira em grupo com regras” (R, 6º p.) “Atividade lúdica sistematizada” ( F, 6º p.) “Uma atividade lúdica que envolve regras, ordem, competição, fantasias e grandes emoções”. (J, 6º p.) “Entendo como uma atividade lúdica que possui regras existindo um ganhador” (G, 7º p.) “Atividades competitivas, com regras, que nos dão muita emoção e ao mesmo tempo ansiedades e alegrias”. (L. ,7º p.) “O jogo é baseado em regras que definem quem ganha ou perde”. (A, 8º p.) “Um conjunto de regras” (K, 8º p.) O jogo só é jogo porque existe um sistema de regras (ludus) que norteia as ações de quem joga. Este sistema permitirá que os jogadores, em iguais condições, sejam submetidos à prova. A superação de si próprio como limite para superar o outro dá ao jogo um caráter de competitividade. Esta é uma característica importante do ato de jogar que me leva a 133 apontar uma tênue distinção entre jogo e brincadeira, pois nesta o sentido competitivo não é tão marcante. A questão da competição nos jogos vem sendo muito discutida na atualidade, surgindo diferentes propostas de jogos cooperativos61. Concorrer e competir são propostas de análise de conceituação para compreensão do jogo com intencionalidade pedagógica. Não me proponho aqui a enveredar por esta questão, mas compreendo que dependendo de como o educador se utiliza do jogo na escola, este pode ter o caráter mais de concorrência do que de competição. No sentido de concorrência, cria-se laços, pois joga-se com os outros e não contra os outros. O compromisso não está na vitória, mas com o jogar com o outro. O outro oportuniza o momento do jogo. No sentido de competição, o jogador é levado ‘até as raias’ para eliminar seus oponentes. O prazer maior da disputa está em vencer, onde as regras “definem quem ganha e quem perde”, como mencionou o aluno-professor entrevistado, ou ainda “existindo um ganhador”, como inferiu outro. Seja no sentido de cooperação, ou no sentido de competição, o jogo deve ser utilizado de forma consciente por parte dos professores, sejam estes de educação física, ou não. Deve-se levar em conta que, para muitas crianças, o prazer maior está no movimento que o jogo gera, e nem tanto no resultado final deste. Das lembranças dos jogos Pergunta 2- Na sua formação de educação básica você participava de atividades de jogos na escola? Que lembranças isto lhe traz? Nas respostas dadas, percebemos que a maioria tem boas lembranças, onde treze alunos-professores associam o jogo ao prazer, alegrias, sentimentos positivos e fortes emoções. Para muitos o jogo era vivido num ‘lugar outro’, fora do mundo real e duro dos afazeres escolares, representado um escape da realidade proporcionado, na maioria das vezes, pelas aulas de educação física e nos momentos do recreio, como se vê nos relatos que se seguem: 61 A este respeito consultar BROWN ( 1995), SOLER ( 2002) e CORREIA ( 2006) 134 “Sim, são muito boas as lembranças. Eu era livre, sem medo de ser feliz , fazia amigos, inventava , sonhava, ria e até brigava. Tudo acontecia mais no recreio que nas aulas”. (M, 5 º p.) “ Sim, me recordo das horas do recreio em que cada dia uma do grupo era a responsável pela brincadeira. Dias e momentos gostosos eram aqueles...” (S, 5º p.) “Eu adorava as aulas de educação física, sempre curtia tudo”. (C, ,5º p.) “ Participava de todos que pudesse. Lembro-me dos amigos, dos apelidos, da gargalhadas” (A, 5º p.) “ Sim, lembranças muito boas”. (K, 5º p.) “O jogo para nós era o momento mais esperado”. (G, 6º p.). “A hora mais agradável era a educação física onde brincávamos e jogávamos diversos jogos. Ainda sinto alegria só de pensar naquelas aulas. Parece que ainda ouço as risadas dos meus colegas brincando”. (J, 6 º p.) “ Sim , e as lembranças que tenho são as melhores possíveis , ainda mais pelo motivo de eu não estar nestes momentos dentro de uma sala de aula”. (A, 7 º p.) “Sim e muito. Tive professores maravilhosos como Chalés, Marquinhos e Kátia. A prendia a jogar handebol, vôlei, basquete e o tão amado queimando. Por ser a mais velha da turma, eu sempre escolhia o time e todos queriam ficar comigo. Éramos uma turma muito unida e nos vemos sempre (sempre que possível até hoje). Em relação as lembranças são as melhores possíveis. Que saudade!!! “(L, 7ºp.) “No recreio, na chegada e na saída com alguém sempre pedindo para parar. As lembranças são de liberdade, alegrias de poder viver um momento a parte, onde tudo vale para ser feliz”. (L, 7 º p.) “Brincava no recreio, são as lembranças mais agradáveis que possuo da escola”. (K, 8 º p.) A alegria na escola, normalmente, está associada às atividades lúdicas. Talvez por esta razão o professor de educação física, em diversas escolas, seja uma figura tão querida. A concepção de educação física escolar pauta-se na cultura corporal na perspectiva de ludicidade. Seus conteúdos compreendem o jogo, o esporte, a dança, a ginástica e a luta (BRASIL, 1997, p.26) como representação corporal da cultura humana, assim, a educação física contempla múltiplos conhecimentos produzidos e usufruídos pela sociedade a respeito do corpo e do movimento com finalidades de lazer, expressão de sentimentos, 135 afetos, emoções e com possibilidade de promoção, recuperação e manutenção da saúde (idem, p.27) Percebemos que, para muitos dos sujeitos desta pesquisa, as aulas de educação física foram associadas a boas lembranças da escola, alguns lembrando até mesmo o nome de seus professores. No entanto, nove investigados nem sequer lembraram do que brincavam ou jogavam na escola e alguns deles apontam falta de espaço e oportunidades para tal como podemos observar: “Apenas na educação infantil. Não me recordo”. (P, 5º p.) “Não lembro de atividades de jogos na minha formação”. (A, 6º p.) “ Na educação básica eu não possuí aulas de educação física, e nem de recreação e por isso não me lembro de nenhum jogo feito em sala de aula”. (G, 7º p.) “ Não lembro de ter participado de nenhum tipo de jogo”. (K, 7 º p.) “Não” (H, 8 º p.) “Não”. (A, 8 º p.) “Sim, minha lembrança é que a única atividade era o queimado” (S,, 6 º p.) “Apenas no recreio” (F, 6 º p.) “Pouco. O tempo e o espaço do jogo eram muito restritos” (J, 6 º p.) Parece-me que se a criança não teve oportunidades de brincar e de jogar na escola, as boas lembranças não podem ser rememoradas com facilidade. Encontramos ainda, na segunda questão, sete respostas que ligam o jogo à vergonha, humilhação, sacrifício e obrigação, o que torna estas lembranças ruins: “Sim, lembro do calor na quadra, das regras do jogo, da vergonha de errar”. (R, 6º p.) “Sim , não muito boas, pois eu era gordinho e ninguém gostava de me escolher”. (M, 6 º p.) “Sim, era massacrante pelo fato de ser algo imposto, obrigatório”. (B, 5º p.) 136 “Sim ,lembranças de humilhação e inferioridade na qual não consegui me desprender desde os dias atuais”. (M, 7 º p.) “No ensino fundamental das séries inicias os jogos eram queimado, handebol, vôlei ( 5ª a 8ª ). As minhas lembranças ficam marcadas pelas disputas entre as equipes onde muitas vezes eu ficava com sentimento de raiva por ter perdido”. (I, 8 º p.) “Não. Era tímida e não gostava”. (J ,8 º p.) O jogo imposto não é jogo, é tarefa, e, as vezes, duramente cumprida. O jogo só é prazeroso se o sentimento que o jogador tiver por ele for de desejo e entrega. Estar no jogo é entrar na ‘alma do jogo’, do contrário é penitência e sacrifício. Torna-se necessário, no contexto escolar, que os professores, sejam de educação física ou não, tenham sensibilidade para motivar os alunos à jogar, assim como perceber se a atividade proposta está sendo desagradável ou está causando algum constrangimento para os participantes. O uso do jogo na escola, por parte de qualquer professor, depende de uma postura crítico-reflexiva de modo a torná-lo educativo e promotor do desenvolvimento humano. Pergunta 3 - Antes de ingressar no Curso de Pedagogia da FFP/UERJ como você entendia/percebia o uso do jogo na escola? Das respostas dadas a esta questão, quatorze se referem ao jogo na escola como diversão, lazer, recreação, atividade livre e natural da criança e sem grandes significados para a educação. Nos relatos que se seguem isto fica evidente: “Entendia como lazer, o puro brincar, ou mesmo como o desenvolvimento de alguma habilidade física”. (S, 5º p.) “Como diversão”. (Â, 5º p.) “ Como recreativo ou parte das aulas de educação física como desporto”.(M, 5 º p.) “Como uma forma de passatempo na escola”. (S, 6º p.) “Como algo “normal”. Não entendia a sua parte social”. (M, 6 º p.) “Eu entendia o jogo como sendo apenas lúdico não vendo outra importância”. (S, 6 º p.) 137 “ Somente como brincadeira”. (S, 7 º p.) “Compreendia como uma maneira de passar o tempo de fazer com que as ficassem quietas”. (M, 7 º p.) “Como uma atividade que dava alegria às crianças, mas que era controlada, aceita na educação física”. (L, 7 º p.) pessoas só sendo “Como uma atividade em que ao mesmo tempo em que havia a diversão, havia também a aprendizagem pois através do jogo a criança desenvolve várias habilidades” (A, 8 º p.) “Via apenas como uma forma de recreação, sem fundamentos” (H, 8 º p.) “Uma brincadeira sem importância”. (E, 8 º p.) Novamente aqui a questão do prazer se destaca, mas, no entanto, dissociada de princípios educativos. Quando a educação está ligada ao jogo, a maneira de pensá-lo se modifica. Os entrevistados não percebiam a relação jogo-educação, não lhe atribuíam outro sentido que não fosse o de lazer. Entendendo o jogo como recurso pedagógico ou ferramenta metodológica no processo ensino-aprendizagem, encontramos doze dos participantes da pesquisa. “Como mero mecanismo de aprendizagem” (B, 5º p.) “ Como professora já entendia que o jogo era um recurso pedagógico muito importante, principalmente para as crianças, pois elas aprendem conteúdos escolares através do divertimento”. (J, 5º p.) “ ...conheço todo o benefício, padrão cognitivo do aluno, conheço também a metodologia para a aplicação do jogo em várias disciplinas para auxiliar na assimilação dos conteúdos propostos de uma maneira lúdica.”(G, 6 º p.) “Sempre achei que o jogo seria uma boa opção de aprender”.( K, 7 º p.) “Como uma atividade em que ao mesmo tempo que havia a diversão , havia também a aprendizagem pois através do jogo a criança desenvolve várias habilidades” (A, 8 º p.) “Como uma das regras de avaliar o aluno” (J, 8 º p.) 138 Um número significativo de alunos-professores associa jogo à ferramenta metodológica. Na maioria das respostas percebe-se que alguns dos sujeitos se colocam na condição de docente quando respondem e outros deixam isto subentendido62. Não davam importância ao jogo na escola oito participantes da pesquisa, pois não pensavam no assunto, ou não percebiam se atividades lúdicas aconteciam neste contexto. Apresentamos alguns exemplos: “Nunca havia pensado no jogo na escola”. (M, 5º p.) “Não dava importância”. (A, 6º p.) “Como desnecessário” (A, 8 º p.) “Uma brincadeira sem importância”. (E, 8 º p.) Ligados apenas a disciplina de educação física temos sete respostas, das quais algumas apresentamos a seguir: “Apenas com a finalidade de educação física”. (P, 5º p.) “... Achava que jogo só era feito na educação física”. (C, 5º p.) “Como recreativo ou parte das aulas de educação física como desporto”. (M, 5 º p.) “Como atividades das aulas de educação física ou atividades controladas por inspetores, diretores e professores”. (J, 6º p.) “... só sendo aceita na educação física”. (L, 7 º p.) Nestas respostas, novamente a educação física aparece como área de conhecimento mais próxima do jogo na escola paraalguns entrevistados. Do jogo na formação de professores 62 Dos trinta e cinco alunos-professores que participaram desta fase da pesquisa, apenas nove nunca tiveram experiência na docência. Fato que fica evidente nas respostas da pergunta seis, como veremos mais adiante. 139 Pergunta 4 - Durante seu processo de formação na FFP/UERJ, que experiências com jogos lhe foram proporcionadas? Relate-as identificando que sentimentos, emoções e sensações lhe despertaram. Respondendo que participaram de alguma experiência com jogos na FFP, tivemos unanimidade, visto que todos os entrevistados foram alunos da disciplina de Recreação e Jogos. Destacamos que algumas das respostas dadas a esta questão e a questão anterior, ostram uma mudança de olhar em relação ao jogo após o ingresso no Curso de Pedagogia. Quanto aos sentimentos expressados pelos alunos-rofessores nas vivências lúdicas, temos as seguintes respostas: “ Nas aulas de Recreação I. Foram boas, fizeram sentir-me criança novamente”. (P, 5º p.) “As melhores possíveis, com certeza virei criança em muitos momentos, aliás, como todos na sala. Podemos gritar, pular, reclamar, torcer, rir, até mesmo implicar com o grupo adversário, tudo numa boa. E com certeza saíamos da sala mais relaxadas, o corpo até poderia estar cansado, porém o emocional estava bem”. (S, 5º p.) “Somente nas aulas de Recreação. Quando brinco nas aulas de Recreação volto a ser criança, me empolgo, grito, rio, faço tudo o que fazia quando era criança. É ótimo, adoro brincar!” (C, 5º p.) “Participei de alguns jogos em Recreação e compreendi a importante função dos jogos como, por exemplo, desenvolver a criatividade, a socialização, aprimorar o senso crítico e etc... mas basicamente o que sinto é o prazer em me divertir”. (A, 5º p.) “Durante o curso de Pedagogia temos tido várias oportunidades de trabalharmos com recreação, especialmente nas aulas de Recreação e Jogos. A partir dessas atividades temos recordado um pouco da nossa infância, quando ficamos inseguros ou nos concentramos nas atividades. Também temos vivenciado sentimentos de companheirismo e cooperação”. (K, ,5º p.) “Me proporcionaram um olhar mais profundo sobre os jogos, no que tange aos seus objetivos e benefícios. Bem vivenciando os jogos tive momentos de alegria, de disputa (nas atividades de competição) e de superação”. (J, 5º p.) “ Nas aulas de Recreação . Foram experiências maravilhosas e inesquecíveis. Voltemos a ser crianças e passamos a entender o quanto faz bem ao corpo , mente e espírito. Foram fortes emoções, o coração disparava, eu suava, gritava, sorria e ficava muito feliz”. (M, 5 º p.) 140 “Muitas experiências boas, entre elas tornar as aulas mais agradáveis , trabalhar vários conflitos entre os alunos , trabalhar disciplina em sala, respeito às regras, além disso há uma sensação de liberdade , é o momento em que todas as emoções são extravasadas , não há nenhum tipo de censuras , todas as pessoas tornam-se iguais da mesma idade, com os mesmos objetivos , além do elo de amizade que se forma durante o jogo e até cumplicidade”. (G, 6º p.) “As mais variadas possíveis, sempre participei e me sentia uma criança. Só nesses momentos é que pude perceber que a criança não é diferente, ela grita, fica ansiosa, “ cola do outro” , enfim, busca recursos assim como eu e minhas colegas fizemos, para sempre ganhar, ninguém queria perder”. (S, 6º p.) “As únicas experiências que tive aconteceram a partir do 5 º período em Recreação”. (A, 6º p.) “Experiências maravilhosas de libertação, de competitividade, de esquecimento dos problemas de satisfação de vencer e vontade de gritar e ser feliz”. (R, 6 º p.) “Inúmeras nas aulas de Recreação. Voltamos a ser crianças e passamos a respeitálas mais ainda, pois as compreendemos melhor. Suas emoções, fantasias, sonhos, alegrias, angústias, passaram a ser percebidas por nós professores”. (J, 6º p.) “Acho que não existe ninguém que não goste de participar de jogos. No começo pode haver um pouco de timidez, ou também o medo de errar, por isso se faz necessário trabalhar jogos nas escolas e se possível a todo momento para que o indivíduo torne-se um ser social. Fizemos na FFP vários tipos de jogos, os quais nos proporcionaram o prazer de reviver brincadeiras/jogos de nossa infância. É bem legal sentir a adrenalina de novo, o corre-corre do dia -a dia nos faz esquecer o quanto as atividades como essas fazem bem para o corpo r para a mente” (L, 7º p.) “O jogo na FFP me proporcionou voltar no tempo, na época em que era garota e que brincava na rua com os meus amigos, sem medo de errar e com muita vontade de vencer.Acredito que o jogo seja igual a um bom livro, porque a cada tempo vivido a interpretação torna-se diferenciada e melhor. O lúdico proporciona um sentimento de liberdade, um sorriso na voz, um grito no peito e uma ansiedade em como será a próxima etapa do jogo”. (G, 7 º p.) “Entre todas as atividades, a que eu mais gostei foi os trabalhos finais do 5 º período, pois todas aquelas brincadeiras me fizeram lembrar de como era ser criança e reconhecer todas as habilidades que eu não desenvolvi por falta de jogos”. (K, 7º p.) “Aprendi muito com Recreação, principalmente relacionando a teoria com a prática . Hoje vejo o jogo de forma diferente , como algo natural e que é importante para o desenvolvimento geral da criança” . (L, 7 º p.) 141 “ Experiências práticas e teóricas. Estas experiências que tive com jogos na disciplina de Recreação me proporcionou vivenciar momentos de diversão, alegria e prazer, os quais não tive na minha fase de criança em educação básica”. (J, 8º p.) “As experiências adquiridas na disciplina de Recreação me proporcionaram momentos de descontração, prazer, ... e muitas reflexões pois a cada jogo ( brincadeira) que ia sendo apresentada eu já pensava em que momentos eu poderia utilizá-los”. (A, 8º p.) “Só na disciplina de Recreação como uma criança”. (A, 8º p.) “Vários na aula de Recreação” (M, 8º p.) “Foram várias situações. Todas elas despertavam sentimentos de alegria “. (M, 8º p.) “ Experiências prazerosas”. (K, 8º p.) “As atividades com jogos forma apenas nas aulas de Recreação . Esta aula era uma forma de resgatar o prazer pelas atividades”. (H, 8º p.) “ Alegria, excitação e surpresas”. (C, 8º p.) “Corporal, sentimental, sentimento de prazer”. (E, 8º p.) “Somente na aula de Recreação com jogos sem a preocupação de avaliar o aluno e na aula de metodologia de matemática. (J, ,8º p.) A relação teoria e prática, proporcionada pela disciplina Recreação e Jogos, foi um marco significativo no entendimento do jogo no processo educativo. A partir das fruições provocadas pelos jogos, foi possível ao aluno-professor perceber o que sentem as crianças quando jogam: “todas aquelas brincadeiras me fizeram lembrar de como era ser criança “ Nas repostas dadas, também encontramos evidências na mudança de olhar com relação ao jogo no âmbito escolar, como nos exemplos que se seguem: “Não tinha o conhecimento da importância do jogo que tenho hoje, admito que o curso de pedagogia muito me acrescentou e hoje conheço todo o benefício, padrão cognitivo do aluno, conheço também a metodologia para a aplicação do jogo em várias disciplinas para auxiliar na assimilação dos conteúdos propostos de uma maneira lúdica”. (G, 6 º p.) “ Não via como importante, pois vivenciei pouco durante todo o meu período escolar. Porém hoje consigo ver a necessidade do jogo associado a outras disciplinas que não seja somente a educação física”. (G, 7 º p.) 142 “ Mesmo antes de ingressar na FFP já entendia que o jogo é algo que ajuda muito no desenvolvimento pessoal em várias áreas, pois fiz o curso normal, por isso já tinha essa opinião formada”. (A, 7 º p.) “Como fiz um Pedagógico muito bom, ou seja, onde os profissionais procuraram nos formar com uma gama de recursos que podem ser utilizados em sala de aula , juntamente com as teorias cabíveis. Portanto, tive uma boa introdução do jogo na educação, como meio de aprendizagem e uma forma lúdica de melhor apresentar os conteúdos”. (J, 8 º p.) “Durante a formação fui tendo a consciência que o jogo é uma atividade que desenvolver as diversas capacidades físicas, emocionais, cognitivas. E nas atividades realizadas com dinâmicas fica caracterizado a proteção com os amigos”. (I, 8 º p.) Relacionando o jogo ao processo ensino-aprendizagem, obtivemos cinco respostas, das quais duas se referiam às atividades da disciplina Metodologia de Matemática e outras referiam-se a recurso pedagógico e metodologias de aulas. Apresentaremos as repostas referentes a este enfoque: “Jogos educativos na disciplina Metodologia de Matemática e vários tipos na disciplina de Recreação, onde pudemos vivenciar momentos de descontração, prazer e interação”. (F, 6º p.) “Somente na aula de Recreação com jogos sem a preocupação de avaliar o aluno e na aula de metodologia de matemática”. (J, 8º p.) “Descobri que podemos em nossas aulas utilizar o jogo como recurso e isso foi uma descoberta importante”. (M, 5º p.) “ Muitos foram os momentos em que nos envolvemos neste tipo de atividade. Atividades lúdicas com material concreto para o desenvolvimento do processo de ensinoaprendizagem. Tivemos sentimentos de alegria, curiosidade, satisfação, liberdade, competitividade”. (B, 5º p.) A flutuação de sentidos dos jogos podem provocar uma mudança de olhar que permite uma (re)significação na relação jogo-educação. O professor, através das vivências 143 nas atividades de jogos em seu processo de formação, pode ser levado a uma trans-formaação de suas práticas pedagógicas lúdicas. Pergunta 5 - Qual a importância destas experiências com jogos na sua formação para sua prática pedagógica atual ou futura? Todos os entrevistado reconhecem a importância do jogo no contexto educativo: “ Essencial. Acredito que o jogo seja uma ótima forma de trazer a criança para a finalidade pretendida pelo professor”. (P, 5º p.) “ Muito importante, a partir do momento em que vivenciei essas emoções contidas nos jogos e gostei, percebo o quanto é importante o jogo na escola , para que os alunos também participem de atividades que o ajudem na descarga emocional, etc.. “ (S, 5º p.) “Estes jogos têm uma grande importância, principalmente porque adquiro experiência com a prática, logo sei exatamente que atitudes e que sentimentos os meus alunos terão. Graças ao curso de Recreação conheci muitas brincadeiras que não irei esquecer e que me ajudará muito em minha prática na sala de aula”. (C, 5º p.) “Essas experiências são de suma importância para minha formação, pois pretendo proporcionar aos meus alunos um ambiente educacional que trabalhe com bastantes jogos”. (K, 5º p.) “ Acho muito importante, pois tenho a oportunidade de vivenciar algo que futuramente trabalharei com meus alunos de forma que terei uma sensação de prazer, até porque eu já tive a chance de sentir o jogo na pele”. (J, 5º p.) “É de muita importância, agora eu posso trabalhar o jogo com consciência, com objetivos, sabendo que objetivos alcançar, como e por quê alcançar”. (G, 6º p.) “Só vivenciando, praticando é que aprendemos, é que conseguimos sentir as mesmas coisas que a criança. Sempre considerei o jogo importante, agora então nem se fala”. (S, 6º p.) “Para a minha prática tem a importância de poder estar observando as estratégias utilizadas pelas crianças para a competição”. (A, 6º p.) 144 Considerando o valor do jogo enquanto recreação, obtivemos dezesseis respostas que também o consideraram um fenômeno espontâneo na criança que leva ao prazer e a alegria. M<udança provocada , para muitos, na formação docente. Seguem algumas respostas: “Nos proporcionam mais possibilidades na realização de tarefas diversificadas que fogem da rigidez do currículo”. (B, 5º p.) “ Ficava muito ansiosa para aplicar as atividades com meus alunos, só assim eles poderiam ficar felizes como eu ficava quando brincava. Minha formação ficou mais consciente da importância do lúdico na escola “. (M, 5 º p.) “Só vivenciando, praticando é que aprendemos, é que conseguimos sentir as mesmas coisas que a criança. Sempre considerei o jogo importante, agora então nem se fala”. (S, 6º p.) “Me fez pensar o jogo como instrumento de integração, diversão, emoção, prazer, libertação”. (R, 6º p.) “O reconhecimento de que o jogo faz parte do processo educativo e de que o prof. deve ter conhecimento teórico e prático para compreendê-lo como natural e importante para todos nos aspectos social, cognitivo, motor , psicológico e social”. (J, 6 º p.) “A partir do momento em que experimentei estas sensações, pude perceber de como as crianças se sentem e como o jogo trabalha com habilidades que devem se desenvolvidas nas crianças”. (J, 8º p.) “Acredito que o jogo seja uma importante forma de aproximar as crianças da ludicidade e isso pude comprovar após a disciplina Recreação”. (H, 8º p.) “ O jogo ajuda a perceber as dificuldades, emoções dos alunos”.(E, 8º p.) Com intencionalidade, ou como recurso pedagógico, usado como metodologia ou mesmo como propiciador do desenvolvimento da criança em diferentes aspectos, obtivemos sete respostas , das quais algumas apresentamos abaixo: “Essencial. Acredito que o jogo seja uma ótima forma de trazer a criança para a finalidade pretendida pelo professor”.(P, 5º p.) “Estes jogos têm uma grande importância, principalmente porque adquiro experiência com a prática, logo sei exatamente que atitudes e que sentimentos os meus alunos terão. 145 Graças ao curso de Recreação conheci muitas brincadeiras que não irei esquecer e que me ajudará muito em minha prática na sala de aula”. (C, 5º p.) “Aplicar nas minhas aulas com as crianças”. (A, 5º p.) “Como disse posso utilizar o jogo como recurso em sala”. (M, 5º p.) “É de muita importância, agora eu posso trabalhar o jogo com consciência, com objetivos, sabendo que objetivos alcançar, como e por quê alcançar. (G, 6º p.) “Aprendi a utilizar os jogos na sala de aula”. (M, 6º p.) “ O jogo na escola precisa estar associado a um fundo didático/pedagógico para que se possa ser aplicado em sala , sem sermos observados pela diretora”. (G, 7º p.) “A importância é saber o quanto o jogo pode ajudar a aprendizagem de nossos alunos. Na brincadeira é mais fácil assimilar certos conteúdos”.(L, 7º p.) “Que pude perceber que o jogo não serve apenas como uma atividade recreadora, podemos introduzi-lo no nosso dia a dia como ajuda no processo de aprendizagem” (A, 8º p.) Após as discussões sobre a temática jogo durante o processo formativo, os alunosprofessores passam a compreender a diversão, o lazer e o prazer como dimensões imbricadas no processo educativo. Tendo um fim e si mesmo, pelo aspecto recreativo, e/ou sendo um meio de ensinoaprendizagem, os jogos passam a ser entendidos como parte do processo de formação humana. De forma mais consciente, o professor passa a pensar no uso de jogos e brincadeiras em sua práxis educativas. Do uso do jogo na escola Pergunta 6 - Enquanto docente, em que momentos você utiliza jogos na escola? Relate um exemplo desta utilização. 146 Nove dos participantes não tiveram oportunidade de promover o jogo para alunos por não atuarem na docência e os vinte e seis participantes restantes manifestaram-se favoravelmente ao uso do jogo na escola. Destacamos os depoimentos dos que já atuam na docência: “Na alfabetização utilizei para quebrar um pouco a timidez de alguns alunos, ex; um aluno sai da sala e quando volta tem que adivinhar o que mudou na sala”. (C, 5º p.) “ No início ou no final da aula, ou no recreio”. (K, 5º p.) “Sempre que tenho horário para recreação, mas depois do curso me interesso também pelo que os alunos fazem no recreio. Meu olhar para o brincar mudou , eu valorizo os jogos como educativos e socialmente importantes”. (M, 5 º p.) “Na sala de aula, as vezes na quadra. Sou professora apenas de matemática e ciências, não leciono recreação, por isso, sempre procuro as aulas dessas disciplinas com o jogo. Tenho obtido resultados positivos”.(S, 6º p.) “Depois das aulas de Recreação, sempre que possível ( horas livres com meus alunos) eu levo as atividades que vivenciamos na FFP”.(L, 7 º p.) “A princípio utilizava como estratégia para aplicar algum conteúdo e na hora da recreação, agora que sei da importância do jogo na escola, ele se faz mais presente com intuito de divertimento, prazer, energia”. (S, 5º p.) “Hoje utilizo com mais freqüência, principalmente nas aulas de matemática. (A, 8º p.) Nas respostas acima, percebe-se que mesmo que haja uma intencionalidade, o aspecto de prazer, de recreação faz parte da preocupação do professor que se propõem a usar o jogo na escola. Compreendendo o jogo enquanto recreação, obtivemos onze respostas, dentre os vinte e seis que já atuam na docência. Estes docentes utilizam os jogos na escola também com o intuito de proporcionar prazer e divertimento. As respostas que se seguem são alguns exemplos. 147 “A princípio utilizava como estratégia para aplicar algum conteúdo e na hora da recreação, agora que sei da importância do jogo na escola, ele se faz mais presente com intuito de divertimento, prazer, energia”.(S, 5º p.) “Em sala de aula quando a turma pede, mesmo sem falar. O professor consciente e sensível percebe a hora de alegrar as crianças e também a hora de fazê-las prestar atenção. Uso muito as dinâmicas que vivenciei em Recreação”. (J, 6 º p.) “Na hora do lazer, recreação ou em sala para trabalhar e fixar um conteúdo”. (G, 6º p.) “Estou dando aula para Jardim III, ou seja, o jogo é muito importante. Gosto de jogar com eles próximo a hora da saída para que possam ir mais animados para casa. O jogo que mais gostam é boliche”. (A, 7º p.) “No início ou no final da aula, ou no recreio”. (K, 5º p.) “Sempre que tenho horário para recreação , mas depois do curso me interesso também pelo que os alunos fazem no recreio. Meu olhar para o brincar mudou , eu valorizo os jogos como educativos e socialmente importantes”. (M, 5 º p.) “ “Eu utilizaria em uma sexta feira para trabalhar recreação ajudando o aluno a aprender sem cansar”. ( K, 7º p.) Dos vinte e seis que já atuam na docência, dez associaram o jogo a um processo formativo definido, ou seja, como jogos didáticos. As respostas comprovam isto: “Utilizo para introduzir várias matérias como, por exemplo, o alfabeto. Ele proporciona aumento no rendimento escolar das crianças pelo fato de envolvê-las mais profundamente nas atividades”. (B, 5º p.) “ Como professora trabalhei com jogos no ensino de alguns conteúdos sobre matemática/ ciências ( dominó matemático, jogo da memória sobre animais). Enfim, houve também a aplicação de jogos em outras disciplinas”. (J, 5º p.) “Como disse, posso utilizar como recurso em aula”. ( M, 5º p.) “Na hora do lazer, recreação ou em sala para trabalhar e fixar um conteúdo”. (G, 6º p.) 148 “ Na sala de aula, as vezes na quadra. Sou professora apenas de matemática e ciências, não leciono recreação, por isso, sempre procuro adaptar partes das aulas dessas disciplinas com o jogo. Tenho obtido resultados positivos”. (S, 6º p.) “Durante a aula de matemática uso dados ou boliche”. (A, 6º p.) “Muitas vezes atualmente utilizo através da leitura, figuras geométricas, ..”. ( S, 7º p.) números, “Como trabalho com Educação Infantil, não existe método melhor que a utilização de jogos para ensinar os conteúdos para crianças de três anos. Eles adoram e eu também, pois os dias não viram rotina. Utilizo jogos com garrafas ( boliche) para ensinar números e cores “. (L, 7º p.) “ No momento de recreação e em aula , como em noções matemáticas. Ex: ensinar a contar de 0 a 10. Utilizei o jogo de tabuleiro no qual para chegar ao fim do percurso era preciso contar as casas e enfrentar os obstáculos. Um jogo simples e de acordo com a idade das crianças”. (J, 8º p.) “Hoje utilizo com mais freqüência, principalmente nas aulas de matemática”. (A, 8º p.) “Como estratégia em algumas disciplinas”. (A, 8º p.) “Jogos matemáticos, dominó, quebra-cabeças”. (C, 8º p.) Como recreação ou como alavanca metodológica, tivemos um número de reposta quase na mesma proporção. Onze no primeiro caso, e dez no segundo. E em algumas respostas podemos observar que as duas preocupações ( recreação e ensino de conteúdo) estão presentes. Essa polarização aparece nas imagens que fazem dos jogos escolares como um meio em que constelam sentidos de motivar/organizar/disciplinar e/ou como um fim com os sentidos de recreação/êxtase/escape. Observamos que o jogo na educação transita entre este dois pólos: lazer/tarefa. Brougère (1998) aponta que esta é uma das formas mais clássica de se associar jogo e educação. Talvez por força do pensamento racional, simplificador, o professor acredita que ao utilizar o jogo na escola deve haver uma intencionalidade pedagógica, logo, o tempo deste torna-se produtivo. Pergunta 7-Como reagem os alunos e os outros sujeitos da escola quando você utiliza jogos com a turma? 149 Dentre os vinte e seis alunos-professores que já lecionam vinte e uma respostas afirmam que as crianças adoram participar de atividades lúdicas no ambiente escolar. Vejamos as respostas: “Gostam bastante, pois além de divertir, educa”. (Â, 5º p.) “ Momentos de euforia, querem saber logo qual será o jogo apresentado. E na hora da aplicação, não acontece nada diferente do que aconteceu nas nossas aulas na FFP . Pudemos perceber que somos sempre crianças”. (S, 5º p.) “Os alunos interagem mais do que nas aulas tradicionais e a diretora gosta muito, pois é algo que ela cobra muito”. (B, 5º p.) “As crianças adoram, principalmente quando se trabalha com jogos de competição”. (J, 5º p.) “ Os alunos adoram, ficamos mais próximos. O diretor e os outros sempre comentam que eu faço muita “ farra” com as crianças, mas com o que aprendi na Pedagogia consigo fazê-los entender o que acontece na prática”. (M, 5 º p.) “ Os alunos ficam empolgados, se interessam, o rendimento das aulas só têm aumentado. Tenho total liberdade para utilizar quaisquer recursos deste tipo. Trabalho em equipe com outros professores trocamos estratégias metodológicas”.(S, 6º p.) “Eles gostam muito”. (M,, 6º p.) “Percebo que há alegria, satisfação e a necessidade da utilização do jogo constantemente na escola, para formação contínua”. (S, 6º p.) “As crianças amam, e de tanto fazê-lo já ganhei a fama de professora brincalhona. Defendo tanto a importância disso com base no que aprendi no curso, que hoje já entendem a relação do jogo com a educação”. (J, 6 º p.) “As crianças adoram e a escola onde trabalho, a pedagoga e a psicóloga ajudam muito a trabalhar com jogos”. ( S, 7º p.) “Os meus alunos adoram, minha relação com eles ficou até melhor. A escola ainda se preocupa com estas atividades porque pode parecer liberdade demais, alegria demais”. (L, 7 º p.) “Se divertem , riem, e assimilam o conteúdo que está embutido no jogo”. (J, 8º p.) 150 O jogo é uma forma de expressão da criança que possibilita diferentes fruições. São expressões cujos sentidos remetem à sonhos, desafios e alegrias. “A criança se expande em instantes de encontro consigo mesma, na percepção do que é capaz de fazer”. (FERREIRA, 2003,p.148). Jogo, brincadeira e infância caminham juntas. Doze alunos-professores com experiência na docência, dentre os vinte e seis, observaram que o uso do jogo na escola é visto pelos demais sujeitos (diretores, pais, outros professores, etc.) com desprezo, com reclamações, limitações ou só são praticados e aceitos via educação física . Este percentual representa quase a metade das respostas dadas. Esta é uma das grandes barreiras que limita o jogo na escola: compreender que o dinamismo do jogo gera uma grande gama de significações que potencializam o aprendizado para a vida. “Olharam com desprezo, achando que é perda de tempo”. (C, 5º p.) “ Os alunos adoram, ficamos mais próximos. O diretor e os outros sempre comentam que eu faço muita “ farra” com as crianças, mas com o que aprendi na Pedagogia consigo fazê-los entender o que acontece na prática”. (M, 5 º p.) “Os alunos sempre gostam, não há nenhuma dúvida. A coordenação e os pais nunca entendem por falta do conhecimento da importância de trabalhar com jogos. As pessoas erram por falta do conhecimento da verdade, por serem simplesmente arbitrários”. (G, 6º p.) “Os alunos ficam entusiasmados, os colegas de trabalho duvidam do aprendizado com jogos”. (A, 6º p.) “As outras pessoas da escola não tomam conhecimento , pois como é uma escola pública, graças a Deus , não tenho a direção a todo momento “ no meu pé” , mas os alunos adoram”. (A, 7º p.) “ Quando comecei a trabalhar na escola que leciono, todas as professoras começarem a introduzir jogos em sala de aula. Muitas vezes o professor não utiliza certas maneiras de ensinar, não por que não goste, mas sim por falta de estímulo e apoio”. (L, 7º p.) “Os meus alunos adoram, minha relação com eles ficou até melhor. A escola ainda se preocupa com estas atividades porque pode parecer liberdade demais, alegria demais”. (L, 7 º p.) 151 “Os alunos adoram, não querem parar. Já os outros sujeitos da escola, às vezes reclamam por causa do barulho”. (A, 8º p.) Apenas quatro dos vinte e seis professores responderam ter apoio para utilizar o jogo em suas atividades na escola. O reconhecimento da importância dos jogos no contexto escolar, nesta pesquisa, ainda está aquém do desejado. “Eu não estou atuando como professora atualmente, mas quando atuava as pessoas geralmente viam com bons olhos essas atividades”. (K, 5º p.) “Os alunos interagem mais do que nas aulas tradicionais e a diretora gosta muito, pois é algo que ela cobra muito”. (B, 5º p.) “Os alunos ficam empolgados, se interessam, o rendimento das aulas só têm aumentado. Tenho total liberdade para utilizar quaisquer recursos deste tipo. Trabalho em equipe com outros professores trocamos estratégias metodológicas”. (S, 6º p.) “ As crianças adoram e a escola onde trabalho, a pedagoga e a psicóloga ajudam muito a trabalhar com jogos”. ( S, 7º p.) Reconhecendo que a escola não tinha espaço, material ou tempo para atividades de jogos, tivemos três relatos: “ Na escola em que trabalho não há jogos durante as aulas, só na aula de educação física”. (C, 5º p.) “Na instituição eram feitos pouquíssimos jogos sem nenhum objetivo produtivo”. (M, 7º p.) “ Na educação infantil trabalhava brinquedos cantados como forma de interação entre os alunos. Os jogos eram poucos, pois a escola era pequena e não possuía espaço adequado”. (I, 8º p.) Num panorama das respostas dadas a esta questão, podemos perceber que os sentidos dos jogos flutuam e vibram dentro de um espaço intermediário entre o desejo das crianças e o controlo dos sujeitos da escola. 152 Das marcas deixadas pelo jogo Pergunta 8-Que marcas positivas e/ou negativas a utilização de jogos na escola pode trazer? Observou-se que alguns responderam sobre as suas próprias marcas enquanto alunos do ensino fundamental, enquanto outros compreenderam que as marcas referiam-se ao seu trabalho enquanto docente, desta forma, todos os participantes encontraram marcas positivas como: criatividade; liberdade; descontração; diversão; formação de hábitos e atitudes; bem estar físico e mental; desinibição; cooperação; alegria, fortes emoções; solidariedade, senso crítico; formação de opinião; interação entre os alunos; superação de limites; convívio com regras; espontaneidade; segurança; motivação; aprendizagens. Apresentaremos algumas respostas que evidenciam estas marcas positivas: “ Acredito que o jogo só pode trazer benefícios, tanto para o professor quanto (principalmente) para as crianças. O lúdico nos permite trabalhar e identificar dificuldades vividas em sala de aula, desenvolvendo habilidades e descobrindo novas habilidades, socialização e cooperação despertando sentimentos e emoções”. (C, 5º p.) “ Não sei se foi porque me apaixonei pelas atividades, que percebi marcas positivas e não negativas. Marcas essas que destacam alegria, solidariedade mesmo que as vezes, senso crítico, expor opiniões, criatividade, formação de hábitos e atitudes sócio-emocionais, habilidades físicas , intelectuais e sociais. Talvez o aspecto negativo seja o aluno não quere parar mais”. (S, 5º p.) “Acredito que seja positivo para a formação discente, mas algumas escolas interpretam esse tipo de atividade como algazarra e vetam a sua realização intra muros escolares”. (P, 5º p.) “Positivas: Pois eu me divertia e aprendi muito através dessas atividades”. (K, 5º p.) “As marcas positivas são que as crianças interagem e aprendem melhor. Não há marcas negativas, pois a escola possui material suficiente para a realização das mesmas”. ( B, 5 º p.) “Práticas pedagógicas com jogos traz mais marcas positivas do que negativas. Tendo o olhar sobre o aluno temos como marcas positivas: superação, prazer, alegria, medo e outros” (J, 5º p.) 153 “A socialização e a cooperação”. (M, 5º p.) “Mais marcas positivas que negativas. Quando o professor entende que o jogo é um fenômeno social importante que faz parte da viva da criança ele passa a valorizar o lúdico na escola, logo vi muitas coisas positivas”. (M, 5 º p.) “Positivos sempre, se for bem empregado . ...O jogo assim, podemos dizer que deve fazer parte da vida escolar e social da criança. O jogo trabalha o indivíduo como um todo, a mente, o corpo, o psicológico, e que os adultos possam conhecer a importância do jogo e não se culpar por separar um tempo para prática tão gostosa”. (G, 6º p.) “Os alunos de hoje precisam aprender regras, especialmente de convivências, amizade, respeito para com ele e outros, aí acredito que os jogos contribuem muito para tal, pois vivemos em um mundo tão egoísta, cheio de si, de orgulho e na hora do jogo não vejo coisas como essas acontecerem, as crianças sentem-se prazerosamente obrigados a cooperarem para vencer determinadas competições que rixas, invejas, egoísmo ficam para trás , essa é uma marca positiva”.(S, 6º p.) “As marcas positivas: socialização entre as crianças e as demais séries na escola”. (A, 6º p.) “Crianças mais soltas, espontâneas, criativas, dispostas, felizes, seguras, etc..”. (R, 6º p.) “Ajuda muito o grupo a se conhecer, além de proporcionar momentos de diversão”. (M, 6º p.) “A socialização, e o prazer que tais atividades proporcionam são de suma importância para que os alunos se sintam motivados e descarreguem o excesso de energia e não entendam o espaço escolar como um lugar entediante e opressor”. (F, 6º p.) “Só reconheço marcas positivas na utilização do jogo, desenvolvendo habilidades físicas, intelectuais e sociais”. (S, 6º p.) “ Positivas, as melhores possíveis desde desenvolvimento físico e mental até a socialização”. (A, 7º p) “Para mim acho que traz marcas positivas, pois ajuda o aluno no seu processo de aprendizagem e de socialização com alunos e a professora”. ( S, 7º p.) Muitos alunos-professores manifestaram-se destacando como marcas negativas a resistência ao uso do jogo por falta de tempo; falta de material; falta de apoio da escola, o desconhecimento de sua importância, insegurança dos professores em usá-lo ou por causar nas crianças sentimentos de frustração. 154 Observemos estas respostas: “ Negativo: conflitos com os pais de alunos” (C, 5º p.) “ Marcas negativas: tristeza ao perder o jogo, frustração. Mas, na verdade essas marcas negativas as quais me dirigi são importantes na vida”. (J, 5º p.) “Negativo, se o jogo não atingir um objetivo, for dado apenas para preencher um espaço de tempo ocioso, quando não tem outra coisa para dar”. (G, ,6º p.) “Negativas - é visto como passatempo e não como a forma lúdica de aprendizado”. (G, 7º p.) “ ...e negativas, bom, quando acaba em briga, como vi várias vezes, aí não é legal, pois deixa de ser uma atividade descontraída e vira algo sem graça”. (A, 7º p.) “...já o ponto negativo seria alguns alunos não levarem mais a sério a aula tradicional, querer nas horas erradas”. (K, 7º p.) “... Negativos: discriminação pelo meu peso, nunca ganhei um jogo ( inferioridade), várias marcas dentro e fora no meu corpo”. (M, 7º p.) “ ...Marcas negativas: exagerar e só permitir brincadeiras . A ordem também é importante dentro e fora do jogo”. (L, 7 º p.) “ ... Negativas: excesso de competitividade, não saber perder”. (J, 8º p.) “ ...Negativas: competitividade ( não gostam de perder)”. (A, 8º p.) “ ...Negativas: possíveis frustrações por perdas”. (K, 8º p.) “ ...Negativas: só brincadeiras, sem objetivos”. (E, 8º p.) “... O lado negativo é o despreparo e o desconhecimento de muitos sobre a importância da criança pelo jogo ser feliz também no cotidiano da escola”. ( M, 5º p.) “...já em relação a negativa é que se o professor não estiver bem estruturado, dominando a turma e a proposta de trabalho com o jogo não estiver enraizado no professor, a aula vira uma total desordem que por sua vez , implica em novos problemas com direção, pais, etc”. (S, 6° p.) 155 Em linhas gerais, pelas respostas dadas ao questionário pode-se perceber alguns indícios: - jogo também é diversão, lazer e prazer - a escola é lembrada, muitas vezes, como lugar da alegria dos jogos e das brincadeiras. - o jogo na escola pode ser usado pelos professores de forma recreativa ou como metodologia de ensino - reflexões e vivências sobre os jogos na formação de professores, pode re-significar o entendimento da relação jogo-educação - criança adora jogar, mas ainda há resistência, por parte de diferentes atores da escola, quanto ao uso do jogo Narrativas: (re)visitando o ato de jogar Apresento aqui duas entrevistas realizadas na pesquisa em forma de relatos de fragmentos de história de vida. Estes entrevistados foram escolhidos, dentre os que já haviam cursado pelo menos o quinto período do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ e que tivessem alguma experiência na docência. Sendo assim, foi possível escolher dentre os interessados, aqueles com maior disponibilidade de tempo para uma conversa-entrevista. Na voz destes alunos-professores foi possível apreender seus modos de sentir, pensar e agir 156 nas atividades de jogos e brincadeiras por eles vivenciadas em suas vidas de infância e em suas vidas de professores. O ato de narrar torna-se um importante referencial para o pesquisador por permitir que se veja para além do patente, da norma, também o latente, a vida. A partir de uma escuta sensível, pode-se objetivar a subjetividade das histórias de vida e apreender, analisar e interpretar os aspectos emanados nessas histórias transformando-as em narrativas, logo, dialogando no plano cultural com aquilo que emerge das falas dos entrevistados. Chaves (2000) compreende que: “A narrativa, como fenômeno e como método, tem um papel central no desenvolvimento pessoal e profissional. Através de contar, escrever e ouvir histórias de vida - as suas e as dos outros - podemos penetrar nas barreiras culturais, descobrir o poder do “self” e a integridade do outro e ainda, aprofundar o entendimento de suas perspectivas e possibilidades. Além do mais, todas as formas de narrativa assumem o interesse em construir e comunicar significado. O significado da prática, da vida.” (CHAVES, 2000, p.122) A pesquisa narrativa, como fenômeno ou como método, floresce no meio acadêmico atribuindo um significado ao vivido, entrelaçando conhecimentos, sentimentos, condutas, pensamentos e ações dos narradores. Pela voz do sujeito, relatando e comunicando suas experiências, pode-se refletir sobre suas práticas, suas crenças e seus valores. (Idem, p.123). A flexibilidade e a riqueza de interpretações possibilitadas pelas histórias de vida como metodologia de pesquisa, tem se constituído, ao longo das últimas décadas como produção científica com uma poderosa e refinada lente de percepção e compreensão das visões de mundo dos diferentes contextos sócio-históricos. Vejo, assim, a narrativa como uma via capaz de me levar à compreender a vida como obra, como uma trajetividade singular envolta em uma teia de significados expressos no ato de contar uma história de vida, pois “A narrativa é uma forma artesanal de comunicação”. (BENJAMIM, 1987,p.205). Para além do narrado pela voz, temos que estar sensíveis para perceber o não dito, o que os corpos falam, o que o olhar revela, o que o silêncio diz. Estamos no plano da subjetividade resignificando narrações, dialogando com a fala do outro de forma respeitosa, crítica e profunda. Não me limito aqui a contar histórias, busco compreendê-las, para isto preciso estar ‘afetada’ pelo vivido do outro percebendo as tatuagens que ele traz e se revelam para mim. 157 Na carpintaria destas narrativas, recorri a literatura infantil como viés interpretativo das histórias narradas, onde obra e vida tornam-se fontes para o entendimento dos fatos subjetivos, revelando a ‘segunda pele’( NÒVOA, 1995) dos sujeitos entrevistados. Desta ‘revelação’ fui captando as imagens que emergiam das falas dos sujeitos relacionando-as à alguns sentidos dos jogos. Imagens que nos convidam a uma polissemia de sentidos ao mesmo tempo em que expressam traços, formas e cores da ‘vida do jogo’, do jogo na vida dos alunos-professores63. Estas imagens, como expressões simbólicas, traduzem e decifram o vivido e ao relacioná-las às falas dos sujeitos, busquei remeter o leitor as idéias, crenças, emoções e sentimentos destes com relação ao mundo dos jogos vividos em diferentes contextos de suas vidas. MEMÓRIAS DE EMÍLIA 63 Este neologismo usado no decorrer desta pesquisa se remete aos sujeitos investigados (graduandos de pedagogia), mas, aqui, faz também alusão a estes sujeitos enquanto alunos nas escolas por onde estudaram e brincaram, e enquanto professores, passíveis e possíveis brincantes na escola. 158 Maricá - RJ Memórias de Emília ________________________________________________________________________________________ Minhas memórias, explicou Emília, são diferentes de todas as outras. Eu conto o que houve e o que deveria haver. Monteiro Lobato (1950) As políticas públicas em Educação não têm, nos últimos anos, favorecido a contento o desenvolvimento das universidades, tampouco os outros segmentos de ensino. Manifestações, paralisações, atos públicos e greves passam a ser alguns instrumentos de luta nas reivindicações de inúmeras instituições de ensino, principalmente das 159 universidades públicas. A Faculdade de Formação de Professores da UERJ tem uma história de resistência, de lutas que foram aqui apontadas no Terceiro tempo deste trabalho“Time: os participantes da pesquisa”. Foi justamente num período de greve da UERJ, mais precisamente no início de abril de 200664, que marquei o encontro com Emília para a entrevista da pesquisa. Fazia uma manhã de sol típica de outono, o que deixava o dia com um brilho especial que se refletia nos espaços gramados da FFP, tornando-os ainda mais verdes. Eu cheguei ao jardim interno pela entrada lateral e Emília teve acesso a este jardim pela escadaria principal do prédio. Nos encontramos assim, inicialmente, neste pequeno pátiojardim. Ela com aquele sorriso largo de sempre me cumprimentou e foi logo exclamando: “Olha, professora, como a nossa faculdade está linda hoje! Atravessando o período de greve e sem a travessia de alunos de um prédio a outro, tornava-se possível ter uma visão melhor dos prédios, pátios e jardim que compunham a paisagem da FFP. Minha escuta sensível sinalizou de pronto o sentimento de pertença de Emília por esta Instituição. Em poucos minutos, ali parada, ela comentou dos momentos bonitos que viveu naquele pequenino jardim. Lembrou que algumas das fotos para o álbum de formatura foram tiradas ali, o que me levou também a lembrar que participei deste ritual de registro. Ritual de registro de partida. Fora ali que, semanas antes, Emília havia me entregue uma caixinha muito bem confeccionada, com uma mensagem/convite para participar como professora homenageada na formatura de sua turma. Ali, naquele jardim e naquela ocasião, tiramos uma foto. Marcamos e registramos um tempo no qual Emília pertenceu à Instituição com muito orgulho. Isto foi percebido em suas palavras: “Fazer uma UERJ para mim, nossa eu me sinto assim... não que eu fique me gabando, de maneira nenhuma , mas eu me orgulho de estar aqui. É a minha casa, eu não admito que ninguém fale mal. Pode ter todas as dificuldades, como tem em todos os lugares, mas essa é a minha faculdade” Nos dirigimos para a sala de reuniões do Departamento de Educação que eu havia reservado para nossa conversa. A faculdade vazia, poucos sons no ar. Não se escutava batidas de portas, murmúrios de alunos, passos apressados nos corredores. Ouvia-se apenas a voz alta de Emília, doce como ela. 64 Esta greve da UERJ estendeu-se de 03 de abril a 04 de julho de 2006. 160 Emília, com seus 34 anos de idade, estava cursando o oitavo e último período do Curso de Pedagogia e, por dois semestres consecutivos, fui sua professora nas disciplinas de Recreação e Jogos I e II. Chamava-me a atenção seu jeito moleque, brejeiro e ativo. Participava com entusiasmo das atividades práticas da disciplina e estava sempre dialogando, fazendo perguntas, buscando respostas, colaborando no entendimento dos temas tratados em aula. Emília fazia trocas, trocas de afetos, de sorrisos, de conhecimentos, de experiências, angústias e sonhos. Vivia, a sua maneira, o estar-junto-com maffesoliano65. Iniciamos a conversa falando sobre sua infância. Eu buscava colher dela informações quanto à sua cultura lúdica infantil. Assim como a Emília de Monteiro Lobato, a Emília da Pedagogia passou boa parte do período das traquinices de criança num sítio em Itaipu, bairro do município de Niterói na Região Fluminense do Estado do Rio de Janeiro66. Emília fora para lá com sua mãe para se esconder de seu pai. “Porque meu pai não era lá essas coisas. Meu pai não tinha muita atenção comigo. Meu pai queria me seqüestrar, me pegar”. Isso mesmo, Emília precisava de um esconderijo porque seu pai queria seqüestrála. Em fuga, Emília perdeu o direito de estudar: “na época eu não ia nem para a escola porque quando meus pais se separaram o juiz me proibiu de ir para a escola porque meu pai queria me seqüestrar, me pegar. Então, eu fiquei muito tempo sem ir para a escola. Os meus primos iam para a escola, aquela coisa toda, e eu ficava em casa brincando de amarelinha”. Com a separação dos pais, Emília, aos quatro anos de idade, foi viver neste sítio de parentes em Itaipu e foi este o período da vida em que ela mais brincou. Este foi, para ela, o período mágico da infância envolto em brincadeiras proporcionadas pela sua imaginação e pela natureza ao redor. “Era o sítio do meu tio e lá tinha muito mato. É, árvores. Eu sempre fui assim, moleca mesmo, de brincar, de pular, subir em árvore. Brincava com aquelas brincadeirinhas que a gente faz de lata de leite. Sabe, essa foi mesmo a minha infância. Gostava muito de brincar de Tarzan e Jane , jogar manga nos outros quando a manga estava madura. Brincava de onça, brincava pelas pedreiras e aquelas coisas todas que tinha por lá. O sítio foi o meu jardim da infância. Esse jardim representa a melhor fase da minha meninice”. 65 Para Michel Meffesoli o sentimento de alteridade remete a uma proxemia amalgamada por trocas que cimentam as relações humanas. 66 A imagem de abertura desta parte da pesquisa, embora não seja o referido sítio de Emília , representa o lugar por ela vivido. 161 A idéia de jardim remete-nos a idéia de resumo do mundo. “ É ele o sítio do crescimento, do cultivo dos fenômenos vitais e interiores” (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.514 ). O jardim representa um sonho do mundo, que transporta para fora do mundo. Como símbolo do paraíso terrestre, é a representação dos estados espirituais, das vivências paradisíacas. Mesmo vivendo num ambiente paradisíaco, Emília foi uma criança que conheceu de perto a aspereza da vida. Filha de uma mulher pobre e recém separada, a mãe de Emília, sem condições de manter a filha, refugiou-se no sítio do irmão. Essa passagem de sua vida foi lembrada por ela com muita tristeza: “A minha infância foi muito triste. É, todo mundo tinha um monte de brinquedos, um monte de coisas e eu não podia ter. Todos tinham uma televisão para ver, eu não tinha”. Como bonequinha de pano, feita do que sobrava dos outros, Emília, jogada de lá para cá, tentava apenas ser criança. E como foi difícil para ela contar isso para mim.... Ela foi uma criança que pouco comia, porque quase não tinha mesmo o que comer, mas que muito sonhava, muito inventava.: “Porque eu sempre fui assim, a mais, vamos dizer, a que não tinha muito, como eu vou falar isso? Ah, meu Deus!... Eu não tinha muitos recursos. Eu era a mais pobrezinha da família, eu era a mais coitadinha. Sabe, tudo para mim era resto. Se viesse para mim era uma boneca sem perna, nunca uma inteira. Até em relação à alimentação, sabe? Todo mundo comia, menos eu. Eu não tinha como falar para minha mãe, o que eu vou falar? Ela também estava ali se sujeitando para me criar. Então, por isso, por isso que eu sempre fui muito sozinha. Eu morava no sítio da tia da minha mãe, ali de favor, o sítio era deles. Eles são os donos até hoje. Eu estava ali como penetra até nas brincadeiras. Eu não podia andar de bicicleta porque a bicicleta não era minha. Eu não podia escutar rádio porque o rádio não era meu. Eu não podia mexer naquelas bonecas, porque a minha prima, a Simone, ela tinha bonecas loirinhas. Eu não cobiçava, eu estava satisfeita com o que tinha, sabe? Eu tinha a minha boneca, tinha a mão da minha mãe, eu tinha as minhas pedrinhas que eu pintava. Se ela tinha, ótimo. Você tem a sua, eu tenho a minha. Eu tinha coisas que eles não tinham e que eram muito mais importantes”. A primeira boneca, talvez uma das mais importantes para ela, foi a mão de sua mãe. Não era de pano, de plástico, nem de papel. Era feita de dedicação, amor e aconchego na hora de dormir. A mãe de Emília criava com suas próprias mãos uma bonequinha imaginária que ‘embalava o sono’ da filha. “Eu nunca tive brinquedo mesmo, sabe, porque 162 assim, a minha mãe sempre foi muito pobre, então a minha primeira boneca foi a mão de minha mãe que botava lá os dedinhos dela fechados. Colocava a minha chupeta e me ninava”. Mesmo com tantas dificuldades, o mundo paradisíaco da infância de Emília no sítio tinha cor. O verde do mato, o azul do céu, o colorido das plantas e dos pássaros alegrava a pequena menina-boneca “Depois que a gente foi morar em Itaipu eu fui mais livre, eu me soltava lá naquele mato. Brincava de Sítio do Pica Pau Amarelo”. O imaginário lúdico ligado a elementos do campo tem sido suscitado nas últimas décadas por Monteiro Lobato que ao criar o Sítio do Pica Pau Amarelo, grande obra da literatura infantil, criou também um vasto mundo imaginativo ligado a elementos da natureza. “Eu gostava de ficar lá no sítio mesmo, brincando de bonecos. Fazia boneco de milho, essas coisas. Minha infância foi assim mesmo de brincar mais como os animaizinhos, com as coisas da natureza(...). Eu brincava também com os bichinhos. Eu dava banho em formiga. Eu alimentava o formigueiro. Os meus amigos sempre foram esses, os animais.” Brinquedo mesmo, Emília quase não teve, até então. Sua primeira boneca de verdade foi feita pela tia com as sobras dos panos da casa, tal qual a Emília de Lobato. “A primeira boneca que eu tive foi uma bonequinha de pano que eu tenho até hoje, que minha tia fez de pedaço de pano. Tinha duas faces. Jogava o cabelinho assim para trás, ela estava sorrindo. Jogava o cabelinho assim para o outro lado, ela estava chorando. Eu brinquei muito, muito. Era minha companhia, minha mesmo. Eu tenho até hoje a minha bonequinha de pano. Ela foi o meu primeiro brinquedo mesmo, o meu primeiro brinquedo. Ela está comigo até hoje. Nela está depositada toda a minha infância, o que eu tive, o que eu não tive e o que eu queria ter.(...) Essa boneca de pano eu ganhei com mais ou menos 5 anos, mais ou menos isso. Ela é toda cheia de tiras, até está sujinha porque ia para tudo quanto é canto comigo. Eu vejo ela direitinho. Ela é igual ao que a Emília67 é hoje, só que ela é pretinha, bem pretinha mesmo, e o cabelinho dela é verde com bolinhas brancas.” Como Emília brincante, tanto a de Lobato quanto a da Pedagogia, até os quinze anos de idade as bonecas faziam parte do ritual lúdico. Nesta época, já vivendo em outro 67 Referência à boneca Emília, personagem da obra de Monteiro Lobato. 163 lugar e com melhores condições financeiras, ela tinha diversas bonecas que davam vazão aos sonhos não realizados. Vivia imaginariamente um outro mundo, um lugar outro.68 “ Na minha adolescência, até meus 15 anos eu brincava de boneca porque eu acho que nela eu podia ser tudo aquilo que eu queria ser. Sabe, eu podia ir para todos os lugares que eu quisesse. Eu podia botar as roupas que eu quisesse. Eu podia comer o que eu queria. O meu mundo era ali. Eu fazia roupas para minha boneca, dava banho” Emília viveu intensamente o imaginário lúdico infantil. Seu mundo de faz-de- conta era povoado por bonecas que viviam a vida que ela queria ter, por cavalos que voavam, por formigas que conversavam, por anjinhos que pulavam amarelinha, por bonecos desenhados em paredes que falavam com ela, por árvores que entravam nas brincadeiras e principalmente por um ‘amigo imaginário’ chamado Alex. “Eu tinha meus amigos imaginários na infância. Eu tinha um amigo que o nome dele era Alex. Sabe, era Alex. Então, ele é que brincava comigo. Engraçado que eu tinha esses dois primos, mas não gostava de brincar com eles. Eu gostava de brincar com o Alex porque ele fazia tudo que eu queria, né? A gente brincava de amarelinha. A gente brincava de latas, eu e o Alex. Eu botava umas latas, eu não lembro bem se era de leite, ou não sei o que. Eu jogava umas pedras para derrubar as latas. Eu gostava muito de brincar disso”. O mundo imaginativo da infância envolve situações imaginárias que são acionadas pelo brincar e pelo jogar (KISHIMOTO, 2002). Este mundo do faz-de-conta envolve significações riquíssimas e reveladoras do imaginário infantil. A representação de papéis, a linguagem, as idéias e ações provêm do mundo social da criança e ao brincar de faz-deconta ela aprende a criar símbolos a partir do que apreendeu no mundo que a cerca. “O fazde-conta permite não só a entrada no imaginário, mas a expressão de regras implícitas que se materializam nos temas das brincadeiras.” ( Idem, p.39). É criando novos significados no ato de brincar que a criança desenvolve a função simbólica, elemento que garante a racionalidade ao homem. Em profunda relação com o meio, a brincadeira se expande no viver criativo e em toda a vida cultural do homem. Brougère (1998 ) aposta na brincadeira como fruto da cultura em que o brincante está imerso. 68 Para Johan Huizinga (2004) este lugar outro é um lugar que corre em paralelo com o mundo real. Para Roger Caillois( 1990) este lugar é espaço-tempo da fantasia, do simulacro ( mimcry) 164 O imaginário lúdico de Emília, tal qual no sítio do Pica Pau Amarelo, está envolto por muita fantasia, imaginação e criatividade, sobretudo usando elementos da natureza. A criança adquire experiência brincando. Estas experiências que tanto podem ser externas ( o brincar de outras crianças) como internas ( a invenção do seu próprio brincar) fornecem uma organização para a iniciação de relações emocionais propiciando o desenvolvimento dos contatos sociais. A brincadeira é a prova evidente e constante da capacidade criadora, ou seja, brincadeira é vivência.69 O amigo Alex habitou a imaginação de Emília até a idade de treze anos, aproximadamente. Ele nasceu do sentimento de exclusão que Emília viveu na infância. Ela não tinha com quem brincar. Sua mãe estava sempre envolvida com o trabalho fora e dentro de casa, sobrando pouco tempo para lhe dar atenção. Este sentimento de solidão na infância tocou muito forte o coração de Emília e ela chorou no momento da entrevista ao lembrar das ausências, das carências que a infância deixou. Nenhum adulto sentava para brincar, conversar, ou contar histórias. Os primos do sítio viviam um outro mundo muito distanciado do seu no aspecto financeiro e social. Eles tinham brinquedos, iam para escola, tinham amigos. Ela não tinha nada, mas tinha tudo, tinha a imaginação que alimenta a alma humana. No seu mundo imaginativo as pedras foram as grandes companheiras. Ela adorava brincar com pedrinhas. Estava sempre às voltas com elas. “Mas a maioria das vezes eu brincava sozinha, sabe. Eu gostava de brincar sozinha. Brincava, lembro muito bem, de pedras. Eu adorava brincar com pedras. Jogava umas pedras para cima(...). Oh, eu gostava muito de brincar de amarelinha. Eu adorava. Eu fazia com as pedras. Eu sempre com as pedrinhas. Sempre com as pedrinhas. As vezes quando estava com um pouco mais de paciência, eu fazia ela todinha de pedras pequenas, sabe”. rr A pedra desempenha um papel importante na relação entre o céu e a terra. “São símbolos da presença divina ou, pelo menos, suportes das influências espirituais” (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.606 ). Existe entre a alma e a pedra uma relação estreita. Em estado bruto ela desce do céu, transmutada ela se ergue em sua direção. Emília, neste sentido, dava vida as suas pedrinhas. 69 A este respeito, consultar Winnicott (1965) 165 “No sítio lá em Itaipu. Até a casa da minha tia era em cima de uma pedra. Em cima de uma pedra assim”. Emília apontou para a janela da sala de reunião onde fazíamos a entrevista. Desta janela é possível ver a pedreira íngreme que fica atrás do prédio da FFP. Encoberta por muito verde, a pedreira lembrava o lugar onde foi construída a casa do sítio em que ela morou. Com o seu largo sorriso costumeiro, e percebendo que as pedras ainda a cercam, Emília abriu bem os braços para demonstrar o tamanho da pedra onde ficava a casa da infância. Foi um gesto muito expressivo e revelador do seu fascínio por pedras. Das lembranças de infância, a brincadeira de amarelinha foi uma das mais marcantes para Emília. O movimento do jogo da amarelinha remete à idéia de jogar as pedras em diferentes quadrículas (as terrestres), até que a pedra atinja o céu. (seja devolvida a ele). Ela adorava brincar de amarelinha e até hoje pula amarelinha com seus alunos. Tem algo no movimento do jogo que a atrai muito. “As pedras caídas do céu são, além disso, muitas vezes, pedras falantes, instrumentos de um oráculo ou de uma mensagem” (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.606 ). Ela acredita na possibilidade de usar pedrinhas e ir para o céu encontrar com diferentes coleguinhas, ou melhor, com coleguinhas diferentes – anjos, que a tiravam da sensação de solidão em que vivia. Como objetos sagrados, as pedras de Emília levavam-na imaginariamente a ouvir os ‘anjos celestes’ onde as flores abriam brechas com o transcendente. “Quando eu brincava de amarelinha, no céu eu botava flores que minha mãe falava que eram olhinhos de Jesus. Sei lá, um negócio meio azul, roxo. Eu botava sempre isso. Sempre quando eu brincava, eu jogava aquelas flores para cima. E sempre minha mãe vinha e me chamava, mas no dia seguinte eu fazia a mesma coisa. Aí eu brincava disso. Eu gostava mesmo era dessa brincadeira de amarelinha de pedras”. O jardim da infância de Emília tinha flores, anjos, sonhos e desejos que a levavam a viver um mundo em paralelo onde a imaginação e a fantasia se consubstanciavam no jogar das pedras da amarelinha. “Eu nunca deixei de brincar o meu jogo de amarelinha. Sempre gostei. Era uma coisa que eu não sei se era porque tinha o céu, sabe, eu não sei. Quando eu era pequena, assim voltando, quando falo de céu, eu realmente me lembro vagamente que não tinha só o Alex. Tinha outras pessoas que eu não sei quem eram. Outros tipos de crianças imaginárias que vinham brincar, que vinham de outro lugar. Eu não sei se era porque a minha mãe contava 166 muitas histórias de anjinhos. Porque ela se sentia muito culpada por eu estar muito sozinha.” Diferentes jogos infantis estão ligados a elementos arquetipais. Para Costa (s/d)70 , estudiosa na temática sobre o imaginário dos jogos, sobretudo nos de esportes de aventura e de risco, jogos como o garrafão e a amarelinha que têm o céu como elemento de refúgio significando o “manto protetor e salvador”( Idem, p.3) , são fortemente investidos de um imaginário judaico-cristão de purificação, travessia de sofrimento para chegada ao céu. O céu da amarelinha de Emília tinha ‘olhinhos de Jesus’ e ‘anjinhos’, caracterizando um espaço celestial. Estes jogos representam um ritual de luta na tentativa de impedir que as forças do mal invadam a segurança do mundo interior (o do jogo), e cuja desobediência é o pecado original. Voltar à casa de partida e repetir todas as jogadas como penitência para a chegada ao céu é uma experiência lúdica fascinante que garante a alma do jogo. Sacrificarse repetindo jogadas, voltar casas, cuidar para a pedra não ficar fora do quadrado da vez, envolve gestuais lúdicos que garantem a transcendência. Chegar ao céu é garantia de segurança. Atravessar as quadrículas é sofrimento e trevas. Os rituais do sacrifício renovam o potencial do jogo, dão-lhe uma alma que escapa do racional e sai em busca do onírico povoado de mitos e deuses. Emília vivia e revivia estes rituais de forma prazerosa e inesquecível. Brincando sozinha, Emília transitava entre a fantasia e a realidade até que esta trouxe um brinquedinho de verdade para ela. Um bonequinho de carne e osso chamado Eduardo, filho do segundo casamento de sua mãe e “apesar de ter nascido o meu irmão, Alex sempre estava lá. Sempre fazíamos muitas brincadeiras.... O Eduardo conhecia o Alex, sabia que ele existia e às vezes até brincava comigo que a gente pegava o cavalo e ia. Era muito engraçado, sabe.” O mundo imaginativo de Emília passava agora a ser entremeado pela rotina da vida que levava. Cuidar do irmão e brincar com o irmão não fazia muita diferença. Morando em São Gonçalo, em decorrência do casamento da mãe com o pai de Eduardo, Emília conseguia manter as brincadeiras do sítio em Itaipu porque havia espaço para isso na casa onde agora morava. Tinha árvores, bichos e quase tudo com 70 Do texto de Vera Lúcia Menezes Costa: O Jogo e o imaginário social, disponível no site do Programa de Pós-graduação da Universidade Gama Filho ( www.ugf.br/ppgef) 167 que ela estava acostumada a brincar. A natureza ainda estava ali à sua disposição para sonhar, inventar, criar e recriar saltitando entre a fantasia e o real. “Era uma casa da irmã desse que eu tenho como pai. É meu padrasto mas eu tenho como meu pai. Então, lá tinha muita árvore, tinha cachorro também, tinha essas coisas todas. Só sei que eu já brincava mais com meu irmão e com o Alex (...) Lá tinha uma varanda muito grande e era lá que eu brincava de cavalo. Amarrava um barbante na pilastra, brincava e ali se passava a minha brincadeira e a cuidar do meu irmão. Ele virou meu brinquedo também. Eu comecei a brincar de professora, de mãe. Era eu que dava banho nele, era eu que fazia os brinquedos para ele. Fazia, mas não deixava minhas bonecas. Nessa época eu já tinha muitas bonecas” Percebendo esta trama que a vida lhe preparou, Emília reclama a ausência de uma infância que não foi vivida, pois com a segunda separação de sua mãe ela não pode ser mais criança. “ Minha infância foi interrompida, sabe. Minha infância foi interrompida porque o tempo que eu tinha para brincar não era muito. Durou pouco tempo a minha fase de criança”. Envolta em memórias, sentidos, sentimentos, significados e lembranças ela foi tecendo a trama do vivido e trazendo as marcas que a vida deixou. A vida de Emília virou. Foi uma fase de sacrifício de tudo. Enquanto sua mãe estava vivendo com seu padrasto ela teve algumas regalias. Ele a enchia de brinquedos e tudo que seu irmão ganhasse ela ganhava também. Tinha diferentes bonecas, panelinhas e jogos, vivia uma vida de criança que tem uma família feliz, mas depois.... “Eu tive que me virar sozinha, sabe. Então eu trabalhava, eu lavava minha roupa, essas coisas todas. É, eu quase não tinha muito tempo de brincar, depois que eu vim para cá71 e que minha mãe começou a trabalhar, já tinha o meu irmão, eu tive que esquecer um pouco da brincadeira. Eu tive que esquecer um pouco de ser criança. Eu tive que amadurecer muito rápido(...). Foi muito sacrifício de tudo. Era assim, eu tinha uns 9, 10 anos. Então a brincadeira se tornou dona de casa. Quando eles se separaram houve realmente briga, aquelas coisas. Ele não dava pensão para a gente. Meu irmão era pequeno, então eu tinha que tomar conta dele para minha mãe que trabalhava, chegava meia noite, quase uma hora. Então era eu que tinha que fazer comida. Era eu que tinha que lavar roupa. Não que ela me pedisse, entende? Não era aquelas mães que ia fazer os filhos de escravos. É que precisava e então eu tive que amadurecer muito rápido”. 71 Neta fase Emília foi morar em Alcântara, bairro pertencente a cidade de São Gonçalo no norte fluminense do Rio de Janeiro 168 Com a sensação de infância interrompida, Emília acha que talvez não tenha desenvolvido tudo aquilo que a brincadeira desenvolve numa criança e que hoje ela reconhece como importante. Mas as oportunidades de brincar acabaram sendo supridas pela escola. Ela não lembra bem que idade tinha quando a matricularam na escola pela primeira vez, mas, no entanto, lembra dos coleguinhas que fez. Com a entrada na escola, aos poucos, o tempo do brincar ia sendo resgatado, muito embora ela reconheça que na sua época o dever de aula e os trabalhos de casa eram muito cobrados. Segundo ela, eram muitos conteúdos a serem dados. A primeira escola que ela estudou foi Feijãozinho Mágico, uma escola particular que ela freqüentava sem pagar. Ali ela fez amigos e brincava com eles. Deixar de brincar sozinha, ou somente com seu irmão menor e com amigos que habitavam sua fantasia, passava a ser uma experiência desafiante. Seus colegas eram reais, não agiam como o Alex imaginário fazendo tudo o que ela queria . “Lembro que tinha um pátio legal. A minha professora de alfabetização, Célia, ela gostava muito de brincar com a gente de fantoches, Lá tinha uns bonecos de fantoche . Isto para mim era uma alegria porque eu nunca tinha visto aquilo. Eu era grande, a maior da turma. Eu não lembro assim, com que idade mesmo, porque depois eu fiquei só um tempo também. Mas tinha uns brinquedos, sabe? No parquinho tinhas uns brinquedos. Tinha balanço, coisas que eu nunca tinha visto na minha vida. Tinha uma coisa que rodava também. Tinha escorrega, então eu adorava ir para lá. Dava a hora do recreio eu só queria ficar lá. Era muito legal. Tinha um negócio assim, cheio de areia para que a gente pudesse brincar. Sabe, tinha bola, tinha elástico, aquelas cordas individuais para a gente pular.” Mas, nem com todas essas novidades o Alex deixou de acompanhar Emília. Ele ia para a escola com ela e participava de tudo dando opinião, indicando brincadeiras. “As crianças também brincavam, mas era ele, o Alex, que estava me acompanhando. Era ele que me dizia o que eu ia brincar com as crianças”. Emília entrou tarde na escola, em conseqüência disto, sempre foi a maior da turma, a ‘grandona’ como ela mesma diz. Assumia a liderança nas brincadeiras mesmo sem querer, talvez porque inventasse muita coisa para fazer. Talvez por seu tamanho. Dançava com os colegas, ensinava alguns passos, brincava de pique, de roda, de pescaria. Dividida entre os cuidados com o lar e o irmão em casa, Emília fazia das brincadeiras da escola uma fuga da realidade dura em que vivia. “Nesses momentos de brincadeira eu até esquecia o que estava passando na minha vida.” O brincar na escola foi marcante para Emília. Por forças das circunstâncias, pois entrou tarde na escola, ela era sempre a mais velha da turma, o que dava a ela a sensação de 169 pertencimento, de inclusão e laços com os amiguinhos que a tinham como líder. “Eu sempre tive a companhia das crianças, talvez por isso, até hoje, parece que eu não amadureci”. A lacuna que a infância deixou, no sentido de partilhar aventuras e brincadeiras com alguém da família, com os primos, com crianças das vizinhanças, ou até mesmo com parentes mais velhos, foi gradativamente sendo preenchida pela escola que então passava a proporcionar o espaço do jogar, do brincar com coisas e crianças de verdade, longe dos afazeres domésticos, que apesar de duros, não lhe tiravam a oportunidade de fazer destes momentos, também momentos lúdicos. Cada traço vivido, lembrado, imaginado e narrado foi se instalando em seus sentimentos como tatuagens72. Tatuagens da alma. Rabiscos de uma tatuagem da infância, “Que você pega, esfrega, nega, mas não lava”73. “Eu tinha que ser adulta mesmo que eu estivesse brincando. Eu tinha que fazer comida, eu tinha que tomar conta do meu irmão, ensinar a ele as tarefas e deveres da escola, lavar a roupa dele, tudo isso. Essa brincadeira era de verdade”. Experiências, lembranças, emoções e sentimentos vão dando forma, traços e cores à vida pessoal e profissional. Resgate da memória que brinca no corpo feito bailarina. “Que logo se alucina, salta e te ilumina”74 Foi refletindo sobre o seu brincar na infância que Emília buscou compreender os sentidos dos jogos e brincadeiras para as crianças de hoje. “Nada na vida da gente acontece por acaso, talvez por isso eu tenha muito cuidado com meus alunos ao brincar”. Pensando nos momentos que não viveu, nos que viveu, ou nos que ficaram só na vontade e no sonho, Emília busca sentidos para o brincar de hoje, nos tempos de agora. “Hoje em dia as crianças têm as coisas muito fáceis e não dão valor as coisas simples. Sabe, com certeza, brincar com umas pedrinhas é muito mais interessante que um brinquedo eletrônico. Lógico que tudo tem a sua importância na vida, mas eu acho que, quando, naquela época, as crianças vivenciavam mais o mundo mesmo, a natureza, tinha coisas assim, a meu ver, mais interessantes”. 72 O simbolismo da tatuagem é indicado pelo sentido original do caráter wen, que designa os caracteres simples da escrita, o escrito, mas também a sabedoria confuciana. Wen significa as linhas que se cruzam ( o que poderia relacioná-lo à tecelagem) , veias, rugas, desenhos ( Chevalier & Gheerbrant, 2005, p. 870) 73 Trecho da canção de Chico Buarque de Holanda,Tatuagem 74 Idem 170 “As crianças não tem mais essa liberdade que eu tive na minha época, de ver a natureza, de brincar, de ver as coisas do campo. Brincar com coisa simples deve ser mais valorizado. Um pedaço de pedra, uma árvore. Hoje em dia têm crianças que conhecem pouco as coisas da natureza. Sabe, por exemplo, têm alunos meus que não sabem nem o que é uma galinha. Eu brincava de escola com as galinhas, elas eram minhas alunas. Brincava de pular corda com elas. Botava uma galinha, não sei se era preta, meio cinza, pulava amarelinha com ela. Me arranhava toda , mas era legal”. Valorizando o vivido, Emília segue a viagem que a memória lhe proporciona: “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem, que é para te dar coragem pra seguir viagem quando a noite vem”75. Os brinquedos inventados, as resignificações dos objetos de brincar ficam em sua memória como tatuagens que encorajam-na a abrir espaço nos fazeres docentes para que as crianças se solem mais brincando ao ar livre. Emília está quase sempre com seus alunos no parquinho da escola onde trabalha atualmente brincando de rolar pneus, participando de piques, de brincadeiras de elástico e de diferentes jogos. Ela se ‘solta’ nesta viagem lúdica como adulto brincante. Ela vive e revive o que mais lhe deu prazer na infância do sítio: brincar. E por gostar tanto de brincar, Emília sempre desejou dar aulas para crianças pequenas, crianças da educação infantil, do jardim da infância (a sua). “Eu sempre fui apaixonada para dar aulas no jardim” . Claro que não só por isso ela optou pela profissão professora. “Ser professora estava na minha estrada” . Seu desejo de ser professora vem desde pequena, tal qual o desejo de tantas e tantas meninas, muitas das quais hoje são professoras de fato na vida real. Brincar de escolinha e viver o imaginário da relação professor-aluno eram experimentações proporcionadas a Emília pelos elementos do sítio. Objetos que a natureza dá e que o homem usa, abusa, transforma, deforma e reforma para seu bel prazer ou necessidade. Mesmo sem ter pisado cedo no chão da escola, Emília parece que conhecia o que era ser professora. Ter uma turma de bichinhos, em especial de galinhas e frangos para ensinar, lhe dava prazer, mas parece que para além do prazer era também uma questão de necessidade pessoal. “(...) mas eu sinto a necessidade de ser professora. Não sei, é uma coisa dentro de mim que eu não sei explicar. Parece que eu nasci para ensinar. Me dá satisfação , não é só ensinar as crianças. Para mim é uma satisfação muito grande quando dizem assim: Ah, você sabe 75 Idem 171 fazer isso aqui, me ensina? Se eu consigo te explicar, aquilo é demais para mim. È uma coisa que acontece do nada. Eu acho que é isso mesmo, o prazer , a vontade de ensinar” Muito embora Emília se sinta atraída pela área da saúde, pensando até em fazer uma faculdade de nutrição mais tarde, a vida lhe deu de presente o exercício76 da docência muito precocemente. Era uma questão de prazer e necessidade. Ela precisava ajudar na escola para ter garantida a gratuidade dela e de seu irmão. Prestava serviços para a escola, principalmente na recreação das crianças. E assim... “ ... eu tinha meus 9 anos quando comecei a trabalhar neste Externato que eu trabalho hoje. Eu comecei como ajudante de educação infantil, na época jardim da infância. Eu tinha uns 9 , 10 anos, Eu trabalhava ali para pagar meus estudos lá e do meu irmão também. Então essa escola me ajudou muito, muito mesmo. Então, ali me despertou muito mais. Eu não era ali só como ajudante, as vezes quando a professora faltava ou estava fazendo alguma coisa, era eu que dava aula para as crianças. Eu sempre tive muito envolvimento com as brincadeiras dessas crianças, o mundo delas, os jogos, os amigos imaginários. Eu sempre fique na escola com a parte lúdica, sempre, sempre. Brincava de ‘Atirei o pau no gato’ , jogos de latas. Eu sempre gostei de brincar muito mesmo. Nesta época brincava muito com jogos de canções, o que se chama de brinquedos cantados. Sempre fui eu que comandei isso, engraçado que isso é até hoje. Fiquei 10 anos nesta escola ajudando” O homo ludens que habitava Emília (e vamos ver adiante que ainda habita) não escolheu tempo ou lugar para brotar. Se na primeira fase da infância ela não tinha com quem brincar, a partir dos nove anos de idade a farra entre amigos ficou boa. Brincar com crianças de verdade na escola era tão bom e fascinante quanto brincar sozinha no sítio, ou melhor, brincar acompanhada pelo Alex e os anjinhos que vinham para pular amarelinha. Se no sítio não havia brinquedos, se os bichos, as pedras e seu irmão eram seus objetos de brincar, na escola eles se materializavam em cordas, escorregas, jogos e fantoches nunca vistos antes. Se o irmão era o boneco, os bonecos também se transformavam em gente. Fantoches falantes da escola, bonecos de milho do sítio, galinhas alunas, formigas que tomavam banho, paredes falantes, bonecos e bonecas no cesto de brinquedos da escola misturavam-se no seu imaginário lúdico dando novos traços, formas e cores ao brincar. O 76 Uso aqui o termo ‘exercício’ não no sentido de uma profissão assumida legalmente, mas no sentido de oportunidades de experimentações e vivências no universo escolar. 172 jogo e a brincadeira são realidades que flutuam e vibram dentro de um espaço intermediário entre o real e o imaginário, o sonhado e o vivido. O êxtase do brincar, as fruições sentidas pela Emília brincante não dependiam de tempo, lugar ou objetos. O brincar do sítio e o brincar da escola foram igualmente importantes para ela. Brincar e jogar são atitudes que escapam do tempo racional, do lugar ideal, dos objetos adequados. Tudo vira tudo no mundo mágico do jogo e da brincadeira. No período em que estava no segundo segmento do ensino fundamental, ainda no Externato, as brincadeiras livres e inventadas no pátio na hora de saída, de entrada na escola, do recreio e mesmo nos tempos destinados formalmente para a recreação, foram dando espaço as aulas de educação física. Nestas, as modalidades desportivas eram trabalhadas sistematicamente, coisa que ela, como aluna, não gostava muito. O que lhe atraía de fato era a oportunidade que estas atividades davam de fazer amigos, de estar com os colegas de turma fora do rigor exigido nas outras aulas. Emília participava das aulas de educação física não pelo jogo, mas pelo prazer de estar ali com os amigos se divertindo. Enquanto cursava o ensino médio em formação de professores Emília trabalhava numa escola por indicação de uma professora, mas seu maior sonho seria trabalhar no Externato, lugar da infância e dos primeiros passos na docência. Essa escola foi a sua vida, e chegar até ela como professora em exercício era sua meta. “ O meu sonho sempre foi dar aulas ali no Externato, lugar onde vivi minha vida quase toda. Com criança pequena a gente pode brincar , você pode se soltar. Sabe aquelas coisas que eu não pude fazer quando eu era criança? Com eles eu posso fazer. Nesta escola eu vivi tudo de bom e tudo de ruim , coisas difíceis ou não eu vivi dentro daquela escola . Minha adolescência, o meu primeiro amor, minhas desilusões, a separação dos meus pais. Todo apoio, apoio para tudo, eu tive ali. Cada tijolo daquela escola é um pedaço da minha vida. Sabe, eu ficava ali da manhã até a noite. Ali eu almoçava, eu e meu irmão. Hoje eu consegui realizar o meu sonho. Eu fui persistente. O sonho da dona da escola sempre foi esse também. Eu a chamava de vó. Infelizmente ela hoje já é falecida. Eu a tinha como mãe, avó mesmo. Então ela sempre me apoiou em tudo. Ali sempre foi a minha casa, a minha família.” Este sonho se tornou realidade. Emília trabalha atualmente no Externato. Começou como ajudante de coordenação, só que não era o que ela queria. Seu desejo era ter uma turma de pequeninos. Inicialmente lhe foi entregue a turma de 1 ª série , “mas é tanto conteúdo , tanto conteúdo, que você não tem tempo para brincar, você não tem tempo de 173 olhar nos olhos dos seus alunos. Eu chorei, chorei porque eu queria a educação infantil”. Até que conseguiu assumir uma turma de dezessete alunos do Jardim 2. É com esta turma que ela trabalha atualmente. Nesta escola o espaço não é grande, mas tem árvores, tem brinquedos de escorregar, tem pneus no parquinho. Não tem muitos brinquedos de manusear nem jogos de montar , mas tem um espaço externo que oferece condições para as crianças brincarem e jogarem. Emília não pretende “criar raízes nesta escola” como ela mesma diz, mas acha que a partir do curso de Pedagogia novas oportunidades podem surgir. Ela comenta que adquirindo novos olhares para a educação em sua graduação, passou a questionar a proposta desta escola, a conhecer outros projetos de ensino, enfim o curso abriu um horizonte de possibilidades e uma gama de reflexões que não se esgotam nesta experiência profissional. Nas franjas do narrado, fui estabelecendo uma delicada interlocução com Emília que me permitisse apreender mais e melhor os sentidos dos jogos para ela enquanto professora. Ela foi, desta forma, tecendo seu caminho de formação de professores iniciado no ensino médio. Apurei minha escuta no que dizia respeito à disciplina de Recreação como parte do programa desta formação e pude apreender que foi muito voltada para os jogos desportivos. Jogos de voleibol, basquete, handebol e outros que não a atraíam muito. Ela os considera ‘jogos de adultos’: “Era só desporto e isso particularmente não me atrai. Eu gosto do imaginário, das coisas que você pode inventar e criar. Lá era educação física mesmo, a gente fazia competições e isso não me atraia no Curso Pedagógico que eu fazia.” “Lá tinha esses jogos, mas era na educação física mesmo, como uma disciplina com prova. Quando tinha prova de educação física você tinha que explicar como eram as regras do voleibol, basquete. Eu achava aquilo uma coisa chata, sabe. Para dizer a verdade eu não sei mais nenhuma regra até hoje. Eu não sentia prazer nisso”. Emília acredita que o seu Curso Pedagógico no ensino médio só contribuiu com a parte teórica, pois isto foi muito cobrado no decorrer do curso. Quanto às disciplinas que abordavam recreação, jogos e ludicidade, ela comentou que não lhe deram a compreensão da temática que hoje ela atribui ter em função da graduação em Pedagogia. “Eu aprendi muito aqui, não é puxar o saco da UERJ, mas eu aprendi muito mais a ser professor aqui do que no meu Pedagógico. Eu evoluí muito como professora depois que 174 vim para cá. Parece que eu aprendi a teoria lá no Pedagógico e aqui eu fiz a prática, não que aqui não tenha a teoria”, mas a relação entre elas existe” Para Emília, as disciplinas de Recreação e Jogos I e II cursadas na FFP foram de grande contribuição para o entendimento da importância do brincar e jogar no âmbito educacional. Refletindo sobre os referencias teóricos de jogos, vivenciando as atividades lúdicas e assistindo as outras turmas participando das atividades práticas, ela foi resignificando o ato de brincar. Para Emília a disciplina proporcionou verdadeiramente a relação teoria e prática: “Nós tínhamos sim a teoria, mas tínhamos também como era na prática, como era vivenciar a teoria na prática” e destaca os sentimentos destas experiências e as fruições que os jogos lhe proporcionaram. “ Éramos pessoas grandes, de 20, 30, 40 anos, virando crianças, tirando chinelo, sentando no chão” “Nas aulas de Recreação eu podia ser moleca. Eu podia trazer novamente a minha infância que eu vivi lá no sítio em Itaipu quando eu era mais livre. Sabe, eu quando brincava com os jogos que a gente fazia eu virava a criança que eu não pude ser”. “ Essas vivências me trouxeram sentimentos de liberdade, de poder ser eu mesma Sabe, quando uma pessoa está muito endurecida como pedra é possível que ela se quebre diante da brincadeira, diante de um jogo apresentado. Uma pessoa por mais triste que esteja, por mais calejada da vida, desperta a criança dentro dela quando participa destas atividades.” A infância é símbolo de simplicidade natural, de espontaneidade. “Como símbolo da inocência é o estado anterior ao pecado, e, portanto, o estado edênico, simbolizado em diversas tradições pelo retorno ao estado embrionário, em cuja proximidade está a infância”. (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.302). A criança é espontânea, tranqüila, concentrada, sem intenção ou pensamentos dissimulados. A imagem da infância sintetiza aqui a imagem das turmas de Pedagogia da FFP quando envolvidas em atividades práticas da disciplina de Recreação e Jogos. De um modo geral, os alunos quando solicitados a participar das brincadeiras e jogos, se transformam em crianças ativas, ansiosas e curiosas com o que é proposto. Nestes anos em que assumi as turmas do referido Curso e da referida disciplina pude perceber o quanto eles se soltam, o 175 quanto eles vivem o mundo imaginário que achavam ter enterrado quando se tornaram adultos. As fruições fluem num descomprometimento típico dos que se deixam levar pelo mundo do jogo, dos que se permitem escapar do mundo real e embarcar numa via imaginária e fascinante77. Um outro sentimento trazido por Emília quando perguntei sobre o que a disciplina havia deixado de marcas para ela foi o sentimento de solidariedade da turma. Ela comentou que no início do curso a turma era pouco entrosada. Com os jogos, a partir do 5º período, a turma passou a se conhecer melhor, passaram a ser mais soltas na sala, como ela mesma diz. As relações melhoraram, os grupos rivais se diluíram e houve um sentimento de ajuda mútua. As vivências lúdicas serviram também para unir a turma “Hoje nós podemos dizer que somos uma turma”. “Tinha uma brincadeira legal também que a gente fez que foi amarrar as bolas nos pés. Aquele contato com o corpo do outro, aquela aproximação. Aquela coisa de precisar do outro , de saber que o outro precisa de você para brincar. Existem brincadeiras que você pode brincar sozinha, mas quando passa de um, quando fica assim uma galera , fica legal demais, fica muito melhor. Tem uma outra energia , uma outra vibração. Foi interessante que essas aulas de Recreação fizeram com que a turma se aproximasse. Nós éramos moças, pessoas que já eram avós, mães e tudo e existia isso de se entregar. Para você ver como a brincadeira é rica, como a brincadeira é capaz de transformar as pessoas. Com a minha turma foi assim. Por isso que a gente sentiu muita falta quando terminou. A gente achava que tinha que ter desde o primeiro até o último período do Curso”. “Eu acho que o jogo é isso, é ensinar o aluno a compartilhar, ensinar que você precisa do outro. Têm momentos de individualidade sim, mas quando tem um grupo é muito mais prazeroso, na brincadeira parece que tudo fica mais fácil”. A turma passou a criar laços nas brincadeiras. O laço remete à idéia de adesão. “O laço simboliza neste caso a obrigação, não mais só imposta pelo poder, mas desejada livremente pelas partes diferentes que se sentem ligadas entre si”. (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.532). Como redes, estabelecem uma comunhão. Com as idéia trazida pelos autores acima citados, a adesão voluntária da turma foi incutindo em Emília um sentimento de união, de confiança no próximo e em si mesma. 77 A nível de ilustração, sugiro uma volta à Introdução deste trabalho em que trago fotos das atividades práticas das aulas de Recreação na FFP. 176 Pois os laços “são os símbolos das forças místicas em poder do chefe, que se chamam: a justiça, a administração, a segurança real e pública, todos os poderes” (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.532). Estes laços fizeram com que Emília se sentisse mais segura, mais capaz de poder ser ela mesma. Fizeram com que ela acreditasse que os sonhos podem ser sonhados, que as conquistas são possíveis. “Quando eu estou jogando é uma sensação muito grande, é muita emoção, isso faz com que você tenha fé em você mesmo. Eu vivencie tudo isso aqui no curso. Sabe, a Recreação, ela me fez ter mais segurança em mim mesma. Eu sempre fui muito insegura, eu sempre achei que nunca ia conseguir, eu sempre achei que jamais na minha vida eu ia fazer uma faculdade” A turma de Emília nas aulas de Recreação transformava-se num grupo de crianças unidas por um objetivo comum: jogar e se divertir. Desta forma elas estabeleceram laços que ultrapassavam o momento do jogo. Transmitiam uma alegria que se materializava nos sorrisos, nas brincadeiras e na empolgação com que participavam das atividades lúdicas como crianças brincantes. Viviam momentos dionisíacos. “Com certeza as aulas proporcionaram uma entrega total, a maioria da turma percebeu isso. Até hoje a gente lembra isso, a gente pede que tenha isso , porque lá na Recreação a gente era feliz” “Em Recreação, eu gostei muito foi do último semestre que a gente ia lá para aquela sala onde tinha os tatames, aquele espaço era pequeno, mas para ver como a brincadeira faz isso, parece que amplia o espaço, como se tudo ficasse maior, mais fácil. Nada impedia a gente de brincar. Naquele cantinho, lembro uma vez que estava chovendo mesmo, e o engraçado é que ninguém faltava, ninguém queria perder. Todo mundo queria ver a brincadeira lá dos outros, anotar o que via, vivia, aquela coisa toda. Todo mundo queria participar, a turma toda brincava, ria, aprendia. Para você ver como é importante o jogo. Éramos pessoas grandes, de 20, 30, 40 anos, virando crianças, tirando chinelo, sentando no chão. A gente não queria saber, as vezes passava da hora, para você ver! Aquele era um tempo especial, era o tempo da alegria”. Este sentimento de pertencimento e alegria ia além dos tempos de aulas de recreação. Os jogos, ao permitirem as sensações e fruições da infância, fizeram com que as relações da turma tomassem outros rumos. “ A imagem da criança pode indicar uma vitória sobre a complexidade e a ansiedade, e a conquista da paz interior e da autoconfiança”.(Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.302). Este sentimento moveu a 177 organização da formatura, o sentimento de união para a realização dos trabalhos das demais disciplinas, promoveu bate-papos informais vividos nos ‘pequenos nadas’78 que consubstanciam-se numa solidariedade de base, numa ‘socialidade em ato’79. Uma sensação de ‘estar-junto-com80’. Vivências que despertaram laços de cooperação, solidariedade e partilhas. O precisar do outro para brincar e o se sentir parte da brincadeira estabeleceu uma relação que, á luz do paradigma da complexidade de Edgar Morin, é compreendida como uma estreita relação de auto-dependência entre o todo e partes. “Eu mesma brincando aqui me modifiquei muito, foi muita coisa mesmo. Hoje nós somos mais soltas na sala. Melhorou nossas relações. Hoje não tem grupos rivais, o grupo que era se desfez. Todo mundo sorri, todo mundo pede ajuda para o outro. Antigamente tinha isso de se afastar. Hoje nós podemos dizer que somos uma turma. Antigamente era assim, nos primeiros dias entrando na FFP era como se fosse uma faculdade de Direito. Ninguém sorria para ninguém, com o passar do tempo era aquela cobrança de provas, trabalhos, era aquela coisa rigorosa mesmo. No 5º, 6º período é que mudou, acho que foi com essas brincadeiras de Recreação, então eu acho que a gente se soltou mais. Nos jogos a gente se unia, a partir destas experiências nessas disciplinas” Quando interroguei Emília sobre sua compreensão da relação jogo-educação, ela distinguiu dois momentos. Um antes de entrar no Curso de Pedagogia e outro depois de ter cursado, principalmente, as disciplinas de Recreação. Para ela o jogo na escola estava diretamente ligado à disciplina de educação física, as modalidades desportivas e os tempos de recreação eram de liberdade para as crianças poderem brincar do que quisessem, eram os horários de ir para o parquinho. Estes tempos do brincar não implicavam, para ela, na participação do professor. O brincar e o jogar cumpriam a função de extravasar energia, função de puro lazer. Por mais que ela, desde os nove anos de idade tivesse assumido a recreação de pequenos no âmbito escolar, e por mais que se considere uma eterna brincante, ela, até então, não relacionava jogo-educação pela perspectiva cultural, social e antropológica. Brincadeiras e jogos tinham apenas uma dimensão de divertimento. “Eu achava que era só na Educação Física que os jogos aconteciam na escola. Eu nunca tinha visto nenhum professor fazendo brincadeiras mesmo, aquelas coisas. Mesmo na 78 Expressão usada por Michel Maffesoli apresentada no Primeiro tempo deste trabalho. Idem 80 Idem 79 178 educação infantil, lá quando eu trabalhava, eu não via nenhuma professora interagir junto com as crianças” Emília acredita que as vivências nas atividades de jogos e brincadeiras lhe deram, para além dos sentimentos de união, liberdade, prazer e divertimento, a compreensão de que o jogo faz parte do próprio processo educativo. Sendo um fim em si mesmo ou como meio de algum tipo de aprendizagem, o jogo é importante no âmbito escolar. Suas palavras reforçam esta compreensão: “ Hoje nós temos essa visão diferente de jogo na escola , não é só aquela educação física, não é só competição, é conhecimento interior. O jogo faz isso, você se conhece melhor, como líder, como parte passiva, sua parte negativa ou positiva naquele grupo . Como que é interessante aquela brincadeira , como ela revela coisa”. “ Com as brincadeira, eu acho, a gente pode conversar muito, você que pode estar ali diretamente, pode interferir naquela brincadeira e mostrar para a criança os valores, o que é certo ou não. Numa conversa com sugestões, você muda as coisas, pode até mudar o jeito daquela criança numa brincadeira” “As regras, os conflitos, a confiança em si, nos outros, as relações que jogo provoca, tudo isso é muito importante para a criança. Ela aprende a pensar nas situações”. “A gente sabe que os jogos e as brincadeiras são importantes também para o desenvolvimento da criança, para os órgãos, para a energia dela nas atividades, dá disposição. Os jogos estimulam muitas coisas” Emília entende que o jogo pode também ter uma intencionalidade pedagógica, ou seja, um conteúdo pode ser ensinado por meio de jogos. Ensinar brincando ou jogando dá prazer tanto para o aluno quanto para o professor. Para ela os jogos didáticos são importantes, desde que o professor compreenda que eles vão além da intenção de se passar só o conteúdo. “Olha é possível sim colocar a recreação, a brincadeira em todos os conteúdos para ensinar crianças de 5, 6 e 7 anos. As crianças estão na fase das descobertas , de brincadeiras, de extravasar, então porque não fazer de uma forma legal para elas e para você, de uma forma prazerosa de ensinar o conteúdo que é tão necessário para elas também. Por que não ensinar a matemática com lúdico, por que não? Ah, é falta de tempo?. Eu acho que não, é falta de interesse , digo isso como professora, porque quando a gente quer a gente faz” 179 “Eu acho que a gente tem que ensinar sim, dar os conteúdos sim porque é uma coisa que já é da educação mesmo, o que não impede que se faça brincando. Por que a matemática tem que ser só no cuspe e giz? Por que você não pode ensinar o teu aluno a somar com tampinhas de refrigerante? Por que tem que ser 1 mais 1 igual a 2 ? Muitas vezes não entra na cabeça deles e você não sabe por que os alunos não aprendem. O brincar é esse facilitador, dá liberdade de pensar de outras formas, leva a outros entendimentos de uma determinada questão, o brincar tem esse poder” Na sua compreensão, as aulas de educação infantil e das séries iniciais deveriam ser planejadas de forma a contemplar atividades lúdicas como também instrumentos de ensino. Os jogos podem se tornar preciosas alavancas no processo ensino-aprendizagem. O símbolo da alavanca representa ferramenta, o princípio ativo que coloca algo em movimento, o que faz a passagem da passividade a atividade. Movimento cuja atividade resulta da vontade de quem o gerou e que a move ( alavanca, ferramenta) tirando-a de um estado inerte. Assim, a vontade precede aqui o conhecimento. “A alavanca simboliza apenas um força instrumental, movida e controlada por uma força superior, e o valor de seu emprego só é medido pelo valor daquilo que ela ajudou a levantar.” (Chevalier e Gueerbrant ,2005, p.26) Em sua prática docente Emília sente-se comprometida em participar das atividades recreativas da turma. Torna-se comprometida com esta alavanca que, através dos jogos, dá impulso e movimenta a apreensão de novos conhecimentos, valores e conceitos que não se limitam ao uso de jogos com intencionalidade de transmissão de conteúdos do programa de ensino. Para ela, o papel do professor como mediador de tais atividades é fundamental para que os jogos cumpram um papel formativo e educativo. O jogo é responsabilidade social do professor, cabendo a ele, enquanto educador, refletir sobre suas funções e seus significados não só no plano cognitivo, mas também no plano bio-psico-sócio-cultural. “Os jogos escolares não são apenas de responsabilidade social do professores de educação física, os demais professores também são por eles responsáveis, pois em seus fazeres pedagógicos muitos o utilizam de modo consciente ou não e com ou sem intencionalidade” (NHARY, 2005,p.137 ). Compreendendo o homem como um ser 180 complexo, redimensiona-se a relação jogo-educação devendo os professores internalizem os sentidos dos jogos para compreenderem o significado que eles têm para os seus alunos “Eu acho que brincar não é só jogar os brinquedinhos em cima da mesa e não falar nada para seus alunos. Tem que ter um porque para aquilo. Olha, vocês podem brincar de outras coisas. Você pode até falar, separar algumas coisas, tem que dar um impulso, um estímulo para eles e deixar livre, deixar fluir. Não é só colocar ali e pronto. Não é só desenhar a Amelinha e deixar que eles se virem. Acho que não é isso. Os jogos, principalmente na faixa etária dessas crianças81, têm que ser dirigidos, ou melhor, estimulados, tem que despertar para as regras, para as relações entre eles, para a fantasia. Tem que organizar, mas também permitir que eles se organizem, tem que dar liberdade de pensar, de agir”. Emília sai em busca disto em sua prática docente e lamenta que muitos professores ainda não tenham alcançado esta compreensão. “O tempo vai passando e esses professores estão mais preocupados em enfiar o conteúdo na cabeça da criança, querem as cabecinhas cheias. Será que a criança por ela mesma, com prazer e curiosidade não vai aprendendo? Na imaginação dela, na brincadeira, despertada por sentimentos de competição, de jogo mesmo, de descobertas, de alegrias, de disputa, de solidariedade, de tudo que o jogo oferece a criança pode despertar para o conteúdo è uma coisa tão mais fácil. Não são só, os jogos com conteúdo que ensinam alguma coisa, todo jogo deixa alguma experiência que agente carrega pra a vida, por isso defendo a oportunidade da criança brincar tanto fora quanto dentro da escola.” Desta forma, Emília comunga com a idéia de Montagne, ampliada por Edgar Morin (2004) de que ‘mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia’. Não adianta só se prender aos conteúdos se eles não estão fazendo sentido para quem os ‘recebe’. Ao usar este termo desejo remeter o leitor à idéia de educação bancária de Paulo Freire, de alunos que recebem os conteúdos que são depositados pelo professor que os transmite. Um sentido de mão única na relação ensino-aprendizagem. Na educação é necessário haver motivação para aprender, e, para Emília, crianças da educação infantil aprendem muito mais se a forma de ensinar for prazerosa, divertida e motivante. Trata-se de buscar outras formas, outras propostas na relação ensino- 81 Emília refere-se ao segmento da educação infantil e das séries inicias do ensino fundamental. 181 aprendizagem, o que passa por uma reforma de pensamento como nos propõe Edgar Morin em suas diferentes obras publicadas82. Emília é uma grande incentivadora dos jogos no espaço escolar, não só como alavanca metodológica, mas como elemento formador e transformador de valores, hábitos e atitudes. Acreditando nisso, em sua escola ela sempre motiva os alunos a brincar e a jogar. Participa com eles das atividades recreativas e das aulas de educação física, mas tem consciência de que escola não se limita a isto, a ser só ludicidade e brincadeira. Os conteúdos são importantes, mas importante também é a forma como as crianças apreendem estes conteúdos. Para ela deve haver um meio termo, um ponto de equilíbrio entre os deveres e prazeres. “Eu acho assim, se hoje tem um conteúdo para dar, se não deu e eles estão brincando eu deixo. Quem disse que eles não estão aprendendo alguma coisa? Eles estão no momento de imaginar, de relaxar, de brincar. Eu sinto que com os conteúdos que eu dou para eles, que inconscientemente eu forço eles, eu estou tirando parte da infância deles, estou os fazendo amadurecer no momento que as vezes não é para isso. Eles gostam de ficar lá mexendo nas coisas, descobrindo coisas, pensando, criando, aprendendo também. Ontem eles estavam brincando com os carocinhos da minha uva. Eles botaram tudo lá e fizeram um futebol de caroços. Um caroço falava com o outro, jogava, se mexia. Sabe, as vezes você fica dando conteúdo, é consoante, é isso, é aquilo, parece que a criança não vive. Parece que a educação infantil antigamente era vista como lazer. A criança ia lá só para brincar. Agora parece que a criança está fazendo uma faculdade. Criança de 3, 4 anos não tem tempo para nada, tem que guardar os brinquedos. Tudo bem que a gente tem que colocar os limites, tem hora par brincar, para ter os conteúdos, mas tem que ter equilíbrio. Tem horas que a criança tem vontade de brincar e não pode, desde muito cedo tudo já é cortado, podado”. Em sua opinião muito ainda poderia ser mudado com relação à educação, principalmente no primeiro segmento da educação básica e da educação infantil. O rigor com que a escola cobra os conteúdos, a falta de liberdade do aluno se expressar e se manifestar estão aquém do que ela entende por educação. Com o que viu, reviu e refletiu em seu processo de formação ela percebe que é possível, sim, novas formas de relacionar o jogo à educação, mas, para ela, parece que os professores e a escola se acomodam no modelo existente. Torna-se costumeiro ensinar da forma tradicional. Ensinar de outra 82 A idéia central do pensamento complexo de Edgar Morin e que passa uma reforma de pensamento foi apresentada neste trabalho no Primeiro tempo. 182 forma, para os colegas professores com os quais dialoga, pode ser arriscado e Emília explode em indagações. ”Se ele viu aqui que dá certo, por que na sala de aula dele não vai dar? Por que não pode ter um momento de brincadeira em sala de aula? Por que a brincadeira tem que ser só num espaço aberto? E quando está chovendo não se brinca? A gente não pode rir? A gente não pode rolar no chão? A gente não pode pular? O que é que impede? As quatro paredes de uma sala? É ensinado para a gente que a nossa mente pode voar. No livro a gente não vai para outros lugares? Na brincadeira também! A gente pode fingir que não existe parede ali. Você pode imaginar que está num campo correndo, brincando, pulando amarelinha , por que não? Por que é que a gente aprende aqui e não aplica? O que nos impede? É medo do diferente? É achar que vai dar errado?” “Quando você pensa em criança, você pensa o que? Pensa nelas correndo, brincando, falando sozinhas, jogando bola, aquelas coisas todas, rolando no chão. Isso é ser criança, mas tem gente que não gosta, talvez porque não tiveram tempo de ser criança de verdade. Isso vai da pessoa, então eu acho que a escola hoje precisa muito levar á sério as brincadeiras. Lógico que tem aquele momento de ensinar ali no quadro, mas como eu falei, nada impede de fazer de outra forma também. Se a gente aprende isso na Faculdade, aqui na FFP, por que é que quando a gente chega na nossa sala de aula a gente não aplica aquilo que aprendeu? Por que a gente coloca obstáculos?” Emília em seu relato prova que é brincante e que interage com seus alunos nos momentos recreativos que proporciona para eles. Ela pula, rola, brinca de amarelinha, joga pneus, brinca de pique esconde, pique pega, de se esconder, de casinha e de fantoches. Ela participa também das aulas de educação física com eles. “Eu vou para a aula de educação física junto com a turma. Corro, brinco de pegar a bolinha, de pique, eu faço um escândalo naquele pátio”. Emília tem interagido muito com o atual professor de educação física de sua escola. Eles fazem planejamento juntos (tema da Copa do Mundo de Futebol, por exemplo), ela dá sugestões, trocam livros, textos e idéias. Ela compreende que a educação física escolar assume um papel muito importante no contexto educativo. Para ela, esta disciplina trabalhada de forma consciente e interdisciplinar, pode colaborar muito no processo de aprendizagem. Valores, conceitos, relações sociais, resolução de problemas, estratégias, criatividade, autonomia e a própria experimentação dos movimentos corporais nas atividades das aulas de educação física cumprem um papel que vai além da educação formal que, em linhas gerias, se atribui à escola. “A Educação Física está mudando, está 183 ajudando nisso. Eu espero que até o final do ano a gente possa ter uma parceria dos outros professores também, sabe”. Ao tratar da educação física escolar, não podemos afastar nosso olhar da escola compreendendo-a como um espaço instituído em que a formação dos sujeitos ocorre de forma complexa, levando a educação física a contribuir nos aspectos bio-psico-sócioculturais dos alunos. (NHARY, 2005, p.138). O papel da educação física escolar vem adquirindo uma visibilidade ao longo das últimas décadas que na recente proposta de Diretrizes Curriculares dos Cursos de Pedagogia do CNE, no Art. 5º inciso VI (MEC, 2006), já se aponta a responsabilidade do professor das séries iniciais da educação fundamental e da educação infantil como partícipe na área de educação física, devendo estar apto a ensiná-la83. Emília deseja que a escola e seus partícipes, sobretudo os pais, coordenadores e professores tenham uma melhor compreensão da importância do jogar e do brincar no contexto educacional. Em sua conversa ela reclama e clama pelo espaço do jogo e da brincadeira. Os professores de sua escola só participam das atividades lúdicas se quiserem. Não há uma reflexão sobre o assunto, não há estímulo da coordenação. O lado iluminado (o instituído) não lança um luz para os jogos na escola. Fazem parquinhos, colocam gramado sintético no jardim, compram alguns brinquedos, mas não se tem a consciência de como utilizar este material. As mães, por sua vez reclamam dos filhos saírem sujinhos e suados, acham que não devem ir para a escola para brincar. “Isso eles podem fazer em casa”. Estas são queixas que Emília escuta na porta da escola onde trabalha. Ela tenta mostrar para as mães a importância das atividades recreativas. Nas reuniões e no bate-papo de saída da escola ela comenta a importância da criança usar o brinquedo, rolar no chão, mesmo correndo os riscos que as atividades possam gerar. Na passagem do narrado de Emília que se segue se percebe a professora brincante que, de forma consciente, sabe o que faz, sabe o que quer, sabe em que deve a educação contribuir para a formação de sujeitos tão pequenos como os dela. 83 Não pretendo neste trabalho entrar nesta seara, mas deixo-a como porão de pesquisa para que possa refletir sobre esta questão numa próxima oportunidade. 184 “O suor escorre mesmo. Tem dias que eles vão pretinhos, e o uniforme é branco, branquinho! As mães às vezes falam assim: Tia, o fulano está sujo. Eu digo: mãe, ele tem que brincar, eles são crianças. Antes as mães implicavam muito com tantos jogos, mas você vai as conhecendo, vai dando carinho, vai falando o que está fazendo, a importância das coisas, então elas vão aceitando. As sextas feiras é dia de trazer brinquedos. Elas antes não gostavam porque ia escangalhar. Então eu comecei a falar com elas que brinquedo não é para a vida toda, não é para ficar na estante. Eu falo muito para elas o que eu aprendo aqui na Faculdade.” Emília é uma boneca que está sempre com a chave na mão para abrir, a qualquer momento, o mundo mágico do jogo e da brincadeira. Para ela esta é a chave que permite a entrada no mundo do sonho, da fantasia, mas que hoje ainda é pouco valorizado pelos sujeitos da escola. O jardim de sua infância é também o jardim que ela deseja para seus alunos, envolto em traquinasses que permitam a criatividade, a inventividade e diferentes fruições. Ela reclama que este mundo esteja literalmente trancado. Que os brinquedos sejam guardados em estantes tão altas, que os professores pouco se utilizem do parquinho e do pátio. Para ela, falta aos colegas de trabalho se permitirem ser um pouco crianças para que , brincando com elas, possam conhecê-las melhor, fortalecendo as relações entre professores e alunos. Se aproximando do mundo do jogo, eles poder assumir uma postura mais educativa no sentido bio-psico-sócio-cutural. Sentido de complexidade, do que se tece junto, cerzido por cores, traços e formas evocadas no território fascinante do jogo. “ (...) eu vejo os jogos na minha escola com um quarto cheio de brinquedos ,mas trancados. È aquela coisa toda, mas lá em cima da estante, é como se tivesse uma grade que não deixasse tocar. Fica tudo longe, longe de quem é a essencial alma para aquilo estar ali, para aquilo fazer acontecer, a criança”. “Eu acho que os professores devem realmente se preocupar mais com essa parte lúdica nas escolas. Falta muita coisa ainda relacionada a isso. E muitas, muitas vezes mesmo, a gente faz isso com as nossas crianças, fazemos com que elas amadurecerem rápido demais. A minha vida foi assim, por outras circunstâncias, mas foi assim, já a escola também faz isso, eu acho que já chega quando a própria vida te coloca esta perda, te rouba o brincar na infância, não pode a escola fazer isso também, privar as crianças de brincarem . Tiramos a infância delas quando só pensamos em conteúdos”. Encontramos neste fragmento do relato de Emília o simbolismo do cofre que baseia-se em dois elementos: o tesouro e a revelação. Nele se deposita um tesouro material ou espiritual e sua abertura equivale a uma revelação. Sua abertura é o anúncio de uma 185 nova era, de um novo advento. “O cofre não pode ser aberto senão na hora providencialmente estabelecida e só pelo detentor legítimo da chave”. (Chevalier e Gueerbrant ,2005, p.262) Emília gostaria de ser a detentora da chave do mundo de brinquedos de sua escola. Este ‘lugar outro’84 do jogo, território sagrado para quem joga, precisa, a seu ver, ser desvelado abrindo para a educação novos fazeres pedagógicos que considerem o sujeito como um ser complexo. Um ser que brinca, que estuda, que ri, que chora, que sonha e que vai se constituindo sobremaneira no espaço tempo da escola. Para ela “ a vida deveria ser uma eterna brincadeira”. O brinquedo e o jogo têm poderes transformadores, “eles ensinam alguma coisa”. Para além de alavanca metodológica, as vivências lúdicas despertam para outros ‘conteúdos’ que precisamos carregar na bagagem da estrada da vida. Com as palavras de Emília encerro aqui esta narrativa mostrando que o brincar não tem tempo, lugar ou hora para acontecer, podendo ser dentro da escola, fora dela ou simplesmente na imaginação. Viver o jogo é senti-lo. É uma experiência única que só depende do próprio jogador. “Não são só os jogos com conteúdo que ensinam alguma coisa, todo jogo deixa alguma experiência que agente carrega pra a vida, por isso defendo a oportunidade da criança brincar tanto fora quanto dentro da escola.” 84 Expressão usada por Johan Huizinga ao se referir ao mundo do jogo, o mundo do simulacro e do faz-deconta que escapa do plano racional e corre em paralelo com a realidade. 186 As aventuras do Capitão Gancho 187 Praia da Azeda- Búzios- RJ As aventuras do Capitão Gancho _____________________________________________________________ ____________ Historicamente no Brasil, os Cursos de Pedagogia sempre pertenceram ao universo feminino e poucos são os homens que atualmente trabalham na docência da educação infantil e séries iniciais. Na FFP / UERJ até o ano de 2002 a presença feminina era quase que exclusiva neste curso, quadro que começou a mudar quando o vestibular deixou de ser isolado e se abandonou a exigência de comprovação de exercício do magistério85. O perfil do aluno foi modificado e a presença masculina, embora ainda muito acanhadamente, passou a fazer parte do Curso. Capitão Gancho, aluno do curso e participante desta 85 O Terceiro tempo deste trabalho aponta mais claramente esta mudança 188 pesquisa, foi um dos que passou a pertencer a este universo mais ‘cor de rosa’ e em diferentes momentos de nossa entrevista ele se referiu a isto : “No início eu não era o único homem da turma, mas depois acabei sendo porque saiu todo mundo para outros horários, uns foram para outros cursos, outras faculdades, outros largaram. Aí ficou só eu de homem. Eu pensei: Caramba, o que eu vou fazer? Eu estou muito distante do pessoal aqui”. Este sentimento de ‘ser diferente’ foi acentuado quando, após o sexto período, ele precisou trocar de turno. Capitão Gancho se sentiu desprotegido sem os parceiros de aventuras acadêmicas com quem estava acostumado a lidar. “ Quando eu entrei para a FFP, em sala de aula, eu não me sentia tão perdido não. Só quando eu mudei de turno é que percebi que as pessoas são um pouco preconceituosas”. Em sua fala ele demonstrou certa inquietude com relação a esta questão de preconceito apontando que numa faculdade que forma professores isto não deveria existir. “Aqui seremos professores, vamos entrar em sala de aula para trabalhar principalmente com crianças. Temos que ser agradáveis, gentis e não podemos afastar as pessoas da nossa volta. Professor e preconceito não combinam.”. Capitão Gancho foi meu aluno quando cursava o quinto período do Curso de Pedagogia. Naquela ocasião ele contava com mais dois rapazes que, embora tenham tomada outros rumos, não perderam a amizade. Sua participação nas aulas sempre foi acanhada, o que revelava sua personalidade tímida. Mesmo tendo o apoio dos rapazes que faziam aquele alvoroço ao brincar e jogar, Capitão Gancho não se entregava por completo ao mundo do lúdico. Ele era contido, receoso, envergonhado. Sua fala, neste sentido, é reveladora. “ Tinha coisas que eu nunca tinha brincado, não conhecia . Aí me perguntava se seria legal. Será que eu vou me entregar a isto? Será que eu vou me prejudicar? Só que eu nunca fui de ficar com vergonha, mas as vezes pintava. Não é que eu seja inibido, é que as vezes pintavam situações que eu ficava constrangido dos outros olharem. Tinha medo de acharem que eu não sabia me mover para tal brincadeira.” O fato de não conhecer um vasto repertório de brincadeiras infantis se deve a diferentes fatores. A entrada tardia na escola, a precoce atuação no mercado de trabalho, seu jeito próprio de ser e os rumos que sua vida tomou desde muito criança, foram o afastando do universo dos jogos e brincadeiras. 189 Na idade de 4, 5 anos, quando ele pensa que deveria ter sido alfabetizado, ele não freqüentava a escola. Só foi matriculado pela primeira vez por volta dos 9 anos de idade, então as brincadeiras de recreio, as oportunidades que poderiam ter surgido mais cedo no contexto escolar não lhe foram dadas . Capitão Gancho não teve Jardim da Infância. Em diferentes falas e respostas dadas ao questionário desta pesquisa se percebe que a grande maioria dos entrevistados associa o espaço escolar as oportunidades de brincar na infância, muito embora também reclamem que nas escolas de antigamente, assim com nas escolas dos tempos modernos, este espaço seja restrito86. Marcellino (1989) aponta para o furto do lúdico na infância fundamentando-se numa alternativa educacional que leve em conta a relação de interdependência entre o lazer, a escola e o processo educativo, concebendo a necessidade de pensar numa ‘pedagogia da animação’87: “ fundada no lúdico; do jogo, da festa, do brinquedo – do lazer, inclusive como crítica ao antilazer que se manifesta hoje, na nossa sociedade, dominada pelos critérios da utilidade e produtividade” (MARCELLINO, 1989, p.19). Capitão Gancho foi impelido precocemente a ser um cidadão produtivo, seu lazer era, então, limitado. Filho caçula de uma família de pouca instrução, Cap. Gancho teve podada as grandes aventuras lúdicas da infância. ”Meu pai era militar, ele não tinha muita flexibilidade, vamos dizer que ele era ignorante nessa parte de permitir que se brincasse”. Seu brincar era restrito ao entorno da casa e os adultos da família pouco se importavam com as travessuras dos filhos. “Eu quase não saía para brincar com outras crianças, conhecia poucas brincadeiras. Nossos momentos de brincar, meu e de meus irmãos, nós criávamos. Nossos brinquedos eram inventados, criados, nunca eram comprados. Ninguém se preocupava em dar brinquedos para nós. Por exemplo, carrinhos. Eu pegava as latas de óleo, cortava e fazias as cabines. Pegava madeira e fazia as rodinhas. Era eu e meu irmão brincando disso”. Capitão Gancho e sua turma, no caso seus irmãos, precisavam saquear os lugares do sítio onde moravam em busca de material para fazer brinquedos. Esses momentos foram lembrados por ele com um sorriso escondido nos lábios. 86 Neste sentido, algumas respostas dadas ao questionário que se encontram na parte intitulada Súmula, neste trabalho, podem ser mais elucidativas. 87 Título da obra Pedagogia de animação de Nelson C. Marcellino, 1989 190 O pesquisador, de olhos bem abertos e ouvidos bem atentos, deve considerar o não dito, o silêncio e as manifestações corporais como expressões reveladoras de uma história de vida. Imbuída de apurar estas percepções, percebi que Capitão Gancho demonstrava sorrindo que essas peraltices da infância eram divertidas. Mesmo correndo o risco de uma bronca, a delícia da aventura o atraía: “Meu pai tinha um armazém grandão. Ele era militar, mas trabalhava fora fazendo obras, essas coisas de construção. Era lá que ele guardava esse material. Sempre tinha alguma coisa que a gente aproveitava. Pegávamos também as coisas que estavam largadas por lá. Ele vinha do trabalho, descansava um pouco e depois saía para trabalhar novamente. Nessa saída nós aproveitávamos para fazer a limpa no material dele. Só que ele sabia que a gente pegava, mas quando era coisa pouca ele não ligava muito A bronca era tranqüila nesse caso. Ma só que quando a gente pegava alguma coisa valiosa e estragava ele dava uma tremenda correção na gente”. A primeira fase de sua infância foi passada num sítio em Visconde de Itaboraí, município do norte fluminense do Estado de Rio de Janeiro. Apesar do ambiente ser propício para a criatividade e a inventividade, Cap. Gancho preferia brincar no lago do sítio confeccionando alguns artefatos para isso. “Lá onde nós morávamos tinha uma ilha no meio do terreno. Era uma ilha pequenininha, mas passava água nela. Eu gostava muito de brincar de barco lá. Eu ficava atravessando os barcos na ilha. Não era muito fundo não, era raso, mas como eu era pequeno, ficava difícil de passar, mas eu adorava atravessar por dentro d’água. Eu brincava assim, fazia barquinhos das madeiras que achasse por lá mesmo. Pegava também isopor para fazer barcos. Isso para mim já era uma aventura e tanto, passar barquinhos de lá para cá. Eu levava muito tempo sozinho brincando disso.” Por ser mais criativo e inventivo na confecção de brinquedos e pouco imaginativo para viver situações imaginárias, distanciava-se do universo onírico oferecido pelos irmãos. Cap. Gancho não se sentia atraído por brincadeiras de faz-de-conta. Seus irmãos bem que tentavam atraí-lo para estas brincadeiras, mas ele resistia. Quando muito aceitava as brincadeiras que se aproximassem da vida real, mas dependendo dos papéis que tivesse que desempenhar ele as abandonava, ou , na maioria das vezes as destruía. O brincar prepara para as realidades futuras, torna-se uma ponte para a realidade. ”É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e 191 utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu ( self ).” (WINNICOTT,1975, p.80) Se Capitão Gancho optasse por brincar com os irmãos acabava arrumando confusão. Para ele a representação das situações da vida cotidiana no ato de brincar deveria corresponder ao real, desta forma evitava brincadeiras que o levassem a situações de submissão ou sacrifícios corporais, pelo menos no sentido representativo- “Eu era muito preguiçoso e também eu não queria ser aquele cara da brincadeira que sofria”. Como infere Winnicott (1971) “é nas brincadeiras que a criança liga as idéias com a função corporal” ( p.164). Como nem sempre era compreendido, Capitão Gancho preferia ficar ilhado com seus carrinhos e barcos. “Quando eu ia brincar com meus irmãos tinha que ser aquela coisa real mesmo, vivendo coisas reais que a gente via, ouvia. Só que eu sempre estragava tudo, eu estragava as brincadeiras todinhas. Eu não gostava disso de imaginar, de sonhar com as coisas. Eu era muito pegado a realidade, então naquela fantasia deles eles voavam e eu destruía tudo no meio da brincadeira. Se a gente brincasse de carrinho eles me colocavam para ser o motorista, o ajudante. Mas eu não queria ser o ajudante. Eu era muito preguiçoso e também eu não queria ser aquele cara da brincadeira que sofria. O ajudante sofre muito. Eu não queria ser igual a ele, aquele dava muito duro. Eles queriam me convencer de ser aquilo, me ensinavam o que fazer. Mas eu nunca queria ser nem fazer aquilo que eles falavam. Eu queria ser coisa melhor para não ralar tanto. Aí quando eu estava no meio da brincadeira eu chegava e falava que não queria mais brincar. Eu saía e arrumava outra coisa para fazer sozinho ou ia para a minha ilha brincar”. Como um templo, um santuário, a ilha se situa fora do fluxo da existência. Representa um outro mundo. Simboliza o cosmo porque apresenta um valor sacral. “A ilha é simbolicamente um lugar de eleição, de silêncio e de paz, em meio à ignorância e à agitação do mundo profano”. (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.501). A ilha tornava-se o lugar do refúgio de Capitão Gancho. O espírito de marujo do Capitão Gancho da literatura infanto-juvenil lhe chegou muito cedo. As aventuras no lago fundo, pelo menos para o seu tamanho, já demonstravam isso. Brincar na água dava-lhe prazer. Se fosse brincar com os irmão se revelava uma criança briguenta, birrenta e destruidora , daquelas terríveis que nem os pais sabem o que fazer. Sua opção era viver fugindo, se refugiando em algum canto, nem que fosse a ‘barra da sai da mãe’. Lugar quase sempre seguro para as crianças arteiras, uma espécie de ‘ilha afetiva’. Depois de se aventurar na correria, o porto seguro estava lá na companhia materna, 192 por isso era fácil estar sempre arriscando. Transitava entre o mundo profano de desentendimentos com os irmãos e o lugar sagrado do amparo maternal. “Sempre que pintava essa situação de fazer o que eu não queria, eu parava de brincar com eles. Começava o maior conflito, dava briga. Tinha muita briga nas nossas brincadeiras, mas como eu era sempre o menor, levava prejuízo. Recebia tapas, socos, briga física mesmo de me deixar machucado. Mas era até engraçado, porque eu tinha o apelido de Pápa-léguas. Eles me chamavam disso quando eu era pequeno porque eu corria muito. Na hora da briga eu corria para onde estivesse o meu pai, a minha mãe. Chegava e ficava perto deles como se estivesse pedindo proteção, mas eu não falava nada, não contava o que tinha acontecido. Ficava lá perto da minha mãe e quando acabava a situação , quando eles já tinham esquecido, eu voltava. Eles me aceitavam na brincadeira de novo. Eu prometia que não ia mais estragar tudo, mas quando estava quase na metade da brincadeira eu começava tudo outra vez, saía destruindo tudo, me negava a fazer o que eles queriam”. Se o mundo profano não lhe agradasse ele arrumava um jeito de acabar com tudo e se refugiar numa ilha, fosse a ilha do sítio, a ilha afetiva da mãe ou a própria solidão. Viver flutuando entre estes dois mundos, o profano de brigas e o sagrado da solidão, dava-lhe prazer. Sair correndo em disparada representava para o Capitão Gancho uma sensação de risco. Uma fruição como ilinx88. Um pânico momentâneo, uma busca pela vertigem que leva a um atordoamento tanto físico como mental. É uma procura por uma perturbação com um fim em si mesma. O fato de precisar correr desenfreadamente em busca de proteção causava uma espécie de transe que alimentava e sustentava o desejo de continuar brincando. “Era sempre assim, indo brincar com eles e correndo deles.” O risco é inerente à condição humana e ele explode no fascínio pela vertigem “...é uma forma lúdica de relação em que o ator mergulha imaginária ou realmente no perigo, provocando um desequilíbrio” ( COSTA, 2000,p.21) Capitão Gancho foi forçado a trabalhar muito cedo. Seu pai, com poucos recursos financeiros para sustentar uma família de oito pessoas, precisava da mão de obra dos dois meninos na construção civil, ramo em que ele trabalhava acumulando a função de militar. Em conseqüência disto aos oito anos de idade ele trabalhava, mas não estudava. 88 Os conceitos de jogos de Caillois ( 1990) foram explicitados Segundo tempo deste trabalho. 193 “Nessa fase aí, chegando próximo dos meus 9 anos eu via todo mundo estudando e eu não, nada de ir para a escola também. Eu não sei se foi porque os meus pais não eram muito de estudar. O que prejudicou meu pai na vida militar foi isso, ele não estudou, não evoluiu. Meus primos, meus sobrinhos começaram a estudar e eu não. Eu queria muito, só falava em ir para a escola, mas meu pai falava: que nada, vocês têm que trabalhar, se não vocês não vão ter uma profissão, não vão ter nada, vão ficar muito tempo estudando e não vão poder trabalhar. Vocês têm que trabalhar. Aí a gente ficava naquela de ter que pensar que isso era o certo”. Depois dos nove anos de idade, quando finalmente Cap. Gancho entrou para a escola, já era pedreiro. Seus carrinhos de lata de leite foram substituídos por carrinhos de mão cheios de areia e pedras para obras. Suas mãozinhas se dividiam entre os lápis para as primeiras escritas e a pá, pesada ferramenta de construção. Rubem Alves ao prefaciar a obra de Marcellino (1989), referiu-se a relação trabalho X educação na infância como uma relação que aliena , que faz o corpo, competente para o trabalho, esquecer-se de tudo. “Esquecido de si mesmo, seu corpo se mistura aos tijolos, cimento e paredes. Operário competente, ferramenta boa, como a pá, o prumo, a esquadria. Competente e útil. Utensílio. Precisado. Procurado. Empregado. Contratado”. O pai de Capitão Gancho não percebia que o filho, pobre operário, não sabia ler o que estava escrito nos tijolos. Trago novamente a fala do entrevistado revelando o que pai dizia aos filhos pequenos: “vocês têm que trabalhar, se não vocês não vão ter uma profissão, não vão ter nada, vão ficar muito tempo estudando e não vão poder trabalhar”. Sua vida começava difícil, e as escolhas tinham que ser feitas, mesmo ainda sendo muito novinho para isso. “Era difícil conciliar estudo e trabalho, era muito confuso, entendeu? Eu faltava muito as aulas, não conseguia cumprir os horários, depois com o tempo eu parei de estudar, não dava para continuar assim”. Capitão Gancho engrossava as estatísticas do final da década de 70 de evasão escolar. Entre o trabalho e o estudo, o primeiro venceu. Com isso ele abandonou também os brinquedos, brincadeiras e jogos. Tinha que levar vida de adulto trabalhador. Do trabalho para casa e desta para o trabalho sete vezes por semana. Brincar, só escondido, mas na maioria das vezes o corpo pedia descanso. O homo faber derrotava o homo ludens de um menino de 9 anos de idade. “Eu não tive muito tempo de brincar. Quando conseguia sair um pouco para brincar, não podia, tinha que trabalhar. Era escondido mesmo que eu conseguia brincar. Tinha que trabalhar, então estava sempre cansado”. 194 Dos 8 aos 14 anos de idade Cap. Gancho trabalhava muito e estudava pouco. “Até os 14, 15 anos a vida era só escola, quando dava, e trabalho, mas esse era muito”. Seu lazer foi aos poucos se reduzindo a um futebol com os colegas, mas tinha que ser escondido. “Dos 8 aos 14 anos eu jogava bola escondido. Eu fugia para jogar. A gente saía e sempre tinha alguém que marcava um campinho num lugar escondido. Assim dava para mim. A gente não só jogava, mas brincava também. Quando dava o horário que eu sabia que meu pai estava chegando e minha mãe já começava a sentir falta da gente, nós voltávamos para casa. Era tão escondido que nem a bola a gente podia levar para casa, porque meus pais falavam: futebol, não! È coisa de malandro, não pode. Não pode jogar bola se não vai virar vagabundo. Estudar mesmo, que era bom, eu não estudava direito”. As relações familiares entraram em crise. Desentendimentos dos pais, dificuldades financeiras e a redução de trabalhos do pai em obras fazia com que este ficasse mais em casa,e, assim, controlava mais a vida dos filhos exigindo algumas coisas também. Com tamanha pressão, Capitão Gancho decidiu fugir. Estava com 14 anos quando foi morar com uma irmã casada, e em conseqüência disto: “Eu parei de estudar e saí do seio familiar”. Mesmo indo morar com parentes, Cap. Gancho não se sentia amparado pela família, pois sua permanência na casa da irmã se restringia a um ‘pouso’. Lugar para comer e dormir. “Chegava na casa da minha irmã raramente. Eu era um turista na casa dela”. A solidão era sua melhor companhia. Ele sente não ter tido a oportunidade de dialogar com os pais, com os irmãos. Ele se fechava em si mesmo. Ilhava-se cada vez mais num universo de dúvidas e incertezas. “Não sei se foi melhor ou pior. Mas com a pressão que meu pai fazia, a gente não estudava , mas trabalhava, não brincava. Criança tem que ter o espaço dela também, mas eu não tive. É preciso ter alguém para chegar e falar: fulano, o que é que você vai fazer? O que você quer na vida? . Agora lá em casa não era assim. Eu estava por conta de mim mesmo. Aí tive que cair fora de casa” A falta de diálogo em casa foi muito sentida por ele e em suas falas ele demonstra esta lacuna: 195 “O diálogo, o auxílio do outro é uma grande ferramenta para a vida, mas eu não tive, não tive apoio nem participação da família na minha vida. Para mim talvez o diálogo tivesse servido (...)O diálogo faz alimentar bastante coisa, mas eu não era desse mundo da conversa, não tive essa vivência em família de papo, então eu não tinha como fazer uso disso, de dialogar com alguém” A comunicação entre as pessoas, segundo Benjamim (1988) promove uma troca de experiências. O ato de narrar e contar histórias é uma forma artesanal de comunicação, mas “ com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa”(p.206). Tanto o pai quanto a irmã de Capitão Gancho foram bem econômicos neste sentido e, pelo dito acima em sua fala, a comunicação em família fez falta. Esta lacuna ele tentou preencher mudando de vida e assim passou a se aventurar em mares nunca dantes navegados. Vivia mais na rua do que em casa e desta forma os perigos lhe rondavam, mas na ocasião, com 15 anos de idade, ele não os percebia. Segundo ele, qualquer coisa desviava seu caminho. Novos amigos chegaram. Alguns eram boas companhias, mas, a maioria, nem tanto. Estava sempre se envolvendo em brigas de rua. Pertencia a grupos arruaceiros que ele considera “ganguinhas mesmo”. Hoje ele reconhece que se perdeu muito nesta fase: “Foi uma época muito ruim para mim”. Capitão Gancho foi, em suas palavras, um menino de rua. “Eu ficava na rua andando à toa. Andava por aquelas alamedas de Niterói89. Aquele trecho ali era minha vida. O dia todo andava por ali naqueles morros todos. Foi nessa fase, meus 15, 16 anos que eu fui garoto de rua”. Mesmo assim ele chegou a participar de uma escolinha de futebol num grande clube. Era goleiro, mas pouco treinava e não tinha responsabilidade com os horários. Se alimentava mal, chegava atrasado e cansado no clube, isso, quando ia. Desta forma, providenciaram o seu desligamento da atividade. Vida difícil. Sem trabalho, sem estudo, sem diálogo, sem futebol. Capitão Gancho remava em mar revolto. Estava à deriva90, até que, por intermédio da irmã, sua vida poderia mudar. Havia na ocasião um professor de educação física que coordenava um projeto para tirar meninos da rua. Foi assim, pesquisando a população dos bairros carentes de Niterói, 89 Niterói é um município do Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro com bom desenvolvimento sócio-econômico e estrutural. 90 Segundo Maturana, o termo deriva remete à idéia de estar submetido a alguma circunstância em congruência com o meio. Nenhum ser vivo fica literalmente à deriva, o meio e as circunstâncias é que vão mudando o tempo todo. ( 2001, p. ) 196 que este professor chegou à casa da irmã de Cap. Gancho. Ela comentou que seu irmão precisava de ajuda. Entregou-lhe uma foto do rapaz e falou por quais ruas ele ‘perambulava’. Foi assim que ... “...apareceu um cara que tinha um projeto aqui em Niterói. Ele trabalhava com garotos carentes, só que ele selecionava os garotos, só meninos, aqueles que queriam estudar, se desenvolver. Ele conversava e perguntava se queriam participar do projeto. Ele tinha um grupo de psicólogos que trabalhavam com ele. Para eles me acharem naquela semana foi um custo. Eu lembro como se fosse hoje. Eu estava na beira da praia. Aí eles chegaram e perguntaram se podiam conversar comigo. Ele era professor de educação física, psicólogo, praticava jiu-jitsu. Ele era totalmente entregue à prática de esportes. Ele usava muito isso para resgatar essas crianças, esses meninos. Eles chegaram para falar comigo. Eles tinham uma foto minha e tudo. Aí eu imaginei que eu tinha cometido algum erro por aí e tinha me prejudicado. Pensei que fosse do juizado de menores, pensei logo isso: To ferrado!!! Não tinha como sair fora, fugir. Aí ele falou: não fica com medo não porque isso aqui vai ser bom para você. Você não vai para lugar nenhum. Nós vamos apenas conversar algumas coisas, se você gostar, você vai decidir. Aí ele chegou perto de mim. Ele tinha um jeito muito carismático. Ele começou a falar do projeto, me interessei. Ele falou: olha, eu sei que eu não estou aqui para forçar você a nada, eu não vou te forçar a fazer o que eu quero, mas mesmo que você não esteja interessado, me escuta. De repente você encontra respostas para o que você procura na rua. Eu já estive com a sua irmã . Ela comentou que você não liga para ficar em casa. Você não conversa com ninguém, tem suas companhias na rua , se são boas ou ruins eu não estou interressado em saber. Também não me interessa saber o que você faz. Você vai continuar tendo a sua autonomia, porque você vive à procura disso, desenvolver a tua vida ao teu modo, do seu jeito. Aí eu olhei e pensei: vou confiar nele”. Capitão gancho participou do projeto com entusiasmo. Sua vida tomava um outro rumo e ele ia se submetendo à outras circunstâncias. De segunda à sexta feira ele trabalha pela manhã limpando caixas d’água em escolas, estudava na parte da tarde e à noite ia para o alojamento do projeto. Nos finais de semana ia para o sítio de propriedade do coordenador para praticar esportes, tomar banho de piscina e comer churrasco. Com o tempo ele foi promovido á guarda mirim e passou a integrar o time de futebol do projeto, mas seu temperamento brigão dificultava um pouco essas novas relações que iam se estabelecendo. “No início foi bem estranho para mim. Sofri bastante, mas também porque eu era problemático, vamos dizer assim, não é? Existiam outros até piores que eu, em situação de risco mesmo, em situações piores que a minha. Nesse meio eu brigava muito. Apanhava muito, mas batia muito também. Quebrava muitas coisas, saia destruindo mesmo, ma era muito castigado também. Eles falavam que quem fosse pego no erro ia ter que pagar 197 trabalhando, ou então não saía nos finais de semana para o sítio. Quando a gente é criança faz coisas sem noção. Eu tinha vício de arrancar a parte de cima da sirene da escola para ela não tocar mais. Eu destruía aquilo. As vezes eu era o destruidor terrível. Deixava um negócio assim acabado. Eu destruía aquilo. Não era só a brincadeira, acho que era o prazer da transgressão. Até os professores que me conheciam falavam: esse aí é problemático, esse aí não tem jeito.” A espada é o símbolo da virtude e da bravura. Sua função é o poderio. Isto implica num duplo aspecto: “o destruidor ( embora essa destruição possa aplicar-se contra a injustiça, a maleficência e a ignorância e, por causa disso, tornar-se positiva); e o construtor , pois estabelece e mantém a paz e a justiça”. (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.392 ). Oscilando entre os símbolos da destruição e criação, a espada é também o símbolo de uma guerra santa, que, antes de mais nada, é uma guerra interior.Capitão Gancho estava cursando a 5ª série no colégio em que a coordenação do projeto o matriculou, mas, mesmo assim, sentia-se desconfortável, como uma inquietude ( guerra interior) que o fazia se lançar à novas viagens. As peripécias do ‘mar da vida’ o atraiam. Foi assim que... “Aí eu pensei em estudar numa escola mais longe dali, assim eles não iam ver se eu estava indo mesmo para a aula. Pedi para estudar perto de casa. Não precisava pegar ônibus nem nada. Eles aceitaram na mesma hora. Mas nessa de aceitarem é que me prejudicou. Não era para eles terem aceitado, entende? Hoje é que a gente reconhece, porque o tempo vai passando e a gente vai compreendendo melhor as coisas. Nessa época eu não queria estudar. Fazia qualquer outro tipo de negócio, menos estudar. Foi quando eu saí daquela ritmo. Pensava eu que estava sendo muito esperto nessa parte, mas era justamente o contrário, não é? Foi assim que eu comecei a sair um pouco da área de estudos de novo. Fui abandonando a coisa de estudar. Eu estava bem próximo dos colegas antigos que eu já tinha de lá. Eles me convidavam: vamos sair para isso, para aquilo, aí eu ia e não ia para a escola.” Para o bem ou para o mal, Capitão Gancho gostava de lutar. Ele mesmo colocava os obstáculos para depois ter que retirá-los com sacrifício, com lutas enormes. O tempo passava e ele se desgastava muito. Saiu do projeto e parou de estudar novamente. Logo em seguida o projeto foi extinto e mesmo não tendo aproveitado as oportunidades que surgiram, ele comenta que o projeto foi bom para diversos rapazes, pois conseguiram emprego, dar continuidade a estudos e até formar famílias. Estas informações ele tem quando, eventualmente, encontra algum colega desta época nas ruas de Niterói. 198 O capitão da Pedagogia não enxergava a própria vida. Até os 20 anos de idade sua vida se arrastou como ele mesmo diz: “Eu me sentia como se estivesse dormindo e alguém chegasse e tivesse que falar: oh, cara, acorda aí! Era como se eu tivesse que ser despertado do sono. Parei minha vida toda. Eu tinha que estudar, que trabalhar, tinha que desenvolver minha vida porque eu estava perdendo tudo que eu tinha. As coisas boas tinham passado perto de mim eu não vi. Parece que eu estava com os olhos fechados para as coisas boas da vida”. A venda é o símbolo da cegueira quando colocada sob os olhos. Os olhos ficam cerrados, fechados à curiosidade. “Têmis, a deusa da justiça tem os olhos vendados para mostrar que não favorece ninguém e ignora aqueles que julga”. (Chevalier e Gueerbrant, 2005, p.934 ). E com os olhos cerrados, Capitão Gancho deixou passar o mundo do estudo, do trabalho e das brincadeiras. Ficou indiferente à sua própria vida. A escola foi abandonada diversas vezes, o trabalho não fazia mais parte de sua rotina e o futebol, que ele tanto gostava, ficou de lado. Hoje, aos 38 anos de idade, ele reconhece o quanto se autoprejudicou na vida, principalmente nos estudos. Ele sempre teve uma vida conturbada, mas precisava correr contra o tempo. O tempo perdido ficou na ‘barriga do jacaré’91. O menino Papa-léguas da infância agora tinha que entrar em ação, pois segundo ele: “Hoje me sinto como se tivesse disputando uma maratona , sabendo que eu tenho condições de chegar ao final dela e alcançar algum objetivo e sabendo que eu me atrasei por falta minha mesmo, entende? Sabendo que tem outras pessoas correndo também e que eu tenho que chegar ao final. É correr contra o relógio mesmo. Ainda tem muita coisa para eu fazer que eu já deveria ter feito e que estaria me ajudando agora. As vezes você vê que deixou muita coisa para trás e que podia ter desenvolvido e não desenvolveu. Aí, corre contra o tempo” Por volta dos 20 anos de idade ele teve alguém que o ajudou a tirar a venda dos olhos. Ele conheceu uma moça, com que está casado atualmente, que o fez olhar para trás e desejar recuperar o tempo perdido. “Foi quando eu comecei a ver que os outros colegas meus tinham as coisas melhores, novas, entende? Outros estudavam, faziam faculdade e eu não tinha terminado nem o ensino médio. Aí ela falava: cara, você tem condições!” 91 Na história infantil de J.M. Barrie, o Capitão Gancho ao, lutar com um jacaré, perde seu relógio para este que o engole. Como conseqüência ele tem seu braço destruído necessitando de um gancho artificial para substituí-lo. Uso, assim alegoria do relógio para indicar o tempo perdido por Capitão Gancho 199 Incentivado pela família da moça, Capitão Gancho desejou a calmaria do mar para prosseguir sua viagem chamada vida. Voltou a estudar e a trabalhar. Sua experiência em obras na infância foi de grande valia para ingressar no mercado de trabalho, mas, ficou nessa profissão por pouco tempo. Em 1990 ele foi convidado para trabalhar na cidade de Itacuruçá, litoral sul do Estado do Rio de Janeiro conhecido como Costa Verde. Praias cercadas por montanhas e muitas ilhas no em torno compõem uma bela paisagem nas cidades desta região. Desta forma, não conseguindo resistir ao convite, foi trabalhar longe e parou de estudar. Segundo ele, não daria para conciliar as duas coisas, além do que, naquele momento da vida estudar não era tão fascinante quanto mergulhar para ele92. Começou como vigia de uma marina, mas em pouco tempo fez um curso de mergulho passando a atuar profissionalmente como mergulhador. Como não poderia deixar de ser diferente, na vida do ‘capitão do mar’ de J.M. Barrie, assim como na vida do Capitão da Pedagogia, os riscos eram sempre iminentes. “Comigo aconteceu cada coisa!”. Mesmo com todo o treinamento dado no curso oferecido por oficiais da Marinha do Brasil, o perigo de acontecer algum acidente sempre rondava os mergulhadores. Foi assim que por duas vezes ele sentiu medo do mar. “A coisa ali é bem rigorosa e isso tudo era passado para a gente. Tem que saber fazer mergulho, porque se não, não tem como ir lá no fundo do mar, porque lá é muito fundo, e as peças estão há muitos metros abaixo da superfície. Para ir lá tem que saber nadar bastante, tem que ter um curso de sobrevivência, porque de repente alguma correnteza pode soltar estas embarcações, faltar combustível ou pode ocorrer alguma pane , qualquer coisa. Tem que estar muito bem preparado fisicamente, porque lá no ‘mastro’ do mar, lá nas profundezas mesmo, é como se você fosse uma caça..” “Eu gostava disso, gostava de estar em baixo d’água”. Inicialmente ele foi levado a assumir esta profissão pelo lado financeiro, mas depois foi se encantando: “Você é obrigado a estar ali, se obrigando a fazer aquilo porque você sabe que vai ganhar um dinheiro. Com o tempo a gente passa a gostar, mas também porque você passa a dominar melhor as situações. As coisas que a gente faz passam a fazer parte da gente”. O mar passou assim a fazer parte da vida do Capitão Gancho. Aquela ilha da infância onde ele 92 A imagem de mar foi trazida na abertura da narrativa do Capitão Gancho por representar um espaço em que ele viveu sentimentos que se assemelham as fruições do próprio ato de jogar. 200 brincava de atravessar barquinhos agora postava-se à sua frente de verdade. Enormes atóis submersos, pedras onde se escondiam tubarões e outros peixes eram o universo onde ele novamente se isolava da vida dos estudos e da vida em família. Tornava-se um universo lúdico onde poderia jogar, pois o sabor da prática está no jogo com a incerteza e no controle do risco que pode ocorrer durante a jogada. Desta forma ele poderia viver os conceitos de Caillois (1990)93. A competição, agôn, acontecia entre os mergulhadores para ver qual era o mais corajoso. “ Na época, desenvolvi muito, eu era muito forte, então conseguia fazer várias coisas sozinho, coisas que eram para duas ou mais pessoas fazer, eu fazia sozinho. Aquela área ali eu conhecia como a palma da minha mão, não precisa de nada auxiliar.” Como nunca sabia o que lhe esperava nas profundezas do mar, viva a alea, a iminência do acaso : “Quando você está numa correnteza tudo pode acontecer, e nessa época eu era meio medroso, eu ficava rodando , limpando o chão, como a gente chama. Eu não ficava parado dando bobeira”.Ele se sentia como um mergulhador bem preparado fisicamente e que nadava como um verdadeiro campeão, o simulacro, a mimicry , era vivida intensamente. Ser o mais veloz na água é uma flutuação de sentidos que transita entre a imagem do herói e a do competidor, consubstanciando-se no nadador invencível. “Eu nadava muito, eu acredito que se eu disputasse com qualquer nadador na época eu ganhava. Tinha uns dois por lá que nadavam muito também. Mas eu era páreo para qualquer profissional de natação, podia ser até da seleção brasileira. Mesmo que eu não ganhasse seria páreo duro para eles”. A fruição de vertigem, ilinx lhe chegava quando “O tubarão não estava atrás das embarcações, ele estava vindo atrás de mim. Eles depois falaram que ele não queria me caçar, devia estar assustado comigo ou curioso. Tem uma foto minha lá até hoje, está muito desbotada. Eles falam que eu fui a única pessoa que eles viram correr por cima das águas. Até hoje eles falam isso.” Capitão Gancho passou por voluptuoso pânico. “Eu lembro até hoje, como se fosse hoje. Eu pulei da água lá para cima do píer. Eu entrei em estado de choque Indaguei ao Capitão Gancho sobre as sensações de estar no fundo do mar, pois diferentes estudos na área da educação física buscam a compreensão do imaginário de pessoas que vão em busca de esportes radicais como mergulho, canoagem, alpinismo e 93 Estes conceitos foram explicitados do Segundo Tempo deste trabalho. 201 outros. Para autores que se dedicam a esta temática, como Costa ( 2000 ), por exemplo, subir uma montanha, descer um rio e escalar uma parede são atividades que exigem do praticante mais do que esforço físico: requerem um ritual que separa o escalador ou o canoísta dos mortais comuns e os aproxima do divino, sacralizando sua existência. Todo o preparo para essa viagem remete ao sentido de um ritual orgiástico: a busca do êxtase final” ( p.28) Capitão Gancho assim se expressou quanto às sensações desta aventura-risco de seu trabalho-esporte como mergulhador: “Olha, eu vejo muita gente as vezes falando que dá sensação de liberdade no fundo do mar, mas não é tanto não. Você se sente como se fosse um passarinho, mas que a qualquer hora qualquer um pode te dar uma pedrada e você cair. Pensa bem, você sabe que há mais ou menos uns quinhentos metros , um quilômetro, tem tubarões, tem cações e peixes perigosos. Se alguém tem esse sentimento de liberdade, não sou eu”. Aquela fruição de vertigem da infância, quando corria desesperadamente dos irmãos, tornava a acontecer em adulto. Envolvia-se num jogo com o mar que lhe permitia diferentes conquistas, lhe permitia brincar com o destino e com as adversidades imprimindo outros sentidos simbólicos de desafios a seus próprios limites. “a aventura se apresenta como exterior à trama global da vida; todavia, está organicamente ligada a ela e marca o momento agudo desta necessidade interior que impregna a história pessoal” ( COSTA, 2000, p.78). A vida por si só pode ser vivida como aventura, e neste sentido o jogo faz parte da vida. Em Chevalier e Gueerbrant (2005) o jogo é um símbolo de luta, de luta contra a morte, contra as forças hostis e contra os elementos do cosmo , tornando-se um jogo contra si mesmo (contra o medo, a fraqueza, as dúvidas, etc...) (Idem, p.518). Mergulhar para capitão Gancho é risco, é uma espécie de pânico desejado. Em sua fala ele demonstra a satisfação e o orgulho de ter mergulhado sem aparelho, sozinho, enfrentado temporal, vendavais e se envolvendo em grandes aventuras. Num dos mergulhos uma bóia de concreto submersa teve as correntes cortadas por outro mergulhador e quase o atingiu. Em outra situação ele se deparou com um peixe enorme. Os colegas dizem que deve ter sido um cação, mas ele ‘jura’ que era um tubarão: 202 “Então tinha aquelas pedras, aquelas coisas enormes encima de mim, eu estava com a lanterna pendurada no pescoço. O certo é você colocar um cabo, um bote de borracha e deixar na superfície da área onde você está trabalhando. Eu não, botava a lanterna no pescoço e ia, e era uma lanterna pequena. Aí eu virei e vi uma sombra. Não vi o peixe direito, só vi aquela sombra escura e grande. Não quis jogar a lanterna encima, fiquei com medo. O pessoal falou que era um cação. Para mim não. Até hoje eu sei que era um tubarão que estava ali. Eu nunca vi cação com barbatana enorme, e aquele tinha”. A pesquisa narrativa como forma de evocar imagens da vida do narrador deixa-o à mercê de lembrar e/ou esquecer de passagens que têm múltiplos significados e aparentes contradições que podem ser exploradas pelo pesquisador. O ato de rememorar traz escolhas onde algumas coisas são esquecidas e outras têm sentido específico. Cria-se um campo simbólico onde “a memória cria um imaginário histórico, definido pela apropriação pessoal e pela ação de um sentido peculiar a uma determinada trajetória de contato e de acesso a um patrimônio cultural” ( CATANI, 2000, p.23). Os acontecimentos lembrados são evocados à luz da emoção, sendo a memória uma abertura para o relato do vivido onde o que é dito vem carregado de sentimentos, de propósitos e explicações. Para Capitão Gancho, o sentido do lúdico estava nas brincadeiras/trabalho/aventuras do fundo do mar: “Eu gostava disso, gostava de estar em baixo d’água”. Não só quando adulto, ao assumir a função de mergulhador, o entrevistado narrador demonstrou seu amor por águas perigosas. A passagem pelo lago do sítio com barquinhos de brinquedo para alcançar a ilha dava-lhe imensa satisfação. Em suas falas podemos perceber isto: “Eu gostava muito de brincar de barco lá.(...) ia para a minha ilha brincar”. Quanto as sensações que o mar lhe trouxe quando adulto, Capitão Gancho assim se expressa: “O mar é isso, você tem que conhecer ele bastante, se você não conhecer, se não souber se respeitar fisicamente, conhecer seus limites, até onde você pode ir, até onde você pode agüentar a pressão, não dá. Mas é isso que encanta, é isso que te atrai para lá, e aquela área ali eu conhecia como a palma da minha mão” O mar, símbolo da dinâmica da vida. Lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. As águas em movimento simbolizam uma situação de ambiência, onde a incerteza, a dúvida e a indecisão podem se concluir bem ou mal. “ Vem daí que o mar é 203 ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte”. (Chevalier e Gueerbrant, 2005,p.593 ). Para Capitão Gancho, esta experiência de trabalho foi um período de profundas transformações, pois vivendo experiências que desafiavam seus limites ele pode refletir melhor sobre sua vida. Foi um mergulho em si mesmo que o levou a tomada de decisões. “Eu, por exemplo, quando me sentia assim, umas pontadinhas de leve aqui, ali, quando o ouvido dava um zumbido, eu sabia que tinha que subir e tirar o equipamento logo. Era sinal de que minha pressão estava começando a baixar. Então se a pessoa forçar a barra, com certeza vai se prejudicar. Eu passei por experiências ruins. A primeira foi teimosia minha. Eu era muito teimoso. Se tinha uma coisa ruim, os colegas falavam assim: Fulano, não faz isso não que o colega fez e não agüentou. Como eu era forte, me achava muito forte, eu falava para mim mesmo que era tranqüilo de fazer, mas com a história do tubarão eu entrei em estado de choque, não quis mergulhar mais, aí eu saí do mergulho” Saindo da profissão de mergulhador, Capitão Gancho voltou para Niterói com o propósito de terminar os estudos e fazer uma faculdade. No ano de 2000 ele terminou o ensino médio e prestou vestibular para o curso de Pedagogia da FFP/UERJ. Ele comentou que desejava cursar Biologia Marinha, mas que fazendo pedagogia sua vida profissional seria mais fácil, pois a irmã de sua esposa pretende abrir uma escola em Itaboraí ( local onde fica o sítio em que viveu na infância) e o convidou para isto.E assim ele comentou: “Então, já que eu teria que fazer mesmo Pedagogia, faço logo agora”. Capitão Gancho se valeu também da experiência que teve cursando o ensino médio num colégio que, embora sendo de formação geral, trabalhava com a perspectiva de atuação dos alunos no âmbito escolar, visto que os diretores eram formadores de professores. Foi assim que ele teve contato com crianças , pois no 3º ano eles visitavam escolas para desenvolver atividades de brincadeiras, não só as da área de Educação Física, mas de Matemática , Física e Química trabalhando de forma recreativa. Esse era o projeto da sua escola no ensino médio. Isto lhe trouxe diferentes oportunidades de trabalhar com jogos na educação. Apresento abaixo alguns trechos de dois relatos que apontam sua experimentação em aulas lúdicas: “Nós íamos par as escolas poder trabalhar com as crianças. Por exemplo: teve um dia que foi Física. Trabalhar o ensino de física com crianças é difícil, é complicado. Você não pode ensinar aquela coisa técnica que a criança nunca viu, não é isso. Uma das vezes usamos uma pista num quadro feita com carrinhos para mostrar a noção de aceleração. 204 Nós mostrávamos o tempo que se levava para chegar a algum lugar. Mostrava o tempo que eles levavam para chegar de casa até a escola, da escola até em casa, se eles iam para algum outro lugar e tudo. Com isso tinham crianças que falavam que quando saíam mais cedo não iam direto para casa. Aí você começa a perguntar: você vai para onde? Ah, eu passo lá em tal lugar. Você fica quanto tempo lá? Muitas vezes as crianças em vez de irem para casa iam jogar videogame em algum lugar ou iam para casa de algum colega. Então a gente trabalhava melhor a noção de tempo com eles. Tinha uns que chegavam a dizer que deixavam de fazer os trabalhos que os professores da escola mandavam porque brincavam fora da hora. Eles chegavam até esta noção de aproveitamento do tempo, o tempo que eles tinham para se desenvolver melhor, tanto na vida pessoal, familiar como na escola. A gente tem que se divertir , mas também tem que organizar as coisas. Eu dava a estas crianças o suporte para isto, para saber se organizar, pelo menos para ter esta noção. Não é só ensinar física, mas dar também suporte para outras coisas. Os jogos nesse ponto facilitam isso. Se eu não tivesse ali brincando com eles, eles não me contariam essas coisas”. Segue abaixo a segunda experiência: “Na área de matemática nós pegávamos, por exemplo, os dados. As crianças gostavam de brincar de dados. Tem gente que usa para jogos de apostas, mas pode ser feito para dar noção de soma, subtração. Então a gente formava grupos para disputar mesmo. Claro que as vezes eles sempre ganhavam alguma coisa, mas ninguém saía perdendo. Eu não deixava ninguém sair com o sentimento de perdedor. Se um grupo era muitas vezes derrotado eu dava um jeito de reverter. Eu não deixava chegar a tal ponto, sempre criava outra situação para dar oportunidade de tal grupo ganhar alguma coisa. Mas também não deixava aquela noção de ser melhor sempre, melhor que todos. Não ganhou agora mas vai disputar em outra chance, vai ter outras oportunidades. Isso eu fazia antes mesmo de ser professor”. Estas passagens mostram que o trabalho com jogos está para além da transmissão de um conteúdo do programa. Mesmo sem ter informação através de fundamentação teórica sobre o tema jogo, até então, Capitão Gancho já percebia que poderia, através destas atividades, favorecer o desenvolvimento das crianças em diferentes aspectos. Ao levar as crianças a perceberem como aproveitavam o tempo e ao ouvi-las contar o que faziam quando saíam da escola, criava-se uma rede de relações de afeto, confiança e prazer. Estabelecia-se uma proxemia que em termos maffesoliano chamamos de ser-estar-juntocom. O equilíbrio do placar para os grupos que disputavam os jogos de matemática, demonstrado pela abertura de novas possibilidades de outras rodadas do jogo, levavam Capitão Gancho a agir intuitivamente com espírito de educador. Ele conseguia ‘ler esta confissões’ que as crianças fazem nos folguedos dos pátios escolares. Para Chateau (1987) 205 não podemos subestimar a importância dos jogos de nossas crianças, pois o jogo é uma rica fonte de atividades práticas, funcionais e superiores. Para este autor é através do jogo que começa o pensamento propriamente humano (Idem,p.123). No jogo a criança mostra sua personalidade e ainda segundo o autor, o professor deve estar atento as múltiplas indicações dadas pela maneira das crianças jogarem. “Mas não é necessário, para entender esses signos, nenhum conhecimento psicanalítico. O essencial é conseguir se colocar no lugar da criança, é ter o que poderíamos chamar de a percepção da criança”. (p.100). Capitão Gancho foi aos poucos, através destas experiências, resignificando a relação jogo-educação. Para ele “Ensinar uma matéria de forma tradicional não cria muita abertura para o aluno te contar coisas. Os jogos abrem esta possibilidade de ensinar além da matéria, de conhecer o aluno, de passar noções que serão boas para ele, as vezes, para a vida toda deles. Pelo jogo eu me aproximei daquelas crianças.” Ao entrar para a FFP/UERJ, Capitão Gancho já conhecia minimamente o chão da escola pelo ângulo do professor, considerando que seu curso de ensino médio foi uma chave que serviu para abrir portas no âmbito da educação. “Tudo isso foi importante para eu chegar até aqui”. Quando estava cursando o primeiro período do Curso de Pedagogia foi convidado a trabalhar com alfabetização num projeto de Educação de Jovens e Adultos (EJA) em Itaboraí. Ele conhecia grande parte de seus alunos por ser freqüentador deste município desde a infância. Foi nesta ocasião que alfabetizou sua mãe. Estas experiências no EJA trouxeram um sentimento de insegurança e dúvidas, afinal seria sua primeira atuação direta em docência. “ No início que eu trabalhei com EJA, eu não vou esconder não, logo no início eu tinha medo de falar alguma coisa que não fosse muito do conhecimento do adulto e ele saísse um pouco constrangido e não voltasse mais para a sala de aula. É difícil acertar. Teve um grupo de professores que começou a perceber isso em mim, essa insegurança. Falavam que eu estava com muito medo e que não podia ser assim. Eles conversaram muito comigo Eles já tinham bastante experiência na área e me ajudaram muito. Eles diziam que eu não tinha que largar o meu jeito de ser , mas que eu deveria agir naturalmente com a turma. Eu não podia infantilizar situações se não eles se sentiriam constrangidos e fugiriam das aula. Eu tinha que ser natural e me imaginar na situação deles”. Chamado à ter a percepção da criança ( CHATEAU, 1987) Capitão Gancho foi, na docência do EJA, conseguindo trabalhar de forma lúdica levando alguns jogos para a turma. Ele explicou que inicialmente o que facilitou foi o fato de pertencer a comunidade, 206 mas que mesmo assim tinha medo, e dificuldade de brincar com eles. Ele sempre gostou de formar grupos e ele tinha a noção de trabalhar desta forma desde o seu ensino médio. “Eu tinha noção de trabalhar na escola com brincadeiras utilizando jogos para desenvolver a língua portuguesa, a geografia, a história, matemática, ciências. Através de jogos eu sabia como passar isso tudo. Então eu formava grupos, eu pedia que eles formassem os grupos , fazia muito isso em sala de aula, formar grupos para ver a quantidade de pessoas e as características que eu pedia. Percebiam a quantidade de pessoas nos grupos, comparavam, trabalhavam a noção de metade, dobro, frações. Pedia a formação de grupo para eles se posicionarem com relação aos outros, os que não conseguiam tinham a ajuda dos outros. Eu ia alternando a formação dos grupos para mesclar mesmo, para ampliar o conhecimento deles , para facilitar as relações entre eles. Pedia para um ajudar o outro, entende? Tinha uma disputa, mas era diferente. Eu fazia também perguntas e resposta, mas com piadas, com rimas, depois que ia colocando outras coisas do conteúdo. Eu sempre brincava e eles aceitavam, mas depois começou a ficar de um jeito que para controlar era fogo”. Capitão Gancho sentia ao mesmo tempo prazer e receio em trabalhar com jogos, pois, para ele, o adulto já tem uma concepção de mundo que muitas vezes dificulta que ele aceite o novo e o diferente. Ele comenta que a primeira turma que trabalhou de forma lúdica foi um pouco complicado. Como conhecia grande parte dos alunos a relação mais estreita dava mais liberdade para a turma se expressar nos jogos com euforia ou mesmo negando as atividades de jogos. Mas, em contrapartida, ele sentia a necessidade de despertar curiosidade em seus alunos para deixar que eles fossem descobrindo as coisas por eles mesmos. Ele não deseja chegar com pacotes prontos de informações. Os jogos, segundo ele, seriam facilitadoras de espírito de curiosidade e envolvimento nas atividades, desde que ele conseguisse controlá-los para não atrapalhar o andamento do conteúdo a cumprir. Precisava também despertar prazer nos alunos para participar das aulas, pois, do contrário, eles poderiam dormir na aula visto que já vinham cansados do trabalho e as vezes, mesmo em casa, já haviam trabalhado o dia todo. Foi compreendendo isto que ele passou a trabalhar com jogos em aula e, segundo ele: “Essa era uma relação muito boa, eu tive um retorno bom, muito bom. Nossa relação foi mudando, fui ficando confiante em mim e fui ganhando a confiança deles. As aulas tinham um tom de alegria, de prazer. Eles riam, não sentiam o tempo passar e nem percebiam que estavam aprendendo. Acho que para eles, que já são sacrificados pela vida, pela idade e pelo trabalho, a hora de estudar dava prazer, era boa, leve, mais leve que a vida lá fora.“ 207 Na visão de Maffesoli (1998 ) a dimensão do coletivo“ permite colocar em jogo as potencialidades multidimensionais (polimorfas) de cada um, num conjunto” (p.29). Diferentes grupos ou organizações sociais são carregados de uma pulsão de unidade que pode ser encontrada em ambientes de jogos. Este pensador nos aponta a necessidade de se olhar para o coletivo como um coletivo diversificado onde existe um jogo de diferença que se encontra na base de toda estruturação social, compreendendo-a como organização fragmentada que permite de maneiras coletivas a expressão de cada indivíduo e de cada grupo social. Trabalhando com grupos para desenvolver atividades de jogos Capitão Gancho ia criando um novo sentido nas relações que iam se estabelecendo no ato de jogar. Procurei saber se antes de cursar pedagogia ele percebia uma relação mais estreita entre o jogo e a educação, visto que seu ensino médio proporcionou algumas experiências neste sentido. “Olha, para ser sincero eu via como perda de tempo o jogo pelo jogo. Hoje, depois do Curso de Pedagogia eu vejo a escola como lugar de outras aprendizagens. O jogo, a brincadeira são muito importantes para a criança, ela tem que ter isso , as vezes só a escola pode oferecer isso. Tem gente que fala que cortar a infância da criança e o mesmo que cortar a veia da criança , mas também tem gente que fala que se o filho vai para a sala de aula para brincar, então que brinque em casa. Mas não é só brincar, aquela brincadeira vai ter um outro objetivo e que vai ajudar a criança a se desenvolver. Quando eu trabalhava com qualquer tipo de projeto no ensino médio de forma lúdica, quando eu ia nas escolas com atividades que tinham a ludicidade, eu tinha aquele contato mais direto com os alunos, a interação da gente era outra. O que faz a diferença é a intenção, é aquele momento ali de estar trabalhando de forma mais consciente. Aqui na FFP foi que me deu mais sentido de que não é perda de tempo, é uma coisa que precisa ser trabalhada mesmo. Essa noção eu tive aqui, depois que entrei para cá foi que eu vi isso”. Para ele, este curso foi um renascimento em todos os sentidos. Sua maneira de olhar a educação mudou a partir das reflexões provocadas pelas discussões em diferentes disciplinas. “Sabe, tem aquele astronauta brasileiro que falou lá de cima que passou a enxergar a vida na terra de outra forma, acho que é assim. Olhar aquilo que eu estava vivendo de outra forma. Foi um novo ângulo para ver estas questões do brincar, do jogar. Não é que tudo que você aprendeu antes tenha que ser jogado fora, não é isso, mas você começa a enxergar as coisas como se estivesse lá em cima naquele momento astronauta. È um nascimento mesmo, foi como se eu estivesse nascendo outra vez, se é que isso é possível ?” 208 O olhar é o signo de rituais de benção, o olhar aparece como o símbolo e o instrumento de uma revelação. “ O olhar é como o mar, mutante e brilhante, reflexo ao mesmo tempo das profundezas submarinas e do céu.” (Chevalier e Gueerbrant, 2005 a, p.653). Com relação à temáticas que abordam ludicidade em seu curso, Capitão Gancho comenta que foi construindo um novo sentido para o jogo na escola a partir do 5º período, com a disciplina de Recreação e Jogos. “Olha, foi aí que eu tive um conceito mais ampliado disso, eu tive contato mais direto”. Sua fala demonstra o que ele apreendeu desta disciplina: “Para mim foi uma experiência muito boa, porque mesmo que já tenha vivido muito esse contato na prática com os jogos, com brincadeiras em sala de aula com meus alunos, também nas visitas que eu fazia nas escolas , eu aprendi mais, me deu mais possibilidades de criar e encontrar formas mais soltas, mais tranqüilas. È bom tentar elaborar atividades e estudar sobre esse assunto. A ajuda dessa disciplina não foi coisa pronta, ela apontou caminhos. Foi um trabalho interessante na prática e que dá para ver como será com as crianças quando fizermos nas escolas. Deu para perceber se o que era proposto serviria para a criança, para a criança que estávamos imaginando quando bolávamos uma ou outra atividade de jogos. Pensávamos na cultura dessa criança, onde ela estava localizada, se os jogos seriam adequados para ela. Imaginávamos o tipo de brincadeiras na área das escolas em que trabalhamos, como é o ambiente físico, material, a vida das crianças mesmo, em família, no social. Nós olhávamos muito para todos esses lados. Essa disciplina possibilitou isso. Não se limitou a passar os jogos, as brincadeiras, mas fez a conexão deles com o mundo da escola e da criança”. Capitão Gancho sempre mostrou certa inibição em aula. Seus gestos eram contidos nas atividades de jogos e brincadeiras. Parecia-me que ele sentia certo desconforto ou mesmo vergonha em se envolver com os colegas para brincar ou jogar. Interessava-me saber que sentimentos e emoções ele sentiu ao participar das atividades prática nas aulas de Recreação e Jogos e fui, então, encaminhando nossa conversa neste sentido. “ No início foi difícil, mas depois de algumas aulas eu comecei a me soltar e não esquentava mais. Tava todo mundo se entregando, ninguém estava mais preocupado com o mico do outro, com o seu mico, o negócio era estar ali fazendo, agindo. E nessa a gente ia aprendendo muito. Agora eu entendo mais o sentido do jogo, da brincadeira para a criança. Se estava bom para a gente que é grande, imagine para os pequenininhos? A participação foi muito boa. A turma se conheceu melhor, sabe? Mesmo com situações preparadas, eles se interessavam uns pelos outros. Os jogos facilitaram muito as nossas relações. Ficamos mais prestativos com o outro, empolgados com o que os outros 209 propunham. Era um riso, um risco de curiosidade, mas a gente queria correr esse risco, porque tinha alegria, tinha prazer, entrega, sabe? Foi muito divertido e útil também, é claro”. Assim como nas aventuras de mergulhador ressabiado, com medo de ser engolido por um peixe grande, Capitão Gancho foi mergulhando aos poucos neste mar de alegria e prazer que os jogos proporcionavam. Ele precisou adquirir confiança nele e em seus colegas de turma. Foi uma entrega lenta e gradual. Como ele apontou no início desta narrativa, ele tinha medo se entregar, achava que nem sabia brincar, que não conhecia muitas brincadeiras infantis e por isso sentia vergonha de participar. Suas primeiras palavras sobre o assunto foram as seguintes: “Eu nunca fui de ficar com vergonha, mas as vezes pintava. Não é que eu seja muito inibido é que as vezes pintavam situações que eu ficava constrangido dos outros olharem. Tinha medo de acharem que eu não sabia nem me mover para tal brincadeira”. Aos poucos ele foi se deixando levar pela ambiência dos jogos. “Nós aqui vivíamos mesmo as situações, nós vivíamos mesmo. È como se a gente tivesse voltado no tempo. Por exemplo: para mim que não vivi certas situações, era como se eu estivesse lá com meus 6 anos, 7 anos de novo e tivesses vivendo aquele momento ali. Me trazia alegria, muita alegria que me movia a querer fazer, queria terminar um jogo já pensando em começar outro com muita curiosidade. Era isso, curiosidade mesmo era o que a gente sentia. Vontade de experimentar o novo. Engraçado, não é? Tinha jogos e brincadeiras que a gente já tinha feito na infância lá atrás, já conhecia de alguma maneira, mas ali parecia tudo novo. Eram emoções diferentes.” Quando indaguei sobre sua prática docente no EJA ele comentou que procura levar para a turma atividades de jogos, pois acredita que a curiosidade pela atividade possa leválos a prestar mais atenção na aula, assim como pode promover uma aproximação entre os alunos e entre estes e ele, tornando a aula mais leve e prazerosa. “Quando termina o tempo de aula em que eu uso um jogo, fico olhando assim e penso que se não fosse isso, acho que eles estariam sofrendo para aprender”. Para Capitão Gancho, um dos grandes desafio de se trabalhar com adultos é fazer com que eles se sintam bem no ambiente escolar, pois a vida lá fora, para muitos, já e dura e séria o bastante, assim ele está sempre preocupado em dar leveza às suas aulas e tem nos jogos um grande facilitador para isto. “Dar aulas com jogos para mim também é terapia e acho que eles também sentem isso e passam isso para a gente, de que está sendo bom, agradável”. 210 Quando a educação está ligada ao jogo é própria maneira de pensá-lo que se modifica. Capitão Gancho conseguia resignificar o ato de jogar a partir das experiências práticas que vivenciou na graduação. “Criança quer brincar e se você não entender isso você não consegue se aproximar dela para nada, mas só brincando também é que a gente entende isso”. Para ele estas atividades de Recreação deram essa noção de ver a criança como uma pessoa. “Pessoa que ri, que chora, que faz bagunça, mas que também precisa prestar atenção, se concentrar, estar atenta. Pessoa que fica triste, até quando está quieta demais pode significar algum tipo de dificuldade física, mental ou da parte psicológica, ou ainda alguma coisa ruim pode estar acontecendo com ela em família. Com as brincadeiras a gente se aproxima mais delas, conhece ela melhor nessa parte física, mental e de sentimentos”. As práticas pedagógicas pelo viés da ludicidade vêm sendo discutidas por diferentes autores. Brougère (1998) é um dos que infere apontando que o jogo pode se tornar igualmente um espaço de invenção, de curiosidade e de experiências diversificadas, sendo um processo de socialização que prepara o sujeito para assumir um lugar na sociedade. No âmbito escolar “o jogo se caracteriza por uma articulação muito frouxa entre o fim e os meios” ( Idem, p.193) Para Capitão Gancho, o jogo na aula é como um por de sol94. Está lá encoberto, mas a qualquer hora ele aparece para iluminar e alegrar os alunos. Em sua escola ele acredita que os jogos deveriam ser mais explorados por outros professores pois ocupam o lado sombra ligados a perda de tempo ou bagunça. Para ele o trabalho com atividades lúdicas, nem que seja de vez em quando, fica muito melhor. “Não que se tivesse que usar sempre, mas que ele estivesse ali como um sol pronto para nascer” . Para ele “O sol sempre poderá nascer. Eu tenho esperança que amanhã será muito melhor. Ele está lá no céu, se um dia a gente não vê é porque algo encobriu, mas ele está lá. Existe sempre a possibilidade e a esperança dele aparecer para nós. E os professores da minha escola ainda não viram isso, que os jogos iluminam as tuas aulas”. 94 Na imagem de abertura desta narrativa, busquei também trazer o sol como simbolismo do jogo para Capitão Gancho em suas práticas pedagógicas. 211 Fonte de calor, de luz, de vida, o sol mostra a verdade de nós mesmo e do mundo. É a luz do conhecimento e do dualismo dia e noite. “Trata-se de simbolizar a luz e o calor, ou, de outro ponto de vista, a luz e a chuva, que também são os aspectos yang e yin do brilho vivificante”. (Chevalier e Gueerbrant, 2005, p.837). Tem sentido de alternância vida-morte-renascimento, simbolizada pelo ciclo solar.Os primeiros raios deste sol já foram percebidos por Capitão Gancho: “Lá na escola que tem perto da minha casa, por exemplo, do ano passado para cá é que eu comecei a ver mais liberdade para se trabalhar com jogos e brincadeiras em sala de aula, até no pátio da escola eu vejo isso com o professor participando”. Com o entendimento de que a educação vem oscilando entre o sol e a chuva, o lado sombra e o iluminado, e com esperança em dias melhores para educação, Capitão Gancho deixa uma mensagem de crítica ao que tem visto nas escolas por onde tem passado nestes anos na condição de professor, aluno de Pedagogia ou observador do cotidiano escolar. Esta crítica não se limita ao trabalho com jogos nas escolas, mas inclui o fazer docente e as instituições de ensino como um todo. “A escola deveria ser mais aberta porque ela ainda é muito fechada para a ludicidade, para as brincadeiras. Na teoria está ótimo, todo mundo acha legal, mas na prática, principalmente nas escolas públicas, quando chega dentro da escola se vê uma outra coisa totalmente diferente. O professor atua de uma forma diferente , porque na maioria das vezes ele está sendo coagido mesmo a trabalhar daquela forma: Olha, isso aqui não pode. Ele encontra muito controle no trabalho dele ainda, há falta de liberdade para ele atuar. Acho que isso é próprio da educação, essa falta de liberdade, esse controle na forma como você atua, no que você está fazendo e falando . Eu acho que o professor deveria ter liberdade na sala, mas , infelizmente... , é isso aí.” 212 PRORROGAÇÕES 213 Deus Grego Apolo Deus Grego Dionísio Prorrogações __________________________________________________________________ Considerações finais Com a sensação e a intenção de que esta pesquisa não se encerre aqui, chego às Prorrogações95 analisando o jogo jogado pelo e para os professores em formação, atores desta pesquisa. Deparo-me com uma gama de possibilidades de novas (re)construções que este conhecimento proporcionou. Revisitar os Tempos96 do trabalho, evocar a memória para o visto, o não visto e o revisto, antes e durante a pesquisa, parece-me um desafio típico 95 O sentido de prorrogação aqui utilizado, para além de ser compreendido como uma metáfora do jogo, indica os momentos finais de uma pesquisa no sentido de sua infinitude. Um trabalho que sempre necessita de mais Tempos para novas reflexões e visitações, novas jogadas. 96 Refiro-me as partes que compuseram esta pesquisa. 214 do próprio ato de jogar. Ainda em campo, refaço percursos, apuro técnicas buscando táticas para levar o leitor, espectador deste jogo, à compreensão dos sentidos dos jogos para alunos-professores em formação. As vozes dos alunos-professores sejam ditas ou escritas, vão mapeando o território e desvelando O que está em jogo no jogo. Volto a elas inúmeras vezes buscando traços, formas e cores de decifração deste mapa-território. Recordo os autores trazidos para o diálogo deste trabalho, revejo as fotos tiradas, penso e repenso sobre os conceitos e as idéias aqui tratadas. Percebo que eu e a pesquisa já somos um todo. Ela está em mim, assim como eu estou nela. Estabelece-se uma relação de interdependência moriniana - unitasmultiplex. Sujeito e objeto imbricam-se de tal forma que mal distingo a minha voz e voz de meus sujeitos. Ecoamos uníssonos clamando, reclamando e proclamando a alegria e o prazer do jogo para dentro da escola. A perspectiva de uma pedagogia de animação trazida por Marcellino (1989) aponta o lazer como possibilidade educativa. Quando o jogo na escola é tratado como atividade recreativa e de formação humana, não se limitando a ferramenta metodológica, promove vivências, estabelece vínculos afetivos, expressa anseios, revitaliza conteúdos culturais e uma série de relacionamentos sociais que vão abrindo possibilidades de mudanças no plano formativo, logo, educativo. Vimos nesta pesquisa, que o jogo, na maioria das vezes, dentro ou fora da escola, está ligado ao prazer e ao lazer para quem joga. Na fala dos sujeitos podemos evidenciar que: “ Jogo é aquilo que remete a interação e a diversão” ,e que “ são as lembranças mais agradáveis que possuo da escola”. Segundo Marcellino (1989), o fascínio das atividades de lazer remetem o sujeito a um tempo de vivências de novos valores, de questionamentos que (trans)formam os participantes de forma não meramente utilitarista. A diversão e a alegria promovidas pelas atividades lúdicas na escola, não se limitam a um tempo da vida produtiva que normalmente norteia a cadência das atividades escolares. O tempo-espaço do sonho, do escape do real, tornam-se momentos de formação e desenvolvimento humano, onde o jogo aparece como promotor deste lugar outro, lugar sagrado de vivências ricas. A voz do alunoprofessor reverbera que o jogo é “Como uma atividade em que ao mesmo tempo em que 215 havia a diversão, havia também a aprendizagem, pois através do jogo a criança desenvolve várias habilidades”. Nestes pequenos nadas (MAFFESOLI, 1995) e de forma recreativa, o cotidiano toma forma, onde a socialidade em ato revela a efervescência das relações humanas. Como não considerar estes momentos educativos? Como não designá-los como meros divertimentos? Estes têm sido os desafios a enfrentar pelos autores e atores que lidam com o tema jogo e educação. Quando a educação está ligada ao jogo, passamos a (re)significar essa prática tão antiga quanto o próprio homem. Na condição de professor, ligar jogo e educação é compreender que a ludicidade manifestada na infância, na maioria das vezes por meio de brincadeiras e jogos, leva a criança à experimentação de diferentes sentidos como a liberdade, a criatividade, a autonomia, a crítica, a socialização, a fantasia. Conceitos que perpassam o próprio processo educativo. Estas vivências lúdicas podem ser paradisíacas, como as de Emília, aluna-professora que participou desta pesquisa. Mesmo considerando que teve sua infância interrompida pelas “peças” que a vida lhe pregou, Emília não perdeu o espírito brincante. Para ela, o jardim97 de sua infância e o jardim da infância onde trabalha (educação infantil), mesclam-se de tal forma que levam-na a adotar inúmeras atividades de jogos e brincadeiras com seus alunos. Se na infância ela se permitia falar com paredes, dar aulas para galinhas, conversar com o amigo imaginário Alex, como negar que os caroços de uva tornam-se, hoje, jogadores de futebol nas mãos de seus alunos? Quando os espaços e tempos do jogo e da brincadeira são limitados por imposições da própria vida ou por falta de socialização dos mesmos desejos brincantes, como foi o caso do Capitão Gancho, outro participante desta pesquisa, o homo ludens fica adormecido a ponto de levar o indivíduo adulto a um estranhamento do ato de jogar e brincar. “Será que eu vou me entregar a isto? Será que eu vou me prejudicar (..)Tinha medo de acharem que eu não sabia me mover para tal brincadeira.” A história do jogo vivido por cada sujeito, na fase da infância, é fundante no próprio ato de jogar do indivíduo adulto, seja para formar ou transformar atitudes e conceitos com relação aos jogos. Se nas escolas de alguns dos entrevistados o jogo pouco 97 Os termos que se encontram em negrito, fazem referência a algumas imagens evocadas nas narrativas dos alunos –professores na parte intitulada Súmula , neste trabalho. 216 acontecia, como relacioná-lo à educação quando estes sujeitos se tornam adultos? Principalmente quando estes adultos se tornam docentes? Como ver educação e divertimento como coisas imbricadas? O pensamento simplificador, racional e disjuntivo nos levou a pensar que diversão e aprendizado andam em estradas distintas. Para o aprendizado, corpos dóceis (FOUCAULT, 2002)98. Para relaxá-los, recreação. Dicotomia difícil de ser superada no âmbito educativo. Como entender que o jogo possa ser uma ponte entre cognição e prazer? Como dar ao jogo um papel relevante no contexto educativo? Parece-me que o discurso pedagógico permanece míope. É uma visão míope reduzir o ensino escolar apenas a formação do aspecto cognitivo. O corpo, emoções, fruições e sentimentos não são pensados, nem sequer lembrados nas propostas de ensino. Nosso ensino parece prioritariamente razão e pouco enxerga os aspectos bio-psco-sócioculturais revelados nos corpos que estão a jogar e a brincar por toda a escola. O corpo não vai à escola. Talvez vá, mas permanece sentado, disciplinado no silêncio e passividade. Dócil para o aprendizado. Ao repensar os jogos da infância, ao apreender os sentidos dos jogos para as crianças, ao refletir sobre as teorias de ludicidade e, sobretudo, ao experimentar as fruições em atividades de jogos, os alunos-professores são levados a redimensionar o jogo na escola. Torna-se, assim, de grande importância que os cursos de formação de professores abordem a temática ludicidade de forma compreensiva, reflexiva, crítica e transformadora. A relação jogo-educação envolve uma tessitura de fina malha de cores, traços e formas que remetem o jogo à trabalho e divertimento para quem joga, principalmente em se tratando de crianças. Se a Emília da Pedagogia fez do irmãozinho um brinquedo, se cuidava dele brincando de mãe e lhe ensinava as lições brincando de ser professora, o Capitão Gancho desta pesquisa, por sua vez, fez do mar um espaço lúdico, pois a predisposição para o jogo é imanente à condição humana, ‘um instinto’ (HUIZINGA, 2004), ‘uma tendência’ (SCHILER In DUFLO, 1999). Os prazeres lúdicos que lhe foram roubados na infância surgem na idade adulta levando-o a fruições como a competição, a vertigem, o simulacro e ao encontro do inusitado no fundo do mar. Mergulhar e jogar assumem o mesmo sentido. É aqui que retomo a máxima de Schiler (apud DUFLO, 1999) : 98 Para M. Foucault (2002), os corpos dóceis submetem-se a uma disciplina imposta por instituições formativas. 217 “o homem só e verdadeiramente homem quando joga”. (p.77) Com este autor, compreendemos melhor o que representou o mar para Capitão Gancho. Se o pai não lhe permitira brincar, se o ingresso na escola demorou a acontecer em sua vida, o mar foi o lugar de escape para o homo ludens. A escola assume um papel importante quando se pensa na possibilidade de ser espaço-tempo para jogo e brincadeira. Emília, aos nove anos de idade, mesmo assumindo a função de ‘ajudante de professora’, encontrou na escola o lugar de continuar brincando. Capitão Gancho, que pouco freqüentou a escola na infância, quase não brincou “Tinha coisas que eu nunca tinha brincado, não conhecia”. No entanto, nem sempre a escola garante a brincadeira e o jogo. Muito embora a grande maioria dos alunos-professores que participaram desta pesquisa relacionem o jogo vivido na infância a momentos de prazer e alegrias na escola, um número significativo de respostas remete o jogo a momentos ruins, de desconforto ou vergonha. Muitos nem lembram como era o brincar e o jogar. O que fizeram e o que fazemos com a alegria na e da escola? Pensando-se na escola como instituição formativa de uma sociedade e entendendo que as políticas públicas em educação apontem como meta a garantia de escola para todos os cidadãos brasileiros, passa a ser de profunda importância que os professores que nela atuam ou que venham a atuar, compreendam que criança é um ser que brinca, que joga, e que este brincar e este jogar não se limitam a uma necessidade orgânica, funcional e psíquica, mas é veiculador do seu desenvolvimento e de sua formação mais complexa. O jogo é uma atividade fundamental para o desenvolvimento infantil. As teorias de Piaget (1994), Vygotsky (1984), Winnicott (1975) e Bettlhem (1988) por exemplo, reconhecem que no brincar a criança potencializa aspectos bio-psico-sócio-culturais, tornando-se esta atividade uma aprendizagem necessária à idade adulta. Chateau (1987) chega a afirmar que “uma criança cresce e se torna grande pelo jogo” (p. 14). Para este autor, o jogo desenvolve as funções latentes nos aspectos motor, afetivo, social e cognitivo tão importantes na formação humana, tais como socialização, criatividade, autonomia, liberdade, consenso, conflito, ordem, desordem, transgressão, imaginação, fantasia, seriedade, frivolidade. É preciso buscar e garantir o princípio da atividade lúdica, não apenas como impulso humano, mas como necessidade mais ampla da formação do homem. 218 Para Brougère(1998), “o jogo vai estar no centro das atividades que têm por objetivo a regeneração da sociedade” (p.43). O ato de jogar é uma abertura singular para um novo mundo, ele é uma maneira de uma sociedade dizer de si (MAFFESOLI, 1984). As propostas de jogos e atividades lúdicas no contexto educacional devem levar em consideração que o ato de jogar é uma atividade significativa para o homem. O jogo na escola, seja como importante metodologia de aula, como alavanca no ensino de um conteúdo, seja como atividade recreativa, envolve emoções, valores, subjetividades e comportamentos imbricados no próprio processo formativo. Contribui, assim, para o desenvolvimento afetivo, cognitivo, psicomotor, social e cultural da criança na escola, o que implica numa responsabilidade dos professores em relação a seu uso de forma crítica e reflexiva, afinal, o jogo é um fenômeno humano onde o ato de jogar remete a inúmeros sentidos e significados. Nesta pesquisa, busquei identificar alguns sentidos dos jogos para professores em formação, chegando aos mais significativos para estes: recreação e recurso metodológico para a transmissão de conteúdos. Para a grande maioria dos sujeitos investigados, a abordagem sobre as teorias dos jogos na formação docente possibilitou a compreensão do jogo como parte importante no processo educativo, tanto de forma recreativa como de forma formativa. O processo de formação foi, para muitos, um momento de retirar a venda dos olhos e ver o jogo na escola por um outro e novo prisma. Estabeleceu-se uma ponte mais sólida na relação jogo-educação. As atividades escolares passam a ser vistas como espaço para o reconhecimento de manifestações corporais, sociais e culturais promovidas por jogos e brincadeiras. Outro traço importante no mapa-território desta pesquisa foi o indicativo de que as atividades praticadas e vivenciadas na disciplina de Recreação e Jogos na FFP/UERJ corroboraram, e muito, para se compreender as fruições do ato de jogar, o que levou os alunos-professores a uma mudança de olhar. Sentir-se como crianças, gritar, pular, reclamar, torcer, rir, competir, transgredir, partilhar, estabelecer laços, foram algumas atitudes apontadas nas respostas dos alunos-professores investigados. Este ponto da pesquisa me impulsionou a fazer a seguinte reflexão: Que perfil deve ter o professor de Recreação ou disciplinas afins, que atua nos cursos de formação de professores? Deverá este profissional ter formação em educação física ou no campo da 219 ludicidade ? Pensando nas Diretrizes Curriculares dos Cursos de Pedagogia, em seu Artigo 5º, inciso VI99, meus questionamentos tomam força. Que propostas curriculares devem ter estes cursos de modo a atender tais exigências legais? Qual a especificidade do profissional que atuará neste eixo temático? Como mencionei ao iniciar esta Prorrogação, este trabalho proporcionou uma gama de possibilidades de (re)construção de conhecimentos. Deixo aqui estas pistas para outros jogos/estudos de pesquisa, pois uma produção acadêmica não se esgota na elaboração de uma dissertação ou tese. Na feitura destes trabalhos, surgem diferentes formas, traços e cores que demandam novos mapas-territórios com paisagens instigantes a serem exploradas. Volto a transitar entre os sentidos dos jogos apontados nesta pesquisa perpassando pela complexa relação de redes simbólicas que envolvem o ato de jogar. Dentre a multiplicidade de sentidos encontrados, destaco que os alunos-professores remeteram o jogo a seguinte polarização: divertimento/trabalho. Concepção de jogo como meio (aprendizagem) e como fim (ludicidade). Os estudos de Brougèrre (1998) apontam que o jogo na escola é, muitas vezes, entendido como tarefa escolar. O fato de ser também compensador das demais atividades, de ser motivante para as crianças e de ser revelador do comportamento infantil, faz com que seja usado com uma intencionalidade educativa. O que se torna relevante para o entendimento desta polarização prazer-trabalho, é que comportamentos apolíneos e dionisíacos estão presentes no ato de jogar consubstanciando-se na própria tensão do jogo. A combinação destes pólos garante que o jogo seja desejado e vivido literalmente pelas crianças. O jogo só é jogo se envolver paidia e ludus (CAILLOIS, 1990). A euforia, a motivação para o jogo, é que revela se o jogador está ali para jogar e o ludus, ou seja, as regras aceitas voluntariamente, garantem o jogo. Estas características do jogo “convidam” Apolo e Dionísio para uma partida. De forma concorrente, antagônica e complementar (MORIN, 2003), estes “deuses jogam”, e jogam deliberadamente. Os simbolismos dos jogos, aqui apresentados através das imagens-símbolos destacadas nas narrativas e nos interditos das respostas dos questionários, tecem uma trama 99 Artigo 5º. O egresso do Curso de Pedagogia deverá estar apto a: VI - aplicar modos de ensinar diferentes linguagens, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia, Artes, Educação Física, de forma interdisciplinar e adequadas às diferentes fases do desenvolvimento humano. 220 simbólica onde a emblemática reinante é de Apolo e Dionísio. Circulando entre divertimento e tarefa, entre produtivo e frívolo, o jogo pode ser compreendido como atividade séria, sagrada para quem joga e ao mesmo tempo fascinante e envolvente permitindo flutuações de sentidos. Entre seriedade e divertimento, o jogador vai se permitindo sonhar, decidir, brigar, acatar, ordenar e desordenar o estabelecido pelo próprio jogo na busca de uma (re)organização no jogar. Joga-se em princípio tetralógico100 (MORIN, 2005). No movimento recursivo da razão e do prazer, da realidade e da fantasia, do mundo real e do mundo sonhado, os deuses vão tomando o campo do jogo. Ponte entre o racional e o não-racional, o sério e o não-sério. No espaço-tempo do jogo, reinam Apolo e Dionísio, afinal, os mitos narram o mundo que partilhamos com os outros. As atividades lúdicas permitem a imaginação humana manifestada como “uma realidade dispersante que permite estruturar mitos e sonhos” ( COSTA, 200,p.107). O jogo, como dimensão simbólica, epifânica por natureza, reatualiza a tensão entre o real e o imaginário. O antagonismo destes pares torna-se a completude do jogo. Assim, o jogo é um momento de rito que reatualiza-se a cada jogo jogado, envolvendo mitos e símbolos da cultura de quem joga. A cultura lúdica da infância, revelada muitas vezes nos momentos de jogos, é ponto de compreensão do comportamento infantil, o que inclui as atitudes, desejos, sonhos e devaneios dos brincantes. Desta forma, o jogo é um tipo de atividade que chama a nossa atenção para a dimensão simbólica instituinte na vida humana em sua complexidade. Não podemos descartá-lo como elemento não pertencente ao processo educativo. Devemos sim, compreendê-lo para inseri-lo, de forma consciente, em nossas práticas pedagógicas reconhecendo o quanto é importante para o professor em formação essa tomada de consciência. O jogo, ao mesmo tempo tão sério e tão fútil, transita entre a norma, o institucionalizado, a domesticação necessária ao jogo, logo com postura apolínea, e a potência do prazer, do desejo, da alegria arrebatadora, portanto, dionisíaca. O jogo circunscreve-se entre o sagrado e o profano. Para Eliade (1992) “ o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história” ( p.20), paradoxo onde “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta , se mostra como algo absolutamente diferente do 100 Este princípio moriniano foi abordado na parte Primeiro tempo deste trabalho. 221 profano” ( Idem, p.17). Remetido à imagem de Dionísio, porque este deus é tido como o deus do êxtase, do entusiasmo e da festividade, o jogo é um ritual. “ Na realidade, o ritual pelo qual o homem constrói um espaço sagrado é eficiente à medida que ele reproduz a obra dos deuses” ( Idem, p.32). Ritual desejado e querido pelos brincantes de nossas escolas. Espaço de deuses, mitos e sonhos infantis de perfil dionisíaco e muitas vezes mal interpretado pela visão apolínea dos sujeitos da escola . “Sob a sua forma elementar, o sagrado representa, pois, acima de tudo, uma energia perigosa, incompreensível, arduamente manejável, eminentemente eficaz. Para quem decida recorrer a ela, o problema consiste em captá-la e utilizá-la da melhor maneira para os seus interesses, sem esquecer de se proteger dos riscos inerentes ao emprego de uma força tão difícil de dominar”. (CAILLOIS, 1988,p.22). A este respeito, Eliade (1992) entende que a reatualização deste rito chamado jogo, tempo mítico-sagrado, “é um eterno presente indefinidamente recuperável”(Idem, p.79), daí a dificuldade de controlá-lo como atividade recreativa na escola gerando insegurança entre os professores que o assumem como prática pedagógica. Por outro lado, Apolo, deus grego encarregado de difundir a luz no universo, figura mítica do equilíbrio, da harmonia (BRANDÃO, 1991), grande harmonizador dos contrários, garante o andamento do jogo. Joga-se com seriedade e empenho. Esta faceta do jogo, face de Apolo, atrai inúmeros professores a relacionar jogo e educação. Como atividade mediada por regras, na vigilância de Apolo, o jogo passa a ser entendido por muitos alunos-professores como tarefa, logo passível de controle. Transformar um jogo em recurso metodológico é um atrativo na relação jogo-educação, como revelado por alguns alunos: “ Como professora trabalhei com jogos no ensino de alguns conteúdos sobre matemática ciências ( dominó matemático, jogo da memória sobre animais)”; “Utilizo para introduzir várias matérias como, por exemplo, o alfabeto. Ele proporciona aumento no rendimento escolar das crianças pelo fato de envolvê-las mais profundamente nas atividades”. No entanto, a reflexão sobre esta prática deve ser discutida com professores em formação de modo a levá-los a entender que “ O impulso lúdico é resultante de uma ação recíproca entre os impulsos sensível (vida) e formal ( forma), identificando-se com a humanidade do homem” (COSTA, 2000, p.121). Olhar o jogo pelo paradigma da complexidade possibilita compreendê-lo como espaço de manifestação do sagrado e do 222 profano, não se reduzindo um termo ao outro. Há entre estes termos uma relação de interdependência de forma antagônica, concorrente e complementar. A escola, como instância que historicamente se encaixa e se delineia por um viver produtivo, que valoriza o homo faber, pode, também, se tornar espaço-tempo para o homo ludens , onde Dionísio deitará sua sombra, deixando rastros que não podem ser negados. Corpos suados, uniformes desalinhados e faces vermelhas vão revelando sua alegre e profana presença. Como não deixá-lo entrar? Como tentar docilizar corpos tão expressivos e sedentos por brincadeiras? Educar é sufocar tais manifestações? Educar é uma postura simplesmente apolínea? Se Dionísio se manifesta, não se educa? Não se ensina? Não se aprende? Na maioria das vezes, o professor pensa em jogo com uma intencionalidade pedagógica, devendo ser um tempo-espaço útil para algum aprendizado, normalmente aprendizados do programa de ensino. Não há brincadeiras, jogos e outras atividades espontâneas que ocorrem além dos muros escolares e que fazem parte do saber das crianças que possam ser consideradas educativas? A escola permite pouco espaço para as práticas corporais que manifestam alegrias e prazeres e, assim, nega acesso aos conhecimentos da linguagem que o corpo expressa quando está jogando e brincando. Nenhum sistema educativo, nenhuma pedagogia pode cumprir sua tarefa se deixar o corpo do lado de fora dos muros escolares, das salas de aula e dos planejamentos de ensino. Brincar /jogar é uma condição humana, sobretudo entre crianças. São atitudes, na maioria das vezes, partilhadas, onde o prazer de estar junto, onde o sentimento de pertença é mais forte que o resultado do jogo em si. Jogar é também criar laços. O que há de mais precioso no jogo é o movimento que ele gera. Uma pulsão agregativa que vivida pelos alunos-professores da FFP/UERJ, os fizeram (re)pensar o jogo na escola. Razão e emoção passam a ser entendidas como parte do processo ensinoaprendizagem e viver o jogo, apolínea e dionisiacamente, se torna um ato educativo. Convido a Emília da Pedagogia para, com sua chave, abrir o cofre dos jogos na escola libertando Apolo e Dionísio, para que os jogos e brincadeiras tornem as escolas brasileiras mais atrativas, prazerosas e alegres. 223 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALMEIDA, M.C. e CARVALHO, E. A.(orgs). Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002. ALMEIDA, PAULO Nunes. 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