UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
O que está em jogo no jogo: cultura,
imagens e simbolismos na formação de
professores
TANIA MARTA COSTA NHARY
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Educação da Universidade
Federal Fluminense como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª Drª Iduína Mont’Alverne
Brum Chaves
Co-Orientadora: Profª Drª Helena Amaral da
Fontoura
TANIA MARTA COSTA NHARY
O QUE ESTÁ EM JOGO NO JOGO: CULTURA, IMAGENS E
SIMBOLISMOS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profª Drª Iduína Mont’Alverne Chaves - Orientadora
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________
Prfª Drª Helena Amaral da Fontoura- Co-Orientadora
Universidade do estado do Rio de Janeiro
Prfª Drª Célia Frazão Linhares
Universidade Federal Fluminense
Prfº Drº Cleomar Ferreira Gomes
Universidade Federal do Mato Grosso
Niterói, _________de ______________de 2006.
2
Aos alunos do Curso de Pedagogia da
FFP/UERJ, pela partilha da alegria nos
jogos.
3
Ao Luiz Carlos,
mais que marido, parceiro do
jogo da vida e do jogo do amor.
Aos meus filhos,
Paulo Henrique e Camila, por me
permitirem ser uma eterna brincante.
Ao meu filho de alma,
David Ricardo pelo incentivo e torcida.
Aos meus familiares,
pelo carinho e apoio.
AGRADECIMENTOS
4
5
O objetivo do conhecimento é
dialogar com o mundo.
Edgar Morin
NHARY, Tania Marta Costa. O que está em jogo no jogo: cultura, imagens e
simbolismos na formação de professores. 2006. Dissertação ( Mestrado em Educação)Universidade Federal Fluminense
RESUMO
Esta pesquisa buscou compreender os sentidos dos jogos para professores em
formação no Curso de Pedagogia da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP/UERJ. Como base teórica, foi utilizada a
perspectiva da socioantropologia do cotidiano de Michel Maffesoli e o paradigma da
complexidade de Edgar Morin, para explicitar a cultura e os simbolismos revelados nas
vivências de jogos destes sujeitos, apreendendo os sentidos e significados da relação jogoeducação.Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa que, como instrumentos de
registros do cotidiano, utilizou questionários , entrevistas e fragmentos de histórias de vida,
tendo a narrativa como método.
Desta forma, nesta investigação fenomenológica
compreensiva, foi possível captar e apreender o sistema simbólico, através das imagens
evocadas pelos sujeitos da pesquisa, assinalando um ideário pedagógico em relação ao jogo
6
na escola que o remete à noções apolíneas e dionisíacas, de forma concorrente, antagônica
e complementar. Instaurou-se, assim,
uma mudança de olhar
onde o pensamento
simbólico/mitológico ganha valor e sentido , evidenciando a crise do paradigma clássico de
simplificação, substituindo-o pelo paradigma da complexidade sociocultural.
Como
principais conclusões, constata-se que “O que está em jogo no jogo” para estes alunos
em formação é a tensão entre compreender o jogo como recurso metodológico, logo com
intencionalidade pedagógica, e o jogo como atividade recreativa, considerando-o, no
entanto, como fenômeno sócio-cultural revelador dos modos de sentir, pensar e agir.
Destaca-se, também, uma reflexão quanto à perspectiva epistemológica dos saberes e
práticas lúdicas na formação docente, que implica em propostas de políticas públicas e
(re)construções de conhecimentos, que dêem aos jogos e brincadeiras um papel relevante
no âmbito educacional.
Palavras-chaves: jogo, educação, formação de professores, pesquisa narrativa
NHARY, Tania Marta Costa. O que está em jogo no jogo: cultura, imagens e
simbolismos na formação de professores. 2006. Dissertação ( Mestrado em Educação)Universidade Federal Fluminense
ABSTRACT
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
- Entrando em campo: o caminho profissional
- Ponta pé inicial: construindo o tema
.................................11
.................................12
..................................15
PRIMEIRO TEMPO - OS ESTRATAGEMAS DE COMPREENSÃO .....................28
- Paradigma da complexidade: um foco no jogo.
.................................29
- Socioantropologia: o jogo como prática do cotidiano ................................38
SEGUNDO TEMPO- A DELEGAÇÃO: ALGUNS TEÓRICOS SOBRE O JOGO..50
- O uso do termo
- Concepções históricas
- Jogo e educação
................................51
................................56
................................81
TERCEIRO TEMPO - O TIME: OS PARTICIPANTES DA PESQUISA ................89
8
- Formação de professores
- Formação de professores na FFP/UERJ
................................90
...............................111
A SÚMULA
.................................127
QUESTIONÁRIOS - O QUE ESTÁ EM JOGO NO JOGO
..................................130
- Sobre o jogo
- Das lembranças dos jogos
- Do jogo na formação de professores
- Do uso do jogo na escola
- Das marcas deixadas pelo jogo
NARRATIVAS- (RE)VISITANDO O ATO DE JOGAR
- Memórias de Emília
- As aventuras do Capitão Gancho
...............................131
...............................134
...............................140
...............................147
...............................153
...............................157
................................159
................................188
PRORROGAÇÕES - CONSIDERAÇÕES FINAIS
...............................214
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
...............................225
ANEXOS
...............................233
9
INTRODUÇÃO
10
Aula de Recreação e Jogos- FFP/UERJ- 2005
INTRODUÇÃO
_________________________________________________________________________
Entrando em campo: o caminho profissional
“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a
gente recorda, e como recorda para contá-la”.
Gabriel Garcia Márquez (2003)
Mais da metade de minha vida passei como docente na Faculdade de Formação de
Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP /UERJ. Neste momento,
resgatar minha memória de formação serve de chave para entender a minha práxis1 no
cotidiano de formação de professores.
1
O sentido de práxis não significa a mera prática pela prática, mas um conjunto de posturas,
atitudes, formas de pensar e agir, ações ou intervenções deliberadas. Portanto, a prática aqui é
situada numa perspectiva dialética e entendida como práxis. Kosik (1976) afirma que a práxis
11
António Nóvoa tem valorizado a história de vida dos professores:
“Como é que cada um se tornou no professor que é hoje? E porque? De
que forma a acção pedagógica é influenciada pelas características pessoais
e pelo percurso de vida profissional de cada professor? As respostas levarnos-iam longe demais. Mas talvez valha a pena mencionar brevemente os
três AAA que sustentam o processo identitário dos professores: A de
Adesão, A de Acção e A de Autoconsciência “. ( NÒVOA, 1995, p.16)
Refazer este percurso profissional, tal qual se faz uma viagem no tempo, me leva a
compreender como fui apreendendo estes ‘As’, chegando ao tema de pesquisa: O que está
em jogo no jogo: cultura, imagens e simbolismos na formação de professores.
Graduei-me em Educação Física sob a égide do regime militar transitando por um
currículo muito tecnicista onde reflexão, autonomia e crítica não eram as palavras de ordem
na formação acadêmica. Nesta ocasião, a educação física era considerada competitivista,
segundo Ghiraldelli Júnior (1998), pois o sustentáculo ideológico dessa concepção era a
própria ideologia disseminada pela tecnoburocracia militar e civil, cujo tom principal era a
tecnização da educação e da educação física. Muito se treinava, mas pouco se pensava
sobre as possibilidades emancipatórias desta área do conhecimento. Tratava-se de uma
formação com enfoque desportivo, pois a grande preocupação política, refletida na
educação, e, sobretudo na educação física, encontrava no esporte um fértil terreno para
disseminar a idéia de um Brasil Forte, Brasil Potência. O caráter utilitário e tecnicista da
Educação Física tomava corpo com a preocupação na preparação de homens fortes e
saudáveis, entendendo como grande aliado o esporte, então oferecido no contexto escolar.
Assim, na ocasião, os cursos de graduação em Educação Física passaram a ter como
maiores componentes curriculares as diferentes modalidades desportivas (atletismo,
natação, handebol, basquetebol, voleibol e futebol). Desta forma, o trabalho pedagógico no
contexto escolar se voltava para o ensino-aprendizagem de esportes com caráter prático.
Assim que concluí o curso, ingressei como docente na Faculdade de Formação de
Professores de São Gonçalo - FFP/UERJ2. Meu processo identitário passaria, assim, pelo
primeiro ‘A’ proposto por Nóvoa (1995), o ‘A’ de Adesão, pois fazia parte de uma Unidade
"não é um conceito filosófico, mas uma categoria da teoria dialética da sociedade" (p.199). O
seu sentido é a liberdade, a autonomia, a auto-realização e o trabalho coletivo.
2
No ano de 1981 a FFP ainda não pertencia a UERJ , e sim a FAPERJ ( Fundação de Amparo a Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro), conforme apresentado no capítulo sobre Formação de Professores desta
dissertação.
12
Acadêmica de uma Universidade e estava vinculada diretamente a um Departamento, o de
Educação. Aderi desta forma, ao campo educacional de formação de professores.
Concomitantemente à minha atuação na FFP, dava aulas para educação infantil e
séries iniciais do ensino fundamental numa escola particular de classe média3. Uma escola
pequena física e simbolicamente, mas imensa em se pensando na experiência profissional
que pôde me proporcionar.
O grande lócus de formação docente é a prática, é nesta instância que o professor se
faz professor, onde prática-teoria-prática imbricam-se num processo cíclico, renovador e
estimulante. Encontrava-me, com estas experiências profissionais, em constante exercício
epistemológico refletindo sobre, no e com o cotidiano da escola na busca de novos
caminhos para educação física escolar apreendendo o ‘A’ de Ação apontado por Nóvoa
(1995). Repensar meu cotidiano pedagógico tornava-se estimulante e desafiante
Buscando fazer de minha Ação docente algo mais significativo e consciente do
papel do professor como elemento facilitador e orientador do processo educativo, recorri a
referenciais sobre educação física escolar que, até então, tinha visto em minha formação,
como a obra4 e as idéias discutidas com o Prof. Darcimires do Rego Barros , as reflexões
de Helder Resende Guerra e as orientações de Vera Lúcia Menezes Costa, que foram
ampliadas pelo prisma trazido por Listello (1979) , Santos (1977), Diem (1991),
Miranda(1993), dentre outros livros, textos e artigos que passaram por minhas mãos e
pensamentos e de que hoje não disponho para citá-los.
Por ter sido uma criança muito brincante, estava impregnada da minha própria
história e acreditava que a brincadeira, a fantasia e a imaginação deveriam estar presentes
na vida escolar tornando esta vivência mais alegre e prazerosa, sobretudo na educação
infantil e séries iniciais do ensino fundamental, segmentos em que eu atuava. Estas
experiências, assim, iam resignificando minha práxis na formação de professores da FFP.
Trabalhar com criança da rede privada ou pública torna-se uma experiência positiva
para docentes de formação de professores, apresentando-se como uma referência
importante para a compreensão do cotidiano escolar. Minha passagem pelo ‘chão da escola’
na condição de professora foi fundamental no meu fazer pedagógico na universidade e “...
3
4
Centro Educacional Maciel Pinheiro
Refiro-me ao livro Educação Física na escola primária, Barros, Ed. José Olympio, 1970.
13
nos damos conta da necessidade vital de, mesmo estando na universidade, nunca nos
distanciarmos das escolas por onde um dia passamos, as quais nos possibilitaram chegar
aonde chegamos, como chegamos”.( FERRAÇO, 2003, p.158).
Paralelamente, dava aulas de educação física como disciplina obrigatória do
currículo das licenciaturas da FFP. Só posteriormente esta disciplina assumiu o caráter de
eletiva, o que fez com que passassem a participar das aulas os alunos que se identificavam
com a educação física.
No início da década de 90, nossa Unidade Acadêmica recebeu a proposta de criação
do Curso de Pedagogia: Habilitação Magistério das séries inicias do ensino fundamental licenciatura plena5 , o que foi aceito pelo Departamento de Educação. Em 1994, iniciava-se
o curso na FFP São Gonçalo e, em 1995, o mesmo curso foi implantado por convênio no
Município de Araruama, contendo em sua “grade curricular” 6 a disciplina de Recreação e
Jogos I e II.
A oportunidade de redimensionar a área do saber da educação física estava criada.
Frente à este desafio, mergulhei num processo de perplexidade produtiva, como
mencionado por Boaventura Santos (2005, p.19), percorrendo caminhos epistemológicos
que dessem sentidos a um fazer docente de ‘fazer docentes’. Somava-se aos outros ’As’ o
‘A’ de Autoconsciência sugerido por Antonio Nóvoa.
Aproximando-me da área de recreação e jogos infantis, fiz um curso de
Psicomotricidade
7
que, aliado à leitura de diferentes autores como
Freire (1997) ,
Kishimoto (2002) , Almeida (2002) , Brougère (1998) , Huizinga (2004) e outros, levoume não só a conhecer mais, como a me identificar muito com a temática.
Depois de pesquisar inúmeras teorias sobre recreação e jogos, organizei o curso de
modo a imbricar prática-teoria-prática. Esta seria uma proposta a ser levada aos alunosprofessores, o que implicaria em estimulá-los à experimentação dos sentidos do ato de
jogar, onde as teorias discutidas sobre jogo e educação passassem a ter um caráter singular
5
Sobre a criação do Curso de Pedagogia FFP/UERJ ver capítulo de formação de professores deste trabalho
Grade que se mantém até hoje, o que implica, no próprio sentido da palavra, no aprisionamento dos saberes
em espaços limitados. Muito embora um novo currículo já tenha sido efetivamente implantado no 1º semestre
de 2006 , ainda teremos em vigor o currículo antigo no sentido de formar os alunos mais antigos que ainda
estão cursando Pedagogia.
7
Curso de Atividades Psicomotoras na Aprendizagem - Recrearte
6
14
a partir da prática do jogo. Mas de que forma fazer com que isto acontecesse se a disciplina
de Recreação e Jogos não tem em sua ementa uma carga horária destinada à prática?
A compartimentalização dos saberes no curso de pedagogia na formação de
professores da FFP consagra como dimensão prática, apenas os estágios nas escolas ligados
à disciplina de Prática de Ensino8. As demais disciplinas não são contempladas com esta
carga horária9. Como, então, dar um caráter de experimentação à Recreação? Como religar
saberes estando estes tão segmentados no currículo de formação de professores?
Mergulhada num universo de dúvidas e imbuída em encontrar uma saída para aliar
teoria e prática, fui dando continuidade ao curso proporcionando, em sala de aula, a
oportunidade dos alunos-professores participarem de vivências lúdicas, de forma que estes
pudessem contextualizar e refazer os saberes que naturalmente possuíam, reelaborando suas
práticas.
O Curso de Pedagogia da FFP desde sua criação, em 1994, contou com a disciplina
de Recreação e Jogos e sempre ministrei aulas na mesma, o que despertou em mim um
desejo e uma necessidade de resignificar o papel da Educação Física
no campo de
formação de professores da educação básica. Desta forma, fui em busca de novas
oportunidades para além das disciplinas de Recreação e Jogos e de Educação Física, esta
oferecida como eletiva nas demais licenciaturas. Passei então a atuar em Prática Pedagógica
nas diferentes Licenciaturas e em Tópicos Especiais no Curso de Pedagogia em São
Gonçalo e em Araruama. São disciplinas com um perfil parecido, pois têm uma ementa
aberta que possibilita discussões de diferentes temáticas de interesse dos alunos, em acordo
com o professor. Foi assim que comecei a atuar em tais disciplinas, discutindo os jogos e as
atividades recreativas na formação de professores.
Abordando questões que envolvem ludicidade e educação venho construindo um
campo de reflexões e debates que hoje culminam com o presente trabalho de pesquisa de
Mestrado, acreditando como Linhares ( 2002) que
8
Prática de Ensino I e II totalizando 180 horas/aula.
Com a reformulação do curso da FFP a dimensão prática dos cursos de formação de professores da
educação básica perpassará todo o currículo, conforme resolução CNE/CP 2, 2002 . Art 1º, inciso I:
400(quatrocentas) horas de prática como componente curricular, vivenciadas ao longo do curso.
9
15
“A sala de aula é um espaço repleto de signos e significações que tomam
forma e cor através da linguagem. A aprendizagem se concretiza através
do diálogo entre sujeitos que interagem com o mundo e produzem cultura.
O professor se transforma em mediador da discutibilidade emancipatória
no seu ato ou ação educativa”. ( LINHARES, 2002, p.190)
No entrelaçamento dos momentos acadêmico-político-pedagógicos por mim vividos
ao longo de vinte e cinco anos nesta Instituição, fui descobrindo diferentes formas de
linguagens, sobretudo as corporais, fruto das fruições dos alunos em aulas de Recreação,
Prática Pedagogia, Tópicos Especiais e Educação Física que gradativamente levaram-me a
posturas cada vez mais dialógicas resignificando minha própria práxis. Neste processo,
passam por reformulação não só os princípios norteadores do Curso, mas também os
próprios pensamentos dos professores.
Ponta pé inicial: construindo o tema
“Sei que todo conhecimento de uma sociedade, de uma história,
uma vida, inclusive a própria, é, ao mesmo tempo, uma tradução
e um reconstrução mental. Sei não apenas que a percepção de
um acontecimento pode incluir seleção do que se parece
principal, ocultação ou esquecimento do que incomoda, mas
também que a lembrança pode alterar seriamente o que ela
rememora... sei também que o olhar do presente retroage sempre
sobre o passado histórico ou biográfico que examina”.
Edgar Morin ( 2000)
Neste percurso profissional, algumas questões que me incomodavam e me faziam
(e fazem) refletir constantemente sobre o meu fazer pedagógico, dizem respeito ao
encaminhamento da temática ludicidade no campo de formação de professores.
16
As fronteiras disciplinares e a dimensão teórica dissociada da prática têm levado
alguns professores à construção de novos modos de ‘pensar’ e de ‘fazer’ a sua prática
docente. Foi nesta perspectiva que, nas aulas de Recreação e Jogos do Curso de Pedagogia
da FFP/UERJ, passamos a analisar e discutir as teorias, funções, conceituações e sentidos
dos jogos com os suportes teóricos de Gilles Brougère (1998), Johan Huizinga (1971), Jean
Chateau (1987), Roger Caillois (1990) e João Batista Freire (2002), Tisuko Kishimoto
(1993) dentre outros, vivenciando as atividades lúdicas e relacionado-as com as teorias
apresentadas. Brincando e jogando seria possível fazer com que os alunos-professores resignificassem as atividades recreativas no âmbito escolar.
Era preciso insistir nas vivências lúdicas para que os alunos-professores se
sentissem aptos e seguros para levar esta experiência para as suas práticas enquanto
docentes. O ato de jogar precisava, então, ser significativo para eles. Se todo movimento
humano apresenta uma intenção, e isto desde o início de nossas vidas, jogar deveria ter um
significado, uma razão de ser. Por que e para que agir e se sentir como uma criança
brincante estando numa Universidade?
Tratando-se de uma faculdade de formação de professores, consequentemente estes
profissionais contribuirão na formação de crianças. Fazer estes universitários sentir as
sensações e emoções promovidas por atividades lúdicas é levá-los a respeitar e
compreender melhor seus alunos, sobretudo valorizando o componente lúdico que habita
cada um deles.
Apesar de ser uma atividade natural para o homem, o desejo de jogar só se
manifesta em toda a sua intensidade se encontrar um ambiente facilitador. Assim, cabia-me
a função de estimular os alunos-professores, propiciando um ambiente de alegria,
descontração e que fosse adequado para a realização das atividades. Ocupávamos, assim, as
salas de aula, a quadra da Universidade, a sala de educação física e áreas ao ar livre no
entorno da FFP.
17
Aulas práticas de Recreação na sala de educação física e na quadra da FFP/UERJ, 2005
Na medida em que os alunos/professores se motivavam pelas atividades e se
deixavam envolver por elas, revelavam-se tais quais crianças ativas, curiosas e ansiosas por
novas experiências. A grande maioria dos participantes expressava alegrias, prazeres e
fruições de forma verbal ou por manifestações corporais como riso, pés descalços e muita
algazarra.
A entrega ao jogo era inevitável para muitos, como registrado nas fotos a seguir.
Atividades práticas nas aulas de Recreação e Jogos I e II na FFP/UERJ, 2005
18
Atividades práticas nas aulas de Recreação e Jogos I e II na FFP/UERJ, 2005
O que sentiam os alunos ao rolarem e se atirarem no chão, ao rir às gargalhadas, ao
correr freneticamente, a torcer, a ganhar e a perder era por eles relatado ao final de cada
aula.
Nestas avaliações sistemáticas, dimensões como prazer, euforia, solidariedade,
respeito às regras, conflitos, resoluções de problemas, transgressões, sorte, acaso, ordem,
desordem e reorganizações, dentre outras, foram emergindo e possibilitando a compreensão
dos jogos como conhecimento científico, indissociável do senso comum, visto que as
atividades faziam parte, em sua maioria, da cultura lúdica infantil dos alunos, muitas delas
sendo resgatadas por suas memórias e redimensionadas pela autonomia e criatividade do
grupo.
Todos sabiam brincar, mas muitos só não o faziam junto com as crianças nas
escolas por medo, insegurança ou falta de espaço e oportunidade. Eram brincantes com
medo de brincar. Seria preciso então pensar na possibilidade de romper com os limites
19
impostos pelas escolas com relação à utilização de jogos, legado este que tem acompanhado
as práticas lúdicas na longa história da educação10
A concepção de ‘dupla ruptura epistemológica’ de Boaventura Santos (2005) é,
neste sentido, de grande importância, pois, para este autor, a ciência moderna ao separar-se
do senso comum existente, tornou possível uma ruptura epistemológica, a primeira, que
deve ser revertida no sentido de fazer com que o conhecimento científico se transforme
num novo senso comum, estabelecendo-se, assim, a sua proposta de dupla ruptura
epistemológica, a ruptura da ruptura.
A complexidade do uso do jogo aproxima-o do senso comum, pois muitas das
atividades lúdicas têm suas matrizes na cultura popular, estando esta impregnada de saberes
e fazeres de um determinado grupo. Assim, atividades naturais como jogos de pique, jogos
com bolas e outros se tornam os preferidos no cotidiano das escolas, nos levando a refletir:
Por que se joga? Onde se joga? Com quem se joga? Como se joga? Quando se joga? Neste
estudo investigativo, somos movidos pela curiosidade epistemológica à buscar respostas
para estas indagações pautadas em estudos e conhecimentos científicos que norteiam a
temática.
No final do século XIX, o jogo, do ponto de vista científico, torna-se alvo de estudo
de psicólogos, psicanalistas e de pedagogos em geral, surgindo a partir daí um rol de teorias
na tentativa de explicar seus significados. O ato de jogar (brincar) passa a ser considerado
como um fator fundamental no processo de desenvolvimento humano e os jogos passam a
ter abordagens de um paradigma naturalista, onde as atividades lúdicas espontâneas
tornam-se alvos de investigações.
Mas, afinal, o que as crianças aprendem e nos ensinam quando estão jogando? Que
conhecimentos estão sendo (re)construídos no ato de jogar? Estas questões nem sempre são
consideradas pelos formuladores de projetos pedagógicos da escola, pois consideram o jogo
como atividade e não como um conhecimento que faz parte de movimentos instituintes,
latentes e cotidianos, o que dificulta a compreensão de seu uso no espaço escolar.
Num processo de construção compartilhada de conhecimento, os alunos-professores
da disciplina Recreação e Jogos elaboraram uma atividade na FFP denominada “Dia
10
A este respeito ver o capítulo sobre “Concepções históricas sobre os jogos” deste trabalho.
20
Lúdico”. Eles se envolveram na organização desta atividade com muito esmero, preparando
e arrecadando material que pudessem atender aos seus projetos.
Na ocasião, foram organizadas diversas oficinas que ofereceram uma gama de
atividades lúdicas com o propósito de, na prática, observar, analisar e compreender os
sentidos do ato de jogar. Foram convidados a participar todos os alunos do Curso de
Pedagogia da FFP e aproximadamente quarenta crianças de uma escola municipal das
proximidades.
As fotos que se seguem ilustram este evento.
“Dia Lúdico” na FFP/UERJ, 2004
21
Alguns alunos/professores sentiram-se perplexos frente ao inesperado, pois muitas
das atividades programadas não foram cumpridas. Podemos observar isto em seus relatos:
“Preparei inúmeros jogos, mas as crianças só queriam saltar entre os arcos” (G.
aluna/professora do 6 º p.)
Compreender o envolvimento das crianças nas brincadeiras, respeitar seu tempo de
experimentação e seus desejos, faz parte de um fazer docente onde educar pela
sensibilidade torna-se tão (ou mais) importante quanto seguir metodologicamente os
conteúdos programados. Segundo Michel Maffesoli: “o sensível não é apenas um momento
que se poderia ou deveria superar no quadro de um saber que progressivamente se depura.
É preciso considerá-lo como elemento central no ato do conhecimento”. ( MAFFESOLI,
1998,p.89).
E assim relata outra aluna/professora:
“Preparamos uma atividade de boliche com garrafas plásticas, mas os meninos pediram
para jogar futebol, aí nós ajudamos a selecionar as equipes e nos tornamos técnicos e
juízes marcando as faltas e o placar. Foi tão bom que acabamos jogando futebol também”
(L. aluna/professora do 6 º p.)
Percebendo o corpo como uma forma de linguagem, os alunos-professores passaram
a ‘ouvir’ os saberes das crianças que expressavam satisfação e eram remetidas à dimensões
como desafio, domínio, criatividade, autonomia e crítica. Puderam partilhar com elas os
sentidos do ato de jogar associando-os ao próprio sentido da educação. Senso comum (a
vivência das crianças) e ciência ( teorias sobre jogos), ligavam-se.
Na tentativa de aproximação dos alunos-professores com o cotidiano escolar, a
participação das crianças neste trabalho, mesmo por pequeno período de tempo, foi de
grande valia, pois os levou a perceber na prática as diferentes dimensões da ludicidade. Foi
o momento de (re)fazer saberes que emergiam da complexidade das atividades praticadas.
A experiência de jogar/brincar com as crianças foi um marco na compreensão das
relações entre as teorias discutidas e o fazer docente, levando à reflexão quanto ao
espaço/tempo que o jogo deve ocupar na escola.
A proposta da utilização do jogo na escola (em sala de aula, nos momentos de
22
recreação, na disciplina de educação física, ou mesmo no recreio escolar) proporcionaria
uma interseção de múltiplos saberes? Estabeleceria relações de conhecimentos? Algumas
destas questões provocativas me conduziram a participar de um curso de aperfeiçoamento e
aprofundamento em Educação Física e Cultura11. As temáticas de lazer, jogo e educação
física escolar tornaram-se preciosos pontos de partida para o meu caminhar investigativo.
Pelas mãos da Profª Drª Nilda Teves Ferreira o estudo do imaginário, mitos e ritos nas
atividades lúdicas parecia-me um coerente elo entre educação, formação de professores e
ludicidade, pois o espaço escolar é compreendido pelas múltiplas relações e as
possibilidades de produções imaginárias que se dão de forma simbólica nos pensamentos e
ações de seus sujeitos. O cotidiano consubstancia-se como lugar próprio da produção de
sentido e o contexto sócio-cultural onde a escola está inserida revela-se no seu cotidiano,
através das práticas de seus alunos, onde se incluem as práticas de jogos.
A partir destas reflexões, percorri o caminho epistemológico que me foi apresentado
pela professora Drª Iduína Mont’Alverne Chaves no Programa de Mestrado em Educação
da Universidade Federal Fluminense,
levando-me
ao encontro do “paradigma da
complexidade” de Edgar Morin, pois pensando como ela “ser a escola um sistema aberto
às múltiplas dimensões da realidade bio-psico-sócio-cultural” (CHAVES, 2000, p.24),
abre-se uma perspectiva de compreensão que
poderá levar o jogo, no paradigma da
complexidade, a ser compreendido como objeto transdisciplinar, podendo atravessar as
disciplinas porque faz parte do próprio processo de auto-formação do indivíduo,
conduzindo-o ao aprender a aprender.
O olhar atento da Profª Drª Helena Amaral da Fontoura, partícipe na construção
desta pesquisa como co-orientadora, me apontou reflexões, caminhos e conexões,
sobretudo no campo de formação de professores. Sua orientação permitiu a re-ligação de
diferentes saberes do campo de formação docente, práticas de ensino, educação e
ludicidade.
Estando o jogo ligado as manifestações mais simples e cotidianas do homem,
relacionados aos ritos e festas, o estudo da socioantropologia do cotidiano de Michel
Maffesoli, em que também se pauta a proposta de Chaves (2000), foi como o fio condutor
na compreensão da relação jogo/educação.
11
Curso oferecido pela Universidade Gama Filho no ano de 2004.
23
A Socioantropologia leva-nos a compreender a organicidade do social, a interação
dos múltiplos e complexos elementos que o compõem e que se manifestam no que é vivido
cotidianamente, lugar privilegiado de análise social, ao permitir a apreensão da socialidade
colocando em evidência as minúsculas situações das atividades humanas. Desta forma,
considera o imaginário que se manifesta no cotidiano como um dos elementos estruturantes
do social, na medida em que nele se organiza um espaço vital que garante a sobrevivência
dos indivíduos, o que nos possibilita apreender as diferentes dimensões das práticas de
jogos nas escolas, enquanto fenômeno social natural e espontâneo do homem. Trata-se de
uma mudança no olhar, outro modo de olhar a realidade da escola, cujos pressupostos de
Marcos Ferreira Santos, vêm de encontro a esta perspectiva.
“A colocação da questão antropológica testifica a necessidade de um outro
olhar na investigação. Da trama do tecido social é preciso avançar para o
algodão com que se fazem os fios desta trama. Algodão que colhemos e
que semeamos, ora ansiando a chuva, ora pelo sol. Este anseio, esta
esperança que norteia as ações concretas pertence ao domínio do
imaginário”. (SANTOS, 2004,p.3).
As idéias de Edgar Morin nos apontam que “a ambição da complexidade é prestar
contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias
cognitivas e entre tipos de conhecimentos” (MORIN, 1996, p.176). Pensando-nos como
seres ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, passa a
complexidade a ser o que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos
esses aspectos. Portanto, apropriar-se das atividades lúdicas com o objetivo de formação
cultural, social, afetiva, emocional, cognitiva e psicomotora da criança se faz cada vez mais
necessário, frente à multidimensionalidade do processo ensino-aprendizagem.
Do meu encontro com este paradigma, do qual partilham os autores Michel
Maffesoli e Edgar Morin, senti-me estimulada a fazer uma pesquisa que tivesse uma
abordagem compreensiva por possibilitar um olhar estereoscópico, em todas as direções, a
apreensão das diferentes dimensões da realidade e uma escuta sensível sobre o campo da
pesquisa. Compreender a relação jogo e educação a partir do paradigma da complexidade,
tendo como vertente a socioantropologia e buscando na sua análise significados relativos à
formação de professores e seus modos de pensar e agir frente às atividades lúdicas nas
24
escolas, torna-se um caminho investigativo interessante.
Pautada nas idéias de Morin, passei a olhar e compreender melhor que o ato de
jogar ou brincar envolve ordem, desordem, interações e reorganizações, remetendo-nos à
fórmula paradigmática de seu tetragrama (MORIN, 1996, p.204), onde na atividade lúdica
cada termo precisa do outro para se constituir, sendo concorrentes, inseparáveis,
complementares e antagônicos, estabelecendo o princípio dialógico deste autor 12 .
Com o suporte teórico de Michel Maffesoli, busquei compreender o que é vivido no
cotidiano em sua latência social, o que o autor denomina por socialidade, uma trama social
que envolve as manifestações humanas mais banais e efervescentes como ritos, festas e
atividades lúdicas. Para o autor, existe na cultura uma invariância de atitudes populares nas
aparentes modificações, “tudo o que concerne à arte de viver ou aos modos de vida é
extraordinariamente invariável” (1984, p.23) e, neste sentido, os jogos se encaixam, pois
são transmitidos e vividos num processo cíclico que conserva sua essência por mais que
sofram as tendências do tempo em que se inscrevem. Resgatar as fruições provocadas pelo
ato de jogar dos alunos-professores servirá de chave para que possamos re-significar o jogo
e seu uso no contexto educacional.
Desta forma, este trabalho objetivou apreender os sentidos do ato de jogar para
alunos-professores em formação buscando compreender as idéias desses alunos a respeito
das atividades que envolvem jogos no contexto educacional. Pretendo, assim, investigar
como os alunos-professores utilizam o tempo destinado à recreação na escola e como
trabalham com jogos em sala de aula ou em outros espaços a partir das reflexões sobre
jogo-educação em seu processo de formação docente.
A partir do reconhecimento de que nos cursos de formação de professores a
concepção de lúdico se faz presente, novas re-ligações de saberes vão surgindo entre as
práticas incorporadas e os contextos epistemológicos sobre jogo e educação, passando a ser
também objetivo deste trabalho compreender a contribuição dos jogos, tanto na parte
prática quanto na teórica, no Curso de Pedagogia da FFP/UERJ na busca de sentidos na
relação jogo-educação.
12
Este princípio aparece explicitado no capítulo 1 deste trabalho e em sua obra Ciência com consciência,
1996.
25
Pretendi nesta pesquisa tecer um texto que, à luz do paradigma da complexidade de
Edgar Morin
e da socioantropologia de Michel Maffesoli, como já mencionado,
possibilitasse cerzir as teorias de jogos e o processo de formação de professores. Assim,
organizei a apresentação do trabalho em partes denominado-as por termos do jogo que
remetem o leitor as etapas que compõem as partidas de um jogo.
As três primeiras partes são importantes fios condutores e articuladores da pesquisa,
aqui apresentados em três tempos e que entretecidos formam a base da compreensão teórica
sobre jogo, formação de professores, pensamento complexo e socioantropologia do
cotidiano. No primeiro tempo desta parte do trabalho intitulada Os estratagemas de
compreensão, apontei o modo como olhei e busquei compreender o jogo no contexto sócioeducativo. No segundo tempo: A delegação: alguns teóricos sobre o jogo, trago uma
gama de
concepções sobre o jogo em diferentes contextos sócio-históricos que vão
delineando o pensamento sobre jogo que se tem hoje no contexto educacional. O terceiro
tempo compreende a concepção de formação de professores pelo viés de seu lócus de
formação e uma reflexão a cerca de como ‘pensamos’ e de como ‘fazemos’ a docência.
No sentido de perceber como as atividades de jogos foram perpassando o contexto
educacional, abordei também concepções históricas da educação física escolar, campo
mais próximo do jogo na escola. Denominei esta parte do trabalho por O time:
participantes da pesquisa e inclui ainda um panorama sócio-histórico e estrutural do campo
específico desta pesquisa, a Faculdade de Formação de Professores da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
Na parte denominada Súmula, compreendendo-a como uma das sessões mais
nobres de um trabalho científico, trouxe os registros da pesquisa no campo. Pretendi
colocar em questão os pressupostos encontrados a partir do referencial da pesquisa
qualitativa. Tendo como instrumento investigativo os questionários respondidos por trinta e
cinco alunos-professores do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ e duas narrativas destes
que apontam, através das histórias de vida, as imagens e simbolismos evocados a partir do
envolvimento destes com jogos em diferentes períodos de suas vidas, fui
levada a
compreender a significação dos sentidos do ato de brincar e jogar na vida pessoal e
profissional dos sujeitos que fizeram parte da pesquisa.
26
Os dados encontrados foram analisados e interpretados na parte intitulada
Prorrogações, entendida como considerações finais, onde pude apreender a dimensão do
imaginário do jogo no contexto escolar a partir dos dados coletados da pesquisa.
A vida do jogo e o jogo da vida que se apresentam a partir das próximas páginas,
tornam-se possibilidades de um mergulho na relação jogo-educação, emergindo novas
propostas e novas formas de compreensão do uso do jogo no contexto escolar, alertado-nos
para as políticas educacionais sobre ludicidade e para as práticas docentes que envolvem
atividades de brincadeiras e jogos.
Primeiro tempo
27
Aula de Recreação e Jogos – FFP/UERJ – 2005
Primeiro tempo
_________________________________________________________________________
Os estratagemas de compreensão.
Paradigma da complexidade de Edgar Morin
“Se a complexidade não é a chave do mundo, mas o desafio a
enfrentar, o pensamento complexo não é o que evita ou suprime
o desafio, mas o que ajuda a revelá-lo e , por vezes, mesmo a
ultrapassá-lo”
Edgar Morin ( 1990)
28
No meio acadêmico temos nos familiarizado com o termo “paradigma”. Mas o que
é paradigma?
Algumas propostas de explicação nos remetem à idéia de horizonte metodológico,
de modelo, de epistema, ou ainda a noções de estrutura absoluta de pressupostos, muito
usada no meio científico e da qual estamos nos distanciando. Quando surge um novo
paradigma significa que o anterior a este não está dando conta da compreensão de uma
dada realidade. Para Kun (2005), “após uma mudança de paradigma o cientista trabalha
num mundo diferente”. ( p. 159)
Podemos então considerar que um novo paradigma nos remete a uma nova forma de
olhar a realidade? Seria uma nova maneira de compreender e refletir sobre determinado
contexto? Acreditando numa resposta positiva, temos no paradigma um norteador para a
compreensão de fatos, manifestações, acontecimentos e questionamentos que se colocam
nos nossos fazeres cotidianos, e neste caso no cotidiano escolar, pois um novo paradigma
implica numa definição nova e mais rígida do campo de estudos ( Idem,p.39)
O avanço do conhecimento científico (principalmente da microfísica, da química e
da biologia), ao longo de décadas, tem levado à crise o paradigma dominante (Santos,
2003)
que fundamenta-se numa razão fechada, de simplificação , generalização e
disjunção, negando a complexidade da ciência clássica. Este paradigma separa a realidade
em fragmentos, rejeita o acaso, a desordem, o singular, a incerteza, a ambigüidade e o
contraditório. Estes são termos que se apresentam no contexto da grande maioria das
atividades lúdicas, principalmente nos jogos, tornando-se assim necessário compreendê-los
por uma nova proposta paradigmática.
Boaventura de Sousa Santos (2003) aponta como saída para a crise atual do
paradigma dominante o aparecimento de um novo paradigma, que não negue o anterior,
mas que transforme o “olhar” do homem para a realidade dada.
O autor questiona a representação da verdade no conhecimento científico,
defendendo que todo este conhecimento é socialmente produzido. A gama de implicações
da racionalidade do paradigma dominante aponta um novo paradigma, por ele denominado
“ paradigma emergente “, onde as ciências sociais ocupam um lugar de centralidade. Ele
acredita que a concepção de conhecimento científico, que data desde o século XVI, nos
deixou marcas no campo teórico que, de certo modo, ameaçam o futuro das ciências, sendo
29
necessária uma reorganização deste campo fundada num novo paradigma que tenha como
preocupação o acúmulo tecnológico do conhecimento adquirido, a superação de suas
carências e um olhar para os limites do rigor científico que acabam afetando drasticamente
a natureza e o homem.
Kun (2005) infere que a estrada de uma pesquisa é extraordinariamente árdua
quando há ausência de um paradigma e, sendo o jogo uma temática geradora de inúmeras
teorias ao longo de décadas, não poderia
estar submetido a uma nova abordagem,
principalmente no campo educacional? Não poderia ser compreendido por um novo
paradigma de interface com as ciências sociais? Não seria o jogo um conhecimento
socialmente produzido e por isto passível de compreensão também a nível científico? As
teorias existentes ainda não deram ao jogo um lugar relevante no contexto educacional,
necessitando desta forma novas visitações e novas propostas reflexivas.
Considerando que em toda e qualquer sociedade a cultura lúdica se faz presente,
compreendo que o jogo, enquanto prática social possibilita formas de preparar o homem
para a vida e para si mesmo. Valores, conceitos, atitudes, comportamentos e sentimentos
perpassam o jogo como forma de construção do sujeito enquanto ser complexo e suas
relações, favorecendo aquisições importantes que o homem carrega por toda vida.
Acredito, assim, que no viés de um novo paradigma possamos contribuir para a
compreensão do uso do jogo no âmbito escolar, na medida em que a partir dele se emanem
novos modos de pensar o homem e
sua relação com o mundo e com seus pares,
possibilitando uma nova forma de conceber a escola, seus atores e suas práticas.
Para Santos (2003), o paradigma emergente supera as distinções entre natureza e
cultura; natural e artificial; vivo e inanimado; mente e matéria; observador e observado;
sujeito e objeto; coletivo e individual; animal e pessoa, se fazendo necessário conhecer o
sentido e o conteúdo da superação de tais dicotomias. Para o autor, as ciências precisam se
humanizar e a humanidade precisa se cientificizar, onde a compreensão da natureza lúdica
humana no campo epistemológico pode, de alguma forma, trazer algumas contribuições
para esta proposta.
Sendo a escola, historicamente, uma instituição de estrutura racional, (re)produtiva e
organizativa , fica, em nível organizacional, submetida ao paradigma da racionalidade não
30
nos permitindo compreender as pulsões humanas e os subterrâneos das relações dos sujeitos
escolares. Surge, assim, a necessidade de se lançar sobre ela um outro olhar para uma nova
compreensão, quando então, a proposta de um novo paradigma aparece-nos apropriada.
Concebendo o homem como um ser bio-psico-sócio-cultural, entende-se seu
desenvolvimento nestes aspectos como um processo contínuo de manifestações individuais
e coletivas, inseridas no contexto em que vive, estando sempre submetido a alguma forma
de educação. Neste sentido, não estariam os jogos compreendidos netas manifestações
perpassando estes aspectos da natureza humana? Não fariam parte da complexidade
humana? Não fariam parte do processo de educação? O pensamento complexo aspira ao
conhecimento multidimensional, “onde a complexidade é efetivamente o tecido de
acontecimentos, ações, interações, retroações, determinação, acasos, que constituem o
nosso mundo fenomenal”. (Morin,2003p.20). Complexo, é, então, aquilo que é tecido
junto13.
Ao nos aproximarmos das idéias de Edgar Morin, historiador, filósofo e sociólogo
francês empenhado nos desafios da pós-modernidade
a serem enfrentados por um
pensamento complexo, poderemos lançar sobre o jogo um novo olhar para além de sua
compreensão no campo psicológico, filosófico e sociológico, tendo na ciência uma grande
contribuição.
Este pensador contemporâneo tem, em suas obras, instigado inúmeros educadores
a uma reforma de pensamento. Para ele esta reforma está associada a um (re)pensar as
instituições de ensino em todos os seus aspectos ( físico, cultural, de relações humanas , de
papel social, e de relação com o meio) , visto que o neoliberalismo nas últimas décadas
tem levado à uma fragmentação do saber , também escolar, e conseqüentemente disjunção
homem/natureza, sujeito/objeto , corpo/alma e existência/essência .
A visão racionalista e fechada do século XVIII desprezou os sentimentos, as
emoções e a imaginação e fez uso de práxis educativas compartimentalizadas por meio
de um conhecimento pragmático e simplificador, com excessiva disciplinarização do
currículo e dos cursos.
13
Trago, na abertura desta parte do trabalho, a imagem das alunas de Pedagogia da FFP/UERJ em momentos
de jogos, em que o entrelaçamento de vossos braços remeta o leitor ao sentido moriniano de complexo, o que
é tecido junto.
31
A proposta de Edgar Morin para a educação do futuro, passa pela reforma de
pensamento dos educadores, despertando-os para uma razão aberta capaz de reproduzir
mutações e reorganizações profundas, encorajando-os a uma ética de formação do cidadão,
ao uso da criatividade, da reflexão e da compreensão para entender o homem no paradigma
da complexidade envolvendo a auto-organização, o inacabamento e o pertencimento à
Terra. Para ele, a escola deve remeter-se à ordem acolhendo a desordem, estabelecendo
união, aceitando as diferenças, o singular e compartilhando-se saberes na busca de uma
reorganização permanente, onde a transdisciplinaridade envolva uma participação que
respeite a natureza bio-psico-social da criança, levando-a a pensar, criar, transformar,
organizar-se e ser autônoma e dependente reciprocamente de sua cultura .
Associam-se a ele, autores como Iduína Mont’ Alverne Chaves, que propõe se
“pensar a escola como um sistema aberto às múltiplas dimensões da realidade bio-psicosócio-cultural “ , entendendo que :
“Na Educação, estamos buscando formas opcionais de compreensão da
formação do professor, do cotidiano escolar, da prática pedagógica etc.
Sentimos a necessidade de adotar uma nova forma de olhar a realidade
educacional, de ver o mundo, o homem, a cultura, o ensino, a
aprendizagem, através da óptica da inclusão, da lógica do “ser estar junto
com” . O projeto de educação , ora vigente, não tem levado à qualidade
que pretendemos para formação/preparação do homem para o terceiro
milênio”. (CHAVES, 1999, p.124)
Assim, a proposta paradigmática da complexidade de Morin vem de encontro à
necessidade da escola ter um novo papel social, revendo seus saberes e fazeres através de
uma mudança de sentimentos, valores, pensamentos, visão do mundo, discurso,
argumentação e ação. “O paradigma da complexidade surgirá do conjunto de novas
concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que vão conciliarse e juntar-se”. ( MORIN, 1990,p.112)
A realidade é complexa e para a compreendermos, nosso pensamento tem que
seguir a mesma linha de complexidade. Não adianta tentarmos simplificá-la, pois que,
assim fazendo, temos uma noção parcial, artificial e até mesmo tendenciosa da realidade.
“É preciso ver a complexidade onde ela parece em geral ausente como, por exemplo, na
vida quotidiana” ( MORIN, 1990,p.83). Em pesquisa é muito importante não esquecermos
este preceito, visto que nosso interesse é investigar e compreender a realidade, retratando-a
32
tal como ela é percebida por nós. Desta forma, não se pode se desvencilhar de sua
complexidade, não se pode tentar simplificar os processos que nela ocorrem. A
complexidade é dialógica, “ é o princípio regulador que não perde de vista a realidade do
tecido fenomenal no qual nos encontramos e que constitui o nosso mundo”. ( MORIN,
1990, p.152)
Neste sentido, podemos compreender o jogo como um sistema, uma unidade que
faz parte da complexidade da realidade escolar.
Partindo dos princípios de Morin,
considero que cada realidade consiste num sistema que é composto de relações sociais,
interações, trocas simbólicas que são particulares a cada realidade em especial. Cada
realidade é composta por seus próprios elementos e suas próprias significações, de forma
que nos deparamos com uma gama de diversidade intensa, constituinte de um todo que,
através de uma visão superficial, se mostra homogêneo, no entanto, basta que acuremos
nosso olhar para percebermos a heterogeneidade que a forma:
“Ao mesmo tempo, devemos considerar o sistema não só como unidade
global ( o que equivale pura e simplesmente a substituir a unidade
elementar e simples do reducionismo por uma macrounidade simples),
mas como unitas-multiplex; também aqui estão necessariamente
associados termos antagônicos. O todo é efetivamente uma macrounidade,
mas as partes não estão fundidas ou confinadas nele; têm dupla identidade,
identidade própria que permanece ( portanto não redutível ao todo),
identidade comum, a da sua cidadania sistêmica”. ( MORIN, 1996, p.260)
Uma unidade é composta por diversidades. Para que o todo seja formado como um
conjunto único, uma “realidade coesa”, é necessário que haja diversidades que sejam
contestadas, negociadas, interagidas pelos elementos do sistema. Na constituição de uma
unidade, ou seja, de um sistema – em particular, relações sociais estabelecidas em atitudes
lúdicas -, as características peculiares de cada indivíduo, suas vivências, convicções e
crenças se colocam em choque. Vemos então a diversidade que forma a unidade.
Pode-se, então, conceber o jogo como conjunção do uno e do múltiplo -unitas
multiplex- (MORIN, 1990, p.18), que unifica abstratamente sem anular a diversidade, ou,
33
pelo contrario, justapõe a diversidade sem conceber a unidade, tornando-se um sistema
aberto14
O ato de jogar envolve ordem (a obediência às regras estabelecidas pelos
participantes), desordem ( a tática e as adaptações técnicas dependentes de uma situação
própria do jogo), a interação entre os participantes ( quanto maior , melhor o resultado do
jogo) e a reorganização ( um jogo nunca é igual ao outro, ele tem tempo e espaços próprios
exigindo a cada instante um novo modo de agir). Tem-se, assim, o tetragrama de Edgar
Morin (1996,p.204).
Desordem
Interações
Organização
Ordem
Uma fórmula paradigmática que nos permite conceber o jogo de formações e
transformações na complexidade do próprio ato de jogar.
Na atividade lúdica cada termo do tetragrama precisa do outro para se constituir.
São concorrentes, inseparáveis, complementares e antagônicos, estabelecendo o “ princípio
dialógico” de Edgar Morin(1996) .
O jogo aparece, assim, tal qual o conceito de sistema deste autor, onde a relação
todo-partes (o jogo em si e seus participantes) depende de interações e organizações. A
organização do jogo é o conjunto das interações nele ocorridas, assim como a organização
de um sistema é o conjunto de suas interações, onde se concebe a organização como uma
reorganização permanente do sistema que tende a desorganizar-se. Como cita Edgar Morin,
“ trata-se de uma organização auto-geno-feno-reorganizadora” (Idem , p.266)
A organização deste paradigma não substitui a ordem, mas a associa e a introduz
simultaneamente com a desordem, pois a organização cria a ordem e também a desordem,
14
Ver teoria dos sistemas em Morin, 1990.
34
onde o determinismo sistêmico pode ser flexível, comportar suas zonas de aleatoriedade, de
jogo, de liberdade (Idem, p.267).
Não há jogo sem aleatoriedade, os fatores ditos como sorte ou azar estão sempre
presentes, a incerteza do placar está sempre por vir. Por melhor que seja a técnica e a tática
de um jogo, a liberdade do jogador ganha espaço, o que torna imprevisível cada jogada
onde o rendimento do jogo depende diretamente das interações entre seus participantes. O
pensamento complexo integra o pensamento simplificador, e com todas as regras
estabelecidas no jogo temos as incertezas como formas de (re)organização. A cada
momento que algo desestrutura a equipe (o sistema) o técnico ou mesmo os jogadores
necessitam de tempo para buscar a reorganização, uma retroação estabelecida no retorno ao
ato/jogo “ retroagindo sobre a causa e tornando-se causal” (Idem , p.312), e, no entanto,
reguladora da (re)organização do jogo. O acaso (sorte) conduz a uma estratégia e as táticas
que são estabelecidas no ato de jogar. “A estratégia pode modificar o roteiro de ações
previstas, em função das novas informações que chegam pelo caminho que ela pode
inventar” (Idem, p. 220) .
Todos os jogadores se utilizam de estratégias mais ou menos refinadas, no que
acompanhamos o pensamento de Morin:
“...imaginamos nossas ações em função das certezas (ordem), das
incertezas (desordem e eventualidades) e das nossas aptidões para
organizar o pensamento (estratégias cognitivas, roteiro da ação) e agimos
modificando , eventualmente, nossas decisões ou caminhos em função das
informações que surgem durante o processo . A ação, vamos pensar nisso,
só é possível se houver ordem, desordem e organização. Ordem demais
asfixia a possibilidade de ação. Desordem demais transforma a ação em
tempestade e ela passa a ser uma aposta ao acaso”. (1996, p.220).
As atitudes num jogo são tecidas com o fio do acaso misturado ao fio da
necessidade. As atividades lúdicas, a brincadeira e os jogos são movimentos de associação
entre o todo (o jogo em si) e as partes (os jogadores), sendo impossível conhecer os
jogadores (partes) sem conhecer o jogo (todo), como conhecer o jogo (todo) sem conhecer
particularmente os jogadores (partes) (Idem, p. 259), formando-se, assim, um circuito ativo
( a duração de uma atividade ), onde se concebe que a diversidade organiza a unidade, que
organiza a diversidade (Idem, p.261).
35
Para Edgar Morin (1996), o caráter complexo das relações todo/partes, o princípio
unitas-multiplex, é assim formulado:
- “o todo é mais do que a soma das partes” (o jogo enquanto macro-unidade)
- “o todo é menos do que a soma das partes” (se os jogadores não interagirem o objetivo
do jogo se perde)
- “o todo é mais do que o todo” (o jogo retroage sobre os jogadores que, por sua vez,
retroagem sobre o jogo num dinamismo organizacional)
O paradigma da complexidadde como referencial de compreensão das funções do
jogo, das relações nele estabelecidas e da construção dos sujeitos, é de fundamental
importância para compreensão
do valor da ludicidade no espaço escolar. Através do
entendimento das operações que envolvem as atividades lúdicas, da sua relevância na
formação da personalidade dos indivíduos, na socialização e nas manifestações culturais
nelas contidas, podemos dar-lhes o lugar de destaque no processo ensino-aprendizagem.
As brincadeiras e os jogos são fundamentais para as crianças, pois envolvem um
trabalho de elaboração e de ação, possibilitando as relações interpessoais, uma relação com
o vivido e a transgressão do real, o “lugar sagrado” de Huizinga (2004) e o mimicry de
Caillois (1990). Exige também, o vínculo às regras estabelecidas e a possibilidade de
recombinações criativas das experiências, assim como a apropriação e troca de códigos
culturais. É uma mistura de realidade e fantasia em que o cotidiano toma outra aparência
adquirindo um novo significado. O pensamento complexo nos leva a compreensão deste
processo lúdico onde está presente uma rede de interações tecida com encontros,
turbulências, determinações, associações, combinações, certezas e incertezas, ordem e
desordem.
A criança em contato com estas experimentações de forma lúdica vai criando a
possibilidade de construção de seus modos de pensar, agir e sentir o mundo. Desta forma,
o jogo nasce na cultura como nos propõe Brougère (1998).
Pensando a escola como um sistema aberto às múltiplas dimensões da realidade do
educando, poderá o jogo no paradigma da complexidade, ser compreendido como objeto
transdisciplinar porque faz parte da auto-formação do indivíduo, conduzindo-o ao aprender
a aprender, desta forma circulando no processo ensino-aprendizagem.
36
“Com efeito, a natureza interactiva do brincar das crianças constitui-se
como um dos primeiros elementos fundacionais das culturas da infância. O
brincar é a condição da aprendizagem e, desde logo, da aprendizagem da
sociabilidade”. (SARMENTO IN: CERISARA, 2004, p.9).
As propostas de articulação das disciplinas, a transversalidade, ou como nos coloca
Edgar Morin (1996) a “ inter-trans-poli-disciplinaridade” , possibilitando o livre trânsito
entre os saberes
e a criação de outros espaços /tempos de conhecimento, nos levam ao
rompimento das fronteiras disciplinares e a criação de redes de relações , de intercâmbio de
saberes de comunicação e de conhecimento que permitem aos professores/educadores
buscarem alternativas criativas de ações metodológicas em suas práxis escolares, e estes
acabam por inúmeras vezes recorrendo à jogos educativos.
Cada vez mais a pedagogia e suas matrizes nos levam, movidos pela curiosidade
epistemológica, a criar possibilidades para produção e (re)construção do conhecimento no
campo da educação/ludicidade .
Socioantropologia: o jogo como prática do cotidiano.
“ É possível compreender a vida social, e, se for, de que modo? ”
Michel Maffesoli (1998)
O sociólogo francês contemporâneo Michel Maffesoli tem se mostrado
um
pensador inquieto com as questões comportamentais do homem em sociedade. Seus
estudos já abrangem países como o Brasil, e, com um olhar atento e livre de dogmatismos,
este autor se lança à projetos explicativos sobre a sociedade brasileira. Em constante
diálogo sobre a pós-modernidade com pensadores nacionais, Maffesoli visitou diversas
vezes o Brasil revelando ter por este país um profundo apreço. Passou por São Paulo, Rio
37
de Janeiro, Recife, Fortaleza e outras cidades fundamentando-se na temática sobre a
violência cotidiana. Em outubro de 1996, durante a Semana do Pensamento Francês
realizada no Rio de Janeiro, quando lançou sua obra No fundo das aparências15, formou
um grupo de estudos com Jean Baudrillard e Edgar Morin cujo objetivo pautava-se na
busca de soluções para os desafios da pós-modernidade, sobretudo, focando as formas de
manifestações e de relações sociais, chamadas por ele de tribalismos. Em entrevista ao
Jornal do Brasil, caderno B de 11 de outubro de 1996, ( In DaCosta, 1997) Michel
Maffesoli afirma que “ A pós-modernidade escapa ao racionalismo de muitos autores . Os
mega-shows de música e os jogos de futebol e outros esportes mostram que a paixão e o
afeto estão em primeiro plano, em muitas manifestações sociais hoje”(p.10) apontando
que o pós-moderno tem perfil emocional.
Cientista social, catedrático de Sorbonne (Paris V), seguidor de Gilbert Durand,
do qual foi aluno, Maffesoli se aventura nas entranhas das sociedades contemporâneas
tentando compreender o amálgama e a efervescência das relações sociais. Sua perspectiva
epistemológica aponta uma cultura dos sentimentos baseada na emoção, nos afetos, no
estar-junto, nos prazeres das relações e numa socialidade para além dos valores racionais,
indo de encontro a uma cultura baseada em relações táteis, em formas coletivas de empatia
que se inscrevem no presente vivido coletivamente.
Conhecido na pós-modernidade como sociólogo da orgia social, Michel Maffesoli
privilegia em suas obras os gestos mais banais, o viver cotidiano, as festas, os ritos, os
jogos, as associações, os grupamentos que ele denomina de tribos16 . O olhar de Maffesoli
se volta para uma realidade mais do que qualquer teoria que dela tente dar conta. Seu foco
recai para uma estética social, compreendida no sentido da “empatia, do desejo
comunitário, da emoção ou da vibração em comum” (MAFFESOLI, 1995, p. 11), ligação
entre o presente, o cotidiano e o imaginário. Os múltiplos e complexos gestos do cotidiano,
o movimento da vida em sociedade, traça, na visão de Maffesoli, o trajeto antropológico
do homem, tema-força de suas grandes obras.
A perspectiva fenomenológica de Michel Maffesoli pretende dar conta do
hedonismo do cotidiano que perpassa a vida, que permite compreendê-la em toda sua
15
16
Maffesoli, No fundo das Aparências, 1999
A este respeito consultar a obra “ O tempo das tribos” , MAFFESOLI, 1987
38
concretude, seus antagonismos, heterogeneidades, paradoxos, sua dinâmica de contradições
e
suas ações plurais que acabam por integrar o que o autor chama de centralidade
subterrânea das ações sociais, ou lado sombra, cuja inquietude carrega a emblemática de
Dionísio 17.
Para o autor, o desafio cotidiano é o reencantamento do mundo a partir de sua
latência social, o que ele denomina de socialidade . “ Cumpre-nos voltar os olhos para
esta vida de todo dia que, de modo caótico e aleatório, no tédio e na exuberância,
prossegue seu caminho de modo obstinado e um tanto incompreensível” ( MAFESSOLI,
1984, p.11), o que significa mostrar como a vida cotidiana se exprime de forma
fragmentada e totalmente plural, identificando as pistas que ela nos abre e as várias
máscaras com as quais se adorna para prosseguir . Por trás de uma invariante de atitudes,
fruto de uma visão da técnico-estrutura contemporânea, de uma representação homogênea
e globalizante do dado social, existe uma socialidade multiforme, subterrânea e tenaz, uma
vontade de viver a plenitude de toda existência individual e social. Constata o autor que a
centralidade subterrânea implica em apreender o social por uma sociologia específica, que
perceba o que está ‘por dentro’ dos fatos sociais, sejam eles significativos ou simplesmente
banais. O observador precisa ir ao âmago das aparências apreendendo o subjacente a partir
das aparências expressas no cotidiano. A ênfase dada a centralidade subterrânea surge
como constituinte da socialidade e diz respeito a clandestinidade, aqueles pequenos fatos
aparentemente sem importância, mas que têm valor em si próprios, e que para percebê-los
deve-se estar atento ao instante, ao presente. Não estariam os jogos circunscritos nesta
centralidade subterrânea?
Não seriam os jogos facilitadores e reveladores de vivências
cotidianas? Não fariam eles parte da efervescente dinâmica social? Ocupariam os jogos o
‘lado sombra’ das relações humanas? São estes questionamentos que me induzem a
pesquisar o papel do jogo no meio educativo, principalmente na formação de professores,
buscando o lugar que ocupa no cotidiano escolar, ou sob o olhar de
Maffesoli,
17
Dionísio é o deus grego equivalente a Baco no panteão romano, deus das festas, do vinho e do lazer. Filho
de Zeus e da princesa Semele, é o único deus filho de uma mortal. Passou parte de sua gestação na coxa de
seu pai, pois sua mãe morreu antes de ele nascer. As ninfas cuidam de Dionísio durante a infância e, ao se
tornar homem, ele se apaixona pela cultura da uva e descobre a arte de extrair o suco da fruta (BRANDÂO,
1991)
39
compreender a socialidade vivida no interior das escolas por meio das atividades lúdicas. É
o cotidiano na sua dinâmica, na sua polissemia, na sua pluralidade, na sua contraditoriedade
que deve ser apreendido por meio da sensibilidade do pesquisador, onde a sociologia
compreensiva de Michel Maffesoli poderá dar conta de tantos questionamentos.
Para Maffesoli,(1984) o essencial da trama social está na atenção aos pequenos
fatos da vida cotidiana, assim como no reconhecimento dos microagrupamentos (família,
associações, partidos, escolas, etc...) como reveladores desta trama de relações. A proposta
de uma sociologia compreensiva, objetivando o cruzamento do social com o individual,
tende a se desenvolver ocupando lugar no debate científico. Ao lado do devir racional da
civilização existe o minúsculo, os nadas, carregados de intensidade que jorram da própria
textura (Idem, p.153) do que constitui o cotidiano e perfaz toda a existência. O princípio
lógico não conduz a apreensão do heterogêneo, “essa tendência que representa uma
constante na tradição ocidental
conduziu ao desenvolvimento de um pensamento
estritamente científico, operando sobre o geral e deixando de lado todas as variações
individuais que, por fim, constituem a harmonia social”.(Idem, p.152). Desta forma, a
análise do cotidiano necessita de uma abordagem fenomenológica que deixe transparecer
esses nadas, mesmo quando apenas os indica.
A proposta metodológica de Maffesoli, intercruzada com o pensamento complexo
de Edgar Morin, poderão nos conduzir a compreensão do ato social, da socialidade presente
dentro e fora da escola, em suma, presente na vida dos jogos, na vida de todo dia, de todos
os lugares.
No cruzamento das ações cotidianas, na multiplicidade de sinais, valores, condutas,
sentimentos, atos espontâneos e formas de convivência poderemos alicerçar os
pressupostos deste trabalho na busca dos sentidos do ato de jogar, pois “ o lúdico, é uma
maneira de dizer a sociedade, é uma maneira que tem a sociedade de se dizer”
(MAFFESOLI, 1984, p.145) .
Com olhar de contemplador do mundo, Maffesoli observa que o movimento da
trama social se dá por conta de uma energia irreprimível que garante seu equilíbrio,
fundamentando-se no desejo de viver o presente, na aceitação do destino, no instinto do
coletivo e na dimensão do fantástico compreendidos na esfera imaginativa. Propõe o autor
que se valorize a formas anódinas, aparentemente insignificantes de se viver o dia-a-dia
40
para a compreensão da estrutura do corpo social, alertando para uma estreita relação entre o
sonho e o pensamento, apontando que o primeiro, enquanto faculdade onírica, fica
subjugado a um plano inferior em nossa sociedade nos levando a crer que, embora a força
da imaginação ocupe um papel importante na estruturação da vida coletiva, a ela é atribuída
pouca relevância, principalmente no contexto educativo. Para o autor, na constante história
da humanidade “os poderes dormem em paz, enquanto ninguém pode mais, não sabe mais
ou não ousa mais sonhar” (MAFFESOLI, 1995, p.11). Entendendo o ato de jogar como um
ato de realização de sonhos e fantasias, portanto pertencente à faculdade onírica dos
homens, cabe-nos compreendê-lo pela ótica maffesoliana, que mergulha na teia das
manifestações cotidianas em busca do fantástico, do efervescente, das banalidades que dão
o tom das relações entre os homens em sociedade.
A parte imaginativa de uma sociedade, segundo Michel Maffesoli, sempre agiu
poderosamente em todo lugar sobre os homens, cabendo assim aos investigadores,
cientistas sociais, explorar este vasto domínio do imaginário vivido no seio da vida
corrente, mesmo contra as resistências que se postem frente a este empenho. Isto não se
circunscreve na órbita do irracional, mas sim do não-lógico, não-racional, cuja pregnância
social não pode ser negada. A intenção do autor não é a de produzir ou de revelar verdades
quanto aos desafiadores problemas sociais, mas, sobretudo, “colocar os problemas, mais
do que lhes dar soluções” (Idem, p.12), não se concluindo jamais as análises que se façam,
pois o investigador social é sempre tributário de sua época e do foco que atribui as suas
investigações, por isso o objeto do estudo no campo social não é jamais explicável em sua
totalidade, pois têm nuances próprias e é dependente das características que lhe atribuem no
processo investigativo. Direcionar o foco para o imaginário, para o sonho, para os atos
complexos, banais e corriqueiros do cotidiano, é, sem dúvida, um desafio investigativo que
me proponho a seguir, acompanhada das grandes idéias trazidas por Edgar Morin e Michel
Maffesoli.
Para Maffesoli (1995), numa sociedade pautada em valores cartezianos e
racionalistas, esta linha de investigação do comunitarismo, do cotidiano, do localismo, do
presente e das banalidades da vida e certamente do imaginário, não gozam de muito
prestígio acadêmico, mas para o autor “ a saturação dos valores da modernidade tende a
dar lugar a valores alternativos, de contornos ainda imprecisos , mas cuja eficácia não se
41
pode negar”
( idem, p.15). Neste sentido, Maffesoli alerta para a ‘intuição’ do
pesquisador, que, antes de mais nada , deve ser entendido como um ‘farejador social’.
“ Isto é, alguém que saiba reconhecer que, no devir cíclico das histórias
humanas, o instituinte, aquilo que periodicamente (re)nasce, nunca está em
perfeita adequação com o instituído, com as instituições, sejam elas quais
forem, que sempre são algo mortíferas. De certa forma, a intuição como
forma de antecipação”. ( MAFFESOLI, 1998,p.131)
A proposta de uma abordagem compreensiva abre espaço para a intuição,
considerando a dimensão sensível da existência humana e cria a possibilidade de
entendimento entre as relações do instituído com o instituinte.
A modernidade foi marcada por um ideal democrático e a pós-modernidade tende a
substituí-lo pelo ideal comunitário, que em estado re-nascente é elaborado na dor e na
incerteza, na alegria e na tristeza dando sentido a elementos arcaicos soterrados pela
racionalização do mundo onde se apresentam materializados pelas tribos, festas, ritos,
efervescências sociais que afloram para o bem ou para o mal ( Maffesoli, 1995). Sendo
assim, surge algo de transe arcaico que tem por função resgatar e reforçar o estar-junto dos
que partilham dos mesmos mistérios, expressos nas manifestações desportivas, festivais,
shows e eventos que permeiam a vida social. Com isto o autor quer dizer que:
“ o vínculo social não é mais unicamente contratual, racional,
simplesmente utilitário ou funcional, mas que integra uma boa parte de
não-racional, de não-lógico, e exprime isso em efervescências de toda
ordem que podem ser ritualizadas ( esporte, música, canto) ou, de modo
mais geral, são espontâneas.” ( MAFFESOLI, 1998,p. 136)
O ideal comunitário, carregado de afetos dos que o partilham, revela-se em forma de
solidariedade, generosidade e cumplicidade que são elementos importantes da socialidade
de base, onde se busca viver uma forma de estar-junto para a realização de uma sociedade,
não necessariamente perfeita no porvir, mas que preza o hedonismo do presente.
Sendo o jogo uma das atitudes do homem que se vincula ao prazer, a satisfação de
estar-junto, ao companheirismo, aos antagonismos (competição), as complementaridades
(equipes), faz-se presente cotidianamente, sobretudo entre crianças, levando-nos no campo
da educação a investigá-lo
com um olhar sensível, capaz de compreendê-lo como
fenômeno social e cultural onde o brincar/jogar faz parte do aprendizado dos indivíduos,
42
levando-os a vivenciar emoções e situações próprias da natureza humana. Os sentidos do
ato de jogar extrapolam a racionalidade com que a escola tenta lhes impor, ou seja, como
atividade recreativa e compensadora das demais disciplinas, parte do instituído. O jogo
também se inscreve na esfera do não-racional, não lógico, do desejo humano, do latente, do
instituinte, mas nem por isso deixa de ser importante no processo de formação do homem.
Para Maffesoli, a sensibilidade que sustenta as diferentes ações do homem pertence
a “ cultura do sentimento” que nos coloca diante de um “mundo imaginal ”, entendido
como um conjunto complexo no qual as diversas manifestações da imagem, do imaginário,
do simbólico, do jogo das aparências ocupam, em todos os domínios, um lugar primordial
(MAFFESOLI, 1995, p.17). O jogo perpassa o imaginário, o simbólico, os mitos e outras
instâncias do mundo imaginal, sendo assim, é passível de compreensão e contemplação
com um olhar guiado pela sensibilidade.
A proposta do autor, sobretudo
na obra
“A contemplação do mundo”18,
compreender o ideal comunitário pautando-se nos conceitos de estilo e imagem.
é
O
primeiro remete-se aquilo que define uma época, aquilo que indica um tempo traçando um
quadro onde se exprime a vida social em dado momento. É por meio de determinação do
estilo de vida de uma época, de uma sociedade ou de um grupo, que se atinge o
conhecimento da socialidade, vista pelo autor como a alma da coletividade.
A
efervescência própria de cada grupo em sociedade acaba por determinar o seu estilo. Nas
concepções sócio-históricas sobre jogos percebe-se o tom dado a esta prática lúdica em
função dos estilos sociais em diferentes épocas e sociedades, passando de atividade natural
a um utilitarismo seja em nível científico ou educacional19.
Quanto
à
imagem,
Maffesoli compreende que esta se toma como religante, surgindo ilustrada como ‘objeto’,
objeto que não isola, mas que é vetor de comunhão - objeto imajado - (1995 p.18). A
imagem, enquanto signo transfigurador, pode conduzir o imaginário provocando uma
projeção na realidade, expressando assim, sob múltiplas formas, o viver cotidiano. O poder
das imagens permite a vivência dos sentidos sociais. “ A sensibilidade fenomenológica ou a
perspectiva imaginal permite, por um lado, estar-se atento aos objetos e/ou aos eventos por
si mesmos, em toda sua concretude, sua presença e sua dinâmica própria”. (MAFESSOLI,
18
19
Maffesoli, A contemplação do mundo, 1995
A este respeito ver o Capítulo 2 deste trabalho.
43
1995, p.95). A imagem faz participar, sentir em comum, o que caracteriza o estilo estético
que religa os indivíduos pelo poder do imaginário social.
Na concepção de Maffesoli, o estilo, sendo revelador da complexidade social, pois é
a cristalização de uma época em que se vive, manifesta-se nas artes, no comércio, na
produção de bens e mesmo nas relações sociais caracterizando os valores da sociedade e
sua época. Admite o autor que o estilo carrega um princípio de unidade, um processo de
interação das diferentes instâncias (arte, política, economia, educação, esporte). O estilo
projeta o pensamento e o sentimento do coletivo partilhado por uma mesma cultura durante
um período.
“ Em certos momentos, e este foi o caso das sociedades tradicionais,
predominava a estética, e somente tinham importância as referências ao
espaço, à forma, ao território e ao corpo. Há outros, entre eles a
modernidade, em que o que predomina é a dinâmica. Neste caso, apenas a
história, o desenvolvimento, o crescimento, o futuro e suas diversas
conseqüências são levados em conta e servem de referências às diferentes
construções racionais que os justificam. Há um terceiro caso, ao qual se
pode incorporar a pós-modernidade, que ao mesmo tempo, acentua os
invariantes, as constantes, no que possuem de estático, sem negligenciar as
modulações, as variações, com sua dinâmica” ( MAFFESOLI, 1995, p.38)
A partir destes pressupostos, busco compreender o sentido dos jogos na pósmodernidade, num estilo que coloca em foco o coletivo, o afetual, os sentimentos e as
emoções partilhadas, ou seja, onde predomina um estilo estético na visão maffesoliana.
Para Michel Maffesoli, as civilizações modernas buscam a afirmação de suas
maneiras de ser tradicional, de acentuação de costumes locais, de buscar solidariedade,
comunitarismo, vivendo uma nova pulsão estética nos modos de sentir, pensar e agir
cotidianamente, um novo estilo. Trata-se de uma estética da existência que será, segundo o
autor, a marca da pós-modernidade. Esboça-se um novo tempo, “ em que o estilo de ver, de
sentir, de amar, de se entusiasmar em comum e no presente se impõe, sem dificuldade, às
representações racionais voltadas para o futuro”. (MAFFESOLI, 1995, p.35) Um tempo
em que, no corpo social, o homem “dedica-se, mais ou menos inconscientemente, a
reencontrar seu equilíbrio, pondo em ação
suas potencialidades de fantasia, suas
faculdades oníricas, os lazeres ou outras formas de férias do espírito e do corpo” ( Idem ,
p.41). O autor refere-se à retomada do imaginário que, (re) investindo em estruturas
44
arcaicas, recriam mitologias que restauram o equilíbrio perdido no liame social. Este novo
estilo tende a integrar as dimensões oníricas, lúdicas e simbólicas que se revelam em cada
momento da vida cotidiana. Numa espécie de transmutação, o mito faz renascer um estilo
onde a saturação de um dado conjunto social permite que surjam outras formas de
socialidade, que não fogem ao mito fundador, matriz em sucessivas transmutações. Tendo
em vista o componente imaginário presente nas estruturações coletivas e individuais, tornase necessário levar em conta os arquétipos, onde se encontra a dimensão racional e a do
imaginário. Arquétipo dinâmico que denota a polarização que caracteriza a cotidianidade
revestida por uma carga mítica que move a socialidade de base.
Para o autor, a transmutação de valores nos tem levado a socialidade que valoriza o
viver coletivamente no presente, onde a vida, de forma estética, se revela na maneira de
sentir e experimentar coisas em comum. “Empiricamente, isso nos remete a todas as
formas de conjuntos musicais, esportivos, de consumo ou religiosos, que, embora sempre
tenham existido, em certas épocas (re)encontram uma amplitude que tinha perdido, ou que
tinha sido relativizada” ( Idem, p.53), onde o estilo estético passa a ser um processo de
correspondência entre o ambiente social e o ambiente natural que favorece a um estar-junto
empenhado em usufruir os prazeres, emoções e sentimentos comuns que se fazem sentir nas
agregações, tribos, que se constituem a partir dos gostos ( musicas, sexuais, culturais,
desportivos, religiosos, políticos, etc...). Este vínculo social caracteriza-se, como diz
Maffesoli, por um ‘pontilhamento’ abalado por sobressaltos, mas que, contudo, não
deixam de gerar uma organicidade estabelecida nas relações forçadas, violentas ou
agressivas, às vezes, ou, ao contrário, relações de cumplicidade, de aliança, ou
simplesmente afetivas, mas que, de uma forma ou de outra, demonstram um estilo estético.
(Idem p.56). Este vínculo ‘pontilhado’ é uma das características das relações estabelecidas
entre os jogadores ou entre aqueles que partilham o mesmo gosto lúdico.
A partir destes conceitos, segundo o autor, pode-se fazer um inventário pelos quais
uma sociedade “se diz e se vive” (p.18), pois o racional, o mecânico, por si só não dão
conta da configuração social da atualidade, cabendo desvendá-la pelo emocional, pelo
sentimento partilhado, pela paixão, pelos valores dionisíacos e hedonistas do humano.
O jogo aparece como uma das instâncias de convívio social de fácil percepção deste
estilo estético que enfatiza o sensível e o hedonismo. Compreenderemos isto melhor nas
45
palavras de Maffesoli:
“ São muitos os exemplos que vão neste sentido, e a vida quotidiana nos
oferece muitas ilustrações disso. Que vão das formas de simples
socialidade, elaboradas nas salas de ginástica, aos vínculos estreitos que se
constituem nos grupos de esportes de risco, passando pelas amizades,
pelas relações induzidas pelos clubes, viagens e circuitos de grupos, sem
esquecer o sentimento de pertença, que é a causa e o efeito da maneira de
trajar e de outros mimetismos corporais , gestuais e de linguagem, que são
bem a marca das sociedades contemporâneas” ( MAFFESOLI,1995, p.57)
.
Segundo o autor, frente ao mundo moderno, saturado por individualismos, por uma
razão fechada e de onipotência técnica, haverá de surgir um novo estilo existencial que
apela para o coletivo, para o imagético, para um estilo onde o querer-viver impulsiona
para o estar-junto, onde estilo e imagem tomam lugar de centralidade. Estaríamos vivendo
sob um novo signo de tom comunitário e grupal, um novo signo que clama sentimento da
origem de um tempo fundador, arquetipal.
Uma sociedade é constituída por um caldo de cultura que busca o retorno das
imagens, do contágio emocional, os múltiplos simbolismos de identificação religiosa. Para
Mircea Eliade, trata-se do eterno retorno (ELIADE, 1984). Ao imitar seus deuses, o
homem religioso pode viver o ‘tempo de origem’, o tempo mítico, saindo da duração
profana para a eternidade. Os fatos reatualizam um acontecimento primordial cujos autores
são os deuses e seres divinos, conseqüentemente os fatos tornem-se contemporâneos dos
deuses. Desta forma, o homem religioso não esquece a história sagrada e seus mitos,
mesmo que estes representem o sacrifício dos deuses para a criação primeira dos atos no
cosmos. As atitudes humanas passam a se justificar pela aproximação com o sagrado, com
a vida em sua essência na partilha com seus pares, sejam estes deuses ou humanos. O
coletivo adquire, assim, conotação de coesão, de comunhão com um ideal, com algo
sagrado que transcende a própria existência. Viver coletivamente passa a ser significativo
no andamento social alimentado na esfera do sagrado. Para Eliade ( Idem), este desejo de
santidade é uma nostalgia ontológica que garante um eterno retorno para a purificação,
com a esperança de transfigurar sua existência, tornando-a semelhante ao modelo divino.
Nenhum acontecimento é único, levando os mitos a aparecerem e reaparecerem num
movimento sobre si mesmos, o eterno retorno. A adoração a ídolos da música, do esporte, o
fanatismo religioso-político, as tendências que norteiam os modos de sentir e agir em
46
determinados grupos, as manifestações conturbadas de grandes grupos
reveladas em
shows, eventos desportivos, e diferentes grupamentos (fankeiros, metaleiros, roqueiros,
pagodeiros, torcidas organizadas, etc) evidenciam a tendência do coletivo de veneração, de
ideologia, de sacralização. As sociedades pós-modernas, na visão de Maffesoli, vão se
caracterizando por uma regularidade de retorno as idéias originais, aos mitos comuns e
fundantes que potencializam a vida em sociedade. Há de se lançar atenção aos sonhos
coletivos (para o bem ou para o mal), as pulsões primitivas, ao arcaísmo que na maioria das
vezes se circunscreve no não-racional mas que fomenta o vínculo social (MAFFESOLI,
1995, p.25). É a circulação dos mitos que define uma sociedade, configurando-a
miticamente, onde estes emergem triunfalmente na consciência coletiva, modificando a
visão de mundo dominante. Estamos vivendo atualmente um esgotamento do universo
mítico que modelou a modernidade, onde os deuses se retiram pouco a pouco para as
profundezas do inconsciente, dando lugar a uma nova atitude imaginativa, que se desenha
com a emergência de mitos.
São mitos que promovem a religação natureza-cultura,
conduzindo a uma ecologização do mundo, a uma naturalização da cultura e que vão dando
forma aos modos de sentir, pensar e agir em sociedade.
Surge um imaginário cósmico
que tece uma nova trama simbólica, na qual homens, deuses e cosmos se religam em torno
da natureza e de seus homens.
Pautando-nos nos pressupostos de Maffesoli, o resgate a um estilo existencial do
coletivo, das festas, das tribos, dos ritos e dos jogos, surge como necessidade ontológica de
circularidade das origens, dos modos de ser, dos costumes, das representações que
permitem que a vida se expresse em toda sua plenitude. Numa breve reflexão sóciohistórica
20
,compreendemos que os jogos e as manifestações coletivas fazem parte das
sociedades antigas onde o aprender e o ensinar aconteciam de forma espontânea, não
sistematizada, fazendo parte da própria natureza de coletividade humana, ligavam-se à
ritualizações.
Neste sentido, podemos apontar o resgate do homo ludens na pós-modernidade,
abafado pelo homo faber do mundo moderno. O espírito hedonista, a necessidade de viver
intensamente o presente, são traços marcantes da pós-modernidade. A escola, enquanto
20
O capítulo 2 deste trabalho, com base na obra de Philippe Áries (1978 ) , aborda a vida em sociedades
primitivas em que o aprender e o brincar caminhavam lado a lado.
47
instituição disciplinadora, sufoca o espaço lúdico em função do espaço do aprender
sistematizado, do aprender programado por um currículo conteudista que, na maioria das
vezes, não considera o espaço das atividades lúdicas, da brincadeira, do jogo como espaço
de cognição, de aprendizagens, de vivências e experiências, principalmente porque este
espaço quase sempre fica estigmatizado como lugar de prazeres, devaneios e orgia vivida
coletivamente. Embate de difícil compreensão que nos leva à busca de referenciais
pautados numa abordagem compreensiva.
Concordo com Michel Maffesoli, que ao fazer o apelo ao coletivo , ao querer-viver
-junto, não tornamo-nos nostálgicos, mas demonstramos um desejo de viver um outro estilo
de existência humana pautada na cultura dos sentimentos, do afetual, das trocas, numa
espécie de atração social, onde “ a solidariedade vivida é a única coisa que permite o
aumento da complexidade”. (MORIN, 1990, p.136)
Em diferentes épocas, a história da política, da música, das artes, demonstra uma
mudança de estilo em função de uma mudança de sensibilidade. A passagem do romano ao
gótico, da renascença ao barroco, são exemplos trazidos por Maffesoli (1995, p. 26).
Instâncias como as educativas vêm, também, atravessando mudanças. Da educação jesuíta,
passando pela Escola Nova, construtivismo e outros, somos remetidos à percepção de
grandes mudanças no pensamento pedagógico brasileiro nos levando a questionar se esse
tipo de educação apela para uma nova sensibilidade mítica., compreensiva.
Que contribuição trará a educação para esse processo de remitologização da
sociedade pós-moderna? Estariam os modos de vida, o estilo de existência coletivo dando
conta de uma nova educação? Estas novas configurações míticas são trazidas para a
educação? Há consonância entre o desejo coletivo e os pressupostos educativos
institucionalizados? Os mitos, ritos, manifestações, representações, o que é instituinte, o
que é latente para o homem ocupa espaços no contexto educacional?
São inúmeros
questionamentos que se apresentam, sobretudo, para os profissionais da educação, que
partem para pesquisas, estudos e diálogos que possam dar conta dos desafios pósmodernos. Precisamos estar atentos a uma “lógica do instante, apegada ao que é vivido
aqui e agora” ( MAFESSOLI, 1998, p.57)
48
Nesta mudança paradigmática de conceber a sociedade, somos movidos a pensar
numa educação pela (para) sensibilidade, pondo em ação um pensamento que se reconcilie
com a vida, pois, segundo Maffesoli,
“ Há, com efeito, algo de sensível , de sensual, sensualista, numa relação
com o mundo e com o outro, vivida dia a dia e assentada na experiência,
seja na interior, do microcosmo, ou a outra, mais ambiental, ecológica, do
macrocosmo matriarcal”. ( 1998, p.191)
Michel Maffesoli nos convida a conhecer um instrumental conceitual renovado que
aposta em traduzir as realidades sociais atuais. A partir da compreensão dos costumes, das
atitudes surpreendentes ou banias, das relações entre indivíduos, abarcamos uma razão
sensível, uma maneira de abordar o real em sua complexidade, com o que tem de
imprevisível, de incerto, de antagônico, de concorrente, de efervescente e
que se
complementam ( Edgar Morin, 1990)
Estas questões, que não passam pelos canais aos quais a modernidade nos habitou a
olhar, nos levam a reconhecer que “...a verdadeira vida está no particular, no concreto, no
próximo, coisas que não adiam a fruição para hipotéticos amanhãs mas, pelo contrário,
empenham-se em vivê-la, bem ou mal, aqui e agora, num dado lugar e em dada sociedade”
(Idem, p.191) . A pós-modernidade, deve, então, ser compreendida a partir dos sentimentos
dionisíacos vividos em comum, das fruições partilhadas no aqui e agora, no espaço-tempo
presente vividos em sua plenitude e concretude.
Segundo tempo
49
Pieter Bruegel - Children's Games
Segundo tempo
__________________________________________________________________
A delegação: alguns teóricos sobre o jogo
“ É ouvindo denominar e denominando atividades por esse termo
que a noção de jogo se constrói para cada um de nós”.
Gilles Brougère (1998)
50
O uso do termo jogo
Jogo e brincadeira são a mesma coisa para muitos autores, mas entendo que há uma
tênue diferença entre as brincadeiras livres que as crianças manifestam de formas
espontâneas na hora do recreio e em outras oportunidades e os jogos proporcionados pelas
aulas de educação física, na recreação, enquanto atividade acompanhada pelos docentes, e
os jogos praticados em sala de aula com intencionalidade pedagógica (jogos educativos).
Desta forma, percorrerei alguns conceitos e definições do termo com a intenção de pontuar
o que entendo por jogo e de que forma será abordado na presente pesquisa.
Alguns autores fizeram uma varredura sócio-cultural-histórica sobre o termo jogo.
Huizinga (2004) apresenta uma pesquisa do vocábulo em línguas como o francês, o
grego, o chinês e outras, salientando que não se encontra a mesma idéia e a mesma
palavra para se expressar uma noção única de jogo. Há, portanto, uma abstração no
conceito geral de jogo.
As abordagens de Brougère (1998) também são de grande valia para a compreensão
da gama de interpretações do termo e do sentido do jogo. O autor nos conduz à polissemia
do termo ‘jogo’, que por si só, não demandaria nenhum esclarecimento ou elucidação,
tornando-se necessário percorrer as configurações de sentido que correspondam a seus
empregos e a rede de significações implícitas e explícitas resultante do uso da palavra jogo.
O que significa chamar de jogo determinada situação e determinado
comportamento?
Devemos considerar a diversidade de fenômenos denominados jogo e a variedade
de empregos metafóricos. Desta forma, Brougère nos alerta que jogo de xadrez (no sentido
do objeto), jogo de engrenagens (peças de um maquinário), jogo político (estratégias de
negociações), jogos olímpicos (um evento), jogo de chaves, jogo de sedução, jogo de
linguagem e jogo da vida têm significados próprios que complexificam a elucidação do
termo jogo. Assim, o jogo pode ser considerado como um fato social que compreende
fenômenos
tão
diferentes
que
partilham
o
mesmo
nome.
O
vocábulo
51
pode ser o mesmo para indicar ‘coisas’ diferentes, e, neste sentido, brincar e jogar,
enquanto palavras, ficam muito próximas. A questão é procurar entender porque atividades
diferentes foram, em algumas línguas, designadas pelo mesmo termo.
Brougère (1998) leva-nos a compreensão do que seja jogo em diferentes culturas
em função de diferentes épocas e línguas trazendo exemplos de como algumas concepções
foram surgindo:
para os romanos, por exemplo,
os jogos
divertimento; os jogos gregos têm um caráter competitivo;
são
mais ligados ao
e nos jogos astecas o
simulacro é sua função principal. Isto mostra como, na história, o jogo vai adquirindo
configurações que dependem do seu uso.
Para Brougère três níveis de interpretação são perceptíveis numa rápida análise
léxica:
1- “ jogo é o que o vocabulário científico denomina “atividade lúdica”, quer essa
denominação diga respeito a um reconhecimento objetivo por observação externa ou ao
sentimento pessoal que cada um pode ter, em certas circunstância, de participar de um
jogo” , o autor reconhece, assim, o que se designa por jogos políticos, por exemplo.
2- “ O jogo é também uma estrutura, um sistema de regras (game, em inglês) que existe e
subsiste de modo abstrato independentemente dos jogadores, fora de sua realização
concreta em um jogo entendido no primeiro sentido” . Este princípio refere-se ao jogo de
dama, de xadrez, de futebol, jogo da velha e tantos outros21.
3- “Jogo entendido como material (objeto) que se utiliza para jogar/brincar, mais
associado ao termo brinquedo com maneiras de jogar prescritas por regras” (1998, p.14).
Dentre estas concepções apresentadas acima: atividades lúdicas (ligadas ao prazer),
sistema de regras (competição e concurso) e brinquedo (objeto), aproximo-me dos dois
primeiros conceitos para compreender o jogo nesta pesquisa, pois o caráter do jogo
associado ao prazer e à competição, quando se trata de recreação, são recorrentes no campo
educacional, o que não significa que o jogo, enquanto objeto,deixe de estar implícito nas
atividades lúdicas aqui tratadas, mas, no entanto, não são o foco específico do presente
trabalho.
21
De forma ilustrativa, trago a imagem do quadro Children’s games de Bruegel, na abertura desta parte do
trabalho, nos levando a refletir quanto ao uso do termo (game) para as atividades retratadas que envolvem
tanto jogos, como brincadeiras ( se é que podemos distinguir um termo do outro ou mesmo uma atividade da
outra)
52
Como sugere o autor, podemos pensar na sobreposição destes conceitos, e, sendo
assim, no sentido de situação lúdica, há jogo tanto quanto no sentido de sistema de regras.
É, então, na justaposição destes conceitos que compreenderei o jogo e a busca de sentidos
do ato de jogar, de modo a se refletir sobre a relação jogo e educação, pois pretendo
investigar como o aluno-professor utilizará o tempo destinado à recreação na escola ou
como trabalhará com jogos em sala de aula ou em outros espaços, logo com atividades
lúdicas propostas e com um princípio norteador para seu funcionamento, utilizando ou não
um objeto para jogar.
A diversidade do uso que se faz da palavra jogo é fonte de riquezas, mas também de
indeterminações.
“A noção de jogo como o conjunto de linguagem funciona em um
contexto social; a utilização do termo jogo deve, pois, ser considerada
como um fato social: tal designação remete à imagem do jogo encontrada
no seio da sociedade em que ele é utilizado”. (BROUGÈRE, 1998, p.16).
Desta forma, acompanhando o pensamento de Brougère, optei por compreender o
jogo como atividade lúdica que implica num sistema de regras, ou seja, com padrões préestabelecidos para seu funcionamento. Sendo assim, o jogo se difere da brincadeira, pois
nestas as regras vão surgindo no seu desenrolar. Uma criança pode brincar de casinha com
regras, mas elas vão se dando na medida da necessidade. Existe algo pré-estabelecido que
se refere mais ao papel que vão representar (mãe ou filha, por exemplo) e a resignificação
dos objetos (folha de árvore para comidinha, por exemplo), mas são formas espontâneas de
comportamentos do próprio ato do brincar, e não exatamente regras. Normalmente não há
competição na brincadeira e esta pode ser interrompida e retomada a qualquer hora,
podendo entrar outros participantes a qualquer momento. Esta é uma das diferenças que
aponto como facilitador para compreensão do que vou aqui tratar por jogo.
O jogo é algo de que todos falam, que todos consideram como evidente e que
ninguém consegue definir. “Em suma, cada sociedade determina um espaço social e
cultural onde o jogo pode existir legitimamente e tomar sentido “ ( Idem,p.49)
Brougère compreende que “ o jogo do qual se fala é o jogo tal qual é pensado por
nossa sociedade e não parece haver outra realidade além da palavra na diversidade de seu
uso” (Idem, p.17). Para o autor, um termo pode ser empregado dependendo do
53
entendimento que tenha o grupo social que vai tratá-lo. Deve existir um sentido para o
conjunto de seres que vão falá-lo e pensá-lo, logo, depende de uma atividade mental que
remeta a idéia que se tem do que é jogar.
Huizinga (2004) analisa esta questão salientando a variedade das línguas nas quais
não encontramos um conceito fechado sobre jogo. O autor busca a lógica própria de cada
língua, não vendo o jogo como uma noção em si, como conceito isolado.
“Ao falarmos do jogo como algo que todos conhecem e ao procurarmos
analisar ou definir a idéia que essa palavra exprime, precisamos ter sempre
presente que essa noção é definida e talvez até limitada pela palavra que
usamos para exprimi-la. Nem a palavra nem a noção tiveram origem num
pensamento lógico ou científico, e sim na linguagem criadora, isto é, em
inúmeras línguas, pois esse ato de “concepção” foi efetuado por mais do
que uma vez”.(Idem, p.33)
No espaço escolar, a palavra jogo nos remete a inúmeras concepções: o jogo
desportivo das aulas de educação física, os jogos populares, os jogos livres onde as crianças
se auto-organizam, os jogos com conteúdo de uma disciplina, os jogos dos horários de
recreação, os jogos de computador e tantos outros. Considerarei, neste estudo, esta gama de
concepções como jogos que estão presentes no contexto educacional, dotados de um
sentido pedagógico e fazendo parte de uma cultura que se revela neste espaço. O
interpretarei como movimentos instituintes, naturais e espontâneos que brotam na
cotidianidade, principalmente da infância.
Deparando-nos com uma gama de concepções que envolvem a palavra jogo,
podemos nos aproximar da compreensão de que o jogo tem uma estrutura organizativa
maior do que a brincadeira. O ato de brincar é mais descompromissado, enquanto que o
jogo, embora podendo ser também uma brincadeira, exige padrões de comportamento mais
rígidos, o que, no entanto, não chega a engessá-lo como um sistema fechado, que não
permita modificações e reorganizações. Um jogo de futebol o é no campo, na quadra, na
várzea ou no pátio da escola.
Desta forma, compreendo algumas distinções entre jogo e brincadeira,
principalmente nos animais. Um jogo se repete inúmeras vezes com tempo e espaço
próprios, não tendo um momento ou uma jogada igual a outra, mas preserva características
próprias, enquanto que a brincadeira , principalmente a dos animais, não obedece a um
regulamento rígido. Os animais brincam, mas só os homens jogam. O não morder, o não
54
machucar, estão mais próximos do instinto de preservação do que da noção de regras, visto
que os jogos envolvem esquemas mentais (técnicas e táticas) que a ciência ainda não
descobriu se fazem parte das estruturas cognitivas dos animais.
Brougére, pesquisando o sentido do termo jogo, adverte-nos que em francês “ jeu”
está associado à brincadeira e em português a atividades lúdicas com regras , enquanto que
o termo brincadeira em nossa língua remete-nos mais para atividades lúdicas infantis. Esta
noção apresenta-se adequada para o entendimento do uso do termo ‘jogo’ nesta pesquisa.
Desta forma, podemos nos referir tanto a jogo quanto a atividades lúdicas expressando,
assim, um mesmo sentido.
A abordagem nominalista do uso da palavra jogo expressa um relativismo que
autores como Huizinga, tentam dar conta da idéia de jogo apontando a variedade das
linguagens nas quais se encontram as diferentes noções de jogo. Uma só palavra pode,
então, ser tão restrita e ao mesmo tempo tão ampla. A investigação lingüística apresentada
por Huizinga não relativiza a noção de jogo e sim busca validá-la, como diz Brougère.
Sendo a língua um aspecto da cultura, o problema passa a ser menos lingüístico e mais
cultural.
A pluralidade de sentidos para o termo jogo, longe de impedir seu uso, possibilita
sua utilização dentro de um contexto explicitado, como é o caso da presente pesquisa.
Concepções históricas
Uma trajetória reflexiva sobre as implicações da ludicidade na formação de
professores e conseqüentemente em suas práxis educativas, nos leva a busca de caminhos
que exigem algumas visitações, revisões, construções e reconstruções teóricometodológicas.
55
Demarcarei, assim, alguns referenciais como perspectivas teóricas para início de
uma investigação reflexiva.
Da liberdade à moralidade
Para compreendermos o valor e a relevância do jogo na vida humana, torna-se
necessário entendermos o seu processo de desenvolvimento e sua origem.
Edgar Morin, autor francês de inúmeros estudos sociológicos que perpassam questões
culturais, políticas econômicas e históricas,
nos faz ver
que a trajetória do
desenvolvimento humano, desde a pré-história, torna-se uma ciência fundamental da
‘hominização’22,desde o aparecimento de novas espécies ao desaparecimento das
precedentes, levando o homem, através de caracteres fisiológicos e de complexificação
social, ao surgimento da linguagem e da cultura. Adquirimos um patrimônio de saberes,
know-how, crenças, e mitos transmissíveis através de gerações: “a hominização teve início
há milhões de anos e adquiriu um caráter não apenas anatômico e genético, mas também
psicológico e sociológico, para tornar-se cultural, a partir de um certo período. A
hominização resulta em num novo ponto de partida: o homem”(MORIN, 2004, p.39).
Compreendendo este homem como homo complexus, abordarei sua faceta lúdica.
Partindo-se deste contexto, sabemos que culturalmente o ato de jogar é tão antigo
quanto o próprio homem, fazendo parte da condição humana
que sempre manifestou
impulso para o jogo. (HUIZINGA,2004). Isto pode ser observado nas sociedades mais
arcaicas, pois, mesmo as atividades que visam às necessidades vitais primitivas são
assumidas com caráter lúdico. À medida que o homem primitivo foi desenvolvendo
habilidade para o trabalho é que sua ludicidade passou a ser controlada.
O homem, enquanto sujeito bio-psico-socio-cultural, se constitui de forma complexa em
múltiplos homos. Temos como exemplos o homo sapiens , o homo faber e o homo
ludens. Este último foi se perdendo na espécie humana em função da necessidade de
trabalho do homem. O homo sapiens, de racionalidade e sabedoria faz surgir o homo
faber, o homem ferramenteiro que extraiu da pedra (antes seu brinquedo) sua ferramenta
22
Processo de desenvolvimento humano nos aspectos bio-psico-sócio-culturais desde a sua gênese, passando
a ter não somente um aspecto anatômico e técnico, mas também ecológico, genético, etológico, psicológico,
sociológico e mitológico ( Morin, 2004)
56
de trabalho. O trabalho, assim, ocupou grande parte da ludicidade humana e o homo faber
derrotou o homo ludens. Cleomar Gomes assim se refere:
“Os homens só sabiam se exprimir, mas quando aprenderam a importância
do trabalho, impressa na palavra instrumento - uma coisa que serve para
outra coisa - deixaram de ser lúdicos, restringindo, de quebra, o seu
tempo de brincar”. (GOMES, 2003, p.9)
A criança nasce lúdica, sem noção do que seja trabalho, toda sua atmosfera é de
ludicidade, onde o prazer acompanha suas atividades espontâneas, fazendo parte da
etologia humana. Para a criança o homo ludens não sucumbiu. Os jogos e as brincadeiras
podem ter sofrido inúmeras transformações em diferentes contextos sociais, mas o prazer
de brincar e o impulso para jogar não mudaram.
“A ludicidade constitui um traço fundamental das culturas infantis.
Brincar não é exclusivo das crianças, é próprio do homem e uma das suas
actividades sociais mais significativas. Porém, as crianças brincam,
continua e abnegadamente. Contrariamente aos adultos, entre brincar e
fazer coisas sérias não há distinção, sendo o brincar muito do que as
crianças fazem de mais sério”. ( SARMENTO,2004, p.10)
Desde o homem primitivo até o advento das instituições educativas, as atividades
lúdicas perpassaram o contexto social e familiar de forma natural e espontânea. A evolução
do homem na sociedade é que vai aos poucos desprezando o lúdico, e o que é pior, o
associa ao ócio, como se este fosse pernicioso e miserável. Começa a se estabelecer o
tempo e o lugar para as atividades lúdicas, para as brincadeiras e para os jogos, cabendo à
escola grande responsabilidade sobre o uso deste espaço/tempo.
Assim, buscarei compreender, neste recorte histórico, como o lugar do homo ludens
no contexto social e como a brincadeira, o jogo e a ludicidade foram ora ganhando e ora
perdendo espaços no cotidiano infantil.
Philippe Ariès (1978), historiador francês, é um pesquisador da história social da
família européia que privilegiou seus estudos no período que vai do século XVI até o
século XVIII, onde a existência de fontes documentais mais ricas contribuiu para tal. Em
sua obra “História social da criança e da família” temos um panorama da evolução dos
jogos, principalmente, no capítulo “Pequena Contribuição à História dos Jogos e das
57
Brincadeiras”, onde o autor nos traz um relato histórico de grande importância, apontando
como a ludicidade envolvia o cotidiano da família e da sociedade.
Nas sociedades européias, a partir do século XV, analisada por Áries (1978), podese perceber que as relações sociais eram estabelecidas em nível de trocas afetivas e
comunicações que ocorriam fora da família, dando-se entre amigos; crianças e adultos;
mulheres e homens; amos e criados e em outras relações que eram manifestadas livremente.
Desta forma, o jogo aparece como facilitador destas relações por um longo período da
história da sociedade européia. Os jogos eram praticados com naturalidade em toda a
sociedade, independentemente da classe social e da faixa etária, fazendo parte do impulso
humano para o jogo.
A comunicação entre as crianças e os adultos, desde a Idade Média, provocava uma
aprendizagem que passou a ser um traço dominante até o século XVII, e principalmente nos
jogos, nos ritos, festas familiares e populares percebe-se este fenômeno: “era comum, do
século XIV ao XVII, o hábito de confiar às crianças uma função especial no cerimonial que
acompanhava as reuniões familiares e sociais, tanto ordinárias como extraordinárias”
(ARIÈS, 1978, p.98)
Esta oportunidade de trocas sociais era proporcionada por relações espontâneas,
indistintas de diferenças de idade ou classes sociais. O cotidiano era vivido em sua
plenitude.
Hoje, este estilo de trocas encontra-se reduzida em nossa sociedade, e a sociologia
moderna tenta compreende-las, onde quer que estas trocas se estabeleçam, mesmo que nas
atitudes mais banais de convívio humano.
A socialidade de todos os dias que Michel
Maffesoli (1984), sociólogo francês contemporâneo
nos apresenta, é o lugar onde a
potência social tenta se exprimir, cujo único sentido é o de viver junto, viver coletivamente.
Assim, compartilho com Nilda Teves Ferreira a idéia de que “É na nossa vida cotidiana de
contornos simbólicos intensos que o jogo se assume como um fenômeno sócio-cultural
impregnado e transpirado dos poros do homem moderno” (FERREIRA, s/d, p.2).
Para os homens da sociedade européia dos séculos passados, o jogo era pensado
como fenômeno natural vivido coletivamente que transpirava também nos poros dos
homens daquela época, ou melhor, de qualquer época e em qualquer sociedade.
58
Desde o século XV, já havia registros iconográficos de representações de crianças
brincando de balanço, cata-vento, cavalo de pau, pássaros presos a cordões e até bonecas,
permitindo-nos imaginar como eram estas brincadeiras. Estas atividades se mantêm até hoje
em diferentes culturas, apontando que os brinquedos e as brincadeiras atravessam e
permeiam a caminhada humana.
Dentre atividades como o canto e a dança, brincava-se de soldadinho de chumbo,
jogos de pelotas (bolas) e brinquedos em miniaturas, que, nesta ocasião, também eram
apreciados pelos adultos colecionadores.
Áries (1978) acredita num espírito de emulação23 que as crianças tinham na época,
ou seja, brincavam para viver as atividades do mundo dos adultos por meio dos brinquedos
em miniaturas. Na idade moderna as bonecas e os brinquedos em miniaturas passaram a
ser monopólio das crianças, e, no século XIX, então chamados de bibelôs, tornam-se
objetos de colecionadores nas vitrinas.
Percebe-se também que os pequenos
participavam dos rituais dos adultos e das
festas populares da mesma forma como os adultos brincavam com as crianças de jogos de
mímica, jogos de azar e de salão (cartas, dados, dentre outros). “Parece, portanto, que no
início do século XVII não existia uma separação tão rigorosa como hoje entre as
brincadeiras e os jogos reservados às crianças e os jogos dos adultos. Os mesmos jogos
eram comuns a ambos”. (1978, p.88).
As brincadeiras também faziam parte de rituais de caráter religiosos na sociedade
européia do século XVII, como nos aponta Ariès:
“Existia uma relação estreita entre a cerimônia religiosa comunitária e a
brincadeira que compunha seu rito essencial. Com o tempo, a brincadeira
se libertou de seu simbolismo religioso e perdeu seu caráter comunitário,
tornando-se ao mesmo tempo profana e individual. Nesse processo, ela foi
cada vez mais reservada às crianças, cujo repertório de brincadeiras surge
então como o repositório de manifestações coletivas abandonadas pela
sociedade dos adultos e dessacralizadas. (ARIÈS,1978,p.89)
Da idade média até o século XVII, percebe-se que as brincadeiras e o jogo, como
divertimento, ocupavam a vida social desde a infância até a idade adulta.
“As trocas afetivas e as comunicações sociais eram realizadas, portanto
fora da família, num meio muito denso e quente, composto de vizinhos,
23
Sentimento que incita a imitar ou a exercer outrem em merecimentos; estímulo; rivalidade.
59
amigos, amos e criados, crianças e velhos, mulheres e homens, em que a
inclinação se podia manifestar mais livremente. As famílias conjugais se
diluíram neste meio. Os historiadores franceses chamariam hoje de
“sociabilidade” essa propensão das comunidades tradicionais aos
encontros , às visitas, às festas. É assim que vejo nossas velhas sociedades,
diferentes ao mesmo tempo das que hoje nos descrevem os etnólogos e das
nossas sociedades industriais”. (Idem, p.11).
Havia então, na sociedade européia, um contexto social que cumpria desde cedo a
função educativa pela vivência, pelo estar junto, até que a idade escolar se aproximasse
reorganizando as formas de convivência.
A idade dos sete anos na sociedade européia é fixada como marco de
transformações comportamentais pela leitura moralista e pedagógica do século XVII
(ARIÈS, 1978). A criança, ao entrar na escola ou começar a trabalhar, é chamada para a
responsabilidade. A escola substitui a aprendizagem como meio de educação e a criança se
afasta do adulto num processo que o autor denominou de enclausuramento, ou seja, a
escolarização limitou as trocas sociais onde o contato com a vida adulta ficou reduzido.
Foram sendo atribuídos aos jogos de salão, de cartas, de dados, jogos de azar e a dinheiro
um valor moral de negatividade, principalmente para os representantes da Igreja e para os
educadores no decorrer dos séculos seguintes, pois estes eram destituídos de sacrifício para
o ganho financeiro. Assim, ganhava-se dinheiro fácil. Este fato afetou diretamente as
práticas dos jogos, mas, por mais que um cunho moralista estivesse presente na educação
dos pequenos, eles não abandonavam os jogos e brincadeiras, mostrando que a necessidade
do lúdico é mais forte que as regras sociais. O homo ludens persiste em habitar o homo
complexus e o homo faber tenta manter o convívio com o homo ludens.
Esta transformação na ocupação do lugar social da criança levou as famílias
européias à criação de laços de afeição entre os cônjuges. Pais e filhos passaram a
caracterizar um novo quadro de família com preocupações quanto à educação,
diferentemente da composição anterior que incluíam diversos familiares com diferentes
graus de parentesco vivendo numa mesma morada, onde se aprendia e se ensinava
naturalmente. Portanto, a família passou a se organizar em torno da criança, tirando-a, até
então, do anonimato. Este processo originou um movimento de moralização promovido
pelos reformadores educacionais católicos ligados à Igreja, às leis e ao Estado.
60
A distinção entre trabalho e lazer começa a acentuar-se, desde então, e a
desvalorização dos jogos, como elemento pertencente ao cotidiano tanto do adulto quanto
da criança, começa a ser percebida. Neste sentido, o homo ludens perde terreno para o
homo faber, refletindo-se no contexto educativo que julga, na maioria das vezes, as
atividades das disciplinas com conteúdos escolares como atividades sérias (trabalho para a
mente) e atividades de jogos como atividades recreativas (lazer para o corpo e para o
espírito), constituindo-se numa dicotomia
presente nos tempos modernos no âmbito
educacional.
O caráter que os jogos vão assumindo no processo de evolução da sociedade vai
relacionando-os ao divertimento, com espaço e tempo delimitados. A oportunidade do
homo ludens não sucumbir por completo, frente às exigências do homo faber, restringe-se
a um tempo/espaço próprios para a diversão e o lazer.
“Na sociedade antiga, o trabalho não ocupava tanto tempo do dia, nem
tinha importância na opinião comum: não tinha o valor existencial que lhe
atribuímos há pouco mais de um século. Mal podemos dizer que tivesse
omesmo sentido. Por outro lado, os jogos e os divertimentos estendiam-se
muito além dos momentos furtivos que lhes dedicamos: formavam um dos
principais meios de que dispunham uma sociedade para estreitar seus laços
coletivos, para se sentir unida”. (ARIÈS,1978, p.94)
Com relação aos jogos, que ocupavam lugar tão importante nas sociedades antigas,
podemos observar que, ao final do século XVIII, lhes são atribuídos valores morais, por
esta razão passam a ser controlados. Para Áries(1978) esta atitude tem dois aspectos
contraditórios:
“De um lado, os jogos eram todos admitidos sem reservas nem
discriminação pela grande maioria. Por outro lado, e ao mesmo tempo,
uma minoria poderosa e culta de moralistas religiosos os condenava quase
todos de forma igualmente absoluta, e denunciava sua imoralidade, sem
admitir praticamente nenhuma exceção. A indiferença moral da maioria e
a intolerância de uma elite educadora coexistiram durante muito tempo.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, porém, estabeleceu-se um
compromisso que anunciava a atitude moderna com relação aos jogos,
fundamentalmente diferente da atitude antiga”. ( Idem, p.104)
Surge, assim, um novo sentimento da infância com uma preocupação até então
desconhecida de preservar sua moralidade e também de educá-la, sendo proibidos os jogos
maus e reconhecendo-se os jogos bons. Mas quais seriam os bons e os maus jogos? Ariès
61
nos ajuda nesta compreensão. Os jogos de azar e a dinheiro passavam a ser considerados
perigosos e sem valor moral, atribuídos principalmente pelo clero e pelos moralistas
conservadores da época, pois proporcionavam uma renda que não era derivada do trabalho.
Os jogos bons tendiam para o desenvolvimento motor da criança. No século XVII os jogos
de exercício ou de movimentos físicos são apreciados como recreativos e aceitos como
relaxamento das demais atividades escolares, como alívio do trabalho e justo repouso. A
adequação dos diferentes tipos de jogos à capacidade física e intelectual das crianças foi
sendo motivo de preocupação dos educadores deste período. Trata-se dos jogos que,
posteriormente, passaram a compreender o objetivo principal da educação física, cujo
caminho começava a se trilhado a partir das raízes européias (SOARES, 2001).
No final do século XVIII, além dos jogos motores (bons) serem valorizados,
sobretudo pela área médica, passam a ter valor formativo, pois o caráter disciplinador
contemplaria as exigências de um exército forte em situações de guerras. Desta forma, os
jogos passam a fazer parte das propostas educativas por proporcionarem o bem estar físico
e moral.
“No fim do século XVIII, os jogos de exercícios receberam uma outra
justificativa, desta vez patriótica: eles preparavam os rapazes para a
guerra. Compreenderam-se então os benefícios que a educação física
podia trazer à instrução militar. Nesta época, que assistiu ao nascimento
dos nacionalistas modernos, o treinamento de soldados tornou-se uma
técnica quase científica” ( ARIÈS,1978, p.113).
Esta foi uma das mais fortes marcas na área de educação física brasileira, cujos
jogos no interior das escolas surgem como atividades de cunho moral, disciplinador e
formador de corpos saudáveis. Esta evolução foi acompanhada pela preocupação com a
saúde, a moral e o bem comum, onde jogos de movimento corporal contemplavam os
interesses educativos bem mais do que os jogos de salão. Este foi um legado percebido até
hoje em concepções sobre a educação física no contexto educacional, principalmente em
suas práticas por meio de jogos.
A burguesia européia que começa a surgir no século XVIII, tende a abandonar os
jogos tradicionais de salão porque os nobres passam a evitar se misturar com os plebeus e,
principalmente, distrair-se com eles. Esta mentalidade, no entanto, segundo Áries (1978),
não conseguiu se impor completamente, só depois da consolidação da substituição da
62
nobreza pela burguesia, no decorrer deste mesmo século, é que se percebe de fato este
fenômeno.
Uma grande parte dos jogos antigos passou gradualmente para o repertório dos
jogos infantis e populares na medida em que a burguesia os abandonava. A classe burguesa,
no entanto, retoma o jogo no século XIX valorizando-o pelo esporte, ou melhor, pelas
diferentes modalidades desportivas que apareceram na época, principalmente na Inglaterra.
A educação física passa a ser a própria expressão física do capitalismo que surgia,
integrando a construção de uma nova sociedade calcada nos ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade, criando-se o que Soares (2001), designa por ‘social biologizado’24. O papel
que o jogo passa a tomar lhe confere um aspecto de frivolidade e lazer que, por sua vez, é
necessário para o espírito, para o descanso e para o melhor funcionamento orgânico.
Da moralidade à racionalidade
Como podemos observar, os jogos fizeram parte das sociedades antigas de forma
espontânea e se naturalizaram como forma de rituais pertencentes às diferentes classes
sociais e a diferentes idades. Não havia preocupação educativa, pois o aprendizado dos
pequenos em diferentes aspectos se fazia em conformidade com as práticas sócias.
O campo educacional, atendendo a uma visão positivista, começa a se estabelecer e
coloca o homem sob novas bases, onde o cuidado refere-se igualmente aos aspectos
mentais, intelectuais, morais e físicos. O jogo, no contexto social, vai, com isto, adquirindo
um caráter profano enquanto prática recreativa, livre e espontânea que o remete ao nãoracional. Sua prática, mesmo que limitada aos jogos motores, se compartimentaliza no
campo da educação física, não sendo abandonado por completo no interior da escola.
Valoriza-se, desta forma, seu caráter motor e moral enquanto prática desportiva e atividade
física sistematizada.
24
O homem biológico passa a ser o centro da nova sociedade exigindo leis próprias para o mundo físico e o
humano, devendo a ciência cumpri-las. (Soares, 2001)
63
O desenvolvimento das ciências matemáticas, no final do século XVII, contribuiu
também para uma nova mentalidade com relação aos jogos, pois passam a ser aceitos com
reservas por seu valor intelectual, embora continuem sendo entendidos como pertencentes
ao mundo do ócio.
Duflo (1999) é mais um dos autores que
nos oferece dados importantes
na
compreensão da trajetória social dos jogos, muito embora seus estudos estejam mais
voltados para os jogos que os moralistas da sociedade européia do século XVIII
denominavam de ‘jogos maus’ ( jogos de sorte, apostas e disputas), mas que pertenciam
tanto ao contexto social quanto ao educacional.
As citações históricas que apresento a seguir estão na obra de Duflo (1999) e
nortearão nosso entendimento sobre as diferentes concepções que o jogo veio adquirindo ao
longo da história.
As noções sobre jogos nos séculos passados deixaram suas marcas através de alguns
pensadores clássicos que Duflo (1999) resgata para compreensão do desenvolvimento do
jogo no contexto social. Aristóteles, por exemplo, entende que o jogo não é um fim em si
mesmo, mas uma atividade de descanso para compensar o tempo de trabalho25. Este
pensador teve, sem dúvida, um papel muito importante para o desenvolvimento da ciência
no lado ocidental do mundo. Seus trabalhos constituem quase uma enciclopédia do
pensamento clássico pela profundidade e variedade de seus conhecimentos que continham
escritos sobre lógica, filosofia, física, astronomia, biologia, psicologia, política e literatura.
Sua concepção de jogo é um norteador para reflexão de posteriores pensadores.
A felicidade, para este filósofo, é um ato ao qual não falta nada, sendo o jogo uma
das atividades que promove a felicidade. “O que procura, com efeito, aquele que joga,
senão o prazer do próprio jogo? Eis uma ação que é desejável em si: a causa final do jogo
é o próprio jogo”. (apud DUFLO,1999)
Jogos e brincadeiras nas escolas sempre estiveram associados ao divertimento que,
por sua vez, é associado ao prazer. Neste sentido vamos ao encontro do pensamento
aristotélico quando julga que ao nos divertirmos alcançamos a felicidade necessária à
plenitude humana.
25
Texto Ética a Nicômaco,X,6.
64
Tomás de Aquino, filósofo e teólogo italiano do século XIII, seguidor de Aristóteles
e Santo Agostinho, já apontava que o jogo tem dupla positividade: pertence ao domínio do
repouso necessário ao espírito e leva o indivíduo à alegrar-se, pois trata-se de uma atividade
agradável. Para ele, o jogo deve ser praticado comedidamente, pois poderá passar do plano
da recreação para o da ocupação que tenderá ao aniquilamento do homem. Pelo vício o
homem torna-se “uma presa fácil da magia do ato de jogar. O que começa pelo lúdico,
pelo prazer,
alimentado pelo sonho, pelo desejo, pode transformar-se em vício”.
(FERREIRA, s/d, p.4)
Mas qual o limite do sonho humano? Como controlar os desejos do homem? Tomás
de Aquino acreditava que o jogo cumpre sua função se não for praticado em excesso, daí a
necessidade de auto-controle em sua prática para não levar o sujeito a angústia e ao
desprazer. Mas como separar e controlar a emoção e a razão quando a atividade torna-se
prazerosa ou desafiante? Qual a medida deste controle? Estaria a escola partilhando dos
princípios de Tomás de Aquino ao considerar o jogo apenas relaxante e recreativo? Faria
ela restrições às atividades de jogos por receio de embotar em seus alunos valores morais
reprováveis socialmente? Marcas de um velho tempo nos novos tempos, e só buscando um
outro paradigma para olhar o jogo poderemos compreender seus sentidos para as pessoas.
Uma das observações que podemos fazer é que o tempo do jogo e o tempo das
demais atividades, de um modo geral, aparecem de forma compartimentalizada no interior
da escola, onde a hora de estudar e a hora de brincar têm tempos distintos. Os pensamentos
de Aristóteles e Aquino são contemplados por esta lógica. O jogo deve ser controlado, mas
é necessário para descanso e alegria das crianças. Para Aquino “ É preciso distinguir não só
os jogos bons dos maus, mas também o bom e o mau uso do jogo”.(apud DUFLO, 1999,
p.21)
Gottfried Wilhelm Leibniz, pensador alemão do final do século XVII e início do
XVIII, dedicado às teorias matemáticas que dominaram o pensamento social do século
XVII, acreditava que as pesquisas desta área provocavam uma reavaliação intelectual do
jogo: “ muitas vezes tenho observado que os homens nunca são mais inteligentes que em
seus divertimentos, o que torna os jogos dignos do interesse dos matemáticos , não por eles
mesmos, mas pela arte de inventar” (Idem,p.27) Com isto Leibniz dá ao jogo uma
dignidade antropológica, da qual alguns pensadores tirarão partido nos séculos seguintes.
65
Com esta espécie de legitimação, o jogo tornou-se objeto do campo científico, e no
rastro de Leibniz, segue Blaise Pascal, matemático francês do mesmo século, inventor da
primeira calculadora aritmética, que dedicado aos jogos de dados, conduz-se ao estudo das
probabilidades matemáticas que ele denominou Aleae Geometria (Geometria do Acaso).
Para este cientista, não interessava fazer juízo de valor sobre o jogo, mas sim compreender
porque jogam e que sentido tem o jogo para quem joga.
Não apenas como cientista Pascal investiga o jogo e os jogadores, mas, sobretudo,
como observador da condição humana. A teoria de Pascal sobre divertimento pauta-se na
concepção sobre o movimento humano. Para ele, o divertimento é a paixão pelo movimento
e o repouso completo leva o indivíduo à morte. O homem que se diverte foge das
infelicidades da vida, se envolve num outro movimento para si mesmo em busca do prazer
e da própria felicidade. O jogo é motivado pelo divertimento que pode gerar, ele é
entretenimento no mundo moderno. O caráter recreativo do jogo, por esta concepção,
prevalece como compensador das demais atividades cotidianas.
Neste sentido ‘viver o
jogo’ é viver um outro tempo que escapa da realidade. Nos momentos de transgressão no
mundo do lazer, o jogador encontra uma saída para as limitações da vida real e a saída se
alimenta de sonhos, de desejos e de fantasias que o afastam da racionalidade socialmente
desejável.
Assim como os jogos de sorte, os jogos de estratégias também são valorizados no
contexto sócio-histórico do século XVIII. Temos, como maior exemplo, o jogo de xadrez26
que acreditava-se
desenvolver mecanismos mentais e estratégias úteis em manobras
militares. Hoje, os jogos de estratégia são valorizados por despertarem o jogador para o
raciocínio, a inventividade, a criatividade e a capacidade de resolução de problemas, por
esta perspectiva a escola passa a acatar, de certa forma, os chamados jogos educativos.
Até mesmo os princípios de transgressão foram pensados também a partir dos jogos
no século XVIII. Para os pensadores da época, era benéfico pensar e saber agir perante o
desrespeito às regras. Em Duflo (1999), encontramos o princípio de trapaça no jogo
veiculado por alguns pensadores do século XVIII: “De maneira geral, o jogo é uma escola,
26
Segundo Santos e Araújo ( 2003), o jogo de xadrez é milenar . foi criado na Índia, passou pela Pérsia e pela
Arábia, chegando a Europa pelos mouros. Modificou-se as formas, as peças de jogar e os movimentos destas ,
incorporando-lhe aspectos dessas diferentes culturas ( In FERREIRA COSTA, 2003)
66
pois pressupõe e estimula a atenção, qualidade essencial do espírito inventivo que só o é
porque é primeiro espírito atento” (Idem, p.25).
Duflo (1999) aponta ainda que Johan Cristoph von Schiller, poeta e filósofo alemão
do século XVIII, fundador na história da noção do jogo em filosofia, faz de sua obra “As
cartas sobre a educação estética do homem” um marco importante e revelador do
princípio filosófico sobre ao jogo. Segundo Schiller, “ o homem não joga senão quando,
na plena concepção da palavra, é homem, e não é totalmente homem senão quando joga”
(apud DUFLO, 1999, p.77) A partir desta reflexão foi atribuído ao jogo um novo olhar
que gerou um marco significativo na história: o século XVIII foi o século das Luzes e das
teorias sobre jogo. Buscava-se o entendimento racional do jogo como manifestação social,
pois, até então, o jogo era discutido e investigado por seu valor ético e por aspectos
epistemológicos da questão, onde, paradoxalmente, incentivavam e reprimiam suas práticas
no contexto educacional e social em função de seus valores, ora de divertimento, ora como
formador moral e físico, colocado-o assim em dois pólos distintos, independentemente do
tipo de jogo que se queira pensar.
Schiller (apud DUFLO, 1999) eleva a noção de jogo a um grau, até então,
inigualável. Na vertente antropológica o jogo não deve ser questionado apenas por possuir
um sistema de regras e estratégias, mas, sobretudo, enquanto fenômeno que implica num
comportamento de impulso lúdico, o que Schiller (idem) chama de tendência ao jogo e
que posteriormente Huizinga (2004) veio chamar de instinto para o jogo, sendo que
Schiller não considerava esta tendência como um instinto.
Não podemos dizer, segundo Schiller, que encontramos na humanidade a tendência
ao jogo, mas sim deduzir que ela existe a partir de uma exploração antropológica ao longo
de séculos. Entendo que o jogo é parte da condição ontológica do ser humano, sendo criado
pelo homem para atender suas necessidades de ludicidade, lazer e escape. O homo ludens
está compreendido no homo complexus. Na conciliação entre a razão e a sensibilidade
humana surge a tendência ao jogo, como julga Schiller
“O que se passa aqui é o pensamento de uma relação possível que não seja
simplesmente de exclusão entre a sensibilidade e a razão , entre a
passividade e a liberdade, a forma e a matéria, que cria um ser humano
total , livre em sua sensibilidade e sensível em sua liberdade, um ser
humano que queira a forma e seu conteúdo sensível, sem relação de
67
assujeitamento de um ao outro, mas em relação de harmonia”. (Idem,
p.74)
Na visão de Schiller, o jogo é síntese livre e o trabalho é disciplinar e analítico. O
jogo é harmonia entre a beleza e o equilíbrio, tanto para o físico quanto para o espírito
humano.
O caráter de lazer, de divertimento, de seriedade e de trabalho, de Aristóteles a
Schiller, vai dando ao jogo um novo estatuto no campo educacional.
Para muitos docentes, o jogo na escola é um momento de lazer e suas regras
levam o aluno a uma certa disciplina que é imposta pelo próprio jogo, o que torna-se um
facilitador para incutir nas crianças princípios de normas sociais. No contexto educacional
da atualidade, os jogos têm caráter recreativo nas aulas de recreação, nas atividades de
recreio e muitas vezes, para alguns professores, nas aulas de educação física. Seu valor
educativo não é percebido para além do conceito de descanso, compensação das outras
atividades e valores físicos e morais. Mesmo quando o professor do ensino fundamental o
utiliza com um conteúdo didático, o faz de forma a alegrar a turma, de forma a motivar os
alunos para o aprendizado do conteúdo programado. As raízes da concepção do jogo da era
da racionalidade ainda estão presentes no contexto educacional da modernidade, e, para
tanto, é preciso um novo olhar para a descoberta dos sentidos do ato de jogar.
Da racionalidade à complexidade
Percorrendo as diferentes abordagens sobre a temática jogo, encontramos
referências oportunas de autores que servem como janelas abertas à visões diferenciadas do
tema. A partir de uma visão sócio histórica de Áries, de uma postura filosófica trazida por
Johan Huizinga, da associação de jogo e educação na abordagem de Gilles Brougère e
ainda com as propostas de classificação dos jogos apontadas por Roger Caillois, passarei
para uma proposta de abordagem compreensiva que relacione o jogo à teoria da
complexidade de Edgar Morin, compreendendo-o como um dos fenômeno sócio-culturais
que atravessa a existência humana em suas práticas cotidianas, que serão aqui
compreendidas também sob a ótica de Michel Maffesoli.
68
A polaridade prazer/trabalho
incutida aos jogos foi, ao longo dos séculos, se
acentuando no contexto educacional e levando professores
a entender estes momentos
como distintos, ou de forma enganosa, fazendo com que seus alunos acreditem que estão
brincando quando na verdade estão cumprindo tarefas por meio de jogos. Professores
passam a utilizar o jogo como atividade, mas com que sentido? Uma das maiores
observações que tenho feito é que o tempo do jogo e o tempo das demais atividades, de um
modo geral, têm aparecido de forma compartimentalizada no interior da escola, onde a
hora de estudar e a hora de brincar têm tempos distintos, ou, quando não, para estudar de
forma prazerosa é preciso brincar, surgindo assim os jogos educativos, que sendo uma
tarefa ‘mascarada’, cumprem com sua finalidade de transmissão de um conteúdo. O caráter
sério, não-sério mescla-se de tal forma que torna-se difícil apreender quando se está
fazendo uso de uma ou outra intenção. Os sentidos dos jogos passam a ser, segunda esta
concepção, divertir os alunos enquanto executam uma atividade programada, ou, enquanto
recreação, compensá-los das exigências das tarefas escolares. Abre-se espaço desta forma
para os jogos didáticos e para as atividades de recreação.
Compreendo que, para além de se atribuir funções e objetivos para o jogo, é preciso
interpretá-lo como fenômeno que revela a atitude lúdica do homem. Envolvido por regras,
acasos, competição, simulacros e outras tantas instâncias ligadas à razão e a emoção, o jogo
faz parte das atividades humanas, principalmente infantis, sendo assim pertencente ao
campo educacional. Escola também é espaço/tempo de jogo. O jogo é campo das fruições
do homem, tem sentido de evasão do real, permitindo aos jogadores vivenciarem um
outro tempo/espaço, fazendo
valer a liberdade e a sua criação. Vivido como em um
‘lugar outro’ (Huizinga,2004), fora da mundanidade, o espaço do
jogo assume uma
dimensão plena de escape como nos faz ver Ferreira:
“O jogo para o ser humano tem características próprias onde
imaginação/razão/emoção norteiam suas ações. Talvez seja uma
das funções primordiais do lúdico para o homem: a evasão da
realidade; um lugar privilegiado de tensão onde emergem
acontecimentos imprevisíveis”.( FERREIRA,s/d, p.3 )
Na concepção de Brougère, o jogo se apóia na realidade para fazer dela outra. É
criado um mundo imaginário levado a sério e com investimento de afetos. O jogo é um
devaneio para aquém da realidade. O jogo é alimentado pelo desejo que acaba, por sua vez,
contribuindo no desenvolvimento da criança, educando-a para crescer e preparando-a para a
69
realidades futuras. O jogo é analisado pelo que ele gera e não por si mesmo. Para além de
se analisar o jogo é preciso que se analise o ato de jogar.
Huizinga (2004) nos aponta algumas características, para ele fundamentais no jogo:
o fato de ser livre; ser uma evasão da vida real; situar-se em certo limite de tempo e espaço
e criar a ordem. A competição, as regras, a tensão, a incerteza e o acaso também fazem
parte de suas reflexões, o que faz com que sua obra torne-se um referencial importante na
relação jogo/educação. Para este autor "A criança joga e brinca dentro da mais perfeita
seriedade, que a justo título podemos considerar sagrado." (Idem, p. 11). Estando o jogo
intrínseco a criança, é exteriorizado pelas características extrínsecas que os jogos possuem.
Fazendo parte do crescimento e do desenvolvimento do indivíduo, o jogo é inerente ao ser
humano, sendo apresentado pelo autor uma nova designação para a espécie humana:
"Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão
Homo ludens [!] merece um lugar em nossa nomenclatura”.(HUIZINGA,1996, prefácio).
Caillois é autor de diversas obras que incidem sobre a criação artística, literária e os
mitos sociais, com grandes contribuições nas reflexões sobre Imaginário e Imaginação
Simbólica no Círculo de Eranos ( Ascona- Escócia)27. Suas obras mais importantes datam
do final da primeira metade do século XX28. Este pensador francês faleceu em 1978 e nos
deixou um precioso registro sobre a temática jogo cujo objetivo principal é a compreensão
do jogo como fenômeno sócio-cultural.
Para o autor, apesar de inúmeros entendimentos, o jogo em si se relaciona aos
princípios de limite, liberdade e invenção, remetendo-nos à idéia de facilidade, risco ou
habilidade contribuindo para uma atmosfera de descontração e diversão, infalivelmente. O
jogo opõe-se ao trabalho e ao caráter sério da vida real, portanto sendo considerado uma
atividade frívola, que nada produz e que nada deixa de conseqüências na vida real. Para
Caillois, este descompromisso e indiferença para com o jogo possibilitam a entrega do
homem a tal atividade.
“Assim, desde o primeiro instante, cada um de nós se convence de que o
jogo não passa de uma fantasia agradável e de uma vã distração, quaisquer
27
Ver sobre o Círculo de Eranos a apresentação da obra Variações Sobre o Imaginário de Alberto Filipe
Araújo e Fernando Paulo Baptista ( orgs.) - Instituto Piaget, 2003
28
São obras de Roger Caillois com datas da primeiras edições: Os jogos e os homens( 1958), O mito e o
homem ( 1938) e O homem e o sagrado ( 1950)
70
que sejam o cuidado que nele se ponha, as faculdades que nele se
mobilizem, o rigor que ele exija”. ( CAILLOIS, 1990, p.9)
O autor nos adverte que mesmo sendo o jogo considerado divertimento e atividade
menor, inúmeros autores de diferentes áreas e diferentes épocas fizeram do jogo uma das
molas principais do desenvolvimento de manifestações culturais em cada sociedade com
repercussões na educação moral, ou seja, atribuíram-lhe valores culturais e educacionais.
O jogo aparece como uma noção complexa, e Caillois tenta compreendê-lo da
seguinte forma:
“Todo jogo é um sistema de regras que definem o que é e o que não é do
jogo, ou seja, o permitido e o proibido. Estas convenções são
simultaneamente arbitrárias, imperativas e inapeláveis. Não podem ser
violadas sob nenhum pretexto, pois, se assim for, o jogo acaba
imediatamente e é destruído por esse facto. Porque a única coisa que faz
impor a regra é a vontade de jogar, ou seja, a vontade de a respeitar”.
(idem ,p.11)
O ato de jogar remete a idéia de movimento onde fica implícita a liberdade que
deve permanecer no seio do próprio rigor do jogo para que ele conserve sua eficácia. Estar
no jogo é estar livre e ao mesmo tempo preso a seu mecanismo “ o que se designa por jogo
surge, desta vez, como um conjunto de restrições voluntárias, aceites de bom grado e que
estabelecem uma ordem estável, por vezes uma legislação tácita num universo sem lei”
(Idem,p.12). Os limites do jogo estimulam a faculdade inventiva dentro destes próprios
limites. O jogo é o campo para a criatividade que objetiva alcançar a vitória, o triunfo,
dependentes de fatores aleatórios (sorte ou azar) e de combinações imperiosas.
O jogo é tensão dos opostos, onde há uma relação que se mantém entre um e outro,
onde “essas estruturas, essas concorrências são, igualmente, modelos para as instituições
e para os comportamentos individuais”. ( Idem, p.13). No próprio âmbito escolar esta
tensão se faz presente fazendo com que o jogo seja ora aceito, ora negado, dependendo da
intencionalidade pedagógica que lhe queiram atribuir.
Para Caillois, o jogo não é aprendizagem para o trabalho. Por mais que as crianças
brinquem simulando situações da vida dos adultos, não significa necessariamente uma
preparação para tal. O jogo “introduz o indivíduo na vida, no seu todo, aumentando-lhe as
capacidades para ultrapassar os obstáculos ou para fazer face às dificuldades”
(Idem,p.16).
71
Estas análises remetem à compreensão de que o jogo leva-nos a descoberta de nós
mesmos e a um brotar de atitudes que se revelam para nós e para o corpo social que nos
cerca.
Se a vida é um jogo, é no jogo que valores para a vida são vividos pelos jogadores.
A complexidade humana se potencializa de forma prazerosa, contribuindo então para seu
desenvolvimento bio-psico-socio-cultural.
Sendo o jogo um estado de efervescência, fica condenado à função de não produzir
nada enquanto a ciência e o trabalho capitalizam resultados que muito ou pouco
transformam o mundo. Se nada produz, se é só divertimento, o que de atrativo há no jogo?
Por que tantas tentativas de definições, noções e classificações? Por que é uma prática que,
individual ou coletivamente, não se extermina? Caminho na busca de seus sentidos
acompanhada das idéias de Caillois.
“Numa palavra, o jogo assenta indubitavelmente no prazer de vencer o
obstáculo, mas um obstáculo arbitrário, quase fictício, feito à medida do
jogador e por ele aceite. A realidade não tem estas atenções”. (1990, p.18).
Caillois, ao elaborar sua tese sobre jogo, passa por definições e classificações que
poderão contribuir na busca do nosso entendimento sobre os sentidos do jogo no contexto
educacional e socioantropológico.
Para definir jogo o autor recorre a Johan Huizinga (2004), fazendo-lhe grandes
elogios e diversas críticas. Reconhece sua presença e influência como abertura fecunda para
pesquisas e reflexões, assim como valoriza a importância dada por este autor ao papel do
jogo no próprio desenvolvimento civilizacional e de sua predominância nas manifestações
essenciais de toda e qualquer cultura.
A falha apontada por Caillois na obra de Huizinga , Homo ludens, é que esta omite a
descrição e a classificação dos próprios jogos, o que remete a idéia de que todos respondem
as mesmas necessidades e exprimem a mesma atitude psicológica. “ a sua obra não é um
estudo dos jogos, mas uma pesquisa sobre a fecundidade do espírito do jogo no domínio da
cultura e, mais precisamente, do espírito que preside a uma determinada espécie de jogosos jogos de competição regrada”. (CAILLOIS, 1990, p.23)
Para uma melhor compreensão da crítica de Caillois a Huizinga transcreverei as
definições deste autor usadas como base investigativa:
72
“Sob o ponto de vista da forma, pode resumidamente, definir-se jogo
como uma ação livre, vivida como fictícia e situada para além da vida
corrente, capaz, contudo, de absorver completamente o jogador; uma ação
destituída de todo e qualquer interesse material e toda e qualquer utilidade;
que se realiza num tempo e num espaço expressamente circunscritos,
decorrendo ordenadamente e segundo regras dadas e suscitando relações
grupais que ora se rodeiam propositadamente de mistério ora acentuam,
pela simulação, a sua estranheza em relação ao mundo habitual”.
(HUIZINGA,2004 p. 16 )
Passemos à outra definição:
“O jogo é uma ação ou uma atividade voluntária, realizada dentro de
certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras
livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim
em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de
uma consciência de ser diferente da vida cotidiana”. (Idem,, 2004, p.33)
Na opinião de Caillois, a definição dada por Huizinga para o jogo é fecunda por ter
detectado a afinidade existente entre o jogo e o sagrado, ou o mistério, no entanto, não pode
esta relação estabelecer-se como definição. “Tudo o que é naturalmente mistério ou
simulacro está próximo do jogo. Mas é também preciso que o componente de ficção e de
divertimento prevaleça, isto é, que o mistério não seja venerado e que o simulacro não seja
início ou sinal de metamorfose e de possessão”.(CAILLOIS, 1990, p.24)
Além do que, continua Caillois, a definição de Huizinga para jogo é demasiado
ampla e demasiado restrita, apresentando-o como excludente de apostas por tratar-se de
uma ação destituída de qualquer interesse material. Caillois se contrapõe exemplificando:
“...as casas de jogos, os cassinos, os hipódromos, as loterias que, para o
bem ou para o mal, ocupam precisamente uma parte importante na
economia e na vida quotidiana de vários povos, sob formas, é certo,
infinitamente diversas, mas em que a constância da relação azar e lucro é
assaz impressionante”.(Idem, p.24)
Todavia, Caillois aproxima-se do pensamento de Huizinga na definição de que o
jogo é uma atividade livre e voluntária, fonte de alegria e divertimento cujo jogador se
entrega espontaneamente por puro prazer podendo a qualquer momento optar pelo
abandono. Só existe jogo quando os jogadores querem jogar e jogam. Estes dois autores
concordam que “o jogo é essencialmente uma ocupação separada, cuidadosamente isolada
do resto da existência, e realizada, em geral dentro de limites precisos de tempo e de lugar.
73
Há um espaço próprio para o jogo” (CAILLOIS, 1990, p.26), portanto o domínio do jogo
é reservado, protegido, é um autêntico espaço.
Para Caillois, o jogo mesmo tendo regras e leis, substitui as leis da vida ordinária
cotidiana ocupando um espaço que, para Huizinga, é considerado como um ‘lugar outro’,
que permite uma atividade livre e incerta. A incerteza no jogo é que o alimenta. “A dúvida
acerca do resultado deve permanecer até o fim. Quando, numa partida de cartas, o
resultado já não oferece dúvida, não se joga mais, os jogadores põem as suas cartas na
mesa” (CAILLOIS,1990, p.27).
A previsibilidade de um resultado ou a discrepância de igualdades entre os
jogadores leva o jogo à perda da ludicidade. “ O jogo consiste na necessidade de encontrar,
de inventar imediatamente uma resposta que é livre dentro dos limites das regras. Essa
liberdade de acção do jogador, essa margem concedida à acção, é essencial ao jogo e
explica em parte, o prazer que ele suscita.” (Idem, p.28)
Caillios, essencialmente, define o jogo como uma atividade livre, cuja obrigação
levaria à perda da diversão; delimitada, pois tem limites de tempo e espaço previamente
estabelecidos; incerta, sem resultado prévio e dependente da liberdade de inventar do
jogador; improdutiva, por não gerar bens e conduzir a uma situação idêntica ao início da
partida; regulamentada, pois tem uma única legislação que conta e é fictícia, por ser uma
outra realidade, ou seja uma irrealidade em relação a vida normal. Trata-se, portanto, de
uma atividade complexa.
A infinidade de jogos de que se tem conhecimento que existam, segundo o autor,
dificulta um princípio de classificação, visto que apresentam aspectos tão diversos: jogos de
cartas, de destreza, jogos sociais, de competição ou de azar remetem a diferentes
possibilidades classificatórias. Caillois se deterá em quatro rubricas principais conforme a
predominância da competição, da sorte, do simulacro e da vertigem, chamando-as
respectivamente de agôn, alea , mimicry e ilinx .
Os jogos, como afirma Caillois, se inscrevem na esfera da paidia e do ludus,
entendendo-se que paidia é o estado de euforia, manifestação espontânea que leva o
indivíduo a flutuações de sentidos que são controlados pelo ludus, que pode ser entendido
como o elo norteador do jogo, a regra que controla a euforia. Desta forma, o ludus adestra
a paidia.
74
Podemos compreender melhor o que Caillios diz utilizando-nos das palavras de
Costa (1999)
“Os jogos transitam entre dois pólos, duas maneiras de jogar: a paidia e o
ludus. A paidia tende à diversão, à turbulência, às improvisação, às
proezas, às manifestações espontâneas do instinto do jogo e à expansão; o
caráter desregrado, inesperado, é a única razão de ser da paidia. Já o ludus
é complemento e adestramento da paidia, e propende a uma intenção
civilizadora dos comportamentos, à disciplinarização, à subordinação as
regras convencionais. O ludus tende à satisfação pela tranqüilidade, ao
autodomínio, à capacidade de resistir à fadiga, ao sofrimento”. (COSTA,
2000,p.115)
O ludus, assim como a paidia, não são categorias de jogo, mas sim maneiras de se
jogar. Neste sentido priorizarei a análise dos jogos no espaço escolar sob estas duas
categorias por sobressaírem e se aproximarem mais do contexto das aulas de recreação,
educação física e jogos na hora do recreio, cuja motivação é grande e os padrões de
comportamento impostos para quem joga são desejáveis.
Para Caillois, todas estas rubricas (agôn, alea, mimicry e ilinx) se inserem no
domínio dos jogos, mas, no entanto, não abrangem por inteiro todo o universo do jogo e
ainda pode-se hierarquizá-las, simultaneamente entre pólos antagônicos: paidia e ludus.
“Numa extremidade, reina, quase absolutamente, um princípio comum de
diversão, turbulência, improviso e despreocupada expansão, através do
qual se manifesta uma certa fantasia contida que se pode designar por
paidia. Na extremidade oposta, essa turbulência alegre e impensada é
praticamente absorvida, ou pelo menos disciplinada, por uma tendência
complementar, contrária nalguns pontos, ainda que não em todos, à sua
natureza anárquica e caprichosa: uma necessidade crescente de a
subordinar a regras convencionais, imperiosas e incômoda, de cada vez
mais a contrariar criando-lhe incessantes obstáculos com o propósito de he
dificultar a consecução do objetivo desejado. Este torna-se, assim,
perfeitamente inútil, uma vez que exige um número sempre crescente de
tentativas, de persistência, de habilidade ou de artifício. Designo por ludus
esta segunda componente”. (CAILLOIS, 1990,p.32)
Paidia e ludus , mesmo estando em pólos antagônicos, como aponta Caillos,
tornam-se complementares e concorrentes, aproximando-se do paradigma da complexidade
de Morin29.
29
No Primeiro tempo deste trabalho apresento o paradigma da complexidade de Edgar Morin.
75
O autor tentou, em cada rubrica da classificação de jogos, realçar as semelhanças e
diferenças em diversos jogos, independentemente de serem destinados às crianças ou aos
adultos, cabendo um aligeiramento nesta classificação que permita combinações de
rubricas, podendo cada uma delas se encontrar, por seu termo, associada a uma das outras
três. O autor a isto denomina de ‘teoria alargada dos jogos’.
Passemos agora à compreensão de cada uma das rubricas apresentadas por Caillois.
- AGÔN : São jogos sob a forma de competição com igualdades de oportunidades criadas
para que os jogadores se defrontem nas mesmas condições ideais, mas sujeitas
incontestavelmente a dar o triunfo a um vencedor.
Trata-se de uma rivalidade que se baseia em qualidades como rapidez; resistência;
vigor; memória; habilidade; engenho, exercendo-se em limites definidos e sem auxiliar
exterior. É dada a igualdade na busca da desigualdade. Um jogador deverá se sobrepor ao
outro em vantagem. Ressalta o autor que é uma igualdade de oportunidade absoluta, mas
que, “ por mais cuidadosos que sejamos ao criá-la, uma igualdade absoluta nunca é
inteiramente realizável.” (Idem, p.34)
O que caracteriza a prática do agôn é que “o interesse do jogo é para cada um dos
concorrentes o desejo de ver reconhecida a sua excelência num determinado domínio”
(Idem,p.35). O agôn exige atenção persistente, treino apropriado, muito esforço e vontade
de vencer que manifesta-se pelo mérito pessoal na tentativa de garantir o melhor resultado.
Para a criança, segundo o autor, jogar é agir, por esta razão ela se distancia mais dos
jogos de alea e se aproxima dos jogos de agôn.
-ALEA: Para Caillois são os jogos baseados em clara oposição ao agôn.
“Alea, ao invés, surge como uma aceitação prévia, incondicional, do
veredicto do destino. Essa renúncia significa que o jogador confia numa
jogada de dados e que se limita a lançá-los e a ver o resultado. A regra é
ele abster-se de agir a fim de não falsear ou forçar a decisão da
sorte“.(Idem, p.98).
A decisão não depende dos jogadores e sim do destino para vencer o adversário. O
destino é o único artifício da vitória, o que significa que apenas o vencedor será bafejado
pela sorte.
76
Nesta rubrica, Caillois coloca os jogos como dados, roleta, loterias e outros, cujo
interesse do jogo é a arbitrariedade do acaso. O jogador é passivo face ao destino, não
fazendo uso de recursos como habilidade, inteligência ou força. “Limita-se a aguardar,
expectante e receoso, as imposições da sorte. Arrisca uma aposta”. (Idem, p.37). É uma
entrega ao destino. As habilidades naturais são abolidas e todos ficam submetidos ao acaso,
em pé de igualdades.
O autor explica que há casos que agôn combina-se com alea, onde há uma simetria
surgida entre estas naturezas sendo paralelas e complementares “Ambas exigem uma
equidade absoluta, uma igualdade matemática de probabilidades que, pelo menos, se
aproxima o mais possível de um perfeito rigor” (Idem, p.96). Alea e agôn, a este nível,
ocupam o domínio da regra. Neste exemplo combinatório de rubricas incluem-se jogos
como dominó, gamão e a maioria dos jogos de cartas. Podemos observar que esta é uma
combinação muito freqüente na maioria dos jogos escolares, mesmo que apareçam em
jogos que envolvam mais o esquema motor.
- MIMICRY: Para o autor, o que caracteriza os jogos de mimicry é sua entrada para um
universo imaginário. O jogo pode pautar-se, sobretudo, na evocação de um personagem
ilusório, na adoção de um respectivo comportamento.
“Encontramo-nos, então perante uma variada série de manifestações que
têm como característica comum a de se basearem no facto de o sujeito
jogar a crer a si próprio ou fazer crer aos outros que é outra pessoa.
Esquece, despoja-se temporariamente da sua personalidade para fingir
uma outra”. (Idem, p.40)
Nesta rubrica, a mímica e o disfarce são fundamentais. Na criança esta característica
manifesta-se pela imitação do adulto, de um herói, de uma personagem ou mesmo de um
animal. As brincadeiras de simulação do cotidiano, os brinquedos em miniatura são
condutas de mimicry. “Abrangem igualmente toda a diversão a que nos entregamos,
mascarados ou travestidos, e que consista no próprio fato de o jogador/actor estar
mascarado ou travestido, bem como nas suas conseqüências”(Idem, p.41)
O prazer é ser ou passar-se por outro, não abandonando o verdadeiro sentido de ser
ele próprio. É por isso que, por exemplo, por mais que a criança imite uma ave ao brincar
não desconhece as limitações de voar, portanto simbolizando o vôo. E como coloca
77
Caillois, a criança “sente-se a representar, sente-se obrigada a jogar o melhor possível, ou
seja, por um lado, com uma total correção, esforçando-se ao máximo para conseguir a
vitória” (Idem,p.96).
“A mimicry consiste na representação deliberada de um personagem, o
que facilmente se torna uma obra de arte, de cálculo e de astúcia. O actor
deve compor o seu papel e criar a ilusão dramática. É forçado a estar
atento e a manter uma presença de espírito contínua, exatamente como
quem disputa uma competição”. (Idem, p.98)
Para a criança, a identificação com um campeão constitui-se em mimicry, mesmo
que ela esteja na condição de espectadora e não de jogadora. É semelhante ao telespectador
se identificar com o herói de um filme que assiste.
A mimicry apresenta características de jogo como liberdade, suspensão da realidade
e espaço e tempo delimitado onde só as regras se mantém imperativas.
- ILINX: A característica desses jogos é à busca da vertigem que
“... consiste numa tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da
percepção e infligir à consciência lúcida uma espécie de voluptuoso
pânico. Em todos os casos, trata-se de atingir uma espécie de espasmo, de
transe ou de estonteamento que desvanece a realidade com uma imensa
brusquidão”. (Idem,p.43)
A perturbação é procurada com um fim em si mesma. Muitas brincadeiras infantis
têm esta característica de ilinx. Marcar o tempo para se manter o máximo possível
submerso na água, rolar num plano inclinado para ver quem chega primeiro, girar sobre um
dos calcanhares ou girar de braços esticados e mãos dadas com um colega sobre um dos
pés com a impulsão do outro (currupio), correr em fuga, são exemplos de brincadeiras
praticadas pelas crianças na busca da vertigem de forma competitiva como num jogo.
Pode ocorrer o ilinx também em brincadeiras não competitivas como em
brinquedos como o carrossel, balanço, tobogã, escorrega, montanha russa e outros. São
sensações e fruições que levam a um atordoamento ao mesmo tempo físico e psíquico.
“O essencial reside na busca deste distúrbio, desse pânico momentâneo
que o termo vertigem define e das indubitáveis características do jogo que
lhe estão associadas, ou seja, liberdade de aceitar ou de recusar a prova,
limites precisos e imutáveis, separação da restante realidade”.
(Idem,p..47).
78
Para
o
autor,
os
aspectos
fundamentais
do
jogo
são
identificáveis,
independentemente das rubricas a que se aproximem, por se tratarem de atividade
voluntária, convencionadas, separadas e dirigidas onde há gosto pelas regras na forma de
uma submissão teimosa.
A tendência para a competição conduz ao estabelecimento de regras. Algumas
brincadeiras infantis tornam-se jogos competitivos, principalmente no âmbito escolar onde
existem diversos parceiros com a mesma intenção, caracterizando a vocação social dos
jogos mencionada por Caillois.
“A maioria deles, efectivamente, sugerem pergunta e resposta, desafio e
réplica, provocação e contágio, efervescência ou tensão partilhada. Têm
necessidade de presenças cativas e aderentes. E é verdade que nenhuma
categoria de jogos escapa a esta lei. Até os jogos de azar parecem ter
maior atractivo no meio de uma multidão, para não dizer no meio da
confusão”. (Idem, p.61)
A partir destas exposições do autor, ao longo de sua obra, fica-nos a seguinte
pergunta: Como surgem as dimensões de agôn, alea, mimicry e ilinx nos jogos praticados
nas escolas? Parece-nos que aceita-se ou recusa-se a competição, a sorte, a mímica e a
vertigem em função dos princípios culturais e comportamentais estabelecidos por cada
sociedade, independentemente de serem a própria natureza dos jogos, o que de certa forma
impossibilita o reconhecimento do seu valor educativo em seus múltiplos aspectos.
O princípio de alea trazido por Caillois, como vimos, não pode ser desprezado, pois
segundo diferentes pensadores sobre jogos, a competição é a essência da grande maioria
dos jogos. O desafio, a vontade de superar-se a si e aos outros são atitudes intrínsecas a
natureza humana. Culturalmente a luta por melhores condições econômicas, políticas e
sociais acompanham o ser humano nas mais remotas formas de organizações, o que não
pode, desta forma, ser negado no interior do próprio jogo, visto que este está em
consonância com a cultura. O que devemos refletir é a forma como os diferentes tipos de
competição aparecem no interior da escola (e não só nas atividades de jogos), para,
conscientes disto, trabalhar a inclusão, as diferenças culturais, a solidariedade e outros
princípios que eliminam da competição o individualismo e o egocentrismo. Desta forma,
79
faz-se necessário a intervenção do professor nas atividades de jogos direcionando-as de
modo a tornar a competição algo positivo30.
Quanto a mimicry, o simulacro e as personificações de heróis, mitos e ídolos, ficam
mais próximos do ato de brincar de faz-de-conta31 do que da atitude de jogo, embora este
também a envolva, pois ser o melhor jogador, o ídolo da turma, amado e venerado é desejo
da grande maioria dos que jogam, levando-os a imitar ícones de alguns esportes. Vive-se
uma fantasia onde a representação é mola mestra.
A ilinx está mais presente em atividades de brincadeiras na escola que dependam de
um segundo elemento, normalmente o escorrega, o balanço e outros brinquedos que fazem
parte do parquinho, o que não elimina formas de competição que levam à vertigem e ao
pânico como forma de superação. Disputar quem consegue superar por mais tempo ou da
melhor forma uma situação de risco são atividades que atraem as crianças que, por sua vez,
podem levá-las ao simulacro, considerando-se o herói de tal sacrifício, um deus do jogo.
Conta-nos Caillois que o simulacro e a vertigem por muito tempo foram associados
ao universo alucinado e, no entanto percebe-se que na sociedade moderna há uma tendência
de se praticar atividades que façam fruir estas sensações. Refiro-me à busca por esportes
radicais que surgem em diferentes modalidades como montanhismo, canoagem, rafiting,
pesca submarina, saltos, corredeiras e outros32. No entanto, no interior da escola, os jogos
não valorizam estas sensações, talvez pelos riscos acidentais que elas possam provocar ou
por não se compreender, principalmente a vertigem, como pertencente a natureza humana,
associando-a ao não-racional, não-lógico.
A obra de Caillois permite-nos uma excelente entrada para a compreensão dos
sentidos dos jogos e das funções implicadas no ato de jogar, possibilitando-nos refletir
sobre a utilização dos jogos no contexto educacional. A classificação realizada por esta
autor não é definitiva nem fechada, nos remetendo a compreender o jogo por um paradigma
complexo (Morin) e como fenômeno sócioantropológico (Maffesoli) que perpassa o
cotidiano escolar nos alertando para a relação jogo/educação.
30
Vale ressaltar que hoje a competição é muito discutida, principalmente no âmbito da educação física
surgindo inúmeras propostas de jogos cooperativos que buscam sua eliminação. A este respeito, consultar
BROWN ( 1995), SOLER ( 2002) e CORREIA ( 2006)
31
Expressão usada por autores como B. Bettlhem (1988), Kishimoto (1993) e Winnicott (1971) que se
referem aos jogos de simulacros.
32
Diversos trabalhos de pesquisa no Programa de Pós Graduação de Educação Física da Universidade Gama
Filho vem abordando esta temática
80
Jogo e educação
Quando a educação é ligada ao jogo, é a própria maneira de pensá-lo que se
transforma profundamente. Por isso, não é possível haver interesse pelo jogo, na prática
pedagógica, se não houver informações sobre os fundamentos de tal associação.
Brougère (1998), autor francês mundialmente consagrado neste campo, faz uma
análise das diferentes formas de pensar a relação jogo e educação na tentativa de entender
esta relação e as noções que perpassam o meio educativo. Ele vai colocando-nos outras
questões instigantes para análise: “Todos aqueles que falam de educação e jogo falam da
mesma coisa? Qual o sentido real dessa associação? Como passamos da atividade do jogo
como atividade fútil à idéia de seu valor educativo? É possível conciliar essas duas visões
do jogo aparentemente opostas? (Idem, p.9). Para este autor, a relação jogo e educação
oscila constantemente entre a frivolidade e a seriedade, evidenciando um pensamento
paradoxal, nos remetendo às noções de sério e não-sério e jogo como brincadeira e /ou
trabalho. Ainda segundo o autor, “ A oposição jogo-trabalho que estrutura nossa
representação do jogo é encontrada operando em outro lugares além da linguagem
cotidiana. Com efeito, expressa-se em textos fundadores do pensamento ocidental”.(p.26).
Aponta, então, que desde o pensamento aristotélico a noção de jogo como oposição e
complementaridade do trabalho já se delineava, pois o jogo relacionado à exaltação da
criança, ao imaginário e ao artista passa a ser compreendido como espontâneo e natural,
levando-o pouco a pouco a ser considerado educativo, mas parece que nos tempos
modernos a lógica social subjacente ao termo ainda o mantém ligado à oposição ao trabalho
e à utilidade. Possivelmente a matriz deste entendimento venha do período em que o jogo,
por conta de um
pensamento racionalista provocado pelo avanço das ciências, foi
remetido ao caráter de fútil divertimento.
Percebe o autor que estamos diante de uma concepção complexa do que seja jogo,
visto a gama de significações diferentes que o rodeiam, sendo assim uma noção aberta e
passível de novas possibilidades de análise. Deparamo-nos com um paradigma que ora se
fixa em definições negativas em relação ao trabalho, à seriedade e à utilidade e ora
reivindica o sério ao associá-lo às atividades educativas. Esta é a tensão que circunda o
81
tema, segundo Brougère: “ Fiquemos por enquanto com a noção de que o jogo se expressa
socialmente sob o signo da frivolidade e da futilidade, e que essa dimensão não desaparece
totalmente sob o novo paradigma surgido no século XIX” (Idem, p.32).
O jogo passa a ser marcado por um duplo signo: frivolidade e aposta, traduzindo-se
no espírito humano de nossa sociedade. A Época das Luzes constrói este discurso científico
sobre o jogo que se reflete no termo jogar e jogo e em suas significações atribuídas nesta
época, mas o que vale para o autor é que
“...não se trata de se ocupar do que ele significa, mas ver, entre as
múltiplas ações e comportamentos aos quais remete, aquelas que são
objeto de uma elaboração do pensamento, de uma reflexão organizada,
aquelas que são assumidas pelo discurso, pelo conhecimento”. (Idem,
p.46).
O nosso sistema de analogias tem uma dependência histórica, que resulta em
nossas práticas sociais relativas ao jogo que, segundo Brougére, não são verdades absolutas
e eternas: ”Em suma, cada sociedade determina um espaço social e cultural onde o jogo
pode existir legitimamente e tomar sentido” (Idem, p.49)
Ainda que o jogo esteja associado à frivolidade, seu valor educativo tem sido
evocado no decorrer dos últimos dois séculos. A partir do pensamento romântico do século
XIX, o jogo passa a ser visto por seu valor educativo, o que Brougère chama de ‘ruptura
romântica’, ou seja, um novo olhar que rompe com o olhar anterior de divertimento e
frivolidade, trazendo um novo paradigma com uma nova concepção de criança e natureza
que passa a considerar o jogo uma atividade33. Até então, não se pensava no jogo com
intenção educativa e lhe era atribuído o caráter de frivolidade principalmente por conta dos
jogos de apostas (considerados como jogo por excelência) e que se caracterizavam como
atividades inúteis, até mesmo profanas e por vezes compulsivos34.
Brougère (1998) constrói um pensamento que associa jogo e educação e descobre
em tais atividades valores educativos, dando a estas um caráter sério, pelo menos para as
crianças. O que desencadeou esta mudança paradigmática foi o pensamento romântico e a
33
As idéias de J.J. Rousseau trouxeram ao jogo um novo estatuto no campo educacional. A este respeito ver
Colas Duflo, (1999) e Gilles Brougére, (1998)
34
Sobre jogos de apostas no século XVIII ver Duflo, (1999) e sobre jogos compulsivos ver Retondar,
(2004).
82
partir desta fundamentação, este autor apresenta três modos de estabelecer relações entre
jogo e educação:
1º - caráter recreativo e compensador das demais tarefas. “ o jogo é o relaxamento
indispensável ao esforço em geral, o esforço físico em Aristóteles, em seguida esforço
intelectual, e, enfim, muito especificamente, o esforço escolar. O jogo contribui
indiretamente à educação, permitindo ao aluno relaxado ser mais eficiente em seus
exercícios e em sua atenção”. A idéia de jogo como recreação, desde os tempos de
Aristóteles e Tomás de Aquino, subsiste ainda hoje no âmbito educacional, concebido
como repouso necessário para a retomada dos trabalhos escolares. “ O jogo não pode ter
um fim em si mesmo, não pode ter valor próprio , ele vale em função de sua submissão ao
trabalho, aos estudos” . O abuso nas práticas de jogos levaria o indivíduo a perda de
energia e vigor, por isso deve ser controlado, no caso escolar, encerrado no espaço da
recreação e da educação física. A oposição entre recreação e ensino revela a oposição
entre jogo e seriedade. Desde muito tempo o lugar do jogo na escola se limitou a estes dois
espaços: recreação e educação física, por estar presente no imaginário dos sujeitos escolares
esta concepção de caráter contraditório entre jogo e trabalho. Ao se associar jogo e
educação rompe-se a lógica de recreação, de jogo como relaxamento.
2º - a motivação para jogar: “ o interesse que a criança manifesta pelo jogo deve poder
ser utilizado para uma boa causa” .
O que favorece a aproximação do jogo à educação é a sedução que ele provoca na
criança, desta forma as informações de intencionalidade educativa podem ser transmitidas
de forma prazerosa e motivadora. “ É preciso enganar a criança para fazê-la trabalhar,
sem que se dê conta realmente disso. Para a criança, o trabalho deve assemelhar-se, de
maneira subjetiva, ao jogo, porém não se trata de um jogo, só guarda sua aparência”.
Desta forma o jogo, em si, não tem valor educativo, suas virtudes básicas não são
questionadas. O jogo é, na verdade, uma ilusão da qual faz uso o professor como trabalho,
de certa forma agradável, mas que na verdade carrega uma intenção pedagógica.
No final do século XVIII professores propunham exercícios divertidos como jogo,
influência dos pensamentos de Rousseau, que sugere um ensino mais próximo do real e
propõe um método baseado nos jogos de conversação, de imagens, de lições das coisas de
83
maneira sistemática. Os jogos serviriam para exercitar a inteligência facilitando a
aprendizagem das crianças de forma natural.
Brougère se remete a Erasmo, que já apontava uma desconfiança na relação jogo e
educação, pois, para este pensador não se deve inserir o jogo à educação, isto seria como
acrescentar um trabalho a outro, e segundo ele esta pedagogia não se baseia na valorização
do jogo enquanto atividade espontânea, trata-se de dar a ele um sentido de recuperação.
Este método, cujo centro é o jogo, não é aprovado sob a perspectiva de Erasmo, da qual
concorda Brougère com as seguintes palavras: “ O jogo faz parte da instrução, tem um
valor, mas é controlado em uma lógica do artifício pedagógico” ( BROUGÈRE, 1990,
p.56). Ao se aproveitar da natureza da criança de manifestação para o jogo, o jogo passa
a ser imposto pelos educadores com um conteúdo a ser transmitido, onde a seleção dos
jogos dentre os disponíveis na cultura lúdica infantil, correspondam aos objetivos
pedagógicos identificáveis.
3º - o jogo como revelador do comportamento infantil: “o jogo permite ao pedagogo
explorar a personalidade infantil e eventualmente adaptar a esta o ensino e a orientação
do aluno” . Esta relação, segundo o autor, se vincula à educação física, que, fazendo uso de
certos jogos, os consideram, sobretudo, como atividades físicas para uma educação
completa que não omite o corpo.
Favorecendo o desenvolvimento físico, intelectual, a memória e até futuras verdades
(valor moral), o jogo passa a ser organizado e incentivado pelos educadores
proporcionando uma oportunidade de testar e observar as crianças em suas atividades
naturais e espontâneas. Como diz este autor, “ aqui o jogo não é formador, mas revelador.
Esta concepção, pautada nos pressupostos da psicologia, leva o jogo para a margem da
educação sendo utilizado como meio de transformação do comportamento infantil.
O texto a seguir resume os três princípios apresentados
que deram origem a
‘ruptura romântica’ concebida por Gilles Brougère que resgata o valor educativo do jogo:
“Todos esses exemplos mostram, de um lado, que a consideração pela
criança no processo de aperfeiçoamento da pedagogia implica um olhar
sobre o jogo, embora este permaneça fundamentalmente uma atividade
fútil que só tem valor educativo se valorizado pelo educador. O jogo não é
educativo em si mesmo, é um dado da natureza infantil que deve ser
utilizado para aprimorar a eficácia pedagógica do professor. O jogo pode
84
ser usado para permitir um relaxamento necessário cujo objetivo é
propiciar um novo esforço intelectual, ou então tornar lúdico um exercício
didático, tal como o aprendizado do alfabeto. O educador pode
compreender seus alunos, observando seus jogos, ou utilizar, na falta de
algo melhor, os jogos coletivos tradicionais para não esquecer a
educação do corpo, aliás isso pode ser feito durante a recreação”.
(CAILLOIS, 1990, p.58)
Não se pode julgar o jogo somente por seus objetivos, e nem tampouco apenas por
suas funções. Para a escola, o objetivo do jogo é descansar, compensar a seriedade do
ritmo de trabalho escolar ou atribuir prazer a uma tarefa planejada, já para a psicologia o
objetivo do jogo é compreender e favorecer o desenvolvimento da criança.
Mas qual será então a função do jogo? Poderíamos arriscar aqui uma imensa lista
de funções do jogo que passam por divertimento, cooperação, valores morais e sociais,
competição, socialização, controle e extravasamento de emoções, respeito a regras e ao
próximo, transgressão, resolução de conflitos, solução de problemas, ordem, etc...
Huizinga (2004) aponta uma gama de divergências nas funções que o jogo envolve,
pois encontram-se definições como: descarga de energia, instinto de imitação, preparação
para tarefas da vida , exercício de auto-controle para o indivíduo, impulso inato para a
competição, escape para impulsos prejudiciais, restaurador de energia, realização de
desejos dentre tantas outras funções.
Busca-se, através de suas funções, a compreensão racional do porque se joga, para
que se joga, quando se joga, onde se joga
Para a maioria das teorias existentes, o jogo está ligado a finalidades biológicas e
passa a ser analisado pela racionalidade científica, sem considerar seu caráter estético. A
fascinação que ele exerce nas pessoas, a motivação para o jogo, não encontra explicações
racionais via teorias existentes. Como explicar o divertimento produzido pelo jogo como
uma função não só biológica e funcional? Esta é a tentativa de Huizinga, pois para ele, o
divertimento não aparece como resposta mecânica do organismo para atender às
necessidades biológicas do homem. O divertimento é uma chave para a análise do jogo em
si, considerando-se ainda a tensão e a alegria que o acompanham.
Huizinga aponta um elemento comum a todas as teorias existentes sobre jogos:
“todas partem do pressuposto de que o jogo se acha ligado a alguma coisa que não seja o
próprio jogo , que nele deve haver uma espécie de finalidade biológica”(2004,p.4). Para o
85
autor, o que leva o ser humano ao jogo transcende explicações a nível biológico, para ele há
no jogo uma fascinação que pode ser a própria essência do jogo. Joga-se porque se quer
jogar. Na tensão e na alegria do jogo podemos, pela própria natureza humana, cumprir com
as funções do jogo apontadas pelas inúmeras teorias existentes. Huizinga define a essência
do jogo relacionada ao divertimento, ao agrado e a alegria Há, para o autor, uma absoluta
independência do conceito de jogo por aproximação ou afastamento a conceitos como
divertimento, beleza, vivacidade, graça, ritmo, harmonia. Para ele estas categorias estão ou
não explícitas nos jogos, mas não são capazes de contribuir incisivamente para sua
definição.
“... o jogo é uma função da vida , mas não é passível de definição exata em
termos lógicos , biológicos ou estéticos. O conceito de jogo deve
permanecer distinto de todas as outras formas de pensamento Através as
quais exprimimos a estrutura da vida espiritual e social”. (HUIZINGA,
2004,p.10).
Não há conceito de jogo pronto para o uso, seus objetivos e suas funções também
são complexos, desta forma nos aproximamos, não só das idéias de Huizinga, como
das
idéias que Brougére apresenta como as características do jogo e que aqui enunciaremos:
1- “ O jogo é o resultado de relações interindividuais, portanto de cultura”
2- “O jogo pressupõe uma aprendizagem social. Aprende-se a jogar. O jogo não é
inato, pelo menos nas formas que assume no homem”
3- “ Para que haja jogo , é preciso que os parceiros entrem em acordo sobre as
modalidades
de
sua
comunicação
e
indiquem
(é
o
conteúdo
dessa
metacomunicação) que se trata de um jogo”
4- ” O jogo é uma mutação do sentido, da realidade: nele as coisas se tornam outras.
É um espaço à margem da vida comum que obedece a regras criadas pela
circunstância”
5- “ Sem livre escolha, isto é, possibilidade real de decidir, não há mais jogo, e sim
sucessão de comportamentos que têm sua origem fora do jogador. Se um jogador
de xadrez não é livre para decidir sua próxima jogada , não é mais ele quem joga”
6- “ A decisão pode resultar de uma elaboração coletiva que supõe negociação e, por
vezes, aceitação da decisão do outro, o que também é decidir”
86
7- “Para jogar, há acordo sobre as regras (caso dos jogos clássicos preexistentes,
mas cujos jogadores, de comum acordo, podem transformar certos aspectos das
regras) ou criação de regras”
8- “O jogo é um espaço de experiência único para o jogador. Ele pode tentar, sem
temor, a sanção do real”.
9- “ Sério ou frívolo, o jogo é ao mesmo tempo ambos, sério porque é este espaço
essencial de frivolidade”
10- “ Se o jogo permite experimentar, e talvez aprender, é por se opor ao sério, por
estar do lado do frívolo, do fútil”
11- “ O jogo é então um espaço social, já que não é criado por natureza, mas após uma
aprendizagem social e supõe uma significação conferida por vários jogadores ( um
acordo). Nada mantém o acordo senão o desejo de todos os parceiros. Na falta de
acordo, que pode ser negociado longamente, o jogo desmorona”
12- “ A regra produz um mundo específico marcado pelo exercício, pelo faz-de-conta,
pelo imaginário. Sem riscos se pode inventar, criar, experimentar este universo”
13- “ O jogo é um mundo aberto e incerto. Não se sabe de antemão o que se
encontrará; o jogo tem uma dimensão aleatória.”
14- “O jogo não dá uma importância excessiva aos resultados:” A atividade lúdica se
caracteriza por uma articulação muito frouxa entre o fim e os meios “(p.189-193)”.
Para além destas características, é consenso de que o jogo se inscreve na esfera do
simulacro, de um viver paralelo à vida real, mas que dela não se desprende. O jogo evoca a
imaginação e a liberdade exercidas dentro de padrões de comportamentos partilhados. Jogo
envolve fantasia, emoção e razão. No jogo as trocas de vivências e experiências acontecem
naturalmente, sendo um espaço de novas aprendizagens e ensinamentos. A competição no
jogo envolve esforço, trabalho e seriedade o que leva o indivíduo a um comprometimento
pessoal e coletivo. O jogo é prazer, frivolidade, desejo de uma ação e facilitador de
fruições. O jogo é uma forma de expressão onde o homem manifesta seus modos de sentir,
pensar e agir no mundo. Jogar é entregar-se ao acaso, a um devir imprevisível que de uma
forma ou de outra (ganhando ou perdendo), impulsiona o sujeito a novas tentativas,
87
exercendo assim uma espécie de fascinação pelo ato de jogar. O jogo passa a ser um
desafio que envolve superações. O jogo é um fenômeno onde jogar passa a ser uma atitude.
O jogo é um espaço/tempo que se concretiza nas práticas escolares e tende a ser
negado. A racionalidade nega a importância da imaginação, do simulacro, da desordem e
do acaso e, neste sentido, os jogos atendem a estas manifestações. Mas até que ponto elas
são ou não parte do processo de ensino-aprendizagem? Que espaço a imaginação e as
manifestações espontâneas ocupam no processo educativo? Não abrangeria o jogo, à luz do
paradigma da complexidade de Morin (1996), a ordem, a desordem, o acaso estando em
constante reorganização? E por esta mesma razão não seria elemento colaborador na
formação bio-psico-sócio-cultural dos sujeitos escolares?
O presente estudo aproxima-se da intenção dos referidos autores na busca da
natureza do jogo, das suas características, suas leis, os instintos que o pressupõem e a
satisfação por eles proporcionada. Daí a intenção de compreender os sentidos dos jogos e
mais particularmente a inscrição destes sentidos no universo dos professores em formação.
Cabe-nos, assim, refletir sobre o lugar do lúdico no contexto escolar e apreender
como os professores no seu processo de formação o analisam, o discutem, o fazem de
metodologia e o utilizam em práticas pedagógicas.
Terceiro tempo
88
Faculdade de Formação de Professores - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Terceiro tempo
__________________________________________________________________
O Time: os participantes da pesquisa
Formação de professores: onde e para que pensamos e fazemos a docência
89
“Não há ensino de qualidade nem reforma educativa, nem inovações
pedagógicas, sem uma adequada formação de professores”.
António Nóvoa (1991).
O processo de formação de professores vem sofrendo diversas tentativas de
delineamento há várias décadas. Leis, ideologias, interesses políticos e econômicos e o
próprio imaginário que cerca a profissão docente vem contribuindo, ora com avanços e ora
com retrocessos que acabam por alterar as percepções sobre o papel social do professor,
seja ele de educação física ou das demais áreas da educação básica. Desde as questões
relativas ao lócus de sua formação, passando por propostas de currículos e diretrizes para os
cursos de formação de professores, as discussões vão se acalorando e nos levando cada vez
mais a tentar compreender como ocorre este processo formativo e o que se espera do papel
que desempenha este profissional, sobretudo no que tange á sua prática no cotidiano
escolar. Estarei desta forma, tecendo trajetórias da docência em formação, o que englobará
a área de educação física, buscando apreender os contextos sócio-políticos que
influenciaram tais trajetórias.
Quando penso em ‘formação de professores’ uma das primeiras indagações que me
chega é sobre como se formam sujeitos para exercer esta função. Neste ‘como’, de forma
abrangente, poderia incluir o ‘onde’ e o ‘para que’ se formam sujeitos que contribuirão na
formação de outros sujeitos. O que se torna
necessário fazer para se preparar este
profissional para exercer esta complexa função? Quais as exigências para isto? O que se
espera destes profissionais?
Construindo um campo reflexivo a respeito de tais interrogativas, percorrerei um
caminho que não se pretende linear e cronológico, mas que remetido à complexidade dos
contextos sócio-históricos do processo de formação docente, poderão contribuir para o
nosso ‘pensar’ e o nosso ‘fazer’ enquanto professores que formam professores, ou melhor,
enquanto sujeitos que formam sujeitos que formarão sujeitos.
Na perspectiva do ‘onde’ se formam professores da educação básica, encontraremos
uma gama de espaços (escola normal de nível médio, escola normal de nível superior,
faculdades de pedagogia, faculdade de educação, licenciaturas, curso normal superior e a
90
própria escola) que, em diferentes épocas e diferentes contextos históricos, acabaram por
contribuir para dificuldade atual de se definir o perfil do professor (educador / docente /
mestre/ pedagogo / profissional de ensino / professor).
Numa rápida retrospectiva histórica, tentarei buscar pistas que facilitem a
compreensão das tramas do sistema educacional brasileiro e suas relações com o contexto
histórico, apreendendo os diferentes lócus de formação docente e a intencionalidade com
que esta se dá, tanto na educação fundamental, de modo geral, como na formação em
educação física, de forma mais específica.
Do Brasil colônia até o ano de 1808, período em que o país sofreu a primeira
reforma revolucionária, Marques de Pombal, o sistema de ensino modelou-se por princípios
religiosos da educação jesuíta, sobretudo elitista, vocacional e segregadora. A escola era
freqüentada somente pelos filhos homens de uma minoria de donos de terras e senhores de
engenho, excluindo-se os primogênitos, já que a estes cabia uma educação rudimentar a
fim de que pudessem assumir a direção do clã, da família e dos negócios futuros, e como
aponta Romanelli, “ Era, portanto, a um limitado grupo de pessoas pertencentes à classe
dominante que estava destinada a educação escolarizada” (1995, p.33). Importavam-se
formas de pensamentos e as idéias dominantes da cultura medieval européia. A cultura
humanista era ministrada nos colégios secundários para uma elite, porém, não havia em
nível superior instituições para preparar professores a fim de ministrar esta cultura clássica.
Esta educação, dada pelos jesuítas, atravessou o período colonial e imperial atingindo o
período republicano sem sofrer mudanças em suas bases, o que nos leva a entender que a
educação dos pequenos que não chegavam às instituições escolares dava-se de forma não
sistematizada. Os valores e conceitos do poder hegemônico, que eram transmitidos na
escola pela figura do professores, ficavam a cargo das pessoas que pertenciam ao âmbito
familiar e social das crianças. Era, assim, uma educação mais natural e espontânea
transmitida cotidianamente nas relações sociais, onde os jogos e as brincadeiras
perpassavam a educação infantil e que, por sua natureza, tornavam-se também elementos
formativos, a exemplo do que acontecia na Europa nos séculos anteriores35. O brincar era
35
Na obra de Philippe Áries (1978) e no capítulo 2 deste trabalho se encontram melhores esclarecimentos
sobre este processo formativo da criança na Europa nos séculos XVII e XVIII.
91
mais intenso e mais permitido pela ausência do esquadrinhamento do tempo e do espaço
escolar e tinha raízes no próprio processo de colonização no Brasil. 36
Só a partir do início do século XIX, quando surge uma estratificação social mais
complexa que a predominante no período colonial, é que, segundo Cunha (1981), surgem
os cursos destinados a formar burocratas de bens simbólicos e ainda, formar profissionais
liberais, despertando as primeiras críticas ao sistema educacional vigente.
Mesmo com a criação dos cursos superiores, após a Independência do Brasil, não
havia preocupação com a formação de professores, do intelectual da área educacional, e o
ensino universitário limitava-se ao ensino profissional, destinado principalmente à
administração e à política.
As primeiras escolas normais brasileiras37, criadas nas províncias para formar
professores, marcam o início do movimento de formação de professores no Brasil, que vai
surgindo paulatinamente marcado pelas instabilidades do período anterior.
“Não tinham, porém, essas escolas, organização fundada em diretrizes
estabelecidas pelo Governo Federal. Tal como o ensino primário, o ensino
normal era assunto da alçada dos Estados, ficando restritas as reformas até
então efetuadas aos limites geográficos dos Estados que as
promovessem”. (ROMANELLI, 1995, p.163)
Mesmo com acanhadas e restritas reformas educativas, a formação do magistério
antes do período republicano efetivava-se, de fato, na Escola Normal que, com raras
exceções, consistia em cursos anexos aos já criados liceus 38.
A instabilidade sofrida durante o período imperial impedia o cumprimento maior da
função das Escolas Normais, qual era a de formar professores primários. Vale destacar que
no ano de 1879 a reforma Leôncio de Carvalho acentuou a pseudo-profissionalização do
professor com a permissão para o exercício da profissão do ‘professor leigo’. Em pari
passu com este profissional que atua na área educacional, surge a figura do ‘médico
higienista’ no campo da educação física, como responsável pela educação do corpo das
crianças e jovens nas escolas, delineando uma ação social que tinha por intenção cuidar da
36
A este respeito consultar a obra Jogos tradicionais infantis: o jogo, a criança e a educação de Kishimoto,
1993, que aponta a origem dos jogos no Brasil influenciado pelas matrizes européias, indígenas e africanas.
37
A primeira escola normal foi criada em 1830, em Niterói, sendo a pioneira na América Latina e de caráter
público ( ROMANELLI,1995), hoje IEPIC- Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho
38
Os liceus eram escolas públicas de nível médio, de cunho propedêutico que atendiam as elites, sobretudo
masculinas, e que tinham o intuito de reunir diversos professores num mesmo ambiente escolar.
92
saúde física e mental, como regeneradora da raça, das virtudes e da moral. Desta forma a
dicotomia corpo e mente se instala no campo da recreação, via educação física, então
denominada ginástica. “O adestramento físico e a disciplina do corpo faziam parte de uma
política higienista que procurava alterar o corpo produzido por quase três séculos de
colonização”. (OLIVEIRA, 2005,p.25).
A educação física escolar surge, assim, para atender as propostas de disciplinamento
dos corpos, dos hábitos e da vida dos indivíduos. Exigia-se uma recreação formativa com a
escolha ‘correta’ das brincadeiras, dos exercícios e do entretenimento no interior das
escolas. O exercício físico sistematizado, pautado no método francês de ginástica39,
passava a ser o fator capital na (trans)formação social.
Os objetivos da educação são determinados politicamente conforme os interesses
em jogo nas relações sociais. A burguesia à época acenava o lema ‘escola para todos’
expressando seus interesses e o das demais classes. A nova sociedade capitalista contava,
então, com a escola para atender as necessidades de uma nova sociedade, preparando-a não
só política e intelectualmente, mas também fisicamente. Nestas bases o cuidado com o
corpo ficava também a cargo da escola, pois a sociedade industrial exigia corpos
preparados para o trabalho e livre de doenças. Recrear-se passa a ser sinônimo de exercitarse. Mas que preparação deveria ter o profissional responsável para tal função? Nem bem
fixavam-se os cursos de formação de professores primários, nem bem se refletia sobre as
bases de sua formação e já se pensava num outro profissional ocupando o espaço escolar.
A Educação Física, enquanto disciplina escolar para tender tais finalidades sociais, surge de
forma totalmente dissociada do projeto da escola e, com caráter formativo, pauta-se na área
médica sem estar engajada numa discussão mais ampla de formação de professores.. A
visão positivista do final do século XIX e início do século XX, faz-se presente no contexto
educacional, também nesta área de conhecimento.
Segundo Romanelli (1995), o ensino superior no Brasil, criado desde 1808, foi
sofrendo transformações acarretadas pela influência positivista na política educacional
marcada pela atuação de Benjamim Constant que consagrou o ensino seriado, o currículo
39
O método francês era conhecido como Regulamento nº 7 (GHIRALDELLI JR, 1998), que oficialmente
obrigatório como diretriz pedagógica da educação física escolar brasileira, consistia em cuidar das instâncias
físicas, morais e psicológicas dos indivíduos no campo educacional para a formação do cidadão e
consequentemente melhoramento da espécie humana. Seu fundador foi D. Francisco de Amoros y Ondeaño ,
baseado nas idéias dos alemães Jahn e Guts Muths ( SOARES, 1994)
93
enciclopédico, reformas nas escolas primárias, secundárias, superiores e normais, sobretudo
com a criação do Pedagogium , nos anos de 1890 e 1891. Este foi instalado com o objetivo
de ser o primeiro centro de aperfeiçoamento do magistério organizado no país após a
Proclamação da República e constituía a primeira iniciativa de organização pelo poder
central dos estudos pedagógicos de nível superior, porém, de duração efêmera. Experiência
semelhante teve a Escola Normal Superior criada em São Paulo em 1892, cuja exigência de
sua criação desapareceu dos textos regulamentares (Cunha, 1986). Dentre as principais
políticas educacionais deste período, por iniciativa de Rui Barbosa, o decreto n º7.247 de
19 de abril de 1879 torna obrigatório o ensino de ginástica na grade curricular das escolas
primárias e secundárias ( SOARES, 2001). No ano de 1882, pelo parecer n º 224 sobre a
Reforma do Ensino Primário e Várias Instituições Complementares da Instituição Pública
(Idem) a ginástica se sistematiza nos currículos escolares em horário distinto da hora do
recreio, sendo considerada não pelo seu caráter recreativo, mas sim formativo e
disciplinador , ficando na responsabilidade do ‘médico higienista’ este componente
curricular.
Quanto à preocupação com o professor primário, em 1901 cria-se a primeira
faculdade de filosofia, ciências e letras em São Paulo, com intuito de educação anexo em
decorrência de debates e congressos católicos, mas que não chegou a atender as condições
para o preparo de mestres nesses campos, ficando o país até 1930 sem perspectivas efetivas
de formação de professores.
Os cursos particulares assumem essa formação com mais
vigor que os cursos oficiais e a desvalorização do magistério fica marcada, desde o início,
pela oficialização da atuação do leigo no ensino. O Brasil defendia uma educação superior
utilitária e restrita à profissionalização, esquecendo-se da função formadora da cultura e
dando pouca importância à formação de professores.
A origem do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, elaborado por Francisco
Campos e publicado em 1932, marca a práxis de reformadores e de movimentos de luta
pela organização dos educadores da década de 30. Desse modo, as décadas de 20 e 30
foram palco de movimentos da educação e do ensino no Brasil em defesa da escola pública,
obrigatória, laica e gratuita, e, ainda, com o intuito de afirmar o caráter profissional das
Escolas Normais. Como nos aponta Nunes “A qualificação passaria, dentro dessa
estratégia, pela articulação dos centros de formação com as escolas primárias, que servia
94
de campo de aplicação de estudos e técnicas ali aprendidos pelos alunos normalistas”
(2004, p.30). Os estágios nestas escolas surgem em destaque na formação de professores,
mas longe de serem uma reflexão sobre o ‘fazer’ e o ‘pensar’ da prática docente, tomam o
caráter de laboratório de aplicação das teorias estudadas, pautadas no modelo dos
laboratórios da psicologia experimental, caracterizando um paradigma de racionalidade
técnica. Nos dizeres de Nunes (2004) compreendemos este princípio formativo de
professores:
“O que distinguia os laboratórios desses cursos superiores, nesse
momento histórico, era justamente a presença da pesquisa. A partir dos
laboratórios foi sendo articulada uma vertente psicológica de
interpretação da realidade, mais analítica do que sintética, apoiada na
experiência e que, portanto, fazia prevalecer os dados empíricos sobre as
generalizações. Essa vertente tornou-se hegemônica na construção da
secularização do campo educacional ou, em nosso país, de
profissionalização docente” ( idem, p.30)
Algumas capitais brasileiras tiveram estas Escolas Normais transformadas em
Institutos de Educação por conta das reformas republicanas.
Com o início da política educacional da Era Vargas, desencadeada nos anos 30 e 31,
o Brasil viveu uma efervescência ideológica marcada de forma muito rica pela diversidade
de projetos distintos, incluindo-se uma política educacional nacional (Ghiraldelli Júnior,
2001), que acarretou na expansão do sistema de ensino como conseqüência da demanda
social, que, até então,
estava
pautado num modelo antigo que não acompanhava o
desenvolvimento nacional. Nesta ocasião, surgiram diferentes pensamentos pedagógicos
importados da Europa e dos Estados Unidos que influenciaram o campo da educação como
um todo, o que engloba a área da educação física. Por um lado os conhecidos ‘profissionais
da educação’, pioneiros, apoiados no ideário da Escola Nova do americano John Dewey,
com propostas que enfatizavam
o ensino ativo e criativo, baseado na iniciativa e
experiência do aluno. O principal articulador deste projeto no Brasil foi, segundo Cunha
(1986), Anísio Teixeira. Este grupo era composto por reconhecidos intelectuais liberais
que desejavam a construção de um país em bases urbano-industriais democráticas, com um
plano educacional de bases pedagógicas renovadas e uma proposta de reformulação da
política educacional e, por outro lado, por católicos conservadores, entusiastas,
95
considerados utópicos idealistas e
defensores da pedagogia tradicional de base
ultraconservadora que se opunham às teses escolanovistas.
Com o crescimento dos sistemas de ensino, com as mudanças políticas e o
movimento dos educadores, surgem propostas na área educacional que reivindicavam que a
educação passasse a ter um caráter de reconstrução social identificada com os progressos
técnicos advindos do avanço científico. Os olhares se voltam para a educação física, que
tendo como referencial os princípios de Escola Nova, produto do pensamento liberal40,
vêem nesta área a possibilidade da construção social pelo viés da formação do corpo, corpo
este manipulável, hábil e multiplicador de força. Pela metodologia do treinamento físico, as
aulas de educação física passam a adotar, além da ginástica, as práticas desportivas como
promotoras da saúde física e moral, muito mais do que mental. Assim atividades ligadas ao
esporte e a ginástica natural como jogos ao ar livre, corridas, saltos, natação, remo,
passeios, etc. passaram ao campo de práticas pedagógicas, correspondendo aos princípios
higienistas na vertente eugênica do ideário de Fernando de Azevedo41.
No que se refere a preocupação com a formação de professores da educação básica,
as inúmeras tentativas emancipatórias para a educação da década de 30, particularmente as
reformas educacionais de Fernando de Azevedo e Francisco Campos, estiveram mais à
margem do que no centro das preocupações governamentais, e, a formação de professores,
não parecia estar efetivamente inserida
num consenso das novas propostas políticas
apresentadas.
Criadas na década de 30, as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras respaldavam
a formação de professores secundários. Por iniciativa do educador Anísio Teixeira, cria-se
em 1935, a primeira faculdade própria para a educação, o Instituo de Educação e a
Faculdade de Filosofia e Letras do Distrito Federal que foi incorporado à Universidade do
Distrito Federal (UDF), hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, configurando-se num
projeto pioneiro de formação intelectual e de elevação dos estudos pedagógicos de nível
superior que incluía a formação dos professores primários. No entanto, foi extinto no final
da década de 30, pelo então Ministro Gustavo Capanema, por interesses da Igreja temerosa
40
Segundo Ghiraldelli Júnior, o liberalismo do início do século XX em nosso país acreditou na educação, e
particularmente na escola, como redentora da humanidade (1998, p.22)
41
Para este educador o destaque dado á educação física seria fundamental na regeneração e revigoramento da
raça brasileira. ( SOARES, 2001, p.119)
96
de uma disseminação da mentalidade científica e democrática. “ Essa decisão retirou do
professor a instância mais prestigiada da consagração intelectual e esvaziou o significado
de sua atuação. O professor não mais foi visto como pesquisador das sua prática, mas
como técnico à serviço do Estado”
( NUNES, 2004, 31).
O lócus de formação de professores, ainda não definido, não tirava até então, o
status da profissão docente do imaginário social42. Até o início dos anos 30, a função
profissional do professor era quase sacerdotal, exigindo além de conhecimentos, uma
extraordinária vocação. (Ferreira, 2002). Talvez se deva a isto o não abandono das
tentativas de se estabelecer os princípios e o locus da formação docente.
No entanto, segundo Nunes (2002), com o boicote do Ministro Capanema, o
professor foi destituído da instância de consagração intelectual impedindo a melhoria da
qualidade de formação deste profissional e frustrando a instituição de educação como área
de investigação acadêmica. Em 1939, inaugura-se a Faculdade de Educação, Ciências e
Letras que abrangia o curso de Pedagogia, instituído a partir da organização da Faculdade
Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil pelo Decreto-Lei nº 1190 de 4 de abril de
1939, com a finalidade de formar bacharéis, que dirigiam-se aos cargos técnicos e os
licenciados para várias áreas com a função de preparar candidatos ao magistério do ensino
secundário e normal. Esta dupla formação gera um perfil dicotômico voltado para a
racionalidade técnica, que ao invés de clarear, obscureceu a função docente. O mesmo
acontece com o professor de educação física que, além do ‘médico higienista’ como técnico
corporal, vai contar com as instituições militares43 para atender as demandas da área,
sobretudo pela inclusão do desporto no currículo escolar. Têm-se, na compreensão de
Ghiraldelli Júnior (1998) a ‘educação física militarista’, onde, pelo desporto, alcança-se a
formação do homem obediente e adestrado ( Idem, p.26), continuando a instância recreativa
como atividade formativa.
42
Na visão de Ferreira ( 2002 ) o imaginário social , enquanto sistema de representação, existe em toda e
qualquer sociedade expressando e reproduzindo as necessidades de um grupo, seus objetivos, seus desejos e
sua cultura. Ele é instituído e legitimado por uma comunidade que se faz hegemônica.
43
Em 1933 foi fundada a Escola de Educação Física do Exército como pólo aglutinador e coordenador do
pensamento sobre educação física existente até o final da década de 60 ( GHIRALDELLI JÙNIOR, 1998).
Logo após a Reforma Universitária de 1968, a resolução 69/69 do CFE organiza os cursos de Educação
Física , até então fundados , estabelecendo a carga horária, a duração e o currículo mínimo.
97
Observa-se que não havia um entendimento sobre as funções dos professores de um modo
geral, nem sobre o campo de atuação destes profissionais, acentuando a tendência
profissionalizante. Esta visão na atuação profissional, principalmente dos professores da
escola primária, contribuiu para uma segregação institucional da seção de pedagogia da
Faculdade de Educação Ciências e Letras (assim chamadas as instituições que formavam
professores em nível de graduação), o que, por muitos, foi visto como uma valorização,
mas que resultou, na verdade, em perda dos efeitos positivos oriundos da interação com
outras seções, em especial de filosofia, história, ciências sociais, psicologia e letras.
Conforme nos aponta Nunes:
“Nas décadas de quarenta e cinqüenta do século XX, sob a égide das Leis
Orgânicas, vai-se consolidando uma organização técnica do trabalho
escolar com a presença de funções especializadas que segmentaram o ato
de educar, as responsabilidades educativas, as áreas de atuação dos
profissionais da educação, levando-as a criar e reforçar representações
muito fortes de divisão interna na própria prática de trabalho”.( NUNES,
2004, p.34)
Como vimos, esta fragmentação do ato de educar também incluiu o professor de
educação física, que de forma isolada cumpre com seu trabalho técnico no campo
educativo.
A partir de 1940, com a expansão do ensino primário, os espaços de formação de
professores entram em expansão por faculdades, escolas normais, institutos de educação e
inserções em universidades. As Leis Orgânicas do Ensino, promulgadas entre 1942 e 1946
e que abrangiam todos os ramos do ensino primário e médio, pela primeira vez em nível
nacional, organizavam o ensino de formação de professores e o fizeram de uma forma
diferenciada ao incorporar as escolas normais de nível médio e os Institutos de Educação
que formavam regentes do ensino primário. Chegava-se à década de 50 com dezenas de
instituições formadoras de docentes que não passavam, muitas vezes, de precárias escolas
normais de preparo do professor. Ressalto que esta década marca a área de educação física
escolar pelo caráter pedagogicista, segundo Ghiraldelli Júnior (1998), compreendendo que,
como atividade prioritariamente educativa, a educação física passa a fazer parte, enquanto
disciplina, do currículo escolar. “ A Educação Física Pedagogicista é, pois, a concepção
que vai reclamar da sociedade a necessidade de encara a Educação Física não somente
98
como um prática capaz de promover saúde ou disciplinar a juventude, mas de encarar a
Educação Física como uma prática eminentemente educativa” ( Idem, p.19) .
O respeito às peculiaridades culturais, físico-morfológicas e psicológicas é
colocado, então, na pauta das discussões das diretrizes para o campo da educação física.
Voltando a pensar na formação de professores primários, aponta-nos Romanelli
(1995), que a finalidade do ensino normal era prover a formação do pessoal docente
necessário às escolas primárias, habilitar administradores escolares destinados às mesmas
escolas, desenvolver e propagar os conhecimentos e técnicas relativas à educação da
infância. Estes pressupostos de multifuncionalidade levaram a uma degradação progressiva
da formação docente e do locus de formação, sobretudo, um distanciamento da prática
enquanto vivência, se direcionando para a técnica e para a racionalidade a condição de ser
professor. Como nos faz ver Nunes,
“A prática de ensino e os estágios, com raras exceções, viram-se cada vez
mais esvaziados da reflexão substantiva sobre os problemas pedagógicos
concretos vividos na escola [...] e os estagiários transformaram-se em
meros executores de tarefas solicitadas pelos professores regentes”. (2004,
p.31).
Percebe-se que, a partir da década de 50, os espaços de formação de professores
entram em expansão por faculdades, escolas normais e inserções em universidades, e o
lugar social do professor passa a ocupar posição de destaque até o início dos anos 60.
Vejamos como se destaca este profissional no trabalho de pesquisa realizado por Ferreira,
tendo por base as notícias veiculadas nos jornais da época.
“O professor tem, quase sempre, a sua imagem relacionada ao sacerdócio,
à missão nobre, ao sacrifício, ao dom, à vocação. Por diversas vezes a
figura do mestre é remetida a algo de transcendental, chegando até mesmo
a ser comparada aos anjos e a Deus”. ( FERREIRA, 2002, p.71)
Independentemente da imagem positiva deste profissional, podemos compreender
que os estudos pedagógicos de nível superior tiveram uma evolução lenta e irregular, pois
sabemos que a educação é um dos setores da sociedade em que os mecanismos de
resistência a mudanças atuam com mais intensidade. Acrescenta-se à resistência, o
tradicional desprestígio desses estudos destinados à formação de professores em relação às
outras áreas do saber. As escolas que se dedicavam a tais estudos não eram especialmente
99
instaladas para desempenharem essa função. Adaptações sucessivas foram sendo feitas nas
escolas normais e institutos de educação, que, a cada decreto reformador do ensino, se
ajustavam ou se elevavam progressivamente ao nível superior. Ao considerarmos a
expansão do ensino superior, devemos ter em vista que ela se fez ao correr das
circunstâncias, sem planos de previsão ou mesmo propósito deliberado.
Instituiu-se um longo período de reflexões e debates na área educacional iniciado na
década de 20, não mais se interrompendo até a votação da Lei da Educação, em 1961, fruto
da Constituição de 46, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade
humana. Vale ressaltar que a lei 4.024 de 20 de dezembro de 1961 no Artigo 22, torna
obrigatória a educação física em todos os níveis e ramos de escolarização, alinhando-se aos
ditames da época. No entanto, como infere Romanelli, “nenhuma lei é capaz, por si só, de
operar transformações profundas, por mais avançada que seja... enfim, a eficácia de uma
lei depende dos homens que a aplicam” (1995, p.179) Como acreditar numa lei que levou
13 anos para ser promulgada? O anteprojeto foi encaminhado à Câmara Federal em 1948,
marcado por longas lutas, veio a resultar na Lei 4.024/61 que acabou sendo ‘atropelada’
pelo golpe militar de 1964. Foi um verdadeiro ‘cala boca’ nacional, como afirmam Cunha e
Góes (2002, p.13).
No entanto, os propósitos políticos e econômicos deste período fazem emergir a
Educação Física Competitivista (pós 64) à serviço de uma hierarquização e elitização social
onde o “seu objetivo fundamental é a caracterização da competição e da superação
individual como valores fundamentais e desejados para uma sociedade moderna”
(GHIRALDELLI JÙNIOR, 1998,p.20). O desporto ganha terreno no campo da educação
física escolar alinhavando-se à ideologia dominante de ‘Brasil Gigante’.
No decorrer da década de 60, as representações simbólicas que a sociedade faz do
professor primário apresentam indícios de mudanças e esta atividade passa a ser
compreendida como profana44. Para Ferreira, “ a intensidade das referências que tomam o
magistério enquanto atividade sagrada se dialetiza e começa a aparecer, também, nas que
a admitem enquanto atividade profana” (2002,p.78). Ainda, segundo este autor, as
freqüentes reivindicações por melhores salários e melhores condições de trabalho podem
44
Segundo Ferreira(2002) , pautado nos pressupostos de Émile Durkheim e Mircea Eliade, o sagrado e o
profano estão presentes nas manifestações das representações coletivas de toda e qualquer sociedade, logo a
imagem do professor pode ser associada a uma dessas duas situações existenciais.
100
ter contribuído para a ‘profanação’ da profissão. Nota-se que, mesmo sem ter se definido
o papel do professor e o lócus de sua formação, a categoria lutava para se profissionalizar.
Este período traz uma perspectiva de adaptação do pedagogo, e, de um modo geral, ao
trabalho especializado e tecnocrático, enquanto que o professor de educação física torna-se
técnico desportivo no campo educativo. Esta concepção tecnicista gera uma dicotomia
materializada na formação de professores das diferente áreas, sobretudo, para o ensino
normal e especialista para as áreas de administração, supervisão, inspeção e orientação
educacional.
Com a reforma universitária, promulgada em 1968, os cursos de licenciaturas,
também em educação física, aparecem como mais uma oportunidade de formação docente
e as universidades brasileiras têm sua estrutura regulamentada pela lei nº 5.540/68, no
entanto, a área pedagógica destas instituições sempre foi percebida como objeto menor,
secundário. Esta reforma não se fez dentro da universidade pelo debate e resultante
consenso do magistério, mas por atos legislativos, a princípio coercitivos, com proliferação
de leis e decretos reformuladores numa perspectiva reestruturadora, pautada na ideologia
tecnocrática da ordem e pertencente a uma política hegemônica originária do regime
político militar autoritário. “ A educação física escolar alinhou-se facilmente a esses
desígnios . Não foi por acaso que a Reforma Universitária de 1968, com a lei 5.540, veio
acompanhada de um parecer que confere ao profissional de educação física o título de
técnico desportivo” ( NHARY, 2005,p.137) . A lei da reforma universitária associa-se à Lei
4.024 da educação, garantindo não só a educação física em todos os níveis escolares, como
também no ensino superior através do Capítulo III, Artigo 40 alíneas b e c que asseguram a
realização de projetos culturais, artísticos, físicos e desportivos estimulando a atividade
física em diferentes modalidades desportivas (BRASIL, 1997 p.21). O campo de atuação do
professor de educação física , até então sem definição quanto ao lócus de formação(escolas
militares e faculdades de educação física), na vertente dos professores de um modo geral,
não tem propósitos e nem papel sócio-educativo definidos, mas, no entanto, “surge o
fenômeno da multiplicação exacerbada das escolas superiores, que se estendeu aos cursos
de formação de professores de Educação Física”( OLIVEIRA, 2005,p.26)
A trajetória de formação de professores dos diferentes campos continua confusa,
tanto em seu lócus, quanto em seus eixos formadores.
101
As faculdades de educação, com seus centros e departamentos, resultaram, como
vimos, da obrigatória fragmentação da faculdade de filosofia, ciências e letras, abrindo
caminho para uma instrumentalização da educação por uma compreensão psicologista e
tecnicista na formação de professores e especialista em educação, onde este espaço, local
próprio de produção da educação e de seu saber, acaba por consagrar a separação entre
cultura e educação,
entre teoria e prática. Ou seja, separou o que por natureza é
inseparável. No caso da educação física, mesmo com a lei 5.540/68 fazer alusão a
programas culturais e ter em seu bojo o destaque às práticas desportivas, a cultura lúdica
infantil mantêm-se formativa, longe de focar a cultura popular, o que incluiria os jogos,
como viria a acontecer mais tarde nas leis de educação subseqüentes.
Em decorrência da concepção e das finalidades da faculdade de educação para
formação de professores, sua estrutura básica deveria abranger as áreas de graduação, com
o oferecimento dos cursos de formação de professores primários, de professores da escola
normal, de pedagogos especialistas e cursos de formação pedagógica dos licenciados; área
de pós-graduação destinada à pesquisa a fim de formar especialistas de altos estudos
pedagógicos e para o magistério do ensino superior e a área de capacitação supletiva, como
era tratada na época, para formação permanente do professor, o que hoje compreendemos
como educação continuada.
O perfil do professor custa a se delinear,e , mesmo que surjam
propostas legais
mais concretas, a dicotomia das funções, sem uma proposta integradora e sem a proposição
da docência como eixo formador, só proporciona mais desprestígio para a profissão.
A partir de 1971, com a promulgação da Lei 5.692/71, as escolas normais se
remetem a cursos profissionalizantes de habilitação para o magistério, perdendo sua
identidade formadora e caminhando principalmente para o tecnicismo. O pensamento
dominante apontava a formação através da universidade, dos cursos de pedagogia ou em
licenciaturas de disciplinas específicas. A formação do professor primário foi elevada
legalmente ao nível superior nos cursos de licenciatura plena (universidades, institutos
superiores de educação e outras instituições congêneres). Esta lei também vinculou as
remunerações dos docentes em função do seu nível de formação e não ao nível de seu
exercício profissional, possibilitando lutas de negociações. O antigo ensino primário
vincula-se ao ginásio numa perspectiva de orientação para o trabalho e tornou compulsória
102
a profissionalização do ensino médio, transformando o magistério numa das habilitações
do ensino de segundo grau. As Escolas Normais e os Institutos de Educação perdem suas
características, o que acarreta uma procura pelas Faculdades de Educação que passavam a
integrar o sistema universitário. Ainda segundo Nunes,
“O paradigma da racionalidade técnica, que informara a prática de ensino
e os estágios, embora vivo, dava sinais de esgotamento. Foi ficando cada
vez mais evidente que esse paradigma não oferecia instrumentos teóricos
necessários para responder aos desafios do cotidiano escolar, mas não se
ofereceram alternativas de mudanças”. (2004,p.32) .
O distanciamento entre a prática e a teoria tornara-se evidente e o tecnicismo
passou a ser a ‘ordem do dia ’nos diferentes campos educacionais, onde “ A legislação
autoritária da Educação Física entra no interior das escolas e na maioria delas parece
vigorar até hoje” ( NHARY, 2005, p.138).
Neste período, início da década de 70, surge a Faculdade de Formação de
Professores do município de São Gonçalo. Por se tratar do local de realização desta
pesquisa, veremos mais adiante como ela se constituiu no cenário educacional.
O enfoque mecânico-tecnicista vai predominar durante a década de 70 e só no final
desta a problemática educacional passa a requerer mudanças, surgindo propostas de
definição do perfil profissional do professor da educação básica e voltando-se para os
professores de educação física escolar, abre-se espaço para sua interseção com os diferentes
campos da escola, visto que a Lei 5.692/71, Artigo 7 aponta que, embora ainda calcada na
proposta competitivista, a Educação Física se abre para a reflexão e a produção. A criação
da
Revista Brasileira de Educação Física do Ministério da Educação e Cultura,
(OLIVEIRA, 2005) vai levá-la a uma nova concepção a partir do final dos anos 70 e início
dos 80, remetendo-a para questões do lazer e da ludicidade.
Na década de 80, afirmam-se movimentos de educadores enriquecendo os debates
educacionais mais amplos, fruto do processo de abertura política que se instala no Brasil,
permitindo um novo olhar sobre a educação , a educação física e suas práticas.
Associações e entidades de educadores foram fundadas (Anped, Ande, etc.)45
criando espaço para a discussão teórica e para
a mobilização política, levando os
profissionais da educação a uma participação mais efetiva e eficaz no encaminhamento de
45
Anped - Associação Nacional dos Profissionais da Educação ; Ande- Associação Nacional de Educadores
103
muitos problemas que afligiam a área. É a fase do incremento à pesquisa, publicação
científica e organizações em associações que buscam reflexão teórica, análise crítica e
debates no campo da educação, onde na educação física, a psicomotricidade e a cultura
corporal levam à reflexões quanto as teorias
pedagógicas. “ A produção teórica da
Educação Física brasileira sofreu um impulso significativo a partir do início dos anos 80.
A Educação Física tornou-se,efetivamente, um espaço multidisciplinar em busca da sua
compreensão como prática social.” ( OLIVEIRA, 2005, p.31)
Em conferência realizada na FFP/UERJ 46, a Professora Ângela Martins, em breves
reflexões sobre o trabalho do professor da educação básica e a política para sua formação,
lembra-nos que a fim de revitalizar os cursos de formação de professores nas escolas
normais e nas faculdades de educação, surgem movimentos , sobretudo a Comissão
Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação de Professores (CONARCFE), em
1983, dando origem à Associação Nacional pela Formação de Profissionais em Educação
(ANFOPE), que reivindica uma ‘ base comum nacional’. A proposta pautava-se
na
formação do educador, tendo como núcleo integrador a relação teoria/prática e a docência
como base da identidade profissional de todo educador, entendo-se por ‘base comum
nacional’ o conjunto de conhecimentos imprescindíveis à formação do educador,
fundamentado em áreas correlatas á educação (filosofia, sociologia, psicologia, história,
economia e política), possibilitando a articulação dialética entre teoria e prática, o mesmo
ocorrendo no campo da educação física
A década de 90 contemplou discussões sobre políticas de formação docente, o que
também vai perpassar a área de educação física escolar na Lei de Diretrizes e Bases (LDB)
nº 9.394/96 que em seu inciso 3º integra a Educação Física como componente curricular à
proposta pedagógica da escola, assim como os Planos Curriculares Nacionais ( PCNs)
reconhecem a importância da educação física, não só no aspecto fisiológico, como por sua
dimensão cultural, política, afetiva e social. Com base nestas concepções privilegiam-se os
jogos, o esporte, a dança, a ginástica e a luta como conteúdos curriculares porque são
pertencentes a cultura humana. Os objetivos propostos nos PCNs das diferentes áreas se
46
MARTINS, in Anais II Seminário Educação Faculdade de Formação de Professores da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2004, p.43-51.
104
definem em termos de capacidades de ordem cognitiva, física, afetiva, de relações
interpessoais e inserção social, ética e estética como formação ampla. Então, como de
forma interdisciplinar, preparar os professores dos diferentes campos para atender tais
objetivos a partir dos pressupostos apontados pelos PCNs e pela nova LDB? Como ‘pensar’
e ‘fazer’ não só a docência em si como a própria formação para ela?
Como não
dicotomizar os saberes dos diferentes campos? Não seriam as diferentes capacidades
definidas nos PCNs concepções de educação comuns aos diferentes campos de ensino?
Os sistemas educacionais, como um todo, apresentam uma enorme defasagem com
relação às demandas da sociedade. Uma ‘tempestade de leis’, como dizem Linhares e Silva
(2003, p.16), veicula a pretensão de uma reforma educativa.
O aceleramento das leis que se deu no período FHC (mandato do presidente
Fernando Henrique Cardoso), a complexidade dos processos políticos e históricos na arena
de disputas de interesses na formação de professores se traduzem numa variada gama de
concepções e leis que norteiam este campo. As reformas educacionais tornam-se alvo das
políticas neoliberias e as propostas de formação de professores recebem uma ‘tempestade
de leis’ que envolvem as suas diretrizes.
Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Nº 9394 de 1996, é dado ênfase à
formação de professores para atuar na educação básica, através do decreto 3.276 de 06 de
dezembro de 1999,
que deverá ocorrer em nível superior, em cursos de licenciaturas de
graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação. Não é retirada a
universidade como instância formadora. , mas colocado outros lócus de formação deste
profissional, alterando o caráter de obrigatoriedade desta formação em nível superior, que
acaba por ser substituído pelo termo preferencialmente por despacho do ministro da
Educação pelo decreto 3.554 de 04/08/00. Linhares e Silva interrogam: “ teria sido essa
substituição um ganho momentâneo e circunstancial, sem maiores desdobramentos, dentro
de uma orientação de políticas públicas marcadas pelas opções do neoliberalismo e
neoconservadorismo?” (2003,p.17).
Isto instiga-me a compartilhar reflexões e
compromissos com a educação, sobretudo enquanto formadora de professores, na busca de
uma revitalização das concepções que abarcam as perspectivas do perfil do professor que
desejamos formar. Alicerçando-me nas palavras dos autores:
105
“É sempre bom voltar a lembrar que na construção deste espaço público
de debates sobre os rumos da educação nacional também cabe a nós, como
professores pesquisadores, ocuparmos territórios em que possamos exercer
discussões e formular propostas, que no exercício de nossa autonomia
pedagógica, escolar e universitária, representem as necessidades
específicas de cada setor educacional, sempre em diálogo com os
interesses maiores da sociedade”. (idem, p.25)
Na perspectiva do ‘para que’ se formam professores, que se entrecruzam com as
perspectivas do ‘onde’, dúvidas também eclodem. A sociedade parece que deixou de
acreditar na educação como promessa de um futuro melhor, os professores enfrentam sua
profissão com desilusão e desinteresse. A vocação docente vai perdendo espaço para a
educação enquanto mercadoria. Estamos caminhando para a mercantilização do ensino. O
lugar social do professor, que era sagrado, vai tornando-se profano pelo desprestigio da
categoria (Ferreira, 2002). O julgamento social tende a considerar o professor como
principal responsável pelas múltiplas deficiências do sistema de ensino. O professor precisa
esclarecer suas incertezas e dificuldades para reencontrar sentido e significado para suas
práticas.
Como pudemos observar, a problemática da formação inicial de professores não é
atual, o mesmo ocorrendo com o professor de educação física. Indefinições quanto ao papel
social destes professores atropelam seus ‘fazeres’. As Diretrizes Nacionais dos Cursos de
Pedagogia, aprovadas em 13/12/2005 pelo parecer CNE/CP n º 5/2005, colocam a docência
em Educação Infantil e Séries Iniciais como eixo na formação do professor, incorporando a
esta formação a gestão educacional ( supervisão, orientação , administração e inspeção),
ampliando o campo de atuação do docente. Ampliação esta que chega a atribuir a estas
profissionais, além do ensino de Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História,
Geografia e Artes, a Educação Física. Volto, então, a indagar: Que formação deve ter este
profissional para assumir tais funções? Quais as expectativas para isto? O que se espera
desses profissionais?
Acredito que a formação de professores envolve a própria complexidade humana.
Para além de um pensamento simplificador e redutor que acompanha o paradigma
racionalista, compreendo que a construção do perfil do professor se entrelaça
nas
dimensões pessoal e profissional, não sendo o trabalho pedagógico apenas um ato
educativo intencional. As propostas de formação
de professores devem, desta forma,
106
compreender os diferentes campos de atuação deste profissional, como espaços formativos,
onde as vivências proporcionadas pelos cursos levem-nos a entrelaçar os diferentes campos
de conhecimentos resignificando seus saberes e fazeres.
O professor aprende também com suas práticas e interagindo com outros, refletindo
sobre suas dificuldades e seus êxitos, avaliando sua forma de proceder cotidianamente,
interagindo com os modos de sentir, pensar e agir de seus discentes. Assim como Nóvoa,
acredito que “ a formação do professor não se constrói por acumulação ( de cursos,
conhecimentos ou técnicas), mas sim por meio das práticas e de reconstrução permanente
de uma identidade pessoal”( 1991,p.108)
É preciso desmistificar a situação que vem se tornando comum quando se fala em
profissão docente. O processo de sua formação deve identificar o local desta, passando pela
própria escola, pela educação superior e pela pesquisa constante dos princípios de sua
formação, não rompendo teoria e prática e buscando a compreensão das relações simbólicas
de opressão que acabam por atrofiar a autonomia intelectual, institucional e profissional.
Torna-se imperioso, como saída, os movimentos instituintes47 que possibilitem a
reinvenção da escola (Linhares e Silva, 2003) como lugar de trocas, afetos e prazeres, onde
as experiências pedagógicas instituintes sejam concebidas como um tipo de invenção social
e política que (re)considera projetos marginais ou derrotados como espaços abertos para
novas aprendizagens. Estes são desafios e enigmas contemporâneos, onde também os jogos
e as atividades lúdicas, não só ligados à educação física, mas as diferentes áreas de atuação
dos demais professores, tornam-se campos educativos.
É preciso ‘estar aberto’ a tudo o que se passa no ambiente escolar, tornar-se
sensível às questões não só patentes, mas, também às questões latentes reveladoras da
complexidade que é a escola. Devemos incitar propostas a todo instante nos cursos de
formação que levem o aluno-professor a
(re)organizar pensamentos, fazer e refazer
fazeres, rememorar suas histórias de vida, questionar
sobre suas vivências e
experiências.”Quando investigam o significado do ensino, dão início à tarefa árdua,
47
Para Linhares (2002), as experiências instituintes constituem-se como circuitos de vida...alimentam-se de
trânsitos incessantes de religações entre passado e futuro, entre diferentes esferas da atuação humana , entre
afetos e produções de linguagens, saberes e conhecimentos materializados nos intercâmbios produzidos pela
vida (p.118).
107
tonificante e reconstituinte, de se localizarem a si próprios e aos seus alunos em contextos
sociais, históricos e políticos mais latos” (HOLLY, 1995, p.90).
O papel social do professor assume, assim, uma complexidade escolar e não-escolar
que o remete à função de sujeito que contribui na formação de outros sujeitos, e não mais
simplesmente na função de um professor que ensina aos alunos. Resignificar o papel social
do professor significa dar visibilidade a todas as suas dimensões, o que inclui as pessoais,
como o exemplo dos poucos que hoje atuam como professores invisíveis, aqueles que por
vocação, por mistério, magia ou mestria48, acreditam num futuro melhor, mais afetuoso e
prazeroso.
Nesta perspectiva, proponho que se reflita sobre as atuais e propagadas relações
entre o ‘pensar’ e o ‘fazer’ docente, que em linhas gerias não atendem à compreensão do
complexo cotidiano escolar, sobretudo no que diz respeito a ludicidade, que podendo ser
considerada como um movimento instituinte, é silenciada em nome da ordem e das tarefas
escolares da racionalidade educativa. Remetendo-nos à Foucault (1987), é como se os
corpos precisassem estar quietos e controlados para o momento do aprendizado. Como nos
diz Linhares: “ É impressionante como a escola ainda retém concepções e práticas que
mais parecem alinhadas à idéia de sujeito cartesiano- que faz da plenitude de sua razão
um penhor não só de sua existência, mas de sua onipotência” (2003, p.50). Reinventar o
jogo e sua relação com e na escola, parece-me possível. Como se coloca o professor diante
das atividades que envolvem jogos? Como compreendem o lúdico na cultura humana?
O
que aprendem as crianças quando jogam? Que sentimentos o jogo envolve? A condição
das atividades lúdicas infantis e do jogo como elemento de cultura, promotor de relações
sociais, como riqueza e diversidade do imaginário social e revelador de uma multiplicidade
de sentidos, nos impulsionam a compreendê-lo numa rede de significados postos no
processo de formação de docentes das diferentes áreas. O ‘fazer’ docente é
multidimensional
e os ‘saberes’ devem ser complexos no entendimento moriniano,
valendo-nos mais uma ‘cabeça bem feita’ do que uma ‘cabeça bem cheia’ (Morin, 2004)
no sentido de acúmulo de informações
A década de 70, cunhada pelo tecnicismo, deixou marcas que ainda impulsionam o
48
Ferreira refere-se à “mestria” como sendo não apenas talento, mas a manifestação de uma vocação (2003,
p.42)
108
professor para um fazer sistematizado, onde o jogo passa a ser visto como atividade
programada, útil para o aprendizado de um conteúdo (jogos didáticos), como bem estar
físico e mental (ligados à educação física) ou como recreação (hora do recreio, intervalos
de aluas e o próprio horário destinado à recrear as crianças). Romper com esta visão é
associar as atividades lúdicas à fenômenos sócio-culturais reveladores dos modos de sentir,
pensar e agir no mundo. Para tal, torna-se necessário que o professor compreenda sua
função social, reflita sobre seus modos de ‘pensar’ e ‘fazer’ a docência, compreendendo
que o lócus de sua formação, seja qual for, deve conduzi-lo à uma práxis consciente e
transformadora.
Acredito numa formação de professores que os estimulem como partícipes de um
processo onde o ‘dever-ser’ na lógica escolar coexista com o ‘estar-junto’ nas
manifestações cotidianas. Uma mudança paradigmática na concepção de formação de
professor passa pela busca de um olhar sensível, capaz de captar as partes, os sujeitos, as
relações, as manifestações latentes que se expressam no todo, nas regras, nas normas, no
instituído. Captar esta rede de relações e compreendê-las para transformá-las é também
papel social do professor. Neste sentido, esta nova trama paradigmática pode constituir-se
pela religação de saberes que entendemos em Edgar Morin, saberes instituídos e instituintes
(LINHARES, 2004) que se entrecruzam no cotidiano escolar.
Na busca deste
‘estar-junto-com’
no ambiente escolar, como
proposto por
Maffesoli ( 1998), precisamos nos distanciar da força simbólica da homogenização que nos
conduz como máquinas capazes de dar nossas aulas sem perceber o que pensam e como
agem nossos alunos. Buscar relações com outros sujeitos, se envolver efetivamente com os
projetos da comunidade escolar e fora-escolar, perceber como sentem , pensam e agem os
atores da escola em suas mais simples e cotidianas manifestações é religar saberes, não
necessariamente os científicos, mas os
saberes humanos complexos, carregados de
sentidos, emoções, conflitos e afetos. Formar professores passa a ser sensibilizá-los para
acolher as diferenças, estabelecer trocas, refletir sobre suas experiências e vivências,
veicular afetos, superar conflitos, questionar mais do que responder, criar, imaginar, sonhar.
É ‘viver-sentir-estar-junto-com’ a comunidade escolar (CHAVES, 2000). Neste sentido,
esta autora, pautada em Morin, nos move a uma tomada de consciência de que a formação
de professores deve sair desta visão simplificadora, unidimensional, parcelarizada, que nos
109
coloca como máquinas que fazem e produzem em prol dos ditames escolares, para uma
mudança paradigmática multidimensional, de conhecimentos integradores capazes de
transformar as relações da escola e de seus sujeitos.
Defendo a perspectiva de compreender o professor como sujeito de transformação
aplicada às várias dimensões da sua existência e da complexa realidade que o cerca, desde a
pessoal até a social mais ampla. Imbricam-se sujeito e professor
A realidade educacional leva o professor à procura de novas formas de lidar com a
relação ensino-aprendizagem, o que revela a complexidade das ações docentes. Muitas
destas ações são revestidas por um caráter lúdico, sendo o jogo uma atividade motivante e
socializadora, onde o aprender e o ensinar manifestam-se naturalmente. São práticas que
envolvem conceitos, imagens, produção de valores, idéias, deveres, direitos, visão de
mundo, decifração e desvelamento da realidade, propostas que abarcam a (re)construção e a
(trans)formação de sujeitos em desenvolvimento. O professor lida com o conhecimento
historicamente elaborado, o que implica, entre outras coisas, na (re)(des)construção de
conhecimentos , na (re)leitura da realidade dada e sobretudo na produção de sentidos.
Buscar os sentidos dos jogos passa a ser também educar. O processo formativo deste
profissional e também do professor de educação física, deve, então, se pautar numa
proposta amplificada de interatividade entre a teoria e a prática, ou seja, entre os saberes
academicamente adquiridos e os socialmente construídos no ‘chão da escola’. Da
articulação destes campos do saber poderá surgir um fazer transformador que possibilite
uma cultura de sentimentos baseada em valores também não-racionais como o sonho, o
afeto, o prazer e a efervescência lúdica.
Aceitemos o convite de Linhares “ para cada um de nós procurar conhecer,
entender, mas, sobretudo, participar de reinvenção da escola, abrindo e compartilhando
experiências, como as que irrompem em tantos e tão diferentes espaços” (2002,p.128)
Tendo como suporte o paradigma da complexidade de Edgar Morin e a
socioantropologia de Michel Maffesoli, buscarei compreender os sentidos do jogo para
quem joga e os diferentes espaços onde se joga e sua relação com a educação. O jogo, na
esfera do vivido, é interpretado como movimento instituinte que aproxima sujeitos, que
possibilita trocas de afetos, de prazeres, de conhecimentos e idéias e que, marcado por
ordem, desordem, incerteza e interações atinge a esfera da complexidade bio-psico-sócio-
110
cultural dos sujeitos em desenvolvimento. Sendo assim, a temática jogo passa a ser uma
reflexão importante no processo de formação de professores que podem dele se utilizar em
seu ‘fazer’ e seu ‘pensar’ nas práticas cotidianas escolares mais complexas, reinventando
a escola de forma alegre e prazerosa, não rompendo com a lógica tecnicista, racional, mas
associando e compreendendo o não-racional, o onírico , o lúdico.
Formação de professores na FFP/UERJ
Com a intenção de dar maior visibilidade ao campo desta pesquisa, apresento alguns
dados, informações e documentos pesquisados que contam o caminhar e a história vivida
pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP/UERJ). Fazendo parte desta história desde 1981, recordo-me, ao escrever este
capítulo, das lutas e das manifestações que pleiteavam garantir a sobrevivência desta
Instituição de Ensino no cenário educacional brasileiro. Desta forma, compreendendo
melhor a política educacional em nosso país, me envolvendo com estas questões e
adquirindo maturidade profissional fui ....
Vivendo e aprendendo a jogar
Vivendo e aprendendo a jogar49
Entre tantas jogadas...
49
Metáforas da canção Vivendo e aprendendo a jogar de Guilherme Arantes
111
Em pari passu com as concepções trazidas com a LBD 5.692/71, sobretudo
o artigo 30 que aponta a qualificação de pessoal docente para o ensino de 1o e 2o Graus, e,
no bojo da proposta, estando contida a necessidade de existirem cursos, em nível de 3º
Grau para a formação de docentes de 5ª a 8ª séries do 1º grau (assim designado o ensino
fundamental à época), surge no cenário educacional do Estado do Rio de Janeiro, mais
especificamente no município de São Gonçalo, a Faculdade de Formação de Professores
-FFP- sem grandes interesses por parte dos representantes das políticas de formação de
professores, o que acarretou algumas idas e vindas com relação aos órgãos mantenedores
desta Instituição.
Na década de 70 o governo do Estado do Rio de Janeiro cria o Centro de
Treinamento de Professores do Estado do Rio de Janeiro – CETRERJ-, regulamentado pela
Lei nº 6.598 de 20/08/71, organizado como fundação e vinculado à Secretaria de Educação
e Cultura com o objetivo de aperfeiçoar e atualizar os professores da rede de ensino,
tornando-se, assim, a primeira instituição mantenedora da FFP.
Começando seu funcionamento em setembro de 1973, autorizada pelo Decreto nº
75.525, de 25 /07/73, no governo do Presidente Médice, com instalação e funcionamento
no bairro do Paraíso no município de São Gonçalo (local em que se mantém até hoje) e
atendendo a diversos municípios vizinhos, a FFP vai iniciando uma história de lutas no
contexto educativo.
Fazendo parte de uma política que objetivava oferecer certificação com vistas a
alteração do nível de atuação dos professores da rede estadual de ensino e com conseqüente
mudança de nível salarial,
a FFP é concebida como uma instituição para capacitar
professores através de cursos de curta duração, cuja
ideologia era de formar os
profissionais que iriam implantar em seus municípios de origem, atividades de supervisão
escolar, conforme indicativos da
LDB nº 5692/71. Com esta estrutura inicial, a
FFP/CETRERJ cumpre seu papel de formar multiplicadores, assim denominados os
docentes ali preparados. Com a marca da formação e capacitação, oferecendo treinamento
para professores do interior do estado e cursos regulares para os professores do Município
de São Gonçalo e vizinhanças, a FFP surge, no cenário de formação de professores, com a
implantação de cursos de licenciatura de 1 º grau em Letras, Ciências e Estudos Sociais,
reconhecidos pelo Decreto n º 79.679, de 10/05/77, do então Presidente Ernesto Geisel.
112
Com a fusão dos antigos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro e com
propostas de reorganização do novo estado, esta Instituição é pela primeira vez em
11/04/75 incorporada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, condição esta que durou
apenas três meses, visto que este ato foi revogado em 15/07/75.
Nesta mesma ocasião, com perspectivas de desenvolvimento de recursos humanos,
o CETRERJ tem ampliado seu objetivo para o atendimento a uma clientela tanto de dentro
como de fora da rede estadual de ensino, o que acarretou a passagem de sua denominação
para Fundação Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Educação e Cultura
(CDRH), mantendo a FFP em sua estrutura básica. Desta forma, a Faculdade Formação de
Professores mantém-se vinculada ao CDRH ampliando sua forma de atuação, mantendo os
cursos de licenciatura curta, mas atingindo uma maior clientela de professores de todas as
redes de ensino público ou particular.
Vinculada ao CDRH, o Decreto Presidencial n º 81.905 de 10/07/78 e o parecer n º
11/78 do Conselho Estadual de Educação (CEE) levam as Licenciaturas em Letras e
Ciências
a se converterem em Licenciaturas plenas. A primeira com habilitação em
Português/Literatura e Português/Inglês e a segunda com habilitação em Biologia e
Matemática. Esta transformação implicou na ampliação do currículo com o acréscimo das
disciplinas de Metodologia nas áreas específicas e também a inclusão da disciplina de
Prática de Ensino voltada para o 2º Grau.
O início da década de 80 é marcado por uma instabilidade e por um esvaziamento
institucional provocado pela saída significativa de docentes qualificados e comprometidos
com a Licenciatura, mas que, por medidas restritivas, não poderiam acumular cargos, pois
da união do CDRH com a Fundação Instituto de Desenvolvimento Econômico Social do
Rio de Janeiro - FIDERJ -, nasce, em 20/06/80 pelo Decreto 3.290/80, a Fundação de
Amparo à pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ -, que embora sendo uma
instituição voltada para a pesquisa, passa a ser a mantenedora da FFP que agora, como
parte de um sistema fundacional, corre o risco de perder seu caráter gratuito.
Percebe-se que o período entre 1971 e 1982 caracterizou-se como a época de
instalação e luta pela manutenção da Faculdade de São Gonçalo, período este em que passei
a fazer parte do quadro docente desta Instituição em 1981.
113
Nos primeiros anos da década de 80 todo o quadro docente é surpreendido com
medidas governamentais inesperadas, o que acarreta lutas pela manutenção da FFP no
município de São Gonçalo, culminando num confronto entre governo do Estado e os
professores, pautados na garantia da autonomia acadêmica institucional. Ao final do
governo Chagas Freitas, com dez anos de existência da Faculdade de São Gonçalo, em
função das articulações políticas do estado, acontece a segunda tentativa de vinculação da
FFP à UERJ através do Decreto Estadual nº 6.570 de 05/03/83, o que não se efetivou.
Transcorridos 10 dias, na tentativa de enquadramento no sistema escolar, o governo
do Estado, na figura de Leonel Brizola, altera a vinculação da FFP integrando-a à
Secretaria Estadual de Educação através do art.7o do Decreto 6625, de 15/3/83. Porém,
como se trata de uma instituição de formação em graduação, logo a seguir a FFP é
novamente reintegrada à FAPERJ pelo Decreto 6.229/83.
A política educacional no primeiro governo Brizola no Rio de Janeiro, entre 1983 e
1986, é marcada por concepções e conduções dos princípios educacionais do professor
Darcy Ribeiro, vice-governador e presidente da FAPERJ, com forte vínculo com a
Secretaria Estadual de Educação. Surgem, então, questões e impasses quanto às vinculações
e inserção administrativa da FFP e em dezembro de 1983 é criado um grupo de trabalho
para avaliar a implementação do Complexo Educacional São Gonçalo - CESG-, onde
passariam a fazer parte deste conjunto a FFP, O Centro Interescolar Walter Orlandine e a
Escola Estadual Coronel Tarcísio Bueno, todos vizinhos do mesmo lado da calçada da Rua
Francisco Portela, com o objetivo de oferecer educação do pré-escolar ao 3º grau, bem
como o Curso Normal Superior. “O período de estudos, planejamento e funcionamento do
CESG confundem-se com sua efetiva implantação, já que estas escolas funcionavam
regularmente”. ( PIERRO, 2005, p.57)
Na concepção dos governantes, a inserção da FFP neste complexo educacional
facilitaria a questão da alocação de verbas, dado o vínculo com a FAPERJ. Outro aspecto
favorável com a integração da FFP ao complexo educacional era a questão do espaço físico
e da relação de pessoal, já que a FFP poderia disponibilizar salas, espaços e funcionários
para o CESG. Tanto foi assim que, por exemplo, todo o material que atendia as atividades
desportivas da FFP vinculadas à disciplina de Educação Física foi cedido ao Complexo
114
Educacional de São Gonçalo, assim como foi proposto um rodízio no uso dos espaços da
quadra desportiva e da sala de ginástica50.
No entanto, a comunidade acadêmica da FFP não aceita sua subordinação ao
Complexo Educacional, já que sua luta estava voltada para a garantia da gratuidade de
todos os seus cursos, para a criação e implantação de novas propostas curriculares para as
Licenciaturas, plano de carreira docente e oferta de concursos públicos. As duas primeiras
reivindicações foram conquistadas em 198451.
Como se pode perceber, neste jogo de interesses políticos, a proposta do Complexo
Educacional parece não vir ao encontro dos anseios de professores e funcionários da
Instituição, além de que com o seu funcionamento a ocupação das salas de aulas e a
convivência de alunos da educação infantil até o ensino superior, trouxeram certa
desorganização no andamento das atividades da faculdade. Neste momento também, a
situação administrativa na FFP referente à definição e plano de carreira para professores e
funcionários gerava movimentos de greve de alunos e professores. Ocorre uma
desestabilização do cronograma de oferecimento de cursos diurnos ao invés dos noturnos e
de fim de semana e o possível risco, por parte do corpo docente e discente, de fechamento
dos cursos existentes na faculdade.
“Além das reações ocorridas na FFP, várias foram as dificuldades que não
favoreceram com que o Complexo Educacional de São Gonçalo fosse
adiante, dificuldades estas nascidas inclusive no cotidiano das instituições
escolares que compunham esta proposta e suas relações políticoadministrativas com o Estado”. ( PIERRO, 2005 p.59)
Num processo de estruturação interna, a FFP realiza a avaliação de seus cursos
pautada no Encontro Nacional do Projeto de Reformulação dos Cursos de Preparação de
Recursos Humanos para a Educação, realizado em novembro de 1983 em Belo Horizonte,
dando início à reformulação de seus currículos de Licenciatura, que, a exemplo dos
anteriores, mantém como princípio norteador para esta reformulação, a preocupação de
50
Situação por mim vivenciada no período em questão, enquanto professora da disciplina de Educação Física
da FFP.
51
Vale ressaltar que, neste mesmo ano, compúnhamos um quadro docente de 53 professores, que juntamente
com os funcionários técnico-administrativos, recebemos carta de demissão em pleno processo de negociação
com o Governo do Estado. Em face destas lutas, as cartas acabaram sendo desconsideradas pelo Governo e as
negociações foram retomadas.
115
garantir a articulação entre teoria-prática-teoria, com as disciplinas didático-pedagógicas
integradas aos conteúdos específicos do primeiro ao último período de seus cursos. ( ASSIS
& SILVA, UERJ, 2000)
Esta reformulação, implantada em 1984, ocorre de forma a repensar a estrutura dos
cursos e a incluir também a disciplina de Prática Pedagógica no módulo da educação, no
caso das Licenciaturas Plenas que já funcionavam desde 1978, nas habilitações em
Português/Literatura; Português/Inglês; Matemática e Biologia. A licenciatura curta em
Estudos Sociais que ainda vigorava, a partir desse processo de reformulação, é alterada e
em outubro de 1985 houve a conversão deste curso em Ciências Sociais em Licenciatura
Plena com habilitação em História e Geografia, seguindo os princípios norteadores e a
concepção de curso da unidade.
No período de 1985 a 1987 a FFP vive novamente uma fase de acentuado embate na
relação com o governo do Estado, acarretando um novo e maior esvaziamento institucional,
com a suspensão de seus vestibulares e a redução de seu quadro docente.
Em julho de 1986, sobrevivendo aos ataques das instituições privadas do município
e ao desinteresse do Estado, a comunidade acadêmica congrega esforços e com a
autorização do Conselho Estadual de Educação – CEE -, organiza e realiza o concurso
vestibular para ingresso de alunos, ocorrido em janeiro de 1987, caracterizando-se como o
último processo seletivo realizado pela FAPERJ.
Através da Lei Estadual nº 1.175, de 21/7/87, no início do governo de Moreira
Franco, a Faculdade de Formação de Professores, como unidade acadêmica, foi vinculada
definitivamente à Universidade do Estado do Rio de Janeiro -UERJ -.
Comprometida com o desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro e com uma
proposta de interiorização da Universidade, a UERJ incorpora a FFP, condição que
permanece até os dias de hoje, oferecendo especificamente licenciaturas plenas e
consolidando sua organização pedagógico-administrativa.
A partir da incorporação da FFP, a UERJ passou a ser a única universidade pública
do município de São Gonçalo, exercendo um importante papel na reflexão e debates sobre
os problemas educacionais, sobretudo na formação de professores.
“Este período de aproximadamente 15 anos na história da FFP, da sua
fundação à sua vinculação pela UERJ, está marcado por diferentes
vínculos administrativos assumidos no Estado, porém sempre reafirmando
116
sua vocação institucional com a formação docente tendo como finalidade
superar a insuficiência de professores com formação superior,
especialmente no interior do Estado do Rio de Janeiro”. ( PIERRO, 2005,
p.60)
Passando por uma nova reforma curricular em 1987, alguns cursos sofreram
transformações em suas estruturas. As licenciaturas em Ciências e Estudos Sociais foram
desmembradas em Licenciatura em Matemática e em Biologia, no primeiro caso, e no
segundo caso, em Licenciaturas em Geografia e em História. Apenas o Curso de Letras
manteve
o
formato
anterior,
de
um
curso
com
dupla
habilitação:
Língua
Portuguesa/Literatura e Língua Portuguesa/Inglês. Estes currículos foram implantados em
1991, com a realização do primeiro vestibular na FFP na gestão da UERJ. Atualmente os
cursos oferecidos estão em reformulação, com vistas a se adequarem às novas exigências
legais.
Hoje, a FFP conta com mais de três mil alunos distribuídos em sete licenciaturas,
seis mencionadas acima e o Curso de Pedagogia Habilitação em Magistério das Series
Iniciais do Primeiro Grau onde o ingresso a estes cursos ocorre por Concurso Vestibular,
promovido anualmente pela UERJ.. A FFP/UERJ também oferece cursos de pósgraduação lato sensu: História Social do Brasil, Estudos Literários , Língua Portuguesa,
Língua Inglesa e Educação Básica. O curso de pós-graduação stricto sensu, Mestrado
em Educação, está atualmente tramitando nas instâncias competentes no aguardo de sua
aprovação para início de atividades. O ingresso no programa de pós-graduação se dá
por processo seletivo realizado na própria FFP.
Funcionando com uma estrutura de seis Departamentos, a FFP se volta como um
todo para a formação de professores do Ensino Básico “considerando que a
construção/reconstrução de saberes fundamentais para sua atuação deve dar lugar às
múltiplas conexões produzidas nas zonas de contato entre as disciplinas de conteúdo
específico e as disciplinas da área didático-pedagógica”. (Assis & Silva, 2000, p.96)
Com
base
neste
pressuposto,
estas
disciplinas
distribuem-se
uniforme
e
seqüencialmente, nos currículos dos cursos oferecidos pela FFP, do primeiro ao último
semestre, atingindo os diferentes momentos da formação dos licenciandos.
117
Vivendo um novo processo de reestruturação curricular, desta vez provocada pela
nova regulamentação do Conselho Nacional de Educação, a FFP ainda atravessa
problemas relacionados à falta de pessoal, quer no quadro de docentes, quer no quadro
técnico-administrativo, questões estas enfrentadas pelas Universidades Públicas em
geral, e o crescimento da demanda trouxe como conseqüência a necessidade de
ampliação do espaço físico. Por outro lado a FFP, cada vez mais, se fortalece nos três
níveis do ensino superior: a graduação, a extensão e a pesquisa.
A FFP pauta-se no princípio e no compromisso com a formação dos professores,
como afirma um texto escrito pelos componentes da Direção no período 2000 - 2003:
“Essa possibilidade de formação docente em um espaço no qual o
magistério não é conotado pejorativamente como opção secundária, abre
um campo de possibilidades muito rico na abordagem dos problemas,
desejos e sonhos sobre a educação, a educação de qualidade que tanto
queremos como projeto para nossas cidades e nosso país. Cabe ressaltar
que, uma vez que os cursos estão distribuídos em um mesmo espaço
físico, eles podem estabelecer relações diretas entre si, além de poderem
usufruir contatos imediatos e permanentes com o Departamento de
Educação, responsável pelas disciplinas didático-pedagógicas”. (ASSIS &
SILVA, 2001,p. 94).
O Departamento de Educação - DEDU-, criado desde as origens da Instituição como
integrador das atividades administrativas e acadêmicas da FFP, atende a todas as
licenciaturas da Unidade com o oferecimento de disciplinas didático-pedagógicas nos
diversos cursos de Licenciatura da FFP/UERJ. Quanto à integralização curricular para os
cursos da Unidade em Letras Português/Literaturas, Letras Portugês/Inglês, Matemática,
Biologia, História e Geografia, o DEDU oferece disciplinas de natureza obrigatória que
são: Filosofia da Educação, Psicologia da Educação, Sociologia da Educação, Didática,
Políticas Públicas, Prática Pedagógica e Estágio Supervisionado e de natureza eletivas: Arte
e Educação, Educação Física, Educação Popular, História Eletiva, Tópicos de Filosofia e
Linguagem, Ensino Supletivo, Metodologia Científica e Política Educacional.
Pautados numa proposta de interdepartamentalidade, o que favorece uma
interlocução entre as diferentes licenciaturas da Faculdade de Formação de Professores, os
demais departamentos da FFP, igualmente oferecem disciplinas obrigatórias para a
118
integralização do currículo do Curso de Pedagogia, o mais recente Curso da FFP, que será
apresentado no próximo tópico deste capítulo.
As disciplinas oferecidas pelo DEDU são agregadas em Núcleos de Referência, com
a intenção de que estes núcleos sejam instâncias de diálogo, debate, organização e acúmulo
compartilhado sobre cada grupo de disciplinas. Neles, os professores poderão encontrar
orientação e interlocução a respeito das disciplinas sob sua responsabilidade e, certamente,
nesta relação, estarão também enriquecendo com suas contribuições e ajudando a perceber
por onde ainda se pode crescer e caminhar na construção de projetos mais integrados.
Quanto ao seu quadro docente, o Departamento de Educação conta atualmente com
mais de 60 % de professores Doutores e o restante em processo institucional de formação
em Programas de Pós-graduação de excelência acadêmica.
Com relação à estruturação e à consolidação das áreas de pesquisa e extensão, no
DEDU, existem os seguintes Grupos de Pesquisa: Núcleo de Pesquisa e Extensão: Vozes
da Educação: memória e história das escolas de São Gonçalo; Práticas de Ensino e
Formação de Professores; Educação, Políticas Públicas, Novas Tecnologias; Cultura,
Subjetividade, Linguagem e Educação.
Os projetos de extensão articulados com a comunidade, principalmente em São
Gonçalo e no seu entorno, são oferecidos em diferentes especificidades, a saber: Educação
de Jovens e Adultos; Políticas Educacionais e Poder local; A questão das etnias e dos afrodescendentes; Estatuto da Criança e do Adolescente; Imagens e Representações; Arte e
Ludicidade; Taekwondo; Quem dança faz Arte; Tecnologias e Informatização, que são
coordenados pelos professores do departamento, que em sua maioria contam com alunosbolsistas. Há ainda projetos acadêmicos, subordinados à Sub-reitoria de Graduação dentre
os quais ‘Iniciação à Docência’ que desde 1994, oportunizando a vivência em atividades
docentes dos alunos das licenciaturas em escolas do município de São Gonçalo.
Como um espaço único voltado exclusivamente para a formação de professores, a
FFP têm possibilitado experiências inovadoras na área, onde o Departamento de Educação
tem tido como ponto de partida, em sua rotina cotidiana, o crescimento da produção, seja
em termos da pesquisa, da extensão ou da necessidade de ampliar os espaços de docência.
Desta forma este departamento vem assumindo desde 1994 o Curso de Pedagogia com
Habilitação em Magistério das Séries Iniciais do Ensino Fundamental, ou como é mais
119
conhecido, Curso de Pedagogia da FFP, levando assim esta Unidade Acadêmica da UERJ
a assumir sete Licenciaturas.
Uma bela jogada...
A história de criação do Curso de Pedagogia: Habilitação das Séries Iniciais do
Ensino Fundamental - Licenciatura Plena da FFP/UERJ não poderia deixar de ser contada,
pois além de ter um papel representativo não só no município de São Gonçalo, como na
própria estrutura organizativa da UERJ, os alunos deste Curso são o foco do presente
trabalho, mais precisamente os graduandos do quinto período em diante que já cursaram a
disciplina de Recreação e Jogos I e II e que contribuirão para esta pesquisa com respostas
dadas a um questionário investigativo e com seus relatos em forma de narrativas.
Em consulta recente aos dados estatísticos do IBGE 52, têm-se o ano de 2000 como
ano base de referência sobre os dados do Município de São Gonçalo que passarei a
descrever.
O Município de São Gonçalo possui uma área de 251 km2 e apresenta uma
população totalmente urbana constituída de 429.404 homens e 461.715 mulheres. A taxa de
alfabetizados, considerando a população residente de 10 anos ou mais, é de 94,5%. Quanto
aos estabelecimentos de ensino, registram-se 177 de Educação Infantil; 311 de Ensino
Fundamental e 81 de Ensino Médio. Tanto no Ensino Fundamental quanto na Educação
Infantil, registra-se maior índice de matriculados na rede pública estadual. Quanto ao
quantitativo de docentes no Ensino Fundamental, concentram-se em maior número da rede
estadual, já na Educação Infantil na rede privada. Os dados estatísticos, mas
especificamente o conhecimento acerca da realidade, aponta a grande demanda por ações
educativas no campo de formação de professores para atuação nos sistemas de ensino. Num
contexto concreto surge a necessidade de implantação de um curso de Pedagogia
compromissado com as políticas educativas e consciente do papel a desempenhar no quadro
52
Consulta realizada ao site do IBGE em fevereiro de 2006
120
educacional, não só do Município de São Gonçalo, mas no Estado do Rio de Janeiro como
um todo.
Concebido sob a influência do Curso de Pedagogia denominado Magistério
(CPM)53, da Faculdade de Educação da UERJ no campus Maracanã, o curso de Pedagogia
na Faculdade de Formação de Professores -FFP- iniciou sua primeira turma no 2º semestre
de 1994. Para compreendermos melhor, o CPM surgiu na UERJ nos anos 198054, através de
um convênio firmado com a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, para formação em
nível superior dos profissionais que atuavam nas séries iniciais do antigo 1º Grau, por isso a
sigla CPM significava Convênio com a Prefeitura Municipal. Mesmo com o término do
convênio, e a mudança de denominação da sigla, o CPM continuou a funcionar.
Forjado sob o princípio de educação continuada, esta graduação era oferecida
somente aos professores das redes de ensino Municipal. Na FFP, foi implantado sob a
responsabilidade do Departamento de Educação, mesmo sem a unidade ter firmado
convênio com nenhuma das redes de ensino público da região. No entanto, como exigência
para a inscrição via exame de vestibular isolado55, era necessário que os candidatos fossem
professores em exercício nas séries iniciais do Ensino Fundamental na rede pública ou na
rede privada, que retomando os estudos, graduavam-se em nível superior à docência
daquelas mesmas séries. Em suma, era necessária a diplomação no curso de formação de
professores ao nível do ensino profissional de 2º Grau, atual Ensino Médio, para o ingresso
na FFP.
Em 2002, o ingresso no curso passa a fazer parte do vestibular geral da FFP/UERJ,
perdendo o caráter de vestibular isolado, como também se abandona à exigência de
comprovação de exercício do magistério, modificando claramente o perfil dos alunos que
agora, não mais sendo obrigatoriamente professores antes de ingressar na FFP, atuam nas
mais diferentes áreas profissionais.
A criação deste curso não se limitou ao Município de São Gonçalo, e em 17 de
novembro de 1994 foi firmado um convênio com a Prefeitura Municipal de Araruama 53
- A sigla CPM, abreviação de Convênio com a Prefeitura Municipal, foi reinterpretada para Curso de
Pedagogia: Magistério, após a interrupção do acordo com a prefeitura do Rio.
54
- Sobre o CPM/ Maracanã, ver CARNEIRO DA SILVA, W, Tese de doutorado, Sorbonne, Paris, 1997
55
- Vestibular isolado refere-se a um procedimento de seleção organizado pelos órgãos competentes da
universidade, porém acontecendo em período diferenciado da seleção geral, e que segue regras específicas.
121
PMA - com a intenção de qualificar seu quadro docente do 1º segmento do Ensino
Fundamental, quando então, esta Prefeitura, através de sua
Secretaria de Educação
recorreu a FFP/UERJ para o oferecimento do Curso Superior em Pedagogia. Prontamente
o Departamento de Educação desta Unidade concorda em aceitar o desafio de gerenciar um
curso de graduação fora de seu ‘campus’, acreditando numa experiência enriquecedora para
uma instituição comprometida com a formação de professores. Desta forma, este convênio
contribuiu para que a UERJ pudesse atender uma clientela que não se concentra tão
somente no Município de Araruama, mas também nos municípios adjacentes como
Saquarema, Cabo Frio, São Pedro D’Aldeia, Iguaba, Rio Bonito, Itaboraí e outros. Inicia-se
o convenio com o primeiro vestibular realizado em junho de 1995 e com o oferecimento de
uma primeira turma com quarenta vagas para o referido curso, que funcionou até o final do
último convênio em 2000 graduando um total de 156 professores com a mesma estrutura
curricular do Curso de Pedagogia: Habilitação das Séries Iniciais do Ensino Fundamental Licenciatura Plena- de São Gonçalo56.
Desde a implantação do Curso de Pedagogia, o DEDU vem perseguindo o desafio
de formar professores do primeiro segmento do ensino fundamental, compromissados com
a reflexão na/sobre a prática, sendo protagonistas da implementação de políticas educativas,
sujeitos de práxis transformadoras e conscientes do papel que ocupam no cotidiano escolar.
Tendo passado por recente reformulação a concepção curricular o curso de Pedagogia da
FFP atua em sistema seriado57 (para atender aos alunos do currículo antigo) e sistema de
crédito (para os alunos que ingressaram no primeiro semestre de 2006 e para os que
solicitaram migração de currículo – do antigo para o novo). Integraliza atualmente uma
carga horária de 3.245 h/a no currículo novo e 2430 horas/aula no currículo antigo. Esta
última distribuída em oito períodos num fluxograma58 composto por disciplinas
obrigatórias de fundamentação teórica e prática onde o DEDU tem sob sua condução e
planejamento as disciplinas de: Alfabetização I e II; Avaliação Educacional; Didática;
Educação e Cultura Brasileira II; Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º graus;
56
Tive a oportunidade de atuar como docente neste curso desde a primeira até última turma formada em 2004,
assim como também por um período de aproximadamente três anos pude contribuir na coordenação do Curso,
não apenas em Araruma, como também em São Gonçalo
57
Com a reformulação o Curso de Pedagogia passará a funcionar sob o sistema de créditos e não mais
seriado.
58
Ver fluxograma em anexo.
122
Filosofia da Educação; Fundamentos da Educação Artística; História da Educação II;
Educação Brasileira; Metodologias do Ensino das Séries Iniciais; Pesquisa em Educação I,
II e III; Políticas Públicas; Prática de Ensino I e II; Psicologia da Educação I e II;
Recreação I e II; Sociologia da Educação; Técnicas de Estudo I; Tópicos Especiais I, II, III,
IV, V e VI.
Fazem parte também do fluxograma de disciplinas obrigatórias àquelas relativas às
áreas do conhecimento ensinadas nas séries iniciais do Ensino Fundamental e que são de
responsabilidade dos outros departamentos da FFP (Ciências, Geografia, História, Letras,
Matemática e Ciências Humanas). Essas disciplinas são oferecidas nos primeiros anos do
curso e têm carga horária de 480 horas. São elas: Fundamentos das Ciências da Natureza I e
II; Fundamentos do Trabalho de Leitura e Expressão Escrita no Ensino de 1ºgrau I e II;
Fundamentos do Trabalho com o Texto Literário no Ensino de 1º grau I e II; Geografia;
História; Língua Portuguesa I e II e Matemática I e II. A disciplina Tópicos Especiais,
apresentada como uma disciplina de ementa livre e também obrigatória, é oferecida em seis
períodos ao longo do curso num total de 210 horas/aula.
O Curso de Pedagogia passou recentemente por um processo de reformulação que
tem como intuito ampliar a oferta da docência também para Educação Infantil e Ensino
Médio (Normal), bem como no campo da Gestão Educacional através de múltipla
habilitação. A proposta, implantada no primeiro semestre de 2006, reafirma a centralidade
da docência e a Universidade como lócus da formação de Professores. Este projeto de
reformulação nasceu do debate entre os professores que compunham o Departamento de
Educação e, trazia em seu bojo, a busca da inclusão da pesquisa como eixo norteador do
curso, já que o currículo anterior, além de muito reduzido, não enfatizava os demais
campos da formação universitária. O desejo dos alunos coadunou-se à idéia dos
professores, pois os mesmos reivindicavam uma formação mais ampla do que somente a
Licenciatura das Séries Iniciais.
Estas foram as primeiras modificações implementadas para dar um novo caráter à
formação de professores das séries iniciais do Ensino Fundamental na FFP. Interessa-nos
dar ênfase a este processo de reformulação do Curso por estar diretamente ligado a esta
pesquisa o processo de transformação da disciplina de Recreação e Jogos I e II em
Educação, Artes e Ludicidade I, II e III. As ementas e programas que se encontram em
123
anexo apontam uma mudança de enfoque que veio sofrendo a disciplina, onde destaco a
consagração de 2/3 da carga horária destinados à pratica. A nova proposta tem a intenção
de não se distanciar da temática ludicidade e manter como foco a integração dos princípios
cognitivos, afetivos, psicomotores, sociais e culturais, compreendendo o jogo como
fenômeno que faz parte de movimentos instituídos (aulas de educação física e recreação) e
instituintes ( atividades espontâneas e desejadas) vivenciadas não apenas no interior das
escolas, assim como relacionando-as com a arte e a educação e reconhecendo estes campos
como importantes no processo de formação humana.
Passarei, assim, a alguns esclarecimentos da grade curricular do Curso de Pedagogia
que se fazem necessários: A disciplina de Recreação e Jogos I é oferecida no 5 º período
com 30 horas/aulas distribuídas em dois tempos semanais, o mesmo ocorrendo com a
disciplina Recreação e Jogos II, oferecida no 6 º período, também com 30 horas/aula,
perfazendo-se um total de 60 horas/aulas desta temática no Curso. Com a reformulação ela
se fundiu com
a disciplina Fundamentos da Educação Artística, que também integraliza
uma carga horária de 60 horas/aula
oferecida no 4 º período. Temos,
oferecimento das disciplinas Educação, Artes e Ludicidade I, II e III
assim, o
no três primeiros
semestres letivos com carga horária total de 135 horas ( 45h/aulas cada).
Entendendo que o currículo deva ser pensado como uma estratégia que concretize
os princípios e o perfil do profissional, objetivados na proposta de reformulação, identificase como grande eixo do novo currículo a formação do professor/pedagogo/pesquisador que
se dá na articulação inter e transdisciplinar através da organização de sub-eixos que
integram as disciplinas na busca de interlocução com diferentes saberes.
Com base nestes indicativos, as disciplinas do curso no currículo novo de
Pedagogia arrolam-se nos seguintes eixos temáticos: Docência e Pedagogia na Educação
Básica, Fundamentos Teóricos e Educação, Gestão e Organização do trabalho na Escola,
Temáticas Contemporâneas na Educação, Atividades Complementares, Pesquisa em
Educação, Estágio Supervisionado e Conhecimento e linguagem na Educação Básica, do
qual fazem parte as disciplinas de Educação, Artes e Ludicidade I, II e III, pois
compreende-se que as múltiplas linguagens da arte, da ciência, da técnica, da filosofia vão
constituindo a cultura que simultaneamente é processo e produto, onde as relações
estabelecidas entre educação e cultura, sobretudo artística e lúdica, abrem caminho para o
124
entendimento da educação como prática permanentemente atenta aos movimentos, não só
instituídos como também aos
educacional.
Neste
sentido,
movimentos instituintes que afloram no contexto
a
nova
proposta
para
a
temática
ludicidade/jogo/recreação/artes/educação atende a perspectiva do currículo e do professor
que se pretende formar no Curso de Pedagogia da FFP.
A complexidade da trama social contemporânea nos coloca diante do desafio de
repensar a formação de professores bem como avaliarmos, num processo contínuo, o nosso
‘fazer’ e o nosso ‘pensar’ a docência. Não nos cabe mais apenas uma ‘cabeça bem cheia’
onde o saber é acumulado não dispondo de uma organização que lhe dê sentido,
necessitamos de uma “cabeça bem feita” no sentido moriniano (MORIN, 2004), onde o
mais importante é dispor ao mesmo tempo de uma aptidão geral para colocar e tratar os
problemas, permitindo ligar saberes atribuindo-lhes sentido. Pautada nestes pressupostos,
a reformulação do Curso de Pedagogia pretende ter a docência como eixo da formação do
pedagogo, o atravessamento teoria-prática e a formação do professor pesquisador com
pleno domínio e compreensão da realidade de seu tempo, com consciência que lhe permita
analisar, interferir e transformar.
Nesta perspectiva, a proposta do Curso para a temática recreação e jogos/
ludicidade e artes é de grande importância , pois passa a atender as prerrogativas das
Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Pedagogia que em seu Artigo 5º inciso
VI, aponta a educação física como parte do programa deste curso.
Na busca da superação das dicotomias na formação dos profissionais da educação,
procuramos adquirir um olhar sensível e uma escuta atenta, tornando-nos capazes de
perceber a ‘socialidade em ato’ de Michel Maffesoli (1984), entendida como um conjunto
de práticas cotidianas que constituem o substrato de toda vida em sociedade. É a
socialidade que faz a sociedade, onde também “ é preciso ver a complexidade onde ela
parece em geral ausente como, por exemplo, na vida quotidiana” ( MORIN, 2004, p.83).
A realidade é complexa e para a compreendermos, nosso pensamento tem que seguir a
mesma linha de complexidade. Morin reivindica uma percepção global e integradora da
realidade através da ciência. É importante que não se deixe de lado elementos fundamentais
do conhecimento: o contexto, o global, o multidimensional, o complexo. Enquanto
125
educadores, percebendo e compreendendo a efervescência do cotidiano social dentro e fora
da escola, tornamo-nos mais aptos na formação de sujeitos.
O “homem complexo” de Edgar Morin (2003), com suas facetas bio-psico-sócioculturais, vivencia atividades coletivas cotidianas dentro e fora da escola e de outras
instituições, incentivando e gerando a formação cultural e artística de forma dialética,
possibilitando a construção permanente de saberes fundamentais ao professor
transformador, onde as disciplinas que abordam o lado
lúdico do ser humano
redimensionam a compreensão de mundo e de homem em sociedade.
Sendo assim,
‘aposto’ na reformulação do Curso de Pedagogia da FFP como um campo privilegiado de
formação de professores comprometidos com a sociedade brasileira.
A Súmula
126
Aulas de Recreação e Jogos - FFP/UERJ - 2005
A Súmula
__________________________________________________________________
Afinal o espaço pedagógico é um texto para ser
constantemente “lido” , interpretado, “escrito” e “relido”.
Paulo Freire (1996)
127
No campo dos jogos desportivos, a súmula é uma espécie de relatório onde ficam
registrados todos os acontecimentos de uma partida, tornando-se um documento importante
para posterior avaliação dos fatos transcorridos59. É um registro para ser lido e relido de
forma que, para além de registrar oficialmente o jogo jogado, possa servir de elemento
norteador para jogos futuros, principalmente quando analisados por técnicos, árbitros,
dirigentes e pelo próprio jogador.
Ao apresentar esta parte do trabalho intitulada Súmula, pretendo levar o leitor à
observar os dados da pesquisa coletados por meio de questionários e por duas entrevistas
numa abordagem qualitativa.
Nos últimos anos, os procedimentos experimentais e de análises estatísticas de
dados, têm levado as pesquisas quantitativas a um crescente desuso, principalmente na área
de ciências sociais. Percebe-se, então, um maior interesse de pesquisadores das áreas
humanas e sociais pelo uso de pesquisa qualitativa, tornando-se esta uma das metodologias
para ler, interpretar, escrever e reler os espaços pedagógicos, conforme apontado na
epígrafe supracitada. Fontoura (1997) entende que este estilo de pesquisa “tem como fonte
direta de seus dados o ambiente onde acontecem os eventos e o pesquisador como agente,
pressupondo um contato direto do pesquisador com o ambiente e com a situação
investigada”. (FONTOURA, 1997, p.68).
No presente estudo, torno-me este
pesquisador/agente, pois trata-se de uma investigação a partir de minha práxis docente na
disciplina de Recreação e Jogos I e II do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ. Seguindo esta
linha de compreensão, a autora citada entende que “sujeito e objeto são da mesma
natureza, e suas relações são portadoras de significado”. (Idem, p. 64)
“A preocupação maior da pesquisa qualitativa é com o processo, portanto,
ao estudar um determinado problema, o interesse do pesquisador
concentra-se em verificar como este processo se manifesta nas atividades
observadas, nos procedimentos e nas interações cotidianas”.
(FONTOURA, 1997, p.68)
Nesta visão, temos uma abordagem dialética, cujas etapas de investigação,
interpretação, análise e suas contradições, são parte do processo social analisado no
cotidiano, devendo ser incorporadas a este trabalho investigativo. Fontoura (1997) ainda
59
Ao final das aulas de Recreação e Jogos no Curso de Pedagogia da FFP/UERJ, as alunas faziam
comentários e apontamentos sobre as atividades vivenciadas, uma espécie de súmula para ser lida e
interpretada. A imagem de abrtura desta parte do trabalho revela um destes momentos
128
nos alerta que “há o limite de nossa capacidade de investigação e a certeza da dinâmica no
fazer ciência, sem reduzi-la à experiência” (p.68) nos levando a buscar os significados
latentes que emergem de nossas vivências profissionais e a interpretação destes como
forma importante de análise. O resultado de uma pesquisa pode ser considerado como um
momento da práxis do pesquisador reveladora de seus próprios condicionamentos. As
pesquisas qualitativas têm adotado diferentes métodos para análise-interpretação do
contexto social e suas dimensões multifacetadas.
O estudo da temática “jogo” e a sensibilidade por mim desenvolvida nos últimos
anos de observações e reflexões sobre as aulas e as fruições demonstradas pelos alunosprofessores, constituíram-se numa “memória de campo” que levou-me a optar pela pesquisa
qualitativa cuja “investigação social enquanto processo de produção e enquanto produto é
ao mesmo tempo uma objetivação da realidade e uma objetivação do investigador que se
torna também produto de sua própria produção” (FONTOURA, 1997, p.69). Assim, sigo
com ‘espírito do vale’ ( MORIN, 2005, p.39), ou seja, aquele que recebe todas as águas que
derramam dele, buscando desta viagem uma articulação da educação com a temática jogo
pelo viés da socioantropologia do cotidiano.
Parta tal, a metodologia desta pesquisa se utilizou de duas heurísticas mais
específicas: questionários investigativos e narrativas. A expressão ‘sumula’, encampa estas
heurísticas, ou seja, um registro do que ocorreu em campo de forma a ser escrito, lido,
relido e interpretado como sugerido por Freire (1996), levando-me a entender, apreender
e interpretar O que está em jogo no jogo.
Questionários: O que está em jogo no jogo
129
Nesta parte do trabalho, apresento algumas respostas dadas às oito questões do
questionário que apontam os temas mais significativos na relação jogo/educação, servindo
assim de base para análise.
A categoria central investigada é a relação entre jogo e educação, revelando de que
forma o jogo é (re)significado a partir da participação em vivências lúdicas durante o
processo de formação do professor e a relação das mesmas com os aportes teóricos
discutidos na disciplina Recreação e Jogos I e II, concretizando a relação prática-teoriaprática nas atividades lúdicas.
A partir dos dados obtidos, busquei compreender o significado do jogo, enquanto
uma prática pedagógica, como os alunos-professores o pensam e o utilizam em suas práxis,
as sensações que dele emergem e as marcas que estes sujeitos trazem das atividades
lúdicas que experimentaram na infância nas escolas em que estudaram, transferidas, ou não,
para a função docente.
A categoria de escolha para a participação na pesquisa na seção
questionário
obedeceu ao seguinte critério: alunos voluntários do quinto período em diante do Curso de
Pedagogia da FFP/UERJ, com ou sem experiência na docência.
Foram distribuídos cinqüenta questionários nas turmas de Recreação I e Recreação
II, dos quais trinta e cinco foram respondidos e devolvidos. Estes questionários contêm oito
perguntas que serão aqui apresentadas em blocos que contemplem um mesmo eixo de
análise.
Apresento os temas recorrentes nas respostas dadas aos questionários
investigados60.
Sobre o jogo
Pergunta 1- O que você entende por jogo?
60
Apresento as respostas dadas pelos alunos-professores coletadas a cada pergunta das questões formuladas,
sem, no entanto, apresentar todas as respostas na íntegra, trazendo as mais significativas e evitando repetições.
Os temas recorrentes estão destacados em negrito.
130
A associação de jogo aos termos lúdico e ludicidade foi recorrente em doze das
respostas dadas.
Entendendo-se ludicidade como uma atividade prazerosa, quatorze investigados a
relacionaram à prazer, diversão, lazer, entretenimento, sonhos e a emoções, sem
necessariamente usarem os termos lúdico ou ludicidade.
Sendo assim, poderíamos identificar esta categoria como a mais relevante nas respostas
desta primeira questão, pois perfazem um total de vinte e seis incidências no mesmo tema:
prazer/ludicidade..
Observemos algumas das respostas:
“ Atividades lúdicas que têm por objetivo entreter, ensinar atitudes e algumas vezes os
conteúdos escolares.” (P, 5º p.)
“ Ludicidade, prazer, momento único em que só interessa brincar.....”( S, 5º p.)
“ É uma atividade lúdica competitiva” (A ,6 º p.)
“ Atividade lúdica sistematizada” (F, 6 º p.)
“ uma atividade lúdica que envolve regras, ordem,competição, fantasias e grandes
emoções” (J, 6 º p.)
“o jogo é uma atividade lúdica onde todos se integram ,..”.(I, 8 º p.)
“ Jogo é aquilo que remete a interação e a diversão” .( B, 5º p.)
“Algo que traz prazer. È uma atividade natural que faz parte principalmente da infância,
onde o sonho vivido no jogo é socialmente aceito”. (M, 5º p.)
“ É uma forma de ensinar o aluno, transformando assim a aula prazerosa e também a
oportunidade de trabalhar coordenação motora. ( K, 7º p.)
“É um tipo de lazer onde seus participantes possuem a flexibilidade de mudar regras”.
(M,7 º p.)
“Atividades competitivas, com regras, que nos dão muita emoção e ao mesmo tempo
ansiedades e alegrias”. (L, 7º p.)
“Atividade física ou metal em que a criança se diverte e adquire conhecimento. O jogo é
baseado em regras que definem quem ganha ou perde. (A, 8º p.)
131
“O jogo é uma atividade lúdica onde todos se integram, como forma participativa e
prazerosa. (I, 8 º p.)
Uma das características do jogo apontada por Huizinga (2004), é a de que esta atividade
é fonte de alegria e divertimento. O jogador decide espontaneamente se entregar em busca
de prazer. A frivolidade é uma característica fundamental do jogo para Brougère (1998), o
que não exclui a seriedade do ato de jogar. Há no jogo um estado de euforia, a paidia
(CAILLOIS, 1990), que o garante. Como se pode perceber, as palavras diversão, lazer,
prazer e alegria foram as marcas do que estes sujeitos entendem por jogo
Ainda na primeira questão, podemos observar que algumas respostas pautam-se na
relação jogo/trabalho, onde o jogo pode ser compreendido no sentido de uma tarefa
escolar, ou seja, com intencionalidade pedagógica, o que
ficou evidente em quinze
respostas.
Para estes alunos-professores, o jogo pode ser utilizado como método de ensino de um
conteúdo do programa, ligado diretamente ao processo ensino aprendizagem, e que ainda
proporciona os desenvolvimentos físicos, intelectuais e mentais das crianças, onde, na
maioria das vezes, possibilita também a diversão.
“Uma forma de aprender brincando. É uma nova forma de ensinar.( C, 5º p.)
“Uma forma mais divertida de ensinar”. (M, 5º p.)
“Jogo ajuda na construção do raciocínio lógico e na aprendizagem”(S, 7º p.)
“É uma forma de ensinar o aluno, transformando assim a aula prazerosa e também a
oportunidade de trabalhar coordenação motora.” (K, 7p)
“É uma forma de diversão e de aprendizagem, pois no jogo se é capaz de adquirir
habilidades motoras, intelectuais, etc..”. (J, 8º p.)
“Atividades lúdicas que tem por objetivo entreter e ensinar atitudes e
conteúdos escolares”.( P, 5º p.)
algumas vezes os
“Jogo é uma ação lúdica onde o professor pode mediar aquisições de conhecimento tanto
curricular quanto comportamentalistas e até mesmo de regras para a vida social. Já para
a criança acredito que ela o entenda como meio de extravasar o que não pode ser feito na
sala de aula, trata-se apenas de diversão”. (S, 7º p.)
132
A relação jogo-trabalho foi muito bem apontada por Brougère (1990). Para este
autor quando o jogo torna-se ferramenta metodológica no ensino de um conteúdo, acaba
adquirindo um sentido de tarefa a ser realizada pelos alunos. Esta é uma noção muito
freqüente nas práticas educativas que fazem opção pelo uso do jogo. Na intenção de
motivar o aluno e julgando não estar desperdiçando o tempo de aula destinados aos
conteúdos, o professor leva o aluno à aprender brincando, não levando em conta que a
recíproca é verdadeira, ou seja, brincando e jogando também se aprende.
No sentido de Competição encontramos treze respostas dadas a primeira questão
que envolvem disputa, regras, normas e sistematização das atividades.
“Uma atividade de recreação que possui regras”. (K, 5º p.)
“... Antes eu pensava no jogo como competição, disputa e entretenimento..”. (G, 6º p.)
“É uma atividade lúdica competitiva” (A, 6º p)
“Toda brincadeira em grupo com regras” (R, 6º p.)
“Atividade lúdica sistematizada” ( F, 6º p.)
“Uma atividade lúdica que envolve regras, ordem, competição, fantasias e grandes
emoções”. (J, 6º p.)
“Entendo como uma atividade lúdica que possui regras existindo um ganhador” (G, 7º p.)
“Atividades competitivas, com regras, que nos dão muita emoção e ao mesmo tempo
ansiedades e alegrias”. (L. ,7º p.)
“O jogo é baseado em regras que definem quem ganha ou perde”. (A, 8º p.)
“Um conjunto de regras” (K, 8º p.)
O jogo só é jogo porque existe um sistema de regras (ludus) que norteia as ações de
quem joga. Este sistema permitirá que os jogadores, em iguais condições, sejam submetidos
à prova. A superação de si próprio como limite para superar o outro dá ao jogo um caráter
de competitividade. Esta é uma característica importante do ato de jogar que me leva a
133
apontar uma tênue distinção entre jogo e brincadeira, pois nesta o sentido competitivo não é
tão marcante.
A questão da competição nos jogos vem sendo muito discutida na atualidade,
surgindo diferentes propostas de jogos cooperativos61. Concorrer e competir são propostas
de análise de conceituação para compreensão do jogo com intencionalidade pedagógica.
Não me proponho aqui a enveredar por esta questão, mas compreendo que dependendo de
como o educador se utiliza do jogo na escola, este pode ter o caráter mais de concorrência
do que de competição. No sentido de concorrência, cria-se laços, pois joga-se com os
outros e não contra os outros. O compromisso não está na vitória, mas com o jogar com o
outro. O outro oportuniza o momento do jogo.
No sentido de competição, o jogador é levado ‘até as raias’ para eliminar seus
oponentes. O prazer maior da disputa está em vencer, onde as regras “definem quem ganha
e quem perde”, como mencionou o aluno-professor entrevistado, ou ainda “existindo um
ganhador”, como inferiu outro.
Seja no sentido de cooperação, ou no sentido de competição, o jogo deve ser
utilizado de forma consciente por parte dos professores, sejam estes de educação física, ou
não. Deve-se levar em conta que, para muitas crianças, o prazer maior está no movimento
que o jogo gera, e nem tanto no resultado final deste.
Das lembranças dos jogos
Pergunta 2- Na sua formação de educação básica você participava de atividades de
jogos na escola? Que lembranças isto lhe traz?
Nas respostas dadas, percebemos que a maioria tem boas lembranças, onde treze
alunos-professores
associam o jogo ao prazer, alegrias, sentimentos positivos e fortes
emoções. Para muitos o jogo era vivido num ‘lugar outro’, fora do mundo real e duro dos
afazeres escolares, representado um escape da realidade proporcionado, na maioria das
vezes, pelas aulas de educação física e nos momentos do recreio, como se vê nos relatos
que se seguem:
61
A este respeito consultar BROWN ( 1995), SOLER ( 2002) e CORREIA ( 2006)
134
“Sim, são muito boas as lembranças. Eu era livre, sem medo de ser feliz , fazia amigos,
inventava , sonhava, ria e até brigava. Tudo acontecia mais no recreio que nas aulas”.
(M, 5 º p.)
“ Sim, me recordo das horas do recreio em que cada dia uma do grupo era a responsável
pela brincadeira. Dias e momentos gostosos eram aqueles...” (S, 5º p.)
“Eu adorava as aulas de educação física, sempre curtia tudo”. (C, ,5º p.)
“ Participava de todos que pudesse. Lembro-me dos amigos, dos apelidos, da
gargalhadas” (A, 5º p.)
“ Sim, lembranças muito boas”. (K, 5º p.)
“O jogo para nós era o momento mais esperado”. (G, 6º p.).
“A hora mais agradável era a educação física onde brincávamos e jogávamos diversos
jogos. Ainda sinto alegria só de pensar naquelas aulas. Parece que ainda ouço as risadas
dos meus colegas brincando”. (J, 6 º p.)
“ Sim , e as lembranças que tenho são as melhores possíveis , ainda mais pelo motivo de
eu não estar nestes momentos dentro de uma sala de aula”. (A, 7 º p.)
“Sim e muito. Tive professores maravilhosos como Chalés, Marquinhos e Kátia. A prendia
a jogar handebol, vôlei, basquete e o tão amado queimando. Por ser a mais velha da
turma, eu sempre escolhia o time e todos queriam ficar comigo. Éramos uma turma muito
unida e nos vemos sempre (sempre que possível até hoje). Em relação as lembranças são
as melhores possíveis. Que saudade!!! “(L, 7ºp.)
“No recreio, na chegada e na saída com alguém sempre pedindo para parar. As
lembranças são de liberdade, alegrias de poder viver um momento a parte, onde tudo vale
para ser feliz”. (L, 7 º p.)
“Brincava no recreio, são as lembranças mais agradáveis que possuo da escola”. (K, 8 º
p.)
A alegria na escola, normalmente, está associada às atividades lúdicas. Talvez por esta
razão o professor de educação física, em diversas escolas, seja uma figura tão querida. A
concepção de educação física escolar pauta-se na cultura corporal na perspectiva de
ludicidade. Seus conteúdos compreendem o jogo, o esporte, a dança, a ginástica e a luta
(BRASIL, 1997, p.26) como representação corporal da cultura humana, assim, a educação
física contempla múltiplos conhecimentos produzidos e usufruídos pela sociedade a
respeito do corpo e do movimento com finalidades de lazer, expressão de sentimentos,
135
afetos, emoções e com possibilidade de promoção, recuperação e manutenção da saúde
(idem, p.27)
Percebemos que, para muitos dos sujeitos desta pesquisa, as aulas de educação física
foram associadas a boas lembranças da escola, alguns lembrando até mesmo o nome de
seus professores. No entanto, nove investigados nem sequer lembraram do que brincavam
ou jogavam na escola e alguns deles apontam falta de espaço e oportunidades para tal como
podemos observar:
“Apenas na educação infantil. Não me recordo”. (P, 5º p.)
“Não lembro de atividades de jogos na minha formação”. (A, 6º p.)
“ Na educação básica eu não possuí aulas de educação física, e nem de recreação e por
isso não me lembro de nenhum jogo feito em sala de aula”. (G, 7º p.)
“ Não lembro de ter participado de nenhum tipo de jogo”. (K, 7 º p.)
“Não” (H, 8 º p.)
“Não”. (A, 8 º p.)
“Sim, minha lembrança é que a única atividade era o queimado” (S,, 6 º p.)
“Apenas no recreio” (F, 6 º p.)
“Pouco. O tempo e o espaço do jogo eram muito restritos” (J, 6 º p.)
Parece-me que se a criança não teve oportunidades de brincar e de jogar na escola,
as boas lembranças não podem ser rememoradas com facilidade.
Encontramos ainda, na segunda questão, sete respostas
que ligam o jogo à
vergonha, humilhação, sacrifício e obrigação, o que torna estas lembranças ruins:
“Sim, lembro do calor na quadra, das regras do jogo, da vergonha de errar”. (R, 6º p.)
“Sim , não muito boas, pois eu era gordinho e ninguém gostava de me escolher”. (M, 6 º
p.)
“Sim, era massacrante pelo fato de ser algo imposto, obrigatório”.
(B, 5º p.)
136
“Sim ,lembranças de humilhação e inferioridade na qual não consegui me desprender
desde os dias atuais”. (M, 7 º p.)
“No ensino fundamental das séries inicias os jogos eram queimado, handebol, vôlei ( 5ª a
8ª ). As minhas lembranças ficam marcadas pelas disputas entre as equipes onde muitas
vezes eu ficava com sentimento de raiva por ter perdido”. (I, 8 º p.)
“Não. Era tímida e não gostava”. (J ,8 º p.)
O jogo imposto não é jogo, é tarefa, e, as vezes, duramente cumprida. O jogo só é
prazeroso se o sentimento que o jogador tiver por ele for de desejo e entrega. Estar no jogo
é entrar na ‘alma do jogo’, do contrário é penitência e sacrifício. Torna-se necessário, no
contexto escolar, que os professores, sejam de educação física ou não, tenham sensibilidade
para motivar os alunos à jogar, assim como perceber se a atividade proposta está sendo
desagradável ou está causando algum constrangimento para os participantes. O uso do jogo
na escola, por parte de qualquer professor, depende de uma postura crítico-reflexiva de
modo a torná-lo educativo e promotor do desenvolvimento humano.
Pergunta 3 - Antes de ingressar no Curso de Pedagogia da FFP/UERJ como você
entendia/percebia o uso do jogo na escola?
Das respostas dadas a esta questão, quatorze se referem ao jogo na escola como
diversão, lazer, recreação, atividade livre e natural da criança e sem grandes significados
para a educação. Nos relatos que se seguem isto fica evidente:
“Entendia como lazer, o puro brincar, ou mesmo como o desenvolvimento de alguma
habilidade física”. (S, 5º p.)
“Como diversão”. (Â, 5º p.)
“ Como recreativo ou parte das aulas de educação física como desporto”.(M, 5 º p.)
“Como uma forma de passatempo na escola”. (S, 6º p.)
“Como algo “normal”. Não entendia a sua parte social”. (M, 6 º p.)
“Eu entendia o jogo como sendo apenas lúdico não vendo outra importância”. (S, 6 º p.)
137
“ Somente como brincadeira”. (S, 7 º p.)
“Compreendia como uma maneira de passar o tempo de fazer com que as
ficassem quietas”. (M, 7 º p.)
“Como uma atividade que dava alegria às crianças, mas que era controlada,
aceita na educação física”. (L, 7 º p.)
pessoas
só
sendo
“Como uma atividade em que ao mesmo tempo em que havia a diversão, havia também a
aprendizagem pois através do jogo a criança desenvolve várias habilidades” (A, 8 º p.)
“Via apenas como uma forma de recreação, sem fundamentos” (H, 8 º p.)
“Uma brincadeira sem importância”. (E, 8 º p.)
Novamente aqui a questão do prazer se destaca, mas, no entanto, dissociada de
princípios educativos. Quando a educação está ligada ao jogo, a maneira de pensá-lo se
modifica. Os entrevistados não percebiam a relação jogo-educação, não lhe atribuíam outro
sentido que não fosse o de lazer.
Entendendo o jogo como recurso pedagógico ou ferramenta metodológica no
processo ensino-aprendizagem, encontramos doze dos participantes da pesquisa.
“Como mero mecanismo de aprendizagem” (B, 5º p.)
“ Como professora já entendia que o jogo era um recurso pedagógico muito importante,
principalmente para as crianças, pois elas aprendem conteúdos escolares através do
divertimento”. (J, 5º p.)
“ ...conheço todo o benefício, padrão cognitivo do aluno, conheço também a metodologia
para a aplicação do jogo em várias disciplinas para auxiliar na assimilação dos conteúdos
propostos de uma maneira lúdica.”(G, 6 º p.)
“Sempre achei que o jogo seria uma boa opção de aprender”.( K, 7 º p.)
“Como uma atividade em que ao mesmo tempo que havia a diversão , havia também a
aprendizagem pois através do jogo a criança desenvolve várias habilidades” (A, 8 º p.)
“Como uma das regras de avaliar o aluno” (J, 8 º p.)
138
Um número significativo de alunos-professores associa jogo à ferramenta
metodológica. Na maioria das respostas percebe-se que alguns dos sujeitos se colocam na
condição de docente quando respondem e outros deixam isto subentendido62.
Não davam importância ao jogo na escola oito participantes da pesquisa, pois não
pensavam no assunto, ou não percebiam se atividades lúdicas aconteciam neste contexto.
Apresentamos alguns exemplos:
“Nunca havia pensado no jogo na escola”. (M, 5º p.)
“Não dava importância”. (A, 6º p.)
“Como desnecessário” (A, 8 º p.)
“Uma brincadeira sem importância”. (E, 8 º p.)
Ligados apenas a disciplina de educação física temos sete respostas, das quais
algumas apresentamos a seguir:
“Apenas com a finalidade de educação física”. (P, 5º p.)
“... Achava que jogo só era feito na educação física”. (C, 5º p.)
“Como recreativo ou parte das aulas de educação física como desporto”. (M, 5 º p.)
“Como atividades das aulas de educação física ou atividades controladas por inspetores,
diretores e professores”. (J, 6º p.)
“... só sendo aceita na educação física”. (L, 7 º p.)
Nestas respostas, novamente a educação física aparece como área de conhecimento
mais próxima do jogo na escola paraalguns entrevistados.
Do jogo na formação de professores
62
Dos trinta e cinco alunos-professores que participaram desta fase da pesquisa, apenas nove nunca tiveram
experiência na docência. Fato que fica evidente nas respostas da pergunta seis, como veremos mais adiante.
139
Pergunta 4 - Durante seu processo de formação na FFP/UERJ, que experiências com
jogos lhe foram proporcionadas? Relate-as identificando que sentimentos, emoções e
sensações lhe despertaram.
Respondendo que participaram de alguma experiência com jogos na FFP, tivemos
unanimidade, visto que todos os entrevistados foram alunos da disciplina de Recreação e
Jogos. Destacamos que algumas das respostas dadas a esta questão e a questão anterior,
ostram uma mudança de olhar em relação ao jogo após o ingresso no Curso de Pedagogia.
Quanto aos sentimentos expressados pelos alunos-rofessores nas vivências lúdicas,
temos as seguintes respostas:
“ Nas aulas de Recreação I. Foram boas, fizeram sentir-me criança novamente”. (P, 5º p.)
“As melhores possíveis, com certeza virei criança em muitos momentos, aliás, como todos
na sala. Podemos gritar, pular, reclamar, torcer, rir, até mesmo implicar com o grupo
adversário, tudo numa boa. E com certeza saíamos da sala mais relaxadas, o corpo até
poderia estar cansado, porém o emocional estava bem”. (S, 5º p.)
“Somente nas aulas de Recreação. Quando brinco nas aulas de Recreação volto a ser
criança, me empolgo, grito, rio, faço tudo o que fazia quando era criança. É ótimo, adoro
brincar!” (C, 5º p.)
“Participei de alguns jogos em Recreação e compreendi a importante função dos jogos
como, por exemplo, desenvolver a criatividade, a socialização, aprimorar o senso crítico e
etc... mas basicamente o que sinto é o prazer em me divertir”. (A, 5º p.)
“Durante o curso de Pedagogia temos tido várias oportunidades de trabalharmos com
recreação, especialmente nas aulas de Recreação e Jogos. A partir dessas atividades
temos recordado um pouco da nossa infância, quando ficamos inseguros ou nos
concentramos nas atividades. Também temos vivenciado sentimentos de companheirismo
e cooperação”. (K, ,5º p.)
“Me proporcionaram um olhar mais profundo sobre os jogos, no que tange aos seus
objetivos e benefícios. Bem vivenciando os jogos tive momentos de alegria, de disputa (nas
atividades de competição) e de superação”. (J, 5º p.)
“ Nas aulas de Recreação . Foram experiências maravilhosas e inesquecíveis. Voltemos a
ser crianças e passamos a entender o quanto faz bem ao corpo , mente e espírito. Foram
fortes emoções, o coração disparava, eu suava, gritava, sorria e ficava muito feliz”. (M, 5
º p.)
140
“Muitas experiências boas, entre elas tornar as aulas mais agradáveis , trabalhar vários
conflitos entre os alunos , trabalhar disciplina em sala, respeito às regras, além disso há
uma sensação de liberdade , é o momento em que todas as emoções são extravasadas , não
há nenhum tipo de censuras , todas as pessoas tornam-se iguais da mesma idade, com os
mesmos objetivos , além do elo de amizade que se forma durante o jogo e até
cumplicidade”. (G, 6º p.)
“As mais variadas possíveis, sempre participei e me sentia uma criança. Só nesses
momentos é que pude perceber que a criança não é diferente, ela grita, fica ansiosa, “ cola
do outro” , enfim, busca recursos assim como eu e minhas colegas fizemos, para sempre
ganhar, ninguém queria perder”. (S, 6º p.)
“As únicas experiências que tive aconteceram a partir do 5 º período em Recreação”. (A,
6º p.)
“Experiências maravilhosas de libertação, de competitividade, de esquecimento dos
problemas de satisfação de vencer e vontade de gritar e ser feliz”. (R, 6 º p.)
“Inúmeras nas aulas de Recreação. Voltamos a ser crianças e passamos
a respeitálas mais ainda, pois as compreendemos melhor. Suas emoções, fantasias, sonhos, alegrias,
angústias, passaram a ser percebidas por nós professores”. (J, 6º p.)
“Acho que não existe ninguém que não goste de participar de jogos. No começo pode
haver um pouco de timidez, ou também o medo de errar, por isso se faz necessário
trabalhar jogos nas escolas e se possível a todo momento para que o indivíduo torne-se um
ser social. Fizemos na FFP vários tipos de jogos, os quais nos proporcionaram o prazer
de reviver brincadeiras/jogos de nossa infância. É bem legal sentir a adrenalina de
novo, o corre-corre do dia -a dia nos faz esquecer o quanto as atividades como essas
fazem bem para o corpo r para a mente” (L, 7º p.)
“O jogo na FFP me proporcionou voltar no tempo, na época em que era
garota e
que brincava na rua com os meus amigos, sem medo de errar e com muita vontade de
vencer.Acredito que o jogo seja igual a um bom livro, porque a cada tempo vivido a
interpretação torna-se diferenciada e melhor. O lúdico proporciona um sentimento de
liberdade, um sorriso na voz, um grito no peito e uma ansiedade em como será a
próxima etapa do jogo”. (G, 7 º p.)
“Entre todas as atividades, a que eu mais gostei foi os trabalhos finais do 5 º período, pois
todas aquelas brincadeiras me fizeram lembrar de como era ser criança e reconhecer
todas as habilidades que eu não desenvolvi por falta de jogos”. (K, 7º p.)
“Aprendi muito com Recreação, principalmente relacionando a teoria com a prática .
Hoje vejo o jogo de forma diferente , como algo natural e que é importante para o
desenvolvimento geral da criança” . (L, 7 º p.)
141
“ Experiências práticas e teóricas. Estas experiências que tive com jogos na disciplina de
Recreação me proporcionou vivenciar momentos de diversão, alegria e prazer, os quais
não tive na minha fase de criança em educação básica”. (J, 8º p.)
“As experiências adquiridas na disciplina de Recreação me proporcionaram momentos de
descontração, prazer, ... e muitas reflexões
pois a cada jogo ( brincadeira) que ia
sendo apresentada eu já pensava em que momentos eu poderia utilizá-los”. (A, 8º p.)
“Só na disciplina de Recreação como uma criança”. (A, 8º p.)
“Vários na aula de Recreação” (M, 8º p.)
“Foram várias situações. Todas elas despertavam sentimentos de alegria “. (M, 8º p.)
“ Experiências prazerosas”. (K, 8º p.)
“As atividades com jogos forma apenas nas aulas de Recreação . Esta aula era uma forma
de resgatar o prazer pelas atividades”. (H, 8º p.)
“ Alegria, excitação e surpresas”. (C, 8º p.)
“Corporal, sentimental, sentimento de prazer”. (E, 8º p.)
“Somente na aula de Recreação com jogos sem a preocupação de avaliar o aluno e na
aula de metodologia de matemática. (J, ,8º p.)
A relação teoria e prática, proporcionada pela disciplina Recreação e Jogos, foi um
marco significativo no entendimento do jogo no processo educativo. A partir das fruições
provocadas pelos jogos, foi possível ao aluno-professor perceber o que sentem as crianças
quando jogam: “todas aquelas brincadeiras me fizeram lembrar de como era ser criança “
Nas repostas dadas, também encontramos evidências na mudança de olhar com
relação ao jogo no âmbito escolar, como nos exemplos que se seguem:
“Não tinha o conhecimento da importância do jogo que tenho hoje, admito que o curso de
pedagogia muito me acrescentou e hoje conheço todo o benefício, padrão cognitivo do
aluno, conheço também a metodologia para a aplicação do jogo em várias disciplinas para
auxiliar na assimilação dos conteúdos propostos de uma maneira lúdica”. (G, 6 º p.)
“ Não via como importante, pois vivenciei pouco durante todo o meu período escolar.
Porém hoje consigo ver a necessidade do jogo associado a outras disciplinas que não seja
somente a educação física”. (G, 7 º p.)
142
“ Mesmo antes de ingressar na FFP já entendia que o jogo é algo que ajuda muito no
desenvolvimento pessoal em várias áreas, pois fiz o curso normal, por isso já tinha essa
opinião formada”. (A, 7 º p.)
“Como fiz um Pedagógico muito bom, ou seja, onde os profissionais procuraram nos
formar com uma gama de recursos que podem ser utilizados em sala de aula , juntamente
com as teorias cabíveis. Portanto, tive uma boa introdução do jogo na educação, como
meio de aprendizagem e uma forma lúdica de melhor apresentar os conteúdos”. (J, 8 º p.)
“Durante a formação fui tendo a consciência que o jogo é uma atividade que desenvolver
as diversas capacidades físicas, emocionais, cognitivas. E nas atividades realizadas com
dinâmicas fica caracterizado a proteção com os amigos”. (I, 8 º p.)
Relacionando o jogo ao processo ensino-aprendizagem, obtivemos cinco respostas,
das quais duas se referiam às atividades da disciplina Metodologia de Matemática e outras
referiam-se a recurso pedagógico e metodologias de aulas. Apresentaremos as repostas
referentes a este enfoque:
“Jogos educativos na disciplina Metodologia de Matemática e vários tipos na disciplina
de Recreação, onde pudemos vivenciar momentos de
descontração,
prazer
e
interação”. (F, 6º p.)
“Somente na aula de Recreação com jogos sem a preocupação de avaliar o aluno e na
aula de metodologia de matemática”. (J, 8º p.)
“Descobri que podemos em nossas aulas utilizar o jogo como recurso e isso foi uma
descoberta importante”. (M, 5º p.)
“ Muitos foram os momentos em que nos envolvemos neste tipo de atividade. Atividades
lúdicas com material concreto para o desenvolvimento do processo de ensinoaprendizagem. Tivemos sentimentos de alegria, curiosidade, satisfação, liberdade,
competitividade”. (B, 5º p.)
A flutuação de sentidos dos jogos podem provocar uma mudança de olhar que
permite uma (re)significação na relação jogo-educação. O professor, através das vivências
143
nas atividades de jogos em seu processo de formação, pode ser levado a uma trans-formaação de suas práticas pedagógicas lúdicas.
Pergunta 5 - Qual a importância destas experiências com jogos na sua formação para sua
prática pedagógica atual ou futura?
Todos os entrevistado reconhecem a importância do jogo no contexto educativo:
“ Essencial. Acredito que o jogo seja uma ótima forma de trazer a criança para a
finalidade pretendida pelo professor”. (P, 5º p.)
“ Muito importante, a partir do momento em que vivenciei essas emoções contidas nos
jogos e gostei, percebo o quanto é importante o jogo na escola , para que os alunos
também participem de atividades que o ajudem na descarga emocional, etc.. “ (S, 5º p.)
“Estes jogos têm uma grande importância, principalmente porque adquiro experiência
com a prática, logo sei exatamente que atitudes e que sentimentos os meus alunos terão.
Graças ao curso de Recreação conheci muitas brincadeiras que não irei esquecer e que me
ajudará muito em minha prática na sala de aula”. (C, 5º p.)
“Essas experiências são de suma importância para minha formação, pois pretendo
proporcionar aos meus alunos um ambiente educacional que trabalhe com bastantes
jogos”. (K, 5º p.)
“ Acho muito importante, pois tenho a oportunidade de vivenciar algo que futuramente
trabalharei com meus alunos de forma que terei uma sensação de prazer, até porque eu já
tive a chance de sentir o jogo na pele”. (J, 5º p.)
“É de muita importância, agora eu posso trabalhar o jogo com consciência, com
objetivos, sabendo que objetivos alcançar, como e por quê alcançar”. (G, 6º p.)
“Só vivenciando, praticando é que aprendemos, é que conseguimos sentir as mesmas
coisas que a criança. Sempre considerei o jogo importante, agora então nem se fala”. (S,
6º p.)
“Para a minha prática tem a importância de poder estar observando as estratégias
utilizadas pelas crianças para a competição”. (A, 6º p.)
144
Considerando o valor do jogo enquanto recreação, obtivemos dezesseis respostas
que também o consideraram um fenômeno espontâneo na criança que leva ao prazer e a
alegria. M<udança provocada , para muitos, na formação docente. Seguem algumas
respostas:
“Nos proporcionam mais possibilidades na realização de tarefas diversificadas que fogem
da rigidez do currículo”. (B, 5º p.)
“ Ficava muito ansiosa para aplicar as atividades com meus alunos, só assim eles
poderiam ficar felizes como eu ficava quando brincava. Minha formação ficou mais
consciente da importância do lúdico na escola “. (M, 5 º p.)
“Só vivenciando, praticando é que aprendemos, é que conseguimos sentir as mesmas
coisas que a criança. Sempre considerei o jogo importante, agora então nem se fala”. (S,
6º p.)
“Me fez pensar o jogo como instrumento de integração, diversão, emoção, prazer,
libertação”. (R, 6º p.)
“O reconhecimento de que o jogo faz parte do processo educativo e de que o prof. deve ter
conhecimento teórico e prático para compreendê-lo como natural e importante para todos
nos aspectos social, cognitivo, motor , psicológico e social”. (J, 6 º p.)
“A partir do momento em que experimentei estas sensações, pude perceber de como as
crianças se sentem e como o jogo trabalha com habilidades que devem se desenvolvidas
nas crianças”. (J, 8º p.)
“Acredito que o jogo seja uma importante forma de aproximar as crianças da ludicidade e
isso pude comprovar após a disciplina Recreação”. (H, 8º p.)
“ O jogo ajuda a perceber as dificuldades, emoções dos alunos”.(E, 8º p.)
Com intencionalidade, ou como recurso pedagógico, usado como metodologia ou
mesmo como propiciador do desenvolvimento da criança em diferentes aspectos,
obtivemos
sete respostas , das quais algumas apresentamos abaixo:
“Essencial. Acredito que o jogo seja uma ótima forma de trazer a criança para a
finalidade pretendida pelo professor”.(P, 5º p.)
“Estes jogos têm uma grande importância, principalmente porque adquiro experiência
com a prática, logo sei exatamente que atitudes e que sentimentos os meus alunos terão.
145
Graças ao curso de Recreação conheci muitas brincadeiras que não irei esquecer e que me
ajudará muito em minha prática na sala de aula”. (C, 5º p.)
“Aplicar nas minhas aulas com as crianças”. (A, 5º p.)
“Como disse posso utilizar o jogo como recurso em sala”. (M, 5º p.)
“É de muita importância, agora eu posso trabalhar o jogo com consciência, com
objetivos, sabendo que objetivos alcançar, como e por quê alcançar. (G, 6º p.)
“Aprendi a utilizar os jogos na sala de aula”. (M, 6º p.)
“ O jogo na escola precisa estar associado a um fundo didático/pedagógico para que se
possa ser aplicado em sala , sem sermos observados pela diretora”. (G, 7º p.)
“A importância é saber o quanto o jogo pode ajudar a aprendizagem de nossos alunos.
Na brincadeira é mais fácil assimilar certos conteúdos”.(L, 7º p.)
“Que pude perceber que o jogo não serve apenas como uma atividade recreadora,
podemos introduzi-lo no nosso dia a dia como ajuda no processo de aprendizagem” (A, 8º
p.)
Após as discussões sobre a temática jogo durante o processo formativo, os alunosprofessores passam a compreender a diversão, o lazer e o prazer como dimensões
imbricadas no processo educativo. Tendo um fim e si mesmo, pelo aspecto recreativo,
e/ou sendo um meio de ensinoaprendizagem, os jogos passam a ser entendidos como
parte do processo de formação humana. De forma mais consciente, o professor passa a
pensar no uso de jogos e brincadeiras em sua práxis educativas.
Do uso do jogo na escola
Pergunta 6 - Enquanto docente, em que momentos você utiliza jogos na escola? Relate
um exemplo desta utilização.
146
Nove dos participantes não tiveram oportunidade de promover o jogo para alunos por
não atuarem na docência e os vinte e seis
participantes restantes
manifestaram-se
favoravelmente ao uso do jogo na escola. Destacamos os depoimentos dos que já atuam na
docência:
“Na alfabetização utilizei para quebrar um pouco a timidez de alguns alunos, ex; um
aluno sai da sala e quando volta tem que adivinhar o que mudou na sala”. (C, 5º p.)
“ No início ou no final da aula, ou no recreio”. (K, 5º p.)
“Sempre que tenho horário para recreação, mas depois do curso me interesso também
pelo que os alunos fazem no recreio. Meu olhar para o brincar mudou , eu valorizo os
jogos como educativos e socialmente importantes”. (M, 5 º p.)
“Na sala de aula, as vezes na quadra. Sou professora apenas de matemática e ciências,
não leciono recreação, por isso, sempre procuro as aulas dessas disciplinas com o jogo.
Tenho obtido resultados positivos”.(S, 6º p.)
“Depois das aulas de Recreação, sempre que possível ( horas livres com meus alunos) eu
levo as atividades que vivenciamos na FFP”.(L, 7 º p.)
“A princípio utilizava como estratégia para aplicar algum conteúdo e na hora da
recreação, agora que sei da importância do jogo na escola, ele se faz mais presente com
intuito de divertimento, prazer, energia”. (S, 5º p.)
“Hoje utilizo com mais freqüência, principalmente nas aulas de matemática. (A, 8º p.)
Nas respostas acima, percebe-se que mesmo que haja uma intencionalidade, o
aspecto de prazer, de recreação faz parte da preocupação do professor que se propõem a
usar o jogo na escola.
Compreendendo o jogo enquanto recreação, obtivemos onze respostas, dentre os
vinte e seis que já atuam na docência. Estes docentes utilizam os jogos na escola também
com o intuito de proporcionar prazer e divertimento. As respostas que se seguem são alguns
exemplos.
147
“A princípio utilizava como estratégia para aplicar algum conteúdo e na hora da
recreação, agora que sei da importância do jogo na escola, ele se faz mais presente com
intuito de divertimento, prazer, energia”.(S, 5º p.)
“Em sala de aula quando a turma pede, mesmo sem falar. O professor consciente e
sensível percebe a hora de alegrar as crianças e também a hora de fazê-las prestar
atenção. Uso muito as dinâmicas que vivenciei em Recreação”. (J, 6 º p.)
“Na hora do lazer, recreação ou em sala para trabalhar e fixar um conteúdo”. (G, 6º p.)
“Estou dando aula para Jardim III, ou seja, o jogo é muito importante. Gosto de jogar com
eles próximo a hora da saída para que possam ir mais animados para casa. O jogo que
mais gostam é boliche”. (A, 7º p.)
“No início ou no final da aula, ou no recreio”. (K, 5º p.)
“Sempre que tenho horário para recreação , mas depois do curso me interesso também
pelo que os alunos fazem no recreio. Meu olhar para o brincar mudou , eu valorizo os
jogos como educativos e socialmente importantes”. (M, 5 º p.)
“
“Eu utilizaria em uma sexta feira para trabalhar recreação ajudando o aluno a aprender
sem cansar”. ( K, 7º p.)
Dos vinte e seis que já atuam na docência, dez associaram o jogo a um processo
formativo definido, ou seja, como jogos didáticos. As respostas comprovam isto:
“Utilizo para introduzir várias matérias como, por exemplo, o alfabeto. Ele proporciona
aumento no rendimento escolar das crianças pelo fato de envolvê-las mais profundamente
nas atividades”. (B, 5º p.)
“ Como professora trabalhei com jogos no ensino de alguns conteúdos sobre matemática/
ciências ( dominó matemático, jogo da memória sobre animais). Enfim, houve também a
aplicação de jogos em outras disciplinas”. (J, 5º p.)
“Como disse, posso utilizar como recurso em aula”. ( M, 5º p.)
“Na hora do lazer, recreação ou em sala para trabalhar e fixar um conteúdo”. (G, 6º p.)
148
“ Na sala de aula, as vezes na quadra. Sou professora apenas de matemática e ciências,
não leciono recreação, por isso, sempre procuro adaptar partes das aulas dessas
disciplinas com o jogo. Tenho obtido resultados positivos”. (S, 6º p.)
“Durante a aula de matemática uso dados ou boliche”. (A, 6º p.)
“Muitas vezes atualmente utilizo através da leitura, figuras geométricas,
..”. ( S, 7º p.)
números,
“Como trabalho com Educação Infantil, não existe método melhor que a utilização de
jogos para ensinar os conteúdos para crianças de três anos. Eles adoram e eu também,
pois os dias não viram rotina. Utilizo jogos com garrafas ( boliche) para ensinar números
e cores “. (L, 7º p.)
“ No momento de recreação e em aula , como em noções matemáticas. Ex: ensinar a
contar de 0 a 10. Utilizei o jogo de tabuleiro no qual para chegar ao fim do percurso era
preciso contar as casas e enfrentar os obstáculos. Um jogo simples e de acordo com a
idade das crianças”. (J, 8º p.)
“Hoje utilizo com mais freqüência, principalmente nas aulas de matemática”. (A, 8º p.)
“Como estratégia em algumas disciplinas”. (A, 8º p.)
“Jogos matemáticos, dominó, quebra-cabeças”. (C, 8º p.)
Como recreação ou como alavanca metodológica, tivemos um número de reposta quase
na mesma proporção. Onze no primeiro caso, e dez no segundo. E em algumas respostas
podemos observar que as duas preocupações ( recreação e ensino de conteúdo) estão
presentes. Essa polarização aparece nas imagens que fazem dos jogos escolares como um
meio em que constelam sentidos de motivar/organizar/disciplinar e/ou como um fim com os
sentidos de recreação/êxtase/escape. Observamos que o jogo na educação transita entre este
dois pólos: lazer/tarefa. Brougère (1998) aponta que esta é uma das formas mais clássica de
se associar jogo e educação. Talvez por força do pensamento racional, simplificador, o
professor acredita que ao utilizar o jogo na escola deve haver uma intencionalidade
pedagógica, logo, o tempo deste torna-se produtivo.
Pergunta 7-Como reagem os alunos e os outros sujeitos da escola quando você utiliza
jogos com a turma?
149
Dentre os vinte e seis alunos-professores que já lecionam vinte e uma respostas
afirmam que as crianças adoram participar de atividades lúdicas no ambiente escolar.
Vejamos as respostas:
“Gostam bastante, pois além de divertir, educa”. (Â, 5º p.)
“ Momentos de euforia, querem saber logo qual será o jogo apresentado. E na hora da
aplicação, não acontece nada diferente do que aconteceu nas nossas aulas na FFP .
Pudemos perceber que somos sempre crianças”. (S, 5º p.)
“Os alunos interagem mais do que nas aulas tradicionais e a diretora gosta muito, pois é
algo que ela cobra muito”. (B, 5º p.)
“As crianças adoram, principalmente quando se trabalha com jogos de competição”. (J,
5º p.)
“ Os alunos adoram, ficamos mais próximos. O diretor e os outros sempre comentam que
eu faço muita “ farra” com as crianças, mas com o que aprendi na Pedagogia consigo
fazê-los entender o que acontece na prática”. (M, 5 º p.)
“ Os alunos ficam empolgados, se interessam, o rendimento das aulas só têm aumentado.
Tenho total liberdade para utilizar quaisquer recursos deste tipo. Trabalho em equipe com
outros professores trocamos estratégias metodológicas”.(S, 6º p.)
“Eles gostam muito”. (M,, 6º p.)
“Percebo que há alegria, satisfação e a necessidade da utilização do jogo constantemente
na escola, para formação contínua”. (S, 6º p.)
“As crianças amam, e de tanto fazê-lo já ganhei a fama de professora brincalhona.
Defendo tanto a importância disso com base no que aprendi no curso, que hoje já
entendem a relação do jogo com a educação”. (J, 6 º p.)
“As crianças adoram e a escola onde trabalho, a pedagoga e a psicóloga ajudam muito a
trabalhar com jogos”. ( S, 7º p.)
“Os meus alunos adoram, minha relação com eles ficou até melhor. A escola ainda se
preocupa com estas atividades porque pode parecer liberdade demais, alegria demais”. (L,
7 º p.)
“Se divertem , riem, e assimilam o conteúdo que está embutido no jogo”. (J, 8º p.)
150
O jogo é uma forma de expressão da criança que possibilita diferentes fruições. São
expressões cujos sentidos remetem à
sonhos, desafios e
alegrias. “A criança se
expande em instantes de encontro consigo mesma, na percepção do que é capaz de
fazer”. (FERREIRA, 2003,p.148). Jogo, brincadeira e infância caminham juntas.
Doze alunos-professores com experiência na docência, dentre os vinte e seis,
observaram que o uso do jogo na escola é visto pelos demais sujeitos (diretores, pais, outros
professores, etc.) com desprezo, com reclamações, limitações ou só são praticados e
aceitos
via educação física . Este percentual representa quase a metade das respostas
dadas. Esta é uma das grandes barreiras que limita o jogo na escola: compreender que o
dinamismo do jogo gera uma grande gama de significações que potencializam o
aprendizado para a vida.
“Olharam com desprezo, achando que é perda de tempo”. (C, 5º p.)
“ Os alunos adoram, ficamos mais próximos. O diretor e os outros sempre comentam que
eu faço muita “ farra” com as crianças, mas com o que aprendi na Pedagogia consigo
fazê-los entender o que acontece na prática”. (M, 5 º p.)
“Os alunos sempre gostam, não há nenhuma dúvida. A coordenação e os pais nunca
entendem por falta do conhecimento da importância de trabalhar com jogos. As pessoas
erram por falta do conhecimento da verdade, por serem simplesmente arbitrários”. (G, 6º
p.)
“Os alunos ficam entusiasmados, os colegas de trabalho duvidam do aprendizado com
jogos”. (A, 6º p.)
“As outras pessoas da escola não tomam conhecimento , pois como é uma escola pública,
graças a Deus , não tenho a direção a todo momento “ no meu pé” , mas os alunos
adoram”. (A, 7º p.)
“ Quando comecei a trabalhar na escola que leciono, todas as professoras começarem a
introduzir jogos em sala de aula. Muitas vezes o professor não utiliza certas maneiras de
ensinar, não por que não goste, mas sim por falta de estímulo e apoio”. (L, 7º p.)
“Os meus alunos adoram, minha relação com eles ficou até melhor. A escola ainda se
preocupa com estas atividades porque pode parecer liberdade demais, alegria demais”.
(L, 7 º p.)
151
“Os alunos adoram, não querem parar. Já os outros sujeitos da escola, às vezes reclamam
por causa do barulho”. (A, 8º p.)
Apenas quatro dos vinte e seis professores responderam ter apoio para utilizar o
jogo em suas atividades na escola. O reconhecimento da importância dos jogos no contexto
escolar, nesta pesquisa, ainda está aquém do desejado.
“Eu não estou atuando como professora atualmente, mas quando atuava as pessoas
geralmente viam com bons olhos essas atividades”. (K, 5º p.)
“Os alunos interagem mais do que nas aulas tradicionais e a diretora gosta muito, pois é
algo que ela cobra muito”. (B, 5º p.)
“Os alunos ficam empolgados, se interessam, o rendimento das aulas só têm aumentado.
Tenho total liberdade para utilizar quaisquer recursos deste tipo. Trabalho em equipe
com outros professores trocamos estratégias metodológicas”. (S, 6º p.)
“ As crianças adoram e a escola onde trabalho, a pedagoga e a psicóloga ajudam muito
a trabalhar com jogos”. ( S, 7º p.)
Reconhecendo que a escola não tinha espaço, material ou tempo para atividades de
jogos, tivemos três relatos:
“ Na escola em que trabalho não há jogos durante as aulas, só na aula de educação
física”. (C, 5º p.)
“Na instituição eram feitos pouquíssimos jogos sem nenhum objetivo produtivo”. (M, 7º p.)
“ Na educação infantil trabalhava brinquedos cantados como forma de interação entre os
alunos. Os jogos eram poucos, pois a escola era pequena e não possuía espaço
adequado”. (I, 8º p.)
Num panorama das respostas dadas a esta questão, podemos perceber que os
sentidos dos jogos flutuam e vibram dentro de um espaço intermediário entre o desejo das
crianças e o controlo dos sujeitos da escola.
152
Das marcas deixadas pelo jogo
Pergunta 8-Que marcas positivas e/ou negativas a utilização de jogos na escola pode trazer?
Observou-se que alguns responderam sobre as suas próprias marcas enquanto alunos do
ensino fundamental, enquanto outros compreenderam que as marcas referiam-se ao seu
trabalho enquanto docente, desta forma, todos os participantes encontraram marcas
positivas como: criatividade; liberdade; descontração; diversão; formação de hábitos e
atitudes; bem estar físico e mental; desinibição; cooperação; alegria, fortes emoções;
solidariedade, senso crítico; formação de opinião; interação entre os alunos; superação de
limites; convívio com regras; espontaneidade; segurança; motivação; aprendizagens.
Apresentaremos algumas respostas que evidenciam estas marcas positivas:
“ Acredito que o jogo só pode trazer benefícios, tanto para o professor quanto
(principalmente) para as crianças. O lúdico nos permite trabalhar e identificar
dificuldades vividas em sala de aula, desenvolvendo habilidades e descobrindo novas
habilidades, socialização e cooperação despertando sentimentos e emoções”. (C, 5º p.)
“ Não sei se foi porque me apaixonei pelas atividades, que percebi marcas positivas e não
negativas. Marcas essas que destacam alegria, solidariedade mesmo que as vezes, senso
crítico, expor opiniões, criatividade, formação de hábitos e atitudes sócio-emocionais,
habilidades físicas , intelectuais e sociais. Talvez o aspecto negativo seja o aluno não
quere parar mais”. (S, 5º p.)
“Acredito que seja positivo para a formação discente, mas algumas escolas interpretam
esse tipo de atividade como algazarra e vetam a sua realização intra muros escolares”. (P,
5º p.)
“Positivas: Pois eu me divertia e aprendi muito através dessas atividades”. (K, 5º p.)
“As marcas positivas são que as crianças interagem e aprendem melhor. Não há marcas
negativas, pois a escola possui material suficiente para a realização das mesmas”. ( B, 5 º
p.)
“Práticas pedagógicas com jogos traz mais marcas positivas do que negativas. Tendo o
olhar sobre o aluno temos como marcas positivas: superação, prazer, alegria, medo e
outros” (J, 5º p.)
153
“A socialização e a cooperação”. (M, 5º p.)
“Mais marcas positivas que negativas. Quando o professor entende que o jogo é um
fenômeno social importante que faz parte da viva da criança ele passa a valorizar o
lúdico na escola, logo vi muitas coisas positivas”. (M, 5 º p.)
“Positivos sempre, se for bem empregado . ...O jogo assim, podemos dizer que deve fazer
parte da vida escolar e social da criança. O jogo trabalha o indivíduo como um todo, a
mente, o corpo, o psicológico, e que os adultos possam conhecer a importância do jogo e
não se culpar por separar um tempo para prática tão gostosa”. (G, 6º p.)
“Os alunos de hoje precisam aprender regras, especialmente de convivências, amizade,
respeito para com ele e outros, aí acredito que os jogos contribuem muito para tal, pois
vivemos em um mundo tão egoísta, cheio de si, de orgulho e na hora do jogo não vejo
coisas como essas acontecerem, as crianças sentem-se prazerosamente obrigados a
cooperarem para vencer determinadas competições que rixas, invejas, egoísmo ficam para
trás , essa é uma marca positiva”.(S, 6º p.)
“As marcas positivas: socialização entre as crianças e as demais séries na escola”. (A, 6º
p.)
“Crianças mais soltas, espontâneas, criativas, dispostas, felizes, seguras, etc..”. (R, 6º p.)
“Ajuda muito o grupo a se conhecer, além de proporcionar momentos de diversão”. (M,
6º p.)
“A socialização, e o prazer que tais atividades proporcionam são de suma importância
para que os alunos se sintam motivados e descarreguem o excesso de energia e não
entendam o espaço escolar como um lugar entediante e opressor”. (F, 6º p.)
“Só reconheço marcas positivas na utilização do jogo, desenvolvendo habilidades físicas,
intelectuais e sociais”. (S, 6º p.)
“ Positivas, as melhores possíveis desde desenvolvimento físico e mental até a
socialização”. (A, 7º p)
“Para mim acho que traz marcas positivas, pois ajuda o aluno no seu processo de
aprendizagem e de socialização com alunos e a professora”. ( S, 7º p.)
Muitos alunos-professores manifestaram-se destacando como
marcas negativas a
resistência ao uso do jogo por falta de tempo; falta de material; falta de apoio da escola, o
desconhecimento de sua importância, insegurança dos professores em usá-lo ou por causar
nas crianças sentimentos de frustração.
154
Observemos estas respostas:
“ Negativo: conflitos com os pais de alunos” (C, 5º p.)
“ Marcas negativas: tristeza ao perder o jogo, frustração. Mas, na verdade essas marcas
negativas as quais me dirigi são importantes na vida”. (J, 5º p.)
“Negativo, se o jogo não atingir um objetivo, for dado apenas para preencher um espaço
de tempo ocioso, quando não tem outra coisa para dar”. (G, ,6º p.)
“Negativas - é visto como passatempo e não como a forma lúdica de aprendizado”. (G, 7º
p.)
“ ...e negativas, bom, quando acaba em briga, como vi várias vezes, aí não é legal, pois
deixa de ser uma atividade descontraída e vira algo sem graça”. (A, 7º p.)
“...já o ponto negativo seria alguns alunos não levarem mais a sério a aula tradicional,
querer nas horas erradas”. (K, 7º p.)
“... Negativos: discriminação pelo meu peso, nunca ganhei um jogo ( inferioridade), várias
marcas dentro e fora no meu corpo”. (M, 7º p.)
“ ...Marcas negativas: exagerar e só permitir brincadeiras . A ordem também é importante
dentro e fora do jogo”. (L, 7 º p.)
“ ... Negativas: excesso de competitividade, não saber perder”. (J, 8º p.)
“ ...Negativas: competitividade ( não gostam de perder)”. (A, 8º p.)
“ ...Negativas: possíveis frustrações por perdas”. (K, 8º p.)
“ ...Negativas: só brincadeiras, sem objetivos”. (E, 8º p.)
“... O lado negativo é o despreparo e o desconhecimento de muitos sobre a importância
da criança pelo jogo ser feliz também no cotidiano da
escola”. ( M, 5º p.)
“...já em relação a negativa é que se o professor não estiver bem estruturado, dominando
a turma e a proposta de trabalho com o jogo não estiver enraizado no professor, a aula
vira uma total desordem que por sua vez , implica em novos problemas com direção, pais,
etc”. (S, 6° p.)
155
Em linhas gerais, pelas respostas dadas ao questionário pode-se perceber alguns indícios:
- jogo também é diversão, lazer e prazer
- a escola é lembrada, muitas vezes, como lugar da alegria dos jogos e das brincadeiras.
- o jogo na escola pode ser usado pelos professores de forma recreativa ou como
metodologia de ensino
- reflexões e vivências sobre os jogos na formação de professores, pode re-significar o
entendimento da relação jogo-educação
- criança adora jogar, mas ainda há resistência, por parte de diferentes atores da escola,
quanto ao uso do jogo
Narrativas: (re)visitando o ato de jogar
Apresento aqui duas entrevistas realizadas na pesquisa em forma de relatos de
fragmentos de história de vida. Estes entrevistados foram escolhidos, dentre os que já
haviam cursado pelo menos o quinto período do Curso de Pedagogia da FFP/UERJ e que
tivessem alguma experiência na docência. Sendo assim, foi possível escolher dentre os
interessados, aqueles com maior disponibilidade de tempo para uma conversa-entrevista.
Na voz destes alunos-professores foi possível apreender seus modos de sentir, pensar e agir
156
nas atividades de jogos e brincadeiras por eles vivenciadas em suas vidas de infância e em
suas vidas de professores.
O ato de narrar torna-se um importante referencial para o pesquisador por permitir
que se veja para além do patente, da norma, também o latente, a vida. A partir de uma
escuta sensível, pode-se objetivar a subjetividade das histórias de vida e apreender, analisar
e interpretar os aspectos emanados nessas histórias transformando-as em narrativas, logo,
dialogando no plano cultural com aquilo que emerge das falas dos entrevistados. Chaves
(2000) compreende que:
“A narrativa, como fenômeno e como método, tem um papel central no
desenvolvimento pessoal e profissional. Através de contar, escrever e
ouvir histórias de vida - as suas e as dos outros - podemos penetrar nas
barreiras culturais, descobrir o poder do “self” e a integridade do outro e
ainda, aprofundar o entendimento de suas perspectivas e possibilidades.
Além do mais, todas as formas de narrativa assumem o interesse em
construir e comunicar significado. O significado da prática, da vida.”
(CHAVES, 2000, p.122)
A pesquisa narrativa, como fenômeno ou como método, floresce no meio acadêmico
atribuindo um significado ao vivido, entrelaçando conhecimentos, sentimentos, condutas,
pensamentos e ações dos narradores. Pela voz do sujeito, relatando e comunicando suas
experiências, pode-se refletir sobre suas práticas, suas crenças e seus valores. (Idem, p.123).
A flexibilidade e a riqueza de interpretações possibilitadas pelas histórias de vida
como metodologia de pesquisa, tem se constituído, ao longo das últimas décadas como
produção científica com uma poderosa e refinada lente de percepção e compreensão das
visões de mundo dos diferentes contextos sócio-históricos. Vejo, assim, a narrativa como
uma via capaz de me levar à compreender a vida como obra, como uma trajetividade
singular envolta em uma teia de significados expressos no ato de contar uma história de
vida, pois “A narrativa é uma forma artesanal de comunicação”. (BENJAMIM,
1987,p.205).
Para além do narrado pela voz, temos que estar sensíveis para perceber o não dito, o
que os corpos falam, o que o olhar revela, o que o silêncio diz. Estamos no plano da
subjetividade resignificando narrações, dialogando com a fala do outro de forma respeitosa,
crítica e profunda. Não me limito aqui a contar histórias, busco compreendê-las, para isto
preciso estar ‘afetada’ pelo vivido do outro percebendo as tatuagens que ele traz e se
revelam para mim.
157
Na carpintaria destas narrativas, recorri a literatura infantil como viés interpretativo
das histórias narradas, onde obra e vida tornam-se fontes para o entendimento dos fatos
subjetivos, revelando a ‘segunda pele’( NÒVOA, 1995) dos sujeitos entrevistados. Desta
‘revelação’ fui captando as imagens que emergiam das falas dos sujeitos relacionando-as à
alguns sentidos dos jogos. Imagens que nos convidam a uma polissemia de sentidos ao
mesmo tempo em que expressam traços, formas e cores da ‘vida do jogo’, do jogo na vida
dos alunos-professores63.
Estas imagens, como expressões simbólicas, traduzem e
decifram o vivido e ao relacioná-las às falas dos sujeitos, busquei remeter o leitor as idéias,
crenças, emoções e sentimentos destes com relação ao mundo dos jogos vividos em
diferentes contextos de suas vidas.
MEMÓRIAS DE EMÍLIA
63
Este neologismo usado no decorrer desta pesquisa se remete aos sujeitos investigados (graduandos de
pedagogia), mas, aqui, faz também alusão a estes sujeitos enquanto alunos nas escolas por onde estudaram e
brincaram, e enquanto professores, passíveis e possíveis brincantes na escola.
158
Maricá - RJ
Memórias de Emília
________________________________________________________________________________________
Minhas memórias, explicou Emília, são diferentes de todas as outras. Eu
conto o que houve e o que deveria haver.
Monteiro Lobato (1950)
As políticas públicas em Educação não têm, nos últimos anos, favorecido a
contento o desenvolvimento das universidades, tampouco os outros segmentos de ensino.
Manifestações, paralisações, atos públicos e greves passam a ser alguns instrumentos de
luta nas reivindicações de inúmeras instituições de ensino, principalmente das
159
universidades públicas. A Faculdade de Formação de Professores da UERJ tem uma
história de resistência, de lutas que foram aqui apontadas no Terceiro tempo deste trabalho“Time: os participantes da pesquisa”.
Foi justamente num período de greve da UERJ, mais precisamente no início de abril
de 200664, que marquei o encontro com Emília para a entrevista da pesquisa.
Fazia uma manhã de sol típica de outono, o que deixava o dia com um brilho
especial que se refletia nos espaços gramados da FFP, tornando-os ainda mais verdes. Eu
cheguei ao jardim interno pela entrada lateral e Emília teve acesso a este jardim pela
escadaria principal do prédio. Nos encontramos assim, inicialmente, neste pequeno pátiojardim. Ela com aquele sorriso largo de sempre me cumprimentou e foi logo exclamando:
“Olha, professora, como a nossa faculdade está linda hoje!
Atravessando o período de greve e sem a travessia de alunos de um prédio a outro,
tornava-se possível ter uma visão melhor dos prédios, pátios e jardim que compunham a
paisagem da FFP. Minha escuta sensível sinalizou de pronto o sentimento de pertença de
Emília por esta Instituição. Em poucos minutos, ali parada, ela comentou dos momentos
bonitos que viveu naquele pequenino jardim. Lembrou que algumas das fotos para o álbum
de formatura foram tiradas ali, o que me levou também a lembrar que participei deste
ritual de registro. Ritual de registro de partida. Fora ali que, semanas antes, Emília havia
me entregue uma caixinha muito bem confeccionada, com uma mensagem/convite para
participar como professora homenageada na formatura de sua turma. Ali, naquele jardim e
naquela ocasião, tiramos uma foto. Marcamos e registramos um tempo no qual Emília
pertenceu à Instituição com muito orgulho. Isto foi percebido em suas palavras: “Fazer
uma UERJ para mim, nossa eu me sinto assim... não que eu fique me gabando, de maneira
nenhuma , mas eu me orgulho de estar aqui. É a minha casa, eu não admito que ninguém
fale mal. Pode ter todas as dificuldades, como tem em todos os lugares, mas essa é a minha
faculdade”
Nos dirigimos para a sala de reuniões do Departamento de Educação que eu havia
reservado para nossa conversa. A faculdade vazia, poucos sons no ar. Não se escutava
batidas de portas, murmúrios de alunos, passos apressados nos corredores. Ouvia-se apenas
a voz alta de Emília, doce como ela.
64
Esta greve da UERJ estendeu-se de 03 de abril a 04 de julho de 2006.
160
Emília, com seus 34 anos de idade, estava cursando o oitavo e último período do
Curso de Pedagogia e, por dois semestres consecutivos, fui sua professora nas disciplinas
de Recreação e Jogos I e II. Chamava-me a atenção seu jeito moleque, brejeiro e ativo.
Participava com entusiasmo das atividades práticas da disciplina e estava sempre
dialogando, fazendo perguntas, buscando respostas, colaborando no entendimento dos
temas tratados em aula. Emília fazia trocas, trocas de afetos, de sorrisos, de conhecimentos,
de experiências, angústias e sonhos. Vivia, a sua maneira, o estar-junto-com maffesoliano65.
Iniciamos a conversa falando sobre sua infância. Eu buscava colher dela
informações quanto à sua cultura lúdica infantil. Assim como a Emília de Monteiro Lobato,
a Emília da Pedagogia passou boa parte do período das traquinices de criança num sítio em
Itaipu, bairro do município de Niterói na Região Fluminense do Estado do Rio de Janeiro66.
Emília fora para lá com sua mãe para se esconder de seu pai. “Porque meu pai não era lá
essas coisas. Meu pai não tinha muita atenção comigo. Meu pai queria me seqüestrar, me
pegar”. Isso mesmo, Emília precisava de um esconderijo porque seu pai queria seqüestrála. Em fuga, Emília perdeu o direito de estudar: “na época eu não ia nem para a escola
porque quando meus pais se separaram o juiz me proibiu de ir para a escola porque meu
pai queria me seqüestrar, me pegar. Então, eu fiquei muito tempo sem ir para a escola. Os
meus primos iam para a escola, aquela coisa toda, e eu ficava em casa brincando de
amarelinha”.
Com a separação dos pais, Emília, aos quatro anos de idade, foi viver neste sítio de
parentes em Itaipu e foi este o período da vida em que ela mais brincou. Este foi, para ela, o
período mágico da infância envolto em brincadeiras proporcionadas pela sua imaginação e
pela natureza ao redor.
“Era o sítio do meu tio e lá tinha muito mato. É, árvores. Eu sempre fui assim, moleca
mesmo, de brincar, de pular, subir em árvore. Brincava com aquelas brincadeirinhas que a
gente faz de lata de leite. Sabe, essa foi mesmo a minha infância. Gostava muito de
brincar de Tarzan e Jane , jogar manga nos outros quando a manga estava madura.
Brincava de onça, brincava pelas pedreiras e aquelas coisas todas que tinha por lá. O
sítio foi o meu jardim da infância. Esse jardim representa a melhor fase da minha
meninice”.
65
Para Michel Meffesoli o sentimento de alteridade remete a uma proxemia amalgamada por trocas que
cimentam as relações humanas.
66
A imagem de abertura desta parte da pesquisa, embora não seja o referido sítio de Emília , representa o
lugar por ela vivido.
161
A idéia de jardim
remete-nos a idéia de resumo do mundo. “ É ele o sítio do
crescimento, do cultivo dos fenômenos vitais e interiores” (Chevalier e Gueerbrant
,2005,p.514 ). O jardim representa um sonho do mundo, que transporta para fora do mundo.
Como símbolo do paraíso terrestre, é a representação dos estados espirituais, das vivências
paradisíacas. Mesmo vivendo num ambiente paradisíaco, Emília foi uma criança que
conheceu de perto a aspereza da vida. Filha de uma mulher pobre e recém separada, a mãe
de Emília, sem condições de manter a filha, refugiou-se no sítio do irmão. Essa passagem
de sua vida foi lembrada por ela com muita tristeza:
“A minha infância foi muito triste. É, todo mundo tinha um monte de brinquedos, um monte
de coisas e eu não podia ter. Todos tinham uma televisão para ver, eu não tinha”.
Como bonequinha de pano, feita do que sobrava dos outros, Emília, jogada de lá
para cá, tentava apenas ser criança. E como foi difícil para ela contar isso para mim.... Ela
foi uma criança que pouco comia, porque quase não tinha mesmo o que comer, mas que
muito sonhava, muito inventava.:
“Porque eu sempre fui assim, a mais, vamos dizer, a que não tinha muito, como eu vou
falar isso? Ah, meu Deus!... Eu não tinha muitos recursos. Eu era a mais pobrezinha da
família, eu era a mais coitadinha. Sabe, tudo para mim era resto. Se viesse para mim era
uma boneca sem perna, nunca uma inteira. Até em relação à alimentação, sabe? Todo
mundo comia, menos eu. Eu não tinha como falar para minha mãe, o que eu vou falar? Ela
também estava ali se sujeitando para me criar. Então, por isso, por isso que eu sempre fui
muito sozinha. Eu morava no sítio da tia da minha mãe, ali de favor, o sítio era deles. Eles
são os donos até hoje. Eu estava ali como penetra até nas brincadeiras. Eu não podia
andar de bicicleta porque a bicicleta não era minha. Eu não podia escutar rádio porque o
rádio não era meu. Eu não podia mexer naquelas bonecas, porque a minha prima, a
Simone, ela tinha bonecas loirinhas. Eu não cobiçava, eu estava satisfeita com o que tinha,
sabe? Eu tinha a minha boneca, tinha a mão da minha mãe, eu tinha as minhas pedrinhas
que eu pintava. Se ela tinha, ótimo. Você tem a sua, eu tenho a minha. Eu tinha coisas que
eles não tinham e que eram muito mais importantes”.
A primeira boneca, talvez uma das mais importantes para ela, foi a mão de sua mãe.
Não era de pano, de plástico, nem de papel. Era feita de dedicação, amor e aconchego na
hora de dormir. A mãe de Emília criava com suas próprias mãos uma bonequinha
imaginária que ‘embalava o sono’ da filha. “Eu nunca tive brinquedo mesmo, sabe, porque
162
assim, a minha mãe sempre foi muito pobre, então a minha primeira boneca foi a mão de
minha mãe que botava lá os dedinhos dela fechados. Colocava a minha chupeta e me
ninava”.
Mesmo com tantas dificuldades, o mundo paradisíaco da infância de Emília no sítio
tinha cor. O verde do mato, o azul do céu, o colorido das plantas e dos pássaros alegrava a
pequena menina-boneca “Depois que a gente foi morar em Itaipu eu fui mais livre, eu me
soltava lá naquele mato. Brincava de Sítio do Pica Pau Amarelo”.
O imaginário lúdico ligado a elementos do campo tem sido suscitado nas últimas
décadas por Monteiro Lobato que ao criar o Sítio do Pica Pau Amarelo, grande obra da
literatura infantil, criou também um vasto mundo imaginativo ligado a elementos da
natureza.
“Eu gostava de ficar lá no sítio mesmo, brincando de bonecos. Fazia boneco de milho,
essas coisas. Minha infância foi assim mesmo de brincar mais como os animaizinhos, com
as coisas da natureza(...). Eu brincava também com os bichinhos. Eu dava banho em
formiga. Eu alimentava o formigueiro. Os meus amigos sempre foram esses, os animais.”
Brinquedo mesmo, Emília quase não teve, até então. Sua primeira boneca de
verdade foi feita pela tia com as sobras dos panos da casa, tal qual a Emília de Lobato.
“A primeira boneca que eu tive foi uma bonequinha de pano que eu tenho até hoje, que
minha tia fez de pedaço de pano. Tinha duas faces. Jogava o cabelinho assim para trás, ela
estava sorrindo. Jogava o cabelinho assim para o outro lado, ela estava chorando. Eu
brinquei muito, muito. Era minha companhia, minha mesmo. Eu tenho até hoje a minha
bonequinha de pano. Ela foi o meu primeiro brinquedo mesmo, o meu primeiro brinquedo.
Ela está comigo até hoje. Nela está depositada toda a minha infância, o que eu tive, o que
eu não tive e o que eu queria ter.(...) Essa boneca de pano eu ganhei com mais ou menos
5 anos, mais ou menos isso. Ela é toda cheia de tiras, até está sujinha porque ia para tudo
quanto é canto comigo. Eu vejo ela direitinho. Ela é igual ao que a Emília67 é hoje, só que
ela é pretinha, bem pretinha mesmo, e o cabelinho dela é verde com bolinhas brancas.”
Como Emília brincante, tanto a de Lobato quanto a da Pedagogia, até os quinze
anos de idade as bonecas faziam parte do ritual lúdico. Nesta época, já vivendo em outro
67
Referência à boneca Emília, personagem da obra de Monteiro Lobato.
163
lugar e com melhores condições financeiras, ela tinha diversas bonecas que davam vazão
aos sonhos não realizados. Vivia imaginariamente um outro mundo, um lugar outro.68
“ Na minha adolescência, até meus 15 anos eu brincava de boneca porque eu acho que
nela eu podia ser tudo aquilo que eu queria ser. Sabe, eu podia ir para todos os lugares
que eu quisesse. Eu podia botar as roupas que eu quisesse. Eu podia comer o que eu
queria. O meu mundo era ali. Eu fazia roupas para minha boneca, dava banho”
Emília viveu intensamente o imaginário lúdico infantil. Seu mundo de faz-de- conta
era povoado por bonecas que viviam a vida que ela queria ter, por cavalos que voavam, por
formigas que conversavam, por anjinhos que pulavam amarelinha, por bonecos desenhados
em paredes que falavam com ela, por árvores que entravam nas brincadeiras
e
principalmente por um ‘amigo imaginário’ chamado Alex.
“Eu tinha meus amigos imaginários na infância. Eu tinha um amigo que o nome dele era
Alex. Sabe, era Alex. Então, ele é que brincava comigo. Engraçado que eu tinha esses dois
primos, mas não gostava de brincar com eles. Eu gostava de brincar com o Alex porque ele
fazia tudo que eu queria, né? A gente brincava de amarelinha. A gente brincava de latas,
eu e o Alex. Eu botava umas latas, eu não lembro bem se era de leite, ou não sei o que. Eu
jogava umas pedras para derrubar as latas. Eu gostava muito de brincar disso”.
O mundo imaginativo da infância envolve situações imaginárias que são acionadas
pelo brincar e pelo jogar (KISHIMOTO, 2002). Este mundo do faz-de-conta envolve
significações riquíssimas e reveladoras do imaginário infantil. A representação de papéis, a
linguagem, as idéias e ações provêm do mundo social da criança e ao brincar de faz-deconta ela aprende a criar símbolos a partir do que apreendeu no mundo que a cerca. “O fazde-conta permite não só a entrada no imaginário, mas a expressão de regras implícitas que
se materializam nos temas das brincadeiras.” ( Idem, p.39). É criando novos significados
no ato de brincar que a criança desenvolve a função simbólica, elemento que garante a
racionalidade ao homem. Em profunda relação com o meio, a brincadeira se expande no
viver criativo e em toda a vida cultural do homem. Brougère (1998 ) aposta na brincadeira
como fruto da cultura em que o brincante está imerso.
68
Para Johan Huizinga (2004) este lugar outro é um lugar que corre em paralelo com o mundo real. Para
Roger Caillois( 1990) este lugar é espaço-tempo da fantasia, do simulacro ( mimcry)
164
O imaginário lúdico de Emília, tal qual no sítio do Pica Pau Amarelo, está envolto
por muita fantasia, imaginação e criatividade, sobretudo usando elementos da natureza. A
criança adquire experiência brincando. Estas experiências que tanto podem ser externas ( o
brincar de outras crianças) como internas ( a invenção do seu próprio brincar) fornecem
uma organização para a iniciação de relações emocionais propiciando o desenvolvimento
dos contatos sociais. A brincadeira é a prova evidente e constante da capacidade criadora,
ou seja, brincadeira é vivência.69
O amigo Alex habitou a imaginação de Emília até a idade de treze anos,
aproximadamente. Ele nasceu do sentimento de exclusão que Emília viveu na infância. Ela
não tinha com quem brincar. Sua mãe estava sempre envolvida com o trabalho fora e dentro
de casa, sobrando pouco tempo para lhe dar atenção. Este sentimento de solidão na infância
tocou muito forte o coração de Emília e ela chorou no momento da entrevista ao lembrar
das ausências, das carências que a infância deixou. Nenhum adulto sentava para brincar,
conversar, ou contar histórias. Os primos do sítio viviam um outro mundo muito
distanciado do seu no aspecto financeiro e social. Eles tinham brinquedos, iam para escola,
tinham amigos. Ela não tinha nada, mas tinha tudo, tinha a imaginação que alimenta a alma
humana. No seu mundo imaginativo as pedras foram as grandes companheiras. Ela adorava
brincar com pedrinhas. Estava sempre às voltas com elas.
“Mas a maioria das vezes eu brincava sozinha, sabe. Eu gostava de brincar sozinha.
Brincava, lembro muito bem, de pedras. Eu adorava brincar com pedras. Jogava umas
pedras para cima(...). Oh, eu gostava muito de brincar de amarelinha. Eu adorava. Eu
fazia com as pedras. Eu sempre com as pedrinhas. Sempre com as pedrinhas. As vezes
quando estava com um pouco mais de paciência, eu fazia ela todinha de pedras pequenas,
sabe”.
rr
A pedra desempenha um papel importante na relação entre o céu e a terra. “São
símbolos da presença divina ou, pelo menos, suportes das influências espirituais”
(Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.606 ). Existe entre a alma e a pedra uma relação estreita.
Em estado bruto ela desce do céu, transmutada ela se ergue em sua direção. Emília, neste
sentido, dava vida as suas pedrinhas.
69
A este respeito, consultar Winnicott (1965)
165
“No sítio lá em Itaipu. Até a casa da minha tia era em cima de uma pedra. Em cima
de uma pedra assim”. Emília apontou para a janela da sala de reunião onde fazíamos a
entrevista. Desta janela é possível ver a pedreira íngreme que fica atrás do prédio da FFP.
Encoberta por muito verde, a pedreira lembrava o lugar onde foi construída a casa do sítio
em que ela morou. Com o seu largo sorriso costumeiro, e percebendo que as pedras ainda a
cercam, Emília abriu bem os braços para demonstrar o tamanho da pedra onde ficava a casa
da infância. Foi um gesto muito expressivo e revelador do seu fascínio por pedras.
Das lembranças de infância, a brincadeira de amarelinha foi uma das mais
marcantes para Emília. O movimento do jogo da amarelinha remete à idéia de jogar as
pedras em diferentes quadrículas (as terrestres), até que a pedra atinja o céu. (seja devolvida
a ele). Ela adorava brincar de amarelinha e até hoje pula amarelinha com seus alunos. Tem
algo no movimento do jogo que a atrai muito. “As pedras caídas do céu são, além disso,
muitas vezes, pedras falantes, instrumentos de um oráculo ou de uma mensagem”
(Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.606 ). Ela acredita na possibilidade de usar pedrinhas e ir
para o céu encontrar com diferentes coleguinhas, ou melhor, com coleguinhas diferentes –
anjos, que a tiravam da sensação de solidão em que vivia. Como objetos sagrados, as pedras
de Emília levavam-na imaginariamente a ouvir os ‘anjos celestes’ onde as flores abriam
brechas com o transcendente.
“Quando eu brincava de amarelinha, no céu eu botava flores que minha mãe falava que
eram olhinhos de Jesus. Sei lá, um negócio meio azul, roxo. Eu botava sempre isso. Sempre
quando eu brincava, eu jogava aquelas flores para cima. E sempre minha mãe vinha e me
chamava, mas no dia seguinte eu fazia a mesma coisa. Aí eu brincava disso. Eu gostava
mesmo era dessa brincadeira de amarelinha de pedras”.
O jardim da infância de Emília tinha flores, anjos, sonhos e desejos que a levavam a
viver um mundo em paralelo onde a imaginação e a fantasia se consubstanciavam no jogar
das pedras da amarelinha.
“Eu nunca deixei de brincar o meu jogo de amarelinha. Sempre gostei. Era uma coisa que
eu não sei se era porque tinha o céu, sabe, eu não sei. Quando eu era pequena, assim
voltando, quando falo de céu, eu realmente me lembro vagamente que não tinha só o Alex.
Tinha outras pessoas que eu não sei quem eram. Outros tipos de crianças imaginárias que
vinham brincar, que vinham de outro lugar. Eu não sei se era porque a minha mãe contava
166
muitas histórias de anjinhos. Porque ela se sentia muito culpada por eu estar muito
sozinha.”
Diferentes jogos infantis estão ligados a elementos arquetipais. Para Costa (s/d)70 ,
estudiosa na temática sobre o imaginário dos jogos, sobretudo nos de esportes de aventura
e de risco, jogos como o garrafão e a amarelinha que têm o céu como elemento de refúgio
significando o “manto protetor e salvador”( Idem, p.3) , são fortemente investidos de um
imaginário judaico-cristão de purificação, travessia de sofrimento para chegada ao céu. O
céu da amarelinha de Emília tinha ‘olhinhos de Jesus’ e ‘anjinhos’, caracterizando um
espaço celestial. Estes jogos representam um ritual de luta na tentativa de impedir que as
forças do mal invadam a segurança do mundo interior (o do jogo), e cuja desobediência é o
pecado original. Voltar à casa de partida e repetir todas as jogadas como penitência para a
chegada ao céu é uma experiência lúdica fascinante que garante a alma do jogo. Sacrificarse repetindo jogadas, voltar casas, cuidar para a pedra não ficar fora do quadrado da vez,
envolve gestuais lúdicos que garantem a transcendência. Chegar ao céu é garantia de
segurança. Atravessar as quadrículas é sofrimento e trevas.
Os rituais do sacrifício
renovam o potencial do jogo, dão-lhe uma alma que escapa do racional e sai em busca do
onírico povoado de mitos e deuses. Emília vivia e revivia estes rituais de forma prazerosa e
inesquecível.
Brincando sozinha, Emília transitava entre a fantasia e a realidade até que esta
trouxe um brinquedinho de verdade para ela. Um bonequinho de carne e osso chamado
Eduardo, filho do segundo casamento de sua mãe e “apesar de ter nascido o meu irmão,
Alex sempre estava lá. Sempre fazíamos muitas brincadeiras.... O Eduardo conhecia o
Alex, sabia que ele existia e às vezes até brincava comigo que a gente pegava o cavalo e
ia. Era muito engraçado, sabe.” O mundo imaginativo de Emília passava agora a ser
entremeado pela rotina da vida que levava. Cuidar do irmão e brincar com o irmão não
fazia muita diferença. Morando em São Gonçalo, em decorrência do casamento da mãe
com o pai de Eduardo, Emília conseguia manter as brincadeiras do sítio em Itaipu porque
havia espaço para isso na casa onde agora morava. Tinha árvores, bichos e quase tudo com
70
Do texto de Vera Lúcia Menezes Costa: O Jogo e o imaginário social, disponível no site do Programa de
Pós-graduação da Universidade Gama Filho ( www.ugf.br/ppgef)
167
que ela estava acostumada a brincar. A natureza ainda estava ali à sua disposição para
sonhar, inventar, criar e recriar saltitando entre a fantasia e o real.
“Era uma casa da irmã desse que eu tenho como pai. É meu padrasto mas eu tenho como
meu pai. Então, lá tinha muita árvore, tinha cachorro também, tinha essas coisas todas.
Só sei que eu já brincava mais com meu irmão e com o Alex (...) Lá tinha uma varanda
muito grande e era lá que eu brincava de cavalo. Amarrava um barbante na pilastra,
brincava e ali se passava a minha brincadeira e a cuidar do meu irmão. Ele virou meu
brinquedo também. Eu comecei a brincar de professora, de mãe. Era eu que dava banho
nele, era eu que fazia os brinquedos para ele. Fazia, mas não deixava minhas bonecas.
Nessa época eu já tinha muitas bonecas”
Percebendo esta trama que a vida lhe preparou, Emília reclama a ausência de uma
infância que não foi vivida, pois com a segunda separação de sua mãe ela não pode ser
mais criança. “ Minha infância foi interrompida, sabe. Minha infância foi interrompida
porque o tempo que eu tinha para brincar não era muito. Durou pouco tempo a minha
fase de criança”. Envolta em memórias, sentidos, sentimentos, significados e lembranças
ela foi tecendo a trama do vivido e trazendo as marcas que a vida deixou. A vida de Emília
virou. Foi uma fase de sacrifício de tudo. Enquanto sua mãe estava vivendo com seu
padrasto ela teve algumas regalias. Ele a enchia de brinquedos e tudo que seu irmão
ganhasse ela ganhava também. Tinha diferentes bonecas, panelinhas e jogos, vivia uma
vida de criança que tem uma família feliz, mas depois....
“Eu tive que me virar sozinha, sabe. Então eu trabalhava, eu lavava minha roupa, essas
coisas todas. É, eu quase não tinha muito tempo de brincar, depois que eu vim para cá71 e
que minha mãe começou a trabalhar, já tinha o meu irmão, eu tive que esquecer um pouco
da brincadeira. Eu tive que esquecer um pouco de ser criança. Eu tive que amadurecer
muito rápido(...). Foi muito sacrifício de tudo. Era assim, eu tinha uns 9, 10 anos. Então a
brincadeira se tornou dona de casa. Quando eles se separaram houve realmente briga,
aquelas coisas. Ele não dava pensão para a gente. Meu irmão era pequeno, então eu tinha
que tomar conta dele para minha mãe que trabalhava, chegava meia noite, quase uma
hora. Então era eu que tinha que fazer comida. Era eu que tinha que lavar roupa. Não que
ela me pedisse, entende? Não era aquelas mães que ia fazer os filhos de escravos. É que
precisava e então eu tive que amadurecer muito rápido”.
71
Neta fase Emília foi morar em Alcântara, bairro pertencente a cidade de São Gonçalo no norte fluminense
do Rio de Janeiro
168
Com a sensação de infância interrompida, Emília acha que talvez não tenha
desenvolvido tudo aquilo que a brincadeira desenvolve numa criança e que hoje ela
reconhece como importante. Mas as oportunidades de brincar acabaram sendo supridas pela
escola. Ela não lembra bem que idade tinha quando a matricularam na escola pela primeira
vez, mas, no entanto, lembra dos coleguinhas que fez. Com a entrada na escola, aos poucos,
o tempo do brincar ia sendo resgatado, muito embora ela reconheça que na sua época o
dever de aula e os trabalhos de casa eram muito cobrados. Segundo ela, eram muitos
conteúdos a serem dados. A primeira escola que ela estudou foi Feijãozinho Mágico, uma
escola particular que ela freqüentava sem pagar. Ali ela fez amigos e brincava com eles.
Deixar de brincar sozinha, ou somente com seu irmão menor e com amigos que habitavam
sua fantasia, passava a ser uma experiência desafiante. Seus colegas eram reais, não agiam
como o Alex imaginário fazendo tudo o que ela queria .
“Lembro que tinha um pátio legal. A minha professora de alfabetização, Célia, ela gostava
muito de brincar com a gente de fantoches, Lá tinha uns bonecos de fantoche . Isto para
mim era uma alegria porque eu nunca tinha visto aquilo. Eu era grande, a maior da turma.
Eu não lembro assim, com que idade mesmo, porque depois eu fiquei só um tempo também.
Mas tinha uns brinquedos, sabe? No parquinho tinhas uns brinquedos. Tinha balanço,
coisas que eu nunca tinha visto na minha vida. Tinha uma coisa que rodava também. Tinha
escorrega, então eu adorava ir para lá. Dava a hora do recreio eu só queria ficar lá. Era
muito legal. Tinha um negócio assim, cheio de areia para que a gente pudesse brincar.
Sabe, tinha bola, tinha elástico, aquelas cordas individuais para a gente pular.”
Mas, nem com todas essas novidades o Alex deixou de acompanhar Emília. Ele ia
para a escola com ela e participava de tudo dando opinião, indicando brincadeiras. “As
crianças também brincavam, mas era ele, o Alex, que estava me acompanhando. Era ele
que me dizia o que eu ia brincar com as crianças”. Emília entrou tarde na escola, em
conseqüência disto, sempre foi a maior da turma, a ‘grandona’ como ela mesma diz.
Assumia a liderança nas brincadeiras mesmo sem querer, talvez porque inventasse muita
coisa para fazer. Talvez por seu tamanho. Dançava com os colegas, ensinava alguns passos,
brincava de pique, de roda, de pescaria. Dividida entre os cuidados com o lar e o irmão em
casa, Emília fazia das brincadeiras da escola uma fuga da realidade dura em que vivia.
“Nesses momentos de brincadeira eu até esquecia o que estava passando na minha vida.”
O brincar na escola foi marcante para Emília. Por forças das circunstâncias, pois
entrou tarde na escola, ela era sempre a mais velha da turma, o que dava a ela a sensação de
169
pertencimento, de inclusão e laços com os amiguinhos que a tinham como líder. “Eu
sempre tive a companhia das crianças, talvez por isso, até hoje, parece que eu não
amadureci”.
A lacuna que a infância deixou, no sentido de partilhar aventuras e
brincadeiras com alguém da família, com os primos, com crianças das vizinhanças, ou até
mesmo com parentes mais velhos, foi gradativamente sendo preenchida pela escola que
então passava a proporcionar o espaço do jogar, do brincar com coisas e crianças de
verdade, longe dos afazeres domésticos, que apesar de duros, não lhe tiravam a
oportunidade de fazer destes momentos, também momentos lúdicos. Cada traço vivido,
lembrado, imaginado e narrado foi se instalando em seus sentimentos como tatuagens72.
Tatuagens da alma. Rabiscos de uma tatuagem da infância, “Que você pega, esfrega, nega,
mas não lava”73.
“Eu tinha que ser adulta mesmo que eu estivesse brincando. Eu tinha que fazer comida, eu
tinha que tomar conta do meu irmão, ensinar a ele as tarefas e deveres da escola, lavar a
roupa dele, tudo isso. Essa brincadeira era de verdade”.
Experiências, lembranças, emoções e sentimentos vão dando forma, traços e cores
à vida pessoal e profissional. Resgate da memória que brinca no corpo feito bailarina.
“Que logo se alucina, salta e te ilumina”74
Foi refletindo sobre o seu brincar na infância que Emília buscou compreender os
sentidos dos jogos e brincadeiras para as crianças de hoje. “Nada na vida da gente acontece
por acaso, talvez por isso eu tenha muito cuidado com meus alunos ao brincar”. Pensando
nos momentos que não viveu, nos que viveu, ou nos que ficaram só na vontade e no sonho,
Emília busca sentidos para o brincar de hoje, nos tempos de agora.
“Hoje em dia as crianças têm as coisas muito fáceis e não dão valor as coisas simples.
Sabe, com certeza, brincar com umas pedrinhas é muito mais interessante que um
brinquedo eletrônico. Lógico que tudo tem a sua importância na vida, mas eu acho que,
quando, naquela época, as crianças vivenciavam mais o mundo mesmo, a natureza, tinha
coisas assim, a meu ver, mais interessantes”.
72
O simbolismo da tatuagem é indicado pelo sentido original do caráter wen, que designa os caracteres
simples da escrita, o escrito, mas também a sabedoria confuciana. Wen significa as linhas que se cruzam ( o
que poderia relacioná-lo à tecelagem) , veias, rugas, desenhos ( Chevalier & Gheerbrant, 2005, p. 870)
73
Trecho da canção de Chico Buarque de Holanda,Tatuagem
74
Idem
170
“As crianças não tem mais essa liberdade que eu tive na minha época, de ver a natureza,
de brincar, de ver as coisas do campo. Brincar com coisa simples deve ser mais
valorizado. Um pedaço de pedra, uma árvore. Hoje em dia têm crianças que conhecem
pouco as coisas da natureza. Sabe, por exemplo, têm alunos meus que não sabem nem o
que é uma galinha. Eu brincava de escola com as galinhas, elas eram minhas alunas.
Brincava de pular corda com elas. Botava uma galinha, não sei se era preta, meio cinza,
pulava amarelinha com ela. Me arranhava toda , mas era legal”.
Valorizando o vivido, Emília segue a viagem que a memória lhe proporciona:
“Quero ficar no teu corpo feito tatuagem, que é para te dar coragem pra seguir viagem
quando a noite vem”75. Os brinquedos inventados, as resignificações dos objetos de brincar
ficam em sua memória como tatuagens que encorajam-na a abrir espaço nos fazeres
docentes para que as crianças se solem mais brincando ao ar livre. Emília está quase sempre
com seus alunos no parquinho da escola onde trabalha atualmente brincando de rolar pneus,
participando de piques, de brincadeiras de elástico e de diferentes jogos. Ela se ‘solta’
nesta viagem lúdica como adulto brincante. Ela vive e revive o que mais lhe deu prazer na
infância do sítio: brincar.
E por gostar tanto de brincar, Emília sempre desejou dar aulas para crianças
pequenas, crianças da educação infantil, do jardim da infância (a sua). “Eu sempre fui
apaixonada para dar aulas no jardim” . Claro que não só por isso ela optou pela profissão
professora. “Ser professora estava na minha estrada” . Seu desejo de ser professora vem
desde pequena, tal qual o desejo de tantas e tantas meninas, muitas das quais hoje são
professoras de fato na vida real. Brincar de escolinha e viver o imaginário da relação
professor-aluno eram experimentações proporcionadas a Emília pelos elementos do sítio.
Objetos que a natureza dá e que o homem usa, abusa, transforma, deforma e reforma para
seu bel prazer ou necessidade. Mesmo sem ter pisado cedo no chão da escola, Emília
parece que conhecia o que era ser professora. Ter uma turma de bichinhos, em especial de
galinhas e frangos para ensinar, lhe dava prazer, mas parece que para além do prazer era
também uma questão de necessidade pessoal.
“(...) mas eu sinto a necessidade de ser professora. Não sei, é uma coisa dentro de mim que
eu não sei explicar. Parece que eu nasci para ensinar. Me dá satisfação , não é só ensinar
as crianças. Para mim é uma satisfação muito grande quando dizem assim: Ah, você sabe
75
Idem
171
fazer isso aqui, me ensina? Se eu consigo te explicar, aquilo é demais para mim. È uma
coisa que acontece do nada. Eu acho que é isso mesmo, o prazer , a vontade de ensinar”
Muito embora Emília se sinta atraída pela área da saúde, pensando até em fazer uma
faculdade de nutrição mais tarde, a vida lhe deu de presente o exercício76 da docência muito
precocemente. Era uma questão de prazer e necessidade. Ela precisava ajudar na escola
para ter garantida a gratuidade dela e de seu irmão. Prestava serviços para a escola,
principalmente na recreação das crianças. E assim...
“ ... eu tinha meus 9 anos quando comecei a trabalhar neste Externato que eu trabalho
hoje. Eu comecei como ajudante de educação infantil, na época jardim da infância. Eu
tinha uns 9 , 10 anos, Eu trabalhava ali para pagar meus estudos lá e do meu irmão
também. Então essa escola me ajudou muito, muito mesmo. Então, ali me despertou muito
mais. Eu não era ali só como ajudante, as vezes quando a professora faltava ou estava
fazendo alguma coisa, era eu que dava aula para as crianças. Eu sempre tive muito
envolvimento com as brincadeiras dessas crianças, o mundo delas, os jogos, os amigos
imaginários. Eu sempre fique na escola com a parte lúdica, sempre, sempre. Brincava de
‘Atirei o pau no gato’ , jogos de latas. Eu sempre gostei de brincar muito mesmo. Nesta
época brincava muito com jogos de canções, o que se chama de brinquedos cantados.
Sempre fui eu que comandei isso, engraçado que isso é até hoje. Fiquei 10 anos nesta
escola ajudando”
O homo ludens que habitava Emília (e vamos ver adiante que ainda habita) não
escolheu tempo ou lugar para brotar. Se na primeira fase da infância ela não tinha com
quem brincar, a partir dos nove anos de idade a farra entre amigos ficou boa. Brincar com
crianças de verdade na escola era tão bom e fascinante quanto brincar sozinha no sítio, ou
melhor, brincar acompanhada pelo Alex e os anjinhos que vinham para pular amarelinha.
Se no sítio não havia brinquedos, se os bichos, as pedras e seu irmão eram seus objetos de
brincar, na escola eles se materializavam em cordas, escorregas, jogos e fantoches nunca
vistos antes. Se o irmão era o boneco, os bonecos também se transformavam em gente.
Fantoches falantes da escola, bonecos de milho do sítio, galinhas alunas, formigas que
tomavam banho, paredes falantes, bonecos e bonecas no cesto de brinquedos da escola
misturavam-se no seu imaginário lúdico dando novos traços, formas e cores ao brincar. O
76
Uso aqui o termo ‘exercício’ não no sentido de uma profissão assumida legalmente, mas no sentido de
oportunidades de experimentações e vivências no universo escolar.
172
jogo e a brincadeira são realidades que flutuam e vibram dentro de um espaço intermediário
entre o real e o imaginário, o sonhado e o vivido. O êxtase do brincar, as fruições sentidas
pela Emília brincante não dependiam de tempo, lugar ou objetos. O brincar do sítio e o
brincar da escola foram igualmente importantes para ela. Brincar e jogar são atitudes que
escapam do tempo racional, do lugar ideal, dos objetos adequados. Tudo vira tudo no
mundo mágico do jogo e da brincadeira.
No período em que estava no segundo segmento do ensino fundamental, ainda no
Externato, as brincadeiras livres e inventadas no pátio na hora de saída, de entrada na
escola, do recreio e mesmo nos tempos destinados formalmente para a recreação, foram
dando espaço as aulas de educação física. Nestas, as modalidades desportivas eram
trabalhadas sistematicamente, coisa que ela, como aluna, não gostava muito. O que lhe
atraía de fato era a oportunidade que estas atividades davam de fazer amigos, de estar com
os colegas de turma fora do rigor exigido nas outras aulas. Emília participava das aulas de
educação física não pelo jogo, mas pelo prazer de estar ali com os amigos se divertindo.
Enquanto cursava o ensino médio em formação de professores Emília trabalhava
numa escola por indicação de uma professora, mas seu maior sonho seria trabalhar no
Externato, lugar da infância e dos primeiros passos na docência. Essa escola foi a sua vida,
e chegar até ela como professora em exercício era sua meta.
“ O meu sonho sempre foi dar aulas ali no Externato, lugar onde vivi minha vida quase
toda. Com criança pequena a gente pode brincar , você pode se soltar. Sabe aquelas coisas
que eu não pude fazer quando eu era criança? Com eles eu posso fazer. Nesta escola eu
vivi tudo de bom e tudo de ruim , coisas difíceis ou não eu vivi dentro daquela escola .
Minha adolescência, o meu primeiro amor, minhas desilusões, a separação dos meus pais.
Todo apoio, apoio para tudo, eu tive ali. Cada tijolo daquela escola é um pedaço da
minha vida. Sabe, eu ficava ali da manhã até a noite. Ali eu almoçava, eu e meu irmão.
Hoje eu consegui realizar o meu sonho. Eu fui persistente. O sonho da dona da escola
sempre foi esse também. Eu a chamava de vó. Infelizmente ela hoje já é falecida. Eu a tinha
como mãe, avó mesmo. Então ela sempre me apoiou em tudo. Ali sempre foi a minha casa,
a minha família.”
Este sonho se tornou realidade. Emília trabalha atualmente no Externato. Começou
como ajudante de coordenação, só que não era o que ela queria. Seu desejo era ter uma
turma de pequeninos. Inicialmente lhe foi entregue a turma de 1 ª série , “mas é tanto
conteúdo , tanto conteúdo, que você não tem tempo para brincar, você não tem tempo de
173
olhar nos olhos dos seus alunos. Eu chorei, chorei porque eu queria a educação infantil”.
Até que conseguiu assumir uma turma de dezessete alunos do Jardim 2. É com esta turma
que ela trabalha atualmente. Nesta escola o espaço não é grande, mas tem árvores, tem
brinquedos de escorregar, tem pneus no parquinho. Não tem muitos brinquedos de
manusear nem jogos de montar , mas tem um espaço externo que oferece condições para as
crianças brincarem e jogarem. Emília não pretende “criar raízes nesta escola” como ela
mesma diz, mas acha que a partir do curso de Pedagogia novas oportunidades podem
surgir. Ela comenta que adquirindo novos olhares para a educação em sua graduação,
passou a questionar a proposta desta escola, a conhecer outros projetos de ensino, enfim o
curso abriu um horizonte de possibilidades e uma gama de reflexões que não se esgotam
nesta experiência profissional.
Nas franjas do narrado, fui estabelecendo uma delicada interlocução com Emília que
me permitisse apreender mais e melhor os sentidos dos jogos para ela enquanto professora.
Ela foi, desta forma, tecendo seu caminho de formação de professores iniciado no ensino
médio. Apurei minha escuta no que dizia respeito à disciplina de Recreação como parte do
programa desta formação e pude apreender que foi muito voltada para os jogos desportivos.
Jogos de voleibol, basquete, handebol e outros que não a atraíam muito. Ela os considera
‘jogos de adultos’:
“Era só desporto e isso particularmente não me atrai. Eu gosto do imaginário, das coisas
que você pode inventar e criar. Lá era educação física mesmo, a gente fazia competições e
isso não me atraia no Curso Pedagógico que eu fazia.”
“Lá tinha esses jogos, mas era na educação física mesmo, como uma disciplina com prova.
Quando tinha prova de educação física você tinha que explicar como eram as regras do
voleibol, basquete. Eu achava aquilo uma coisa chata, sabe. Para dizer a verdade eu não
sei mais nenhuma regra até hoje. Eu não sentia prazer nisso”.
Emília acredita que o seu Curso Pedagógico no ensino médio só contribuiu com a
parte teórica, pois isto foi muito cobrado no decorrer do curso. Quanto às disciplinas que
abordavam recreação, jogos e ludicidade, ela comentou que não lhe deram a compreensão
da temática que hoje ela atribui ter em função da graduação em Pedagogia.
“Eu aprendi muito aqui, não é puxar o saco da UERJ, mas eu aprendi muito mais a ser
professor aqui do que no meu Pedagógico. Eu evoluí muito como professora depois que
174
vim para cá. Parece que eu aprendi a teoria lá no Pedagógico e aqui eu fiz a prática, não
que aqui não tenha a teoria”, mas a relação entre elas existe”
Para Emília, as disciplinas de Recreação e Jogos I e II cursadas na FFP foram de
grande contribuição para o entendimento da importância do brincar e jogar no âmbito
educacional. Refletindo sobre os referencias teóricos de jogos, vivenciando as atividades
lúdicas e assistindo as outras turmas participando das atividades práticas, ela foi
resignificando o ato de brincar. Para Emília a disciplina proporcionou verdadeiramente a
relação teoria e prática: “Nós tínhamos sim a teoria, mas tínhamos também como era na
prática, como era vivenciar a teoria na prática” e
destaca os sentimentos destas
experiências e as fruições que os jogos lhe proporcionaram.
“ Éramos pessoas grandes, de 20, 30, 40 anos, virando crianças, tirando chinelo, sentando
no chão”
“Nas aulas de Recreação eu podia ser moleca. Eu podia trazer novamente a minha
infância que eu vivi lá no sítio em Itaipu quando eu era mais livre. Sabe, eu quando
brincava com os jogos que a gente fazia eu virava a criança que eu não pude ser”.
“ Essas vivências me trouxeram sentimentos de liberdade, de poder ser eu mesma Sabe,
quando uma pessoa está muito endurecida como pedra é possível que ela se quebre diante
da brincadeira, diante de um jogo apresentado. Uma pessoa por mais triste que esteja, por
mais calejada da vida, desperta a criança dentro dela quando participa destas
atividades.”
A infância é símbolo de simplicidade natural, de espontaneidade. “Como símbolo
da inocência é o estado anterior ao pecado, e, portanto, o estado edênico, simbolizado em
diversas tradições pelo retorno ao estado embrionário, em cuja proximidade está a
infância”. (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.302).
A criança é espontânea, tranqüila,
concentrada, sem intenção ou pensamentos dissimulados.
A imagem da infância sintetiza aqui a imagem das turmas de Pedagogia da FFP
quando envolvidas em atividades práticas da disciplina de Recreação e Jogos. De um modo
geral, os alunos quando solicitados a participar das brincadeiras e jogos, se transformam
em crianças ativas, ansiosas e curiosas com o que é proposto. Nestes anos em que assumi as
turmas do referido Curso e da referida disciplina pude perceber o quanto eles se soltam, o
175
quanto eles vivem o mundo imaginário que achavam ter enterrado quando se tornaram
adultos. As fruições fluem num descomprometimento típico dos que se deixam levar pelo
mundo do jogo, dos que se permitem escapar do mundo real e embarcar numa via
imaginária e fascinante77.
Um outro sentimento trazido por Emília quando perguntei sobre o que a disciplina
havia deixado de marcas para ela foi o sentimento de solidariedade da turma. Ela comentou
que no início do curso a turma era pouco entrosada. Com os jogos, a partir do 5º período, a
turma passou a se conhecer melhor, passaram a ser mais soltas na sala, como ela mesma
diz. As relações melhoraram, os grupos rivais se diluíram e houve um sentimento de ajuda
mútua. As vivências lúdicas serviram também para unir a turma
“Hoje nós podemos dizer que somos uma turma”.
“Tinha uma brincadeira legal também que a gente fez que foi amarrar as bolas nos pés.
Aquele contato com o corpo do outro, aquela aproximação. Aquela coisa de precisar do
outro , de saber que o outro precisa de você para brincar. Existem brincadeiras que você
pode brincar sozinha, mas quando passa de um, quando fica assim uma galera , fica legal
demais, fica muito melhor. Tem uma outra energia , uma outra vibração. Foi interessante
que essas aulas de Recreação fizeram com que a turma se aproximasse. Nós éramos
moças, pessoas que já eram avós, mães e tudo e existia isso de se entregar. Para você ver
como a brincadeira é rica, como a brincadeira é capaz de transformar as pessoas. Com a
minha turma foi assim. Por isso que a gente sentiu muita falta quando terminou. A gente
achava que tinha que ter desde o primeiro até o último período do Curso”.
“Eu acho que o jogo é isso, é ensinar o aluno a compartilhar, ensinar que você precisa do
outro. Têm momentos de individualidade sim, mas quando tem um grupo é muito mais
prazeroso, na brincadeira parece que tudo fica mais fácil”.
A turma passou a criar laços nas brincadeiras. O laço remete à idéia de adesão. “O
laço simboliza neste caso a obrigação, não mais só imposta pelo poder, mas desejada
livremente pelas partes diferentes que se sentem ligadas entre si”. (Chevalier e Gueerbrant
,2005,p.532). Como redes, estabelecem uma comunhão.
Com as idéia trazida pelos autores acima citados, a adesão voluntária da turma foi
incutindo em Emília um sentimento de união, de confiança no próximo e em si mesma.
77
A nível de ilustração, sugiro uma volta à Introdução deste trabalho em que trago fotos das atividades
práticas das aulas de Recreação na FFP.
176
Pois os laços “são os símbolos das forças místicas em poder do chefe, que se chamam: a
justiça, a administração, a segurança real e pública, todos os poderes” (Chevalier e
Gueerbrant ,2005,p.532).
Estes laços fizeram com que Emília se sentisse mais segura,
mais capaz de poder ser ela mesma. Fizeram com que ela acreditasse que os sonhos podem
ser sonhados, que as conquistas são possíveis.
“Quando eu estou jogando é uma sensação muito grande, é muita emoção, isso faz com
que você tenha fé em você mesmo. Eu vivencie tudo isso aqui no curso. Sabe, a Recreação,
ela me fez ter mais segurança em mim mesma. Eu sempre fui muito insegura, eu sempre
achei que nunca ia conseguir, eu sempre achei que jamais na minha vida eu ia fazer uma
faculdade”
A turma de Emília nas aulas de Recreação transformava-se num grupo de crianças
unidas por um objetivo comum: jogar e se divertir. Desta forma elas estabeleceram laços
que ultrapassavam o momento do jogo. Transmitiam uma alegria que se materializava nos
sorrisos, nas brincadeiras e na empolgação com que participavam das atividades lúdicas
como crianças brincantes. Viviam momentos dionisíacos.
“Com certeza as aulas proporcionaram uma entrega total, a maioria da turma percebeu
isso. Até hoje a gente lembra isso, a gente pede que tenha isso , porque lá na Recreação
a gente era feliz”
“Em Recreação, eu gostei muito foi do último semestre que a gente ia lá para aquela sala
onde tinha os tatames, aquele espaço era pequeno, mas para ver como a brincadeira faz
isso, parece que amplia o espaço, como se tudo ficasse maior, mais fácil. Nada impedia a
gente de brincar. Naquele cantinho, lembro uma vez que estava chovendo mesmo, e o
engraçado é que ninguém faltava, ninguém queria perder. Todo mundo queria ver a
brincadeira lá dos outros, anotar o que via, vivia, aquela coisa toda. Todo mundo queria
participar, a turma toda brincava, ria, aprendia. Para você ver como é importante o jogo.
Éramos pessoas grandes, de 20, 30, 40 anos, virando crianças, tirando chinelo, sentando
no chão. A gente não queria saber, as vezes passava da hora, para você ver! Aquele era
um tempo especial, era o tempo da alegria”.
Este sentimento de pertencimento e alegria ia além dos tempos de aulas de
recreação. Os jogos, ao permitirem as sensações e fruições da infância, fizeram com que as
relações da turma tomassem outros rumos. “ A imagem da criança pode indicar uma
vitória sobre a complexidade e a ansiedade, e a conquista da paz interior e da
autoconfiança”.(Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.302). Este sentimento moveu a
177
organização da formatura, o sentimento de união para a realização dos trabalhos das demais
disciplinas, promoveu bate-papos informais vividos nos ‘pequenos nadas’78 que
consubstanciam-se numa solidariedade de base, numa ‘socialidade em ato’79. Uma sensação
de ‘estar-junto-com80’. Vivências que despertaram laços de cooperação, solidariedade e
partilhas. O precisar do outro para brincar e o se sentir parte da brincadeira estabeleceu uma
relação que, á luz do paradigma da complexidade de Edgar Morin, é compreendida como
uma estreita relação de auto-dependência entre o todo e partes.
“Eu mesma brincando aqui me modifiquei muito, foi muita coisa mesmo. Hoje nós somos
mais soltas na sala. Melhorou nossas relações. Hoje não tem grupos rivais, o grupo que
era se desfez. Todo mundo sorri, todo mundo pede ajuda para o outro. Antigamente tinha
isso de se afastar. Hoje nós podemos dizer que somos uma turma. Antigamente era assim,
nos primeiros dias entrando na FFP era como se fosse uma faculdade de Direito. Ninguém
sorria para ninguém, com o passar do tempo era aquela cobrança de provas, trabalhos,
era aquela coisa rigorosa mesmo. No 5º, 6º período é que mudou, acho que foi com essas
brincadeiras de Recreação, então eu acho que a gente se soltou mais. Nos jogos a gente se
unia, a partir destas experiências nessas disciplinas”
Quando interroguei Emília sobre sua compreensão da relação jogo-educação, ela
distinguiu dois momentos. Um antes de entrar no Curso de Pedagogia e outro depois de ter
cursado, principalmente, as disciplinas de Recreação. Para ela o jogo na escola estava
diretamente ligado à disciplina de educação física, as modalidades desportivas e os tempos
de recreação eram de liberdade para as crianças poderem brincar do que quisessem, eram os
horários de ir para o parquinho. Estes tempos do brincar não implicavam, para ela, na
participação do professor. O brincar e o jogar cumpriam a função de extravasar energia,
função de puro lazer. Por mais que ela, desde os nove anos de idade tivesse assumido a
recreação de pequenos no âmbito escolar, e por mais que se considere uma eterna brincante,
ela, até então, não relacionava jogo-educação
pela perspectiva cultural, social e
antropológica. Brincadeiras e jogos tinham apenas uma dimensão de divertimento.
“Eu achava que era só na Educação Física que os jogos aconteciam na escola. Eu nunca
tinha visto nenhum professor fazendo brincadeiras mesmo, aquelas coisas. Mesmo na
78
Expressão usada por Michel Maffesoli apresentada no Primeiro tempo deste trabalho.
Idem
80
Idem
79
178
educação infantil, lá quando eu trabalhava, eu não via nenhuma professora interagir junto
com as crianças”
Emília acredita que as vivências nas atividades de jogos e brincadeiras lhe deram,
para além dos sentimentos de união, liberdade, prazer e divertimento, a compreensão de
que o jogo faz parte do próprio processo educativo. Sendo um fim em si mesmo ou como
meio de algum tipo de aprendizagem, o jogo é importante no âmbito escolar. Suas palavras
reforçam esta compreensão:
“ Hoje nós temos essa visão diferente de jogo na escola , não é só aquela educação física,
não é só competição, é conhecimento interior. O jogo faz isso, você se conhece melhor,
como líder, como parte passiva, sua parte negativa ou positiva naquele grupo . Como que é
interessante aquela brincadeira , como ela revela coisa”.
“ Com as brincadeira, eu acho, a gente pode conversar muito, você que pode estar ali
diretamente, pode interferir naquela brincadeira e mostrar para a criança os valores, o
que é certo ou não. Numa conversa com sugestões, você muda as coisas, pode até mudar o
jeito daquela criança numa brincadeira”
“As regras, os conflitos, a confiança em si, nos outros, as relações que jogo provoca, tudo
isso é muito importante para a criança. Ela aprende a pensar nas situações”.
“A gente sabe que os jogos e as brincadeiras são importantes também para o
desenvolvimento da criança, para os órgãos, para a energia dela nas atividades, dá
disposição. Os jogos estimulam muitas coisas”
Emília entende que o jogo pode também ter uma intencionalidade pedagógica, ou
seja, um conteúdo pode ser ensinado por meio de jogos. Ensinar brincando ou jogando dá
prazer tanto para o aluno quanto para o professor. Para ela os jogos didáticos são
importantes, desde que o professor compreenda que eles vão além da intenção de se passar
só o conteúdo.
“Olha é possível sim colocar a recreação, a brincadeira em todos os conteúdos para
ensinar crianças de 5, 6 e 7 anos. As crianças estão na fase das descobertas , de
brincadeiras, de extravasar, então porque não fazer de uma forma legal para elas e para
você, de uma forma prazerosa de ensinar o conteúdo que é tão necessário para elas
também. Por que não ensinar a matemática com lúdico, por que não? Ah, é falta de
tempo?. Eu acho que não, é falta de interesse , digo isso como professora, porque quando
a gente quer a gente faz”
179
“Eu acho que a gente tem que ensinar sim, dar os conteúdos sim porque é uma coisa que já
é da educação mesmo, o que não impede que se faça brincando. Por que a matemática tem
que ser só no cuspe e giz? Por que você não pode ensinar o teu aluno a somar com
tampinhas de refrigerante? Por que tem que ser 1 mais 1 igual a 2 ? Muitas vezes não
entra na cabeça deles e você não sabe por que os alunos não aprendem. O brincar é esse
facilitador, dá liberdade de pensar de outras formas, leva a outros entendimentos de uma
determinada questão, o brincar tem esse poder”
Na sua compreensão, as aulas de educação infantil e das séries iniciais deveriam ser
planejadas de forma a contemplar atividades lúdicas como também instrumentos de
ensino. Os jogos podem se tornar preciosas alavancas no processo ensino-aprendizagem.
O símbolo da alavanca representa ferramenta, o princípio ativo que coloca algo
em movimento, o que faz a passagem da passividade a atividade. Movimento cuja atividade
resulta da vontade de quem o gerou e que a move ( alavanca, ferramenta) tirando-a de um
estado inerte. Assim, a vontade precede aqui o conhecimento. “A alavanca simboliza
apenas um força instrumental, movida e controlada por uma força superior, e o valor de
seu emprego só é medido pelo valor daquilo que ela ajudou a levantar.” (Chevalier e
Gueerbrant ,2005, p.26)
Em sua prática docente Emília sente-se comprometida em participar das atividades
recreativas da turma. Torna-se comprometida com esta alavanca que, através dos jogos, dá
impulso e movimenta a apreensão de novos conhecimentos, valores e conceitos que não se
limitam ao uso de jogos com intencionalidade de transmissão de conteúdos do programa de
ensino. Para ela, o papel do professor como mediador de tais atividades é fundamental para
que os jogos cumpram um papel formativo e educativo. O jogo é responsabilidade social
do professor, cabendo a ele, enquanto educador, refletir sobre suas funções e seus
significados não só no plano cognitivo, mas também no plano bio-psico-sócio-cultural.
“Os jogos escolares não são apenas de responsabilidade social do professores de
educação física, os demais professores também são por eles responsáveis, pois em seus
fazeres pedagógicos muitos o utilizam de modo consciente ou não e com ou sem
intencionalidade” (NHARY, 2005,p.137 ). Compreendendo o homem como um ser
180
complexo, redimensiona-se a relação jogo-educação devendo os professores internalizem
os sentidos dos jogos para compreenderem o significado que eles têm para os seus alunos
“Eu acho que brincar não é só jogar os brinquedinhos em cima da mesa e não falar nada
para seus alunos. Tem que ter um porque para aquilo. Olha, vocês podem brincar de
outras coisas. Você pode até falar, separar algumas coisas, tem que dar um impulso, um
estímulo para eles e deixar livre, deixar fluir. Não é só colocar ali e pronto. Não é só
desenhar a Amelinha e deixar que eles se virem. Acho que não é isso. Os jogos,
principalmente na faixa etária dessas crianças81, têm que ser dirigidos, ou melhor,
estimulados, tem que despertar para as regras, para as relações entre eles, para a fantasia.
Tem que organizar, mas também permitir que eles se organizem, tem que dar liberdade de
pensar, de agir”.
Emília sai em busca disto em sua prática docente e lamenta que muitos professores
ainda não tenham alcançado esta compreensão.
“O tempo vai passando e esses professores estão mais preocupados em enfiar o conteúdo
na cabeça da criança, querem as cabecinhas cheias. Será que a criança por ela mesma,
com prazer e curiosidade não vai aprendendo? Na imaginação dela, na brincadeira,
despertada por sentimentos de competição, de jogo mesmo, de descobertas, de alegrias, de
disputa, de solidariedade, de tudo que o jogo oferece a criança pode despertar para o
conteúdo è uma coisa tão mais fácil. Não são só, os jogos com conteúdo que ensinam
alguma coisa, todo jogo deixa alguma experiência que agente carrega pra a vida, por isso
defendo a oportunidade da criança brincar tanto fora quanto dentro da escola.”
Desta forma, Emília comunga com a idéia de Montagne, ampliada por Edgar Morin
(2004) de que ‘mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia’. Não
adianta só se prender aos conteúdos se eles não estão fazendo sentido para quem os
‘recebe’. Ao usar este termo desejo remeter o leitor à idéia de educação bancária de Paulo
Freire, de alunos que recebem os conteúdos que são depositados pelo professor que os
transmite. Um sentido de mão única na relação ensino-aprendizagem.
Na educação é necessário haver motivação para aprender, e, para Emília, crianças
da educação infantil aprendem muito mais se a forma de ensinar for prazerosa, divertida e
motivante. Trata-se de buscar outras formas, outras propostas na relação ensino-
81
Emília refere-se ao segmento da educação infantil e das séries inicias do ensino fundamental.
181
aprendizagem, o que passa por uma reforma de pensamento como nos propõe Edgar Morin
em suas diferentes obras publicadas82.
Emília é uma grande incentivadora dos jogos no espaço escolar, não só como
alavanca metodológica, mas como elemento formador e transformador de valores, hábitos e
atitudes. Acreditando nisso, em sua escola ela sempre motiva os alunos a brincar e a jogar.
Participa com eles das atividades recreativas e das aulas de educação física, mas tem
consciência de que escola não se limita a isto, a ser só ludicidade e brincadeira. Os
conteúdos são importantes, mas importante também é a forma como as crianças apreendem
estes conteúdos. Para ela deve haver um meio termo, um ponto de equilíbrio entre os
deveres e prazeres.
“Eu acho assim, se hoje tem um conteúdo para dar, se não deu e eles estão brincando eu
deixo. Quem disse que eles não estão aprendendo alguma coisa? Eles estão no momento de
imaginar, de relaxar, de brincar. Eu sinto que com os conteúdos que eu dou para eles, que
inconscientemente eu forço eles, eu estou tirando parte da infância deles, estou os fazendo
amadurecer no momento que as vezes não é para isso. Eles gostam de ficar lá mexendo nas
coisas, descobrindo coisas, pensando, criando, aprendendo também. Ontem eles estavam
brincando com os carocinhos da minha uva. Eles botaram tudo lá e fizeram um futebol de
caroços. Um caroço falava com o outro, jogava, se mexia. Sabe, as vezes você fica dando
conteúdo, é consoante, é isso, é aquilo, parece que a criança não vive. Parece que a
educação infantil antigamente era vista como lazer. A criança ia lá só para brincar.
Agora parece que a criança está fazendo uma faculdade. Criança de 3, 4 anos não tem
tempo para nada, tem que guardar os brinquedos. Tudo bem que a gente tem que colocar
os limites, tem hora par brincar, para ter os conteúdos, mas tem que ter equilíbrio. Tem
horas que a criança tem vontade de brincar e não pode, desde muito cedo tudo já é
cortado, podado”.
Em sua opinião muito ainda poderia ser mudado com relação à educação,
principalmente no primeiro segmento da educação básica e da educação infantil. O rigor
com que a escola cobra os conteúdos, a falta de liberdade do aluno se expressar e se
manifestar estão aquém do que ela entende por educação. Com o que viu, reviu e refletiu
em seu processo de formação ela percebe que é possível, sim, novas formas de relacionar o
jogo à educação, mas, para ela, parece que os professores e a escola se acomodam no
modelo existente. Torna-se costumeiro ensinar da forma tradicional. Ensinar de outra
82
A idéia central do pensamento complexo de Edgar Morin e que passa uma reforma de pensamento foi
apresentada neste trabalho no Primeiro tempo.
182
forma, para os colegas professores com os quais dialoga, pode ser arriscado e Emília
explode em indagações.
”Se ele viu aqui que dá certo, por que na sala de aula dele não vai dar? Por que não
pode ter um momento de brincadeira em sala de aula? Por que a brincadeira tem que ser
só num espaço aberto? E quando está chovendo não se brinca? A gente não pode rir? A
gente não pode rolar no chão? A gente não pode pular? O que é que impede? As quatro
paredes de uma sala? É ensinado para a gente que a nossa mente pode voar. No livro a
gente não vai para outros lugares? Na brincadeira também! A gente pode fingir que não
existe parede ali. Você pode imaginar que está num campo correndo, brincando, pulando
amarelinha , por que não? Por que é que a gente aprende aqui e não aplica? O que nos
impede? É medo do diferente? É achar que vai dar errado?”
“Quando você pensa em criança, você pensa o que? Pensa nelas correndo, brincando,
falando sozinhas, jogando bola, aquelas coisas todas, rolando no chão. Isso é ser criança,
mas tem gente que não gosta, talvez porque não tiveram tempo de ser criança de verdade.
Isso vai da pessoa, então eu acho que a escola hoje precisa muito levar á sério as
brincadeiras. Lógico que tem aquele momento de ensinar ali no quadro, mas como eu falei,
nada impede de fazer de outra forma também. Se a gente aprende isso na Faculdade, aqui
na FFP, por que é que quando a gente chega na nossa sala de aula a gente não aplica
aquilo que aprendeu? Por que a gente coloca obstáculos?”
Emília em seu relato prova que é brincante e que interage com seus alunos nos
momentos recreativos que proporciona para eles. Ela pula, rola, brinca de amarelinha, joga
pneus, brinca de pique esconde, pique pega, de se esconder, de casinha e de fantoches. Ela
participa também das aulas de educação física com eles. “Eu vou para a aula de educação
física junto com a turma. Corro, brinco de pegar a bolinha, de pique, eu faço um escândalo
naquele pátio”. Emília tem interagido muito com o atual professor de educação física de
sua escola. Eles fazem planejamento juntos (tema da Copa do Mundo de Futebol, por
exemplo), ela dá sugestões, trocam livros, textos e idéias. Ela compreende que a educação
física escolar assume um papel muito importante no contexto educativo. Para ela, esta
disciplina trabalhada de forma consciente e interdisciplinar, pode colaborar muito no
processo de aprendizagem. Valores, conceitos, relações sociais, resolução de problemas,
estratégias, criatividade, autonomia e a própria experimentação dos movimentos corporais
nas atividades das aulas de educação física cumprem um papel que vai além da educação
formal que, em linhas gerias, se atribui à escola. “A Educação Física está mudando, está
183
ajudando nisso. Eu espero que até o final do ano a gente possa ter uma parceria dos outros
professores também, sabe”.
Ao tratar da educação física escolar, não podemos afastar nosso olhar da escola
compreendendo-a como um espaço instituído em que a formação dos sujeitos ocorre de
forma complexa, levando a educação física a contribuir nos aspectos bio-psico-sócioculturais dos alunos. (NHARY, 2005, p.138). O papel da educação física escolar vem
adquirindo uma visibilidade ao longo das últimas décadas que na recente proposta de
Diretrizes Curriculares dos Cursos de Pedagogia do CNE, no Art. 5º inciso VI (MEC,
2006), já se aponta a responsabilidade do professor das séries iniciais da educação
fundamental e da educação infantil como partícipe na área de educação física, devendo
estar apto a ensiná-la83.
Emília deseja que a escola e seus partícipes, sobretudo os pais, coordenadores e
professores tenham uma melhor compreensão da importância do jogar e do brincar no
contexto educacional.
Em sua conversa ela reclama e clama pelo espaço do jogo e da brincadeira. Os
professores de sua escola só participam das atividades lúdicas se quiserem. Não há uma
reflexão sobre o assunto, não há estímulo da coordenação. O lado iluminado (o instituído)
não lança um luz para os jogos na escola. Fazem parquinhos, colocam gramado sintético
no jardim, compram alguns brinquedos, mas não se tem a consciência de como utilizar este
material. As mães, por sua vez reclamam dos filhos saírem sujinhos e suados, acham que
não devem ir para a escola para brincar. “Isso eles podem fazer em casa”. Estas são queixas
que Emília escuta na porta da escola onde trabalha. Ela tenta mostrar para as mães a
importância das atividades recreativas. Nas reuniões e no bate-papo de saída da escola ela
comenta a importância da criança usar o brinquedo, rolar no chão, mesmo correndo os
riscos que as atividades possam gerar. Na passagem do narrado de Emília que se segue se
percebe a professora brincante que, de forma consciente, sabe o que faz, sabe o que quer,
sabe em que deve a educação contribuir para a formação de sujeitos tão pequenos como os
dela.
83
Não pretendo neste trabalho entrar nesta seara, mas deixo-a como porão de pesquisa para que possa refletir
sobre esta questão numa próxima oportunidade.
184
“O suor escorre mesmo. Tem dias que eles vão pretinhos, e o uniforme é branco,
branquinho! As mães às vezes falam assim: Tia, o fulano está sujo. Eu digo: mãe, ele tem
que brincar, eles são crianças. Antes as mães implicavam muito com tantos jogos, mas
você vai as conhecendo, vai dando carinho, vai falando o que está fazendo, a importância
das coisas, então elas vão aceitando. As sextas feiras é dia de trazer brinquedos. Elas antes
não gostavam porque ia escangalhar. Então eu comecei a falar com elas que brinquedo
não é para a vida toda, não é para ficar na estante. Eu falo muito para elas o que eu
aprendo aqui na Faculdade.”
Emília é uma boneca que está sempre com a chave na mão para abrir, a qualquer
momento, o mundo mágico do jogo e da brincadeira. Para ela esta é a chave que permite a
entrada no mundo do sonho, da fantasia, mas que hoje ainda é pouco valorizado pelos
sujeitos da escola. O jardim de sua infância é também o jardim que ela deseja para seus
alunos, envolto em traquinasses que permitam a criatividade, a inventividade e diferentes
fruições. Ela reclama que este mundo esteja literalmente trancado. Que os brinquedos sejam
guardados em estantes tão altas, que os professores pouco se utilizem do parquinho e do
pátio. Para ela, falta aos colegas de trabalho se permitirem ser um pouco crianças para que ,
brincando com elas, possam conhecê-las melhor, fortalecendo as relações entre professores
e alunos. Se aproximando do mundo do jogo, eles poder assumir uma postura mais
educativa no sentido bio-psico-sócio-cutural. Sentido de complexidade, do que se tece
junto, cerzido por cores, traços e formas evocadas no território fascinante do jogo.
“ (...) eu vejo os jogos na minha escola com um quarto cheio de brinquedos ,mas
trancados. È aquela coisa toda, mas lá em cima da estante, é como se tivesse uma grade
que não deixasse tocar. Fica tudo longe, longe de quem é a essencial alma para aquilo
estar ali, para aquilo fazer acontecer, a criança”.
“Eu acho que os professores devem realmente se preocupar mais com essa parte lúdica
nas escolas. Falta muita coisa ainda relacionada a isso. E muitas, muitas vezes mesmo, a
gente faz isso com as nossas crianças, fazemos com que elas amadurecerem rápido
demais. A minha vida foi assim, por outras circunstâncias, mas foi assim, já a escola
também faz isso, eu acho que já chega quando a própria vida te coloca esta perda, te
rouba o brincar na infância, não pode a escola fazer isso também, privar as crianças de
brincarem . Tiramos a infância delas quando só pensamos em conteúdos”.
Encontramos neste fragmento do relato de Emília o simbolismo do cofre que
baseia-se em dois elementos: o tesouro e a revelação. Nele se deposita um tesouro material
ou espiritual e sua abertura equivale a uma revelação. Sua abertura é o anúncio de uma
185
nova era, de um novo advento. “O cofre não pode ser aberto senão na hora
providencialmente estabelecida e só pelo detentor legítimo da chave”. (Chevalier e
Gueerbrant ,2005, p.262)
Emília gostaria de ser a detentora da chave do mundo de brinquedos de sua escola.
Este ‘lugar outro’84 do jogo, território sagrado para quem joga, precisa, a seu ver, ser
desvelado abrindo para a educação novos fazeres pedagógicos que considerem o sujeito
como um ser complexo. Um ser que brinca, que estuda, que ri, que chora, que sonha e que
vai se constituindo sobremaneira no espaço tempo da escola. Para ela “ a vida deveria ser
uma eterna brincadeira”. O brinquedo e o jogo têm poderes transformadores, “eles
ensinam alguma coisa”.
Para além de alavanca metodológica, as vivências lúdicas
despertam para outros ‘conteúdos’ que precisamos carregar na bagagem da estrada da vida.
Com as palavras de Emília encerro aqui esta narrativa mostrando que o brincar não
tem tempo, lugar ou hora para acontecer, podendo ser dentro da escola, fora dela ou
simplesmente na imaginação. Viver o jogo é senti-lo. É uma experiência única que só
depende do próprio jogador.
“Não são só os jogos com conteúdo que ensinam alguma coisa, todo jogo deixa alguma
experiência que agente carrega pra a vida, por isso defendo a oportunidade da criança
brincar tanto fora quanto dentro da escola.”
84
Expressão usada por Johan Huizinga ao se referir ao mundo do jogo, o mundo do simulacro e do faz-deconta que escapa do plano racional e corre em paralelo com a realidade.
186
As aventuras do Capitão Gancho
187
Praia da Azeda- Búzios- RJ
As aventuras do Capitão Gancho
_____________________________________________________________
____________
Historicamente no Brasil, os Cursos de Pedagogia sempre pertenceram ao universo
feminino e poucos são os homens que atualmente trabalham na docência da educação
infantil e séries iniciais. Na FFP / UERJ até o ano de 2002 a presença feminina era quase
que exclusiva neste curso, quadro que começou a mudar quando o vestibular deixou de ser
isolado e se abandonou a exigência de comprovação de exercício do magistério85. O perfil
do aluno foi modificado e a presença masculina, embora ainda muito acanhadamente,
passou a fazer parte do Curso. Capitão Gancho, aluno do curso e participante desta
85
O Terceiro tempo deste trabalho aponta mais claramente esta mudança
188
pesquisa, foi um dos que passou a pertencer a este universo mais ‘cor de rosa’ e em
diferentes momentos de nossa entrevista ele se referiu a isto : “No início eu não era o único
homem da turma, mas depois acabei sendo porque saiu todo mundo para outros horários,
uns foram para outros cursos, outras faculdades, outros largaram. Aí ficou só eu de
homem. Eu pensei: Caramba, o que eu vou fazer? Eu estou muito distante do pessoal
aqui”. Este sentimento de ‘ser diferente’ foi acentuado quando, após o sexto período, ele
precisou trocar de turno. Capitão Gancho se sentiu desprotegido sem os parceiros de
aventuras acadêmicas com quem estava acostumado a lidar. “ Quando eu entrei para a
FFP, em sala de aula, eu não me sentia tão perdido não. Só quando eu mudei de turno é
que percebi que as pessoas são um pouco preconceituosas”. Em sua fala ele demonstrou
certa inquietude com relação a esta questão de preconceito apontando que numa faculdade
que forma professores isto não deveria existir. “Aqui seremos professores, vamos entrar em
sala de aula para trabalhar principalmente com crianças. Temos que ser agradáveis,
gentis e não podemos afastar as pessoas da nossa volta. Professor e preconceito não
combinam.”.
Capitão Gancho foi meu aluno quando cursava o quinto período do Curso de
Pedagogia. Naquela ocasião ele contava com mais dois rapazes que, embora tenham
tomada outros rumos, não perderam a amizade. Sua participação nas aulas sempre foi
acanhada, o que revelava sua personalidade tímida. Mesmo tendo o apoio dos rapazes que
faziam aquele alvoroço ao brincar e jogar, Capitão Gancho não se entregava por completo
ao mundo do lúdico. Ele era contido, receoso, envergonhado. Sua fala, neste sentido, é
reveladora.
“ Tinha coisas que eu nunca tinha brincado, não conhecia . Aí me perguntava se seria
legal. Será que eu vou me entregar a isto? Será que eu vou me prejudicar? Só que eu
nunca fui de ficar com vergonha, mas as vezes pintava. Não é que eu seja inibido, é que as
vezes pintavam situações que eu ficava constrangido dos outros olharem. Tinha medo de
acharem que eu não sabia me mover para tal brincadeira.”
O fato de não conhecer um vasto repertório de brincadeiras infantis se deve a
diferentes fatores. A entrada tardia na escola, a precoce atuação no mercado de trabalho,
seu jeito próprio de ser e os rumos que sua vida tomou desde muito criança, foram o
afastando do universo dos jogos e brincadeiras.
189
Na idade de 4, 5 anos, quando ele pensa que deveria ter sido alfabetizado, ele não
freqüentava a escola. Só foi matriculado pela primeira vez por volta dos 9 anos de idade,
então as brincadeiras de recreio, as oportunidades que poderiam ter surgido mais cedo no
contexto escolar não lhe foram dadas . Capitão Gancho não teve Jardim da Infância.
Em diferentes falas e respostas dadas ao questionário desta pesquisa se percebe que
a grande maioria dos entrevistados associa o espaço escolar as oportunidades de brincar na
infância, muito embora também reclamem que nas escolas de antigamente, assim com nas
escolas dos tempos modernos, este espaço seja restrito86. Marcellino (1989) aponta para o
furto do lúdico na infância fundamentando-se numa alternativa educacional que leve em
conta a relação de interdependência entre o lazer, a escola e o processo educativo,
concebendo a necessidade de pensar numa ‘pedagogia da animação’87: “ fundada no lúdico;
do jogo, da festa, do brinquedo – do lazer, inclusive como crítica ao antilazer que se
manifesta hoje, na nossa sociedade, dominada pelos critérios da utilidade e produtividade”
(MARCELLINO, 1989, p.19). Capitão Gancho foi impelido precocemente a ser um
cidadão produtivo, seu lazer era, então, limitado.
Filho caçula de uma família de pouca instrução, Cap. Gancho teve podada as
grandes aventuras lúdicas da infância. ”Meu pai era militar, ele não tinha muita
flexibilidade, vamos dizer que ele era ignorante nessa parte de permitir que se brincasse”.
Seu brincar era restrito ao entorno da casa e os adultos da família pouco se importavam
com as travessuras dos filhos.
“Eu quase não saía para brincar com outras crianças, conhecia poucas brincadeiras.
Nossos momentos de brincar, meu e de meus irmãos, nós criávamos. Nossos brinquedos
eram inventados, criados, nunca eram comprados. Ninguém se preocupava em dar
brinquedos para nós. Por exemplo, carrinhos. Eu pegava as latas de óleo, cortava e fazias
as cabines. Pegava madeira e fazia as rodinhas. Era eu e meu irmão brincando disso”.
Capitão Gancho e sua turma, no caso seus irmãos, precisavam saquear os lugares do
sítio onde moravam em busca de material para fazer brinquedos. Esses momentos foram
lembrados por ele com um sorriso escondido nos lábios.
86
Neste sentido, algumas respostas dadas ao questionário que se encontram na parte intitulada Súmula, neste
trabalho, podem ser mais elucidativas.
87
Título da obra Pedagogia de animação de Nelson C. Marcellino, 1989
190
O pesquisador, de olhos bem abertos e ouvidos bem atentos, deve considerar o não
dito, o silêncio e as manifestações corporais como expressões reveladoras de uma história
de vida. Imbuída de apurar estas percepções, percebi que Capitão Gancho demonstrava
sorrindo que essas peraltices da infância eram divertidas. Mesmo correndo o risco de uma
bronca, a delícia da aventura o atraía:
“Meu pai tinha um armazém grandão. Ele era militar, mas trabalhava fora fazendo obras,
essas coisas de construção. Era lá que ele guardava esse material. Sempre tinha alguma
coisa que a gente aproveitava. Pegávamos também as coisas que estavam largadas por lá.
Ele vinha do trabalho, descansava um pouco e depois saía para trabalhar novamente.
Nessa saída nós aproveitávamos para fazer a limpa no material dele. Só que ele sabia que
a gente pegava, mas quando era coisa pouca ele não ligava muito A bronca era tranqüila
nesse caso. Ma só que quando a gente pegava alguma coisa valiosa e estragava ele dava
uma tremenda correção na gente”.
A primeira fase de sua infância foi passada num sítio em Visconde de Itaboraí,
município do norte fluminense do Estado de Rio de Janeiro. Apesar do ambiente ser
propício para a criatividade e a inventividade, Cap. Gancho preferia brincar no lago do sítio
confeccionando alguns artefatos para isso.
“Lá onde nós morávamos tinha uma ilha no meio do terreno. Era uma ilha pequenininha,
mas passava água nela. Eu gostava muito de brincar de barco lá. Eu ficava atravessando
os barcos na ilha. Não era muito fundo não, era raso, mas como eu era pequeno, ficava
difícil de passar, mas eu adorava atravessar por dentro d’água. Eu brincava assim, fazia
barquinhos das madeiras que achasse por lá mesmo. Pegava também isopor para fazer
barcos. Isso para mim já era uma aventura e tanto, passar barquinhos de lá para cá. Eu
levava muito tempo sozinho brincando disso.”
Por ser mais criativo e inventivo na confecção de brinquedos e pouco imaginativo
para viver situações imaginárias, distanciava-se do universo onírico oferecido pelos irmãos.
Cap. Gancho não se sentia atraído por brincadeiras de faz-de-conta. Seus irmãos bem que
tentavam atraí-lo para estas brincadeiras, mas ele resistia. Quando muito aceitava
as
brincadeiras que se aproximassem da vida real, mas dependendo dos papéis que tivesse que
desempenhar ele as abandonava, ou , na maioria das vezes as destruía.
O brincar prepara para as realidades futuras, torna-se uma ponte para a realidade. Ӄ
no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e
191
utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o
eu ( self ).” (WINNICOTT,1975, p.80)
Se Capitão Gancho optasse por brincar com os irmãos acabava arrumando confusão.
Para ele a representação das situações da vida cotidiana no ato de brincar deveria
corresponder ao real, desta forma evitava brincadeiras que o levassem a situações de
submissão ou sacrifícios corporais, pelo menos no sentido representativo- “Eu era muito
preguiçoso e também eu não queria ser aquele cara da brincadeira que sofria”. Como
infere Winnicott (1971) “é nas brincadeiras que a criança liga as idéias com a função
corporal” ( p.164). Como nem sempre era compreendido, Capitão Gancho preferia ficar
ilhado com seus carrinhos e barcos.
“Quando eu ia brincar com meus irmãos tinha que ser aquela coisa real mesmo, vivendo
coisas reais que a gente via, ouvia. Só que eu sempre estragava tudo, eu estragava as
brincadeiras todinhas. Eu não gostava disso de imaginar, de sonhar com as coisas. Eu era
muito pegado a realidade, então naquela fantasia deles eles voavam e eu destruía tudo no
meio da brincadeira. Se a gente brincasse de carrinho eles me colocavam para ser o
motorista, o ajudante. Mas eu não queria ser o ajudante. Eu era muito preguiçoso e
também eu não queria ser aquele cara da brincadeira que sofria. O ajudante sofre muito.
Eu não queria ser igual a ele, aquele dava muito duro. Eles queriam me convencer de ser
aquilo, me ensinavam o que fazer. Mas eu nunca queria ser nem fazer aquilo que eles
falavam. Eu queria ser coisa melhor para não ralar tanto. Aí quando eu estava no meio da
brincadeira eu chegava e falava que não queria mais brincar. Eu saía e arrumava outra
coisa para fazer sozinho ou ia para a minha ilha brincar”.
Como um templo, um santuário, a ilha se situa fora do fluxo da existência.
Representa um outro mundo. Simboliza o cosmo porque apresenta um valor sacral. “A ilha
é simbolicamente um lugar de eleição, de silêncio e de paz, em meio à ignorância e à
agitação do mundo profano”. (Chevalier e Gueerbrant ,2005,p.501). A ilha tornava-se o
lugar do refúgio de Capitão Gancho.
O espírito de marujo do Capitão Gancho da literatura infanto-juvenil lhe chegou
muito cedo. As aventuras no lago fundo, pelo menos para o seu tamanho, já demonstravam
isso. Brincar na água dava-lhe prazer. Se fosse brincar com os irmão se revelava uma
criança briguenta, birrenta e destruidora , daquelas terríveis que nem os pais sabem o que
fazer. Sua opção era viver fugindo, se refugiando em algum canto, nem que fosse a ‘barra
da sai da mãe’. Lugar quase sempre seguro para as crianças arteiras, uma espécie de ‘ilha
afetiva’. Depois de se aventurar na correria, o porto seguro estava lá na companhia materna,
192
por isso era fácil estar sempre arriscando.
Transitava entre o mundo profano de
desentendimentos com os irmãos e o lugar sagrado do amparo maternal.
“Sempre que pintava essa situação de fazer o que eu não queria, eu parava de brincar com
eles. Começava o maior conflito, dava briga. Tinha muita briga nas nossas brincadeiras,
mas como eu era sempre o menor, levava prejuízo. Recebia tapas, socos, briga física
mesmo de me deixar machucado. Mas era até engraçado, porque eu tinha o apelido de
Pápa-léguas. Eles me chamavam disso quando eu era pequeno porque eu corria muito. Na
hora da briga eu corria para onde estivesse o meu pai, a minha mãe. Chegava e ficava
perto deles como se estivesse pedindo proteção, mas eu não falava nada, não contava o
que tinha acontecido. Ficava lá perto da minha mãe e quando acabava a situação ,
quando eles já tinham esquecido, eu voltava. Eles me aceitavam na brincadeira de novo.
Eu prometia que não ia mais estragar tudo, mas quando estava quase na metade da
brincadeira eu começava tudo outra vez, saía destruindo tudo, me negava a fazer o que
eles queriam”.
Se o mundo profano não lhe agradasse ele arrumava um jeito de acabar com tudo e
se refugiar numa ilha, fosse a ilha do sítio, a ilha afetiva da mãe ou a própria solidão. Viver
flutuando entre estes dois mundos, o profano de brigas e o sagrado da solidão, dava-lhe
prazer. Sair correndo em disparada representava para o Capitão Gancho uma sensação de
risco. Uma fruição como ilinx88. Um pânico momentâneo, uma busca pela vertigem que
leva a um atordoamento tanto físico como mental. É uma procura por uma perturbação com
um fim em si mesma. O fato de precisar correr desenfreadamente em busca de proteção
causava uma espécie de transe que alimentava e sustentava o desejo de continuar
brincando. “Era sempre assim, indo brincar com eles e correndo deles.” O risco é inerente
à condição humana e ele explode no fascínio pela vertigem “...é uma forma lúdica de
relação em que o ator mergulha imaginária ou realmente no perigo, provocando um
desequilíbrio” ( COSTA, 2000,p.21)
Capitão Gancho foi forçado a trabalhar muito cedo. Seu pai, com poucos recursos
financeiros para sustentar uma família de oito pessoas, precisava da mão de obra dos dois
meninos na construção civil, ramo em que ele trabalhava acumulando a função de militar.
Em conseqüência disto aos oito anos de idade ele trabalhava, mas não estudava.
88
Os conceitos de jogos de Caillois ( 1990) foram explicitados Segundo tempo deste trabalho.
193
“Nessa fase aí, chegando próximo dos meus 9 anos eu via todo mundo estudando e eu não,
nada de ir para a escola também. Eu não sei se foi porque os meus pais não eram muito de
estudar. O que prejudicou meu pai na vida militar foi isso, ele não estudou, não evoluiu.
Meus primos, meus sobrinhos começaram a estudar e eu não. Eu queria muito, só falava
em ir para a escola, mas meu pai falava: que nada, vocês têm que trabalhar, se não vocês
não vão ter uma profissão, não vão ter nada, vão ficar muito tempo estudando e não vão
poder trabalhar. Vocês têm que trabalhar. Aí a gente ficava naquela de ter que pensar que
isso era o certo”.
Depois dos nove anos de idade, quando finalmente Cap. Gancho entrou para a
escola, já era pedreiro. Seus carrinhos de lata de leite foram substituídos por carrinhos de
mão cheios de areia e pedras para obras. Suas mãozinhas se dividiam entre os lápis para as
primeiras escritas e a pá, pesada ferramenta de construção. Rubem Alves ao prefaciar a
obra de Marcellino (1989), referiu-se a relação trabalho X educação na infância como uma
relação que aliena , que faz o corpo, competente para o trabalho, esquecer-se de tudo.
“Esquecido de si mesmo, seu corpo se mistura aos tijolos, cimento e paredes. Operário
competente, ferramenta boa, como a pá, o prumo, a esquadria. Competente e útil.
Utensílio. Precisado. Procurado. Empregado. Contratado”. O pai de Capitão Gancho não
percebia que o filho, pobre operário, não sabia ler o que estava escrito nos tijolos. Trago
novamente a fala do entrevistado revelando o que pai dizia aos filhos pequenos: “vocês
têm que trabalhar, se não vocês não vão ter uma profissão, não vão ter nada, vão ficar
muito tempo estudando e não vão poder trabalhar”.
Sua vida começava difícil, e as escolhas tinham que ser feitas, mesmo ainda sendo
muito novinho para isso. “Era difícil conciliar estudo e trabalho, era muito confuso,
entendeu? Eu faltava muito as aulas, não conseguia cumprir os horários, depois com o
tempo eu parei de estudar, não dava para continuar assim”. Capitão Gancho engrossava
as estatísticas do final da década de 70 de evasão escolar. Entre o trabalho e o estudo, o
primeiro venceu. Com isso ele abandonou também os brinquedos, brincadeiras e jogos.
Tinha que levar vida de adulto trabalhador. Do trabalho para casa e desta para o trabalho
sete vezes por semana. Brincar, só escondido, mas na maioria das vezes o corpo pedia
descanso. O homo faber derrotava o homo ludens de um menino de 9 anos de idade. “Eu
não tive muito tempo de brincar. Quando conseguia sair um pouco para brincar, não
podia, tinha que trabalhar. Era escondido mesmo que eu conseguia brincar. Tinha que
trabalhar, então estava sempre cansado”.
194
Dos 8 aos 14 anos de idade Cap. Gancho trabalhava muito e estudava pouco. “Até
os 14, 15 anos a vida era só escola, quando dava, e trabalho, mas esse era muito”. Seu
lazer foi aos poucos se reduzindo a um futebol com os colegas, mas tinha que ser
escondido.
“Dos 8 aos 14 anos eu jogava bola escondido. Eu fugia para jogar. A gente saía e sempre
tinha alguém que marcava um campinho num lugar escondido. Assim dava para mim. A
gente não só jogava, mas brincava também. Quando dava o horário que eu sabia que meu
pai estava chegando e minha mãe já começava a sentir falta da gente, nós voltávamos
para casa. Era tão escondido que nem a bola a gente podia levar para casa, porque meus
pais falavam: futebol, não! È coisa de malandro, não pode. Não pode jogar bola se não vai
virar vagabundo. Estudar mesmo, que era bom, eu não estudava direito”.
As relações familiares entraram em crise. Desentendimentos dos pais, dificuldades
financeiras e a redução de trabalhos do pai em obras fazia com que este ficasse mais em
casa,e, assim, controlava mais a vida dos filhos exigindo algumas coisas também. Com
tamanha pressão, Capitão Gancho decidiu fugir. Estava com 14 anos quando foi morar com
uma irmã casada, e em conseqüência disto: “Eu parei de estudar e saí do seio familiar”.
Mesmo indo morar com parentes, Cap. Gancho não se sentia amparado pela família, pois
sua permanência na casa da irmã se restringia a um ‘pouso’. Lugar para comer e dormir.
“Chegava na casa da minha irmã raramente. Eu era um turista na casa dela”. A solidão
era sua melhor companhia. Ele sente não ter tido a oportunidade de dialogar com os pais,
com os irmãos. Ele se fechava em si mesmo. Ilhava-se cada vez mais num universo de
dúvidas e incertezas.
“Não sei se foi melhor ou pior. Mas com a pressão que meu pai fazia, a gente não
estudava , mas trabalhava, não brincava. Criança tem que ter o espaço dela também, mas
eu não tive. É preciso ter alguém para chegar e falar: fulano, o que é que você vai fazer? O
que você quer na vida? . Agora lá em casa não era assim. Eu estava por conta de mim
mesmo. Aí tive que cair fora de casa”
A falta de diálogo em casa foi muito sentida por ele e em suas falas ele demonstra
esta lacuna:
195
“O diálogo, o auxílio do outro é uma grande ferramenta para a vida, mas eu não tive, não
tive apoio nem participação da família na minha vida. Para mim talvez o diálogo tivesse
servido (...)O diálogo faz alimentar bastante coisa, mas eu não era desse mundo da
conversa, não tive essa vivência em família de papo, então eu não tinha como fazer uso
disso, de dialogar com alguém”
A comunicação entre as pessoas, segundo Benjamim (1988) promove uma troca de
experiências. O ato de narrar e contar histórias é uma forma artesanal de comunicação, mas
“ com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa”(p.206). Tanto o pai quanto a
irmã de Capitão Gancho foram bem econômicos neste sentido e, pelo dito acima em sua
fala, a comunicação em família fez falta. Esta lacuna ele tentou preencher mudando de
vida e assim passou a se aventurar em mares nunca dantes navegados. Vivia mais na rua do
que em casa e desta forma os perigos lhe rondavam, mas na ocasião, com 15 anos de idade,
ele não os percebia. Segundo ele, qualquer coisa desviava seu caminho. Novos amigos
chegaram. Alguns eram boas companhias, mas, a maioria, nem tanto. Estava sempre se
envolvendo em brigas de rua. Pertencia a grupos arruaceiros que ele considera “ganguinhas
mesmo”. Hoje ele reconhece que se perdeu muito nesta fase: “Foi uma época muito ruim
para mim”.
Capitão Gancho foi, em suas palavras, um menino de rua. “Eu ficava na rua
andando à toa. Andava por aquelas alamedas de Niterói89. Aquele trecho ali era minha
vida. O dia todo andava por ali naqueles morros todos. Foi nessa fase, meus 15, 16 anos
que eu fui garoto de rua”. Mesmo assim ele chegou a participar de uma escolinha de
futebol num grande clube. Era goleiro, mas pouco treinava e não tinha responsabilidade
com os horários. Se alimentava mal, chegava atrasado e cansado no clube, isso, quando ia.
Desta forma, providenciaram o seu desligamento da atividade.
Vida difícil. Sem trabalho, sem estudo, sem diálogo, sem futebol. Capitão Gancho
remava em mar revolto. Estava à deriva90, até que, por intermédio da irmã, sua vida poderia
mudar. Havia na ocasião um professor de educação física que coordenava um projeto para
tirar meninos da rua. Foi assim, pesquisando a população dos bairros carentes de Niterói,
89
Niterói é um município do Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro com bom desenvolvimento
sócio-econômico e estrutural.
90
Segundo Maturana, o termo deriva remete à idéia de estar submetido a alguma circunstância em
congruência com o meio. Nenhum ser vivo fica literalmente à deriva, o meio e as circunstâncias é que vão
mudando o tempo todo. ( 2001, p. )
196
que este professor chegou à casa da irmã de Cap. Gancho. Ela comentou que seu irmão
precisava de ajuda.
Entregou-lhe uma foto do rapaz e falou por quais ruas ele
‘perambulava’. Foi assim que ...
“...apareceu um cara que tinha um projeto aqui em Niterói. Ele trabalhava com garotos
carentes, só que ele selecionava os garotos, só meninos, aqueles que queriam estudar, se
desenvolver. Ele conversava e perguntava se queriam participar do projeto. Ele tinha um
grupo de psicólogos que trabalhavam com ele. Para eles me acharem naquela semana foi
um custo. Eu lembro como se fosse hoje. Eu estava na beira da praia. Aí eles chegaram e
perguntaram se podiam conversar comigo. Ele era professor de educação física, psicólogo,
praticava jiu-jitsu. Ele era totalmente entregue à prática de esportes. Ele usava muito isso
para resgatar essas crianças, esses meninos. Eles chegaram para falar comigo. Eles
tinham uma foto minha e tudo. Aí eu imaginei que eu tinha cometido algum erro por aí e
tinha me prejudicado. Pensei que fosse do juizado de menores, pensei logo isso: To
ferrado!!! Não tinha como sair fora, fugir. Aí ele falou: não fica com medo não porque
isso aqui vai ser bom para você. Você não vai para lugar nenhum. Nós vamos apenas
conversar algumas coisas, se você gostar, você vai decidir. Aí ele chegou perto de mim. Ele
tinha um jeito muito carismático. Ele começou a falar do projeto, me interessei. Ele falou:
olha, eu sei que eu não estou aqui para forçar você a nada, eu não vou te forçar a fazer o
que eu quero, mas mesmo que você não esteja interessado, me escuta. De repente você
encontra respostas para o que você procura na rua. Eu já estive com a sua irmã . Ela
comentou que você não liga para ficar em casa. Você não conversa com ninguém, tem suas
companhias na rua , se são boas ou ruins eu não estou interressado em saber. Também não
me interessa saber o que você faz. Você vai continuar tendo a sua autonomia, porque você
vive à procura disso, desenvolver a tua vida ao teu modo, do seu jeito. Aí eu olhei e pensei:
vou confiar nele”.
Capitão gancho participou do projeto com entusiasmo. Sua vida tomava um outro
rumo e ele ia se submetendo à outras circunstâncias. De segunda à sexta feira ele trabalha
pela manhã limpando caixas d’água em escolas, estudava na parte da tarde e à noite ia para
o alojamento do projeto. Nos finais de semana ia para o sítio de propriedade do
coordenador para praticar esportes, tomar banho de piscina e comer churrasco. Com o
tempo ele foi promovido á guarda mirim e passou a integrar o time de futebol do projeto,
mas seu temperamento brigão dificultava um pouco essas novas relações que iam se
estabelecendo.
“No início foi bem estranho para mim. Sofri bastante, mas também porque eu era
problemático, vamos dizer assim, não é? Existiam outros até piores que eu, em situação de
risco mesmo, em situações piores que a minha. Nesse meio eu brigava muito. Apanhava
muito, mas batia muito também. Quebrava muitas coisas, saia destruindo mesmo, ma era
muito castigado também. Eles falavam que quem fosse pego no erro ia ter que pagar
197
trabalhando, ou então não saía nos finais de semana para o sítio. Quando a gente é
criança faz coisas sem noção. Eu tinha vício de arrancar a parte de cima da sirene da
escola para ela não tocar mais. Eu destruía aquilo. As vezes eu era o destruidor terrível.
Deixava um negócio assim acabado. Eu destruía aquilo. Não era só a brincadeira, acho
que era o prazer da transgressão. Até os professores que me conheciam falavam: esse aí é
problemático, esse aí não tem jeito.”
A espada é o símbolo da virtude e da bravura. Sua função é o poderio. Isto implica
num duplo aspecto: “o destruidor ( embora essa destruição possa aplicar-se contra a
injustiça, a maleficência e a ignorância e, por causa disso, tornar-se positiva); e o
construtor , pois estabelece e mantém a paz e a justiça”. (Chevalier e Gueerbrant
,2005,p.392 ). Oscilando entre os símbolos da destruição e criação, a espada é também o
símbolo de uma guerra santa, que, antes de mais nada, é uma guerra interior.Capitão
Gancho estava cursando a 5ª série no colégio em que a coordenação do projeto o
matriculou, mas, mesmo assim, sentia-se desconfortável, como uma inquietude ( guerra
interior) que o fazia se lançar à novas viagens. As peripécias do ‘mar da vida’ o atraiam.
Foi assim que...
“Aí eu pensei em estudar numa escola mais longe dali, assim eles não iam ver se eu estava
indo mesmo para a aula. Pedi para estudar perto de casa. Não precisava pegar ônibus nem
nada. Eles aceitaram na mesma hora. Mas nessa de aceitarem é que me prejudicou. Não
era para eles terem aceitado, entende? Hoje é que a gente reconhece, porque o tempo vai
passando e a gente vai compreendendo melhor as coisas. Nessa época eu não queria
estudar. Fazia qualquer outro tipo de negócio, menos estudar. Foi quando eu saí daquela
ritmo. Pensava eu que estava sendo muito esperto nessa parte, mas era justamente o
contrário, não é? Foi assim que eu comecei a sair um pouco da área de estudos de novo.
Fui abandonando a coisa de estudar. Eu estava bem próximo dos colegas antigos que eu já
tinha de lá. Eles me convidavam: vamos sair para isso, para aquilo, aí eu ia e não ia para
a escola.”
Para o bem ou para o mal, Capitão Gancho gostava de lutar. Ele mesmo colocava os
obstáculos para depois ter que retirá-los com sacrifício, com lutas enormes. O tempo
passava e ele se desgastava muito. Saiu do projeto e parou de estudar novamente. Logo em
seguida o projeto foi extinto e mesmo não tendo aproveitado as oportunidades que
surgiram, ele comenta que o projeto foi bom para diversos rapazes, pois conseguiram
emprego, dar continuidade a estudos e até formar famílias. Estas informações ele tem
quando, eventualmente, encontra algum colega desta época nas ruas de Niterói.
198
O capitão da Pedagogia não enxergava a própria vida. Até os 20 anos de idade
sua vida se arrastou como ele mesmo diz:
“Eu me sentia como se estivesse dormindo e alguém chegasse e tivesse que falar: oh, cara,
acorda aí! Era como se eu tivesse que ser despertado do sono. Parei minha vida toda. Eu
tinha que estudar, que trabalhar, tinha que desenvolver minha vida porque eu estava
perdendo tudo que eu tinha. As coisas boas tinham passado perto de mim eu não vi.
Parece que eu estava com os olhos fechados para as coisas boas da vida”.
A venda é o símbolo da cegueira quando colocada sob os olhos. Os olhos ficam
cerrados, fechados à curiosidade. “Têmis, a deusa da justiça tem os olhos vendados para
mostrar que não favorece ninguém e ignora aqueles que julga”. (Chevalier e Gueerbrant,
2005, p.934 ). E com os olhos cerrados, Capitão Gancho deixou passar o mundo do estudo,
do trabalho e das brincadeiras. Ficou indiferente à sua própria vida.
A escola foi
abandonada diversas vezes, o trabalho não fazia mais parte de sua rotina e o futebol, que ele
tanto gostava, ficou de lado. Hoje, aos 38 anos de idade, ele reconhece o quanto se autoprejudicou na vida, principalmente nos estudos. Ele sempre teve uma vida conturbada, mas
precisava correr contra o tempo. O tempo perdido ficou na ‘barriga do jacaré’91. O menino
Papa-léguas da infância agora tinha que entrar em ação, pois segundo ele:
“Hoje me sinto como se tivesse disputando uma maratona , sabendo que eu tenho
condições de chegar ao final dela e alcançar algum objetivo e sabendo que eu me atrasei
por falta minha mesmo, entende? Sabendo que tem outras pessoas correndo também e que
eu tenho que chegar ao final. É correr contra o relógio mesmo. Ainda tem muita coisa para
eu fazer que eu já deveria ter feito e que estaria me ajudando agora. As vezes você vê que
deixou muita coisa para trás e que podia ter desenvolvido e não desenvolveu. Aí, corre
contra o tempo”
Por volta dos 20 anos de idade ele teve alguém que o ajudou a tirar a venda dos
olhos. Ele conheceu uma moça, com que está casado atualmente, que o fez olhar para trás e
desejar recuperar o tempo perdido. “Foi quando eu comecei a ver que os outros colegas
meus tinham as coisas melhores, novas, entende? Outros estudavam, faziam faculdade e eu
não tinha terminado nem o ensino médio. Aí ela falava: cara, você tem condições!”
91
Na história infantil de J.M. Barrie, o Capitão Gancho ao, lutar com um jacaré, perde seu relógio para este
que o engole. Como conseqüência ele tem seu braço destruído necessitando de um gancho artificial para
substituí-lo. Uso, assim alegoria do relógio para indicar o tempo perdido por Capitão Gancho
199
Incentivado pela família da moça, Capitão Gancho desejou a calmaria do mar para
prosseguir sua viagem chamada vida. Voltou a estudar e a trabalhar. Sua experiência em
obras na infância foi de grande valia para ingressar no mercado de trabalho, mas, ficou
nessa profissão por pouco tempo. Em 1990 ele foi convidado para trabalhar na cidade de
Itacuruçá, litoral sul do Estado do Rio de Janeiro conhecido como Costa Verde. Praias
cercadas por montanhas e muitas ilhas no em torno compõem uma bela paisagem nas
cidades desta região. Desta forma, não conseguindo resistir ao convite, foi trabalhar longe
e parou de estudar. Segundo ele, não daria para conciliar as duas coisas, além do que,
naquele momento da vida estudar não era tão fascinante quanto mergulhar para ele92.
Começou como vigia de uma marina, mas em pouco tempo fez um curso de mergulho
passando a atuar profissionalmente como mergulhador. Como não poderia deixar de ser
diferente, na vida do ‘capitão do mar’ de J.M. Barrie, assim como na vida do Capitão da
Pedagogia, os riscos eram sempre iminentes. “Comigo aconteceu cada coisa!”. Mesmo
com todo o treinamento dado no curso oferecido por oficiais da Marinha do Brasil, o perigo
de acontecer algum acidente sempre rondava os mergulhadores. Foi assim que por duas
vezes ele sentiu medo do mar.
“A coisa ali é bem rigorosa e isso tudo era passado para a gente. Tem que saber fazer
mergulho, porque se não, não tem como ir lá no fundo do mar, porque lá é muito fundo, e
as peças estão há muitos metros abaixo da superfície. Para ir lá tem que saber nadar
bastante, tem que ter um curso de sobrevivência, porque de repente alguma correnteza
pode soltar estas embarcações, faltar combustível ou pode ocorrer alguma pane , qualquer
coisa. Tem que estar muito bem preparado fisicamente, porque lá no ‘mastro’ do mar, lá
nas profundezas mesmo, é como se você fosse uma caça..”
“Eu gostava disso, gostava de estar em baixo d’água”. Inicialmente ele foi levado a
assumir esta profissão pelo lado financeiro, mas depois foi se encantando: “Você é
obrigado a estar ali, se obrigando a fazer aquilo porque você sabe que vai ganhar um
dinheiro. Com o tempo a gente passa a gostar, mas também porque você passa a dominar
melhor as situações. As coisas que a gente faz passam a fazer parte da gente”. O mar
passou assim a fazer parte da vida do Capitão Gancho. Aquela ilha da infância onde ele
92
A imagem de mar foi trazida na abertura da narrativa do Capitão Gancho por representar um espaço em
que ele viveu sentimentos que se assemelham as fruições do próprio ato de jogar.
200
brincava de atravessar barquinhos agora postava-se à sua frente de verdade. Enormes atóis
submersos, pedras onde se escondiam tubarões e outros peixes eram o universo onde ele
novamente se isolava da vida dos estudos e da vida em família. Tornava-se um universo
lúdico onde poderia jogar, pois o sabor da prática está no jogo com a incerteza e no
controle do risco que pode ocorrer durante a jogada.
Desta forma
ele poderia viver os conceitos de Caillois (1990)93. A competição,
agôn, acontecia entre os mergulhadores para ver qual era o mais corajoso. “ Na época,
desenvolvi muito, eu era muito forte, então conseguia fazer várias coisas sozinho, coisas
que eram para duas ou mais pessoas fazer, eu fazia sozinho. Aquela área ali eu conhecia
como a palma da minha mão, não precisa de nada auxiliar.” Como nunca sabia o que lhe
esperava nas profundezas do mar, viva a alea, a iminência do acaso : “Quando você está
numa correnteza tudo pode acontecer, e nessa época eu era meio medroso, eu ficava
rodando , limpando o chão, como a gente chama. Eu não ficava parado dando
bobeira”.Ele se sentia como um mergulhador bem preparado fisicamente e que nadava
como um verdadeiro campeão, o simulacro, a mimicry , era vivida intensamente. Ser o mais
veloz na água é uma flutuação de sentidos que transita entre a imagem do herói e a do
competidor, consubstanciando-se no nadador invencível. “Eu nadava muito, eu acredito
que se eu disputasse com qualquer nadador na época eu ganhava. Tinha uns dois por lá
que nadavam muito também. Mas eu era páreo para qualquer profissional de natação,
podia ser até da seleção brasileira. Mesmo que eu não ganhasse seria páreo duro para
eles”. A fruição de vertigem, ilinx lhe chegava quando “O tubarão não estava atrás das
embarcações, ele estava vindo atrás de mim. Eles depois falaram que ele não queria me
caçar, devia estar assustado comigo ou curioso. Tem uma foto minha lá até hoje, está
muito desbotada. Eles falam que eu fui a única pessoa que eles viram correr por cima das
águas. Até hoje eles falam isso.” Capitão Gancho passou por voluptuoso pânico. “Eu
lembro até hoje, como se fosse hoje. Eu pulei da água lá para cima do píer. Eu entrei em
estado de choque
Indaguei ao Capitão Gancho sobre as sensações de estar no fundo do mar, pois
diferentes estudos na área da educação física buscam a compreensão do imaginário de
pessoas que vão em busca de esportes radicais como mergulho, canoagem, alpinismo e
93
Estes conceitos foram explicitados do Segundo Tempo deste trabalho.
201
outros. Para autores que se dedicam a esta temática, como Costa ( 2000 ), por exemplo,
subir uma montanha, descer um rio e escalar uma parede são atividades que exigem do
praticante mais do que esforço físico: requerem um ritual que separa o escalador ou o
canoísta dos mortais comuns e os aproxima do divino, sacralizando sua existência. Todo o
preparo para essa viagem remete ao sentido de um ritual orgiástico: a busca do êxtase
final” ( p.28)
Capitão Gancho assim se expressou quanto às sensações desta aventura-risco de seu
trabalho-esporte como mergulhador:
“Olha, eu vejo muita gente as vezes falando que dá sensação de liberdade no fundo do
mar, mas não é tanto não. Você se sente como se fosse um passarinho, mas que a qualquer
hora qualquer um pode te dar uma pedrada e você cair. Pensa bem, você sabe que há mais
ou menos uns quinhentos metros , um quilômetro, tem tubarões, tem cações e peixes
perigosos. Se alguém tem esse sentimento de liberdade, não sou eu”.
Aquela fruição de vertigem da infância, quando corria desesperadamente dos
irmãos, tornava a acontecer em adulto. Envolvia-se num jogo com o mar que lhe permitia
diferentes conquistas, lhe permitia brincar com o destino e com as adversidades imprimindo
outros sentidos simbólicos de desafios a seus próprios limites. “a aventura se apresenta
como exterior à trama global da vida; todavia, está organicamente ligada a ela e marca o
momento agudo desta necessidade interior que impregna a história pessoal” ( COSTA,
2000, p.78).
A vida por si só pode ser vivida como aventura, e neste sentido o jogo faz parte da
vida. Em Chevalier e Gueerbrant (2005) o jogo é um símbolo de luta, de luta contra a
morte, contra as forças hostis e contra os elementos do cosmo , tornando-se um jogo contra
si mesmo (contra o medo, a fraqueza, as dúvidas, etc...) (Idem, p.518). Mergulhar para
capitão Gancho é risco, é uma espécie de pânico desejado. Em sua fala ele demonstra a
satisfação e o orgulho de ter mergulhado sem aparelho, sozinho, enfrentado temporal,
vendavais e se envolvendo em grandes aventuras. Num dos mergulhos uma bóia de
concreto submersa teve as correntes cortadas por outro mergulhador e quase o atingiu. Em
outra situação ele se deparou com um peixe enorme. Os colegas dizem que deve ter sido
um cação, mas ele ‘jura’ que era um tubarão:
202
“Então tinha aquelas pedras, aquelas coisas enormes encima de mim, eu estava com a
lanterna pendurada no pescoço. O certo é você colocar um cabo, um bote de borracha e
deixar na superfície da área onde você está trabalhando. Eu não, botava a lanterna no
pescoço e ia, e era uma lanterna pequena. Aí eu virei e vi uma sombra. Não vi o peixe
direito, só vi aquela sombra escura e grande. Não quis jogar a lanterna encima, fiquei com
medo. O pessoal falou que era um cação. Para mim não. Até hoje eu sei que era um
tubarão que estava ali. Eu nunca vi cação com barbatana enorme, e aquele tinha”.
A pesquisa narrativa como forma de evocar imagens da vida do narrador deixa-o à
mercê de lembrar e/ou esquecer de passagens que têm múltiplos significados e aparentes
contradições que podem ser exploradas pelo pesquisador. O ato de rememorar traz escolhas
onde algumas coisas são esquecidas e outras têm sentido específico. Cria-se um campo
simbólico onde “a memória cria um imaginário histórico, definido pela apropriação
pessoal e pela ação de um sentido peculiar a uma determinada trajetória de contato e de
acesso a um patrimônio cultural” ( CATANI, 2000, p.23). Os acontecimentos lembrados
são evocados à luz da emoção, sendo a memória uma abertura para o relato do vivido onde
o que é dito vem carregado de sentimentos, de propósitos e explicações.
Para Capitão Gancho, o sentido do lúdico estava nas brincadeiras/trabalho/aventuras
do fundo do mar: “Eu gostava disso, gostava de estar em baixo d’água”. Não só quando
adulto, ao assumir a função de mergulhador, o entrevistado narrador demonstrou seu amor
por águas perigosas. A passagem pelo lago do sítio com barquinhos de brinquedo para
alcançar a ilha dava-lhe imensa satisfação. Em suas falas podemos perceber isto: “Eu
gostava muito de brincar de barco lá.(...) ia para a minha ilha brincar”. Quanto as
sensações que o mar lhe trouxe quando adulto, Capitão Gancho assim se expressa:
“O mar é isso, você tem que conhecer ele bastante, se você não conhecer, se não souber
se respeitar fisicamente, conhecer seus limites, até onde você pode ir, até onde você pode
agüentar a pressão, não dá. Mas é isso que encanta, é isso que te atrai para lá, e aquela
área ali eu conhecia como a palma da minha mão”
O mar, símbolo da dinâmica da vida. Lugar dos nascimentos, das transformações e
dos renascimentos. As águas em movimento simbolizam uma situação de ambiência, onde
a incerteza, a dúvida e a indecisão podem se concluir bem ou mal. “ Vem daí que o mar é
203
ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte”. (Chevalier e Gueerbrant,
2005,p.593 ).
Para Capitão Gancho, esta experiência de trabalho foi um período de
profundas transformações, pois vivendo experiências que desafiavam seus limites ele pode
refletir melhor sobre sua vida. Foi um mergulho em si mesmo que o levou a tomada de
decisões.
“Eu, por exemplo, quando me sentia assim, umas pontadinhas de leve aqui, ali, quando o
ouvido dava um zumbido, eu sabia que tinha que subir e tirar o equipamento logo. Era
sinal de que minha pressão estava começando a baixar. Então se a pessoa forçar a barra,
com certeza vai se prejudicar. Eu passei por experiências ruins. A primeira foi teimosia
minha. Eu era muito teimoso. Se tinha uma coisa ruim, os colegas falavam assim: Fulano,
não faz isso não que o colega fez e não agüentou. Como eu era forte, me achava muito
forte, eu falava para mim mesmo que era tranqüilo de fazer, mas com a história do tubarão
eu entrei em estado de choque, não quis mergulhar mais, aí eu saí do mergulho”
Saindo da profissão de mergulhador, Capitão Gancho voltou para Niterói com o
propósito de terminar os estudos e fazer uma faculdade. No ano de 2000 ele terminou o
ensino médio e prestou vestibular para o curso de Pedagogia da FFP/UERJ. Ele comentou
que desejava cursar Biologia Marinha, mas que fazendo pedagogia sua vida profissional
seria mais fácil, pois a irmã de sua esposa pretende abrir uma escola em Itaboraí ( local
onde fica o sítio em que viveu na infância) e o convidou para isto.E assim ele comentou:
“Então, já que eu teria que fazer mesmo Pedagogia, faço logo agora”. Capitão Gancho se
valeu também da experiência que teve cursando o ensino médio num colégio que, embora
sendo de formação geral, trabalhava com a perspectiva de atuação dos alunos no âmbito
escolar, visto que os diretores eram formadores de professores. Foi assim que ele teve
contato com crianças , pois no 3º ano eles visitavam escolas para desenvolver atividades de
brincadeiras, não só as da área de Educação Física, mas de Matemática , Física e Química
trabalhando de forma recreativa. Esse era o projeto da sua escola no ensino médio. Isto lhe
trouxe diferentes oportunidades de trabalhar com jogos na educação. Apresento abaixo
alguns trechos de dois relatos que apontam sua experimentação em aulas lúdicas:
“Nós íamos par as escolas poder trabalhar com as crianças. Por exemplo: teve um dia
que foi Física. Trabalhar o ensino de física com crianças é difícil, é complicado. Você não
pode ensinar aquela coisa técnica que a criança nunca viu, não é isso. Uma das vezes
usamos uma pista num quadro feita com carrinhos para mostrar a noção de aceleração.
204
Nós mostrávamos o tempo que se levava para chegar a algum lugar. Mostrava o tempo que
eles levavam para chegar de casa até a escola, da escola até em casa, se eles iam para
algum outro lugar e tudo. Com isso tinham crianças que falavam que quando saíam mais
cedo não iam direto para casa. Aí você começa a perguntar: você vai para onde? Ah, eu
passo lá em tal lugar. Você fica quanto tempo lá? Muitas vezes as crianças em vez de irem
para casa iam jogar videogame em algum lugar ou iam para casa de algum colega. Então
a gente trabalhava melhor a noção de tempo com eles. Tinha uns que chegavam a dizer
que deixavam de fazer os trabalhos que os professores da escola mandavam porque
brincavam fora da hora. Eles chegavam até esta noção de aproveitamento do tempo, o
tempo que eles tinham para se desenvolver melhor, tanto na vida pessoal, familiar como na
escola. A gente tem que se divertir , mas também tem que organizar as coisas. Eu dava a
estas crianças o suporte para isto, para saber se organizar, pelo menos para ter esta
noção. Não é só ensinar física, mas dar também suporte para outras coisas. Os jogos nesse
ponto facilitam isso. Se eu não tivesse ali brincando com eles, eles não me contariam essas
coisas”.
Segue abaixo a segunda experiência:
“Na área de matemática nós pegávamos, por exemplo, os dados. As crianças gostavam de
brincar de dados. Tem gente que usa para jogos de apostas, mas pode ser feito para dar
noção de soma, subtração. Então a gente formava grupos para disputar mesmo. Claro que
as vezes eles sempre ganhavam alguma coisa, mas ninguém saía perdendo. Eu não deixava
ninguém sair com o sentimento de perdedor. Se um grupo era muitas vezes derrotado eu
dava um jeito de reverter. Eu não deixava chegar a tal ponto, sempre criava outra situação
para dar oportunidade de tal grupo ganhar alguma coisa. Mas também não deixava aquela
noção de ser melhor sempre, melhor que todos. Não ganhou agora mas vai disputar em
outra chance, vai ter outras oportunidades. Isso eu fazia antes mesmo de ser professor”.
Estas passagens mostram que o trabalho com jogos está para além da transmissão
de um conteúdo do programa. Mesmo sem ter informação através de fundamentação
teórica sobre o tema jogo, até então, Capitão Gancho já percebia que poderia, através destas
atividades, favorecer o desenvolvimento das crianças em diferentes aspectos. Ao levar as
crianças a perceberem como aproveitavam o tempo e ao ouvi-las contar o que faziam
quando saíam da escola, criava-se uma rede de relações de afeto, confiança e prazer.
Estabelecia-se uma proxemia que em termos maffesoliano chamamos de ser-estar-juntocom. O equilíbrio do placar para os grupos que disputavam os jogos de matemática,
demonstrado pela abertura de novas possibilidades de outras rodadas do jogo, levavam
Capitão Gancho a agir intuitivamente com espírito de educador. Ele conseguia ‘ler esta
confissões’ que as crianças fazem nos folguedos dos pátios escolares. Para Chateau (1987)
205
não podemos subestimar a importância dos jogos de nossas crianças, pois o jogo é uma
rica fonte de atividades práticas, funcionais e superiores. Para este autor é através do jogo
que começa o pensamento propriamente humano (Idem,p.123). No jogo a criança mostra
sua personalidade e ainda segundo o autor, o professor deve estar atento as múltiplas
indicações dadas pela maneira das crianças jogarem. “Mas não é necessário, para entender
esses signos, nenhum conhecimento psicanalítico. O essencial é conseguir se colocar no
lugar da criança, é ter o que poderíamos chamar de a percepção da criança”. (p.100).
Capitão Gancho foi aos poucos, através destas experiências, resignificando a
relação jogo-educação. Para ele “Ensinar uma matéria de forma tradicional não cria muita
abertura para o aluno te contar coisas. Os jogos abrem esta possibilidade de ensinar além
da matéria, de conhecer o aluno, de passar noções que serão boas para ele, as vezes, para
a vida toda deles. Pelo jogo eu me aproximei daquelas crianças.”
Ao entrar para a FFP/UERJ, Capitão Gancho já conhecia minimamente o chão da
escola pelo ângulo do professor, considerando que seu curso de ensino médio foi uma
chave que serviu para abrir portas no âmbito da educação. “Tudo isso foi importante para
eu chegar até aqui”. Quando estava cursando o primeiro período do Curso de Pedagogia
foi convidado a trabalhar com alfabetização num projeto de Educação de Jovens e Adultos
(EJA) em Itaboraí. Ele conhecia grande parte de seus alunos por ser freqüentador deste
município desde a infância. Foi nesta ocasião que alfabetizou sua mãe. Estas experiências
no EJA trouxeram um sentimento de insegurança e dúvidas, afinal seria sua primeira
atuação direta em docência.
“ No início que eu trabalhei com EJA, eu não vou esconder não, logo no início eu tinha
medo de falar alguma coisa que não fosse muito do conhecimento do adulto e ele saísse um
pouco constrangido e não voltasse mais para a sala de aula. É difícil acertar. Teve um
grupo de professores que começou a perceber isso em mim, essa insegurança. Falavam
que eu estava com muito medo e que não podia ser assim. Eles conversaram muito comigo
Eles já tinham bastante experiência na área e me ajudaram muito. Eles diziam que eu não
tinha que largar o meu jeito de ser , mas que eu deveria agir naturalmente com a turma.
Eu não podia infantilizar situações se não eles se sentiriam constrangidos e fugiriam das
aula. Eu tinha que ser natural e me imaginar na situação deles”.
Chamado à ter a percepção da criança ( CHATEAU, 1987) Capitão Gancho foi,
na docência do EJA, conseguindo trabalhar de forma lúdica levando alguns jogos para a
turma. Ele explicou que inicialmente o que facilitou foi o fato de pertencer a comunidade,
206
mas que mesmo assim tinha medo, e dificuldade de brincar com eles. Ele sempre gostou
de formar grupos e ele tinha a noção de trabalhar desta forma desde o seu ensino médio.
“Eu tinha noção de trabalhar na escola com brincadeiras utilizando jogos para
desenvolver a língua portuguesa, a geografia, a história, matemática, ciências. Através de
jogos eu sabia como passar isso tudo. Então eu formava grupos, eu pedia que eles
formassem os grupos , fazia muito isso em sala de aula, formar grupos para ver a
quantidade de pessoas e as características que eu pedia. Percebiam a quantidade de
pessoas nos grupos, comparavam, trabalhavam a noção de metade, dobro, frações. Pedia a
formação de grupo para eles se posicionarem com relação aos outros, os que não
conseguiam tinham a ajuda dos outros. Eu ia alternando a formação dos grupos para
mesclar mesmo, para ampliar o conhecimento deles , para facilitar as relações entre eles.
Pedia para um ajudar o outro, entende? Tinha uma disputa, mas era diferente. Eu fazia
também perguntas e resposta, mas com piadas, com rimas, depois que ia colocando outras
coisas do conteúdo. Eu sempre brincava e eles aceitavam, mas depois começou a ficar de
um jeito que para controlar era fogo”.
Capitão Gancho sentia ao mesmo tempo prazer e receio em trabalhar com jogos,
pois, para ele, o adulto já tem uma concepção de mundo que muitas vezes dificulta que ele
aceite o novo e o diferente. Ele comenta que a primeira turma que trabalhou de forma
lúdica foi um pouco complicado. Como conhecia grande parte dos alunos a relação mais
estreita dava mais liberdade para a turma se expressar nos jogos com euforia ou mesmo
negando
as atividades de jogos. Mas, em contrapartida, ele sentia a necessidade de
despertar curiosidade em seus alunos para deixar que eles fossem descobrindo as coisas
por eles mesmos. Ele não deseja chegar com pacotes prontos de informações. Os jogos,
segundo ele, seriam facilitadoras de espírito de curiosidade e envolvimento nas atividades,
desde que ele conseguisse controlá-los para não atrapalhar o andamento do conteúdo a
cumprir. Precisava também despertar prazer nos alunos para participar das aulas, pois, do
contrário, eles poderiam dormir na aula visto que já vinham cansados do trabalho e as
vezes, mesmo em casa, já haviam trabalhado o dia todo. Foi compreendendo isto que ele
passou a trabalhar com jogos em aula e, segundo ele:
“Essa era uma relação muito boa, eu tive um retorno bom, muito bom. Nossa relação foi
mudando, fui ficando confiante em mim e fui ganhando a confiança deles. As aulas tinham
um tom de alegria, de prazer. Eles riam, não sentiam o tempo passar e nem percebiam que
estavam aprendendo. Acho que para eles, que já são sacrificados pela vida, pela idade e
pelo trabalho, a hora de estudar dava prazer, era boa, leve, mais leve que a vida lá fora.“
207
Na visão de Maffesoli (1998 ) a dimensão do coletivo“ permite colocar em jogo
as potencialidades multidimensionais (polimorfas) de cada um, num conjunto” (p.29).
Diferentes grupos ou organizações sociais são carregados de uma pulsão de unidade que
pode ser encontrada em ambientes de jogos. Este pensador nos aponta a necessidade de se
olhar para o coletivo como um coletivo diversificado onde existe um jogo de diferença
que se encontra na base de toda estruturação social, compreendendo-a como organização
fragmentada que permite de maneiras coletivas a expressão de cada indivíduo e de cada
grupo social. Trabalhando com grupos para desenvolver atividades de jogos Capitão
Gancho ia criando um novo sentido nas relações que iam se estabelecendo no ato de jogar.
Procurei saber se antes de cursar pedagogia ele percebia uma relação mais
estreita entre o jogo e a educação, visto que seu ensino médio proporcionou algumas
experiências neste sentido.
“Olha, para ser sincero eu via como perda de tempo o jogo pelo jogo. Hoje, depois do
Curso de Pedagogia eu vejo a escola como lugar de outras aprendizagens. O jogo, a
brincadeira são muito importantes para a criança, ela tem que ter isso , as vezes só a
escola pode oferecer isso. Tem gente que fala que cortar a infância da criança e o mesmo
que cortar a veia da criança , mas também tem gente que fala que se o filho vai para a sala
de aula para brincar, então que brinque em casa. Mas não é só brincar, aquela
brincadeira vai ter um outro objetivo e que vai ajudar a criança a se desenvolver. Quando
eu trabalhava com qualquer tipo de projeto no ensino médio de forma lúdica, quando eu
ia nas escolas com atividades que tinham a ludicidade, eu tinha aquele contato mais direto
com os alunos, a interação da gente era outra. O que faz a diferença é a intenção, é
aquele momento ali de estar trabalhando de forma mais consciente. Aqui na FFP foi que
me deu mais sentido de que não é perda de tempo, é uma coisa que precisa ser trabalhada
mesmo. Essa noção eu tive aqui, depois que entrei para cá foi que eu vi isso”.
Para ele, este curso foi um renascimento em todos os sentidos. Sua maneira de olhar
a educação mudou a partir das reflexões provocadas pelas discussões em diferentes
disciplinas.
“Sabe, tem aquele astronauta brasileiro que falou lá de cima que passou a enxergar a vida
na terra de outra forma, acho que é assim. Olhar aquilo que eu estava vivendo de outra
forma. Foi um novo ângulo para ver estas questões do brincar, do jogar. Não é que tudo
que você aprendeu antes tenha que ser jogado fora, não é isso, mas você começa a
enxergar as coisas como se estivesse lá em cima naquele momento astronauta. È um
nascimento mesmo, foi como se eu estivesse nascendo outra vez, se é que isso é possível ?”
208
O olhar é o signo de rituais de benção, o olhar aparece como o símbolo e o
instrumento de uma revelação. “ O olhar é como o mar, mutante e brilhante, reflexo ao
mesmo tempo das profundezas submarinas e do céu.” (Chevalier e Gueerbrant, 2005 a,
p.653). Com relação à temáticas que abordam ludicidade em seu curso, Capitão Gancho
comenta que foi construindo um novo sentido para o jogo na escola a partir do 5º período,
com a disciplina de Recreação e Jogos. “Olha, foi aí que eu tive um conceito mais
ampliado disso, eu tive contato mais direto”. Sua fala demonstra o que ele apreendeu desta
disciplina:
“Para mim foi uma experiência muito boa, porque mesmo que já tenha vivido muito esse
contato na prática com os jogos, com brincadeiras em sala de aula com meus alunos,
também nas visitas que eu fazia nas escolas , eu aprendi mais, me deu mais possibilidades
de criar e encontrar formas mais soltas, mais tranqüilas. È bom tentar elaborar atividades
e estudar sobre esse assunto. A ajuda dessa disciplina não foi coisa pronta, ela apontou
caminhos. Foi um trabalho interessante na prática e que dá para ver como será com as
crianças quando fizermos nas escolas. Deu para perceber se o que era proposto serviria
para a criança, para a criança que estávamos imaginando quando bolávamos uma ou
outra atividade de jogos. Pensávamos na cultura dessa criança, onde ela estava localizada,
se os jogos seriam adequados para ela. Imaginávamos o tipo de brincadeiras na área das
escolas em que trabalhamos, como é o ambiente físico, material, a vida das crianças
mesmo, em família, no social. Nós olhávamos muito para todos esses lados. Essa disciplina
possibilitou isso. Não se limitou a passar os jogos, as brincadeiras, mas fez a conexão
deles com o mundo da escola e da criança”.
Capitão Gancho sempre mostrou certa inibição em aula. Seus gestos eram contidos
nas atividades de jogos e brincadeiras. Parecia-me que ele sentia certo desconforto ou
mesmo vergonha em se envolver com os colegas para brincar ou jogar.
Interessava-me
saber que sentimentos e emoções ele sentiu ao participar das atividades prática nas aulas de
Recreação e Jogos e fui, então, encaminhando nossa conversa neste sentido.
“ No início foi difícil, mas depois de algumas aulas eu comecei a me soltar e não
esquentava mais. Tava todo mundo se entregando, ninguém estava mais preocupado com o
mico do outro, com o seu mico, o negócio era estar ali fazendo, agindo. E nessa a gente ia
aprendendo muito. Agora eu entendo mais o sentido do jogo, da brincadeira para a
criança. Se estava bom para a gente que é grande, imagine para os pequenininhos? A
participação foi muito boa. A turma se conheceu melhor, sabe? Mesmo com situações
preparadas, eles se interessavam uns pelos outros. Os jogos facilitaram muito as nossas
relações. Ficamos mais prestativos com o outro, empolgados com o que os outros
209
propunham. Era um riso, um risco de curiosidade, mas a gente queria correr esse risco,
porque tinha alegria, tinha prazer, entrega, sabe? Foi muito divertido e útil também, é
claro”.
Assim como nas aventuras de mergulhador ressabiado, com medo de ser engolido
por um peixe grande, Capitão Gancho foi mergulhando aos poucos neste mar de alegria e
prazer que os jogos proporcionavam. Ele precisou adquirir confiança nele e em seus
colegas de turma. Foi uma entrega lenta e gradual. Como ele apontou no início desta
narrativa, ele tinha medo se entregar, achava que nem sabia brincar, que não conhecia
muitas brincadeiras infantis e por isso sentia vergonha de participar. Suas primeiras
palavras sobre o assunto foram as seguintes: “Eu nunca fui de ficar com vergonha, mas as
vezes pintava. Não é que eu seja muito inibido é que as vezes pintavam situações que eu
ficava constrangido dos outros olharem. Tinha medo de acharem que eu não sabia nem me
mover para tal brincadeira”. Aos poucos ele foi se deixando levar pela ambiência dos
jogos.
“Nós aqui vivíamos mesmo as situações, nós vivíamos mesmo. È como se a gente tivesse
voltado no tempo. Por exemplo: para mim que não vivi certas situações, era como se eu
estivesse lá com meus 6 anos, 7 anos de novo e tivesses vivendo aquele momento ali. Me
trazia alegria, muita alegria que me movia a querer fazer, queria terminar um jogo já
pensando em começar outro com muita curiosidade. Era isso, curiosidade mesmo era o
que a gente sentia. Vontade de experimentar o novo. Engraçado, não é? Tinha jogos e
brincadeiras que a gente já tinha feito na infância lá atrás, já conhecia de alguma
maneira, mas ali parecia tudo novo. Eram emoções diferentes.”
Quando indaguei sobre sua prática docente no EJA ele comentou que procura levar
para a turma atividades de jogos, pois acredita que a curiosidade pela atividade possa leválos a prestar mais atenção na aula, assim como pode promover uma aproximação entre os
alunos e entre estes e ele, tornando a aula mais leve e prazerosa. “Quando termina o tempo
de aula em que eu uso um jogo, fico olhando assim e penso que se não fosse isso, acho que
eles estariam sofrendo para aprender”. Para Capitão Gancho, um dos grandes desafio de
se trabalhar com adultos é fazer com que eles se sintam bem no ambiente escolar, pois a
vida lá fora, para muitos, já e dura e séria o bastante, assim ele está sempre preocupado em
dar leveza às suas aulas e tem nos jogos um grande facilitador para isto. “Dar aulas com
jogos para mim também é terapia e acho que eles também sentem isso e passam isso para
a gente, de que está sendo bom, agradável”.
210
Quando a educação está ligada ao jogo é própria maneira de pensá-lo que se
modifica. Capitão Gancho conseguia resignificar o ato de jogar a partir das experiências
práticas que vivenciou na graduação. “Criança quer brincar e se você não entender isso
você não consegue se aproximar dela para nada, mas só brincando também é que a gente
entende isso”. Para ele estas atividades de Recreação deram essa noção de ver a criança
como uma pessoa.
“Pessoa que ri, que chora, que faz bagunça, mas que também precisa prestar atenção, se
concentrar, estar atenta. Pessoa que fica triste, até quando está quieta demais pode
significar algum tipo de dificuldade física, mental ou da parte psicológica, ou ainda
alguma coisa ruim pode estar acontecendo com ela em família. Com as brincadeiras a
gente se aproxima mais delas, conhece ela melhor nessa parte física, mental e de
sentimentos”.
As práticas pedagógicas pelo viés da ludicidade vêm sendo discutidas por diferentes
autores. Brougère (1998) é um dos que infere apontando que o jogo pode se tornar
igualmente um espaço de invenção, de curiosidade e de experiências diversificadas, sendo
um processo de socialização que prepara o sujeito para assumir um lugar na sociedade. No
âmbito escolar “o jogo se caracteriza por uma articulação muito frouxa entre o fim e os
meios” ( Idem, p.193)
Para Capitão Gancho, o jogo na aula é como um por de sol94. Está lá encoberto, mas
a qualquer hora ele aparece para iluminar e alegrar os alunos. Em sua escola ele acredita
que os jogos deveriam ser mais explorados por outros professores pois ocupam o lado
sombra ligados a perda de tempo ou bagunça. Para ele o trabalho com atividades lúdicas,
nem que seja de vez em quando, fica muito melhor. “Não que se tivesse que usar sempre,
mas que ele estivesse ali como um sol pronto para nascer” . Para ele
“O sol sempre poderá nascer. Eu tenho esperança que amanhã será muito melhor. Ele
está lá no céu, se um dia a gente não vê é porque algo encobriu, mas ele está lá. Existe
sempre a possibilidade e a esperança dele aparecer para nós. E os professores da minha
escola ainda não viram isso, que os jogos iluminam as tuas aulas”.
94
Na imagem de abertura desta narrativa, busquei também trazer o sol como simbolismo do jogo para Capitão
Gancho em suas práticas pedagógicas.
211
Fonte de calor, de luz, de vida, o sol mostra a verdade de nós mesmo e do mundo. É
a luz do conhecimento e do dualismo dia e noite. “Trata-se de simbolizar a luz e o calor,
ou, de outro ponto de vista, a luz e a chuva, que também são os aspectos yang e yin do
brilho vivificante”. (Chevalier e Gueerbrant, 2005, p.837). Tem sentido de alternância
vida-morte-renascimento, simbolizada pelo ciclo solar.Os primeiros raios deste sol já foram
percebidos por Capitão Gancho: “Lá na escola que tem perto da minha casa, por exemplo,
do ano passado para cá é que eu comecei a ver mais liberdade para se trabalhar com
jogos e brincadeiras em sala de aula, até no pátio da escola eu vejo isso com o professor
participando”.
Com o entendimento de que a educação vem oscilando entre o sol e a chuva, o lado
sombra e o iluminado, e com esperança em dias melhores para educação, Capitão Gancho
deixa uma mensagem de crítica ao que tem visto nas escolas por onde tem passado nestes
anos na condição de professor, aluno de Pedagogia ou observador do cotidiano escolar.
Esta crítica não se limita ao trabalho com jogos nas escolas, mas inclui o fazer docente e as
instituições de ensino como um todo.
“A escola deveria ser mais aberta porque ela ainda é muito fechada para a ludicidade,
para as brincadeiras. Na teoria está ótimo, todo mundo acha legal, mas na prática,
principalmente nas escolas públicas, quando chega dentro da escola se vê uma outra coisa
totalmente diferente. O professor atua de uma forma diferente , porque na maioria das
vezes ele está sendo coagido mesmo a trabalhar daquela forma: Olha, isso aqui não pode.
Ele encontra muito controle no trabalho dele ainda, há falta de liberdade para ele atuar.
Acho que isso é próprio da educação, essa falta de liberdade, esse controle na forma como
você atua, no que você está fazendo e falando . Eu acho que o professor deveria ter
liberdade na sala, mas , infelizmente... , é isso aí.”
212
PRORROGAÇÕES
213
Deus Grego Apolo
Deus Grego Dionísio
Prorrogações
__________________________________________________________________
Considerações finais
Com a sensação e a intenção de que esta pesquisa não se encerre aqui, chego às
Prorrogações95 analisando o jogo jogado pelo e para os professores em formação, atores
desta pesquisa. Deparo-me com uma gama de possibilidades de novas (re)construções que
este conhecimento proporcionou. Revisitar os Tempos96 do trabalho, evocar a memória
para o visto, o não visto e o revisto, antes e durante a pesquisa, parece-me um desafio típico
95
O sentido de prorrogação aqui utilizado, para além de ser compreendido como uma metáfora do jogo,
indica os momentos finais de uma pesquisa no sentido de sua infinitude. Um trabalho que sempre necessita
de mais Tempos para novas reflexões e visitações, novas jogadas.
96
Refiro-me as partes que compuseram esta pesquisa.
214
do próprio ato de jogar. Ainda em campo, refaço percursos, apuro técnicas buscando
táticas para levar o leitor, espectador deste jogo, à compreensão dos sentidos dos jogos para
alunos-professores em formação.
As vozes dos alunos-professores sejam ditas ou escritas, vão mapeando o território e
desvelando O que está em jogo no jogo. Volto a elas inúmeras vezes buscando traços,
formas e cores de decifração deste mapa-território. Recordo os autores trazidos para o
diálogo deste trabalho, revejo as fotos tiradas, penso e repenso sobre os conceitos e as
idéias aqui tratadas. Percebo que eu e a pesquisa já somos um todo. Ela está em mim, assim
como eu estou nela. Estabelece-se uma relação de interdependência moriniana - unitasmultiplex. Sujeito e objeto imbricam-se de tal forma que mal distingo a minha voz e voz de
meus sujeitos. Ecoamos uníssonos clamando, reclamando e proclamando a alegria e o
prazer do jogo para dentro da escola.
A perspectiva de uma pedagogia de animação trazida por Marcellino (1989) aponta
o lazer como possibilidade educativa. Quando o jogo na escola é tratado como atividade
recreativa e de formação humana, não se limitando a ferramenta metodológica, promove
vivências, estabelece vínculos afetivos, expressa anseios, revitaliza conteúdos culturais e
uma série de relacionamentos sociais que vão abrindo possibilidades de mudanças no
plano formativo, logo, educativo.
Vimos nesta pesquisa, que o jogo, na maioria das vezes, dentro ou fora da escola,
está ligado ao prazer e ao lazer para quem joga. Na fala dos sujeitos podemos evidenciar
que: “ Jogo é aquilo que remete a interação e a diversão” ,e que “ são as lembranças
mais agradáveis que possuo da escola”.
Segundo Marcellino (1989), o fascínio das atividades de lazer remetem o sujeito a
um tempo de vivências de novos valores, de questionamentos que (trans)formam os
participantes de forma não meramente utilitarista. A diversão e a alegria promovidas pelas
atividades lúdicas na escola, não se limitam a um tempo da vida produtiva que
normalmente norteia a cadência das atividades escolares. O tempo-espaço do sonho, do
escape do real, tornam-se momentos de formação e desenvolvimento humano, onde o jogo
aparece como promotor deste lugar outro, lugar sagrado de vivências ricas. A voz do alunoprofessor reverbera que o jogo é “Como uma atividade em que ao mesmo tempo em que
215
havia a diversão, havia também a aprendizagem, pois através do jogo a criança desenvolve
várias habilidades”.
Nestes pequenos nadas (MAFFESOLI, 1995) e de forma recreativa, o cotidiano
toma forma, onde a socialidade em ato revela a efervescência das relações humanas. Como
não considerar estes momentos educativos? Como não designá-los como meros
divertimentos? Estes têm sido os desafios a enfrentar pelos autores e atores que lidam com
o tema jogo e educação.
Quando a educação está ligada ao jogo, passamos a (re)significar essa prática tão
antiga quanto o próprio homem. Na condição de professor, ligar jogo e educação é
compreender que a ludicidade manifestada na infância, na maioria das vezes por meio de
brincadeiras e jogos, leva a criança à experimentação de diferentes sentidos como a
liberdade, a criatividade, a autonomia, a crítica, a socialização, a fantasia. Conceitos que
perpassam o próprio processo educativo. Estas vivências lúdicas podem ser paradisíacas,
como as de Emília, aluna-professora que participou desta pesquisa. Mesmo considerando
que teve sua infância interrompida pelas “peças” que a vida lhe pregou, Emília não perdeu
o espírito brincante. Para ela, o jardim97 de sua infância e o jardim da infância onde
trabalha (educação infantil), mesclam-se de tal forma que levam-na a adotar inúmeras
atividades de jogos e brincadeiras com seus alunos. Se na infância ela se permitia falar
com paredes, dar aulas para galinhas, conversar com o amigo imaginário Alex, como negar
que os caroços de uva tornam-se, hoje, jogadores de futebol nas mãos de seus alunos?
Quando os espaços e tempos do jogo e da brincadeira são limitados por imposições da
própria vida ou por falta de socialização dos mesmos desejos brincantes, como foi o caso
do Capitão Gancho, outro participante desta pesquisa, o homo ludens fica adormecido a
ponto de levar o indivíduo adulto a um estranhamento do ato de jogar e brincar. “Será que
eu vou me entregar a isto? Será que eu vou me prejudicar (..)Tinha medo de acharem que
eu não sabia me mover para tal brincadeira.”
A história do jogo vivido por cada sujeito, na fase da infância, é fundante no
próprio ato de jogar do indivíduo adulto, seja para formar ou transformar atitudes e
conceitos com relação aos jogos. Se nas escolas de alguns dos entrevistados o jogo pouco
97
Os termos que se encontram em negrito, fazem referência a algumas imagens evocadas nas narrativas dos
alunos –professores na parte intitulada Súmula , neste trabalho.
216
acontecia, como relacioná-lo à educação quando estes sujeitos se tornam adultos?
Principalmente quando estes adultos se tornam docentes?
Como ver educação e
divertimento como coisas imbricadas? O pensamento simplificador, racional e disjuntivo
nos levou a pensar que diversão e aprendizado andam em estradas distintas. Para o
aprendizado, corpos dóceis (FOUCAULT, 2002)98. Para relaxá-los, recreação. Dicotomia
difícil de ser superada no âmbito educativo.
Como entender que o jogo possa ser uma
ponte entre cognição e prazer? Como dar ao jogo um papel relevante no contexto
educativo? Parece-me que o discurso pedagógico permanece míope. É uma visão míope
reduzir o ensino escolar apenas a formação do aspecto cognitivo. O corpo, emoções,
fruições e sentimentos não são pensados, nem sequer lembrados nas propostas de ensino.
Nosso ensino parece prioritariamente razão e pouco enxerga os aspectos bio-psco-sócioculturais revelados nos corpos que estão a jogar e a brincar por toda a escola. O corpo não
vai à escola. Talvez vá, mas permanece sentado, disciplinado no silêncio e passividade.
Dócil para o aprendizado.
Ao repensar os jogos da infância, ao apreender os sentidos dos jogos para as
crianças, ao refletir sobre as teorias de ludicidade e, sobretudo, ao experimentar as fruições
em atividades de jogos, os alunos-professores são levados a redimensionar o jogo na escola.
Torna-se, assim, de grande importância que os cursos de formação de professores abordem
a temática ludicidade de forma compreensiva, reflexiva, crítica e transformadora.
A relação jogo-educação envolve uma tessitura de fina malha de cores, traços e
formas que remetem o jogo à trabalho e divertimento para quem joga, principalmente em
se tratando de crianças. Se a Emília da Pedagogia fez do irmãozinho um brinquedo, se
cuidava dele brincando de mãe e lhe ensinava as lições brincando de ser professora, o
Capitão Gancho desta pesquisa, por sua vez, fez do mar um espaço lúdico, pois a
predisposição para o jogo é imanente à condição humana, ‘um instinto’ (HUIZINGA,
2004), ‘uma tendência’ (SCHILER In DUFLO, 1999). Os prazeres lúdicos que lhe foram
roubados na infância surgem na idade adulta levando-o a fruições como a competição, a
vertigem, o simulacro e ao encontro do inusitado no fundo do mar. Mergulhar e jogar
assumem o mesmo sentido. É aqui que retomo a máxima de Schiler (apud DUFLO, 1999) :
98
Para M. Foucault (2002), os corpos dóceis submetem-se a uma disciplina imposta por instituições
formativas.
217
“o homem só e verdadeiramente homem quando joga”. (p.77) Com este autor,
compreendemos melhor o que representou o mar para Capitão Gancho. Se o pai não lhe
permitira brincar, se o ingresso na escola demorou a acontecer em sua vida, o mar foi o
lugar de escape para o homo ludens.
A escola assume um papel importante quando se pensa na possibilidade de ser
espaço-tempo para jogo e brincadeira. Emília, aos nove anos de idade, mesmo assumindo a
função de ‘ajudante de professora’, encontrou na escola o lugar de continuar brincando.
Capitão Gancho, que pouco freqüentou a escola na infância, quase não brincou “Tinha
coisas que eu nunca tinha brincado, não conhecia”. No entanto, nem sempre a escola
garante a brincadeira e o jogo. Muito embora a grande maioria dos alunos-professores que
participaram desta pesquisa relacionem o jogo vivido na infância a momentos de prazer e
alegrias na escola, um número significativo de respostas remete o jogo a momentos ruins,
de desconforto ou vergonha. Muitos nem lembram como era o brincar e o jogar. O que
fizeram e o que fazemos com a alegria na e da escola? Pensando-se na escola como
instituição formativa de uma sociedade e entendendo que as políticas públicas em educação
apontem como meta a garantia de escola para todos os cidadãos brasileiros, passa a ser de
profunda importância que os professores que nela atuam ou que venham a atuar,
compreendam que criança é um ser que brinca, que joga, e que este brincar e este jogar não
se limitam a uma necessidade orgânica, funcional e psíquica, mas é veiculador do seu
desenvolvimento e de sua formação mais complexa.
O jogo é uma atividade fundamental para o desenvolvimento infantil. As teorias de
Piaget (1994), Vygotsky (1984), Winnicott (1975) e Bettlhem (1988)
por exemplo,
reconhecem que no brincar a criança potencializa aspectos bio-psico-sócio-culturais,
tornando-se esta atividade uma aprendizagem necessária à idade adulta. Chateau (1987)
chega a afirmar que “uma criança cresce e se torna grande pelo jogo” (p. 14). Para este
autor, o jogo desenvolve as funções latentes nos aspectos motor, afetivo, social e cognitivo
tão importantes na formação humana, tais como socialização, criatividade, autonomia,
liberdade, consenso, conflito, ordem, desordem, transgressão, imaginação, fantasia,
seriedade, frivolidade. É preciso buscar e garantir o princípio da atividade lúdica, não
apenas como impulso humano, mas como necessidade mais ampla da formação do homem.
218
Para Brougère(1998), “o jogo vai estar no centro das atividades que têm por
objetivo a regeneração da sociedade” (p.43). O ato de jogar é uma abertura singular para
um novo mundo, ele é uma maneira de uma sociedade dizer de si (MAFFESOLI, 1984). As
propostas de jogos e atividades lúdicas no contexto educacional devem levar em
consideração que o ato de jogar é uma atividade significativa para o homem. O jogo na
escola, seja como importante metodologia de aula, como alavanca no ensino de um
conteúdo, seja como atividade recreativa, envolve emoções, valores, subjetividades e
comportamentos imbricados no próprio processo formativo. Contribui, assim, para o
desenvolvimento afetivo, cognitivo, psicomotor, social e cultural da criança na escola, o
que implica numa responsabilidade dos professores em relação a seu uso de forma crítica e
reflexiva, afinal, o jogo é um fenômeno humano onde o ato de jogar remete a inúmeros
sentidos e significados.
Nesta pesquisa, busquei identificar alguns sentidos dos jogos para professores em
formação, chegando aos mais significativos para estes: recreação e recurso metodológico
para a transmissão de conteúdos. Para a grande maioria dos sujeitos investigados, a
abordagem sobre as teorias dos jogos na formação docente possibilitou a compreensão do
jogo como parte importante no processo educativo, tanto de forma recreativa como de
forma formativa. O processo de formação foi, para muitos, um momento de retirar a venda
dos olhos e ver o jogo na escola por um outro e novo prisma. Estabeleceu-se uma ponte
mais sólida na relação jogo-educação. As atividades escolares passam a ser vistas como
espaço para o reconhecimento de manifestações corporais, sociais e culturais promovidas
por jogos e brincadeiras.
Outro traço importante no mapa-território desta pesquisa foi o indicativo de que as
atividades praticadas e vivenciadas na disciplina de Recreação e Jogos na FFP/UERJ
corroboraram, e muito, para se compreender as fruições do ato de jogar, o que levou os
alunos-professores a uma mudança de olhar. Sentir-se como crianças, gritar, pular,
reclamar, torcer, rir, competir, transgredir, partilhar, estabelecer laços, foram algumas
atitudes apontadas nas respostas dos alunos-professores investigados.
Este ponto da pesquisa me impulsionou a fazer a seguinte reflexão: Que perfil deve
ter o professor de Recreação ou disciplinas afins, que atua nos cursos de formação de
professores? Deverá este profissional ter formação em educação física ou no campo da
219
ludicidade ? Pensando nas Diretrizes Curriculares dos Cursos de Pedagogia, em seu Artigo
5º, inciso VI99, meus questionamentos tomam força. Que propostas curriculares devem ter
estes cursos de modo a atender tais exigências legais? Qual a especificidade do profissional
que atuará neste eixo temático? Como mencionei ao iniciar esta Prorrogação, este trabalho
proporcionou uma gama de possibilidades de (re)construção de conhecimentos. Deixo aqui
estas pistas para outros jogos/estudos de pesquisa, pois uma produção acadêmica não se
esgota na elaboração de uma dissertação ou tese. Na feitura destes trabalhos, surgem
diferentes formas, traços e cores que demandam novos mapas-territórios com paisagens
instigantes a serem exploradas.
Volto a transitar entre os sentidos dos jogos apontados nesta pesquisa perpassando
pela complexa relação de redes simbólicas que envolvem o ato de jogar. Dentre a
multiplicidade de sentidos encontrados, destaco que os alunos-professores remeteram o
jogo a seguinte polarização: divertimento/trabalho. Concepção de jogo como meio
(aprendizagem) e como fim (ludicidade). Os estudos de Brougèrre (1998) apontam que o
jogo na escola é, muitas vezes, entendido como tarefa escolar. O fato de ser também
compensador das demais atividades, de ser motivante para as crianças e de ser revelador do
comportamento infantil, faz com que seja usado com uma intencionalidade educativa.
O que se torna relevante para o entendimento desta polarização prazer-trabalho, é
que comportamentos apolíneos e dionisíacos estão presentes no ato de jogar
consubstanciando-se na própria tensão do jogo. A combinação destes pólos garante que o
jogo seja desejado e vivido literalmente pelas crianças. O jogo só é jogo se envolver paidia
e ludus (CAILLOIS, 1990). A euforia, a motivação para o jogo, é que revela se o jogador
está ali para jogar e o ludus, ou seja, as regras aceitas voluntariamente, garantem o jogo.
Estas características do jogo “convidam” Apolo e Dionísio para uma partida. De forma
concorrente, antagônica e complementar (MORIN, 2003), estes “deuses jogam”, e jogam
deliberadamente.
Os simbolismos dos jogos, aqui apresentados através das imagens-símbolos
destacadas nas narrativas e nos interditos das respostas dos questionários, tecem uma trama
99
Artigo 5º. O egresso do Curso de Pedagogia deverá estar apto a: VI - aplicar modos de ensinar diferentes
linguagens, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia, Artes, Educação Física, de forma
interdisciplinar e adequadas às diferentes fases do desenvolvimento humano.
220
simbólica onde a emblemática reinante é de Apolo e Dionísio. Circulando entre
divertimento e tarefa, entre produtivo e frívolo, o jogo pode ser compreendido como
atividade séria, sagrada para quem joga e ao mesmo tempo fascinante e envolvente
permitindo flutuações de sentidos. Entre seriedade e divertimento, o jogador vai se
permitindo sonhar, decidir, brigar, acatar, ordenar e desordenar o estabelecido pelo próprio
jogo na busca de uma (re)organização no jogar. Joga-se em princípio tetralógico100
(MORIN, 2005). No movimento recursivo da razão e do prazer, da realidade e da fantasia,
do mundo real e do mundo sonhado, os deuses vão tomando o campo do jogo. Ponte entre o
racional e o não-racional, o sério e o não-sério. No espaço-tempo do jogo, reinam Apolo e
Dionísio, afinal, os mitos narram o mundo que partilhamos com os outros. As atividades
lúdicas permitem a imaginação humana manifestada como “uma realidade dispersante que
permite estruturar mitos e sonhos” ( COSTA, 200,p.107).
O jogo, como dimensão simbólica, epifânica por natureza, reatualiza a tensão entre
o real e o imaginário. O antagonismo destes pares torna-se a completude do jogo. Assim, o
jogo é um momento de rito que reatualiza-se a cada jogo jogado, envolvendo mitos e
símbolos da cultura de quem joga. A cultura lúdica da infância, revelada muitas vezes nos
momentos de jogos, é ponto de compreensão do comportamento infantil, o que inclui as
atitudes, desejos, sonhos e devaneios dos brincantes. Desta forma, o jogo é um tipo de
atividade que chama a nossa atenção para a dimensão simbólica instituinte na vida humana
em sua complexidade. Não podemos descartá-lo como elemento não pertencente ao
processo educativo. Devemos sim, compreendê-lo para inseri-lo, de forma consciente, em
nossas práticas pedagógicas reconhecendo o quanto é importante para o professor em
formação essa tomada de consciência.
O jogo, ao mesmo tempo tão sério e tão fútil, transita entre a norma, o
institucionalizado, a domesticação necessária ao jogo, logo com postura apolínea, e a
potência do prazer, do desejo, da alegria arrebatadora, portanto, dionisíaca. O jogo
circunscreve-se entre o sagrado e o profano. Para Eliade (1992) “ o sagrado e o profano
constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais assumidas pelo
homem ao longo da sua história” ( p.20), paradoxo onde “o homem toma conhecimento
do sagrado porque este se manifesta , se mostra como algo absolutamente diferente do
100
Este princípio moriniano foi abordado na parte Primeiro tempo deste trabalho.
221
profano” ( Idem, p.17). Remetido à imagem de Dionísio, porque este deus é tido como o
deus do êxtase, do entusiasmo e da festividade, o jogo é um ritual. “ Na realidade, o ritual
pelo qual o homem constrói um espaço sagrado é eficiente à medida que ele reproduz a
obra dos deuses” ( Idem, p.32). Ritual desejado e querido pelos brincantes de nossas
escolas. Espaço de deuses, mitos e sonhos infantis de perfil dionisíaco e muitas vezes mal
interpretado pela visão apolínea dos sujeitos da escola .
“Sob a sua forma elementar, o sagrado representa, pois, acima de tudo, uma energia
perigosa, incompreensível, arduamente manejável, eminentemente eficaz. Para
quem decida recorrer a ela, o problema consiste em captá-la e utilizá-la da melhor
maneira para os seus interesses, sem esquecer de se proteger dos riscos inerentes ao
emprego de uma força tão difícil de dominar”. (CAILLOIS, 1988,p.22).
A este respeito, Eliade (1992) entende que a reatualização deste rito chamado jogo,
tempo mítico-sagrado, “é um eterno presente indefinidamente recuperável”(Idem, p.79),
daí a dificuldade de controlá-lo como atividade recreativa na escola gerando insegurança
entre os professores que o assumem como prática pedagógica.
Por outro lado, Apolo, deus grego encarregado de difundir a luz no universo, figura
mítica do equilíbrio, da harmonia (BRANDÃO, 1991), grande harmonizador dos
contrários, garante o andamento do jogo. Joga-se com seriedade e empenho. Esta faceta do
jogo, face de Apolo, atrai inúmeros professores a relacionar jogo e educação. Como
atividade mediada por regras, na vigilância de Apolo, o jogo passa a ser entendido por
muitos alunos-professores como tarefa, logo passível de controle. Transformar um jogo em
recurso metodológico é um atrativo na relação jogo-educação, como revelado por alguns
alunos: “ Como professora trabalhei com jogos no ensino de alguns conteúdos sobre
matemática ciências ( dominó matemático, jogo da memória sobre animais)”; “Utilizo
para introduzir várias matérias como, por exemplo, o alfabeto. Ele proporciona aumento
no rendimento escolar das crianças pelo fato de envolvê-las mais profundamente nas
atividades”.
No entanto, a reflexão sobre esta prática deve ser discutida com professores em
formação de modo a levá-los a entender que “ O impulso lúdico é resultante de uma ação
recíproca entre os impulsos sensível (vida) e formal ( forma), identificando-se com a
humanidade do homem” (COSTA, 2000, p.121). Olhar o jogo pelo paradigma da
complexidade possibilita compreendê-lo como espaço de manifestação do sagrado e do
222
profano, não se reduzindo um termo ao outro. Há entre estes termos uma relação de
interdependência de forma antagônica, concorrente e complementar.
A escola, como instância que historicamente se encaixa e se delineia por um viver
produtivo, que valoriza o homo faber, pode, também, se tornar espaço-tempo para o homo
ludens , onde Dionísio deitará sua sombra, deixando rastros que não podem ser negados.
Corpos suados, uniformes desalinhados e faces vermelhas vão revelando sua alegre e
profana presença. Como não deixá-lo entrar? Como tentar docilizar corpos tão expressivos
e sedentos por brincadeiras? Educar é sufocar tais manifestações? Educar é uma postura
simplesmente apolínea? Se Dionísio se manifesta, não se educa? Não se ensina? Não se
aprende? Na maioria das vezes, o professor pensa em jogo com uma intencionalidade
pedagógica, devendo ser um tempo-espaço útil para algum aprendizado, normalmente
aprendizados do programa de ensino. Não há brincadeiras, jogos e outras atividades
espontâneas que ocorrem além dos muros escolares e que fazem parte do saber das crianças
que possam ser consideradas educativas? A escola permite pouco espaço para as práticas
corporais que manifestam alegrias e prazeres e, assim, nega acesso aos conhecimentos da
linguagem que o corpo expressa quando está jogando e brincando. Nenhum sistema
educativo, nenhuma pedagogia pode cumprir sua tarefa se deixar o corpo do lado de fora
dos muros escolares, das salas de aula e dos planejamentos de ensino.
Brincar /jogar é uma condição humana, sobretudo entre crianças. São atitudes, na
maioria das vezes, partilhadas, onde o prazer de estar junto, onde o sentimento de pertença
é mais forte que o resultado do jogo em si. Jogar é também criar laços. O que há de mais
precioso no jogo é o movimento que ele gera. Uma pulsão agregativa que vivida pelos
alunos-professores da FFP/UERJ, os fizeram (re)pensar o jogo na escola. Razão e emoção
passam a ser entendidas como parte do processo ensinoaprendizagem e viver o jogo,
apolínea e dionisiacamente, se torna um ato educativo.
Convido a Emília da Pedagogia para, com sua chave, abrir o cofre dos jogos na
escola libertando Apolo e Dionísio, para que os jogos e brincadeiras tornem as escolas
brasileiras mais atrativas, prazerosas e alegres.
223
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMEIDA, M.C. e CARVALHO, E. A.(orgs). Educação e complexidade: os sete saberes e
outros ensaios. São Paulo: Cortez, 2002.
ALMEIDA, PAULO Nunes. Educação lúdica: técnicas e jogos pedagógicos. 18ª edição.
São Paulo: Loyola, 2000.
ARAÙJO, Alberto Filipe. Educação e imaginário: da criança mítica às imagens da infância.
Portugal: Publismai, 2004
ARAÚJO, Alberto Filipe e BAPTISTA, Fernando Paulo (orgs). Variações sobre o
imaginário: domínios, teorizações e práticas hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico,
1978.
224
ASSIS, Mariza de Paula e Silva, Marcos Antonio da C. Faculdade de Formação de
Professores da UERJ: Curso e rumos. In: SOUZA, Donaldo Bello e FERREIRA, Rodolfo
(orgs): Formação de professores na UERJ: memória, realidade atual e desafios futuros.
Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação, NUPE,
2001.
BARROS, Darcymires do Rego. Educação física na escola primária. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1970.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica. Arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
BETTLHEM, Bruno. Uma vida para seu filho. Rio de Janeiro: Campus, 1988
BRANDÃO, J.m Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis:
Vozes,1991
BRASIL, SEF. Parâmetros curriculares nacionais: Educação física. Brasília: MEC/SEF,
1997
_______ CNE Diretrizes curriculares nacionais para o curso de pedagogia, 2006
BROUGÈRE, Gilles. Jogo e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
__________ Brinquedo e cultura. 4 ª edição. São Paulo: Cortez, 2001
BROWIN, G. jogos cooperativos: teoria e prática. São Leopoldo: Sinodal,1995
CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 1990.
_________ O mito e o homem. Lisboa: Col. Perspectiva, 1979.
________ O homem e o sagrado. Lisboa: Col. Perspectiva, 1979.
CATANI, D. B; BUENO,B.O; SOUSA,C.P; Souza,M.C. O amor dos começos: por uma
história das relações com a escola. Caderno de Pesquisa n º 111, Dez, 2000.
_____________ Docência, memória e gênero: estudos sobre a formação. São Paulo:
Escrituras, 1997.
225
CHATEAU, Jean. O jogo e a criança. São Paulo: Summus, 1987.
CHAVES, Iduína Mont’Alverne. Vestida de azul e branco como manda a tradição: cultura
e ritualização na escola. Niterói: Intertexto, 2000.
__________ Pesquisa narrativa: uma forma de provocar imagens da vida de professores. In:
SANCHES TEIXEIRA, M.C. e PORTO.M.R. ( orgs) . Imagens da cultura: um outro olhar.
São Paulo: Plêiade, 1999
_________ Paradigma da complexidade: questões relevantes para a educação. In:
CHAVES. I.M. e CARVALHO. P.H. ( orgs). Formaçõa de professores: a busca do (re)
encantamento pela escola.
CHEVALIER,J. GHEERBRANT,A. Dicionário de símbolos: ( mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números). Rio de Janeiro: José Oympio,2005
CORREIA.M.M. Trabalhando com jogos cooperativos. R.J. Papirus, 2006
COSTA, Vera Lúcia de Menezes. Esportes de aventura e risco na montanha: um mergulho
no imaginário. São Paulo: Manole, 2000.
CUNHA, L.A. e GÒES, M. 11ª ed. O Golpe na educação. Rio de Janeiro: Zahar, 2002
CUNHA, Luiz Antonio. Diretrizes para o estudo histórico do ensino superior no Brasil.
Rio de Janeiro: FGV, 1981.
CURY, C.R.J. 9ª ed. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Rio de Janeiro:
D.P.&A, 2005
DA COSTA, Lamartine p. O Brasil no espelho de Michel Maffesoli. In: Homenagem a
Michel Maffesoli. Rio de Janeiro: Logus, Ano 4 nº 6 , UERJ: Faculdade de Comunicação,
1997.
DIEM, Liselott. Brincadeiras e esportes no jardim da infância. Rio de Janeiro: Ao Livro
Técnico, 1981
DUFLO, Colas. O jogo de Pascal a Schiller. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 1992
226
FERRAÇO, Carlos Eduardo. Eu, caçador de mim. In: GARCIA, R.L. (org). Método:
pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: D.P.&A, 2003
FERREIRA, Nilda Teves. O Jogo: um desafio para este milênio. Prelo , s/d
_________ O Imaginário na configuração da realidade social IN: FERREIRA, Nilda Teves
( org) . Imaginário social e educação. RJ : Gryphus, 1992
__________ Jogos escolares: a responsabilidade do professor de educação física. In:
VOTRE, S.J. e COSTA, V.L.M. (orgs). Cultura, atividade corporal & esportes. Rio de
janeiro: Editora Gama Filho, 1995.
_________ Olhares sobre o corpo e imaginário social. In: VOTRE, Sebastião ( org).
Imaginário, representações sociais em educação física, esportes e lazer. Rio de Janeiro:
Editora gama Filho, 2001
FERREIRA, N.T e COSTA.V.L.M.(orgs).Esporte, jogo e imaginário social. RJ: Shape,
2003
FERREIRA, Rodolfo. Entre o sagrado e o profano: O lugar social do professor. Rio de
Janeiro: Quartet, 2002
_________ O professor invisível: imaginário, trabalho docente e vocação. Rio de Janeiro:
Quartet, 2003.
FONTOURA, Helena Amaral. Entre falas e encontros: tecendo fios sobre a prática médica.
Tese de Doutorado, Escola Nacional de saúde Pública ENSP. Fundação Oswaldo Cruz/
FIOCRUZ, 1997
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987
FREIRE, João Batista. Educação de corpo inteiro. São Paulo: scipione, 1997.
________ O jogo: entre o riso e o choro. Campinas: Autores Associados, 2002
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2003
_______ Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996
GARCIA MÀRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rui de Janeiro: Record, 2003.
227
GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. História da Educação. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2001.
__________ Educação física progressista. 8º ed. São Paulo: Loyola, 1998
GOMES, Cleomar Ferreira. Brinco, logo existo: o papel da ludicidade na educação escolar.
Conferência : Imaginário e representações sociais em educação física, esporte e lazer.
LIRES: rio de Janeiro: UGF, 2003.
_________ Meninos e brincadeiras de Interlagos: um estudo etnográfico da ludicidade.
Tese de Doutoramento. São Paulo: USP/ FEUSP, 2001.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5 ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2004
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos tradicionais infantis. 2 ª ed. Petrópolis: Vozes,
1993
__________ Jogo, brinquedo, brincadeira e educação. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2002
KOSIK K. A dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976
KUHN.T.S. A estrutura das revoluções científicas.São Paulo: Perspectiva, 2005.
LAPLATINE, François. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 2003
LISTELLO, Auguste. Educação pelas atividades físicas, esportivas e de lazer. São Paulo:
EPU, 1979.
LINHARES, Célia.Múltiplos sujeitos da educação: a produção de sujeitos e subjetividade
de professores e estudantes. In: ENDIPE: Ensinar e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa.
Rio de janeiro: DP&A, 2002
________ Política de formação de professores e experiências instituintes. In: Anais II
Seminário de Educação. DEDU/FFP/UERJ, 2004
________ e SILVA, W.C. Formação de professores: travessia crítica de um labirinto legal.
Brasília: Plano editora, 2003
________ e LAEAL, M.C.(orgs). Formação de professores: uma crítica à razão e à política
hegemônica. Rio de Janeiro: DP&A, 2002b
228
LOBATO, M. Memórias da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1954
MIRANDA, Nicanor. 200 jogos infantis. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de
massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
_________ A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
_________ A contemplação do mundo.Porto alegre: Artes e Ofícios, 1995.
_________ Elogio da razão sensível. Petrópolis, Vozes, 1998.
_________ Conhecimento comum: compêndio de sociologia compreensiva. São Paulo:
Brasiliense, 1988.
_________ No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1999
MARCELLINO,N.C.Pedagogia da animação. Campinas: PAPIRUS, 1987
___________ ( org) Lúdico, educação e educação física.Rio Grande do Sul: Unijuí, 2003
MARTINS, A. Algumas reflexões sobre a política de formação de professores e a
profissionalização. In: Anais II Seminário de Educação. DEDU/FFP/UERJ, 2004.
MATURANA, H. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997
_________ Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo horizonte: Ed. UFMG, 2001
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
_________ Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.
_________ Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2002.
_________ Meus Demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
_________ Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990
__________ O Método 1: a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2005.
229
NHARY. T.M.C.Contribuições dos profissionais de educação física na formação de
professores da educação básica. IN: IX Encontro Fluminense de Educação Física Escolar.
Niterói: UFF, 2005. Anais...
NÒVOA, Antònio ( coord). Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1995
_______ (org). Vidas de professores. Lisboa: Porto editores, 1991
NUNES, Clarice. Ensino normal: formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A, 2002
_______ Representações das políticas de formação docente no passado e no presente:
questões para reflexões. In: Anais II Seminário de Educação. DEDU/FFP/UERJ, 2004.
OLIVEIRA.V.M. Consenso e conflito, educação física brasileira. Rio de Janeiro: Shape,
2005
PIERRO, G.A humana docência em formação: cultura e imaginário dos alunos de
Pedagogia da FFP/UERJ. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação UFF/RJ, 2005
RETONDAR, Jéferson José Moebus. A produção imaginária de jogadores compulsivos.
São Paulo: Vetor, 2004.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995
PIAGET, J. A formação do símbolo na criança: jogos , sonhos e imitação. Rio de Janeiro:
Zahar,1994.
POSTIC, Marcel. O imaginário na relação pedagógica. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
SANTOS, Aldezira Madeira. Educando pela recreação. Vitória: Reproarte, 1977
SANTOS, R.P. e ARAÚJO,C.T. Considerações sobre a riqueza simbólica do xadrez. IN:
FERREIRA, N.T e COSTA.V.L.M.(orgs).Esporte, jogo e imaginário social. Rio de Janeiro:
Shape, 2003
SANTOS. Boaventura de Sousa. Pelas mãos de Alice: o social e o político na pósmodernidade. São Paulo: Cortez, 2003.
_______ Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003
230
SANTOS, Marcos Ferreira. Crepusculário.São Paulo: Zouk, 2004.
SARMENTO, Manuel Jacinto. As culturas da infância nas encruzilhadas da 2 ª
modernidade. IN: CERISARA .Crianças e miúdos - perspectivas socio-pedagógicas da
infância e da educação. Portugal: ASA Editores, 2004
SOARES, Carmem. Imagens da educação no corpo. Campinas: Autores Associados, 1994
_______ Educação física: raízes européias e Brasil. Campinas: Autores Associados, 2001
TEIXEIRA, M.C.S. Perspectivas paradigmáticas em educação. 16ª reunião Anual da
ANPED, 1993
_______ e PORTO. M.R.S (orgs). Imaginário, cultura e educação. São Paulo: Plêiade, 1999
UERJ. UERJ em questão Ano 1, nº 0, 2005
UERJ. Projeto político pedagógico: Curso de Pedagogia magistério das séries iniciais. Rio
de Janeiro: FFP/UERJ, 2001
SOLER, R. Jogos cooperativos. Rio de Janeiro: Sprint: 2002
VYGOTSKY, S.L.A formação social da mente. São Paulo: Marins Fontes, 1984.
WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975
__________ A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
231
Download

O que está em jogo no jogo - Universidade Federal Fluminense