CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS: A QUESTÃO DA VIDA HUMANA ENTRE A
TEOLOGIA, A BIOTECNOLOGIA, A BIOÉTICA E O BIODIREITO
CELLULE STAMINALI EMBRIONALI: LA QUESTIONE DELLA VITA UMANA IN UN DIALOGO
TRA TEOLOGIA, BIOTECNOLOGIA, BIOETICA E BIODIRITTO
Lino Rampazzo
RESUMO
Este artigo pretende discutir a questão das células-tronco embrionárias e da dignidade da vida humana, em
uma perspectiva interdisciplinar, analisando as contribuições da teologia no seu diálogo entre a fé e a razão
com tal problemática, da biotecnologia e sua racionalidade técnica, científica e tecnológica, da bioética e sua
racionalidade filosófica e do biodireito e sua racionalidade jurídica. A contribuição da teologia se caracteriza
por uma crítica ao desencantamento do mundo provocado pela modernidade, pela recuperação do sagrado e
pela indicação de valores éticos. A biotecnologia, por sua vez, mostra sua enorme capacidade de interferir e
produzir alterações nos mais diversos domínios da vida, inclusive no das células-tronco embrionárias. A
bioética,em seguida, aponta para a necessidade de se investigar o fenômeno do maquinismo genético sob o
ângulo onto-antropo-axiológico. E, por fim, o biodireito aparece como lugar dos marcos e limites da
proteção da vida humana no âmbito do ordenamento jurídico posto.
PALAVRAS-CHAVES: Células-tronco Embrionárias – Dignidade da vida humana – Teologia –
Biotecnologia – Bioética – Biodireito.
RIASSUNTO
Questo articolo pretende discutire la questione delle cellule staminali embrionali e della dignità della vita
umana, in uma prospettiva interdisciplinare, analizzando i contributi della teologia nel suo dialogo tra fede e
ragione con tale problematica, della biotecnologia con la sua razionalità tecnica, scientifica e tecnologica,
della bioetica con la sua razionalità filosofica e del biodirito con la sua razionalità giuridica. Il contributo della
teologia è caratterizzato da una critica al disincanto del mondo causato dalla modernità, dal ricupero del
sacro e dall’indicazione di valori etici. La biotecnologia, a sua volta, mostra la sua enorme capacità di
interferire e produrre alterazioni nelle piu diverse sfere della vita, compresa quella delle stellule staminali
embrionali. La bioetica, poi, mostra la necessità di investigare il fenomeno del macchinismo genetico dal
punto di vista onto-antropo-assiologico. E, infine, il biodiritto entra come spazio delle frontiere e dei limiti
della protezione della vita umana nell’ambito dell’ordinamento giuridico stabilito.
PAROLE CHIAVE: Cellule staminali embrionali – Dignità della vita umana- Teologia – Biotecnologia Bioetica – Biodiritto.
Introdução
Voltar à questão das células-tronco embrionárias, a esta altura, pode parecer algo fácil. Afinal, já foi decidida
a matéria, no país, pelo Supremo Tribunal Federal. Então, restaria agora somente transitar pelos argumentos
expostos no conteúdo decisório.
Entretanto, se isso não é tão simples quanto parece, o fato é que não se pretende apenas caminhar pelos
rumos dados pela decisão, com todas as suas luzes.
A perspectiva projetada com estas linhas é discutir, com especial atenção para o voto do então Ministro
Carlos Alberto Menezes de Direito, as principais questões nele suscitadas, e ainda não dissolvidas, por
completo, sobre esse intrincado e complexo tema. Um tema que envolve a teologia, a biotecnologia, a
bioética e o biodireito.
Como se pode notar, desde logo, é a questão da vida humana que se tem sob foco. Vida essa que comporta
um olhar interdisciplinar. Não se trata, como talvez se possa imaginar, de uma abordagem dispersiva, não
obstante a sua abrangência. Cuida-se de uma abrangência concentrada, porque toda ela está voltada para a
temática da dignidade da vida humana. E ela se explica na medida em que, entre os múltiplos olhares, há não
só divergências, mas também convergências que a questão das células-tronco embrionárias, inevitavelmente,
continua trazendo à tona nos tempos atuais. Buscar-lhes uma compreensão menos fragmentária é o objetivo
fundamental deste artigo, sem embargo das dificuldades desse tipo de olhar interdisciplinar.
O enfoque religioso que entrou, para alguns indevidamente, nessa questão estimula a reflexão sobre a
especificidade da teologia e seu possível diálogo com as problemáticas atuais, inclusive no que se refere às
células-tronco embrionárias.
Em seguida, o tema sob análise remeterá a um defrontar-se com a biotecnologia e sua racionalidade técnica,
científica, e tecnológica, considerando-se sua enorme capacidade de interferir e produzir alterações na
natureza e, por conseguinte, nos mais diversos domínios da vida, entre elas, especificamente, o das célulastronco embrionárias.
O próximo passo conduzirá a questão para a seara da bioética e sua racionalidade filosófica, sinalizando-se
para a necessidade de se investigar o fenômeno do maquinismo genético sob o ângulo onto-antropoaxiológico, substrato e pressuposto da própria bioética.
Por último, encaminhar-se-á a discussão para as sendas jurídicas, de modo que se amplie a análise do tema
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sob o ângulo do biodireito e sua racionalidade jurídica, à medida que nele são inevitáveis os debates em torno
dos marcos e limites da proteção da vida humana no âmbito do ordenamento jurídico posto.
1.
A teologia na interdisciplinaridade da bioética
Diálogo, interdisciplinaridade, integração: estes termos, nos dias de hoje, são usados, com muita frequência,
para indicar o método com o qual se quer caracterizar a abordagem do "saber".
Galileu, no século XVII, teve o mérito de tornar-se o pai da ciência moderna, determinando o objeto
específico da investigação e o método com o qual se atingia este tipo de conhecimento. Mas a ciência
moderna, com seu método, reduzia o campo da análise do saber, limitando-se aos dados próximos,
imediatos, perceptíveis pelos sentidos ou por instrumentos: quer dizer, os dados da ordem material e física.
Além disso, esta "ciência" fazia nascer muitas "ciências", com campos de especialização sempre mais
delimitados e uma conseqüente fragmentação do conhecimento. Hoje, é muito difícil contar o número de
especializações criadas pela ciência moderna.
Se tudo isso, sem dúvida, foi uma riqueza para a humanidade e produziu o avanço científico e tecnológico,
por outro lado, criou um cientista preso no seu campo de conhecimento, possuidor de um saber parcial,
desarticulado e incompleto. Além disso, não raramente os produtos da tecnologia manifestaram atitudes de
"destruição", seja do homem, como do meio ambiente. O mesmo nascimento da bioética teve como ponto de
partida a consciência de que o progresso científico-tecnológico indiscriminado punha em perigo a existência,
ao mesmo tempo, da humanidade e do planeta. Como não pensar, a esse respeito, às emissões globais de
gases do efeito estufa (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2007)?
O que tudo isso tem a ver com a teologia?
Uma das características fundamentais da modernidade foi o desencantamento do mundo, que permitiu a
intervenção e manipulação da natureza. Esta, esvaziada de sua dimensão sacral, foi fragmentada e reduzida a
recursos naturais a serviço da exploração humana. Essa visão alavancou o progresso técnico-científico e a
industrialização moderna trazendo para a humanidade, ao mesmo tempo, benefícios, catástrofes e danos.
Hoje, o processo de desencantamento e fragmentação atinge o próprio ser humano. As possíveis aplicações
no campo da genética são promissoras para a cura de inúmeras doenças e trarão grandes benefícios para a
humanidade. Mas no rasto destas terapias virão, certamente, manipulações genéticas não mais terapêuticas,
mas baseadas em desejos narcisísticos ou em pretensõe eugênicas. E não serão leis jurídicas que poderão
impedir estes desvios porque irão responder a demandas subjetivas criadas pela mentalidade cultural e
transformadas em direitos com respaldo jurídico.
Foi o processo moderno de secularização que esvaziou o significado do sagrado (JUNGES, 2008, p. 64-66).
Diante disso, a natureza não foi mais considerada como algo de sagrado a ser respeitado. Isso reduziu a
natureza a pura quantidade, sujeita a interesses mercadológicos; e, consequentemente, levou ao desastre
ecológico.
Pergunta-se, agora, que tipo de desastre antropológico poderá ocasionar uma ciência, inclusive a
nanobiotecnologia, que não dialoga com o sagrado. A ciência genética é, pois, muito importante para ser
deixada somente aos cientistas (PESSINI, 2008).
A "reconstrução" do mundo passa, então, obrigatoriamente, por uma nova concepção do homem que aceita
apenas uma civilização a serviço do homem e nunca contra ele.
Estas reflexões questionam o objeto e o objetivo do saber.
A "ciência", que reduziu o seu campo de exploração aos fenômenos do mundo material, sensível, precisa
redescobrir o significado originário do mesmo "termo" que a define. "Ciência", significa, antes de tudo,
"conhecimento", "saber". E este "saber" tem como objeto o ser, tudo o que existe: não pode, pois, reduzir ou
fragmentar o seu campo de conhecimento, esquecendo toda a riqueza da "realidade".
Verdade é "aquilo que é", "aquilo que existe". E o homem, que procura a verdade, simplesmente analisa a
"realidade", "aquilo que existe".
Aceitando esta perspectiva, em que o objeto do saber é simplesmente o ser, "tudo aquilo que existe", o
cientista de hoje precisa dialogar com as outras áreas do saber, sempre mais convencido de que ninguém tem
o monopólio da verdade. Assim, as "ciências" começam a dialogar entre elas: nasce a "interdisciplinaridade".
E, num diálogo mais amplo que procura voltar à "unidade do saber", conseqüência da "unidade do ser", há a
preocupação de receber contribuições de todo tipo de análise da realidade: seja por parte do saber popular,
como também daquele filosófico, teológico, estético, mítico, etc.
Mas qual pode ser, a esse respeito, a contribuição específica da teologia?
Na tradição cristã da cultura ocidental a expressão de Santo Anselmo (1033-1109) fides quaerens
intelectum, quer dizer, "a fé que procura a razão", aponta para o método da teologia: esta, a partir dos dados
da fé, seu objeto específico, procura um diálogo com a razão. Por exemplo, precisa definir seus conceitos
através dos quais apresenta os dados da fé; refere-se a determinadas fontes; emprega um método de exata
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comunicabilidade (ALSZEGHY; FLICK, 1979). Em outros termos, a teologia é a fé que assume o discurso
da razão para melhor compreender o seu objeto: faz parte do "DNA" da fé dialogar com a razão. A teologia
representa, pois, um eforço constante de uma determinada comunidade de fé visando permanecer em contato
com o mundo e seus problemas, suas dúvidas e projeto: confronta a fé com os problemas novos que a
humanidade enfrenta (LATOURELLE, 1981, p. 17-18). Diferencia-se, pois, tanto do racionalismo, como do
fideísmo. O primeiro aceita como verdadeiro apenas o que pode ser demonstrado racionalmente; e o segundo
se caracteriza por uma adesão religiosa não fundamentada racionalmente.
Através do diálogo, ambas, a fé e a razão, podem se enriquecer reciprocamente.
Este raciocínio, a primeira vista, pode aparecer totalmente fora das específicas questões bioéticas,
particularmente da que diz respeito às células-tronco embrionárias. Mas um simples olhar para a história da
filosofia ocidental mostra que o contato do cristianismo com a filosofia trouxe para esta novos olhares, tais
como a dignidade da pessoa humana, a igualdade entre os homens, a liberdade, a fraternidade etc.
Ficando apenas com o primeiro exemplo, o conceito de pessoa aplicado a todo ser humano, totalmente
estranho à filosofia grega, foi desenvolvido a partir do cristianismo: no começo para definir questões
trinitárias e cristológicas, quer dizer, apenas teológicas. Depois, a partir de Agostinho, percebeu-se que tal
conceito podia ser aplicado ao homem: e o conceito de pessoa se estende, pois, da teologia para a
antropologia. No fundo, o olhar da fé estimula a razão para se entender melhor.
Quando se olha para a Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral da República a
respeito da utilização de células-tronco embronárias, percebemos que o argumento aduzido foi o da
necessidade de respeitar o princípio da "dignidade da pessoa humana", como fundamento do Estado
Democrático de Direito (Art 1 da Constituição).
Mas este princípio, como se afirmou, nasceu historicamente, de um "diálogo" entre teologia e filosofia; e
acabou sendo acolhido na área jurídica (RAMPAZZO, 2009a).
A convicção de que o diálogo entre ciência e fé pode favorecer um enriquecimento recíproco, é apresentada,
de maneira interessante, no N. 19 do documento Ex corde ecclesiae, que fala, por um lado, do contributo
da teologia às ciências e, por outro, do enriquecimento que a Teologia recebe das outras disciplinas.
A Constituição Apostólica Ex corde Ecclesiae, aprovada pelo Papa João Paulo II, constitui como que a
"magna charta" das Universidades Católicas, para cuja redação contribuíram todas as universidades católicas
do mundo, por meio de uma consulta que começou em 1986 (JOÃO PAULO II, 2000).
Como todos os documentos oficiais da Igreja, este também tem por título as primeiras palavras do texto
latino: Ex corde ecclesiae, quer dizer, (nascida) do coração da Igreja.
Veja-se, pois, o texto que nos interessa.
A Teologia desempenha um papel particularmente importante na investigação de uma síntese do saber, bem
como no diálogo entre fé e razão. Além disso, ela dá um contributo a todas as outras disciplinas na sua
investigação de significado, ajudando-nos a examinar o modo como suas descobertas influirão sobre as
pessoas e sobre a sociedade, mas também fornecendo uma perspectiva e uma orientação não contidas em
suas metodologias. Por sua vez, a interação com as outras disciplinas e suas descobertas enriquece a
Teologia, oferecendo-lhe uma melhor compreensão do mundo de hoje e tornando a investigação teológica
mais adaptada às exigências de hoje. (JOÃO PAULO II, 2000, p. 18-19).
O texto fala de "uma perspectiva e uma orientação não contidas em suas metodologias". Podemos
exemplificar. Nenhum microscópio de alta capacidade nos leva a descobrir a dignidade da pessoa humana, ou
o valor da família. O conhecimento científico é, pois, limitado. Não explica os mistérios da dor, da morte, do
mal; não oferece sentido completo à vida humana. No fundo, o conhecimento teológico ajuda o
conhecimento racional a perceber mais seus limites.
Por outro lado, a teologia se enriquece através do diálogo com a razão: é ajudada a compreender "o mundo
de hoje", a sistematizar seus dados, a apresentá-los com conceitos adequados.
Para compreender o mundo de hoje torna-se necessário o diálogo com a Bioética. Esta é assim definida na
Encyclopedia of Bioethics:
Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (ética). Pode-se defini-la como
sendo o estudo sistemático das dimesnões morais - incluindo visão, decisão, conduta e normas morais - das
ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar.
(Apud PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2007, p. 40).
Falava-se, antes, da modernidade que esvaziou o mundo de sua dimensão sacral. E isso teve, como
consequência, o desrespeito da natureza e, particularmente, do ser humano. Isso leva à importante ligação
entre religião e ética.
A visão religiosa do mundo, na qual Deus se insere, nasce do fato que o ser humano procura a solução do
próprio mistério; experimenta uma sensação de plenitude através da vivência do sagrado; e nasce também de
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uma relação com o mundo humano e material, na procura de uma harmonia interna que obedece a uma
tendência natural para a totalidade.
O homem é um ser bio-psico-sócio-espiritual. Essas quatro dimensões básicas constituem sua estrutura
experimental (aspecto geobiológico), experiencial (aspecto psicoemocional), existencial (aspecto
socioambiental) e transcendental (aspecto sacro-transcendental).
Não se pode pensar a pessoa humana excluindo qualquer dessas dimensões.
Uma das origens etimológicas do termo "religião" é o verbo latino relegere (re-ler). O termo aponta para a
atitude de re-ler a realidade, vivenciando o diálogo com o diferente, a solidariedade como expressão máxima
do humanismo, a ecologia como vivência harmônica entre o homem e a natureza ou ambiente. Dentro dessa
visão, entramos necessariamente no conceito de ética como expressão profunda do respeito pelo Outro,
entendido como Tudo que nos cerca e dentro do qual somos, nos movemos e existimos.
Religião, nesse contexto, não inclui o conceito de Deus num primeiro momento e se torna a expressão da
vivência do outro pela comunhão e reverência com o outro, seja ele o homem, a mulher, as plantas, os
animais e, por meio dessa re-leitura, tudo se torna sagrado. Estabelece-se, assim, a religião, como o lugar do
diálogo, da solidariedade, da ecologia.
Descobrir o sagrado das coisas é descobrir o caminho da solidariedade entre os homens. Sagrado e ética
tornam-se a dupla que dá sentido à experiência humana. Não é possível pensar uma moral social comunitária
sem pensar o sagrado. O sagrado é o constitutivo da moral (RIBEIRO, 2004).
A partir dessa perspectiva nascem alguns princípios éticos: o princípio do cuidado, da solidariedade, da coresponsabilidade e da alteridade.
O princípio do cuidado parte de uma relação amorosa para com a realidade, supondo envolvimento, desvelo
e atenção especialmente para com os seres vivos.
O princípio da solidariedade se baseia na interdependência de todos os seres, enredados numa teia de
relações de cooperação e solidariedade que garantem sua existência e sustentabilidade. Apela-se para a
essência da ética judaico-cristã, que proclama a co-responsabilidade da família humana e de toda a natureza
porque todos têm um mesmo e único Pai, numa crítica à cultura ocidental, marcada pelo individualismo e
pelo liberalismo capitalista, que deu prioridade absoluta à instituição da propriedade privada.
O princípio ético da co-responsabilidade tem sua origem na descoberta de sermos sujeitos de nossos atos,
que trazem conseqüências deles para os outros e a natureza.
O princípio de alteridade, por fim, refere-se ao respeito a todos os seres em sua alteridade, renunciando a
possuí-los, ou dominá-los. O reconhecimento do critério da alteridade é conseqüência do princípio da
dignidade da pessoa humana. Não a pessoa fechada simplesmente em si mesma, mas a pessoa enquanto
abertura, relação, face a face com a outra e com os outros (semelhantes e também com os outros seres da
natureza). A alteridade pode ser considerada como um critério englobante a partir do qual se pode tematizar
toda uma série de dimensões: alteridade e ecologia (meio ambiente, flora, animais); alteridade e pessoas
(incluindo o ser humano antes do nascimento); e até alteridade diante do Transcendente, diante do Outro (a
dimensão religiosa). (RAMPAZZO, 2007).
Estes princípios estão na base do princípio de segurança (ELIZARI, 1996), ou de precaução (art. 225, § 1o,
V, da Constituição Federal; Lei 9.605/1998, art. 54, § 3o). Este último, da mesma forma que é aplicado ao
Direito Ambiental, é devidamente aplicado também na questão das células-tronco embrionárias: diante da
incerteza acerca da presença de uma pessoa humana, devido às várias teorias sobre a origem da vida
especificamente humana, ou da possibilidade de provocar prejuízos ao meio ambiente, opta-se pela nãointervenção e pela procura de caminhos alternativos, até que seja esclarecido o alcance real de uma
determinada intervenção (COLOMBO, 2004).
Diante dessas colocações, pode-se perceber que não foi por outra razão que a questão das células-tronco
embrionárias acabou também discutida, desde o início, em seu aspecto religioso pela Suprema Corte
brasileira. Mais especificamente, o então Ministro Carlos Alberto Menezes de Direito não deixou de
reconhecer que, no Estado Democrático de Direito, garantidor da liberdade religiosa, cada indivíduo pode
professar e manifestar sua fé, pois ela pertence à sua intimidade. Obviamente, no caso das células-tronco
embrionárias, muitos expressaram a fé de que Deus é o único que dispõe do dom da vida, em especial da
humana, e a ninguém mais é dado qualquer poder sobre ela.
A maioria dos dados que se referem às colocações do citado Ministro foram coletados quando da
apresentação do seu voto, transmitido ao vivo, através do site do S.T.F. (DIRETO, 2008).
Contudo, a questão sob análise não ficaria circunscrita apenas ao aspecto religioso. Avançaria para o
teológico. A racionalidade teológica em relação ao tema logo entraria no cerne da discussão. Nesse caso, o
ponto central do debate é aquele que não deixa de reconhecer que a questão do início da vida é dilemática.
Definir esse marco inicial é um problema com um "duro peso moral, intelectual e emotivo." (ECO;
MARTINI, 2000, p. 34). A essa reflexão de caráter questionador foi apresentada uma alternativa de
resposta, desfocalizando-se o problema do quando começa a vida para o que é a própria vida.
Definir o que é, e onde tem início a vida é questão em que está em jogo a nossa vida' [...]. O 'onde' pode
continuar misterioso, mas está submetido ao valor do 'o que é'. Quando alguma coisa tem valor supremo,
merece supremo respeito. É daí que precisamos partir para qualquer casuística dos casos limite, que será
sempre árdua de enfrentar [...]. (ECO; MARTINI, 2000, p. 40).
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Esse diálogo entre o agnóstico Umberto Eco e o teólogo Carlo Maria Martini foi retomado pelo então
Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Alberto Menezes de Direito, para quem a questão-chave é
saber o que é a vida e o valor que ela expressa, embora não se ignore a celeuma sobre quando ela tem seu
início (DIRETO, 2008).
Trata-se esse enfoque de uma percepção da racionalidade teológica de que a vida é um valor supremo e,
como tal, não comporta reduções simplistas sobre o que ela é, na medida em que isso remete à própria noção
fundamental de dignidade que nela se contém.
De qualquer modo, porém, não ficaria de lado também a abordagem teológica acerca do início da vida, o que
implicou a retomada da delicada questão da animação embrionária.
Já no século III d. C., asseverava-se que a alma agrega-se ao corpo no primeiro momento da respiração do
nascente, tal como ela se separa dele no último respiro (FIORENTE TERTULIANO, 1935, p. 11-13). Dizse que Quinto Septímio Fiorente Tertuliano foi, naquela época, o mais encarniçado defensor da idéia de
"coexistência imediata do corpo e da alma." (HONINGS, 1973, p. 24).
Mais tarde, no século V d. C., entretanto, Aurélio Agostinho - Santo Agostinho - preferiu não se pronunciar
sobre o momento preciso da animação embrionária, porque considerava o "problema muito espinhoso."
(HONINGS, 1973, p. 24). O Bispo de Hipona, pessoalmente, porém, estava convencido de que a animação
se dava antes do nascimento (AGOSTINHO, 1936, p. 21-23).
Com o avançar do tempo, a questão da animação embrionária voltou ao debate teológico. No século XIII, a
idéia que se firmava era a de haver necessidade de uma "prévia organização do corpo antes que ele possa
receber a alma intelectiva" (AQUINO, 1937, p. 11).
Como se pode perceber, não só na apologética cristã tertuliana, mas na patrística agostiniana e na
escolástica tomasiana houve reflexões detidas sobre a questão do momento da animação do embrião. Podese dizer que duas teses principais marcaram essa questão, as quais comportam a seguinte síntese: uma
defendia a imediata animação embrionária, enquanto a outra sustentava a animação retardada (HONINGS,
1973, p. 21-27).
Esse debate teológico, notadamente entre os autores citados, não deixou de chamar a atenção do então
Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Alberto Menezes de Direito, que o considerou profundo para
a época, ainda que não tivesse alcançado uma certeza quanto ao momento preciso da animação embrionária
(DIRETO, 2008).
2.
A biotecnologia: a vida humana e a racionalidade técnica, cientifica e tecnológica
Em todos os tempos, o homem sempre buscou desenvolver técnica, ciência e tecnologia. É de sua própria
racionalidade a busca de todo esse conhecimento.
Não obstante próximos uns dos outros, esses conceitos guardam suas especialidades. O termo conhecimento
servirá de eixo para se estabelecer, não em definitivo, conceitos possíveis para técnica, ciência e tecnologia.
Técnica ou arte é um conhecimento com procedimentos específicos, empiricamente desenvolvidos para a
produção ou fabricação de algo. Ciência é um conhecimento capaz de organizar, teoricamente, um saber
sistemático e metódico sobre um determinado objeto sob investigação. Tecnologia é um conhecimento
teórico aplicável a determinadas realidades, com enorme capacidade de nelas interferir e até modificá-las.
Não é de hoje que se diz que o "próprio saber é poder", célebre frase cunhada no século XVII (BACON,
2002, p. 11). Do mesmo modo, firmou-se uma idéia de que todo esse saber deve tornar o homem "mestre e
senhor da natureza." (DESCARTES, 2002, p. 17).
Vive-se uma era de notáveis conquistas trazidas pela técnica, ciência e tecnologia. A conjugação de todo
esse saber-poder-fazer e de seus resultados, no mundo contemporâneo, não deixa dúvidas do seu grande
impacto nas relações homem-natureza.
Em nosso tempo, os instrumentos técnico-tecnológicos vão além da correção da nossa percepção, pois
corrigem falhas de nosso pensamento, uma vez que são inteligências artificiais... mais acuradas do que nossa
inteligência individual. Evidentemente, são conhecimentos científicos que permitem a construção desses
instrumentos, mas dando-lhes capacidades que cada um de nós, enquanto indivíduos, não possui. Ora, os
objetos técnico-tecnológicos ampliam a idéia da ciência como invenção e construção dos próprios
fenômenos. (CHAUÍ, 2000, p. 284).
Após a chamada Revolução Científica, no século XVII, então, assistiu-se ao progressivo aumento da
confiança do homem na possibilidade de "conhecer os segredos da natureza." (ARRUDA ARANHA; PIRES
MARTINS, 1986, p. 157).
A modernidade Renascentista trouxe um novo modelo científico voltado, cada vez mais, para os mais
diversos universos particularizados, como foi considerado acima.
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Não demorou muito para que chegasse a vez das ciências biológicas, com notáveis desenvolvimentos já no
século XIX. O passo para as biotecnologias estava dado. Entre elas, ganharia grande destaque a chamada
embriologia, posto que essa nanobiotecnologia envolve uma impressionante engenharia genética nos
domínios da natureza humana. E a ela está relacionada, particularmente, a questão das células-tronco
embrionárias.
As engenhosas manipulações possíveis nesse universo nanogenético, porém, não deixariam de provocar
discussões. A crítica que se coloca é se essa biotecnologia detém uma autoridade especial para ser uma
espécie de última palavra sobre a vida, notadamente, a humana. Ela deve confrontar-se com certos tipos de
limites, porque não se constitui um universo de todas as certezas. Não reconhecer que ela comporta também
incertezas é incorrer em uma espécie de mito tecnocientificista.
O tema das células-tronco embrionárias ainda tem muitas questões a serem mais e melhor investigadas. Por
um lado, se é verdade científica que essas células possuem enorme capacidade totipotente, ainda parece não
haver comprovação segura de que seus resultados terapêuticos são infalíveis e não oferecem quaisquer riscos
à saúde. Por outro, se é também verdade científica que as células-tronco adultas não possuem tanto aquela
capacidade totipotente, sugere-se que elas, de algum modo, poderiam gerar tecidos especializados de acordo
com aqueles que as forneceram, bem como que elas nem seriam prejudiciais à saúde.
De qualquer maneira, o que parece fundamental é notar que ainda não é possível desqualificar uma ou outra
linha de pesquisa. Contudo, há um problema que afeta, diretamente, as células-tronco embrionárias. Trata-se
do método de retirada delas. Ele produz a destruição completa dos embriões. Entretanto, a mesma
biotecnologia tem anunciando a viabilidade de um método, já em desenvolvimento, capaz de retirar célulastronco de embriões sem lhes causar aniquilação. Pesquisas indicam a possibilidade de serem retiradas duas
células de um embrião de oito, sem destruí-lo. Trata-se do mesmo procedimento para diagnóstico de
implante de embriões para nidação.
Pelo menos duas indagações parecem inevitáveis: a primeira, se já há uma resposta definitiva sobre todo o
potencial biotecnológico das células-tronco embrionárias; e, a segunda, se houver essa definição, qual é o
método mais adequado para se obtê-las com o menor prejuízo para o próprio embrião.
O fato é que tais questionamentos, porém, ainda se mostram abertos e indefinidos, até mesmo para a própria
racionalidade biotecnológica. Quanto ao primeiro questionamento, tem se observado o seguinte:
Como as células-tronco embrionárias podem, em condições controladas, dar origem a tipos celulares
distintos de todos os órgãos do corpo, é possível que elas se tornem uma boa fonte para a repovoação de
tecidos afetados ou degenerados. Entretanto, as condições para originar de forma controlada estes diferentes
tipos celulares ainda são desconhecidas. É preciso, no entanto, estimular pesquisas com estas células, para
que, no futuro, possamos deter a tecnologia necessária para desenvolver novas terapias que serão
importantes para o nosso desenvolvimento. (ABREU JÚNIOR, 2007, p. 17).
Com relação ao segundo, não se tem deixado de notar o quanto segue:
O grande problema envolvido nestes estudos é que embora se possam produzir todos os tipos celulares a
partir de células-tronco embrionárias e mesmo reprogramar células somáticas, os mecanismos que governam
este processo são bastante desconhecidos. Portanto, sem pesquisas com células-tronco embrionárias não
avançaremos e não entenderemos o mecanismo que ocorre atualmente. Conhecer bem estes mecanismos é
fundamental [...]. E as pesquisas estão sendo desenvolvidas com o objetivo final de preservar a vida ou
melhorar a qualidade dela. (ABREU JUNIOR, 2007, p. 18).
Esses debates na embriologia contemporânea, ciosa de suas responsabilidades, em torno das células-tronco
embrionárias, se explicam pelo fato de que ela, ao que tudo indica, também não deixa de ponderar que
embrião é vida e vida com viabilidade humana. Além disso, essa mesma embriologia não rejeitou, de uma vez
por todas, que o desenvolvimento dessa vida humana inicia-se mesmo na fecundação, não obstante considere
que esse não seja o ponto crucial da questão, mas sim o da viabilidade da vida.
Sob o meu ponto de vista, a vida começa quando o espermatozóide fecunda o óvulo. A união dos gametas é
potencialmente capaz de originar um novo individuo [...]. Portanto, não se deve perguntar quando a vida
começa e sim quando ela se torna viável. (ABREU JÚNIOR, 2007, p. 17).
Ovo ou zigoto, embrião, feto, nascente e assim por diante são etapas vitais de um desenvolvimento
originário, qual seja, o da vida humana já formada em algum momento de agregação genética dos gametas
masculino e feminino.
Todas essas discussões não passaram despercebidas na análise do então Ministro da Corte Suprema, Carlos
Alberto Menezes de Direito, que considerou impossível conduzir a questão das células-tronco embrionárias
com "tantas certezas", movidas apenas por uma "paixão cientificista", até porque a racionalidade
biotecnológica não goza de uma autoridade especial para emitir um juízo, decisivo e definitivo, sobre um
assunto que ainda reclama muitas pesquisas pelo próprio universo do conhecimento técnico, cientifico e
tecnológico (DIRETO, 2008).
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
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3.
A Bioética: a vida humana e a racionalidade filosófica onto-antropo-axiológica
Não deixa de ser curioso, de certo modo, que a vida humana possa ser discutida, inicialmente, em bases
ontológicas. E essa é uma visão já bastante antiga, que remonta aos primórdios da racionalidade filosófica.
Desde a "escola" jônica, no século VII a. C., Heráclito lançava a idéia fundamental de mobilidade do ser, em
contínuo vir-a-ser, sem que isso implicasse uma espécie de metamorfose desnaturadora do próprio ser
(MONDIN, 1981, p. 26-28).
Tempos mais tarde, da chamada "escola" socrática menor (megárica), Eubulides discutiria a unidade e a
multiplicidade com o argumento do sorites: um grão ou vários são apenas realidades quantitativas do mesmo
grão (ABBAGNANO, 1999, p. 85).
O pensamento aristotélico desenvolveu a teoria da potência e do ato. O ato é, ontologicamente, anterior à
potência. O ato é toda realidade que tem como característica ser determinado. Há uma dinâmica entre
potência e ato. Essa dinâmica é fonte de movimento e atualização de uma potência em ato. O ser existente,
como tal, é dotado de potencialidade que o torna capaz de movimentar-se e atualizar-se, por força interna,
ou seja, por si mesmo, independente de força externa (ARISTOTLE, 1990, p. 21-25).
A partir desses pressupostos ontológicos, tornar-se-ia possível desenvolver a concepção antropológica do
embrião.
Ele é um ente que combina, ontologicamente, o ato à potência, que também lhe é própria, constituindo-se
um ser em sua essência, cuja atualização depende, substancialmente, de sua dinâmica interna. Desse modo,
suas mudanças fenomênicas - ovo ou zigoto, embrião, feto e assim por diante - não são metamorfoses
ontológicas. Essas são mudanças que não alteram a atualização do ser que é o embrião.
Desses fundamentos onto-antropológicos é possível, então, transpor a questão das células-tronco
embrionárias para o aspecto axiológico. Nesse sentido, algumas ideias serão colocadas sob o crivo da ação
virtuosa valorada. Assim, nessa dilemática questão do uso das células-tronco embrionárias, alguns pontos
precisam ser bem analisados.
Primeiro, não se pode tomar como única referência a idéia cartesiana de que a existência está,
exclusivamente, condicionada ao pensamento (DESCARTES, 1999, p. 49-52). Há ponderáveis argumentos
axiológicos que os seres humanos são também organismos vivos complexos, com miríades de componentes
que possuem respeitabilidade por si mesmos.
Segundo, não há como se admitir, cegamente, um cientificismo iluminista como última palavra sobre
questões complexas, uma espécie de deslumbramento cientificista apaixonado (HUME, 1999, p. 47-64). Ele
não é, inabalavelmente, apropriado para todas as questões dessa natureza, as quais reclamam um pouco de
paciência e muita prudência.
Terceiro, não se trata apenas de buscar certos limites éticos para a ciência, mas de perceber, também, que o
conhecimento científico não pode se tornar refém do poder, até mesmo de um biopoder que se julga capaz
de decidir, unilateralmente, sobre a vida e a morte (MORIN, 2000, p. 125-134).
Quarto, nem mesmo o máximo de objetivismo científico pode obscurecer, completamente, a consciência que
qualquer ser humano tem ou poder ter de si e do mundo (HUSSERL, 1950, p. 21-25).
Quinto, mesmo que todos os problemas científicos fossem resolvidos, a questão do sentido da vida não seria
deixada de lado pelo ser humano, porquanto ela está colocada na própria alma racional ou intelectiva humana
(WITTGENSTEIN, 1999, p. 27-29).
Sexto, a própria idéia de objetividade científica pressupõe um "ethos" (etos), o que significa que valores
éticos não podem ser afastados, por completo, do universo científico (APEL, 2000, p. 43-47).
Sétimo, os seres humanos não podem ser instrumentalizados. Significa que nenhum ser humano pode ser
tratado apenas como meio de qualquer ação. Ele deve ser entendido, notadamente, como fim de toda ação
(KANT, 2002, p. 38).
Oitavo, não se trata, porém, de não se conceber essa instrumentalização somente porque o ser humano é um
ser dotado de consciência e liberdade. O fato é que a vida humana é caracterizada por uma dignidade natural.
A autoconsciência de ser racional e livre não é e nem pode ser vista como o único atributo que confere a
todo ser humano aquela dignidade. Ele a possui por natureza, ainda que sua racionalidade e liberdade, em
dado momento, estejam diminuídas ou afastadas.
Nono, a possibilidade científica de intervenção na natureza humana não significa que ela deva ser efetivada,
porque não se pode esquecer que sempre há uma autonomia a ser respeitada (HABERMAS, 2002, p. 5153).
E, décimo, é preciso livrar-se do apego ao momentâneo e lembrar-se que passado - presente - futuro formam
um todo, de modo que um organismo vivo tem já, em si, uma "história embrionária"; logo, só é possível
olhar para o futuro a partir de um passado presente preservado (CASSIRER, 1972, p. 35-39).
Com todos esses pressupostos delineados, então, é possível passar para a questão ética. De pronto se
reconhece a necessidade de se levar juízos de valores éticos para o campo da embriologia. Nesse sentido, há
uma fácil acomodação aos preceitos da ética utilitarista, enquanto uma linha que favorece uma visão bastante
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
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mobilizadora nos tempos atuais: a utilização das células-tronco embrionárias proporcionará maior felicidade
para o maior número de pessoas.
O princípio da utilidade reconhece esta sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo
consiste em construir o edifício da felicidade [...]. Por princípio de utilidade entende-se aquele princípio que
aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou diminuir a felicidade da
pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a
promover ou a comprometer a referida felicidade. (BENTHAM, 1979, p. 3-4).
Contudo, a questão da utilização das células-tronco embrionárias não comporta um juízo de valor tão
calculista assim, por mais que ele seja, hodiernamente, muito sedutor. O utilitarismo é uma ética pragmática,
da ação e do resultado eficiente. Ele não mede, não pondera nada mais do que resultados mais favoráveis
para o maior número. Uma simples maximização calculada. Entretanto, tais resultados, ainda que favoráveis
para muitos, nem sempre são suficientes para justificar quaisquer ações. Sacrificar vidas para salvar outras
vidas não parece ser uma boa prudência ética. Vale dizer, salvar vidas negando outras não é um suficiente
ético, sobretudo, quando se trata de promessas de salvamento, e não de garantia segura dele.
Essas reflexões não ficaram longe das postulações do então Ministro do Supremo Tribunal Federal, o qual
reconheceu que a vida embrionária, ontológica e teleologicamente, é vida em potencialidade plena e, por
isso, não pode lhe ser sequer atribuída uma espécie de dignidade intermediária a justificar uma proteção
diminuída a ela.
É com esses conceitos da racionalidade filosófica-antropo-axiológica, com toda a sua carga ética, que se
discute a questão da vida humana nas células-tronco embrionárias, a ponto de se tornar um tema nuclear da
própria bioética, vocábulo que aparece, pela primeira vez, no artigo "The sciense of survival" (1971) e, no
ano seguinte, no livro com o título "Bioethics: bridge to the future" (1972), ambos de Van Rensselear
Potter.
O que se percebe é que a bioética ganharia seu espaço nesse tempo técnico, científico e tecnológico,
exigindo essa visão de interdisciplinaridade.
O neologismo bioética demarcou um espaço e o símbolo de uma reflexão ética [...] sobre questões
relacionadas à vida humana, atualmente, atinge um matiz tecnológico [...]. Decidir se as pesquisas com
células-tronco embrionárias devem ou não continuar não pode ser fundamentado por meio da ciência [...],
pois atinge questões de fundos eminentemente conceituais. Está em pauta muito mais do que o dilema a
respeito de quando começa a vida, mas quanto ao que se deve entender por vida e o que deve ser respeitado
como vida, ou seja, de fato a discussão é eminentemente filosófica e recai sobre os fundamentos dos
conceitos. (SILVEIRA, 2009, p. 107).
Como se pode notar, se a questão conceitual da dignidade da vida humana está, intimamente, ligada às
células-tronco embrionárias, não seria possível discuti-la sem os fundamentos onto-antropo-axiológicos da
racionalidade filosófica que a (bio)ética se esforça para analisar e se posicionar.
4.
O Biodireito: a vida humana e a racionalidade jurídica
A questão das células-tronco embrionárias não tardaria a chegar, como de fato chegou, à esfera da vida
humana nos marcos da análise e posicionamento da racionalidade jurídica. Nessa esfera, o ponto central da
discussão se volta para o direito incondicional e indeclinável à vida. É a sua inviolabilidade que está a exigir
uma reflexão dentro dos parâmetros da proteção jurídica. Essa inviolabilidade é tida, juridicamente, como
regra, e não como exceção. Trata-se de uma premissa justificada em uma ordem jurídica comprometida com
os direitos humanos (no plano internacional) e com os direitos fundamentais (no plano nacional).
No plano internacional, inicialmente, evoca-se a própria "Declaração Universal dos Direitos Humanos"
(1948), que assim prescreveu em seu Artigo III: "todo homem tem direito à vida [...]."
Os direitos humanos em sua totalidade - não só os direitos civis e políticos, mas também os econômicos,
sociais e culturais; não apenas os direitos dos povos, mas ainda os de toda humanidade, compreendida hoje
como no sujeito de direitos no plano mundial - representam a cristalização do supremo princípio da
dignidade humana. (COMPARATO, 2006, p. 22).
Em seguida, adviria o chamado "Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos" (1966), que estatuiu em
sua Parte III, art. 6°, 1: "O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido por
lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida". Com este documento, completava-se aquela
que pode ser chamada de "segunda etapa do processo de institucionalização dos direitos do homem em
âmbito universal [...]." (COMPARATO, 1999, p. 249).
Depois, chegar-se-ia à denominada "Convenção Americana de Direitos Humanos" (1969), a qual assim
estabeleceu em seu art. 4°, 1: "Toda pessoa tem o direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser
protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida
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arbitrariamente". Trata-se de um documento jurídico que otimiza o principio da prevalência dos direitos
humanos mais benéficos para a pessoa humana. Significa dizer que, na vigência de vários sistemas
normativos, em matéria de direitos humanos, "deve ser aplicado aquele que melhor protege o ser humano."
(COMPARATO, 1999, p. 333).
Não deixa de ser ponto de nota a explicitação, no citado documento, de que a vida merece proteção, em
geral, desde a concepção. Nesse sentido, tem-se a nítida percepção de que o texto, ao apontar a concepção
já como digna de ser protegida, assim se posicionou por se entender que ela é uma referência que melhor
assegura a própria dignidade da vida humana.
No plano nacional, como não poderia ser de outra forma, deve ser evocada a própria Constituição Federativa
do Brasil (1988), em cujo texto identificam-se, desde logo, três normas-regras que se relacionam com esses
documentos jurídicos internacionais. A primeira é a de que os preceitos definidores de direitos fundamentais
tem aplicabilidade imediata, não dependendo, necessariamente, de qualquer regulamentação posterior para
que sejam efetivados. A segunda é a de que direitos fundamentais inseridos em tratados, pactos ou
convenções internacionais, aos quais a República Federativa do Brasil tinha aderido, não podem ser
excluídos da ordem jurídica nacional. O país aderiu a todos eles, sem quaisquer condições. E a terceira é a de
que esses documentos jurídicos internacionais, aprovados por determinado quórum (três quintos), pelo
Congresso Nacional, passam a integrar o ordenamento jurídico nacional como equivalentes às próprias
emendas constitucionais. Todas essas normas-regras estão explicitadas no Título II, Capitulo I, da Lei Maior,
quando ela trata dos chamados direitos (e garantias) fundamentais (art. 5°, §1°, 2° e 3°).
Além disso, a mesma Carta Magna estabelece, em seu Título I, entre os princípios fundamentais da República
Federativa do Brasil, o da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III). Trata-se de uma norma-princípio. E
mais, ela também assegura o direito à vida como um direito fundamental (art. 5°, "caput").
No Direito contemporâneo, a Constituição passou a ser compreendida como um sistema aberto de princípios
e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos
fundamentais desempenham um papel central. (BARROSO, 2009, p. 316).
A partir disso, então, foi discutida a inconstitucionalidade da lei ordinária n° 11.105, de 24 de março de
2005, denominada "Lei de Biossegurança". Tal argüição incidiu, especificamente, sobre seu dispositivo que
cuida da utilização das células-tronco embrionárias (art. 5°, I, II e III e §1°, 2° e 3°).
Tendo como referência os pressupostos das normas-regras e normas-princípios dos direitos humanos
(nomenclatura do sistema internacional) e dos direitos fundamentais (nomenclatura do sistema nacional), foi
suscitada uma série de restrições ao conteúdo normativo daquele dispositivo legal. Essas restrições poder ser
delineadas em dez proposições.
Primeiro, a utilização de células-tronco embrionárias, para fins exclusivos de pesquisas e terapia, deve ser
realizada sem qualquer destruição do embrião.
Segundo, a fertilização "in vitro" tem de ser, necessariamente, para fins reprodutivos, excluídos quaisquer
outros.
Terceiro, somente pode ser considerado embrião inviável aquele cujo diagnóstico preciso indique absoluta
ausência de clivagem, e não o embrião que, eventualmente, apresente alguma alteração genética e/ou
morfológica.
Quarto, só não se caracteriza violação do direito à vida a retirada de células-tronco com destruição de
embriões, se estes forem definidos como totalmente inviáveis, na medida em que um diagnóstico seguro já
atestou a sua completa falta de desenvolvimento e impossibilidade de efetivá-lo pelo processo de divisão
celular.
Quinto, o congelamento que, como meio artificial, impede a natural potencialidade do desenvolvimento
embrionário não é admissível como justificativa para a retirada de células-tronco, porque se trata de uma
engenhosa intervenção interruptiva da dinâmica vital do embrião, afetando o próprio direito à vida.
Sexto, o consentimento dos genitores-produtores do material genético embrionário não é e nem pode ser
absoluto, a ponto de se considerá-lo mais do que suficiente para a utilização indiscriminada das célulastronco embrionárias, diante da própria inalienabilidade do direito à vida.
Sétimo, a validade do consentimento está, necessariamente, atrelada a algumas condicionantes inafastáveis,
quais sejam, absoluta inviabilidade diagnosticada, ou retirada de células-tronco sem destruição embrionária,
desde que acompanhado, em qualquer caso, da mais transparente informação.
Oitavo, há uma imperativa exigência de criação não só de Comitês de Ética, mas também de um integrado
Sistema Nacional de Controle, pelo Poder Público, sobre instituições que realizam pesquisas com célulastronco embrionárias.
Nono, a mesma exigência deve incidir sobre as instituições que realizam tratamentos terapêuticos com tais
células.
E décimo, há de ser mantida a vedação normativa de comercialização desse material genético-biológico.
Trata-se de todo um arranjo de normas-regras e normas-princípios que, nos dias atuais, se despontam como
um desafio ao chamado biodireito, que assim pode ser entendido:
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[...] um novo direito de formação muito recente no âmbito da ciência jurídica, cujo objeto de análise são
princípios e normas jurídicas que tenham por fim imediato criar, resguardar, transferir, modificar ou extinguir
direitos decorrentes de relações entre indivíduos, entre indivíduos e grupos, e entre esses com o Estado,
quando essas relações estiverem vinculadas ao início da vida, ao seu transcurso e ao seu término.
(RAMPAZZO, 2003, p.81-82).
Pode-se dizer que, com essas complexas relações em torno do direito à vida, a questão das células-tronco
embrionárias perpassa, de forma desafiadora, a própria racionalidade hermenêutico-jurídica contemporânea.
De fato, o tema das pesquisas com células-tronco embrionárias apresenta "um elevado grau de dificuldade ao
ambiente jurídico positivista, pois historicamente não possui uma abertura ético-jurídica e, portanto
investigativa (...)". (SILVEIRA, 2009, p. 107).
Não é por outra razão a não ser esse desafio dilemático envolvendo o direito à vida e todas suas implicações
políticas, econômicas, científicas, sociais e culturais, que tornam o tema das células-tronco embrionárias uma
questão complexa a estimular esse novo campo do saber jurídico, qual seja, o do biodireito.
Conclusão
O tema das células-tronco embrionárias é marcado pela atualidade e pela complexidade. A sua atualidade é
caracterizada por pesquisas recentes, anunciando sucessos terapêuticos com a utilização delas para os mais
diversos problemas de saúde. A complexidade é marcada pela questão central da dignidade da vida humana e
a visão interdisciplinar que ele comporta. É essa atualidade e complexidade que levam o tema a ser
discutido, então, por vários ângulos, com olhares múltiplos, mas não desconectados entre si, quais sejam, a
teologia, a biotecnologia, a bioética e o biodireito.
Sem se confundir com a visão religiosa, propriamente dita, não obstante esta também tenha se manifestado
sobre o supremo e sagrado valor da vida, enquanto um dom divino, a perspectiva da teologia, há muito, já
discutia a questão dilemática da animação embrionária. Dos tempos apologéticos, perpassando as teologias
patrística e escolástica, iniciaram-se profundas reflexões sobre o momento dessa animação. Duas teses
marcaram a questão, e até hoje estão em pauta, quais sejam, a da animação embrionária imediata e da
animação retardada. De qualquer forma, a leitura teológica aponta, ela também, para o diálogo
interdisciplinar e traz sua contribuição na recuperação do sagrado, que acaba sendo, ao mesmo tempo, a base
da ética, mais especificamente, a ética do cuidado, da solidariedade, da co-responsalidade e da alteridade.
Na perspectiva da biotecnologia, um composto de técnica, ciência e tecnologia, não obstante o seu enorme
impacto nas relações homem-natureza, o que se tem discutido, sobretudo, nesses tempos de afirmação da
ampla liberdade de todo esse saber-poder-fazer, é se ele possui algum tipo de autoridade especial para definir
a respeito desse delicado tema envolvendo os marcos da vida e da morte. Não se trata, obviamente, de
cercear a liberdade das pesquisas, desde que tenha certos limites éticos, mas de se perceber que esse tema
não comporta uma "paixão cientificista". Isso porque a própria racionalidade biotecnológica, com algumas de
suas inevitáveis dúvidas e incertezas, reconhece que muitos passos ainda precisam ser dados nas pesquisas,
antes de serem apresentadas as últimas e definitivas palavras sobre a vida, a morte e a utilização terapêutica
das células-tronco embrionárias.
Dentro da perspectiva da bioética, o que se tem colocado é que a questão da vida humana não pode ser
compreendida, em toda sua profundidade, se não forem considerados pressupostos onto-antropo-axiológicos
da racionalidade filosófica. Isso porque ela investiga, há séculos, a natureza e a dignidade humana e o valor
exponencial de sua vida, o que não se pode afastar do tema da própria vida celular embrionária. Esta não é,
simplesmente, uma etapa de uma metamorfose fenomênica, mas é um ser que, em seu processo natural de
desenvolvimento, não será outra realidade se não a daquele mesmo ser originário. Uma semente de ser
humano, atualizando-se como ser humano.
Por fim, na perspectiva do biodireito, esse novo ramo da racionalidade jurídica, tem-se cada vez mais claro
que deve haver um aprofundado esforço hermenêutico para conjugar e buscar o sentido de normas-regras e
normas-princípios, tanto no plano internacional dos direitos humanos, quanto no nacional dos direitos
fundamentais, todas em torno da dignidade da pessoa humana e do respeito pelo direito à vida, inclusive,
desde a sua concepção. Não resta dúvida que o tema das células-tronco embrionárias continua a desafiar,
com toda sua complexidade, esse campo "embrionário" do saber jurídico.
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* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
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CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS: A QUESTÃO DA VIDA