organizadoras maria isabel barros bellini camília susana faler intersetorialidade e políticas sociais interfaces e diálogos INTERSETORIALIDADE E POLÍTICAS SOCIAIS: INTERFACES E DIÁLOGOS Chanceler Dom Jaime Spengler Reitor Joaquim Clotet Vice-Reitor Evilázio Teixeira Conselho Editorial Jorge Luís Nicolas Audy | Presidente Jorge Campos da Costa | Editor-Chefe Jeronimo Carlos Santos Braga | Diretor Agemir Bavaresco Ana Maria Mello Augusto Buchweitz Augusto Mussi Bettina S. dos Santos Carlos Gerbase Carlos Graeff Teixeira Clarice Beatriz da Costa Sohngen Cláudio Luís C. Frankenberg Érico João Hammes Gilberto Keller de Andrade Lauro Kopper Filho INTERSETORIALIDADE E POLÍTICAS SOCIAIS: INTERFACES E DIÁLOGOS organizadoras Maria Isabel Barros Bellini Camília Susana Faler porto alegre 2014 © EDIPUCRS 2014 DESIGN GRÁFICO [CAPA] Shaiani Duarte DESIGN GRÁFICO [DIAGRAMAÇÃO] Thiara Speth REVISÃO DE TEXTO Gaia Assessoria Linguística Edição revisada segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 E-mail: [email protected] Site: www.pucrs.br/edipucrs Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) I61 Intersetorialidade e políticas sociais : interfaces e diálogos [recurso eletrônico] / org. Maria Isabel Barros Bellini, Camilia Susana Faler. – Dados Eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2014. 224 p. Modo de acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs> ISBN 978-85-397-0573-3 1. Assistência Social. 2. Políticas Públicas. 3. Política Social - Brasil. I. Bellini, Maria Isabel Barros. II. Faler, Camilia Susana. CDD 361 Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais). SUMÁRIO 7 NOTA DOS ORGANIZADORES 9 APRESENTAÇÃO 13 A PESQUISA SOBRE INTERSETORIALIDADE NO CONTEXTO BRASILEIRO: NOTAS SOBRE O NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM TRABALHO, SAÚDE E INTERSETORIALIDADE maria isabel barros bellini tiana brum de jesus patrícia teresinha scherer guilherme gomes ferreira camília susana faler INTERSETORIALIDADE & FRAGMENTAÇÃO: 23 PARTÍCULAS A RESPEITO maria isabel barros bellini camília susana faler VIDAS SINGULARES E ATOS ESPECÍFICOS: O CUIDADO, A 41 FAMÍLIA CUIDADORA E A INSERÇÃO NAS POLÍTICAS SOCIAIS maria isabel barros bellini luiza barreto eidt AS POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E DO TRABALHO: 71 UMA APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA NO COMBATE À MISÉRIA EXTREMA NO BRASIL – A EXPERIÊNCIA DO RIO GRANDE DO SUL eunice maria viccari eliane de moura martins GESTÃO MUNICIPAL NO ACOMPANHAMENTO DAS 85 CONDICIONALIDADES DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA sirlei favero cetolin clarete trzcinski 103 INTERSETORIALIDADE E INCLUSÃO PRODUTIVA: UM DESAFIO PARA AS POLÍTICAS SOCIAIS gleny terezinha duro guimarães thiana orth CONTROLE SOCIAL EM SAÚDE E DEMOCRACIA: 117 PARA ALÉM DOS MECANISMOS INSTITUCIONAIS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL elisa de andrade abreu lúcia rublescki silveira A INTERSETORIALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS 141 NO PROCESSO DE REMOÇÃO DA VILA DIQUE: TECENDO A REDE DA PROMOÇÃO DA SAÚDE? tiana brum de jesus tatiane moreira de vargas felipe anselmi correa REFLEXÕES ACERCA DA POLÍTICA DE SAÚDE DO 161 TRABALHADOR: O SISTEMA DE INFORMAÇÕES EM SAÚDE DO TRABALHADOR DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE – RS EM EVIDÊNCIA priscila françoise vitaca rodrigues maria isabel barros bellini APRENDER SAÚDE NA ESCOLA: UMA EXPERIÊNCIA 181 DE INTERSETORIALIDADE ENTRE AS POLÍTICAS DE SAÚDE E A EDUCAÇÃO maria isabel barros bellini vanessa soares rehermann fernanda brenner morés POLÍTICAS PÚBLICAS E FAMÍLIAS: 201 ACESSIBILIDADE, POSSIBILIDADES E DESAFIOS rossana crossetto sabrina bermudez 221 SOBRE OS AUTORES 7 NOTA DOS ORGANIZADORES A presente obra é fruto das produções científicas dos integrantes do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI) PUCRS, especialmente do Grupo de Estudo e Pesquisa Educação na Saúde e Intersetorialidade (GEPESI), do Grupo de Estudos e Pesquisa Família, Serviço Social e Saúde (GFASSS) e de profissionais parceiros desse espaço, os quais buscam favorecer a articulação para a construção e a consolidação de proposições e ações profissionais que primam pelo fomento da intersetorialidade entre as políticas sociais, através da pesquisa em diferentes níveis (iniciação científica , mestrado e doutorado) contribuindo para a potencialização do diálogo entre instituições de ensino, órgãos gestores das políticas sociais e entre os profissionais. Esta publicação faz parte do Projeto “Integração entre Universidade e Política de Saúde: Intersetorialidade e Ensino em Saúde”, aprovado e financiado pelo edital Pró-Ensino na Saúde − 024/2010/CAPES e atende aos objetivos preconizados naquele projeto que são: consolidar, fortalecer, ampliar, atualizar, implementar a área de concentração e as linhas de pesquisa relativas ao ensino e formação na saúde; qualificar e ampliar a produção científica, tecnológica e de inovação sobre o tema do ensino e formação na saúde através da elaboração e da difusão de produções científicas oriundas de pesquisas e do desenvolvimento de estágios de graduandos, especialistas e pós-graduandos na área do ensino na saúde; promover a inserção de trabalhadores de saúde nos programas de pós-graduação e o intercâmbio de conhecimentos entre estes e os docentes e alunos dos citados programas e, finalmente, promover a cooperação acadêmica de docentes, pesquisadores e orientadores e estudantes de pós-graduação entre grupos de pesquisa envolvidos, ampliando a formação de mestres e doutores no país. No terreno empírico e teórico, percebe-se que usualmente entre os atores das políticas sociais concebe-se a intersetorialidade no eixo das ações tentando, porém, consolidar a sua materialidade no seu fim dessas ações. No entanto, atingir esse escopo no campo prático parece remoto e infactível. Notoriamente veem-se esforços e iniciativas pontuais de profissionais e de gestores para que essa articulação aconteça em todos os espaços e tempos, mas, cotidianamente, cruzam espaços rígidos, marcados historicamente pela separação dos territórios/setores e pela segmentação dos serviços, das concepções, das ações, dos interesses. Deseja-se que estas reflexões possam contribuir para com estudiosos, pesquisadores, trabalhadores e outros que, inquietos com a temática, enfrentem o desafio da intersetorialidade no contexto das políticas sociais, sentindo-se menos solitários e mais amparados. 9 APRESENTAÇÃO O debate sobre a intersetorialidade e seu desvendamento enquanto categoria no campo político e acadêmico tem sido muito recorrente. Não só pela condição apontada no campo da regulação das políticas sociais brasileiras, mas também pela materialidade que o movimento, por construir conhecimento, tem exigido do diálogo entre as áreas. A coletânea que tenho a honra de apresentar é um dos resultados do profícuo trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI) do Programa de PósGraduação em Serviço Social da PUCRS, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Isabel Barros Bellini. Parte do trabalho desenvolvido no NESTI, e que ganha visibilidade sob forma de capítulos nesta coletânea, demonstra o compromisso ético-político dos pesquisadores no trato dos dados que têm sido referência para sua produção. Destaca-se o compromisso com as políticas sociais públicas, bem como centram suas análises na devolução de seus achados de pesquisa, na perspectiva de construir uma rede de pesquisadores que ao problematizar o conhecimento reverberam nas produções os nós teóricos e práticos ao qual estamos todos submetidos. Os diversos capítulos desta coletânea centram-se na análise dos mais diversos campos de políticas sociais, com ênfase na política de saúde e de assistência social e a publicação beneficia-se do acúmulo intelectual de seus participantes, para expor os resultados do fértil trabalho, que levou os autores envolvidos a formular relevante contribuição para o aprofundamento do debate público. Nesse sentido, este livro, configura-se como espaço privilegiado de diálogo qualificado, entre especialistas e implementadores de políticas sociais. Em seu âmbito, são examinados, com competência, alguns dos desafios e perspectivas que se apresentam para as políticas sociais, neste início de século XXI, com ênfase na política de saúde e assistência social e em ações voltadas ao enfrentamento da pobreza e da desigualdade, tendo como norte as transformações societárias que caracterizam o capitalismo contemporâneo, especialmente em sua periferia. 10 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos O tema da intersetorialidade é, sem dúvida, desafiante. Tem sido tratado de diversas formas, o que fica exposto no decorrer dos textos que compõem esta coletânea. No debate realizado, sobressai-se desde uma visão instrumental, que, na maioria das vezes, traduz-se em encaminhamentos e em um movimento de repasse, sem diálogo, até a sua configuração como um trabalho que, ao envolver vários campos do saber ou setores dos serviços públicos, se propõe a criar novos conhecimentos, na perspectiva de compreender o fenômeno na sua totalidade e a ele responder adequadamente. O reconhecimento de abrir espaço para análises que emanam das pesquisas realizadas pelo NETSI resultou em alimento consistente para o debate já presente no campo das políticas sociais públicas e nas poucas produções acadêmicas disponíveis, o que faz com que esta produção seja muito bem-vindo. No contexto de trabalho de um núcleo de pesquisa, os leitores são convidados a se perguntar sobre o tema e suas inflexões no campo das políticas sociais e em especial das políticas de saúde a da assistência social. Assim, a coletânea destaca a área da saúde, onde ao debate da intersetorialidade deve ser agregado ao da integralidade e o da universalidade e percorre os mais diversos caminhos para que esse debate seja feito. Assim encontraremos capítulos que discutem o desafio de pensar intersetorialmente, em ambientes segregados, fragmentados. A produção de conhecimento, o desafio dos estudos de um núcleo de pesquisa são elementos centrais nesse debate. Para além disso, o desafio de pensar nas famílias cuidadoras, na educação em saúde nas escolas, no processo de adoecimento no trabalho e na saúde do trabalhador, bem como discutir como tem se efetivado o controle social na política de saúde e os grandes desafios para retomar esse espaço de democratização público são elementos problematizados nos textos da coletânea Já no campo da assistência social, a inclusão produtiva, o Programa Bolsa Família e o debate sobre o papel da qualificação profissional como forma de enfrentamento à pobreza são pautas problematizada pelos autores. Nesse debate, comparecem as mais diversas leituras sobre os temas. Assim, é preciso fugir de leituras reducionistas, que compreendem que os acionamentos no campo do trabalho e da transferência de renda são suficientes para romper com o sistema excludente do capitalismo con- organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler temporâneo. Uma leitura mais acurada vai determinar aos pesquisadores e trabalhadores sociais que a realidade vivida pela população que busca atendimento da política pública de assistência social, seja pela via dos programas de transferência de renda, inclusão produtiva ou qualificação profissional, é produto de uma realidade muito mais ampla e que a inserção dessa população na condição de sujeito histórico exige mais do que respostas pontuais vinculadas a uma única política social. Exige, sim, um debate vigoroso em que ao trabalhar com esses programas, não seja induzida à lógica do “bom pobre”, mas, sim, que eles sejam compreendidos como ferramentas para superar situações e construir análises que demonstrem o desafio hoje de pensar em acesso, garantia de direitos em um processo de destituição dos mesmos. Os textos da coletânea nos apontam para muitos dados da realidade, com campo empírico nos estados do Sul do Brasil, e vão descortinando a realidade que está a exigir de todos nos, pesquisadores, trabalhadores sociais, gestores de políticas públicas e usuários um aprofundamento nos processos que tanto recriam possibilidades concretas de romper com a subalternidade, característica já largamente trabalhada no campo das políticas sociais e sua relação com a população usuária, como apontam a reiteração de princípios moralistas, meritocráticos que impedem os sujeitos de compreender os processos que vivenciam. O capítulo que trata da remoção da população de uma vila na cidade de Porto Alegre demonstra claramente a lógica imprimida pelo capitalismo contemporâneo, onde o “progresso” para ser garantido não encontra obstáculos, nem que para isso os direitos sociais da população sejam aviltados. Saúde e Assistência Social ganharam, após a Constituição de 1988, o lugar de política pública e junto com a Previdência Social configuram o sistema protetivo da Seguridade Social. Longe de responder às necessidades sociais da população, uma vez que o trabalho, a educação, o acesso à moradia, entre outros, também são fundamentais, a Seguridade Social é um avanço para a sociedade brasileira. No texto legal dessas políticas, o leitor encontrará a indicação de que o trabalho deve ser pautado por uma ação intersetorial. É o reconhecimento cabal de que nenhum campo do saber, nem uma área de serviços, é capaz de 11 12 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos responder unilateralmente sobre a realidade. Essa afirmação vai encontrar na realidade brasileira um solo histórico onde a fragmentação, a individualidade são elementos-chaves para descortiná-la. Por tanto, estudos como esses, são essenciais para criar condições objetivas de intervir na realidade, modificando-a numa perspectiva humana de desenvolvimento dos sujeitos sociais históricos. Em síntese, a realização do balanço crítico dos avanços e desafios desse processo, pondo em evidência as pesquisas do NETSI e de sua rede de colaboradores, reverbera a seriedade e a competência desse núcleo e o compromisso com a formulação de conhecimento que, ao ter seu vínculo com o campo concreto das políticas sociais, fará certamente a diferença e oferecerá a todos os leitores elementos essenciais para debater o tema. Estamos todos de parabéns, essa coletânea é certamente mais um instrumento que terá um grande impacto nos estudos do campo das políticas sociais. A Profa. Maria Isabel e sua equipe, formada por pesquisadores vinculados ao Programa de Pós-Graduação da PUCRS, docentes de outras universidades, alunos de iniciação científica e trabalhadores sociais, materializam nesta coletânea o compromisso público com a devolução dos dados trabalhados a partir de inúmeras pesquisas financiadas pelos órgãos de fomento. Colocar em pauta o debate é a prova cabal de que o NETSI reconhece seu espaço público e assume com isso o compromisso de pôr em relevo e para a crítica os avanços construídos. Porto Alegre, inverno de 2014 Berenice Rojas Couto Profa. da Faculdade de Serviço Social da PUCRS 13 A PESQUISA SOBRE INTERSETORIALIDADE NO CONTEXTO BRASILEIRO: NOTAS SOBRE O NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM TRABALHO, SAÚDE E INTERSETORIALIDADE maria isabel barros bellini tiana brum de jesus patrícia teresinha scherer guilherme gomes ferreira camília susana faler A intersetorialidade, em relação íntima com a interdisciplinaridade, fundamenta, juntamente com a integralidade, os princípios básicos do conceito ampliado de saúde. Cada um desses pilares potencia- liza, no conjunto de suas possibilidades, o acesso de qualidade às políticas sociais pela população que a elas recorrer. Mas cabe dizer que a existência de um desses pilares não necessariamente implica a existência de outro, ou seja, ações interdisciplinares não têm por si só a possibilidade de garantir a intersetorialidade e, consequentemente, a integralidade. O Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI) da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) têm trabalhado através dos estudos e pesquisas relacionados à construção e à aplicação da intersetorialidade, mais especificamente com duas políticas sociais: a política de saúde e a política de assistência social. O privilégio dado a essas duas políticas nos estudos do NETSI tem sua justificativa no fato de essas políticas, além de fornecer critérios e condições para garantir direitos e acesso a esses direitos, e por serem lócus onde mais se verificam práticas e estudos sobre a intersetorialidade, são, também, campo de intervenção de diferentes áreas do conhecimento e diferentes categorias profissionais, entre elas, os assistentes sociais. Por essa razão são espaços de trabalho e fomento 14 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos para o aprofundamento de conhecimentos da realidade. Ao comporem os pilares da seguridade social, juntamente com a política de previdência social, reforçam a importância da intersetorialidade para a efetividade dos princípios preconizados por essas políticas na materialização de suas ações. Dessa forma, este artigo tem como objetivo demonstrar algumas das facetas da intersetorialidade das políticas sociais, sobretudo entre as políticas de assistência social e saúde, mostrando algumas possibilidades e limites desvendados especialmente pelas pesquisas desenvolvidas pelos grupos GEPESI1 e GFASSS2 do NETSI e apontando o compromisso da universidade para a formação na integralidade. intersetorialidade e políticas sociais: a política de saúde e a política de assistência social A política de saúde, regulamentada pela lei brasileira nº 8.080 de 1990 (BRASIL, 1990), concebe a intersetorialidade como a articulação entre diferentes setores para a materialização da promoção, prevenção e recuperação da saúde. Está ancorada na concepção ampliada de saúde, e tem a função de responsabilizar todos os gestores na construção de agenda em todos os níveis de atenção das políticas sociais. O debate da intersetorialidade na Saúde remonta a própria história dos discursos em torno da promoção de saúde, no marco dos determinantes sociais. Em outros termos, identifica-se que a própria postulação da intersetorialidade é forjada no âmbito de produções que privilegiam a determinação social do processo saúde/doença (MIOTO; SHUTZ, 2011, p. 2). A ruptura com formas fragmentadas e setorializadas, desde que assumidas pelos gestores e executores, tem o poder de promover, criar e editar ações concretas na direção da intersetorialidade. O reconhecimen- 1 Grupo de Estudo e Pesquisa Educação na Saúde e Intersetorialidade (GEPESI). 2 Grupo de Estudos e Pesquisa Família, Serviço Social e Saúde (GFASSS). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler to das ações intersetoriais, como resistência à compartimentalização e como possibilidade de prevenir a desresponsabilização das políticas e dos setores através de seus agentes, permite a definição de competências e responsabilidades, potencializando um atendimento integral aos sujeitos por meio das políticas sociais. Uma política de Estado deve contribuir para que a população se aproprie de seus direitos, distinguindo e reconhecendo quais são esses direitos para que assim eles sejam acessados e afirmados. No entanto, somente o conhecimento dos direitos não é suficiente para garantir o seu acesso e manutenção. Essa apropriação envolve diversas variáveis que vão desde o contexto social, econômico e cultural da coletividade, a construção de redes de apoio social, a integração de serviços e conhecimentos, até a revitalização ou a criação de novos cenários de práticas e saberes socialmente úteis ao conjunto das necessidades da população. O desafio da articulação e integração entre as políticas sociais, em especial entre as políticas de saúde e de assistência social, é destaque nas agendas dos gestores e dos trabalhadores dessas políticas. Essa evidência denuncia a longa história de segregação das políticas em que cada uma defendia uma direção, um suporte, uma lógica, sem considerar as responsabilidades com o todo e com a população. Um primeiro passo, para o enfrentamento da fragmentação das políticas sociais brasileiras é a identificação das possibilidades e dos limites de cada política e a inclusão dos gestores nesse processo, a fim de prevenir análises tendenciosas que, historicamente, vêm servindo a um projeto de sociedade injusta, em que a divisão da riqueza social beneficia apenas uma pequena parcela da população. O Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) afirma que a assistência social “enquanto política pública, que compõe o tripé da Seguridade Social, e considerando as características da população atendida por ela, deve fundamentalmente inserir-se na articulação intersetorial” (BRASIL, 2005, p. 36). Nessa perspectiva, busca garantir a qualidade de vida da população, superando os recortes setoriais que, tradicionalmente, fragmentam as políticas sociais, em especial a política de assistência social (BRASIL, 2005). Inclui, portanto, a intersetorialidade em seu texto oficial e faz dela uma prioridade. Outras políticas sociais brasileiras, atualmente, incluem em suas agendas a proposta da intersetorialidade. Todavia, as políticas de 15 16 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos saúde e de assistência social destacam-se como as duas políticas que têm, historicamente e de modo mais consolidado, apontado a intersetorialidade como caminho necessário para concretização da integralidade. O Ministério da Saúde, de acordo com a política instituída, subsidia-a para que contribua na efetivação desse direito. Foi conquistado através das lutas sociais e no processo brasileiro de democratização através da participação dos movimentos populares em saúde que culminou no Movimento da Reforma Sanitária, e, após, subsidiou a Constituição Federal em 1988. A política de saúde constituiu uma trajetória que, primeiramente, partiu de um grupo restrito de intelectuais, tendo como aporte teórico a teoria social crítica, e que depois realizou uma intensa articulação com vários setores da sociedade, coletivizando o processo de luta e conquista por esse direito social. A reformulação do setor saúde teve início em meados dos anos 70 e trouxe como liderança intelectual e política o autodenominado Movimento Sanitário. Tratava de um grupo restrito de intelectuais, médicos e lideranças políticas do setor saúde provenientes, na maioria, do Partido Comunista Brasileiro. O grupo influenciou o âmbito acadêmico e teve impulso com a criação dos departamentos de medicina preventiva nas faculdades, a partir dos quais se difundiu o pensamento crítico da saúde (GERSCHMANN, 1995, p. 70). A trajetória da política de saúde, assim como da política de assistência social, apresenta, assim, semelhanças em seus processos de consolidação enquanto direitos sociais. A saúde, durante muito tempo, foi concebida como mercadoria, comprada a altos custos e de acesso apenas a uma minoria. A assistência social, por sua vez, foi concebida historicamente como favor, como concessões da burguesia à classe trabalhadora. Com a Constituição Federal Brasileira de 1988, a saúde passa a ser considerada como um direito, garantido constitucionalmente para todos os cidadãos brasileiros e um dever do Estado em prover e garantir as condições de acesso à população ao Sistema Único de Saúde (SUS). A assistência social também foi anotada na Carta Magna como um direito, não contributivo, destinado a prover os mínimos sociais. No entanto, enquanto Sistema organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Único de Assistência Social (SUAS), articulado e com níveis de proteção definidos e assumidos por diferentes níveis de gestão, só se consolidou no ano de 2005. Isso demonstra o quanto se tornou emblemática e burocrática a materialização dessa política enquanto direito e enquanto sistema. Em se tratando da política de saúde, ainda é possível encontrar gestores que balizam suas práticas profissionais através de uma ideia curativista e hospitalocêntrica, gestada ainda nas primeiras concepções de saúde no Brasil, e que refletem tendências conservadoras e progressistas em um mesmo momento histórico. Nesse sentido, a inovação de tecnologias em saúde deveria mudar o quadro tendencioso de centralidade do hospital (e pronto-socorro) e da atenção individual (CAMPOS, 1997) para uma atenção coletiva que privilegie o protagonismo da população e que centre na atenção básica, a porta de entrada das pessoas ao serviço de saúde. Essas diferentes tendências conservadoras propiciam cada vez mais a fragmentação dos serviços, do usuário, da política, que poderiam ser superadas mediante o fortalecimento dos gestores das políticas e da coletividade através de processos de participação popular, de educação popular e permanente em saúde. Na consolidação das políticas sociais, deve ser desvendada a fragilidade da apropriação sobre o que são direitos e suas garantias, para que assim se fortaleça o protagonismo dos sujeitos no acesso às políticas. Uma possibilidade de realizar esse adensamento está na participação das comunidades, no fortalecimento desses sujeitos coletivos por meio da participação social. Isso enseja a atuação de diferentes atores para a consecução do direito de todos, numa perspectiva interdisciplinar, no fomento da participação, capacitação, criação de outros cenários para práticas coletivas, educação, execução de atividades de gestão e participação na construção de redes de relações diversas que têm suas interseções na garantia do direito à saúde e à assistência social especificamente. Dessa forma, a construção teórico-prática dos profissionais que saem das academias, deve rumar para concepções e posturas investigativas, propositivas, com conhecimento sobre a organização dos sistemas de saúde e de assistência social. Isso demarca uma importante formação acerca da importância do controle social, do rompimento com modelos de formação clínicos, conservadores, fragmentados, centrados em procedimentos 17 18 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos limitados ao espaço do hospital, por exemplo, ou do entendimento que a própria assistência social é sim um direito e não um favor, ou seja, busca-se uma formação pautada na noção de integralidade. O interesse em adensar os estudos sobre a especificidade dessa intervenção nesse campo também instigou Vasconcelos (2006) que aponta os seguintes resultados a partir de seus estudos: [...] necessidade de qualificar ações que mobilizem e impulsionem novas maneiras de realizar a prática, em especial, o Serviço Social na área da saúde, tendo como referencia a saúde como direito universal e com controle social e o projeto ético-político do Serviço Social brasileiro (VASCONCELOS, 2006, p. 242). Frente a essas postulações, ressalta-se que a ação profissional perpassa adensar o debate acerca da intersetorialidade, pontuando que essa discussão é ainda uma proposta em construção e o consenso sobre sua relevância nas políticas sociais é um imperativo para forjar respostas que atendam às necessidades da população na sua integralidade. notas sobre o núcleo de estudos e pesquisas em trabalho, saúde e intersetorialidade: a contribuição de suas pesquisas para (re)pensar a intersetorialidade Com a missão da produção do conhecimento, a construção de novas e inovadoras práticas, a investigação e a organização de ações, programas e políticas de formação profissional para intervenção em políticas sociais, o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI) da Faculdade de Serviço Social da PUCRS é formado por docentes, acadêmicos, mestrandos, doutorandos e pesquisadores associados. Tem o objetivo de desenvolver pesquisas e estudos sobre a intersetorialidade entre as políticas sociais, com destaque para a educação na saúde; educação permanente; rede de recursos humanos em saúde; família e violência; mundo do trabalho e transformações sociais; além de contribuir na elaboração de teses, dissertações, pesquisas de iniciação científica, projetar, coordenar, apoiar e integrar atividades que tenham como foco organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler o trabalho e a formação na área da saúde, efetivando ações de articulação entre unidades de ensino, universidades e serviços da rede de saúde. O NETSI é composto pelos seguintes grupos: i) Grupo de Estudo e Pesquisa em Ensino na Saúde e Intersetorialidade (GEPESI), com a pesquisa “Integração entre Universidade e Política de Saúde: Intersetorialidade e Ensino na Saúde” (2012) financiado pela CAPES; ii) Grupo de Estudos e Pesquisa em Família, Serviço Social e Saúde (GFASSS) com as pesquisas: “Aprender saúde na escola: articulando políticas públicas e garantindo uma adolescência protegida” (2012), financiada pela FAPERGS; “Formação e atenção em saúde: estudo sobre a interface dos programas de ensino em serviço do Ministério da Saúde e da Educação e as unidades de ensino em saúde da PUCRS” (2011), financiada pelo CNPq; “A intersetorialidade como elo de articulação entre as políticas de saúde e de assistência social com enfoque na abordagem dos assistentes sociais em municípios do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina” (2010), financiada pelo CNPq; e “Estudo sobre a inserção da família cuidadora em situação de vulnerabilidade nas Políticas de Saúde e de Assistência Social” (2011), financiada pela PUCRS. iii) Grupo de Pesquisa sobre Trabalho e Assistência Social (GPsTAS), que possui as linhas de pesquisa: Serviço Social e políticas sociais; e Serviço Social e processos de trabalho. Atualmente desenvolve as seguintes pesquisas: “Mercado de trabalho do assistente social e o processo de supervisão de estágio” (2012), com financiamento do CNPq; e “Empreendimentos solidários: desafios ao processo de incubação social” (2011), financiada pela PUCRS. Os estudos e pesquisas realizados pelos pesquisadores do NETSI incidem sobre: a concepção de intersetorialidade que norteia o exercício profissional dos trabalhadores, especialmente dos assistentes sociais e gestores vinculados à política de saúde (PS) e à Política Nacional de Assistência Social (PNAS); a identificação da metodologia utilizada pelos assistentes sociais no trabalho com famílias; a análise das ações e da a articulação entre as políticas de assistência social e saúde; o conhecimento dos desafios enfrentados pelos assistentes sociais e gestores; e, finalmente, a contribuição para a efetivação da intersetorialidade entre a PS e PNAS. A preocupação em estudar a intersetorialidade entre as políticas tem fomentado várias pesquisas em nível de pós-graduação, sendo observado que a cada semestre o objeto de investigação retorna e se atualiza eviden- 19 20 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos ciando diferentes possibilidades de pesquisa. E é para reiterar a importância da qualificação dos profissionais, vinculados às políticas sociais, em especial a de saúde e assistência social, que este artigo se coloca como um instrumento de reflexão, sobre a efetivação da intersetorialidade nessas políticas. Nas pesquisas executadas pelo NETSI, nas analises já realizadas, observa-se a fragilidade da intersetorialidade nas ações desenvolvidas, especialmente nas políticas de saúde e assistência social. Reitera-se a fragmentação e a descontinuidade das intervenções com consequente desresponsabilização do Estado com as políticas sociais. Aponta-se, ainda, que o trabalho dos assistentes sociais se centra na família, e que a articulação entre saúde e assistência social se caracteriza por encaminhamentos dos usuários aos serviços da rede socioassistencial no território. A grande demanda de trabalho, dos profissionais que trabalham nas políticas, é referida como obstáculo para o planejamento das ações e para o adensamento da compreensão do que seja efetivamente intersetorialidade, bem como interdisciplinaridade e integralidade. Identifica-se a lógica do encaminhamento em detrimento da lógica do acompanhamento e a tentativa, por parte dos assistentes sociais para a realização de ações intersetoriais, de forma incipiente enquanto planejamento, execução e avaliação conjunta da ação. O momento histórico e a fragilização das políticas sociais exigem que os profissionais estabeleçam outra relação com o trabalho e com os processos de trabalho. Essa perspectiva abrange desde a organização das demandas de trabalho, até o produto e a relação com os outros trabalhadores. Assim, evidencia-se uma urgência em adensar conhecimento, a criação de estratégias que possam motivar e comprometer gestores e trabalhadores, das diferentes políticas, a fim de propor novas possibilidades de intervenção, junto às famílias usuárias das políticas sociais. considerações finais Amparados nas reflexões anteriormente realizadas é que os pesquisadores do NETSI voltam sua atenção para a formação dos profissionais, a qual deve ter como base os princípios e valores preconizados no projeto ético-político profissional do Serviço Social e nas políticas sociais. Tais princípios intentam organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler a autonomia, a emancipação e a plena expansão dos indivíduos sociais, a defesa intransigente dos direitos humanos, a ampliação e a consolidação da cidadania, o aprofundamento da democracia, a equidade e a justiça social, a eliminação de todas as formas de preconceito (BRASIL, 2011); conceito ampliado de saúde, ação intersetorial, trabalhos e estudos interdisciplinares, garantia da integralidade das ações, entre outras. E assim, as instituições de nível superior têm sido convocadas a participar da consolidação do SUS, do SUAS, enfim, das políticas sociais e na reorientação curricular incluindo disciplinas que capacitem seus futuros profissionais quanto à historicidade das políticas, aos conceitos, às diretrizes e aos princípios na perspectiva de fomentar práticas de atenção integral aos sujeitos sociais. A intersetorialidade é compreendida como um processo de desenvolvimento de uma postura profissional que viabiliza um olhar ampliado das especificidades, que se conjugam no âmbito das profissões, através de equipes multiprofissionais, visando integrar saberes e práticas voltadas à construção de novas possibilidades de pensar e agir em saúde (MIOTO; NOGUEIRA, 2006, p. 276-277). Acrescentando-se aí todas as políticas sociais viabilizadoras de direitos sociais. É de suma importância que as políticas sociais estejam interconectadas e isso remete à importância da intersetorialidade de políticas como as de assistência social e saúde, entre outras, ou seja, remete à centralidade da proteção social, em seu sentido mais amplo, para com os sujeitos. Essa interconexão das políticas se faz necessária justamente porque uma só política não dá conta de responder às demandas da população mais vulnerável, que necessita do aporte, da proteção do Estado para acessarem os direitos sociais. A integralidade tende a reforçar as ações intersetoriais e a construção de uma nova governança na gestão de políticas sociais. A importância da interconexão dessas políticas se faz necessária para atender, respeitar e efetivar os direitos de cidadania de cada brasileiro. A intersetorialidade vinculada primordialmente à interdisciplinaridade, a fim de efetivar a in- 21 22 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos tegralidade, tem na sua base os fundamentos de um projeto de sociedade justa e igualitária, na medida em que prioriza as pessoas, as comunidades e suas necessidades e não as necessidades do mercado. Espera-se, assim, que esta discussão auxilie na reflexão sobre os direitos dos cidadãos brasileiros, garantidos constitucionalmente e contribua na consolidação desses direitos, referente ao acesso, à humanização e à integralidade da atenção aos sujeitos sociais. referências BRASIL. Código de Ética do/a Assistente Social. Lei 8.662/93 de Regulamentação da Profissão. 9. ed. rev. e atual. – Brasília: Conselho Federal de Serviço Social, 2011 ______ . Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990, p. 1. BRASIL. Ministério de Desenvolvimento Social (MDS). Política Nacional de Assistência Social PNAS/2004 – Norma Operacional Básica NOB/SUAS, Brasília, 2005. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1990/lei-808019-setembro-1990-365093-norma-pl.html Acesso em: 22 out. 2013. CAMPOS, G W.S. Sobre a reforma da reforma: repensando o SUS. In: CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa. Reforma da reforma: repensando a saúde. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. GERSCHMAN, S. A democracia inconclusa: um estudo da reforma sanitária brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1995. MIOTO, R. C.; NOGUEIRA, V. M. R. Sistematização, planejamento e avaliação das ações dos assistentes sociais no campo da saúde. In: MOTA, A. E. et al. (Org.) Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: OPAS, 2006, p. 273-303. ______ ; SCHUTZ, F. Intersetorialidade na política social: reflexões a partir do exercício profissional dos assistentes sociais. Pelotas: Diprosul, 2011. VASCONCELOS, A. M. de. Serviço Social e prática reflexiva. Revista em Pauta, Rio de Janeiro, n. 10, p. 131-181, 1997. 23 INTERSETORIALIDADE & FRAGMENTAÇÃO: PARTÍCULAS A RESPEITO maria isabel barros bellini camília susana faler Grande coisa é haver recebido do céu uma partícula da sabedoria, o dom de achar as relações das coisas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! (ASSIS, 2008, p. 216). I nicia-se citando Machado de Assis, pois se concorda que é “uma partícula da sabedoria, o dom de achar as relações das coisas”, e essa “partícula” mais difícil se refere à tarefa do pesquisador de “achar relações entre as coisas” depois “comparar” e ainda “concluir” de forma que tenha alguma utilidade científica e social1. A pesquisa que embasa o artigo se intitula “A Intersetorialidade como elo de articulação entre as políticas de saúde e de assistência social com enfoque na abordagem dos assistentes sociais com famílias em municípios do Rio Grande do Sul e Santa Catarina 2”, vinculada ao edital CNPq, foi executada entre 2010-2013 e teve como objetivo geral, realizar um estudo 1 Essa é a tarefa deste artigo, concluir e dar retorno útil à comunidade sobre a pesquisa realizada, esse não é o único produto, outros já foram disponibilizados. Citam-se alguns como exemplo: “I SERPINF-SEMINÁRIO REGIONAL: POLÍTICAS PÚBLICAS, INTERSETORIALIDADE E FAMÍLIA: Desafios no ensino, pesquisa e formação profissional”, realizado em novembro de 2012, na PUCRS; vários artigos e apresentações em eventos nacionais e internacionais e relatórios elaborados e encaminhados ao órgão de fomento sobre essa pesquisa. Esta é apenas mais uma possibilidade de reflexão. Este artigo foi elaborado por parte do grupo de pesquisadores, os outros membros são autores em outros artigos nesta publicação, porém todos os aportes são resultados das análises em que, todos os pesquisadores estiveram envolvidos. 2 Projeto de Pesquisa aprovado segundo protocolo 01/2010/PPGSS/PUCRS. 24 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos sobre a intersetorialidade entre a Política de Saúde e a Política Nacional de Assistência Social, tendo como foco o trabalho dos assistentes sociais com famílias nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Os objetivos específicos pretenderam conhecer a concepção de intersetorialidade, que norteia o trabalho dos assistentes sociais e gestores vinculados a política de saúde e política de assistência social, a fim de reiterar a consonância com os textos oficiais; identificar a metodologia utilizada pelos assistentes sociais no trabalho com famílias, a fim de analisar as ações quanto à articulação entre as políticas da assistência social e da saúde e analisar os desafios enfrentados pelos assistentes sociais e gestores, a fim de contribuir para a efetivação da intersetorialidade entre a PS e a PNAS. Nas análises aqui expressas, será possível observar as reflexões resultantes de alguns desses objetivos. O universo investigado foi constituído a partir dos municípios dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, vinculados ao nível de habilitação à gestão da assistência social, ou seja: inicial, básica e plena. A habilitação para cada um dos níveis de gestão básica, plena e inicial, atendeu a critérios previstos na Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (2004) diferenciados para cada um dos níveis. Os trabalhadores vinculados ao Sistema Único de Saúde da Política de Saúde foram procedentes dos mesmos municípios selecionados pelos critérios de habilitação à gestão da assistência social, facilitando dessa forma a coleta de dados e garantindo a semelhança nas realidades locais e institucionais. A amostra incluiu profissionais que atuavam em municípios dos quatro diferentes portes (metrópole, município de grande, médio e pequeno porte) e dos dois tipos de habilitação (básica e plena) e foi sorteado um município de grande porte com habilitação plena, um município de grande porte com habilitação básica. O mesmo processo se repetiu nos municípios de médio e pequeno porte com os profissionais assistentes sociais dos municípios. No estado do Rio Grande do Sul, a amostra3 compreendeu seis municípios gaúchos sendo incluídos oito assistentes sociais vinculados a política de assistência social e sete assistentes sociais da política de saúde. O grupo focal do Rio Grande 3 O critério primeiro para seleção dos assistentes sociais foi estar vinculado ao SUAS/PNAS e ao SUS/PS, o interesse e a disponibilidade em participar. Para o grupo focal o critério foi ter função de assessoria técnica pelo órgão gestor estadual para implementação da PNAS ou da PS nos municípios. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler do Sul foi composto por cinco gestores da PAS e três da Política de Saúde, todos vinculados ao governo do estado do Rio Grande do Sul. A marcação do grupo focal e a disponibilização dos participantes foi um processo lento nos estados, pela dificuldade de conciliar a agenda dos gestores. No estado de Santa Catarina, a amostra compreendeu seis municípios catarinenses, sendo incluídos quatorze assistentes sociais vinculados à política de assistência e cinco assistentes sociais da política de saúde. A coleta envolveu entrevistas, grupo focal, pesquisa documental e bibliográfica com posterior análise dos dados. Foi um trabalho exaustivo que, devido à riqueza e à quantidade de material coletado, permite seguir trabalhando em produções de artigos e outros materiais para socialização. O grupo focal do estado de Santa Catarina foi composto por seis gestores-profissionais da PNAS e dez assessores da PS vinculados ao governo do estado. A execução da pesquisa foi um processo trabalhoso, pois envolveu dois estados, três universidades, duas secretarias estaduais e várias secretarias municipais da política de saúde e da política de assistência social. Houve rigor em relação a todos os requisitos e exigências éticas e legais que comportam pesquisa com seres humanos. Quanto à intersetorialidade entre as políticas sociais públicas, objeto desta pesquisa e deste artigo, sabe-se que ela historicamente vem sendo constituída por setores como, por exemplo: saúde, educação, habitação, meio ambiente, cultura, entre outras, e que esse modelo espelha a lógica positivista de gestão burocrática de caráter hierarquizado e centralizador garantindo a histórica hegemonia de cada esfera do governo. Afirmado desse jeito, pouco parece que pode ser feito em nome ou na busca da intersetorialidade. Mas, (sempre há um mas), acredita-se que “história não é destino”4, e que se processos são construídos, eles igualmente podem ser (des)construídos. Que processos outros são necessários para desconstruir? Que vontades outras? Que tipos de vontade? Vontade política? Vontade dos trabalhadores? Conhecimentos? Que tipo de conhecimento? Técnico? Acadêmico? Estratégias? Quais? Políticas? Enfim? 4 PUCRS. Referência a falas da profa. Maria Lucia Martinelli durante suas aulas no PPGSS/ 25 26 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos As indagações são muitas, as respostas poucas, mas o interesse é grande. Então, esse é nosso voyerismo intelectual e ético: desvendar a intersetorialidade entre as políticas públicas, desafios, dilemas, concepções etc. Iniciou-se uma caminhada, não se sabe onde e nem quando vai se chegar, mas sabe-se que o processo mais rico está no trilhar os caminhos das incertezas e das buscas por respostas que desconcertem o que já não responde à realidade. esboços de intersetorialidade: achando as relações das coisas Inicialmente destaca-se que, nas análises das falas dos participantes da pesquisa, observou-se que a intersetorialidade é, sem dúvida, objeto de interesse e curiosidade desses profissionais. Este era um dos objetivos específicos da pesquisa: conhecer a concepção de intersetorialidade dos participantes da pesquisa. Encontrou-se nas falas a expectativa de que a intersetorialidade possa tornar os cotidianos de trabalho mais produtivos e que os sentimentos de gratificação no trabalho possam ser ampliados à medida que ações intersetoriais tenham impactos mais efetivos. A intersetorialidade poderia, então, dar visibilidade ao produto concreto e positivo das ações dos trabalhadores. A expectativa não é ingênua, como expresso no fragmento a seguir, há nela o reconhecimento de que “a intersetorialidade é uma construção de muitas mãos, todos estamos envolvidos nessa caminhada, porém, trabalhar com outros setores, secretarias, políticas é algo muito novo para todos, mas que precisa ser construído” (AS02). Então, a intersetorialidade, conforme o depoimento, não está dada a priori, é um processo e não é solitário, não pode ser pensada, necessita de mãos e cabeças, e assim: A intersetorialidade tem que ser construída coletivamente. Para tanto, requer ser projetada de forma compartilhada, envolve decisão política e engajamento. Como um processo socialmente construído, requer o conhecimento da realidade, no sentido de ir além das demandas explicitadas em direção às reais necessidades da população, exigindo disposição para partilhar e trocar saberes, dúvidas e poderes (COSTA, 2010, p. 218-219). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Chama a atenção no depoimento da participante a afirmação “algo muito novo”. Para Andrade (2006), o desafio e a complexidade da operacionalização da intersetorialidade estão na “superação do modelo hegemônico, durante todo o Século XX, na constituição do Estado” (ANDRADE, 2006, p. 281), o que dá à intersetorialidade a condição de superar uma construção secular. E, com essa tarefa, ela passa a ser problematizada com ênfase somente na década de 1980, mais precisamente em 1986 na I Conferência Internacional de Promoção da Saúde, realizada no Canadá. Ou seja, há menos de 30 anos, iniciava uma discussão que pretendia romper estruturas seculares de pensar e de construir ações em políticas públicas. Alia-se a esses dados históricos o fato de que essa conferência era da área da saúde, o que demandava para a saúde uma ação coordenada entre todas as partes envolvidas: governo, setor da saúde e outros setores sociais e econômicos, organizações voluntárias e não governamentais, autoridades locais, indústria e mídia (BRASIL, 2002, p. 19). Questiona-se se ao demandar a um setor, no caso o setor saúde, a responsabilidade pela ação coordenada, centrou-se poder nesse setor, o que permite observar que, ainda que tenha existido uma preocupação com a intersetorialidade, a centralidade no setor da saúde reitera a setorialidade e não a intersetorialidade. Considera-se a importância da I Conferência Internacional de Promoção da Saúde para o reconhecimento do limite de cada setor e para a necessidade de ampliar a participação de outros setores. Destacase também que, desde sempre, esteve presente a complexidade da construção de ações intersetoriais. Para superar a histórica fragmentação das ações entre os setores, a intersetorialidade se configura a partir da mediação da articulação e das vinculações integradas entre esses espaços, em que: As práticas e saberes intersetoriais vão se construir como um novo espaço, com base nos problemas concretos e complexos que a realidade apresenta. Esse espaço será construído com a contribuição dos setores, que ali aportam seu acúmulo histórico e organizacional, teórico e metodológico, reconhecendo, no entanto, não ser esse acúmulo setorial suficiente para uma formulação no campo das políticas públicas com capacidade de resposta a complexidade (ANDRADE, 2006, p. 282). 27 28 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Nos depoimentos dos participantes, é possível observar “esboços” de ações intersetoriais e, ainda, que essas ações sejam pontuais. Sabe-se que esse processo histórico de fragmentação entre as políticas públicas não será rompido apenas pelo desejo ou por processos autoritários ou intempestivos. Uma análise semelhante é realizada por Costa em sua pesquisa de doutorado: “ainda que de forma incipiente, tem sido envidados esforços no sentido de planejar, pactuar e combinar ações e serviços através de conexões mais orgânicas” (COSTA, p. 2010, p. 223). Esses esboços não têm fôlego para mudar realidades, talvez possam ir instaurando processos reflexivos a respeito da esterilidade de práticas solitárias e sedimentadas e da riqueza da intersetorialidade. Nos fragmentos a seguir, observou-se esses esboços também nas falas dos participantes da pesquisa: “A gente tem todo diagnóstico do município, registro de atendimento. Abriu então, a possibilidade para ver a questão da gestão, diversos olhares multidisciplinares que têm dentro das equipes. Isso levou tempo para equipe compreender realmente, ir para ação” (AS01). “As gestantes combatem a dengue, o dia da AIDS, mutirões, diagnosticar os idosos acamados, o trabalho da Bolsa Família, que exige acompanhamento do peso, frequência escolar. Há uma interdisciplinaridade e a gente tem conseguido resolver as coisas melhor. A rede junto com diversas secretarias. Nós temos sim atividades e elas são extremamente importantes e dão respostas efetivas” (AS06). “O trabalho de uma forma ou de outra está sempre relacionado às demais políticas sociais, seja através de encaminhamentos, parcerias para reuniões socioeducativas e reuniões intersetoriais” (AS07). São experiências de discussão de problemas concretos em que representantes de diferentes setores aportam suas experiências e demandas e procuram construir soluções comuns. Há a participação na construção e no compartilhamento de ações. Há efetivamente o reconhecimento da importância e também o reconhecimento da precariedade ainda das ações intersetoriais, conforme verbalizado pela AS04: organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler “O ideal é que se conseguisse uma articulação efetiva. Quando eu falo da rede, eu falo da rede de atendimento que seria a educação, saúde, assistência social, habitação. Porque, às vezes, para que os encaminhamentos sejam efetivos, para que a gente possa contar com a rede, mesmo, efetiva e que dê conta, tem é que as políticas públicas trabalharem interligadas, a intersetorialidade das políticas públicas. E o que a gente vê é que a gente não consegue ainda fazer isso. Está melhor do que antes com a criação dos CREAS e dos CRAS, mas ainda não está funcionando bem a contento”. Em contrapartida, outros depoimentos retratam aspectos negativos e sombrios das vivências dos trabalhadores como expresso a seguir: “A gente trabalha nesse espaço aqui, que é essa salinha. A gente não tem nenhum telefone aqui. E eu vou te dizer que eu gostaria de ter, mas está difícil porque eu não sei o que fizeram com a linha daqui. Então essa também é uma dificuldade porque a gente tem que toda hora sair daqui” (AS 03). São sentimentos de abandono dos trabalhadores em seus espaços de trabalho, as condições precárias de trabalho e o aparente descaso dos gestores os quais deveriam estar articulados, pois a efetivação da intersetorialidade também se dá nessa articulação ponta e gestão: A intersetorialidade é uma estratégia política complexa, cujo resultado na gestão de um município é a superação da fragmentação das políticas nas várias áreas onde são executadas, partindo do princípio do diálogo entre os seus executores e gestores. Tem como desafio articular diferentes setores na resolução de problemas no cotidiano da gestão, tornando-se um mecanismo para a garantia do direito de acesso à saúde, já que esta é produção resultante de múltiplas políticas sociais de promoção de qualidade de vida (BREDOW; DRAVANZ, 2010, p. 233). Dessa forma é possível, então, que se superem as disputas pelas fatias de poder o que impõe “vontade e decisão políticas dos agentes públicos” 29 30 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos (COUTO, 2012, p. 61) para que se “transcenda o caráter específico de cada política” (p. 61) potencializando “as ações por elas desenvolvidas, ampliando a possibilidade de um atendimento menos compartimentado aos cidadãos que dela se utilizam” (p. 61). consenso discursivo e dissenso prático: a complexa faculdade de comparar É fundamental destacar que os estudos têm apontado que não há receitas prontas sobre o que seja intersetorialidade, como construí-la. Da mesma forma, ela não deve ser buscada apenas como um horizonte, como um norte ou um princípio, mas deve ser uma prática concreta, um desafio a ser superado, um problema a ser resolvido e, para isso, exige planejamento, estudo, comunicação, reflexão, enfim, não pode ser movido apenas por paixão. Dessa forma, a intersetorialidade deve promover a articulação entre distintos setores para contemplar as questões que se referem à complexidade da realidade da saúde, buscando garantir o bem maior que é “a saúde como direito humano e de cidadania, e de mobilizar-se na formulação de intervenções que a propiciem” (BRASIL, 2010, p. 14). A ênfase nessas reflexões propõe a intersetorialidade entre as políticas públicas especialmente políticas de saúde e de assistência social. A PS e a PNAS compõem o tripé da seguridade social juntamente com a Previdência Social e, por isso, reforçam a importância da intersetorialidade. Essa dimensão de articulação e integração entre elas vem sendo implantada e implementada gradativamente no Brasil. A concepção de intersetorialidade deve contemplar, então, a construção de interfaces e diálogos entre setores e instituições governamentais e não governamentais, as quais, em suas intenções/ações, devem visar ao enfrentamento de problemas sociais complexos e que superam a capacidade das políticas públicas enfrentarem de forma solitária. Supõe sujeitos que atuam em áreas que, partindo de suas especificidades e experiências particulares, possam criar propostas e estratégias conjuntas de intervenção pública para enfrentar problemas complexos impossíveis de serem equacionados de modo isolado (COUTO, 2012 p. 62). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Esse é o desafio encontrado na precariedade de cada política, frente à complexidade da realidade, mas também é o reconhecimento da potencialidade que cada política assume quando em parceria com outra, e/ou outras. Nesse enfrentamento da construção da intersetorialidade encontra-se, ainda, o desafio das disputas entre as categorias profissionais e o depoimento abaixo denúncia como ainda as áreas não dialogam mesmo quando a realidade impõe a aproximação das áreas: “O médico avalia somente através de exames, a nutrição investiga e indica uma mudança alimentar, o psiquiatra vai medicar buscando resolver o problema, o psicólogo vai aprofundar na vida pregressa, vai investigar traumas do passado [...]. É cada um no seu ‘quadrado’, cada profissional fica preso só na sua área e não se resolve situações de saúde dessa forma [...]. Sem desqualificar as outras profissões, a nossa abordagem vai investigar o contexto, a realidade vivida e aí detectamos o problema da saúde no social” (AS02). Esse “desenho” de condução das ações profissionais não são realidades dos dois estados incluídos na pesquisa, são realidades que compõe o universo brasileiro. Apesar da sua importância estratégica, conceber e agir intersetorialmente ainda não faz parte do conjunto das práticas em saúde. Na realidade, observa-se que a necessidade de ações e práticas de natureza intersetorial, mesmo constituindo demandas ao conjunto dos trabalhadores no contexto do SUS, tende a ser praticamente ignorada pela maioria dos profissionais de saúde. E, em geral, resulta em demandas ao serviço social (COSTA, 2010, p. 26). Os profissionais reproduzem em suas práticas o modelo das “casinhas paralelas” que Andrade utiliza (apud Campos, 2000 e 2003 e Andrade et al., 2004) em que cada setor funciona em “faixa própria”, não dialoga com outros setores, presume ser autossuficiente, basta a si mesmo. Porém, na mesma pesquisa encontram-se relatos de equipes que trabalham articu- 31 32 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos ladas, criando espaços de troca e de compartilhamento de problemas e busca de soluções em conjunto conforme os extratos a seguir: “Nós nos reunimos, a equipe se reúne, e junto, definimos quais são as ações, estratégias, métodos de estar desenvolvendo as ações que podem ser feitas não só por uma pessoa da equipe, e sim por todos que têm condições de estar desenvolvendo uma determinada atividade” (AS 08). “Na verdade hoje, pelo fato de trabalharmos, assistentes sociais e psicólogo, o trabalho é realizado sim, de forma conjunta. Muitas vezes em atendimentos conjuntos, principalmente em visita domiciliar, no caso de idoso, mulher, morador então de rua ou pessoa com deficiência. Então a equipe se reúne e são feitos atendimentos coletivos” (AS 08). “A rotina da equipe é bem tranquila, a gente discute muito junto a equipe toda. Nós discutimos, chegamos a um consenso, dificilmente a gente não chega a um acordo, então a equipe é bem tranquila, nós não temos dificuldade em estar trabalhando junto não” (AS 09). Observa-se a busca de consenso, o compartilhamento de situações mais graves, o atendimento em conjunto das situações que envolvem maior vulnerabilidade. E a expectativa de que os gestores se envolvam de forma mais efetiva no enfrentamento dessa fragmentação: “Está mudando, eu acho que essas coisas tendem a mudar. E isso tem que acontecer na política propriamente dita e não no profissional só, de maneira individual, personalizada porque ‘eu conheço aqui’. Isso tem que ser incentivado dentro das gestões de cada política e dos profissionais. Mas tem que ser uma necessidade, uma demanda do próprio gestor de fazer essa integração, de garantir. Porque tu só vai garantir essa união, esse viés entre todas elas se vier da gestão” (AS 01). Andrade (2006) chama a atenção para o fato que em relação à intersetorialidade: organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Há um consenso discursivo e um dissenso prático. Esse dissenso nasce da contradição entre a necessidade de integração de práticas e saberes requeridos pela complexidade da realidade e um aparato de Estado setorializado, onde se acumulam, com maior ou menor conflito poderes disciplinares e poderes advindos de composições político-partidários (ANDRADE, 2006, p. 280). O dissenso apontado alerta que gestores e executores5 encontram-se muitas vezes sitiados em um mesmo universo, porém, olhando para lados opostos, sem diálogo, com dilemas entre o planejamento e a execução, disputas entre a gerência e os executores, entre quem manda e quem faz. Impõe também o destaque que, tanto gestor como executor tem o compromisso com a garantia do direito da população à saúde, e, portanto devem evidenciar esforços no sentido de superação dos mecanismos que emperram o acesso e a manutenção desse direito, daí a importância de buscar caminhos de enfrentamento à fragmentação tanto das práticas profissionais quanto das políticas públicas. Apesar das inúmeras dificuldades afetas à condição de trabalhadores assalariados, péssimas condições de trabalho, baixos salários e intensificação do dispêndio da força de trabalho, os profissionais de saúde, particularmente os assistentes sociais, enquanto profissão, que mais tem absorvido as demandas de caráter intersetorial, têm condições e o dever de, no mínimo, debater internamente, provocar, fomentar, externar o debate, produzir conhecimentos e propostas para serem discutidas nas diversas instâncias e fóruns de gestão e controle social do sistema de seguridade, começando pelo próprio SUS (COSTA, 2010, p. 27-28). Para isso, os profissionais podem buscar amparo na legislação e nos textos tanto da Política de Saúde quanto da Política Nacional de Assistência Social, os quais preveem a intersetorialidade como um dos principais 5 Executor, neste texto, refere-se aos profissionais que estão realizando as ações diretas à população, aos que estão na “ponta”. 33 34 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos pressupostos junto a outros princípios como integralidade, universalidade e equidade na saúde ou territorialidade e descentralização na assistência social. Em documentos oficiais do Ministério do Desenvolvimento Social, Menicucci (2002 apud BRASIL, 2005) reitera a importância da intersetorialidade e da descentralização, destacando que compõe um novo paradigma para a gestão pública “uma vez que o objetivo visado é promover a inclusão social ou melhorar a qualidade de vida, resolvendo os problemas concretos que incidem sobre uma população em determinado território” (MENICUCCI, 2002 apud BRASIL, 2005, p. 45). No processo de construção de novas práticas e novos cenários, a intersetorialidade se coloca cada vez mais presente em ambas as políticas como possibilidade concreta para superação de “metas setoriais a partir de demandas ou necessidades genéricas” e para Identificar os problemas concretos, as potencialidades e as soluções, a partir de recortes territoriais que identifiquem conjuntos populacionais em situações similares, e intervir através das políticas públicas, com o objetivo de alcançar resultados integrados e promover impacto positivo nas condições de vida (BRASIL, 2005, p. 45). Nos documentos do Ministério da Saúde, encontra-se a clareza de que a intersetorialidade, ou melhor, a falta dela é responsável por iniquidades que poderiam ser superadas: [...] a equidade encontra-se, ainda, extremamente distante de sua efetivação. A maior causa é intersetorial, com a iniquidade e desigualdade de oferta de bens e serviços geradores de qualidade de vida, tais como: renda familiar, trabalho (urbano e rural), emprego, habitação, segurança, saneamento, segurança alimentar. Equidade na qualidade do ensino, lazer e outros. O resultado do esforço do SUS seria seguramente bem melhor, caso as políticas públicas referentes aos demais setores estivessem também sob a lógica dos direitos de cidadania como o SUS (BRASIL, 2010, p. 23-24). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler A intersetorialidade pressupõe atravessar os níveis de gestão nas três esferas, e o acionamento das capacidades de diálogo e articulação entre os vários setores presentes, seja em nível operacional nas ofertas das ações à população, seja nos níveis regional e central onde são planejadas as ações. Couto (2012) corrobora apontando para a dimensão do desenvolvimento de estratégia de gestão que viabilize estratégias intersetoriais, sendo o caminho necessário para enfrentar situações geradas por condições multicausais. Indubitavelmente, essa articulação dialogada em que diversos olhares, conhecimentos e experiências convergem para compreender e construir possibilidades de solução para um mesmo problema em uma realidade comum tem maior possibilidade de produzir resultados menos falhos a respeito de determinado objeto e de criar uma melhor resposta aos possíveis problemas encontrados. Porém, o esforço da intersetorialidade deve invadir espaços de poder e de conhecimento para criar novos paradigmas, rompendo relações de poder e saber já sedimentadas, que se mantêm através de práticas fragmentadas e que se perpetuam em processo de retroalimentação e não promovem mudanças. Esse esforço, portanto, deve ser compartilhado, e jamais um processo solitário, pois segundo Campos: Diversos setores envolvidos são tocados por saberes, linguagens e modos de fazer que não lhes são usuais, pois pertencem ou se localizam no núcleo da atividade de seus parceiros. A intersetorialidade implica a existência de algum grau de abertura em cada setor envolvido para dialogar, estabelecendo vínculos de corresponsabilidade e cogestão pela melhoria da qualidade de vida da população (CAMPOS; BARROS; CASTRO, 2004, p. 747). Para alcançar esse imperativo, as políticas de saúde e a de assistência social contam com a intervenção de múltiplos profissionais, os quais têm sua formação quanto às políticas públicas forjada nos bancos das universidades. Cientes dessa responsabilidade, as universidades 35 36 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos têm sido convocadas a participar da consolidação do SUS e na reorientação curricular incluindo disciplinas que capacitem seus futuros profissionais quanto a historicidade das políticas, conceitos, diretrizes e princípios na perspectiva de fomentar práticas intersetoriais, interdisciplinares e de atenção integral na saúde (BELLINI et al., 2012a, p. 9-10). Dessa forma, são vários e diversos os atores que compõe o mosaico da consolidação da política de saúde, através do Programa de Ensino pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde)6 e da política de assistência social através do CAPACITASUAS7, e, nesse mosaico, as universidades têm seu lugar e suas responsabilidades garantidos. Quanto à formação do assistente social, sujeito principal na pesquisa em tela, a orientação é de que se estimule um perfil investigativo, propositivo, com conhecimento consistente sobre políticas públicas, organização dos sistemas de saúde e assistência social, importância do controle social. Uma formação que tenha como estofo o projeto ético-político do Serviço Social brasileiro e os direitos sociais. considerações finais Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto de precário, com a agulha da imaginação. Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angustia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir! (ASSIS, 2006, p. 70). 6 Os programas Pró-Saúde e PET-Saúde têm como características fundamental articular universidade e serviços de saúde, possibilitando, dessa forma, atingir os objetivos preconizados pelos Ministérios da Saúde e da Educação caracterizando-se como ações desses dois ministérios na busca de um diálogo profícuo entre a formação e a pratica profissional (BELLINI et al., 2011, p. 29). 7 O Programa Nacional de Capacitação do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) é uma estratégia de apoiar os estados e o Distrito Federal na execução dos Planos Estaduais de Capacitação do SUAS, visando ao aprimoramento da gestão e à progressiva qualificação dos serviços e benefícios socioassistenciais (BRASIL/MDS, [2012?]) organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Vive-se um momento histórico em que a perda do vigor da esfera pública, a fragilização das políticas sociais, a descrença nas possibilidades de enfrentamento da realidade de precariedade cada vez maior exige que os profissionais estabeleçam outra relação profícua com o trabalho e, principalmente, com o sujeito, que é a razão de sua intervenção. Esse movimento de contranitência8 deve incluir a organização das demandas postas pela realidade, o investimento na formação e qualificação profissional, a criação de estratégias para capacitar gestores e trabalhadores das diferentes políticas e com eles planejar possibilidades de intervenção junto à realidade potencializando as políticas sociais e as ações intersetoriais, tendo como produto final a garantia dos direitos sociais. Nesse sentido, a participação dos gestores em todas as esferas dos governos é fundamental, assim como a dos profissionais executores, os quais devem cada vez mais reivindicar essa pauta e participar na criação de espaços de efetivação da intersetorialidade, tornando-a cada vez mais concreta, para além do “desejável debate acerca da intersetorialidade, pontuando que essa discussão é ainda uma proposta em construção e o consenso sobre sua relevância nas políticas sociais é um imperativo para forjar respostas que atendam às necessidades da população na sua integralidade” (BELLINI et al., 2012a, p. 7). Finalmente, não é mais possível seguir diletando sobre a intersetorialidade entre as políticas públicas no Brasil. É preciso considerar que no contexto de uma sociedade tão desigual como a brasileira, a construção da intersetorialidade constitui condição estratégica para produzir impactos positivos na melhoria dos níveis de saúde e para a consolidação do SUS como política de seguridade social (COSTA, 2010, p. 20). É necessário pensar e criar estratégias urgentes de concretude das ações intersetoriais. 8 1. Força repulsiva. 2. Esforço para rechaçar a violência exercida por outro corpo (PRIBERAM, 2014). 37 38 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Não é mais possível seguir assistindo ao desfile de iniquidades, de violação de direitos, esperando que a realidade mude sozinha e, nessa perspectiva, o profissional assistente social tem um papel fundamental na ruptura da fragmentação entre as políticas e na construção de ações intersetoriais, seja pelo seu compromisso ético, seja pela direção social de sua formação, se configura como: Portador de um inquestionável potencial que pode ser lapidado para uma contribuição mais ampla, à medida que, coletivamente, reúna forças, condições políticas e técnicas para construir informações sistematizadas, identificar e articular interlocutores, apresentar propostas para debate e no mínimo, colocá-las a serviço do controle social do Sistema de Seguridade, sobretudo articulando os movimentos ainda engajados na luta em prol do Projeto da Reforma Sanitária Brasileira e em defesa do sistema de seguridade universal, público, e de qualidade (COSTA, 2010, p. 232). Na obra de Machado de Assis, Pandora revela “levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens” (ASSIS, 2008 p. 68). A intersetorialidade, assim como a esperança, luta contra a descrença, contra a inércia, contra a perda do vigor, contra a acomodação e contra a ambição desmedida. Portanto, exige acreditar, ter vigor, conhecimento, competência e, finalmente, exige o reconhecimento da precariedade e da parceria de cada um que, somada, poderá enfrentar essa realidade que aí está. Enfim, acreditar sempre, pois, senão do contrário há “de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa...” (ASSIS, 2009, p. 72) referências ANDRADE, L. O. M. A saúde e o dilema da intersetorialidade. São Paulo: Hucitec, 2006. ASSIS, M. Memórias póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008. BELLINI, M. I. B.; CETOLIN, S. F.; VICCARI, E. M.; FALER, C. S.; EIDT, L. A Intersetorialidade como elo de articulação entre as Políticas de Saúde e de organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Assistência Social com enfoque na abordagem dos assistentes sociais com famílias em municípios do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Porto Alegre: PUCRS, 2013. ______; FALER, C. S.; JESUS, T. B.; FERREIRA, G. G.; SCHERER, P. T.; GUIMARÃES, C. F. Territórios de saber & intersetorialidade: algumas notas sobre políticas públicas no contexto brasileiro. In: CONVENCIÓN INTERNACIONAL DE SALUD, CUBA SALUD 2012, 2012a. Habana. Anais… Habana, 2012a. v. 1. p. 1-18. Disponível em: http://www.convencionsalud2012.sld.cu/index.php/convencionsalud/2012/index. Acesso em: 15 jun. 2013 ______; CETOLIN, S. F.; VICCARI, E. M.; BUMBEL, L. S. O desafio brasileiro na articulação entre as políticas públicas: a intersetorialidade. In: V CONGRESO IBEROAMERICANO DE INVESTIGACION EN SALUD, 2012b, Lisboa. Anais… Lisboa, 2012b. v. 1. p. 1. 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Esse projeto foi elaborado a partir dos resultados apresentados em projeto anterior1, o qual apontou a necessidade de aprofundar como se dá a inserção da família cuidadora nas políticas sociais, principalmente após a alta hospitalar de seu membro adoecido, quando essa família permanece fora de sua comunidade, acompanhando seu familiar em longo período de internação hospitalar. A investigação da inserção das famílias cuidadoras nas redes de saúde e assistência social reiterou a visibilidade necessária da realidade enfrentada por essas famílias frente ao diagnóstico de adoecimento crônico de um de seus membros, quando seus cotidianos são atropelados por uma realidade que impõe reorganização, planejamento financeiro etc. 1 “Família cuidadora: a (re)organização familiar frente ao adoecimento 2009/2010”, o qual teve como bolsistas de iniciação científica as acadêmicas Iara Moreira Martins e Jessica L. Bard. (Protocolo 09/2010/PPGSS). 42 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos A eleição das políticas de saúde e de assistência social se dá porque ambas têm na família sua centralidade e a ela dedicam seus princípios e suas ações. A Política Nacional de Assistência Social refere-se: à centralidade da família como núcleo social fundamental para a efetividade de todas as ações e serviços da política de assistência social. A família [...] é o conjunto de pessoas unidas por laços consanguíneos, afetivos e ou de solidariedade, cuja sobrevivência e reprodução social pressupõem obrigações recíprocas e o compartilhamento de renda e/ou dependência econômica (BRASIL, 2009, p. 12). Já a política de saúde resgata no debate político, juntamente com a sociedade brasileira, a importância da família – acrescente-se que esse resgate se dá no período após a ditadura militar, com suas sequelas e com a constatação cada vez maior da dramatização das expressões da questão social – organiza algumas provocações importantes quanto às ações em saúde se voltarem à família. E, então, inspirado no modelo cubano, o Ministério da Saúde, em 1993, reúne: Alguns coordenadores de experiências de atenção primária à saúde centradas nas dimensões comunidade e família para discutir um projeto nacional de reorientação dos serviços básicos de saúde, sendo então lançado o Programa Saúde da Família. Incorpora a inovação de deslocar o eixo de preocupação centrada na figura do médico que marcava a proposta da medicina familiar para uma preocupação com toda a equipe de saúde. Procura apoiar um modelo de atuação em nível local, buscando, no entanto, influenciar a totalidade do sistema de saúde (VASCONCELOS, 1999, p.17). Para efetividade do programa e atendimento das necessidades das famílias, preconizava-se a seguinte composição da equipe: Com uma equipe de saúde composta de um médico generalista, uma enfermeira, uma auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde que se responsabilizariam por uma área geográfica onde habitam 600 a 1.000 famílias. Os profissionais organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler devem residir no município e trabalhar em tempo integral. O agente comunitário de saúde deve residir na área sob sua responsabilidade (VASCONCELOS, 1999, p. 17-18). A condição da residência do agente comunitário de saúde na comunidade é para que este realmente tivesse uma proximidade com a realidade da comunidade e pudesse estabelecer um diálogo profícuo. A centralidade na família pelas políticas de saúde e assistência social e o entendimento de que processos de adoecimento crônico acarretam na família alterações nas relações sociais, econômicas, educacionais, laborais, afetivas são as molas propulsoras que sustentam e alimentam as investigações e este artigo. A constatação de que um membro familiar com uma doença crônica altera toda a rotina de uma família, muda os planos, impacta financeiramente, é uma constatação por si verdadeira e basta. Porém, essa constatação vai tomando e assumindo dimensões diversas e impactos que se diferenciam conforme o papel e a função que esse familiar tem na família. Explica-se: se o familiar adoentado é o mantenedor e ainda tem a função principal de sustentar a família que permanece sob sua dependência, essa família sofrerá uma mudança brusca e provavelmente terá que buscar outras fontes de sobrevivência financeira muito rapidamente. Porém, se o membro adoentado for uma criança, essa família não sofrerá o impacto financeiro da via de quem a mantém, contudo o custo emocional poderá ser maior, pois o sentimento de injustiça ou de impotência poderá ser irreparável, inexplicável. Acrescenta-se que o que se encontrou nas investigações realizadas foi um alto custo para aquele ou aqueles que assumem e/ou assumiram a responsabilidade pelo cuidado do familiar adoentado, pois esse cuidado implicou abdicar de alguns sonhos, desejos, estudos, emprego, vida social, amigos ou amores, se deparar com constantes internações, rotinas de exames e consultas, extensas jornadas em hospitais, corredores brancos e cheiros inusitados que se tornaram familiares, em outras palavras, com um cuidado permanente e não necessariamente desejado, escolhido, optado. E foram com esses sentimentos e nessas realidades que os assistentes sociais entrevistados tiveram que lidar e intervir. Como agir de forma a que esses sentimentos e essas realidades não provoquem mais rupturas, mais precariedades, mais vulnerabilidades? 43 44 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Pretende-se, neste artigo, contribuir para a reflexão e possível construção de práticas profissionais que acenem com possibilidades de proteção para essas famílias. Reconhecendo e compreendendo que estas também devem/necessitam ser cuidadas, protegidas. Aborda-se aqui aspectos que se referem às categorias cuidado e família, articulando com as políticas elencadas na pesquisa e nos estudos realizados. Este estudo é um recorte e compõe parte do acumulo da produção do GFASSS/NETSI/PPGSS/PUCRS. cuidado/cuidadora: novos sentidos Inicialmente, traduz-se o sentido do termo “cuidado” e, principalmente, distinguindo “cuidado” de concepções assistencialistas, tuteladoras e controladoras que se opõem ao exercício da autonomia e da liberdade, estas tão presentes e necessárias na defesa do projeto ético-político da profissão do assistente social. O Dicionário da Educação Profissional em Saúde informa que a origem do termo cuidado está no latim e que tem vários significados desde “imaginar”, “pensar”, “meditar”, até o mais próximo ao que se pretende neste estudo que é “tratar”, “aplicar a atenção”. Interessa o assinalado nesse dicionário que a “prática de cuidar teve seu início restrito ao espaço doméstico, privado, particular” e que na Grécia Antiga essa prática era exercida pelas famílias (PEREIRA et al., 2012). Esses dados reforçam o voyerismo intelectual quanto a adensar o olhar para essa realidade que vem sendo construída através dos séculos construindo o entendimento do termo “cuidado” como “um ‘modo de fazer na vida cotidiana’ que se caracteriza pela ‘atenção’, ‘responsabilidade’, ‘zelo’ e ‘desvelo’ ‘com pessoas e coisas’ em lugares e tempos distintos de sua realização” (PEREIRA et al., 2008). Conclui-se, então, que a família cuidadora é aquela que zela, que dá atenção e que tem/assume responsabilidades com e pelos seus, e essas ações se expressam na vida cotidiana, ou seja, em “uma dimensão da vida social singular-específica”, delimitando “tempos, espaços, interações”, ou seja, um modo de vida, cuja produção de “cuidado” se faz contextualizada, exercendo efeitos e repercussões na vida dos sujeitos, se transformando em “experiência humana” (PEREIRA et al., 2008). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Ter e assumir responsabilidades pode gerar sobrecarga, desgaste e enfrentamento solitário de tais situações. Os efeitos e as repercussões na vida da família cuidadora que possui um familiar com adoecimento crônico foram apontados nos resultados da pesquisa realizada em 2009/2010 em que as inúmeras perdas sofridas pela família cuidadora incluem: abandono dos estudos, afastamento do mercado de trabalho, agudizando ainda mais a precarização das relações de trabalho, exclusão social, isolamento [...] (BELLINI, 2011a, p. 14). Certamente não são apenas perdas, “na mesma pesquisa encontramos, porém, em menor número, famílias que se reorganizaram fortalecendo os vínculos e melhorando a qualidade das relações” (p. 14). A análise das falas das famílias dessa pesquisa clamou por novos estudos que deveriam incidir sobre a prevenção da desorganização e ruptura nos vínculos familiares e concluiu que “para prevenção dessa desorganização é fundamental que existam espaços para discussões acerca do tema” (p. 15). O tema, conforme sugerido pelos familiares nas entrevistas realizadas, referia-se a: cuidados, direitos, doença e consequências, benefícios, acessibilidade, enfim, a todas as questões que envolviam o adoecimento e a reorganização familiar. A análise das falas também apontou a importância de “mais publicações informais e esclarecedoras sobre as doenças, ou seja, o direito à informação como um direito fundamental e que pode promover o fortalecimento das famílias impedindo rupturas” (p. 15). Esses familiares clamavam por mais informação que pudessem entender, de forma clara, simples, o que acontecia com seus filhos, irmãos, mães, pais, e que, ao entenderem, pudessem ajudar. Para Serapioni (1999), os indicadores do direito à informação deveriam medir: i) a acessibilidade do paciente às informações úteis para resolver suas necessidades; ii) a presença de recepcionistas qualificados nos diferentes serviços de saúde; iii) existência ou não de folhetos informativos sobre as diferentes prestações fornecidas pelos diversos serviços, com localização, horários e número telefônico para reservar ou pedir informações; iv) a presença de informações acerca dos custos das principais prestações de serviço (SERAPIONI, 1999, p. 88). 45 46 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Portanto, o cuidado reivindicado pelas famílias entrevistadas se revestiu de sentido, de garantia de direitos expresso no direito a espaços de troca, socialização e no acesso à informação. A socialização da informação que, ao ser efetivada pelo assistente social, deverá superar o repasse reducionista de informações e, sim, deve ser realizada “na ótica do direito social, em que os sujeitos individuais e coletivos são reconhecidos em suas necessidades coletivas e demandas legítimas, considerando a realidade macrossocial de que eles são parte e expressão” (IAMAMOTO, 2005, p. 427). Nessa perspectiva, a Política Nacional de Assistência Social preconiza a matricialidade familiar, direcionando o foco da proteção às famílias, proteção que deverá contemplar desde condições materiais até condições espirituais, o que somente é possível através do atendimento das necessidades sociais básicas (COUTO; YAZBEK; RAICHELIS, 2011). Assim, a família para exercer sua função de proteção social necessita de amparo, proteção e, principalmente, de condições para tal. Assim como, não pode exercer solitariamente essa função, carece de respaldo e proteção do Estado o que justifica sua centralidade nas políticas públicas. Em consonância com a PNAS, essa pesquisa, ao investigar a inserção da família cuidadora na rede socioassistencial, propunha a possibilidade de superação da fragmentação na abordagem dessas famílias que demostravam esgotamento ao acompanharem seus familiares em longos períodos de internação hospitalar. A Política Nacional de Assistência Social refere-se a: cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos, tais como: famílias e indivíduos com perdas e fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade, ciclos de vida, desvantagem pessoal resultante de deficiências, exclusão pela pobreza e/ou, no acesso às demais políticas públicas, diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal, estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal ou social (BRASIL, 2004, p. 27). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Aqui, um recorte preciso de um trecho da PNAS destacando somente o que está em sintonia com os achados da pesquisa em tela e com as vulnerabilidades das famílias incluídas na pesquisa. Para a política de saúde, o “cuidado” também tem significado que não permite interpretações simplificadoras, pois preconiza uma ação integral que se sustenta na afirmação da “saúde como o direito de ser”, o que envolve diferentes sujeitos, diferentes instituições, diferentes práticas, diferentes tecnologias de saúde e diferentes decisões, que deverão ser acessadas com qualidade por esses sujeitos. A garantia dessa qualidade poderá contribuir positivamente para a produção da saúde e o contrário para a produção de doenças (PEREIRA et al., 2008). Dessa forma: o “cuidado em saúde” é uma ação integral fruto do “entrerrelações” de pessoas, ou seja, ação integral como efeitos e repercussões de interações positivas entre usuários, profissionais e instituições, que são traduzidas em atitudes, tais como: tratamento digno e respeitoso, com qualidade, acolhimento e vínculo. O cuidar em saúde é uma atitude interativa que inclui o envolvimento e o relacionamento entre as partes, compreendendo acolhimento como escuta do sujeito, respeito pelo seu sofrimento e história de vida (PEREIRA et al., 2008). Portanto, o cuidado diz respeito a atitudes, a formas de estabelecer relações entre seres, formas de se conduzir no dia a dia e, por sua intensidade na vida dos sujeitos, expressa o ser como um todo e não apenas como parte, pois exige o olhar para si e para fora de si, o que pressupõe a inclusão, a integração e o pertencimento. Na política de saúde, o cuidado ainda é associado à perspectiva da equidade como garantia de uma distribuição cada vez mais justa e digna dos cuidados de saúde, possibilitando mais acesso à saúde a quem tem menos possibilidade de acesso. No que se refere a saúde da população, sabe-se que, com o aumento das tecnologias e com o desenvolvimento de novas medicações, houve um crescimento significativo no que se refere ao aumento da expectativa 47 48 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos de vida. Além desse crescimento, a sociedade passou por um processo de industrialização e urbanização concomitante a diminuição da mortalidade infantil e a redução das taxas de natalidade, somam-se mudanças de hábitos e estilo de vida e a incorporação de fatores de risco comportamentais e ocupacionais. Em consonância com essas mudanças, há um significativo aumento nos casos de doenças crônicas. A doença crônica é compreendida por sua longa duração, por não ter cura (DUNCAN, 2004) e seu aparecimento pode derivar de fatores externos ou internos, dependendo do modo de vida do indivíduo ou de possíveis tendências do organismo. Assim, as doenças crônicas podem ter caráter hereditário (hemofilia, câncer de cólon de intestino) ou serem causadas por um estilo de vida prejudicial ao indivíduo em relação à alimentação, ao fumo, ao álcool, entre outros (câncer de laringe, cirrose, AIDS). Além disso, geralmente o tratamento necessita ser feito até o fim da vida, o que pode contribuir para uma má adesão. Além de ter um sentido para o doente, a doença tem um significado para a família, que precisa de uma reorganização para lidar com uma nova situação. Dessa forma, a doença é vivida de maneira coletiva pela família, pois quando um membro adoece toda a sua rede de relações se altera. O adoecimento de uma pessoa da família pode repercutir na vida afetiva, econômica e material, na ocupação do tempo físico e do espaço. Durante o período de hospitalização, muitas vezes a pessoa acometida de uma doença crônica vivencia uma série de experiências emocionais, como ansiedade e medo. Além disso, outras sensações como desamparo e fragilidade também se encontram presentes. Para as famílias com doentes crônicos, o cuidado toma um significado ainda mais amplo, pois um de seus membros necessitará também de cuidado especial no que se refere à sua saúde, para que, assim, não somente o doente, mas toda a família tenha uma qualidade de vida melhor após o diagnóstico. A família necessitará de uma nova organização em suas relações para que consiga cuidar do doente e de si, para que todos os seus membros sintam-se pertencentes e cuidados durante essa nova realidade familiar. Conforme Mioto (1997, p. 23) tendo o núcleo familiar “como tarefa primordial o cuidado e a proteção de seus membros”, ele precisa igualmente do cuidado da sociedade, pois “se encontra dialeticamente articulado com organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler a estrutura social na qual ele está inserido”. Se a família não recebe o apoio que atenda às suas necessidades, dificilmente conseguirá organizar-se sozinha, sendo uma “instituição social historicamente condicionada” e também encontrará dificuldades para assistir seu familiar adoecido. Em termos econômicos, o impacto da doença crônica na família (OMS, 2003, p. 22) inclui desde “despesas relacionadas aos serviços médicos, redução da atividade laboral e perda do emprego”, até “incapacidade em consequência da doença, redução do tempo e da qualidade de vida”. Além do paciente e da família, também a sociedade, os serviços de saúde (público e privado) sofrem perdas consideráveis. O cuidado mútuo no seio familiar após o diagnóstico poderá ser prejudicado, uma vez que se torna difícil não centralizar a atenção e o cuidado no doente e as famílias precisarão fortalecer seus vínculos para que todos sejam e sintam-se cuidados na mesma intensidade, já que o diagnóstico de uma patologia crônica fragiliza a todos. Torna-se, assim, necessária a atenção à família como um todo, sem fragmentá-la, ao priorizar o cuidado com o doente, negligenciando ou diminuindo a participação na família dos demais membros. A preocupação em construir conhecimento sobre o familiar cuidador está na mesma direção da preocupação com o trabalhador cuidador, pois estes dedicam “sua vida no cuidado do outro (pacientes, acompanhantes, família [...]), possuem, também, a necessidade de receber cuidados e atenção especiais” (SUBUTZKI; CANETE, 2004, p. 30). Frente a isso, é referido por esses profissionais que “as pessoas adotam práticas de autocuidado e devemos entender que estas práticas são expressões estruturadas que apoiam o indivíduo ou seu grupo a manter seu bem-estar. Essas práticas de autocuidado são desenvolvidas ao longo da vida” (DUTRA; SANTOS; WERLANG, 2004, p. 26). A patologia crônica torna-se quase um novo membro nessa família, visto que ela dará outra intensidade ao relacionamento familiar e, por isso, a família toda necessita de cuidados para que consiga enfrentar o tratamento de uma forma menos traumática. A família pode ser concebida como a tradução de todas as transformações que o mundo atual vem passando, como espaços também de fortalecimento e preparo para o enfrentamento das profundas mudanças postas pela nossa contemporaneidade em culturas globalizadas. O sujeito humano é arremessado para a incerteza das relações regidas pela lógica do mercado, que coloca 49 50 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos preço e quantifica as necessidades a serem atendidas e não respondem ao sentido da existência humana. Na gênese desta, está um ser que um dia, para constituir-se em humano, teve de preocupar-se com o outro. O cuidado está, então, no patamar da construção do ser humano, através dos gestos, da fala, do comportamento e da atenção consigo próprio e com os membros do núcleo básico, e, a partir deste e de todos os demais setores das diversas organizações sociais. Cuida-se como forma de defesa frente aos perigos e às situações de sofrimento físico, moral e psicológico, como forma de educar frente às diversidades de evolução, oferecendo e buscando um “suporte social”. O cuidado pressupõe uma relação de transversalidade, na qual todos realizam o papel de cuidadores e de cuidados. E quando há o adoecimento, conforme Campos (2005, p. 38), há também a exigência do “ato terapêutico que será o olhar. Descobrir aquele que vive (e que sofre) atrás da sua doença”. O sujeito em situação de adoecimento crônico necessita, além dos cuidados médicos específicos de sua doença, um olhar afetuoso, um apoio complementar para enfrentar a rotina de medicamentos, consultas, internações, exames e/ou cirurgias. Ele precisa ser ouvido em suas fragilidades, escutado na angústia frente à incerteza do prognóstico e do amanhã. De maneira idêntica, a família apresenta as mesmas necessidades, posto que é ela quem realiza esse amparo ao familiar adoecido. Esta necessita adquirir uma carga adicional de suporte para enfrentar o adoecimento do seu familiar, ao mesmo tempo em que tem de amparar o paciente, tem de tomar decisões práticas para organizar o curso agora alterado da rotina da família e da própria rotina como indivíduo. Em diversas situações de vulnerabilidade, retorna-se a essa necessidade de cuidados, sendo a família a principal referência, é a ela que se busca apoio, como estratégia frente a uma diversidade. Tanto quanto, me parece, a necessidade de ser cuidado, é precedida do desejo de ser, de existir, de sobreviver. Desde logo se coloca a “dialética”: dependo do outro, para ser eu mesmo. Porque desejo ser, desejo o outro. Preciso do outro, porque desejo ser o outro. A mola mestra das transformações que ocorrerão por diante é o desejo de cuidar-ser-cuidado, que tem no centro o ser, a vida, aquela vida, daquela pessoa (CAMPOS, 2005, p. 120). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler As famílias nas duas políticas contempladas neste estudo são inseridas como cidadãs que estão tendo direitos violados em processos perspectivados pela garantia de direitos. O que se observou no decorrer das investigações foi a fragilidade no laço que deveria ser garantidor desses direitos, ou seja, a fragilidade estava na política que deveria ser protetiva. família: do primata ao texto da lei O projeto de integração do proletariado e de suas famílias ao universo dos valores burgueses, domesticação literal que a imagem projetiva de “bárbaros” justifica, desdobra-se em múltiplas estratégias de disciplinarizaçao: mecanismos de controle e vigilância [...] (RAGO, 1997, p. 12). A família está presente na imaginação e nos desejos dos sujeitos de várias formas, porém, em sua maioria, esses desejos se submetem a um modelo ideal de família que foi criado já na sociedade moderna. Esse modelo sugere uma estrutura e uma funcionalidade, onde os papéis dos membros da família têm uma definição delimitada, rígida, estabelecendo relações de poder diferentes e desiguais. Importante destacar que, no Brasil, o modelo de família sofreu importante influência dos imigrantes, e que: devido ao processo de imigração, são percebidos nítidos movimentos com o intuito de cingir a família a um modelo tido como ideal. Os riscos trazidos pelos imigrantes, de doenças, dominação, degeneração da raça, fizeram com que a sociedade da época construísse um projeto de integração dos trabalhadores e de suas famílias (BELLINI, 2002, p. 27). Esses aspectos são a matéria-prima da pesquisadora Margareth Rago quando ao vasculhar o material dos anarcossindicalistas do início do século XX, encontrou as estratégias de disciplinarização dos trabalhadores nas fábricas e, ao mesmo tempo, de domesticação do espaço doméstico. Para Rago (apud BELLINI, 2002), esse projeto de 51 52 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos então, reeditava a família como “peça mestra” com a presença marcante e definidora de “um modelo imaginário de mulher, voltada para a intimidade do lar, e um cuidado especial com a infância, redirecionada para a escola ou para os institutos de assistência social que se criaram no país [...]” (BELLINI, 2002, p. 27). O Estado sempre norteou a sociedade através de mecanismos ideológicos que eram repassados através da família, cabia à família: instituir hábitos moralizados, costumes regrados, em contraposição às práticas populares promíscuas e anti-higiênicas observadas no interior da habitação operária, na lógica do poder significava revelar ao pobre o modelo de organização familiar a seguir (RAGO, 1997, p. 61). Desde as famílias primitivas, que se organizavam em tribos com a função única de sobrevivência e proteção contra as outras tribos, à família da sociedade medieval, cuja função era a proteção dos bens, até a família atual, cujas funções se multiplicaram incluindo relações afetivas, proteção e cuidado, muitas outras mudanças radicais aconteceram e há um consenso: a família mudou! Sim, a família mudou! No seu tamanho, estrutura e funções, alterou papéis, diminui o número de filhos, reconheceu a importância da infância, libertou a mulher da ditadura doméstica e talvez tenha abandonado seus membros à própria sorte. Para Áries (1975-1981)2, a família se alterou, voltando-se ao seu núcleo interno e rompendo com a extrema sociabilidade encontrada antes do século XIX, criando, para além da função econômica, a função afetiva, com destaque para a relação pais e filhos, que é fundamental na preparação para a sociabilidade com a comunidade. Nos estudos que adensaram o projeto de pesquisa em tela, encontrou-se que ainda a origem da família é fruto de pesquisas, de suposições, 2 Destaca-se que os estudos de Áries contemplaram a família europeia, principalmente a família burguesa e não a família latino-americana, porém reconhece-se a influência das famílias europeias trazidas na bagagem dos exploradores que colonizaram o Brasil. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler pois se entende que cada povo e cada época deram origem à sua forma de organização familiar, sendo assim, não é possível esperar um conceito unívoco, uma só interpretação e a decisão por uma origem determinada. Dentre os autores estudados, encontra-se Katlhleen Gough, a qual, ao escrever sobre a família destaca-a como uma fonte “constituída pela vida física e social dos primatas não humanos” (GOUGH, 1980, p. 47), e refere que “os humanos são os parentes próximos dos macacos antropoides” e que compartilha, enquanto primata, “características sem as quais a família não teria podido estabelecer-se” (p. 52-53). Essas características podem incluir o cuidado dos membros da família. A transmissão de rituais e de hábitos, identifica, porém, que outros animais cuidam de sua prole, ensinam hábitos e formas de sobreviver, desde ensinar a voar, caçar e se proteger. A diferença está na capacidade do ser humano de planejar, avaliar, exercer o raciocínio e o livre-arbítrio. Conforme as espécies dos primatas foram evoluindo até ao ser humano, a infância foi exigindo um cuidado mais prolongado. Nos primatas identificou-se que eles formavam bandos ou grupos, em que os cuidados eram expressos de forma peculiar como: catar parasitas, alisar o pelo (GOUGH, 1980). Ao macho cabia o papel de defesa e à fêmea, o cuidado prolongado das crias. Com certa preocupação quanto à “superioridade”, identifica-se que a família humana foi e é organizada através dos séculos de forma semelhante, pois ao homem era delegado o poder da vida/morte da prole e da companheira, situação essa que, a partir do século XIX foi ocultada pela privacidade familiar. O ser humano é o único ser vivo que segue cuidando dos seus descendentes por longos períodos e isso certamente é um diferencial na forma de constituir famílias. Assim, a família responderia às necessidades de cuidados prolongados dos seres humanos, tanto de seus filhos quanto de cada um de seus membros. De uma maneira geral, a família é a primeira instituição com que o ser humano conhece e estabelece contato, trata-se de uma “associação de pessoas que escolhe conviver por razões afetivas e assume um compromisso de cuidado mútuo” (SZYMANSKI, 2002, p. 9). A PNAS aborda a família em sua integralidade, contextualizando-a, e rompendo com concepções ultrapassadas e tendenciosas. 53 54 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Em seu contexto sociocultural e econômico, com composições distintas e dinâmicas próprias. Essa compreensão busca superar a concepção tradicional de família, o modelo padrão, a unidade homogênea idealizada e acompanhar a evolução do seu conceito, reconhecendo que existem arranjos distintos, em constante movimento, transformação (BRASIL, 2009, p. 12). Na família, o sujeito inicia o convívio com outras pessoas, inicia as experiências de negociação/recusa/divisão/compartilhamento. A família configura-se, portanto, como espaço de socialização entre os membros, o que prepara para a vida extrafamiliar, para a atuação social, política e ética, em outras palavras, trata-se portanto de um: [...] espaço privilegiado de socialização, de divisão, de responsabilidade, de proteção de seus membros, com garantia de sobrevivência [...] lugar inicial para o exercício da cidadania, da igualdade, do respeito e dos direitos humanos [...] (SILVA, 2002. p. 17 apud SZYMANSKI, 2002, p. 9). O reconhecimento e a importância da família aparecem no Artigo 226, da Constituição Federal do Brasil, que ressalta “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 1988), também preconizado no Artigo 16, da Declaração dos Direitos Humanos, o qual trata a família como núcleo natural e fundamental da sociedade, e com o direito à proteção da sociedade e do Estado (BRASIL, 2006). Hoje não há mais como definir um único modelo de família e/ou eleger o modelo considerado o correto, aquele a ser seguido, pois através da modificação da compreensão e do entendimento da sociedade do que seja família, é permitido e aceito pela maioria das pessoas outras configurações familiares além da tradicional família nuclear (pai, mãe e filhos). Sendo assim, pode-se afirmar que as famílias acompanharam a “evolução” da sociedade. Observa-se o aumento significativo de famílias monoparentais, em especial, lideradas por mulheres e o aumento de famílias recompostas a partir dos divórcios e separações. A família como a primeira instância de socialização na vida de um ser humano permite concepções e expectativas diversas e antagônicas: organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler é concebida como fonte de cuidado e de segurança e também como fonte de conflitos e violência. É amada e odiada com a mesma intensidade. Como reiterado no texto da PNAS, a família é “um espaço contraditório, marcado por tensões, conflitos, desigualdades e, até mesmo, violência” (BRASIL, 2009, p. 12), ou seja, nesse espaço vivenciam-se as dores e os amores do dia a dia do sujeito humano, somadas às vivências de precariedade e de insegurança social. Nas pesquisas e estudos realizados, observou-se que, frente ao adoecimento de um de seus membros, as famílias necessitam repensar sua organização para cuidar do doente, bem como manter seus vínculos e relações fortalecidas para melhor enfrentar essa adversidade, buscando recursos intra e extrafamiliar. Essa reorganização nem sempre ocorre de forma positiva ou com o fortalecimento de seus membros e da relação familiar, por vezes, a reorganização se expressa na ruptura de vínculos, na separação e abandono de membros. Mioto (1997, p. 114-130) refere à família como “instituição social historicamente condicionada”, tendo como tarefa principal “o cuidado e a proteção de seus membros”, não é necessariamente composta por laços de sangue, mas também por pessoas que se agrupam por questões de afinidade, afetividade solidária em uma convivência que aproxima, em razão da luta cotidiana pela sobrevivência. Sendo assim, a família é atravessada constantemente por inúmeras expressões de desigualdade social e tem de articular-se para realizar o enfrentamento de processos sociais que a fragilizam. Independentemente de fatores econômico-sociais, se vulnerabiliza perante situações comuns a todo ser humano, como a ocorrência da doença crônica, caracterizando uma expressão social que descortina a necessidade de cuidados não só para o doente crônico, mas para toda sua família. Se existe um sujeito doente, também sua família passa por um processo de fragilização, passando a expor suas dificuldades ao atender o doente, necessitando cuidados para si e para o grupo, garantindo acesso aos direitos sociais concernentes à situação de doença crônica vivenciada na família, bem como dos demais direitos (econômicos, políticos e civis), prevenindo desorganizações que podem agravar e minar as possibilidades de superação do adoecimento. 55 56 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos O cuidado é percebido historicamente como responsabilidade intrínseca da família e, em situações de adoecimento, provavelmente surgem sentimentos de culpabilização ou de impotência. A responsabilidade é cobrada individualmente, e o modelo de família nuclear não tem mais a referência da comunidade enquanto apoiador/cuidador, o que determina que a família se organize sozinha para dar conta do cuidado dos seus. Essa situação suscitou indagações nesta equipe de pesquisadores: quanto a cuidados específicos à determinada doença (ex.: sofrimento psíquico, problema renal crônico, problemas oncológicos), como as políticas públicas de saúde capacitam as famílias para dar suporte ao seu familiar adoecido? Como os profissionais vinculados a essas políticas são capacitados para o atendimento à família nas suas demandas e não apenas em relação às demandas do paciente? Experiências de pesquisadores e estudos com diferentes perspectivas apontam que, durante muito tempo, as intervenções na saúde da família tiveram como finalidade a normalização, o controle e a busca da manutenção de um modelo idealizado de como a família deveria ser. As diferentes categorias profissionais que atuam na área da saúde participam e sustentam modelos de família, responsabilizações e “culpabilizações” desta, seja pelos transtornos ou pelas conquistas de seus membros. Sabe-se que uma situação familiar de doença crônica acomete indistintamente todas as classes sociais, e, dependendo da necessidade de cuidados prolongados, pode colocar a família em risco social, cabendo igualmente à sociedade e ao Estado reconfigurar suas estratégias na saúde referentes ao atendimento a essas famílias. É através da família que se obtêm maior adesão do paciente ao tratamento. Tendo o ambiente familiar uma rotina de autocuidado como algo natural no surgimento de uma enfermidade, ela proporcionará o apoio familiar necessário, pois é a principal aliada na constituição de um processo de tratamento de saúde. Entretanto, lidar com uma doença que demanda cuidados prolongados requer a participação da sociedade, que, na figura do Estado, tem como dever garantir “acompanhamento e controle de doenças crônicas” (MARSIGLIA, 2007, p. 169) e ainda cuidados extensivos ao grupo familiar. É nesse quadro cotidiano de uma realidade difícil, que algumas famílias muitas vezes não se encontram preparadas para acompanhar seu familiar, rejeitam ou omitem-se perante seu familiar adoecido. Normalmente, um organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler membro fica encarregado do acompanhamento, o que gera uma sobrecarga emocional para esse sujeito. Independentemente de alterações e mudanças substantivas na composição e nos arranjos familiares, a família é um forte agente de proteção social de seus membros: idoso, doente crônico, dependentes, crianças, jovens, desempregados. Não podemos, porém, exaurir esse potencial protetivo sem lhe ofertar um forte apoio. Há aqui uma mão dupla a ser garantida. Esse raciocínio se aplica às demais políticas na relação com a família. Por exemplo, às políticas de saúde: a família é sujeito coletivo que opera na saúde de seus membros, mas não basta alçá-la à parceria. É preciso produzir saúde para e com a família (CARVALHO, 2007, p. 274). De acordo com o manual do Sistema Único de Assistência Social (BRASIL, 2005, p. 9) a família é “o espaço insubstituível de proteção e socialização primária, independentemente dos formatos, modelos e feições que ele tem assumido com as transformações econômicas, sociais e culturais contemporâneas”. Objetivar a percepção das formas que as famílias se agrupam e se organizam torna-se essencial para estabelecer ações de promoção à saúde frente ao adoecimento prolongado sendo este, portanto, o foco das políticas públicas, tanto no âmbito da educação enquanto prevenção, atendimento e controle, quanto no apoio às doenças transmissíveis, não transmissíveis e incapacitantes de natureza crônica. revisitando o espaço doméstico através da pesquisa e estabelecendo novas relações com a família Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica em mim é cada vez essencial e verdadeiro (Caio Fernando Abreu). O problema de pesquisa que conduziu e mobilizou os pesquisadores foi elaborado da seguinte forma: “como vêm se organizando os serviços prestados pela rede de saúde e/ou assistência social para a família cuidadora em situação de vulnerabilidade?” 57 58 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Interessava saber quais os caminhos percorridos pela família cuidadora após deixar o hospital, depois de passar longas jornadas cuidando de seu familiar. Para tentar responder, elaborou-se o seguinte objetivo geral norteador: “mapear os serviços prestados pela rede de saúde e de assistência social à família cuidadora em situação de vulnerabilidade social a fim de promover a intersetorialidade entre essas políticas, garantido a inserção dessas famílias”. E esse objetivo geral propôs vários objetivos específicos, são eles: “investigar como o serviço social em hospitais organiza-se para atender às famílias cuidadoras que acompanham seus familiares adoecidos em longas e repetidas internações; identificar estratégias, ações, programas e recursos de saúde e assistência social que possam contribuir no atendimento das famílias; propor a criação e/ou ampliação de programas e espaços de apoio qualificando os serviços prestados a essa família”. Pretendeu-se escutar os profissionais que trabalharam com essas famílias durante e após as internações, conhecer como eles articulam as redes e organizam o retorno dessas famílias às suas comunidades e às suas vidas. Não se tratavam de dados numéricos, e sim dados humanos. A pesquisa qualitativa enfatiza a singularidade de cada indivíduo, aprofunda o significado dos achados em relação a cada participante e, de acordo com Minayo (2003), tem sido utilizada com muito sucesso e cada vez mais frequente na saúde, pois pretende-se conhecer mais do que dados numéricos a respeito dos aspectos históricos, políticos, socioculturais e ideológico. Através da análise, o método qualitativo amplia o conhecimento e a compreensão sobre o significado dos eventos e sua repercussão sobre os sujeitos. A pesquisa foi realizada junto a três hospitais localizados no município de Porto Alegre e junto à rede socioassistencial também desse município. A coleta de dados se deu em duas etapas. A primeira consistiu em três entrevistas com profissionais da área da saúde, e, posteriormente, com assistentes sociais indicados pelos coordenadores e/ou chefia do serviço social dos hospitais participantes. Esses profissionais, no momento da entrevista, indicaram a rede de saúde/assistência acessada pelos familiares. A segunda etapa iniciou após a indicação da rede pelos profissionais da saúde, os mesmos foram os “faróis” que apontaram o caminho a seguir. As indicações se assemelham, os assistentes sociais entrevistados estão inseridos em Centros de Referência de Assistência Social (CRAS). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Realizou-se também observação sistemática que, na pesquisa qualitativa, se configura por “examinar” com todos os sentidos um evento, um grupo de pessoas, um indivíduo dentro de um contexto, com o objetivo de descrevê-lo (VÍCTORA; KNAUTH; HASSEN, 2000). Dessa forma, os dados coletados para análise também são originários da observação realizada. A importância desta técnica reside no fato de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própria realidade, transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na vida real (MINAYO, 2003, p. 59). Os cuidados éticos estiveram sempre presentes, sendo fonte de atenção pela equipe pesquisadora3. No total foram realizadas entrevistas semiestruturadas com questões abertas com: três profissionais assistentes sociais (saúde) e dois profissionais assistentes sociais (assistência social). Cabe aqui apontar a predominância do gênero feminino. Não há presença de assistentes sociais do gênero masculino, portanto o texto será escrito referindo-se às assistentes sociais no feminino. Havia a expectativa de entrevistar três profissionais da rede, porém entrevistou-se apenas dois, pois a profissional de um dos hospitais não indicou nenhum serviço na rede para qual encaminha os familiares atendidos. Assim, na coleta referente à política de assistência social, há menos um profissional, pois não foi indicado pela assistente social da política da saúde. Ainda referente ao perfil das profissionais entrevistadas, quanto ao tempo de vinculação destas em seus respectivos espaços de trabalho, cita-se como dado significativo, pois influencia nos achados acerca do encaminhamento ou não, da ocorrência ou não da intersetorialidade entre as políticas. Na política de saúde, o tempo de exercício profissional apresenta um intervalo bastante acentuado, sendo que dois profissionais 3 Aprovação do projeto de pesquisa pela Comissão Científica do Programa de PósGraduação em Serviço Social em 3 de novembro de 2010. Aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS em 13 de maio de 2011, sendo aprovado também no CEP de cada hospital participante da pesquisa. 59 60 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos têm até cinco anos e um profissional tem mais de 30 anos no exercício profissional. Na política de assistência social as duas profissionais têm seu vínculo de trabalho com menos de cinco anos. Significativamente o profissional com mais de 30 anos não apontou articulações na rede socioassistencial, justificando não utilizar a rede devido às características da população com que trabalha. População essa historicamente tida enquanto perigosa, não produtiva e até um risco para a sociedade. Trata-se dos usuários da política de saúde mental, marcados pelo estigma e institucionalização. As condições referidas expressam a realidade de usuários que residem há muito tempo em dada instituição, vários deles idosos, com poucos contatos familiares. Essa situação provoca novamente a reflexão de que as ações intersetoriais contribuem não tão somente para o atendimento integral dos sujeitos mas para a revitalização da ação profissional. A inexistência de ações intersetoriais reitera a omissão e/ou o pouco investimento nos direitos dessa população esquecida pela institucionalização. Para que ações intersetoriais ocorram, é necessária uma equipe de profissionais críticos e conscientes do alcance e da responsabilidade ética de sua intervenção e da importância da intersetorialidade, visto que esta permite um acompanhamento e um atendimento integral dessas famílias, enxergando-os enquanto um todo e não fragmentados (JUNQUEIRA, 2000). A intersetorialidade pode ser compreendida enquanto “articulação de saberes e experiências com vistas ao planejamento, para a realização e avaliação de políticas, programas e projetos, com o objetivo de alcançar resultados sinérgicos em situações complexas” (INOJOSA, 2001, p. 105). A defesa da intersetorialidade entre as políticas ampara-se na compreensão de que os processos que vulnerabilizam os sujeitos, nesse estudo os familiares de usuários com doença crônica, são decorrentes de um conjunto do contexto histórico, cultural, político, social e, principalmente, econômico da sociedade, estão diretamente relacionados ao modo de produção capitalista vigente e à lógica neoliberal, esta que aposta na redução do Estado nas respostas à questão social, agravando ainda mais a situação de vulnerabilidade enfrentada por esses sujeitos. Sendo assim, compostos por diferentes fatores, os processos de vulnerabilidade vivenciados pelas famílias requerem também respostas de organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler diferentes políticas, sendo a intersetorialidade “contrária à setorização e à especialização, propondo, por outro lado, integração, articulação dos saberes e dos serviços ou mesmo a formação de redes de parcerias entre os sujeitos coletivos no atendimento às demandas dos cidadãos” (TEIXEIRA; PEREIRA, 2013, p. 8). Essas afirmativas reiteram a importância de seguir adensando estudos sobre a intersetorialidade, como esta vem se configurando e seus resultados e, finalmente, confirmar que a intersetorialidade entre as políticas públicas, no seu produto final, garante direitos. A entrevista com os profissionais do serviço social possibilitou o reconhecimento de como se organizam para atender às famílias, das estratégias que utilizam e da rede de apoio acionada por elas. Buscou-se conhecer a articulação entre hospital e rede de apoio às famílias, bem como o levantamento dos serviços prestados. A partir da análise das falas e depoimentos colhidos pretende-se criar algumas perguntas, buscar algumas respostas e dar concretude às vozes silenciadas ou não escutadas. A família tanto quanto o doente crônico demanda apoio, cuidado, proteção, orientação, necessitando compartilhar também suas fragilidades, tanto de ordem prática quanto emocional. Só assim, poderá desempenhar seu papel de maneira adequada. Para que esta seja cuidada e atendida em suas necessidades além do familiar adoecido, é necessário por parte dos profissionais a percepção e a concepção da família como sujeito dos serviços de saúde. Rejeitando práticas que não contemplem todo o grupo familiar, no intento de evitar um retrocesso a práticas curativas e imediatistas, em busca de uma intervenção que incida na realidade dessa família em sua totalidade, de forma integral. Dialogando com a afirmação anterior, cabe destacar que na pesquisa em tela, em relação ao atendimento do serviço social, identificou-se que, em algumas instituições, este está centrado na internação ambulatorial e, a partir do ambulatório, deriva os usuários para outros setores de atendimento. A análise dos depoimentos das assistentes sociais permitiu observar que, na maioria das vezes, a família procura espontaneamente o serviço social, em busca de orientação e informações sobre outras formas de tratamento, sobre cuidados com a saúde e informações sobre direitos sociais. 61 62 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Os profissionais entrevistados destacaram que as famílias também apresentam problemas vinculados aos processos de adoecimento psíquico (depressão, transtornos mentais etc.), o que tem exigido cada vez mais a interferência desses profissionais que destacam as dificuldades da retaguarda da rede. Tais dificuldades expressam a fragilidade quanto a capacidade de atendimento da rede com destaque para o atendimento em saúde mental, como apontado em pesquisa realizada por outro profissional assistente social da área da saúde, “há um reconhecimento dos profissionais da área da necessidade de um atendimento integral, na busca de romper com a centralização do saber médico, com uma proposta de um modelo curativo individual” (PANOZZO; COUTO, 2012, p. 129). As assistentes sociais dos hospitais participantes da pesquisa também recebem as famílias que buscam atendimento espontaneamente ou por encaminhamento de outras áreas profissionais. Conhecem e avaliam a situação familiar a partir do ingresso do usuário. Alguns centram a atenção na família, mas sempre procurando responder a alguma necessidade do membro que tem a doença, ou seja, a centralidade é no membro adoentado e não na família, o foco é no indivíduo. Potencializa-se a lógica individual, focal, e não a lógica da abordagem da família, do contexto. Essa organização reitera que a família não é contemplada nas suas necessidades, sendo escutada prioritariamente no que diz respeito às demandas do familiar adoentado, isso pode gerar mais angustia, maior cisão nas relações familiares e maior sentimento de abandono. Deve ser garantido que tanto a família quanto o membro adoecido tenham escuta para suas demandas, que não sejam escutados apenas para resolver as necessidades do “outro” como se não tivessem as próprias, como se não existissem. O estudo sobre famílias vulneráveis, suas múltiplas configurações e formas de organização para enfrentar um cotidiano altamente adverso oferece pistas sobre a importância da abordagem necessária para que as políticas públicas sociais possam ser adequadamente endereçadas e beneficiar efetivamente a quem precisa delas (HADDAD, 2012, p. 9). Em contrapartida, a abordagem em grupo com famílias parece trazer respostas concretas e positivas. Entendendo o grupo como “momento deles organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler falarem de todas as dúvidas, que são dúvidas sobre o tratamento, das angústias, dos anseios, das conquistas, da cura, ou então de alguma terminalidade” (Assistente Social da Saúde II). Esse depoimento expressa a importância deste espaço de intervenção do assistente social, espaço de orientação e fortalecimento individual e coletivo. Os familiares legitimam e demandam a existência e permanência desses grupos, tanto que mesmo após o óbito do paciente “a família volta e conversa com a gente, diz como conseguiu se reorganizar, ou se não conseguiu por onde é que eu começo o que eu tenho que fazer” (Assistente Social da Saúde II). Ainda que se reconheça a realidade da precarização das condições de trabalho e dos limites das políticas públicas, evidencia-se a importância do “processo reflexivo, característico das ações socioeducativas, que se desenvolvem no percurso que o assistente social faz com os usuários para buscar respostas para suas necessidades, imediatas ou não” (MIOTO, 2009, p. 503). Na rede de saúde, quase todas as unidades realizam grupo com familiares, o que possibilita o fortalecimento dos vínculos. Os depoimentos dão conta de que algumas ações fomentam sentimentos de pertencimentos, que sobrevivem para além do óbito do familiar adoecido. A família cuidadora segue precisando de cuidado por um período, isso é um retorno do quanto a relação construída com o profissional surtiu um efeito construtivo, produtivo, de pertencimento, humano. Os assistentes sociais também assumem o papel de articuladores com as Unidades Básicas de Saúde (UBS) da rede, necessitando destas para trabalhar de forma intersetorial, o que muitas vezes é impossibilitado pela fragilidade das políticas, estando essa fragilidade expressa no depoimento das assistentes sociais. Alguns desses depoimentos são dramáticos no sentido do limite da política pública, “a política não oferece muitos recursos e a situação das famílias é de extrema vulnerabilidade”. Ainda, “aguarda-se 60 ou 90 dias para uma consulta médica”, e “deve ser investido mais em prevenção” (Assistente Social da Saúde III) Esse processo tem como estofo uma realidade dramática como verbalizado no depoimento da assistente social (Profissional da Política de Assistência Social I) “[...] é muita demanda de trabalho, a gente se afeta muito. Não que eu vá deixar de ser uma ótima profissional e me envolver 63 64 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos com o trabalho do usuário, com a dificuldade do usuário, mas trabalhamos muito com o sofrimento das pessoas”. Trata-se aqui do sofrimento do próprio trabalhador assistente social. Os depoimentos expressam a realidade das políticas públicas, a precarização do trabalho e a dificuldade de se trabalhar de forma intersetorial e interdisciplinar, o que garantiria uma abordagem mais integral às famílias. É importante lembrar que as instituições em que as profissionais entrevistadas estão inseridas contêm as expressões da questão social que se concretizam em diferentes formas como: dependência química, desnutrição, espera por transplantes de órgãos, HIV, violência de gênero, violência doméstica, sofrimento psíquico, exploração da infância (do corpo infantil), trabalho infantil, exclusão devido a diferenças culturais, orientação sexual quando esta se caracteriza como fonte de exclusão ou discriminação. Também expressam a precariedade do financiamento do Governo Federal nas políticas públicas, a precariedade de investimento nos trabalhadores das políticas, o estabelecimento de relações contratuais que criam disputas, sentimentos de exploração e de insegurança entre os trabalhadores e a fragilidade do protagonismo da população nas políticas públicas. considerações finais Sabe-se que o acompanhamento, a orientação social e o suporte de famílias devem incluir a compreensão de todos os membros familiares, possibilitando uma intervenção que previna o esfacelamento da família, as perdas sociais, afetivas, educacionais e laborais frequentes em situações de vulnerabilidade. Sabe-se também que a assistência em situações de vulnerabilidade é prestada por políticas públicas, que, historicamente, se apresentam de forma fragmentada e que seguem a lógica neoliberal, com o favorecimento do mercado e culpabilização da pobreza, expressa no sucateamento, principalmente da saúde pública e da assistência social, que muitas vezes são entendidas como políticas/serviços “pobres para pobres” (VASCONCELOS, 2003). Ao adentrar esse universo através da pesquisa criou-se a expectativa de que as reflexões, as análises realizadas e aqui apresentadas contribuam para a reflexão acerca da organização dos serviços de saúde e para a assistência integral das demandas dessas famílias. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler O adensamento sobre os documentos das políticas públicas revela que as atuais políticas, seja de saúde ou de assistência social, dão à família a centralidade na intervenção, porém essa centralidade sempre foi uma centralidade carregada de ambiguidades. O caminho para conquistar que a família seja tratada como sujeito de direitos, com ações intersetoriais, concretas e carregadas de densidade, é longo. As investigações realizadas possibilitaram concluir que a rede de atendimento às famílias, tanto da política de saúde como da política de assistência social, apresentam dados que se opõem e se reforçam. Estão expressos em potencialidades e lacunas que: • reconhecem a importância da família na condução e na participação em todas as decisões a serem tomadas em relação ao processo de saúde/doença; • apontam a criação de estratégias a partir das demandas das famílias, sendo estas referências para as famílias mesmo após a alta ou o óbito do membro doente; • motivam os trabalhadores para o enfrentamento dos limites encontrados no cotidiano de trabalho, ocasionados principalmente pela precariedade nas condições de trabalho; • destacam a falta de continuidade nos atendimentos com ênfase na existência de atendimentos imediatos e sem consequências concretas na vida das famílias; • denunciam a falta/fragilidade na articulação nos fluxos estabelecidos pelos trabalhadores no seu dia a dia com os serviços existentes, o que dificulta a inserção das famílias em serviços da rede socioassistencial; • apontam o foco na patologia, reforçando que, na maioria das vezes, a atenção está centrada no membro familiar adoecido e não na família como grupo envolvido; • denunciam a falta/escassez de recursos nas políticas públicas e precarização do trabalho; 65 66 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos • apontam a importância de ações intersetoriais que deem concretude às demandas das famílias. O grupo que realizou essa pesquisa está comprometido com a produção de conhecimento, formação do acadêmico do curso de Serviço Social e com a qualificação dos profissionais. Privilegiando as políticas de saúde, de assistência social e a família como fontes de investigação em uma perspectiva de ruptura com verdades preestabelecidas ou cerceamentos ideológicos, os quais transformam a experiência da construção de conhecimento em clausuras e não em liberdade, impedindo o processo formativo, criativo e de prática pedagógica. Dessa forma, buscou-se avaliar, com o maior cuidado ético possível, parte do material produzido a partir dos depoimentos, de forma a garantir que essas análises sirvam para amparar novos estudos e para descortinar possibilidades de intervenção que acolham e transformem a realidade de sofrimento dessas famílias. Amparados nessa última afirmativa, finaliza-se este artigo reiterando a importância de estudos e investigações que deem realmente centralidade à família como potência na participação de relações emancipatórias, plenas de respeito e dignidade, e enfatiza-se a importância fundamental das políticas públicas para acolher e proteger essas famílias em suas vulnerabilidades. Essa proteção só é possível e se expressa em uma rede articulada, continente e resolutiva. referências ÁRIES, P. História social da criança e da família. Rio de janeiro: LTC, 1981. BELLINI, M. I. B. Processos de perda e resistência nas famílias com doença crônica. In: SEVENTH INTERNATIONAL CONGRESS OF QUALITATIVE INQUIRY. Anais… Illinois University, Urbana-Champaing, p. 1-15, 2011a. ______. Um direito que respeite & uma justiça que cumpra. In: CETOLIN, S. F.; TRZCINSKI, C. Relações de gênero: afirmações e desafios nas áreas social e da saúde. Rio de Janeiro: Livre Expressão editora, 2011b, p. 116. ______. 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Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000. 69 71 AS POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E DO TRABALHO: UMA APROXIMAÇÃO NECESSÁRIA NO COMBATE À MISÉRIA EXTREMA NO BRASIL – A EXPERIÊNCIA DO RIO GRANDE DO SUL eunice maria viccari eliane de moura martins introduzindo a temática da implantação do pronatec/fic no rio grande do sul Esta é uma experiência assentada no método do diálogo entre vários atores sociais, em desenvolvimento no ano de 2012 e que envolve a mobilização, a pactuação1, o planejamento e a execução de 55 mil vagas em 133 cursos de qualificação profissional de Formação Inicial e Continuada (FIC) de diferentes áreas do comércio e da indústria de 119 municípios gaúchos. O alcance dessas metas visa a que a qualificação profissional e a inclusão no mercado de trabalho seja na condição de assalariamento ou através de formas alternativas de geração de trabalho e renda pela via associativa e solidária, do público que se encontra na condição de miséria extrema. O investimento na adoção do diálogo implica a possibilidade de oportunizar a apreensão das diferentes informações que compõem as conjunturas locais e regional do estado. Parte-se do pressuposto de que muitas são as 1 Pactuação é compreendida como um ajuste, uma convenção, um acordo, um tratado, ou seja, algo que é combinado com pessoas de diferentes espaços de trabalho que compreendem a realidade atual como integral e integrada a uma totalidade social. Logo a pactuação é realizada em uma mesa de diálogo requerendo uma metodologia que fomente, permita sistematizar e explicitar entre as partes, quais as convenções e regras a serem seguidas com vistas a alcançar os objetivos pretendidos. 72 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos informações existentes, porém dispersas em diferentes órgãos de governo, pulverizadas em centros de estudos e pesquisas, universidades, carecendo identificá-las na totalidade e apreendê-las de modo que as políticas sociais sejam ampliadas com ações integrais aos seus demandatários. Vale registrar que a questão da fragmentação de informações e de ações, na prática, reflete os efeitos das políticas neoliberais, as quais produziram um esvaziamento de recursos financeiros e humanos, de servidores e de quadros em condições de elaborar e planejar a economia articulada a uma visão de projeto de desenvolvimento de sociedade e de país. Essa conjuntura indica a carência de um projeto de sociedade centrado em alguns pilares, como sustentabilidade, solidariedade e democracia, sendo esta desenvolvida em várias direções, inclusive sobre as formas de comunicação. Koga (2002, p. 23), afirma que; A acessibilidade às informações sobre as cidades tem se tornado uma ferramenta cada vez mais necessária e essencial para o processo de gestão das políticas públicas. Sem informações da realidade não se elaboram diagnósticos efetivos, não se criam parâmetros avaliativos, não se constroem indicadores, não se traz à tona a complexidade das condições de vida dos moradores. No caso brasileiro, conhecer a cidade significa confrontar-se com a concretude da lógica excludente com que tem convivido a sociedade brasileira ao longo de sua história. Nesse alcance reside numa aproximação metodológica qualificada, como condição para apreender as necessidades de qualificação profissional dessa população, aliada aos rumos do desenvolvimento econômico do estado, de modo que o público na condição de pobreza extrema possa ser absorvido pelo mercado de trabalho, na forma de empregos e de salários menos precarizados. Para essa aproximação, o assessoramento do órgão gestor estadual do trabalho e da assistência social tem adotado o método do diálogo como recurso incondicional para que as equipes dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS2), que atuam sob responsabilidade dos municípios, se aproximem 2 As equipes das políticas municipais de assistência social, nesse processo, são protagonistas, dado ao público prioritário a ser qualificado. Além de envolverem-se na coordenação, realizam as pré-inscrições para os cursos. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler do contexto da realidade socioeconômica juntamente com outros atores atuantes da área do trabalho como: comissões municipais de emprego, movimentos sociais, sindicais, operadores dos SINEs (Sistema Nacional de Emprego), uma vez que estes são detentores de conhecimentos específicos do mundo do trabalho local e regional. Conhecimentos esses necessários de serem considerados para a identificação e a pactuação de cursos, a serem realizados pelos ofertantes3, de qualificação profissional de FIC em cada município. A afirmação e a busca exaustiva para o uso do diálogo estão baseadas na importância da palavra e da escuta, pois dialogar é antes de tudo ouvir. O contexto atual instituído na sociedade é o da velocidade em tempo real, da informação instantânea e em grande quantidade, estando a escuta com baixo status. Um programa dessa magnitude como o PRONATEC (Programa Nacional de Ensino Técnico e Emprego), que até o final de 2014 prevê qualificar 8 milhões de brasileiros, requer muitas mesas de diálogos. Esse programa manifesta ser uma espécie de ponte entre as forças do desenvolvimento econômico e as forças do desenvolvimento social, necessitando criar um ambiente onde a palavra seja compartilhada e escutada ainda que não na sua completude, pois se trata de um processo a ser perseguido. O diálogo como um movimento constante e voltado para apreender a totalidade da realidade social do público prioritário a ser qualificado vem intensificando a identificação dos limites que se colocam quanto à intersetorialidade entre as diferentes políticas sociais. Os limites ou os problemas desse processo começam a ganhar um contorno, um título mais definido sobre o qual todos terão de debruçar-se: por que a população extremamente pobre não esta matriculada e frequentando os cursos? As respostas a alguns desses limites começam a compor a mesa de diálogos como algo que desafia o coletivo, embora se saiba das responsabilidades dos órgãos competentes constatados. Um dos grandes limites até o momento está na baixa escolaridade do público alvo a ser qualificado, o que lhe impossibilita a acessar alguns cursos ou a acompanhar o desenvolvimento dos conteúdos dos mesmos. 3 As instituições autorizadas a realizar os cursos do PRONATEC são chamadas de unidades ofertantes. Os cursos são disponibilizados pelos Institutos Federais de Ciência e Tecnologia (IFs); pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). 73 74 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Essa leitura da realidade evidencia a premência na articulação com cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA), uma realidade ainda distante como estratégia a ser adotada para que esse público acesse e permaneça frequente nos cursos de qualificação profissional. Embora tenha que se perguntar qual EJA, em quais condições, qual metodologia? Também no campo da educação, a ainda inexistência de vagas para inclusão de crianças em escolas infantis vem impossibilitando que muitas mulheres busquem ou permaneçam frequentes nos cursos de qualificação profissional. Esses dois limites revelam rapidamente as condições de vida das mulheres pobres, chefes de família. Elas estão sendo chamadas e querem participar do mundo do trabalho, querem acessar espaços de aprendizagens e oportunidades de conseguir um emprego mais qualificado, porém sobre sua responsabilidade pesa a reprodução de parcelas da sociedade brasileira. Enquanto o Estado Brasileiro não assumir as tarefas de cuidados das crianças, dos doentes, dos idosos, uma parcela da população, familiares e vizinhanças estarão em casa dando conta desse cuidado. Sem deméritos, as tarefas inerentes aos cuidados e à reprodução, porém também sem cobranças de que essa população não participa dos cursos porque “não quer”. A temática da saúde também revela uma face do mercado de trabalho em que opera um processo de seleção pelas condições estéticas dos sujeitos. Dentição e obesidade são problemas associados a um tipo de indisciplina, que deixa marcas no corpo das pessoas. Além da saúde bucal ter uma oferta mínima na rede pública, está aliada ao padrão de alimentação rápida, fácil e prática, o qual são elementos exigidos pela vida moderna, mas que são produtores de problemas de saúde graves como desnutrição e obesidade concomitantes. São expressivos também os limites encontrados por esse público em obter atenção odontológica como: reposição de dentes, ou mesmo o cuidado com os estes. Esse problema se manifesta como reincidente empecilho para que os interessados nos cursos, após a pré-inscrição realizada nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), busquem as escolas de formação (SENAI, SENAC e IFs) para efetivação de suas matrículas e/ou permaneçam frequentes nas aulas. Situação que explicita a necessidade da presença de ações de atenção em saúde como efetivação do conceito de saúde ampliada, previsto no Sistema Único de Saúde (SUS). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Esses são alguns dados da realidade da execução das políticas sociais que se manifestam no cotidiano dos serviços que integram entre si as redes da assistência social, da saúde, do trabalho e da educação e, igualmente, dos serviços e das ações de cada uma delas. o desafio da intersetorialidade Para se contrapor à setorialidade de cada uma dessas políticas sociais, o que remete a considerar suas incompletudes, o conceito de intersetorialidade se coloca como possibilidade de alcançar ações que levem em conta a totalidade da vida dos sujeitos. Sobre esse conceito, Miotto e Schutz (2011, p. 2) mencionam que [...] a intersetorialidade é evocada por contrapor-se ao aparato setorial que molda as políticas sociais. Com este direcionamento, a intersetorialidade envolve ações integradas de distintos setores, no atendimento da população, cujas necessidades são pensadas a partir de sua realidade concreta, de modo a colocar em pauta as peculiaridades de suas condições de vida. Intersetorialidade pode ser denominada como uma direção para uma prática gerencial, que repercute na execução articulada entre as diversas políticas sociais setoriais, transcendendo o caráter específico inerente a cada uma. Entretanto, não significa que o caráter substantivo e que origina seus objetivos sejam relegados. Antes ele se caracteriza pelo reforço de ações conjuntas em favor da resolução de situações que afetam socialmente indivíduos ou populações. Cabe dizer que, para um grupo intersetorial assumir o reforço em ações conjuntas, esse grupo deve ter uma base comum de análise e reflexão, deve ter chegado pela sua caminhada a um determinado fator comum, ainda que com diferenças e reservas. Sem esse pano de fundo, por mais que tomem decisões de operacionalizar ações, sem o envolvimento completo dos indivíduos envolvidos, a intersetorialidade pode ser uma questão pró-forma. Nesse sentido, atuar intersetorialmente contém potência para enfrentar os desafios que se colocam às políticas sociais, dada a complexidade e abrangência que lhe são inerentes. Mais do que uma prática de gerencia- 75 76 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos mento e de execução, a intersetorialidade também se caracteriza como uma estratégia que possibilita ampliar a abrangência que através de uma única política seria insuficiente para enfrentar as imensas demandas que se apresentam à população (VIANNA, 2005). Assim, a intersetorialidade também visa contribuir para a afirmação de que uma política social isolada não responde, na totalidade, pelo conjunto de demandas que lhes são atribuídas setorialmente, se considerada a perspectiva de um atendimento integral aos seus demandatários. Para essa articulação intersetorial, há que se identificar e se tencionar com estratégias assentadas na perspectiva de que as necessidades sociais que se manifestam no sujeito que busca um curso de formação profissional de iniciação continuada diz respeito a um conjunto de determinantes sociais, econômicos, culturais e políticos. Com essa premissa, tornar eficaz o ingresso, a permanência e a conclusão de um aluno em curso de qualificação profissional, bem como investir para sua inserção no mercado de trabalho é imprescindível. Para tanto, o diálogo entre os diferentes atores sociais deve ser uma prática que torne a ação integral, ou seja, leve em conta as diferentes dimensões que as necessidades sociais expressam. A ação integral também tem sido frequentemente associada, principalmente pelos usuários, ao tratamento digno, respeitoso e de qualidade, ao acolhimento e ao vínculo. Mattos (2003, p. 61) afirma: Quer tomemos a integralidade como princípio orientador das práticas, quer como princípio orientador da organização do trabalho, quer da organização das políticas, integralidade implica uma recusa ao reducionismo, uma recusa à objetivação dos sujeitos e talvez uma afirmação da abertura para o diálogo. É esse diálogo que interfaceia as estruturas setorializadas que tendem a tratar o cidadão e seus problemas de forma fragmentada, com serviços executados isoladamente, embora as ações sejam realizadas para os mesmos trabalhadores e ocorra no mesmo espaço geopolítico e institucional onde esses residem. É uma espécie de esforço, desacomodante, inquietante, pois exige dos profissionais que atuam na execução da política uma postura aberta, ainda que não possua as respostas, coloca-se como parte. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Ao lado desses limites da ordem das políticas públicas, se agrega ainda a permanência da concepção de um tipo de trabalhador clássico que permanece enquanto paradigma em detrimento da concepção de qual seja o trabalhador hoje disponível e desejoso de ingresso no mercado de trabalho nacional. O trabalhador clássico, disciplinado, auto-organizado, autocontrolado, cuja educação dos sentidos desde criança foi orientada para o trabalho, ainda que em condições penosas, não é mais o que essa sociedade moderna produz. Essa sociedade, está educando os sentidos para outra direção, segue afirmando de diferentes maneiras que o trabalho braçal é inferior, o que, logo, é desmotivador, especialmente para a juventude, que valoriza formas, dá status a um padrão de vida glamorizado, na forma de ostentação de tecnologias e marcas, não valorizando e nem deixando claras as formas de como obtê-las. O conjunto desses elementos requer uma apropriação da realidade social, econômica e cultural da vida social e do perfil do trabalhador aliado a suas necessidades, compatibilizando com possibilidades hoje colocadas no âmbito do desenvolvimento econômico do país e dos estados subnacionais. a interlocução pelo órgão gestor estadual Para inaugurar esse processo e assessorar os municípios a partir do método assentado no diálogo, a equipe da STDS (Secretaria do Trabalho e do Desenvolvimento Social) investiu, a partir do final do ano de 2011, na realização de várias reuniões com diferentes interlocutores. Inicialmente, com os representantes dos ofertantes de cursos juntamente com os representantes dos municípios que estavam se apropriando do PRONATEC/FIC. Nas primeiras reuniões, foi necessário ajudar os gestores locais em cada um dos procedimentos que, pouco a pouco, iam sendo decifrados, tanto no que dizia respeito à estrutura do programa, à adesão dos municípios a este, à definição de interlocutor para operar o SISTEC (Sistema Nacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica), às estratégias para alcançar o público prioritário conforme o Plano Brasil Sem Miséria, aliado à compreensão dos principais conceitos como: ofertante, demandante, pactuação, entre outros, que não faziam parte do cotidiano dos processos de trabalho dessas equipes até então. 77 78 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Ao lado dessas reuniões, também ocorreram encontros com: • Equipes da STDS lotadas no interior do estado que representam a secretaria, atuam ou assessoram os município e/ou regiões (assessoras do departamento de assistência social, delegados regionais da STDS, responsáveis pelas agências dos SINES e agentes de desenvolvimento social que integram o quadro de servidores da Fundação Gaúcha do Trabalho – vinculada à STDS). • Representantes de diferentes secretarias de estado que respondem por políticas para mulheres, juventude, justiça e direitos humanos, segurança pública, desenvolvimento econômico, economia solidária e educação sempre em diálogo com programas prioritários de governo, como Pacto Gaúcho pela Educação, RS Mais Igual, de modo a garantir a transversalidade de temas com vistas a explicitar e a amalgamar a intersetorialidade no âmbito do governo do estado gaúcho. aproximações com os resultados Para iniciar a identificação do andamento do processo, associando aos resultados quantitativos de inscritos, matriculados e concluintes dos cursos pactuados em cada um dos municípios, foram realizadas reuniões com os atores sociais locais que atuaram nas pactuações, utilizando a técnica de grupo focal (grupos de discussões) e uma pesquisa on-line para que cada interlocutor municipal se manifestasse. As reuniões foram acompanhadas de um roteiro previamente estruturado, de modo que permitisse coletar o registro das possibilidades e dos limites que se colocavam ao implantar o PRONATEC/FIC nos municípios. As reuniões ocorreram em número de cinco com municípios de grande porte populacional e com a participação de técnicos que atuam nos CRAS, SINES, comissões municipais de emprego e representantes de escolas ofertantes. Ao lado desse processo dialogado e investigativo, que ocorreu através de reuniões, foi realizada uma pesquisa de caráter exploratório através organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler de correio eletrônico, em que os interlocutores 4 da assistência social responderam questões sobre o processo de articulação da pactuação, planejamento da mobilização da população que se encontra na condição de pobreza extrema para a divulgação e a informação dos cursos e dos respectivos locais. 1. Quais os pontos positivos da pactuação dos cursos PRONATEC/ FIC em seu município? 2. Quais os problemas identificados no processo de pactuação dos cursos PRONATEC/FIC em seu município? 3. Em sua opinião, quais os motivos da existência dos problemas mencionados? 4. Como foi o exercício de planejamento e a execução da mobilização do público do CADASTRO ÚNICO em seu município? 5. Quais suas sugestões para melhorar o andamento do PRONATEC/ FIC no RS? 6. A execução dos cursos PRONATEC/FIC em seu município foi compatível com possibilidades de inclusão produtiva dos participantes? 7. Houve evasão de participantes nos cursos PRONATEC/FIC? Quais as principais razões? 8. Quais suas principais sugestões relativas ao SISTEC para as próximas etapas? 9. Sugestões sobre demandas não atendidas pelo PRONATEC/ FIC com necessidade de novas proposições (público, tipos de cursos, metodologias entre outros). 4 Interlocutor é a designação do integrante da equipe da política municipal de assistência social responsável por operacionalizar o Sistema Nacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica (SISTEC), por onde inicia o processo de realização de pré-inscrição nos cursos, para posterior efetivação das matrículas junto às escolas de ofertantes de cursos. 79 80 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos As informações colhidas, tanto nos grupos de discussão, quanto a partir das respostas decorrentes da pesquisa realizada, foram agrupadas por semelhanças e alocadas em dois grandes grupos: pontos positivos e desafios que se colocam para que haja um melhor e maior investimento na mobilização do público que se encontra na condição de pobreza extrema. Os resultados desses dois procedimentos investigativos, sobre o processo em andamento, sinalizam um conjunto de elementos do âmbito da formação permanente para as equipes locais e das necessidades de romper com o paradigma, ainda vigente, de que as políticas sociais setoriais respondem pela completude das necessidades da população. Identificou-se pontos positivos e desafios qualitativos que se colocam para as próximas etapas de realização do PRONATEC/FIC no Rio Grande do Sul. Entre os pontos positivos estão: • articulação entre os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializada da Assistência Social (CREAS) com as Comissões Municipais de Emprego e Renda (CME) e as escolas ofertantes dos cursos; • discussão das demandas de cursos entre os vários atores de cada município gaúcho; • inicialização de um processo educativo no âmbito da assistência social e trabalho vinculado ao previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS); • início de debates sobre educação tecnológica, capacitação, qualificação e profissionalização articulados com as realidades locais e regionais; • ideia de mapa de oportunidade, que gera uma certa clareza sobre a necessidade de qualificação profissional; • credibilidade das escolas ofertantes de cursos contratadas pelo Ministério de Educação (MEC); • seriedade e democratização na realização de cursos; • qualificação profissional pública e descentralizada; organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler • oferta ampliada de oportunidades de cursos e locais de realização da qualificação profissional para o público na condição de pobreza extrema; • famílias de baixa renda, desempregados e população em vulnerabilidade social, associadas a um processo de emancipação com inclusão no mercado de trabalho. Entre os pontos de desafios estão as necessidades de: • superação da carência de informações sobre o PRONATEC entre todos os atores envolvidos; • ampliação dos cursos PRONATEC-FIC para a maioria de municípios de pequeno porte; • melhoria da adequação de cursos com a oferta de empregos em cada município; • qualificação da proposta de mapa de oportunidades; • planejamento, divulgação, sensibilização, mobilização e realização da busca ativa com ampliação de equipes; • melhor infraestrutura física, de equipamentos informatizados e da capacidade de rede web nos municípios; • investimento na articulação com outras políticas de modo a superar a baixa escolaridade dos candidatos, incompatível com os critérios estabelecidos em alguns cursos; • melhorias na operacionalidade do repasse do valor bolsa-formação de alguns ofertantes; • necessidade de ofertar cursos adequados ao público que encontra-se na condição de miséria extrema no turno da noite; • maior clareza da mudança de paradigmas das novas formas de gestão e do novo perfil do trabalhador exigido pelo mercado; • acesso ao SISTEC que permita o monitoramento das informações quantitativas desde a pré-inscrição até a conclusão dos cursos; • qualificação sobre o conjunto de funções do SISTEC; 81 82 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos • desenvolvimento do exercício de identificação, análise e compreensão do mapa de oportunidades (encontro entre desenvolvimento econômico com inclusão social); • necessidade de assessoria e capacitações continuadas aos municípios pelo estado; • leituras investigativas mais aprofundadas acerca das condições sociais e históricas do público-alvo articulado ao desenvolvimento econômico; • mobilização e sensibilização dos usuários, com metodologias específicas de educação popular; • melhor apreensão das diferenças culturais de cada comunidade, não tratadas de modo particular; • estimulação da participação com encaminhamentos concretos para a inclusão produtiva (cadeias produtivas locais e/ou regionais); • qualificação para a inserção no mercado formal ou para o empreendedorismo ou a autogestão; • reunião de pré-inscritos para conhecerem as dependências dos locais onde os cursos serão realizados; • realização de oficinas para esclarecer melhor os interessados sobre quais os conteúdos que abrangem cada curso; • melhor conhecimento dos interlocutores municipais sobre as regras dos ofertantes de cursos, a fim de melhor informar os interessados. Atualmente seguem as pactuações locais para cursos que serão realizados no ano de 2013, tendo como referência as sinalizações dessas manifestações colhidas através dos processos de escuta investigativa realizadas pela equipe do Departamento do Trabalho da STDS. O momento ainda não é de conclusões. Em termos de calendário, esse processo tem menos de um ano e os passos vividos nessa experiência, no Rio Grande do Sul, mostra que o enfrentamento aos desafios citados ainda estão por serem construídos. A percepção é a de que é organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler um processo com potencialidade de avançar em função do reconhecimento franco da necessidade de atender aos interesses e motivações de todas as partes envolvidas. Esse reconhecimento alivia as tensões em termos de jogos de interesses. Está colocada na mesa a diversidade de motivos e motivações em torno do tema da qualificação profissional da mão de obra no Brasil e no Rio Grande do Sul. A síntese da conjuntura é o desenvolvimento econômico com a inclusão social. Essa é a síntese do pano de fundo da mesa de diálogo, porém essa síntese é percebida de modos diferentes dependendo de quem e de onde se olha. A engenharia está em criar um ambiente de mediações, um ambiente de cooperação, um ambiente em que as condições objetivas e subjetivas da vida da população em extrema pobreza possam ser ouvidas e sentidas. Para que, com isso, possa ter condições de ser compreendido e para que, finalmente, em um ambiente proativo, sejam criadas as condições para que algumas dívidas históricas com parcelas do povo brasileiro possam começar a ser pagas. referências KOGA, D. Cidade entre territórios de vida e territórios vividos. Revista Serviço Social e Sociedade, n. 72, São Paulo, 2002, p. 23 a 52. MATTOS, R. A. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser definidos. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Orgs.) Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: UERJ/IMS; ABRASCO, 2003, p. 45-59. MIOTO R. C. T.; SCHÜTZ, F. Intersetorialidade na política social: reflexões a partir do exercício profissional dos assistentes sociais. Pelotas: DIPROSUL, 2011. VIANA, A. L. D’A.; LEVCOVITZ, E. Proteção Social: Introduzindo o debate. In: VIANA, A. L. D’A.; ELIAS, P. E. M.; IBAÑEZ, N. (Orgs.) Proteção social dilemas e desafios. São Paulo: Ucitec, 2005. 83 85 GESTÃO MUNICIPAL NO ACOMPANHAMENTO DAS CONDICIONALIDADES DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA1 sirlei favero cetolin clarete trzcinski N o decorrer da história, muitas iniciativas foram sendo tomadas no que se refere à igualdade de direitos. Em países da América Latina, as iniciativas se acentuaram no final do século XX. As políticas sociais foram sendo elaboradas com a finalidade de garantir direitos aos sujeitos e às famílias mais vulneráveis, diminuindo as desigualdades sociais. Conforme Thomé (2012), as políticas de bem-estar social eram relativas às provisões de bens (pensões, seguro-desemprego) ou de serviços (cobertura de saúde, de educação), entretanto direcionada para trabalhadores que atuavam no mercado formal de trabalho. Dessa forma, conforme Rodrigues, Gonçalves e Teixeira (2011), o sistema de proteção social brasileiro foi organizado com base no conceito de seguro, no qual cada benefício decorre de contribuição prévia do cidadão. A partir de 1988, adota-se a política de proteção de base não contributiva, consubstanciada na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), de 1993. Nos anos 1990, assiste-se à descentralização das políticas sociais. Um dos pilares da proteção social no Brasil é o Programa Bolsa Família, programa de garantia de renda para famílias consideradas pobres ou em Este artigo é parte dos resultados de uma pesquisa intitulada: Estratégias da Gestão Municipal no Acompanhamento de Condicionalidades do Programa Bolsa Família no Município de São Miguel do Oeste/SC. Vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Estado, Políticas e Práticas Sociais, foi realizada através do EDITAL Nº 008/UNOESC-VR/2011. De acordo com o Art. 170 da Constituição Estadual do Estado de Santa Catarina, foram bolsistas de pesquisa de iniciação científica: Aline Regina Hanauer e Marta Von Dentz. 1 86 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos extrema pobreza. Possui duas características: transferir renda sob um viés não contributivo, e exige o cumprimento de determinadas condicionalidades em três áreas específicas: educação, saúde e assistência social (VAZ, 2012). Na educação, exige-se das famílias que as crianças estejam matriculadas e tenham uma taxa mínima de frequência escolar (SIMÕES, 2012). Na saúde, a família deve realizar o acompanhamento de crianças desnutridas e a atualização do cartão de vacinação; prestar informação semestralmente sobre o crescimento e o desenvolvimento das crianças menores de sete anos e realizar o pré-natal no caso das gestantes (BRASIL, 2012). O programa Bolsa Família constitui a maior política de Transferência Condicionada de Renda (TCR), tanto em orçamento quanto em cobertura. Beneficia famílias em situação de pobreza e extrema pobreza e tem como objetivo oferecer proteção a todo o grupo familiar e contribuir para o seu desenvolvimento. (CAVALCANTE; RIBEIRO, 2012). Os resultados do programa na vida das famílias são reconhecidos, seja no desempenho escolar (SIMÕES, 2012), seja na redução da pobreza (JANNUZZI; MARTIGNONI; SOUTO, 2012), no consumo de alimentos e status nutricional (BAPTISTELLA, 2012). Com o processo de descentralização, no que tange ao Programa Bolsa família, cabe ao Governo Federal o financiamento do benefício e, aos municípios, as responsabilidades no que tange ao cadastramento, ao monitoramento das condicionalidades, à gestão dos benefícios e à oferta de programas complementares. Visando a contribuir na discussão da importância da gestão municipal, este artigo objetiva mostrar como é realizado o acompanhamento das condicionalidades em um município de pequeno porte II, localizado na região do extremo oeste de Santa Catarina. programa bolsa família O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência de renda direta, direcionado às famílias pobres, com intenção de contribuir para a satisfação de necessidades básicas de sobrevivência. O programa reúne quatro experiências anteriores: Bolsa Escola, Auxílio Gás, Bolsa Alimentação organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler e Cartão Alimentação, sendo instituído pelo governo federal em outubro de 2003, através da Lei nº 10.836 de 9 de janeiro de 2004 (BRASIL, 2004). O programa foi regulamentado em 17 de setembro de 2004, pelo Decreto nº 5.209 (BRASIL, 2004) que estabelece em seu Art. 4 os objetivos básicos, em relação aos seus beneficiários, sem prejuízo de outros que venham a ser fixados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). I - Promover o acesso à rede de serviços públicos, em especial, de saúde, educação e assistência social; II - Combater a fome e promover a segurança alimentar e nutricional; III - Estimular a emancipação sustentada das famílias que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza; IV - Combater a pobreza; V - Promover a intersetorialidade, a complementaridade e a sinergia das ações sociais do Poder Público (BRASIL, 2014). O PBF prevê a descentralização administrativa. Pela primeira vez no país, os programas de transferência de renda, possuem uma legislação que estabelece as responsabilidades de cada esfera: federal, estadual e municipal. Cabe aos municípios, segundo o Decreto n° 5.209 do seu Art. 14: I - Constituir coordenação composta por representantes das suas áreas de saúde, educação, assistência social e segurança alimentar, quando existentes, responsável pelas ações do Programa Bolsa Família, no âmbito municipal. II - Proceder à inscrição das famílias pobres do Município no Cadastramento Único do Governo Federal. III - Promover ações que viabilizem a gestão intersetorial, na esfera municipal. IV - Disponibilizar serviços e estruturas institucionais, da área da assistência social, da educação e de saúde, na esfera municipal. 87 88 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos V - Garantir apoio técnico-institucional para a gestão local do programa. VI - Constituir órgão de controle social nos termos do art. 29. VII - Estabelecer parcerias com órgãos e instituições municipais, estaduais e federais, governamentais e não governamentais, para oferta de programas sociais complementares. VIII - Promover, em articulação com a União e os Estados, o acompanhamento do cumprimento das condicionalidades (BRASIL, 2004). O programa de transferência de renda Bolsa Família é apontado pelo governo como sendo um dos principais instrumentos de combate à fome e de garantia do direito humano à alimentação no Brasil. Desde 2004, o programa está vinculado ao Ministério de Desenvolvimento e à Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC). O programa tem sido considerado uma prioridade do Governo Federal no âmbito social e atende às famílias que se encontram em situação de pobreza e de extrema pobreza. De acordo com Brasil (2014), a lei prevê que o valor do benefício do PBF pode ser complementado pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, dependendo do termo de cooperação firmado. Na especificidade do PBF, a seleção das famílias é realizada através do Cadastramento Único para Programas Sociais do Governo Federal, que foi instituído pelo Decreto nº 3.877, de 24 de julho de 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso, para a concessão de programas focalizados do governo federal de caráter permanente, e revogado pelo Decreto nº 6.135, 36 de julho de 2007, no governo Lula. Conforme o seu Art. 2, o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) é instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente utilizado para seleção de beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal voltados ao atendimento desse público. Para autores como Silva, Yasbek e Giovanni (2004), o PBF possui um significado real para os beneficiários, uma vez que para muitas famílias pobres do Brasil, a inserção no programa é a única possibilidade de obtenção de uma renda. Outro aspecto central do benefício é a focalização nas organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler famílias pobres. A formulação de programas sociais com foco na família e não exclusivamente no indivíduo faz parte do debate sobre o processo de reformas das políticas sociais desenvolvidas no país desde os anos 1980. Contudo, para Telles (2011, p. 1): [...] apesar de quase oito anos do Programa Bolsa Família, temos a constatação pelo Censo de 2010 de uma enorme miséria, ou pessoas que vivem em extrema pobreza. A resposta é simples, mas o diagnóstico ou a solução é complexa, pois remete ao enfrentamento do tipo de desenvolvimento que estamos implementando, bem como da política econômica em curso: tudo converge para o aumento da riqueza do capital financeiro, tudo se dirige para a geração de lucros astronômicos, como “jamais antes neste país” conhecemos. Mas a questão social fica relegada aos mínimos sociais, à ajuda para evitar o colapso social, para que os pobres não se revoltem, permaneçam confiantes de que os governos estão atentos às suas demandas. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), existem no Brasil milhões de pessoas em extrema pobreza. Isso constata que as desigualdades existentes no país ainda são gigantescas e, por mais que as mesmas tenham diminuído nos últimos anos, averígua-se que a desigualdade social é componente fundamental da população brasileira. A nova Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, de 2012, mostrava que eram cerca de 15,7 milhões de pessoas vivendo na pobreza no Brasil, dos quais 6,53 milhões continuavam abaixo da linha de pobreza. (BRASIL, 2012). condicionalidades do programa bolsa família Conforme o Ministério do Desenvolvimento Social (BRASIL, 2014), o objetivo das condicionalidades não é o de punir as famílias, mas responsabilizar de forma conjunta tanto os beneficiários, quanto o poder público, que deve identificar os motivos do não cumprimento e implementar políticas públicas de acompanhamento das condicionalidades. Diniz (2007, p.4) alerta que: 89 90 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos [...] é preciso considerar que a perspectiva de inclusão social ao Bolsa Família está também ancorada na oferta de programas complementares (tais como programas de geração de emprego e renda, cursos profissionalizantes, microcrédito, compra de produção agrícola, oficinas de “empreendedorismo” e apoio a iniciativas de economia solidária, entre outros) que, em tese, deve ser implementada de forma cooperativa entre os diferentes níveis de governo e com base na intersetorialidade das ações. Isso mostra o reconhecimento de que as ações básicas de saúde e educação isoladas não são suficientes para alcançar os objetivos do Programa. As condicionalidades do PBF são compromissos que devem ser assumidos pelas famílias, nas áreas da Educação, da saúde e da assistência social, vinculados à inserção e à permanência das famílias ao programa. Na área da saúde, as famílias beneficiárias devem cumprir as seguintes condicionalidades: no caso de possuírem gestantes ou nutrizes no seio familiar, as mesmas devem inscrever-se no pré-natal e comparecer às consultas na unidade de saúde mais próxima da residência, com o cartão da gestante, de acordo com o calendário mínimo do Ministério da Saúde e participar das atividades educativas ofertadas pelas equipes de saúde sobre aleitamento materno e promoção da alimentação saudável; os responsáveis pelas crianças menores de 7 anos devem levá-las às unidades de saúde ou aos locais de vacinação e manter atualizado o calendário de imunização, conforme diretrizes do Ministério da Saúde; levar as crianças às unidades de saúde, portando o cartão de saúde da criança, para a realização do acompanhamento do estado nutricional e do desenvolvimento e de outras ações, conforme calendário mínimo do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011). Na educação, o PBF solicita que sejam atendidas as seguintes condicionalidades: matricular as crianças e adolescentes de 6 a 15 anos em estabelecimento regular de ensino; garantir a frequência escolar de no mínimo 85% da carga horária mensal do ano letivo, informando sempre à escola em casos de impossibilidade do comparecimento do aluno à aula e apresentando a devida justificativa; informar de imediato ao setor responsável pelo PBF no município sempre que ocorrer mudança de escola e de série dos dependentes de 6 a 15 anos, para que seja viabilizado e garantido o efetivo acompanhamento da frequência escolar (BRASIL, 2011). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler A Assistência Social acompanha a frequência mínima de 85% da carga horária relativa aos serviços socioeducativos para crianças e adolescentes de até 15 anos em risco ou retiradas do trabalho infantil (BRASIL, 2011). As famílias beneficiárias são orientadas de que o não cumprimento das condicionalidades poderá implicar o afastamento do programa. Na primeira ocorrência de descumprimento, a família recebe uma advertência por escrito, relembrando-a dos compromissos com o programa e da vinculação entre o cumprimento das condicionalidades e o recebimento do benefício. A partir da segunda ocorrência de descumprimento, a família fica sujeita a sanções: bloqueio do benefício por trinta dias (segundo descumprimento); suspensão do benefício por sessenta dias (terceiro e quarto descumprimentos); cancelamento da concessão do benefício (quinto descumprimento) (BRASIL, 2014). O PBF comporta a forma de gestão descentralizada, ou seja, permite que União, os estados, o Distrito Federal e os municípios socializem-se e discutam ferramentas de aperfeiçoamento dos objetivos propostos pela legislação do programa. A descentralização representa o compartilhamento de responsabilidades entre União, estados e municípios e é o que fundamenta a implementação dos principais programas governamentais. É vista tanto como um instrumento viável para a implantação da política como também para alcançar melhorias na eficiência e na equidade, ao ampliar a participação comunitária e a transparência (CAVALCANTE; RIBEIRO, 2012). O desenho do Bolsa Família insere em seu arcabouço normativo e na estrutura administrativa princípios que apontam para o estabelecimento de parcerias com diferentes áreas do governo, dos estados, dos setores da sociedade civil e dos municípios (CAVALCANTE; RIBEIRO, 2012). De acordo com Cavalcante e Ribeiro (2012), nos primeiros anos do PBF, o governo detectou que a incorporação de dispositivo formal não implicou a efetiva execução do programa por parte dos entes. Os motivos apresentados pelos autores na dificuldade da gestão compartilhada foram: a indefinição quanto às responsabilidades e às competências de cada ente federativo; identificação muito forte com o governo federal, o que não trazia benefícios imediatos aos prefeitos; falta de quadro de pessoal para lidar com as tarefas e ações do programa. Diante dessa 91 92 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos realidade, o quadro mudou e houve o fortalecimento de parcerias com base na definição de competências compartilhadas, bem como a estratégia de gestão compartilhada foi formulada a partir de duas modalidades. A primeira denominada de pactuação tem a finalidade de criar condições para eliminar os custos administrativos, aumentar a cobertura ou elevar os valores dos benefícios. Através de cofinanciamento com ou sem complementação do benefício. A segunda corresponde à adesão dos estados e dos municípios ao PBF e ao Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. Cabendo aos municípios, após a adesão, responsabilidades no que tange ao cadastramento, ao monitoramento das condicionalidades, à gestão de benefícios e à oferta de programas complementares. Visando apoiar financeiramente os municípios com o objetivo de ampliar e atualizar o cadastro das famílias, foi criado em 2006 o Índice de Gestão Descentralizada (IGD), um indicador de qualidade de gestão que, em termos gerais, avalia o desempenho local com foco nas atividades do cadastro único e de acompanhamento das condicionalidades do programa. O índice varia de 0 a 1, multiplicando-se o valor de referência de R$ 2,50 por família beneficiária no município para fins de repasse financeiro mensal. Caso o município tenha um índice inferior a 0,55 não acorrem repasses às prefeituras no mês de referência, sem prejudicar os benefícios às famílias (CAVALCANTE; RIBEIRO, 2012). Nesse sentido, o programa apresenta três eixos norteadores: a transferência de renda, as condicionalidades e, inclusive, os programas complementares. Sobre as condicionalidades, Silva (2007) salienta que é competência dos gestores acompanhar e dar condições para que esse acompanhamento ocorra, com atribuições específicas para cada nível de gestão. É importante ressaltar que o desligamento de uma família do programa é um processo longo e só deve ocorrer após o quinto descumprimento de determinada condicionalidade e desde que fique comprovada a responsabilidade da família nesse descumprimento. A autora completa, relatando que as condicionalidades definidas pelos programas de transferência de renda, instituídos por municípios, estados e pelo Governo Federal e reafirmadas pelo Bolsa Família parecem pretender organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler garantir acesso a direitos sociais básicos no sentido de potencializar impactos positivos sobre a autonomização das famílias atendidas. Merecendo destaque alguns desafios a serem superados: Primeiro, ferem o princípio da não condicionalidade peculiar ao direito de todo cidadão a ter acesso ao trabalho e a programas sociais que lhe garantam uma vida com dignidade; segundo, os serviços sociais básicos oferecidos pela grande maioria dos municípios brasileiros, mesmo no campo da educação, da saúde e do trabalho são insuficientes, quantitativa e qualitativamente, para atender às necessidades das famílias beneficiárias dos Programas de Transferência de Renda (SILVA, 2007, p. 1.436). As condicionalidades deveriam ser impostas ao Estado, nos seus três níveis e não às famílias, visto que implicam e demandam a expansão e a democratização de serviços sociais básicos de boa qualidade, que uma vez disponíveis seriam utilizados por todos, sem necessidade de imposição e obrigatoriedade. O que poderia ser desenvolvido seriam ações educativas, de orientação, encaminhamento e acompanhamento das famílias para a adequada utilização dos serviços disponíveis. Assim concebidas, as condicionalidades, ao contrário de restrições, imposições ou obrigatoriedades, significariam ampliação de direitos (SILVA, 2007). metodologia Inicialmente, foi mantido contato com a Secretaria Municipal da Ação Social de São Miguel do Oeste, no estado de Santa Catarina, onde se obteve a informação de que o município possuía 838 (oitocentas e trinta e oito) famílias cadastradas no PBF, em junho de 2012. Realizou-se uma pesquisa qualitativa com o objetivo de saber como ocorre o acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família no município. A coleta dos dados ocorreu na segunda quinzena do mês de setembro de 2012, através da utilização da técnica do grupo focal. O grupo focal (GF) é uma técnica de coleta de dados qualitativos que ocorre por meio de entrevistas grupais, apropriada para estudos que buscam entender atitudes, preferências, necessidades e sentimentos. 93 94 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos A dinâmica dos grupos focais, conforme Trentini e Gonçalves (2000), volta-se para um determinado foco que consiste no tema de pesquisa em questão a ser discutido pelo grupo dentro de um processo de interação e participação dos envolvidos. O grupo focal foi realizado em sala apropriada disponibilizada pela Prefeitura Municipal, após agendamento telefônico com cada um dos participantes. Na área da assistência social, participaram da pesquisa quatro profissionais graduados em Serviço Social; na área da saúde, participaram quatro profissionais com graduação em Enfermagem; e na área da educação, participaram quatro profissionais graduados em Pedagogia. O assunto foi estruturado visando a obter informações dos profissionais sobre o entendimento dos mesmos, acerca de como acompanham no município o cumprimento pelas famílias das condicionalidades que são estipuladas pelo PBF. resultados Os profissionais da saúde mencionam que o trabalho dos agentes comunitários da saúde (ACS) tem facilitado o repasse de orientações às famílias, bem como, o agendamento para a pesagem e medida das crianças. No decorrer das visitas domiciliares que são realizadas mensalmente, os ACS conferem as cadernetas das crianças e das gestantes, agendam consultas e atendimentos com os demais profissionais que fazem parte das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e também com profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) caso for necessário. O trabalho dos agentes comunitários da saúde torna-se um instrumento orientador das ações que são desenvolvidas no primeiro nível de atenção básica à saúde, com um grau de responsabilidade ímpar pela proximidade que possuem com as famílias beneficiadas. (Profissionais da Saúde). Os profissionais da assistência social manifestaram como facilidade para o cumprimento das condicionalidades o trabalho, através dos cursos organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler profissionalizantes disponibilizados para a participação dos pais e dos programas sociais para a inserção dos filhos. A finalidade dos cursos de capacitação que são oferecidos é reduzir as desigualdades sociais, promover oportunidades, inserir os beneficiários no mercado de trabalho, aumentar a geração de renda e incentivar a independência financeira das famílias atendidas pelo programa. A participação dos familiares nos cursos que são realizados contribui para a melhoria da vida de todos, pois oportuniza, mesmo que de forma ainda frágil, uma capacitação mínima para o trabalho. Os filhos que se encontram inseridos nos programas sociais também são beneficiados, porque recebem uma atenção mais específica do que se somente frequentassem a escola pela obrigatoriedade (Profissionais da Assistência Social). Na área da educação, os entrevistados destacaram que existe necessidade de avançar junto às demais políticas, no sentido de que os pais percebam que o acesso à educação é um direito dos filhos e que a família não deve manter as crianças e os adolescentes na escola somente para cumprir uma condicionalidade do PBF. Contudo, concordam de que o fato da obrigatoriedade da família manter os filhos na escola para permanecer beneficiária do programa tem contribuído para a diminuição da evasão escolar. Sabemos que o compromisso da condicionalidade da educação é a frequência escolar de cada integrante em idade escolar (de 6 a 17 anos) das famílias beneficiárias do programa. O acompanhamento é realizado e o registro da frequência escolar realizado por meio do Sistema de Acompanhamento da Frequência Escolar (Sistema Presença). Mas, é preciso avançar mais no processo interdisciplinar. Como as famílias são obrigadas a manter os filhos na escola, pode-se perceber que houve diminuição da evasão escolar, mas é importante sabermos como as outras secretarias estão acompanhando essas famílias. (Profissionais da Educação). 95 96 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos As três áreas representadas manifestaram como uma das principais dificuldades encontradas no acompanhamento das condicionalidades o fato de as famílias mudarem constantemente o endereço da residência e não atualizarem as informações. Como demonstra uma das falas: “A mudança de endereço sem a comunicação prévia da família beneficiária ou quando a renda familiar muda e não é reavaliada pelo fato de o beneficiário não prestar essa informação” (Profissional da Assistência Social). Quanto aos desafios que se apresentam no acompanhamento das condicionalidades, os profissionais da área da saúde manifestaram que muitos pais não consideram importante levar os filhos para serem pesados e medidos nas unidades de saúde e que tem sido um desafio constante incentivá-los a essa prática. Apontam também, assim como os profissionais da assistência social e da educação, que a integração das informações constantes no CadÚnico precisa ser discutida pelas equipes das distintas áreas, instrumentalizando o planejamento de ações e serviços oferecidos a população beneficiária. Segundo BRASIL (2014), o Cadastro Único para Programas Sociais é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias com renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa ou de três salários mínimos no total. Dessa forma, o cadastro único possibilita conhecer a realidade socioeconômica dessas famílias, trazendo informações de todo o núcleo familiar, das características do domicílio, das formas de acesso a serviços públicos essenciais e também dados de cada um dos componentes da família. Quanto aos objetivos do programa, dizem respeito à promoção do alívio imediato da pobreza e da extrema pobreza por meio da transferência direta de renda à família. Os profissionais participantes reforçaram que trabalham constantemente para que o exercício de direitos sociais básicos nas áreas da assistência social, da saúde e da educação, por meio do cumprimento das condicionalidades, contribua para que as famílias consigam romper o ciclo da pobreza entre gerações, superando a vulnerabilidade social. A área da assistência social e da educação destacam, como exemplo, programas de geração de renda, alfabetização de adultos, fornecimento de registro civil, identidade e demais documentos. Carvalho e Fernandes (2009) afirmam que a estratégia dos programas de transferência de renda parte da premissa de que, a transferência de renda não constitui um fim em si mesmo, pelo fato de não representar organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler um instrumento efetivo de superação da pobreza, apesar de que é um mecanismo com conotação imediata de alívio da pobreza. O acompanhamento do cumprimento das condicionalidades, segundo os profissionais, poderia ocorrer também através do site e na análise dos relatórios impressos. Todavia, de modo geral, percebeu-se a inexistência de informações entre as áreas. As mesmas desenvolvem atividades isoladas e específicas a cada uma, sem estabelecer diálogos que as aproximem. Na saúde, o acompanhamento é feito através de ações como: medida e passagem de crianças e gestantes, palestras sobre nutrição, controle nutricional e avaliação antropométrica. A Secretaria de Ação Social faz o cadastramento das famílias, no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), trabalha com o grupo de Convivência e Fortalecimento de Vínculo. No serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), são realizados cursos de geração de emprego e renda, corte e costura. A educação imprime e distribui os formulários das famílias beneficiárias e envia para todas as unidades escolares do município para o conhecimento dos gestores e para o preenchimento das informações. Para tanto, parece inexistir no município um processo de planejamento entre os serviços, bem como articulação entre as políticas de saúde, educação e assistência social as quais devem ser vistas enquanto mecanismo de ampliação dos direitos sociais. Conforme dados do Plano Municipal de Assistência Social de 2013 a população do município é de 36.295 habitantes. Buscando como referência o mês de julho de 2013, no município, o Programa Bolsa Família beneficiou um total de 748 famílias, efetuando uma cobertura de 99,7% da estimativa de famílias pobres no município. Os valores pagos pelo Governo Federal nesses benefícios possuem um valor médio de R$ 131,45. O valor total repassado às famílias beneficiárias no mês de julho de 2013 chegou a um montante de R$ 98.324,00. Verificou-se que o total de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Famílias atende a 2.938 pessoas (BRASIL, 2013). É importante destacar que a maioria das famílias cadastradas reside na área urbana, então é indispensável que as questões de acesso ao trabalho pela indústria e pelo comércio também estejam na agenda de planejamento intersetorial, no sentido de pensar estratégias e programas que venham ao encontro das famílias empobrecidas residentes na área urbana do município. 97 98 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Nesse sentido, no que se refere ao acompanhamento das condicionalidades, o município atingiu na educação o índice de 0,89; na saúde, 0,69, na taxa de cobertura qualificada cadastral, 0,91, e na taxa de atualização cadastral, 0,72, atribuindo ao município um IGD-M do Programa Bolsa Família de 0,80, possibilitando um repasse financeiro mensal no valor de R$ 5.884,45 como teto máximo, sendo que em abril de 2013, o repasse ao município foi de R$ 2.732,73 (BRASIL, 2013). As condicionalidades possibilitam ao município receber recursos financeiros por meio do Índice de Gestão Descentralizada, o IGD Bolsa Família2 e é com base nesse indicador que o MDS repassa recursos aos municípios para que façam a gestão do programa. É importante destacar que quanto maior o valor do IGD, maior será o valor do recurso transferido ao município. Por meio da construção do IGD, o MDS incentiva o aprimoramento da qualidade da gestão do Programa Bolsa Família em âmbito local, e contribui para que os municípios executem as ações que estão sob sua responsabilidade. Portanto, o município atingiu um bom desempenho na qualidade de gestão ficando próximo de 1. considerações finais As condicionalidades do Programa Bolsa Família exigem a corresponsabilidade dos participantes, ao mesmo tempo em que inserem as famílias numa rede ampla de serviços. Nesse sentido, o acompanhamento das condicionalidades do Programa Bolsa Família poderá oportunizar a intersetorialidade na gestão, nas áreas da educação, da saúde e da assistência social. A preocupação que se deve ter é que as condicionalidades não sejam impostas como instrumento de controle dos beneficiários, caindo por terra a noção de direito. As condicionalidades são características importantes dos programas de transferência de renda. O objetivo maior do seu cumprimento é o 2 Regulamentado pela Lei nº 12.058, de 13 de outubro de 2009, é um número indicador que varia de 0 a 1 e mostra a qualidade da gestão do Programa Bolsa Família (PBF) no âmbito municipal, além de refletir os compromissos assumidos pelos municípios no Termo de Adesão ao Bolsa Família (BRASIL, 2005). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler de inserir as famílias pobres nos serviços básicos da comunidade com a esperança de que esses serviços oferecerem uma alternativa na melhoria das condições de vida dos beneficiários, garantido o que lhes é de direito através da corresponsabilidade dos participantes. No caso específico das políticas dirigidas a famílias pobres, autores como Carvalho (2009) salientam a necessidade da conjugação de ações das diversas áreas setoriais como condição imprescindível para alteração das condições de vida das famílias. Entretanto, não se pode deixar de lembrar que, uma vez exigidas condicionalidades, é preciso lançar estratégias consistentes de acompanhamento social das famílias beneficiárias, principalmente, tendo em vista a necessidade de possibilitar que a exigência se torne em oportunidade de inserção social. Sendo assim, as condicionalidades em programas de transferência de renda, como no caso do PBF, podem ser interpretadas como mecanismos de ampliação do acesso aos serviços sociais para a efetivação do direito social. referências BAPTISTELLA, J. C. F. Avaliação de programas sociais: uma análise do impacto do programa Bolsa Família sobre o consumo de alimentos e status nutricional das famílias. Revista Brasileira de Monitoramento e Avaliação, n. 3, jan./jun. 2012, p. 26-53. BRASIL. Bolsa Família. Brasília: MDS, 2014. Disponível em: http://www.mds. gov.br/bolsafamilia. Acesso em: 17 out. 2014. ______. Secretaria de Assuntos Estratégicos do Paraná (SAE-PR). 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Esse conjunto de mudanças, denominado por Castel (1998) como as “metamorfoses da questão social”, que foram determinadas pelo desmonte do binômio trabalho/proteção social, aumentou os níveis de exploração e as desigualdades sociais, além de reduzir os postos de trabalho e os salários, precarizando as condições do trabalhador. Nesse contexto, nos últimos anos, a inclusão produtiva (IC) tem estado na pauta da agenda do Governo Federal no que tange à sua proposição de erradicação da pobreza, materializando-se através de algumas políticas. Na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), a mesma surge com o intuito de instrumentalizar e capacitar a população-alvo da assistência para o mercado de trabalho, aparecendo com a nomenclatura de inclusão produtiva. Já na Política de Emprego, Trabalho e Renda (PETR), ela se configura através de ações voltadas para as pessoas que estão ou estiveram no mercado de trabalho, sendo denominada como “geração de renda”. Seja através da inclusão produtiva ou da geração de renda, o propósito é o mesmo: incluir no mercado de trabalho as pessoas que estão à margem do mesmo. Embora com pontos em comum, a estrutura da política social 1 Artigo publicado nos Anais do 1º Encontro Internacional de Política Social e 8º Encontro Nacional de Política Social "As transformações do Estado no mundo hoje" em 2013. 2 Doutrina, em voga nas últimas décadas do século XX, que favorece uma redução do papel do Estado na esfera econômica e social. 104 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos brasileira está constituída de forma fragmentada, sendo que cada ministério se responsabiliza por áreas específicas, gerando programas diferentes sob a responsabilidade de cada política social. Atualmente, a Política de Emprego, Trabalho e Renda não transita efetivamente nos mesmos caminhos que a Política Nacional de Assistência Social, já que suas ações estão voltadas, com ênfase, ao trabalhador que perdeu o emprego formal, fornecendo subsídios financeiros ao desempregado e créditos e financiamentos para microempresas. Já a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) traz o conceito de garantir a todos uma fonte de renda para sua sobrevivência, tendo em vista o enfrentamento da desigualdade social e da pobreza. Na PNAS, a proteção social deve garantir as seguintes seguranças: segurança de sobrevivência (de rendimento e de autonomia); de acolhida; e, de convívio ou vivência família (PNAS, 2004). As reflexões deste artigo procuram demonstrar a importância de haver ações intersetoriais entre essas políticas, tendo em vista que o processo para a construção da intersetorialidade envolve a articulação de distintos setores sociais e surge como um aporte para a garantia de direitos e a inserção produtiva dos usuários das políticas em questão. Sendo assim, o texto busca problematizar de que forma é possível construir a intersetorialidade entre a Política Nacional de Assistência Social e a Política de Emprego, Trabalho e Renda na perspectiva da Inclusão Produtiva. a política nacional de assistência social (pnas) e a inclusão produtiva Com a promulgação da Constituição de 1988, a política de assistência social passou a ser parte integrante da seguridade social brasileira, ao lado da saúde e da previdência. Em 1993, através da aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei Federal nº 8.742/93, se iniciou o processo de reorganização da assistência no país e a necessidade de revisão dos conceitos assistencialistas que permeavam o campo da política social (COUTO; BORBA, 2009). A LOAS trouxe uma estrutura descentralizada e participativa para a política de assistência, considerando que os serviços tenham caráter universal de proteção social aos brasileiros. Passados mais de dez anos de aprovação da LOAS, em 2004, foi aprovada organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que estabelece princípios e diretrizes para a implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). A Política de Assistência Social, de caráter não contributivo e direcionada para quem dela necessitar, tem, na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) em 2004, e no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), em implantação no Brasil desde 2005, os dois instrumentos políticos e normativos mais recentes. Ambos objetivam o avanço da Assistência Social enquanto Política Pública (SILVA; SILVA, 2012, p. 26). O Sistema Único de Assistência Social (SUAS), por sua vez, se constitui numa ferramenta de gestão da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), estabelecendo a regulação e a organização, em todo o território nacional, da rede de serviços socioassistenciais (SILVEIRA; MENDES, 2009). É no próprio processo de implantação do SUAS que ocorre a ampliação do campo de ação da política de assistência, “que diante do desemprego e precarização do trabalho passa a viabilizar alternativas de inclusão produtiva” (KLEIN, 2009, p. 62). O sistema integra uma política que prevê uma organização participativa e descentralizada da assistência social, através de ações voltadas para o fortalecimento da família (BRASIL, 2010). Com uma visão democrática, os processos de gestão da PNAS e do SUAS possuem como perspectiva as decisões tomadas com o coletivo. O trabalho em rede, também, é um dos objetivos que o sistema único vem almejando, além do desenvolvimento de estratégias de articulação e de gestão que viabilizem abordagens intersetoriais. Nessa direção, os desafios para o Sistema Único de Assistência Social são enormes, em especial no âmbito da inclusão produtiva. Tanto na Constituição de 1988, como na Lei Orgânica de Assistência Social de 1993 e, também, na Política Nacional de Assistência Social de 2004 é defendida a inclusão produtiva e a autonomia do indivíduo. O Art. 2 da LOAS afirma que é um dos objetivos da assistência social a promoção da integração ao mercado de trabalho. Já os Art. 25 e 26 destacam que os projetos de enfrentamento da pobreza devem in- 105 106 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos vestir nos “grupos populares, em vista subsidiar, financeira e tecnicamente, iniciativas que garantam, através da capacidade produtiva e de gestão, a elevação da qualidade de vida” (NUNES, 2012, p. 50). O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), que é o ministério responsável pelas políticas nacionais de desenvolvimento social, no país, inseriu a inclusão produtiva na pauta da erradicação da pobreza, através de um conjunto integrado de ações que articulam várias políticas do campo social (NUNES, 2012). Uma dessas ações é a inclusão produtiva articulada com a economia solidária.3 No eixo três, do Programa Fome Zero4 do Governo Federal, denominado como geração de renda tem-se a seguinte descrição: Economia Solidária e inclusão produtiva: disponibilizam aos trabalhadores beneficiários e/ou egressos de ações do Sistema Público de Emprego e de ações de economia solidária oportunidades de qualificação social (reflexão sobre cidadania, fortalecimento e o mundo do trabalho), profissional (fundamentos técnico-científicos da ocupação) e ocupacional (atividades específicas à ocupação, dimensão técnico-gerencial, cooperativista e associativa), em articulação com as ações de microcrédito, geração de emprego e renda e economia solidária (BRASIL, 2013). O universo da inclusão produtiva, como destaca Albuquerque (2009), é permeado por nomenclaturas, interesses, realidades e possibilidades bastante vastas. No Plano Brasil sem Miséria (PBM), lançado pelo Governo Federal, em 2011, a inclusão produtiva é um dos três eixos de ações previstos dentro dos objetivos do plano, juntamente com a transferência de renda e o acesso a serviços públicos. As iniciativas de inclusão produtiva, no PBM, possuem como objetivo o estímulo à geração de ocupação e renda via 3 Entende-se por economia solidária o conceito que abrange todos os empreendimentos e iniciativas que se pautem por uma perspectiva de ajuda mútua, de autogestão, ou seja, que partilham dos princípios do cooperativismo (SINGER, 2002). 4 O Fome Zero é uma estratégia impulsionada pelo Governo Federal para assegurar o direito humano à alimentação adequada às pessoas com dificuldades de acesso aos alimentos. Tal estratégia se insere na promoção da segurança alimentar e nutricional buscando a inclusão social e a conquista da cidadania da população mais vulnerável à fome. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler empreendedorismo e/ou economia solidária (BRASIL, 2013). Para Nunes (2012), a Inclusão Produtiva se apresenta na perspectiva de potencializar a cidadania e na conquista de direitos. Os beneficiários dos programas de Inclusão Produtiva são a população jovem, indivíduos e famílias em situação de rua, bem como os beneficiários dos programas de transferência de renda. Já os serviços e projetos de capacitação e inserção produtiva, previstos nos CRAS5 devem desenvolver ações complementares ao Programa Bolsa Família e aos Benefícios de Prestação Continuada, como atribuição do Programa de Atenção Integral à Família (PAIF) (ALBUQUERQUE, 2009). Nesse contexto, destacamos a existência da Secretaria de Articulação para Inclusão Produtiva (SAIP), que se dedica a desenvolver e a executar estratégias para a inclusão produtiva das famílias beneficiadas pelas ações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), integrando-as ao mundo do trabalho produtivo. As estratégias são realizadas por meio de convênios e parcerias com órgãos públicos e privados, sendo que a Secretaria implementa projetos de formação de mão de obra e qualificação profissional para diversos setores de produção (BRASIL, 2013). Constata-se uma forte presença do discurso da inclusão produtiva na política de assistência social, contudo, não há referência sobre a forma que a mesma é conduzida ou quais são seus parâmetros de avaliação e desenvolvimento. Como destaca Klein (2009, p. 65): “percebe-se a inclusão produtiva na política de assistência social como um tema novo, definido há cerca de três anos e ainda sem clareza de sentido ou com diversas significações”. A perspectiva da Inclusão Produtiva, sendo assim, no que tange à Política Nacional de Assistência Social, necessita ser delimitada, tendo como objetivo identificar as suas formas de implantação e desenvolvimento, além de reconhecer as possibilidades de intersetorialidade com as demais políticas. 5 Os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) é a unidade pública municipal da assistência social, localizada em áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social. Nela, há a prestação de serviços socioassistenciais, como cadastramento e acompanhamento das famílias, e acesso a programas de transferência de renda, entre outros. É preferencialmente a porta de acesso aos serviços e programas de assistência social (BRASIL, 2013). 107 108 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos a política de emprego, trabalho e renda As políticas públicas de emprego conquistaram maior importância nas primeiras décadas do século XX, através de um contexto de desemprego em massa. No Brasil, ocorreram recortes históricos importantes no que tange à legislação da Política Pública de Emprego, Trabalho e Renda. Conforme destaca Serra (2009, p. 247) os principais foram: “a criação do Ministério do Trabalho em 1930; a Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943; o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço em 1966; o Sistema Nacional de Emprego em 1976 e o Seguro Desemprego em 1986”. Já a estruturação da Política de Emprego, Trabalho e Renda, no Brasil, ocorre por meio de um sistema público, criado em 1995 e distribuído em três áreas. A primeira são as políticas de caráter compensatório, que se dão através do abono salarial e do seguro-desemprego; a segunda são as políticas denominadas ativas, que buscam inserir no mercado os desempregados, através de qualificação profissional; a terceira é um conjunto de políticas de crédito, direcionado aos diversos setores produtivos capazes de gerar trabalho e renda (SERRA, 2009). Segundo Klein (2009), no Brasil, constata-se uma forte preocupação com as políticas passivas, ou seja, aquelas que tendem a tornar mais tolerável o desemprego. São as políticas que possuem como objetivo assistir financeiramente o desempregado, não buscando atuar diretamente sobre a oferta de trabalho. Sendo assim, ocorre uma reprodução de políticas anteriores, não havendo a superação dos traços históricos de desigualdade no mercado de trabalho. O foco da política de emprego por muitos anos foi o repasse do seguro-desemprego. Contudo, a partir de meados dos anos 1990 houve a reformulação do sistema com a promoção da atividade produtiva e o aumento da qualificação do trabalhador. Algumas inovações foram criadas, tais como, o Plano de Formação Profissional e o Programa de Geração de Emprego e Renda, os quais possuem o público-alvo muito mais abrangente que o seguro-desemprego. A evolução das políticas públicas de emprego e renda nos últimos anos, portanto, se deu na direção de assegurar a um número maior de trabalhadores desempregados – muitos organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler deslocados de suas atividades pelas mudanças estruturais na economia – não apenas renda que lhe permita enfrentar o período de busca de ocupação, mas também a possibilidade de desenvolvimento de novas competências bem como os recursos financeiros necessários ao estabelecimento de atividades produtivas (LOPES, 2006, p. 12). Segundo a publicação do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), intitulada “Políticas públicas de emprego, trabalho e renda no Brasil”, o campo das políticas públicas de emprego no Brasil acompanha as tendências de outras áreas da política social, com destaque para a terceirização, ou seja, o aumento da participação não estatal na execução das políticas, especialmente nos campos da intermediação de mão de obra e qualificação profissional; e a focalização dessas políticas sobre os grupos sociais considerados mais vulneráveis às transformações econômicas em curso (IPEA, 2006). Para Pochmann (2004) as políticas de emprego adotadas desde 1990, contudo, não conseguem responder à desestruturação do mercado de trabalho. Para ele, os princípios neoliberais de redução de custo do trabalho, bem como a flexibilização dos contratos e a diminuição dos gastos sociais aumentaram a limitação da efetividade da proteção social, exigindo uma reformulação da política. Barbosa (2006) compactua dessa mesma ideia, destacando que em decorrência da dinâmica capitalista, que não favorece a autonomia do indivíduo e devido ao ambiente de desestruturação do trabalho, as iniciativas adotadas pelo governo têm sido ineficientes. A concepção dessa política pública, em vigor no Brasil, está atrelada à estruturação da democracia social no mundo contemporâneo, principalmente no que se refere às principais economias capitalistas ocidentais. Nessa perspectiva, pelo que se tem acesso e informações a respeito, tais políticas não têm correspondido ao discurso oficial, uma vez que seus programas não contemplam a prerrogativa de busca de empregos formais, o chamado emprego decente, o que só poderá ocorrer à medida que houver, nos vários países, políticas econômicas governamentais que enfatizem o desenvolvimento humano (SERRA, 2009, p. 252). 109 110 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos As políticas atuais do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda, sendo assim, estão sendo pouco eficazes no enfrentamento à precariedade do mercado de trabalho nacional. Delineia-se, assim, um grande desafio para a nova geração de políticas e programas governamentais no campo do trabalho, o qual necessariamente deve visar a ações intersetoriais. a intersetorialidade como meta para as políticas sociais e um aporte para a inclusão produtiva A demanda por ações intersetoriais no campo das políticas sociais representa uma transição do paradigma cartesiano (mecanicista), que baseou a construção dos campos disciplinares e suas divisões em especialidades, para o paradigma dialético-crítico, que visa a totalidade do fenômeno (GONÇALVES, 2010). A intersetorialidade surge, nesse contexto, como crítica à fragmentação das próprias políticas sociais contemporâneas. A superação do modelo historicamente segmentado e pontual de intervenção das políticas sociais deve pressupor que nenhuma política social tem resolutividade integral em si mesma. A construção de uma relação de complementaridade entre as políticas deve considerar o cidadão em sua totalidade, “nas suas necessidades individuais e coletivas, bem como privilegiando a universalização da proteção social” (GONÇALVES, 2010, p. 67). A intersetorialidade proclama a união entre as políticas públicas que devem, em esforço conjunto, desenvolver ações que possam responder de forma articulada à proteção social, fazer enfrentamento das desigualdades sociais que permeiam as mais variadas áreas. Isso pressupõe um conjunto de programas e projetos que tenham abrangências múltiplas, que visem à superação da fragmentação e a unilateralidade da atenção pública às demandas sociais da população (NUNES, 2012, p. 97). O desenvolvimento de estratégias de gestão que viabilizem abordagens intersetoriais é um dos caminhos necessários para enfrentar situações geradas por condições multicausais. Os objetivos propostos pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS) trazem a necessidade de articulação com outras políticas, indicando que as ações públicas devem atuar de organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler forma integrada no enfrentamento das expressões da questão social. A intersetorialidade, através de ações conjuntas supõe: A implementação de programas e serviços integrados e a superação da fragmentação da atenção pública às necessidades sociais da população. Envolve a agregação de diferentes políticas sociais em torno de objetivos comuns e deve ser princípio orientador da construção das redes municipais. Nesse sentido, transcende o caráter específico de cada política e potencializa as ações por elas desenvolvidas, ampliando a possibilidade de um atendimento menos compartimentado aos cidadãos que dela se utilizam (COUTO; YAZBEK; RAICHELIS, 2012, p. 54). Contudo, como destaca Junqueira (2004), a efetivação de ações intersetoriais incorpora não apenas a compreensão conjunta sobre finalidades, objetivos e indicadores de cada política e programa, mas principalmente práticas sociais articuladas que conduzam a um impacto na qualidade de vida dos usuários das políticas sociais. Para o autor, a viabilização da intersetorialidade “depende da habilidade de criar grupos que possuam um senso compartilhado de realidade com coesão, em torno de entendimentos comuns, que determinam seu crescimento” (JUNQUEIRA, 2004, p. 28). Nessa direção, o debate da inclusão produtiva na assistência social deve estar baseado em concepções que vão além da velha forma de “incluir” pela “exclusão”, considerando a sua relação com as demais políticas, especialmente com a do emprego, trabalho e renda, como pontua Nunes (2012, p. 67): A assistência vista como porta de entrada para outras políticas, dentro de seus objetivos, assume um complexo compromisso com a população que não tem acesso às demais políticas públicas, porém não apresenta aporte de recursos para responder por todas. No entanto, a população só terá direito à assistência social quando as outras políticas falharem. Assim, entendemos que, para que a assistência social possa construir caminhos de inserção produtiva, deve estabelecer uma relação igualitária com as demais políticas especialmente a do trabalho; assim, quem sabe, se abra caminhos para encontrar soluções e alternativas para que os usuários estejam incluídos como pertencentes à classe dos trabalhadores. 111 112 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Levando-se em consideração a questão norteadora deste artigo, que aborda a construção da intersetorialidade entre a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e a Política de Emprego, Trabalho e Renda (PETR) na perspectiva da inclusão produtiva (IC), apontaremos a seguir algumas considerações e desafios. Tendo em vista que ambas as políticas possuem tópicos em comum no que se refere à perspectiva da inclusão produtiva, através de espaços que possibilitam a geração de renda, acreditamos que o desenvolvimento de ações intersetoriais entre as mesmas não só é viável como é possível, contudo, o desafio é grande e está posto: como conduzir a gestão da PNAS e da PETR através de uma perspectiva intersetorial? O primeiro desafio é romper com a ideia de que existem dois públicos diferentes a serem atendidos. De um lado, aqueles que estão em condição de pobreza e de vulnerabilidade social, como os usuários da política de assistência social; e de outro, aqueles que estão desempregados e que por ventura possuem condições de investimento para se tornarem micro empresários, como os usuários da Política de Emprego, Trabalho e Renda. Mesmo com inúmeros avanços, ainda existe a tendência em considerar a figura de “subalterno” e de “pobre incapaz” aos usuários da PNAS, associando-a assim, com a noção de ser uma política de atendimento permanente, diferente do viés associado aos usuários da PETR. Todavia, mesmo estando em situações distintas, o público de ambas as políticas é o mesmo, sendo que a meta da inclusão produtiva para os usuários deve ser planejada através de programas e ações vinculando as duas políticas, de forma a enfrentar as desigualdades sociais nas distintas áreas. O segundo desafio refere-se ao funcionamento das Secretarias de Assistência Social e de Emprego e Renda, que, a nível municipal, são quem de fato operacionaliza a PNAS e a PERT. As mesmas possuem o desafio de propor ações em conjunto e não mais isoladamente. Para tanto, as secretarias podem criar programas que vinculem as duas políticas, especialmente no que diz respeito à gestão, ao planejamento, à qualificação dos usuários, entre outros aspectos. Além disso, levando-se em consideração o mercado de trabalho e o perfil do usuário, através da articulação com outras secretarias, o mesmo pode ser alocado, por exemplo, para empregos na indústria, no comércio ou na agricultura. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler A criação de novos departamentos na dinâmica atual das políticas sociais dos municípios torna-se, dessa forma, não mais uma necessidade, tendo em vista que já existem inúmeras secretarias e cada município tem a liberdade de nomeá-las de formas diferentes. A questão não se refere à criação de novas nomenclaturas para as secretarias e sim, à possibilidade de criar ações conjuntas entre as mesmas, sendo necessário potencializar e aprimorar as relações e os vínculos entre as instâncias já existentes. O terceiro desafio traz a perspectiva da qualificação profissional, tanto dos usuários como dos gestores das políticas. No nível da gestão, a oferta de cursos de especialização antes mesmo do início da atividade laboral torna-se primordial. Em pesquisa6 realizada com gestores e coordenadores da política de assistência de cinco municípios da região metropolitana de Porto Alegre, foi constatado que a qualificação profissional dos mesmos é ineficaz para o desenvolvimento de tal atividade, sendo que muitas vezes há um profundo desconhecimento sobre a própria política na qual atuam. Já para os usuários, os cursos ofertados pelo Governo Federal, efetivamente, não qualificam o trabalhador para mudar a sua real condição, sendo que o aprendizado se dá de forma vertical. A qualificação profissional deve partir dos saberes já existentes, tanto para os usuários como para os gestores. Para tanto, cada município poderia realizar um diagnóstico da região e das potencialidades do município. Além disso, a qualificação deve estar em sintonia com o mercado de trabalho, para que se possa absorver a população que se está qualificando, seja através da economia solidária, do fortalecimento do trabalho autônomo e/ou através de parcerias com entidade públicas e privadas. Para que a PNAS não seja uma política permanente de atendimento na vida do cidadão e para que a PETR não seja somente um aporte para micro empresas em potencial, a intersetorialidade entre as duas políticas torna-se fundamental. Para que a mesma ocorra é necessária a articulação entre sujeitos “que possam criar propostas e estratégias conjuntas de 6 Realizada através do Edital FAPERGS 0001/2009 – Intitulada: “A Política Nacional de Assistência Social e a Política de Emprego e Trabalho” – desenvolvida pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em Trabalho e Assistência Social (GEPsTAS), que está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da PUCRS. Com a participação dos bolsistas de iniciação científica: Fernanda Corrêa da Silva, Rayssa Monteiro e Tarso Germany Dornelles. 113 114 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos intervenção pública para enfrentar problemas complexos impossíveis de serem equacionados de modo isolado” (COUTO; RAICHELIS; YAZBEK, 2012, p. 62). A intersetorialidade, nessa perspectiva, contribui para que as políticas sociais concretizem os direitos sociais, é uma forma de gestão de políticas públicas que está necessariamente relacionada ao enfrentamento de situações concretas vividas pela população trabalhadora, que não pode ficar à mercê do mercado, mas depende do acesso a serviços sociais públicos para o seu enfrentamento. A intersetorialidade supõe vontade e decisão políticas dos agentes públicos, e tem como ponto de partida o respeito à diversidade e às particularidades de cada setor, que não deveria se sobrepor, contudo, aos processos pactuados entre as políticas setoriais no espaço institucional (COUTO; RAICHELIS; YAZBEK, 2012, p. 62). O desafio da intersetorialidade das políticas sociais, bem como o próprio funcionamento do sistema que envolve as mesmas é complexo e necessita da criação de processos e práticas que compactuem com uma gestão intersetorial. considerações finais Defender a intersetorialidade entre as políticas públicas é necessário, porém é uma tarefa difícil e complexa, já que a estrutura organizacional sob o ponto de vista macro (Ministério Público da União) até as estruturas micro (secretarias e departamentos municipais) é constituída por departamentos segmentados, cujo funcionamento ocorre através de processos hierárquicos na tomada de decisão. Apesar dos inúmeros avanços ocorridos nos últimos anos no desenvolvimento das políticas sociais brasileiras, a lógica estruturante das mesmas ainda não favorece, de fato, ações intersetoriais. Propor a intersetorialidade como forma de gestão entre as políticas é defender um rompimento com a atual forma de desenvolvimento das políticas, o que demandaria outras formas de organização do trabalho. As bases epistemológicas da intersetorialidade pressupõem a constru- organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler ção coletiva, a participação dos cidadãos nos processos decisórios e a criação de espaços democráticos de ação. Promover a intersetorialidade entre as políticas sociais pressupõe defender transformações sociais amplas e significativas, que possibilitem a construção de uma sociedade mais justa, democrática e cidadã. referências ALBUQUERQUE, M. C. O sistema único de assistência social e a inclusão produtiva. 2009. 131 p. 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Introdução a economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002. 117 CONTROLE SOCIAL EM SAÚDE E DEMOCRACIA: PARA ALÉM DOS MECANISMOS INSTITUCIONAIS DE PARTICIPAÇÃO SOCIAL1 elisa de andrade abreu lúcia rublescki silveira O controle social é um dos elementos constitutivos do sistema de saúde brasileiro defendido pelo Movimento de Reforma Sanitária e incorporado na Constituição Federal de 1988, através das Leis n° 8.080 e 8.142, ambas de 1990, e que conformam a Lei Orgânica da Saúde. A garantia da participação social na elaboração, na fiscalização e na implementação da política pública de saúde foi uma conquista de lutas históricas dos movimentos sociais articulados pela reforma do setor saúde. Os conselhos de saúde e as conferências caracterizam-se como instâncias formais de controle social inscritos na Lei Orgânica da Saúde. No Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, o termo controle social vem representando a participação da população na elaboração, na implementação e na fiscalização das políticas públicas (BRAVO, 1996). Um importante marco anterior a essa data foi a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que definiu a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa foi a primeira conferência de saúde com ampla participação dos setores organizados da sociedade civil e que, em seu relatório final, inovou, apontando significativas propostas, dentre elas, a universalização do acesso à saúde; mudanças do modelo de atenção à saúde e o estímulo à participação da população nas decisões. Propostas essas que foram contempladas mais tarde na Constituição Federal de 1988. Artigo elaborado para disciplina Política de Saúde e SUS - 2012/01, ministrada pela Professora Dra. Maria Isabel Barros Bellini. 1 118 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos As mudanças no texto constitucional representaram um avanço na garantia de direitos e legitimação da participação social nas diferentes políticas públicas brasileiras, não só do setor saúde. A participação popular, como ficou inscrita na Legislação Federal de 1998, significou importante papel na ampliação da cidadania e na redemocratização do Estado Brasileiro. O debate atual sobre controle social na saúde centra-se, prioritariamente, nos mecanismos institucionais e formais que envolvem a participação social, seja através dos limites e dos desafios que permeiam a consolidação e a efetivação do mesmo enquanto direito social ou em um debate mais amplo – econômico e político – das relações entre Estado e sociedade. Este artigo não pretende analisar as diferentes concepções sobre controle social no debate contemporâneo ou mesmo esgotar o debate acerca dos limites e dos desafios presentes no cotidiano dos espaços e instâncias formais. A presente reflexão se propõe a problematizar o controle social para além dos mecanismos institucionais de participação social. Pretende-se analisar o controle social no campo da saúde, as conquistas históricas, os desafios e sua importância na implantação e funcionamento do Sistema Único de Saúde, bem como, na garantia do atendimento das necessidades sociais visando a melhores condições de vida e saúde para população brasileira. Nessa perspectiva, será apresentada, no primeiro momento, uma breve retrospectiva histórica do controle social e os desdobramentos na atualidade, resgatando as transformações ocorridas no setor da saúde entre as décadas de 1970 e 1980 – período de redemocratização da sociedade brasileira pós-ditadura civil e militar – e as conquistas do Movimento de Reforma Sanitária. A presente análise discutirá também a implementação, desde a década de 1990, de políticas de recorte teórico neoliberal e a disputa entre projetos antagônicos no campo da política de saúde com implicações no exercício e na consolidação do controle social. Pretende-se observar como se configura, na atualidade, o controle social em saúde, apontando reflexões sobre o momento atual. Posteriormente, será realizada uma análise das concepções de democracia e as formas de exercício da mesma na sociedade capitalista, tendo como eixo orientador as possibilidades de ampliação da cidadania na luta por melhores condições de saúde. A questão central deste debate é reco- organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler nhecer as conquistas do movimento sanitarista no que tange à participação social em saúde e à institucionalização dos mecanismos de participação da população como fundamental para a democratização do Estado, bem como, para reforma do setor da saúde. Por fim, objetiva-se também refletir sobre os desafios atuais quanto às possibilidades para além dos mecanismos institucionais de participação social. perspectiva histórica do controle social na saúde e desdobramentos na atualidade Para compreendermos os desafios atuais que envolvem o controle social no campo da saúde faz-se necessário realizar um resgate histórico desde sua concepção até sua implementação, os atravessamentos políticos, sociais, econômicos e culturais que permearam a discussão e a implementação da política pública de saúde no Brasil e do controle social como mecanismo institucional de participação da população. No tocante à política de saúde, considera-se importante retomar a perspectiva histórica do controle social e os desdobramentos das lutas empreendidas pelo Movimento de Reforma Sanitária, bem como, as transformações do sistema de saúde brasileiro após o período de ditadura civil e militar.2 Na sociologia, por muito tempo, o termo controle social esteve relacionado com o significado de controle do Estado sobre os indivíduos e a sociedade. Alguns autores da política clássica3 partiram do entendimento de que o Estado é a instância que preserva a organização da sociedade, não permitindo prevalecer a natureza individualista do homem. Essa concepção tinha uma característica de ausência de interlocução 2 Compreende-se que o regime ditatorial no Brasil contou com a participação ativa de parte da sociedade civil, tanto no golpe de Estado de 1964, como no financiamento do regime e da repressão social presentes nesse período. Sobre esse tema indica-se o documentário intitulado Cidadão Boilesen (2009). 3 Como exemplo, tem-se Locke e Rousseau que em suas análises, concordam entre si, que o poder do Estado reside no povo que renuncia a sua liberdade em favor do Estado e este por sua vez é a vontade geral – é o que eles chamavam de contrato social (CARNOY, 1988, p. 34). 119 120 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos entre Estado e sociedade civil, pois era entendido como necessidade do Estado ter controle para proteger e organizar a sociedade. No Brasil, desde a Constituição de 1988, o termo controle social é utilizado como sinônimo da participação social nas políticas públicas.4 Essa contradição no uso do termo com sentidos tão opostos fez surgir, entre os diferentes autores que hoje apresentam reflexões acerca do assunto, algumas manifestações bastante significativas para o debate. Potyara Pereira5, por exemplo, faz referência ao conceito, assinalando sua preferência por usar “controle democrático” em oposição ao significado original do termo “controle social”, entendendo que evidencia melhor o controle dos cidadãos sobre o Estado e sobre a própria sociedade em oposição ao significado original do termo controle social (PEREIRA, 2008). Correia (2008) realiza a sua reflexão centrando-se na relação entre Estado e sociedade civil, entendendo que o controle social acontece nesse eixo. Utiliza o referencial de Gramsci e descreve a contradição dos espaços de controle social, definindo-os como espaços de luta de classes: A partir do referencial teórico de Gramsci em que não existe uma oposição entre Estado e sociedade civil, mas uma relação orgânica, pois a oposição real se dá entre as classes sociais, o controle social acontece na disputa entre estas classes pela hegemonia na sociedade civil e no Estado. Somente a devida análise da correlação de forças entre as mesmas, em cada momento histórico, é que vai avaliar que classe obtém o controle social sobre o conjunto da sociedade. Assim, o controle social é contraditório – ora é de uma classe, ora é de outra – e está balizado pela referida correlação de forças (CORREIA, 2008, p. 116). 4 Diferentes documentos do Ministério da Saúde fazem referência ao uso do termo controle social como sinônimo de participação social na gestão da política de saúde, exemplos são: As Diretrizes Nacionais para o Processo de Educação Permanente no Controle Social do SUS (BRASIL, 2006), O SUS e o Controle Social: Guia de Referência para Conselheiros Municipais (BRASIL, 2001) e diferentes textos da área temática “Participação e Controle Social” da Biblioteca Virtual em Saúde do Ministério da Saúde. 5 Importante autora da área do serviço social, com publicações sobre o tema. Pereira (2008) referencia o também clássico sociólogo Émille Durkheim quando fala da origem do termo. Durkeim se refere ao termo como controle do Estado sobre a sociedade. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Dessa forma, compreende-se que a existência dos espaços de controle social possibilita o tensionamento e as transformações na gestão do Estado, mesmo que existam limites para a atuação de ambos, Estado e sociedade. O controle social, na perspectiva das classes trabalhadoras, por exemplo, visa à atuação de setores organizados da sociedade civil na cogestão ou na gestão partilhada das políticas públicas no sentido de direcioná-las para que atendam, cada vez mais, às demandas e às necessidades dessas classes. Nesse sentido, o controle social envolve a capacidade que as classes trabalhadoras têm para interferir na gestão pública, orientando as ações do Estado para o atendimento das suas necessidades (CORREIA, 2008). Para compreender o controle social no contexto brasileiro, é essencial conhecer a história da construção desses espaços de participação política. Um importante marco da história foi o final da década de 1970, como palco do ressurgimento dos movimentos sociais organizados, que cresceram e passaram a ter visibilidade após intenso período de interdição da participação social na época da ditadura civil e militar brasileira. Na década seguinte, em meados dos anos 1980, a sociedade brasileira já contava com um movimento social organizado em diferentes setores. Gerschman (2004), ao referir-se ao período, aponta: O final da década de 70 foi um momento sui genesis na política brasileira no que se relaciona ao papel da sociedade civil, com o surgimento de diversas entidades em diversos setores da vida social. Um movimento febril de agitação e oposição política atravessou toda a sociedade, promovendo um amplo debate e mobilização social em prol do fim do regime autoritário e da democratização do País (GERSCHMAN, 2004, p. 67). A direção política e ideológica brasileira, na época representada pelos militares e pela elite político-econômica do país, passou por uma reflexão interna no sentido de como “tratar” a movimentação social crescente que, ao mesmo tempo, demonstrava grande insatisfação com a política econômica vigente no dado período. A estratégia escolhida pelas direções militares e civis foi uma abertura “lenta, gradual e segura” (GERSCHMAN, 2004) para a abertura política do país e o processo de redemocratização do Estado Brasileiro. Nesse contexto de descontentamento da sociedade 121 122 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos civil e agudização da questão social, crescentes no período da ditadura é que os movimentos sociais foram tomando vulto na luta pela redemocratização do Estado Brasileiro. Os movimentos sociais tiveram, no final da década 1970 e durante a década de 1980, importante papel na mobilização da sociedade civil como um todo para a participação do processo de elaboração e promulgação da Constituição Federal de 1988. Defendiam, em seu ideário, a correção de injustiças sociais históricas e novas diretrizes para as políticas públicas e sociais. Sendo assim, foram elaboradas propostas que tinham em comum a ampliação de direitos civis, políticos e sociais e a democratização da gestão do Estado Brasileiro. Nas décadas 1970 e 1980, também ocorreram intensas transformações no sistema de saúde brasileiro, relacionadas ao processo de redemocratização do Estado e ao aumento das desigualdades sociais, fruto do período da ditadura. No início da década de 1980, procurou-se consolidar o processo de expansão da cobertura assistencial iniciado na segunda metade dos anos 1970. Durante esse período, começa a tomar força o Movimento de Reforma Sanitária, originalmente constituído por profissionais do campo da saúde e posteriormente com a adesão de outros segmentos da sociedade, como as centrais sindicais e os movimentos populares de saúde (GERSCHMAN, 2004). Na época, os movimentos sociais se avolumavam e criavam força, tendo como principais bandeiras de luta as demandas por habitação, saneamento básico, educação e saúde, motivadas pelas precárias condições de vida da maioria da população. Esses movimentos – que nasceram de mobilizações populares sem vinculação institucional e reivindicavam a presença do Estado na satisfação de suas necessidades – estavam intimamente ligados à agitação política presente na sociedade. Caracterizando-se esse período como um importante marco no processo de redemocratização do país à medida que se ampliavam as possibilidades, através das lutas dos movimentos sociais e da pressão de eleições diretas para a Presidência da República (GERSCHMAN, 2004). Correia (2008) refere que os movimentos sociais tinham característica de serem antiestatais, com uma postura “de costa para o Estado”, por considerarem este um instrumento da classe dominante e suas instituições organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler instrumentos de repressão, de cooptação e de controle dos movimentos sociais. Essa mesma autora cita que a relação dos movimentos sociais com o Estado foi mudando na década de 1980: De um lado o Estado passa a reconhecer os movimentos sociais como interlocutores coletivos, respondendo a algumas de suas demandas, e, de outro lado, os movimentos sociais presentes na sociedade civil admitem negociar com o Estado, rompendo a posição “de costa para o Estado” (CORREIA, 2008, p. 123). O campo da saúde teve importante participação em todo o processo de redemocratização do Estado Brasileiro por meio, principalmente, dos movimentos sociais em saúde6 que tiveram organização ampliada em todo território nacional e, em alguns momentos, regionalizada. Os movimentos de luta por melhores condições de saúde articulavam diferentes setores do movimento popular, ligados à igreja católica progressista, aos partidos políticos de esquerda, aos sindicatos, aos trabalhadores de saúde, aos estudantes e às associações de bairro localizadas principalmente em comunidades de baixa renda e com péssimas condições de saúde. O meio acadêmico também desempenhou importante papel ao contestar e discutir propostas alternativas ao modelo médico hegemônico que representava baixo impacto nos níveis de saúde da população (GERSCHMAN, 2004). Dessa forma, o movimento de reforma sanitária constituiu-se de um movimento heterogêneo, com diferentes segmentos e posições em relação à institucionalização/autonomia dos movimentos sociais em saúde. Gerschman (2004) refere que a ideia que predominava no Movimento Popular em Saúde (MOPS), desde sua formação, foi que a política do Estado é de cooptação dos movimentos via canais de participação abertos por ele, uma vez que neles o movimento não tem poder total de decisão. Sendo assim, o Estado era apontado como espaço exclusivamente da burguesia. Gerschman (2004) faz referência ao Movimento Popular em Saúde e ao Movimento Médico como principais referências nos Movimentos Sociais em Saúde. Em seu livro “A Democracia Inconclusa: um estudo da Reforma Sanitária Brasileira”, analisa com profundidade o papel de cada um desses movimentos na construção da proposta de reforma sanitária. 6 123 124 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Por outro lado, havia grupos que defendiam a participação social através dos mecanismos estatais de controle social, caracterizando o Estado também como espaço da burguesia, porém considerando as possibilidades de fraturas do mesmo com vistas a pressionar e a negociar a obtenção de conquistas sociais no campo da saúde. Foi com o acúmulo de toda essa movimentação da sociedade brasileira e interna do movimento, inicialmente representado apenas pelos movimentos populares ainda pouco articulados entre si e com disputas internas7 e, posteriormente, com uma concreta proposta de reforma sanitária comum entre eles, que se chegou ao processo constituinte de 1988. As propostas para a saúde existiam concretamente e tinham passado por amplo debate na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que trazia em seu relatório final encaminhamentos que buscavam garantir a incorporação de tais propostas na nova Constituição. É importante destacar que a implementação da política de saúde foi de grande complexidade, com muitos avanços e retrocessos, e só se tornou possível em função da articulação das forças políticas que lutavam pela reforma sanitária e que estavam atentas aos acontecimentos políticos. Quanto às mudanças no modelo assistencial de saúde brasileiro, durante a década de 1980, inicia-se o crescimento dos serviços públicos municipais de saúde por meio da ampliação da atenção básica através da rede de unidades de saúde, dos centros de saúde e dos ambulatórios dos estados e municípios (CAMPOS, 1997). Nesse mesmo período, com a assinatura dos convênios das Ações Integradas de Saúde (AIS), iniciada em 1982, já se previa de maneira incipiente a existência de instâncias de participação social na gestão dos serviços de saúde. Constituindo-se na primeira tentativa de descentralização do setor (GERSCHMAN, 2004). A descentralização política e administrativa do Estado, preconizada como uma das diretrizes do novo sistema de saúde, era vista como des- 7 Duas questões são problematizadas por Gerschman (2004) como significativas no processo de disputas dentro do movimento da saúde (principalmente no Movimento Popular em Saúde): a primeira diz respeito à divergência em relação à estatização total da política de saúde ou alguma participação da iniciativa privada; e a segunda, refere-se a participação ou não nas instâncias institucionais de cogestão em saúde. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler centralização do poder federal e democratização das políticas públicas, bem como uma estratégia de fortalecimento do controle social e da participação da sociedade civil nas decisões políticas (BRAVO, 2004). Dessa forma, observa-se uma nova relação sendo estabelecida entre Estado e sociedade civil. Descentralizar, nesse caso, consistia em colocar o governo mais próximo dos cidadãos, com vistas a torná-lo mais eficiente e mais democrático (CORREIA, 2004). A VIII Conferência Nacional da Saúde, realizada em março 1986, consagra os princípios preconizados pelo Movimento da Reforma Sanitária. Em 1987, é implementado o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), como uma consolidação das Ações Integradas de Saúde (AIS), que adota como diretrizes a universalização e a equidade no acesso aos serviços, a integralidade dos cuidados, a regionalização dos serviços de saúde e da implementação de distritos sanitários, a descentralização das ações de saúde, o desenvolvimento de instituições gestoras e o desenvolvimento de uma política de recursos humanos (ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA, 2001). Como produto de todo o processo desenvolvido durante duas décadas, cria-se então, futuramente, o Sistema Único de Saúde (SUS). A saúde como um direito de todos é um dever do Estado, garantido na Constituição Federal de 1988, no Art. 196, que tem o Sistema Único de Saúde como principal estratégia (BRASIL, 1988), conquistada através de amplas mobilizações dos profissionais de saúde, articulados aos movimentos populares, através do Movimento de Reforma Sanitária. A Lei Orgânica da Saúde – Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990, que regulamentou o Sistema Único de Saúde, logo após sua aprovação, foi vetada pelo Presidente da República da época8, em alguns tópicos fundamentais, entre eles o referente à participação social prevista na lei por meio dos mecanismos das conferências e dos conselhos de saúde. Ocorreu, então, ampla manifestação dos movimentos sociais organizados, exigindo do Congresso a apresentação de um novo projeto de lei (Lei nº 8.142), que acabou aprovado em 28 de dezembro de1990. 8 O Presidente da República, na época, Fernando Collor de Mello, mais tarde, renunciou ao mandato presidencial pressionado por um processo de Impeachment que teve grande participação popular. 125 126 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos O controle social na saúde foi regulamentado em 1990, com a Lei 8.142/90, que juntamente à Lei 8.080/90 conforma a Lei Orgânica da Saúde (BRAVO, 2002). Assim, o controle social no campo da saúde torna-se um direito social fundamental para a consolidação do SUS e o fortalecimento do projeto de reforma sanitária brasileira. É a Lei 8.142/90 que garante o controle social em instância formal: o Conselho de Saúde e a Conferência de Saúde, caracterizados como instâncias colegiadas de gestão e vinculadas aos níveis municipais, estaduais e nacional (SOUZA, 2004). Para Campos (1997), anteriormente, previa-se a participação da comunidade, sem, contudo, maiores especificações de peso de cada segmento nesses espaços. A Lei 8.142/90 dispõe sobre a realização das conferências de saúde, a criação e funcionamento dos conselhos de saúde, e a transferência de recursos do fundo nacional de saúde para os estados e os municípios. A garantia da participação social como direito de cidadania alcançada até esse momento passou a atuar na implantação dos conselhos de saúde e garantiu que a IX Conferência Nacional de Saúde fosse precedida de conferências estaduais e municipais. Porém, a partir daí, acirraram-se, cada vez mais, também, as disputas internas dos movimentos sociais da saúde por divergências na implantação das reformas do sistema e lutas em busca de uma nova hegemonia (GERSCHMAN, 2004). As conferências e conselhos de saúde passaram a representar uma realidade na política de saúde brasileira. A Lei nº 8.142/90 (BRASIL 1988), assim os define: § 1° A Conferência de Saúde reunir-se-á a cada quatro anos com a representação dos vários segmentos sociais para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, por esta ou pelo Conselho de Saúde. § 2° O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler A participação nas conferências e conselhos é de 50% de usuários, 25% de trabalhadores de saúde e 25% de gestores e prestadores de serviços. Cada segmento deve ter uma organização própria e escolher seus representantes. A participação dos usuários tem destaque e agrega forças com os trabalhadores e gestores. Os espaços dos conselhos e das conferências são permeados por disputas de interesses e tensão entre projetos societários distintos. Raichelis (2006) reflete sobre a contradição no funcionamento dos conselhos, porém lembra o impacto destes no papel do Estado: Pela sua composição paritária entre representantes da sociedade civil e do governo, pela natureza deliberativa de suas funções e como mecanismo de controle social sobre as ações estatais, pode-se considerar que os conselhos aparecem como um constructo institucional que se opõe à histórica tendência clientelista, patrimonialista e autoritária do Estado Brasileiro (RAICHELIS, 2006, p. 77). No entanto, quando analisado o processo histórico da participação da sociedade civil na vida política e da relação histórica desta com o Estado, observa-se que o controle social na saúde, por muito tempo, foi entendido e operacionalizado como um controle do Estado sobre a sociedade. Porém, a concepção de controle social, inscrita na Constituição Federal e defendida pelo movimento sanitarista é o da participação da população na elaboração, implementação e fiscalização das políticas de saúde (BRAVO, 2004). Com relação ao processo histórico da concepção de controle social têm-se progressivamente quatro momentos diferenciados: “o Estado controlando a sociedade; a sociedade apenas completando o Estado; a sociedade combatendo o Estado; e a sociedade participando das decisões do Estado” (BRAVO, 2004, p. 47). Sendo assim, o controle social é um dos princípios fundamentais da Reforma Sanitária Brasileira. Foi inserido na Constituição Federal de 1988 como uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde. O objetivo principal dos conselhos de saúde é discutir, elaborar e fiscalizar a política de saúde em cada esfera de governo (BRAVO; SANTOS, 2006). O Estado, ao abrir canais de participação social, também busca se legitimar incorporando 127 128 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos as demandas e as necessidades da população. Com isso, Correia (2008) chama a atenção para o aspecto contraditório desses espaços: Vale destacar o aspecto contraditório desses mecanismos de participação institucionalizados na área da Saúde, pois, apesar de terem sido conquistados sobre pressão, podem se constituir em mecanismos de legitimação do poder dominante e cooptação dos movimentos sociais. Mas, também podem ser espaços de participação e controle social dos segmentos populares na perspectiva de ampliação da democracia e de construção de uma nova hegemonia (CORREIA, 2008, p. 125). Entretanto, pode-se afirmar que o controle social conquistado como direito de cidadania foi um importante avanço na política de saúde e no processo de redemocratização do Estado Brasileiro. Considerando o aspecto contraditório dos mecanismos institucionais de participação social, é necessário destacar os seus limites e possibilidades enquanto espaços de controle social que objetivam a ampliação da democracia e da cidadania. Alguns estudiosos como, por exemplo, Marcosin e Caetano (2010), referem que a implantação do SUS, como prevista na Constituição de 1988, nunca chegou a completar-se de fato devido ao “retraimento” do Estado realizado pelos governos de orientação neoliberal. Sendo assim, a partir da década de 1990, percebe-se uma forte ofensiva com as políticas econômicas de recorte teórico-neoliberal, na qual começa a se estruturar um projeto antagônico à proposta de reforma sanitária, chamado por alguns autores como, Bravo, Vasconcelos e Souza, de projeto privatista (saúde articulada ao mercado), e suas principais propostas são: [...] caráter focalizado para atender as populações vulneráveis através do pacote básico para a saúde, ampliação da privatização, estímulo ao seguro privado, descentralização dos serviços em nível local, eliminação da vinculação de fonte com relação ao financiamento (COSTA apud BRAVO; MATOS, 2008, p. 101). Essas propostas não só se contrapõem ao projeto sanitarista, como também tendem a debilitar e a enfraquecer os espaços de representação organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler coletiva e controle social sobre o Estado, conquistas das mobilizações populares. Percebida essa contradição, considera-se fundamental pensar em alternativas de viabilização do projeto sanitarista através da ampliação, do fortalecimento e da criação de novos espaços de participação social, envolvendo os diversos sujeitos políticos e sociais preocupados com o fortalecimento do projeto de reforma sanitária, comprometidos com a ampliação dos direitos sociais e conquistas obtidas na Constituição Federal de 1988 (BRAVO, 2004). A luta entre projetos antagônicos de disputa por modelos de saúde no Brasil é bastante presente e está cada vez está mais acirrada nos dias de hoje. O projeto privatista conta com forte influência teórico-neoliberal opondo-se em todos os aspectos ao projeto de reforma sanitária. Essa disputa entre os dois projetos para a saúde permeia todos os espaços, inclusive os mecanismos de controle social, e se manifesta com diferentes roupagens. A participação social na saúde e os mecanismos institucionais de controle social foram uma conquista do movimento de reforma sanitária e da sociedade brasileira. O objetivo da presente análise não é o de despontencializar esses espaços de participação social, mas de problematizar os desafios postos na atualidade quanto à incorporação de demandas e necessidades do conjunto dos cidadãos brasileiros no que se refere à política de saúde e defesa do projeto sanitarista gestado na década de 1980. Considerando os aspectos contraditórios dos mecanismos institucionais existentes, torna-se necessário refletir sobre os limites e as possibilidades de exercício da cidadania nesses espaços enquanto via de acesso para garantia de melhores condições de vida e saúde para população brasileira. O objetivo da presente análise é problematizar e afirmar a necessidade, como referem Bravo e Matos (2006), de fortalecimento, ampliação e criação de novos espaços de participação social com vista a repensar o controle em saúde. Com o intuito de reconhecer as conquistas e os avanços no que se refere ao controle social em saúde e os desafios ainda presentes no tocante à participação social nos espaços formais é que serão analisadas, na próxima parte, as perspectivas de democracia e as possibilidades de ampliação da cidadania no campo da saúde. 129 130 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos democracia e ampliação da cidadania: repensando o controle social em saúde Para repensar o controle social em saúde tendo em vista os seus avanços e desafios desde a sua incorporação no texto constitucional brasileiro, considera-se importante situar as concepções de democracia presentes na sociedade capitalista, pautada em princípios neoliberais, em que, até mesmo a liberdade, está atrelada ao consumo e à saúde articulada ao mercado. Dessa maneira, pretende-se analisar o campo da democracia e da política de saúde em uma dinâmica contraditória que coloca desafios e possibilidades para o exercício do controle social nos espaços institucionalizados de representação coletiva e de participação social na sociedade contemporânea. Para muitos, a democracia teve sua gênese nas revoluções burguesas, no entanto, através de lutas históricas da classe trabalhadora, em oposição à burguesia, os trabalhadores conquistaram o desenvolvimento da democracia nas sociedades capitalistas, mas ela, aos poucos, também se tornou funcional à burguesia que, em muitos momentos, se utilizou dela para legitimar suas propostas (COUTINHO, 2000). Essa contradição, que acaba muitas vezes dando suporte para a manutenção do modo de produção, é essencial ser percebida, também, como um meio de transformação. Considerando as questões históricas, políticas, sociais, econômicas e culturais da sociedade brasileira, os conselhos e as conferências (instâncias institucionalizadas de participação social) se inserem como mecanismos de resistência e ruptura com o instituído. Entendendo a democracia na perspectiva da soberania popular, conceito grego que significa poder do povo (demos = povo; kratos = poder) (BIZ; PEDROSO, 1998), cabe destacar que discutir democracia na atualidade exige não só saber o significado dessa palavra e o contexto de seu surgimento, visto que, na literatura, há muitas controvérsias. Para Guarinello (2010), a imagem que se fazia da cidadania e democracia antiga é falsa e idealizada tendo em vista que, na Grécia Antiga, os cidadãos que participavam das decisões eram a elite política, econômica e intelectual. Porém, considera-se importante conceber a democracia no seu aspecto contraditório das possibilidades e dificuldades do seu exercício, nos espaços coletivos. Assim, se faz presente a questão de “aonde queremos chegar” organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler (que projeto de sociedade acreditamos, lutamos e queremos). Deve-se refletir e situar em que realidade configura-se a democracia e os desafios para o exercício da cidadania na atual conjuntura e ao longo da história. Convém afirmar que em uma mesma sociedade podem conviver elementos das duas formas de exercício de democracia: a democracia representativa, atrelada ao voto e à escolha de representantes; e a democracia direta ou participativa, em que todas as pessoas têm o direito e o poder na tomada de decisões (BIZ; PEDROSO, 1998). Percebe-se também que os variados tipos de governos/regimes políticos também comportam mais de um tipo de exercício de democracia política. Entretanto, conforme a concepção político-ideológica adotada privilegia-se mais um tipo ou outro de exercício de democracia ou intercambiam as duas formas, conforme a proposta de governo e os determinantes sociais, políticos, econômicos e culturais. Os canais de participação social também variam de uma gestão para outra, conforme os princípios ideológicos que os norteiam. É importante salientar que a democracia direta e participativa também pode ser possível nas sociedades capitalistas, muitas vezes se caracterizando como um dos instrumentos e caminho para o processo de mudança do sistema político-econômico e da descentralização do poder. Nesse contexto, verifica-se uma tensão entre o que as classes dominantes entendem por democracia e seu exercício, frente ao que representam os canais de exercício da democracia, no seu sentido emancipatório9, como uma expressão de lutas da classe trabalhadora para criação e ampliação desses canais de participação e reivindicação na luta pelos seus direitos sociais. Portanto, há possibilidade de existência e efetivação de mecanismos democráticos na sociedade atual, mecanismos esses de participação política ativa como as reuniões dos Conselhos de Direitos, o Orçamento Participativo, os movimentos sociais, os sindicatos, as associações de moradores, os fóruns, dentre outros e, mesmo que alguns deles sejam 9 A emancipação política é um grande progresso quando conquistada, mas não é emancipação humana e “o limite da emancipação política aparece logo no fato de que o Estado pode libertar-se de uma barreira sem que o homem esteja realmente livre dela, [no fato que] o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre” (MARX, 2009, p. 48). 131 132 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos mecanismos institucionais, é necessário ocupar esses espaços e lutar pela ampliação, divulgação, fortalecimento e criação de outros (BRAVO, 2004). No entanto, é importante considerar os aspectos históricos, políticos, econômicos, sociais e culturais que determinam as formas de participação política na sociedade contemporânea e que sempre determinaram, de uma forma ou de outra, a participação dos sujeitos na vida política. As desigualdades econômicas e sociais, típicas da sociedade capitalista, assentadas na luta de classes antagônicas é um dos elementos que dificultam o exercício do controle social enquanto direito de cidadania. O processo histórico do desenvolvimento capitalista se deu através da exploração e da “exclusão” social, mas que na verdade se caracterizam por processos de inclusão perversa que reiteram a subalternização dos segmentos sociais. Atualmente, problematizar a efetivação da democracia não é uma tarefa fácil, visto que os mecanismos de poder e o próprio Estado estão assentados e pautados em uma lógica neoliberal (que transcende fronteiras dos Estados nacionais) centrada no individualismo e na lógica mercantil. Isso se expressa nas palavras de Galeano (2002), que coloca que, nesse contexto, os direitos civis e sociais são transformados em favores do poder. Não se desconsidera a importância da democracia representativa, porém deve haver uma articulação entre democracia direta, participativa e representativa. A democracia representativa pode sim, e deve, ser mais democrática e participativa (participação consciente) se houver mecanismos de controle social, em que as pessoas possam realmente estar participando qualitativamente e priorizando as demandas coletivas e sociais. Baseado no conceito de hegemonia de Gramsci, Santos (2003) refere-se à forma hegemônica da democracia sendo representativa e elitista, e a democracia participativa e popular sendo um processo contra-hegemônico, do qual são elaboradas formas econômicas, políticas e morais alternativas. Assim, todas as alternativas e ações que privilegiam a democratização e descentralização do poder, incentivando a autonomia e a emancipação dos cidadãos e a participação política de forma ativa e direta caracterizam-se como ações contra-hegemônicas ou de busca por uma nova hegemonia. Portanto, qualquer ação democrática (mesmo que micro) que se caracterize como contra-hegemônica deve estar assentada na perspec- organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler tiva de socialização do poder e da política. Dessa forma, acreditamos ser possível vislumbrar a construção coletiva de uma nova ordem societária pautada em valores democráticos e humanistas que contribuam para a emancipação política rumo à emancipação humana. A democracia não necessariamente deve estar vinculada à vontade de uma maioria, acredita-se que a “vontade de todos”, quase sempre, exclui algumas partes da população. É necessário que interesses divergentes encontrem uma forma de representação política adequada (COUTINHO, 2000). Isso nos remete à ideia de igualdade, que deve estar pautada no princípio de equidade e liberdade, bem como, ao respeito à diversidade, às singularidades e às diferenças. Portanto, acredita-se na premissa de que os conselhos e as conferências de saúde não são espaços de consenso e sim de representação das diferenças, nos quais projetos societários e interesses distintos estão em disputa. O controle social institucionalizado na saúde vem sendo operacionalizado através dos conselhos e das conferências (nos níveis nacional, estadual e municipal). Para Correia (2008), “a expressão controle social tem sido alvo de discussões e práticas recentes de diversos segmentos da sociedade como sinônimo de participação social nas políticas públicas”, a mesma autora refere-se a Bravo no que tange a análise do controle social dentro da democratização do Estado via participação na gestão das políticas públicas, considerando os conselhos como espaços de tensão entre interesses contraditórios, baseando-se no conceito de democracia de massas (BRAVO apud CORREIA, 2008). Partindo do pressuposto de que a cidadania está atrelada ao exercício da democracia e é resultado de uma luta permanente (COUTINHO, 2008), é que surge a necessidade da luta pela defesa e ampliação dos mecanismos de controle social institucionalizados, tendo em vista as possibilidades de ampliação da democracia e da universalização da cidadania. No entanto, considera-se importante a reflexão e o debate político sobre a necessidade de incorporação das demandas e das necessidades coletivas e sociais que não estão representadas nos mecanismos institucionais visando à ampliação e ao fortalecimento de espaços não institucionalizados de luta social no campo da saúde, exercendo, da mesma forma, controle sobre as ações do Estado. 133 134 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos O controle social garantido como direito no texto constitucional contribui para a ampliação da cidadania, identificando o cidadão inserido na sociedade com direitos e deveres, diferentes de uma mera visão de consumidor de bens e serviços. A participação cidadã é de fundamental importância para que seja efetivo o controle social. Nessa perspectiva, a cidadania constitui-se como conceito político, pois: Cidadania é a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada com texto historicamente determinado [...]. A cidadania não é dada aos indivíduos de uma vez para sempre, não é algo que vem de cima para baixo, mas é resultado de luta permanente, travada sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando assim um processo histórico de longa duração (COUTINHO, 2008, p. 50). Portanto, entende-se que o controle social na saúde como um instrumento de ampliação da cidadania propicia, para além da participação, o sentimento de pertencimento dos sujeitos envolvidos na tomada de decisões, desencadeando processos sociais participativos, de modo a efetivar transformações que avancem na consolidação do SUS e na garantia de acesso universal à saúde com qualidade. Com relação aos conselhos e às conferências, pode-se afirmar que se constituem em espaços formais, institucionalizados, de disputas de interesses. Estes permeados por contradições fundamentais onde a população usuária dos serviços de saúde passa a inferir sobre a política pública enquanto sujeito político na luta por melhores condições de vida e saúde (BRAVO, 2004). Nesse sentido, torna-se imprescindível pensar em alternativas de viabilização e ampliação do projeto construído na década de 1980 e na articulação com as demais políticas, através dos movimentos sociais e com as diversas categorias profissionais que atuam no campo da saúde (BRAVO; MATOS, 2006). Pensar nos avanços e retrocessos da política de saúde e das políticas sociais no Brasil requer não entregar de “mão beijada” organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler as conquistas de direitos civis, políticos e sociais da sociedade brasileira e sim lutar, cada vez mais, nos espaços coletivos, pela ampliação e pela consolidação do projeto de reforma sanitária, comprometido com a radicalização da democracia. A questão que se coloca é a contradição expressa entre a cisão dos mecanismos institucionais legalmente constituídos e a fragilidade dos espaços não formais relacionados à participação política da sociedade civil. Espaços não institucionalizados de participação social deveriam ter maior visibilidade e serem potencializados na medida em que contribuem de forma efetiva com os espaços institucionalizados já existentes. As formas de democracia representativa já vêm dando sinais de esgotamento, apresentando pouca efetividade quando não articuladas com as bases sociais e privilegiando exclusivamente o consenso. Diversas são as formas alternativas de participação social que buscam contribuir com a ampliação da cidadania e da democratização da política de saúde com vistas ao fortalecimento dos princípios defendidos pelo projeto de reforma sanitária e que não encontram representação nos espaços formais tendo em vista a forma como estão constituídos. considerações finais Considera-se importante sinalizar que a presente análise constitui-se em um primeiro ensaio envolvendo a temática. Não pretendendo esgotar o debate e as diversas dimensões que envolvem o tema do controle social em saúde e os mecanismos institucionais de participação social. O objetivo é disparar o debate sobre a temática a fim de repensar os espaços de participação social existentes. Não se pretende despotencializar ou desconsiderar a importância dos mecanismos, como os conselhos e as conferências, mas refletir sobre o fortalecimento, a ampliação e, acima de tudo, a urgência de criação e potencialização de novos espaços que contemplem as necessidades da população. Atualmente, muitos são os limites e desafios dos mecanismos institucionais, tais como: a burocratização; a forma de escolha dos representantes; a falta de transparência dos processos de gestão envolvendo o financiamento público; a não legitimação efetiva das deliberações realizadas nos espaços e mecanismos institucionais; a falta de capacitação dos conselheiros (usuários 135 136 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos e trabalhadores) e gestores; entre outros. O que acaba levando a população ao descrédito nos espaços formais de participação social. A funcionalidade desses mecanismos institucionalizados para a legitimação do Estado e para o sistema do capital também se coloca em questão, retomando a discussão realizada pelo Movimento de Reforma Sanitária quanto à institucionalização versus autonomia do movimento social frente ao Estado. O controle social na saúde foi uma conquista do Movimento de Reforma Sanitária, porém, hoje, apresenta limites e desafios. Conceitualmente, observa-se que, geralmente, é utilizado o termo “controle social” para os mecanismos institucionais já existentes. Consideramos que o exercício do controle social, da sociedade controlando as ações do Estado, deve ser considerado para além dos mecanismos formais tendo em vista os limites e os desafios desses espaços. A contradição expressa nos conselhos e nas conferências de saúde é uma realidade que retoma a questão do controle social ser espaço de disputa de classes e de luta por uma nova hegemonia e que, portanto, tem que ser visto dialeticamente na perspectiva de coexistirem, dentro dele, movimentos de ampliação da democracia e de legitimação do poder dominante (CORREIA, 2008). Não se pode negar o importante avanço que representou a conquista e a implantação do controle social na política de saúde no Brasil. A questão que se coloca para reflexão é a necessidade de potencialização das lutas por melhores condições de saúde para além dos mecanismos formais. Concebendo, inclusive, a importância da legitimação dessas lutas para o fortalecimento desses espaços e para o efetivo controle da sociedade sobre as ações do Estado com vistas à garantia de melhores condições de vida e saúde. referências ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA. SUS o que você precisa saber sobre o Sistema Único de Saúde. V. II, 1. ed. São Paulo 2001. Disponível em: http:// www.periciamedicadf.com.br/publicacoes/Cartilha_SUS_APM_2000_Vol2. pdf, Acesso em: 22 maio 2013. BIZ, O.; PEDROSO, E. Participação política: limites e avanços. 8. ed. Porto Alegre: Evangraf. 1999. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Diretrizes nacionais para o processo de educação permanente no controle social do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. ______. Ministério da Saúde. O SUS e o controle social: guia de referência para conselheiros municipais. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. ______. 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A motivação pela temática surgiu a partir da realidade vivenciada na Residência Integrada em Saúde (RIS)1, ao compor a equipe de saúde responsável situada no território da Vila Dique. A população moradora desse território que é atendida por essa equipe, por estar localizada numa área de ocupação irregular, está sendo removida para outra região em Porto Alegre, no extremo norte da cidade. Acompanhar esse processo, através da equipe de saúde, possibilitou a construção de alguns questionamentos e reflexões. A partir do entendimento do conceito ampliado de saúde, considerando seus determinantes e condicionantes, a sua promoção depende da articulação e da integralidade de todos os serviços e políticas públicas. 1 Modalidade de ensino de especialização, de pós-graduação lato sensu, com duração mínima de dois anos, em que os profissionais da área de saúde vivenciam a prática, inseridos no universo de trabalho. 142 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Verificou-se, então, que a população em processo de remoção apresentava dificuldades no acesso aos direitos sociais essenciais para a promoção da saúde de forma integral. Assim, o presente artigo busca problematizar aspectos referentes à remoção, a fim de identificar ações articuladas entre as políticas públicas envolvidas, evidenciando o reconhecimento da intersetorialidade pelos executores das mesmas, no planejamento e na implementação de suas ações e a relação com a promoção da saúde. percurso metodológico O método que fundamenta esta pesquisa é o materialismo histórico e dialético ou método dialético-crítico de inspiração marxiana, que encontra-se como parte dessa perspectiva teórica. Ele apresenta-se tanto na investigação quanto na exposição e na análise dos resultados da pesquisa. Ou seja, na questão expositiva, na descrição da realidade e na análise, com vistas ao seu desocultamento, sua compreensão e em seus apontamentos para processos de transformação. Com isso, o método transversaliza o estudo, pois também refere-se ao modo como se interpreta a realidade. Caracteriza-se por uma pesquisa qualitativa, desenvolvida a partir do estudo de caso da remoção da Vila Dique. Para realização do mesmo, foram entrevistados os executores das políticas públicas de habitação, assistência social, educação e saúde atuantes nesse processo. O procedimento de amostragem foi de caráter intencional, que conforme Gil (2010, p. 94), “constitui um tipo de amostragem não probabilística e consiste em selecionar um subgrupo da população que, com base nas informações possa ser considerado representativo”. Dessa forma, partiu-se da identificação de representantes de cada um dos setores descritos acima, que participam de reunião intersetorial sistemática que ocorre durante o processo de remoção estudado e que aceitaram participar da pesquisa, através da assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido. Os dados obtidos através das entrevistas foram trabalhados a partir da análise de conteúdo, que segundo Minayo et al. (2008, p. 199) refere-se à “verificação de hipóteses e/ou questões e à descoberta do que está por trás dos conteúdos manifestos”. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Ainda dentro da análise dos dados, Minayo et al. (1991, p. 79) trazem uma proposta dialética para isso, evidenciando que por mais brilhante e perfeita que seja a pesquisa realizada, o “produto final da análise deve ser sempre encarado de forma provisória e aproximativa”, pois os dados analisados serão uma aproximação de análise de um determinado contexto e experiência. Esses dados devem ser contextualizados, conforme a realidade de cada tempo e espaço. No entanto, as reflexões produzidas poderão despertar outras reflexões em outras experiências semelhantes, possibilitando novos estudos. a vila dique Os moradores da Vila Dique vivem, atualmente, um processo de transferência de residências e recursos comunitários e sociais, iniciado no ano de 2009. O governo brasileiro, desde a definição de que o Brasil sediará2, em 2014, o campeonato mundial de futebol, evento com grande repercussão internacional, iniciou diversas obras de reforma e modernização de espaços de utilidade pública, implicando a remoção e a realocação de famílias. Os aeroportos também devem ser modernizados e ampliados, como é o caso do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre. Esse aeroporto também sofrerá alterações, dentre elas, a ampliação de sua pista, que só possível acontecer no seu sentido norte, implicando a remoção da Vila Dique. Localizada às margens da pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho, a Vila Dique tem a sua formação nos anos de 1960, quando famílias vindas do interior do estado do Rio Grande do Sul e de outras vilas de Porto Alegre, passaram a ocupar essa área. As famílias foram construindo suas residências e suas vidas nesse local, dito de ocupação irregular ou ainda de preservação ambiental. Uma transferência de moradias de grande porte3 interfere em muitos aspectos da vida dos seus moradores e dos trabalhadores dos serviços lo- 2 O presente artigo foi escrito antes da Copa do Mundo de 2014. 3 Conforme dados divulgados pela comissão que acompanha o processo de remoção, cerca de 1500 famílias serão removidas. Atualmente, mais de 500 famílias já foram reassen- 143 144 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos calizados nesse território. Verifica-se, então, a necessidade de articulação de diferentes políticas públicas para que se garantam condições mínimas de vida nesse processo. A situação exige que muitas ações sejam pensadas para que, além da população e sua moradia, os recursos sociais comunitários também estejam assegurados na nova morada. Existem documentos que orientam projetos e ações de remoção e reassentamento, apontando alguns pressupostos que devem nortear tais ações para minimizar o impacto social causado. Dentre elas, estão o remanejamento e/ou reassentamento/realocação deve ser realizado quando as famílias estiverem enquadradas nos seguintes casos: expostas a riscos de incêndio, inundação, desabamento, deslizamento, tremores de terra, sob fios de alta tensão, próximas a áreas insalubres, em áreas de preservação ambiental ou em áreas imprescindíveis à regularização urbanística do bairro, para implantação de infraestrutura e/ ou sistema viário. O local de reassentamento deve, preferencialmente, ser próximo à área original, em respeito aos laços de vizinhança e amizade já estabelecidos. A área receptora deve ser servida de infraestrutura básica e equipamentos comunitários que atendam a demanda da comunidade ou estes itens devem estar previstos no projeto. As condições de habitabilidade da nova solução oferecidas às famílias a serem reassentadas/removidas devem ser equivalentes ou superiores à situação inicial (CEF, 2009, p. 38). O documento orienta para a busca de todas as alternativas que minimizem a necessidade de reassentamento ou realocação de famílias. Só deverão ser remanejadas famílias que estão expostas a riscos, e para áreas próximas de onde viviam, destinando-se a locais dotados de infraestrutura e condições de habitabilidade. No entanto, na experiência dos moradores da Vila Dique, até o momento atual, verifica-se a prioridade dada a desocupação da área próxima à ampliação da pista do aeroporto, desconsiderando a prioridade de tadas no novo loteamento, em casas com aproximadamente 38 m². organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler famílias com risco social. Além disso, o novo loteamento não é próximo ao território antigo e os recursos e equipamentos comunitários, com exceção do centro social e do galpão de reciclagem, não estão concluídos, não correspondendo às reais demandas da comunidade, como considera o documento citado acima. resultados e discussões – discorrendo a partir dos objetivos do estudo. o reconhecimento da intersetorialidade pelos executores das políticas públicas Com o objetivo de identificar a intersetorialidade das políticas públicas no processo de remoção da Vila Dique, buscou-se verificar como os executores das políticas públicas reconhecem a intersetorialidade no planejamento e na implementação de suas ações no processo de remoção da Vila Dique. As políticas públicas configuram-se como meios de acesso e viabilização de serviços sociais e direitos que vão implicar a promoção da saúde. É no bojo do planejamento e da implementação das políticas que se dará a atenção e a rede de cuidado aos sujeitos. Considera-se o conceito de política pública e social trazido por Pereira (2008, p. 173, grifos do autor): Ao contemplar todas as forças e agentes sociais comprometendo o Estado, a política social se afigura uma política pública, isto é, um tipo dentre outros de política pública. Ambas as designações (política social e política pública) são policies (políticas de ação) [...] Fazem parte desse gênero relativamente recente na pauta dos estudos políticos, todas as políticas (entre as quais a econômica) que requerem a participação ativa do Estado, sob o controle da sociedade, no planejamento e execução de procedimentos e metas voltadas para a satisfação de necessidades sociais. As políticas públicas são uma forma de materialização de direitos assegurados pela legislação. Conforme Pereira (2008, p. 165) “[...] não se deve esquecer que mediante a política social é que direitos sociais se concretizam e necessidades humanas (leia-se sociais) são atendidas na perspectiva da cidadania ampliada”. 145 146 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Historicamente as políticas públicas sociais se conformaram como instrumento de concessão da burguesia à classe trabalhadora, como forma de evitar conflitos e pressões dos movimentos populares pela reivindicação de direitos e uma possível superação do modelo capitalista de organização societária. Assim, [...] as políticas sociais, resultantes das lutas e conquistas das classes trabalhadoras, assumem caráter contraditório, podendo incorporar as demandas do trabalho, e impor limites, ainda que parciais, à economia política do capital. Nessa perspectiva, ao garantir direitos sociais, as políticas sociais podem contribuir para melhorar as condições de vida e trabalho das classes que vivem do seu trabalho, ainda que não possam alterar estruturalmente o capitalismo (CFESS, 2009, p. 10). As políticas públicas e sociais, executadas por setores específicos, acabam carregando características de ações fragmentadas, sendo um desafio pensar num sistema de proteção social integrado. Evidencia-se a necessidade de um novo tipo de atuação do Estado, onde as políticas públicas estejam articuladas entre si, superando a histórica fragmentação presente nas ações estatais no Brasil. Há a necessidade de um novo modus operandi das políticas, fazendo com que suas ações intersetoriais contribuam para promoção de uma atenção integral à saúde. Esse tipo de atuação do Estado suscita o debate em torno da intersetorialidade, tornando-se questão central para este estudo. Para isso, buscou-se definições que possibilitassem a realização de reflexões sobre essa categoria, que conforme Fernandez e Mendes (2007, p. 56): Pressupõe a integração de estruturas, recursos e processos organizacionais e caracteriza-se pela corresponsabilidade dos diferentes setores governamentais, que se relacionam entre si, não governamentais e da sociedade civil, no sentido do desenvolvimento humano e da qualidade de vida. Ou seja, a partir de uma realidade que é tão complexa, são necessárias ações também complexas e totalizantes que possam ser pensadas e organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler implementadas intersetorialmente. Porém, como referem os autores, a intersetorialidade não deve se estabelecer apenas como um princípio, mas “como uma prática concreta a ser estabelecida, um problema a ser enfrentado, um desafio a ser conquistado” (FERNANDEZ; MENDES, 2007, p. 89). Assim, parte-se de uma experiência concreta para evidenciar como se dá a articulação das políticas públicas, através de um processo de remoção de comunidade. Dessa forma, traz-se primeiramente a compreensão de intersetorialidade dos sujeitos pesquisados. [...] seria realmente essa comunicação, essa sequência de atitudes, de conhecimentos, de envolvimento em prol de uma coisa acontecer corretamente, que todo mundo soubesse, falasse a mesma linguagem (E1). [...] é o trabalho de redinha entre setores, o município tenta fazer, tenta trabalhar (E2). Trabalhar com as outras políticas: educação, saúde, que a gente tem uma boa interlocução e acho que isso soma bastante para os usuários dos serviços [...]. Acho que é um conceito que tá muito mais no nosso vocabulário que na nossa prática ainda (E3). Nenhuma política vive sozinha [...] só que infelizmente num projeto grande é que a intersetorialidade tem que andar num ritmo meio junto. Só que isso não acontece, uma começa antes, outra começa depois, outra um ano depois começa e isso atrapalha drasticamente o trabalho social em todos os níveis. As famílias começam a desacreditar [...]. Então, a intersetorialidade, o nome já diz inter, então uma influencia na outra, se a saúde não funciona, o nosso trabalho não funciona também [...] (E4). Nas falas dos sujeitos entrevistados é possível identificar a compreensão de intersetorialidade de uma maneira comum entre eles. No entanto, faz-se necessário destacar que esse é um conceito que ainda não se configura totalmente como uma prática consolidada. Para Grossi e Guilamelon (2006, p. 6), a intersetorialidade “é uma nova prática social, reconstruída a partir da reflexão e do exercício democrático”. A fala, por exemplo, em que o sujeito entrevistado afirma que a intersetorialidade está mais no vocabulário que no seu exercício prático traduz um pouco dessa dimensão. Assim, o desafio do fazer intersetorial é o 147 148 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos estabelecimento de um processo de esforços coletivos, com respeito às diversidades dos atores que almejam essa nova forma de operar. Destaca-se ainda o fato de haver um descompasso no trabalho desenvolvido pelas políticas públicas. Pode-se interpretar isso em relação ao tempo de atuação e à forma de trabalho que acaba interferindo na efetivação dos direitos da comunidade e gerando um descrédito na população usuária dos serviços. A partir dessas falas, identifica-se a necessidade de um novo modo de operacionalizar as políticas públicas, principalmente no contexto da experiência de um processo de remoção. Para isso, torna-se crucial observar os limites e as possibilidades desse fazer intersetorial a partir dessa experiência, para que as ações rumem para a real efetivação de direitos da população em processo de remoção. a intersetorialidade das políticas públicas: limites e possibilidades Considerando os aspectos apontados anteriormente, buscou-se identificar ações desenvolvidas através das políticas públicas que reuniam os diferentes atores envolvidos no processo de remoção da Vila Dique, a fim de analisar suas potencialidades e limites. Partindo da fala dos sujeitos entrevistados, algumas ações desenvolvidas intersetorialmente podem ser identificadas. Com isso pode-se refletir sobre os limites e as possibilidades desses espaços e desse fazer intersetorial. Começamos a participar das reuniões na comunidade desde o início das negociações para saída da comunidade [...]. Começamos a participar, eu e o colega na reunião da CAP e da CAO que é Comissão de Acompanhamento de Obra e Comissão de Acompanhamento de Projeto, que faz parte do contrato da Caixa Econômica Federal de acompanhamento e monitoramento do reassentamento [...]. No primeiro momento, foram escolhidas pessoas representantes de cada instituição, no caso, aparelho social da comunidade, representantes da comunidade, escola, creche, galpão de reciclagem, clube de mães e o posto de saúde (E1). Tem uma vez por mês uma reunião intersecretarias, mas o que acontece é que a grande maioria que participa dessas reuniões na gestão, que seria o centro de governo, como a gente diz, são organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler os governadores, não é o pessoal da ponta, não é quem está executando, então muitas vezes eles dão sugestões de melhorias para o processo, mas isso não é nem discutido com a equipe que está na ponta, [...] não levam nessa reunião as reais necessidades [...]. Então existe isso, a reunião intersecretarias, a CAP, CAO, e agora que estamos formatando uma reunião de rede, mas é mais a política de assistência, de saúde, educação que sempre está, mas também muitas vezes é chamada (E4). Destaca-se a potencialidade do espaço de reuniões da CAP (Comissão de Acompanhamento do Projeto Social) e da CAO (Comissão de Acompanhamento de Obras), destinados especialmente para pensar em soluções para as demandas da comunidade. É importante apontar que esse tem sido um espaço privilegiado para ações intersetoriais, onde os vários atores envolvidos com o processo de remoção têm seu espaço de representação. Apesar da existência desse espaço, não houve uma ocupação de fato, de todos os atores sociais envolvidos com o processo de remoção. Isso fica evidenciado nas seguintes falas dos diferentes sujeitos pesquisados: A gente lamentou muito porque ali existiam pessoas importantes, assim, “chave” para comunidade, tipo a FASC4 , o CAR norte5 , a escola, a igreja, que agora nesse momento não tem participantes (E1). Ah, a gente participava das reuniões da CAP ali, que depois, pelas dificuldades nossas de recursos humanos, a gente acabou não participando mais, ficou bem complicado [...], mas com o recurso humano que eu tenho hoje, não tem como participar, não tem [...]. Hoje eu não tenho como fazer, como participar (E2). Nós tivemos mudanças de profissionais, vários profissionais que iniciaram o processo de mudança não estão mais aqui na casa e isso aconteceu em vários setores [...] (E3). Então existe a reunião da CAP e da CAO, que é uma vez por mês, que as lideranças, junto com o governo, só que aí eles demandam e a secretaria tal, o representante da secretaria tal muitas vezes não vai [...] (E4). 4 Fundação de Cidadania e Assistência Social do Município de Porto Alegre 5 Centro Administrativo Regional norte. 149 150 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos A partir dessas falas, é possível identificar importantes limitadores para uma ação intersetorial, pois apesar da existência de um espaço que reúne todos os atores envolvidos mais diretamente no processo de remoção da vila, não foi possível contar sistematicamente com a presença dos mesmos. Problemas concretos traduzem um pouco da dimensão desses limites para um fazer intersetorial, como a falta de participação dos atores que estão na gestão das políticas públicas; a sobrecarga de trabalho dos trabalhadores que estão ocupando necessariamente a execução terminal das políticas públicas e que estão alocados no atendimento direto da comunidade; o número limitado de trabalhadores e a realocação destes, que provoca a interrupção do acompanhamento desse espaço intersetorial. Para Grossi e Guilamelon (2006), para desencadear uma atuação intersetorial é necessário que o objeto da ação proposta seja uma questão que de fato mobilize e diga respeito a muitos outros setores. No entanto, a histórica fragmentação de saberes e práticas tanto no campo filosófico, como no campo da prática (JAPIASSU, 1996) limitam a intersetorialidade para ser dada como uma nova prática social. A fragmentação produzida pela racionalidade científica, predominante na maneira de pensar e organizar o mundo, ainda persiste e se traduz, por exemplo, nessa experiência de remoção da Vila Dique, onde se percebe as dificuldades de se pensar e atuar conjunta e coletivamente. Outra questão importante trazida através da coleta de dados é que muitas das ações se dão fomentadas pelas pessoas que estão ocupando aquele cargo, aquele lugar e quando estas não se fazem presentes, determinadas ações não acontecem. Ou seja, culturalmente, não se tem esse fazer intersetorial das políticas. Então a gente vai ver políticas públicas nas pessoas e eu acho que isso é um grande dificultador da intersetorialidade, porque tem que ser uma intenção não pessoal [...]. O processar isso, o planejar entre as políticas ainda não é um fato, é algo a ser conquistado, mas depende do interlocutor que está ali [...] acontece na simpatia, no desejo, na afinidade, na disponibilidade dos profissionais, mas enquanto política pública que trabalha, ainda não. [...] E algumas políticas acabam assumindo isso muito mais, puxam pra si esse compromisso (E3). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler A partir dessa fala destaca-se a participação efetiva de técnicos de algumas políticas. Na política de saúde, por exemplo, a intersetorialidade deve ser fomentada, já que um dos princípios do Sistema Único de Saúde é a integralidade. Considera-se inviável compreender a integralidade nesse contexto sem a necessária intersetorialidade para buscar o atendimento aos fatores determinantes e condicionantes da saúde numa perspectiva ampliada. Resgata-se, dessa forma, o movimento da reforma sanitária que tencionou e deu bases à Lei Orgânica da Saúde (LOS), Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990, instituindo o Sistema Único de Saúde (SUS). Com a garantia constitucional do entendimento de saúde como um direito social (BRASIL, 1988), esta passou a ser compreendida na perspectiva de um conceito ampliado, não correspondendo mais apenas à ausência de doença. Na VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, no auge do movimento de reforma sanitária, a saúde seria entendida como resultado, dentre outras coisas, de condições de alimentação, moradia, educação, lazer, transporte e emprego, e das formas de organização social de produção. A interpretação dessas conquistas legais presume que para a garantia da saúde de forma ampliada e integral, faz-se necessário considerar fatores determinantes e condicionantes como a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais (BRASIL, 1986). Outro aspecto a ser considerado é a marca do controle social e da participação popular na história e cultura do SUS, que arcou com o Movimento da Reforma Sanitária. Conforme Correia (2006, p. 125): A participação social na área da saúde foi concebida na perspectiva do controle social, no sentido de os setores organizados na sociedade civil participarem desde as suas formulações – planos, programas e projetos –, acompanhamento de suas execuções, até a definição da alocação de recursos para que estas atendam aos interesses da coletividade. Esta participação foi institucionalizada na Lei 8.142/90, através das conferências, que têm como objetivo avaliar e propor diretrizes para a política de saúde nas três esferas de governo [...]. 151 152 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Essa herança histórica pode potencializar a participação e o envolvimento dos trabalhadores em espaços de controle social, e o diálogo com os gestores. No entanto, faz-se necessário o pensar e o agir intersetorial desde a formulação e a gestão das políticas de uma forma não personificada e específica de um determinado setor, de uma determinada política. Nos relatos, é possível perceber uma tentativa dos trabalhadores que estão atuando “na ponta”6 das políticas esforçarem-se e reunirem-se na perspectiva do exercício intersetorial. Porém percebe-se um distanciamento entre os gestores e os demais trabalhadores. Conforme sustenta Junqueira (2004, p. 5): A nova realidade criada a partir de um novo conhecimento deve ser partilhada no interior das organizações gestoras das políticas, e isso vai depender da mudança das práticas institucionais e das relações sociais que se estabelecem entre os diversos atores organizacionais e societários. Essas práticas deverão privilegiar a integração de saberes e experiências em prejuízo da setorialização e da autonomização. Assim, é necessário pensar as políticas longitudinalmente, ou seja, que trabalhadores e gestores se apropriem e partilhem dos processos desde a formulação e a gestão até a sua implementação e execução. Outro desafio coloca-se na perspectiva de pensar políticas em consonância com outras, para que sejam planejadas e executadas intersetorialmente. Outro espaço de atuação intersetorial citado pelos sujeitos entrevistados foi o das reuniões de rede de atendimento, como são chamadas. As reuniões da rede de atendimento constituem-se como estratégia importante no acompanhamento das famílias com maior situação de risco e vulnerabilidade social. Conforme as falas dos entrevistados, o processo de remoção proporcionou maior visibilidade a essa ação, sendo percebida como um espaço primordial de articulação intersetorial. No entanto, essa Essa expressão se constitui numa metáfora utilizada pelos técnicos para designar o lugar que os trabalhadores ocupam nas políticas públicas, ou seja, no seu nível de execução. 6 organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler ação é restrita à discussão de casos e encaminhamentos necessários, não se constituindo como um espaço de decisão de ações para toda a comunidade. A partir da identificação de alguns limites e possibilidades para a efetiva ação intersetorial na experiência da remoção da Vila Dique, é possível discutir a relação da mesma com a promoção da saúde. a tessitura da rede de promoção da saúde no processo de remoção da vila dique A Política Nacional de Promoção da Saúde tem como objetivo geral: Promover a qualidade de vida e reduzir vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes – modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais (BRASIL, 2006, p. 17). A promoção da saúde pode ser considerada ora como um nível de prevenção da saúde, onde realizam-se ações antes que um fator de risco possa a vir se instalar; ora como uma estratégia para se alcançar melhor qualidade e condições de vida e de saúde (BRASIL, 2007). A partir desse conceito como estratégia, a Política Nacional de Promoção da Saúde ainda traz a necessidade de estar articulada de forma transversal, onde se “confere visibilidade aos fatores que colocam a saúde da população em risco e às diferenças entre necessidades, territórios e culturas presentes no nosso País” (BRASIL, 2006, p. 12). Considerando esses pressupostos, diante do contexto de remoção da Vila Dique, surgem questionamentos acerca da promoção da saúde a partir dessa experiência. Assim, os sujeitos entrevistados trouxeram, em seus relatos, o entendimento dos mesmos em relação à promoção da saúde e em relação às ações desenvolvidas pelos mesmos, através das políticas públicas em que estão inseridos, que promovem saúde. Saúde, no seu conceito mais amplo, não diz respeito só ausência de doença. É o contexto todo da saúde do indivíduo, lazer, a educação, as condições de vida, a qualidade de vida da pessoa. 153 154 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos É ele como um todo, não só ver as situações de doença. Então eu acho que nós todos temos, da saúde, temos o compromisso de promover a saúde e isso é uma coisa de instância de política mesmo que daí tem que ser repensada e cada vez tem que qualificar mais e pensar políticas e leis mais adequadas para o momento histórico (E1). Promoção de saúde é uma coisa bem ampla, promoção de saúde é uma questão ampla, tem questões bem básicas e bem complexas. Desde uma garantia de questão de higiene como a questão da campanha de vacinação ou uma questão de saúde mental. Acho que é bem amplo (E2). Poder estar à escuta dessa população já é uma forma de promover saúde, que o falar já é um sinal de poder organizar as ideias e já promove saúde [...]. Fazemos os nossos grupos com as famílias, com crianças e adolescentes com os temas que são de cidadania, que também promove a saúde num conceito amplo [...] (E3). [...] Tem um eixo que é educação sanitária e ambiental que a gente discute a saúde. A nossa compreensão na área da saúde aqui [...] o habitat ultrapassa as quatro paredes, o habitat é em nível comunitário, em nível de bairro, em nível de cidade, em nível de mundo [...] por isso que muitas vezes a gente fica com o coração na mão quando as políticas não caminham juntas, que a gente sabe que ultrapassa as quatro paredes (E4). É possível verificar nas falas acima a compreensão de saúde de uma forma ampla, dependendo de vários fatores e políticas. No entanto, não é muito nítida a questão da promoção da saúde de maneira conceitual, mas traduzida em ações como mencionado no relato E3, por exemplo, que traz a escuta e os grupos como forma de produzir saúde. Da mesma forma, ações como apresenta a fala E4, trazendo a questão do ambiente, do habitat, relacionam-se com os outros aspectos sociais e de promoção da saúde. Relacionando a fala dos sujeitos com as referências trazidas pela Política Nacional de Promoção da Saúde, onde seu objetivo está implicado na promoção de qualidade de vida, na redução de vulnerabilidades e riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e condicionantes, percebe-se a incipiência de ações que efetivem tal objetivo preconizado pela política. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Na fala a seguir destaca-se apontamentos de aspectos do projeto social de acompanhamento da remoção da população: [...] remover famílias de um lado para outro teria que se fazer primeiramente um estudo dos equipamentos comunitários existentes na futura área que as famílias vão morar para ver se conseguem absorver essas novas demandas: as escolas, as creches, o posto de saúde, se existe praça, se não tem praça. [...] Foi identificado que a própria região não iria absorver tudo, tem um déficit de escolas infantis, da própria escola [...] (E4). Pode-se verificar que a absorção dessas novas demandas influencia diretamente na promoção da saúde dessa população, que fica privada de usufruir direitos e serviços, como educação, serviço de saúde, de assistência social e outros. [...] Quando tu faz um processo de reassentamento, tu desmantela a organização daquela comunidade, daquelas famílias [...]. Então, a criança estava estudando em determinado colégio ou ela estava em uma determinada creche, por exemplo, muda-se para lá, é outra região. [...] Então tem que ver se tem a escola que estava prevista no loteamento que não está pronta, a creche, que é a escola infantil que não está pronta [...] (E4). Compreende-se assim, que, para a promoção da saúde, nesse contexto de remoção, faz-se necessário um fazer integral e articulado das políticas públicas, considerando todas as necessidades humanas e sociais. Observa-se no relato E4 que o processo de remoção desmantela a organização de uma comunidade e que equipamentos sociais são necessários para haver essa reorganização. Porém, identifica-se um descompasso entre a remoção das famílias e a rede de serviços construída no reassentamento para atender as necessidades supracitadas. Nesse aspecto, é possível que existam reflexos de um privilegiamento de políticas econômicas adotadas pelo Estado, em detrimento à garantia das necessidades sociais dos moradores. Iamamoto, (2008, p. 144) ilustra esse o direcionamento dado pelo Estado: 155 156 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Por meio de vigorosa intervenção estatal a serviço dos interesses privados articulados no bloco do poder, sob inspiração liberal, conclama-se a necessidade de reduzir a ação do Estado para o atendimento das necessidades das grandes maiorias mediante restrição de gastos sociais, em nome da chamada crise fiscal do Estado [...] um Estado cada vez mais submetido aos interesses econômicos e políticos dominantes no cenário internacional e nacional [...]. Isso implica diretamente a qualidade de vida da população que está sendo removida, uma vez que fica privada do acesso aos direitos, que por lei lhe são assegurados. Dessa forma, considera-se que o processo de remoção da Vila Dique apresenta entraves para que sejam efetivados os pressupostos da Política Nacional de Promoção da Saúde, onde ações intersetoriais são ainda incipientes. considerações finais A elaboração deste estudo partiu de algumas das inquietações provocadas pela intensa vivência de formação, através do Programa de Residência Integrada em Saúde (RIS); e de atuação profissional, junto à equipe de saúde responsável pelo atendimento aos moradores da Vila Dique, que vêm vivenciando o processo de remoção. Essa experiência provocou o questionamento sobre a intersetorialidade e sua relação com a tessitura da rede que promove a saúde de uma população em processo de remoção. Diante dos dados obtidos através das falas dos sujeitos entrevistados, é possível identificar que há “ensaios” de uma práxis intersetorial no processo de remoção, mas são ações pontuais e ainda muito incipientes. São iniciativas fomentadas potencialmente pelos trabalhadores que atuam no nível de execução das políticas. Percebe-se, pelas informações colhidas, a necessidade de planejar junto com todos os atores envolvidos e articular as ações das políticas, desde o nível da gestão das mesmas até a sua implementação de fato. Contudo, o Estado, responsável pelas políticas públicas desenvolvidas, atua de forma setorializada e fragmentada. Assim, emerge a necessidade da nova prática social chamada intersetorialidade, que exige mudanças organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler inclusive culturais, a partir de um olhar integral, superando com a tradição do pensamento moderno. Ao pensar uma política, é preciso considerar quais os seus fatores determinantes e condicionantes, para que, ao final, se possa pensar num sistema de proteção integrado e integral. Destaca-se ainda a importância de potencializar os espaços incipientes de articulação intersetorial existentes, considerando a situação singular de cada população que precisar ser removida do local onde vive, reconhecendo as reais necessidades desta e o risco social verificado, a fim de garantir direitos a essa população, antes, durante e após o processo de remoção. Em relação especificamente à experiência vivida pela Vila Dique, é fundamental a compreensão de que a remoção está inacabada, sendo imprescindível que as futuras decisões e ações possam ser planejadas por todos os envolvidos de maneira que estes tenham seus direitos garantidos, minimizando os impactos causados. Assim, o engajamento dos trabalhadores e o compromisso no atendimento da população são aspectos que devem ser valorizados como potenciais verificados nessa realidade. As ações de remoção da Vila Dique ainda precisam ser planejadas, gestionadas e executadas de forma articulada entre as políticas públicas. Devem estar apropriadas de forma integral e longitudinal pelos gestores, trabalhadores e usuários. Além disso, os usuários devem atuar de maneira protagonista nesse processo, via controle social. Os direitos sociais garantidos durante todo o processo de remoção, através dos esforços para a constituição de ações intersetoriais, poderão minimizar impactos e promover a saúde da população removida. Assim, a Política Nacional de Promoção da Saúde apresenta objetivos que podem contribuir na orientação que deve ser dada aos processos de remoção. Fica visibilizado que ainda há muito a ser pesquisado e escrito, visto que a remoção da Vila Dique impacta em muitos aspectos da vida de seus moradores e dos processos de trabalho dos profissionais das diversas políticas públicas envolvidas. Essa síntese evidencia a necessidade de novas reflexões relacionadas ao tema, pois as teses desenvolvidas e as antíteses provocadas formarão novas sínteses, proporcionando diferentes conhecimentos e experiências. 157 158 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos referências BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Atenção primária e promoção da saúde. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2007. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ colec_progestores_livro8.pdf>. Acesso em: 20 out. 2011. ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Promoção da Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde, 2006. (Serie Pactos pela Saúde, 7). Disponível em: <http://portal.saude.gov. br/portal/arquivos/pdf/pactovolume7.pdf>. Acesso em: nov. 2010. ______. 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Essa constatação implica o reconhecimento dessa contradição, assu- mindo, portanto, que não existe neutralidade nesse campo. O conceito de propriedade dos meios de produção confunde-se com o de posse da saúde e da vida dos trabalhadores. A estes não é dado o direito de interferir nos processos, uma vez que sua força de trabalho é vendida em troca de salário, mas a capacidade de trabalho que, em princípio, não está à venda, é, na prática, desapropriada. Portanto, a maneira como o trabalho interfere na vida e na saúde das pessoas é uma das grandes questões deste século (MAENO; CARMO, 2005). Nesse sentido, a saúde do trabalhador relaciona-se, de maneira inequívoca e obrigatória, com as outras áreas do conhecimento, tanto nos campos de atuação dos profissionais da saúde como fora deles (MAENO; CARMO, 2005). Isso porque detém um caráter interdisciplinar que, sem deixar de se valer dos conhecimentos da medicina do trabalho e da saúde ocupacional, considera o trabalhador além de objeto de seus benefícios, 1 Este artigo é fruto da Tese de Doutorado, intitulada: “O trabalhador e as repercussões do adoecimento e acidente de trabalho na sua vida”, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS), em 2012. 162 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos sujeito das ações de transformação dos fatores determinantes do seu processo de saúde-doença. O diálogo entre a saúde do trabalhador e as demais áreas do conhecimento, particularmente, as ciências sociais e humanas, propiciou que características da própria sociedade passassem a ser consideradas, como, por exemplo, o nível de participação da população na construção das políticas públicas e no controle das ações de governo, bem como o nível de distribuição de renda e de equidade. O que indicou avanços nos próprios princípios contidos no âmbito do SUS, no sentido de que refletir acerca da melhoria da qualidade de vida e saúde da população diz respeito, sobretudo, à maneira como a própria sociedade se organiza e prioriza suas necessidades, para além dos limites do sistema de saúde em si. Sob essa nova óptica, foram traçadas prioridades, tais como, a universalização da saúde, a descentralização de ações e a participação da população na gestão do sistema de saúde (MACHADO; PORTO, 2003). Igualmente, dentre as competências do campo da saúde do trabalhador, além do caráter interdisciplinar já mencionado, enfatiza-se a abordagem intersetorial que visa ao entendimento da relação entre saúde e trabalho em toda a sua complexidade, conforme preconiza a Lei nº. 8.080/90. Ademais, o conceito de intersetorialidade inclui a participação dos trabalhadores e suas representações como elemento fundamental para o avanço das ações e das estratégias voltadas para a saúde da população trabalhadora. Em termos legais, a Constituição Federal Brasileira determina que são direitos sociais, dentre outros, a saúde, o trabalho e a previdência social, sendo que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social (BRASIL, 1988). Assim, pela primeira vez na história do país, a saúde é considerada direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas e ações e serviços de saúde considerados de relevância pública, destacando o seu caráter prioritário. Apesar disso, a literatura vem demonstrando que, na prática, até há pouco tempo, o setor da saúde não assumia as atribuições da área de saúde do trabalho, conforme definido na Constituição Federal de 1988 e na Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, conhecida como a “Lei Orgânica da Saúde”, que estabelece, no seu Art. 5, § 3, o entendimento sobre a saúde do trabalhador, abrangendo: organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler I - assistência ao trabalhador vítima de acidente de trabalho ou portador de doença profissional e do trabalho; II - participação, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), em estudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos potenciais à saúde existentes no processo de trabalho; III participação, por meio do SUS, da normatização, fiscalização e controle das condições de produção, extração, armazenamento, transporte, distribuição e manuseio de substâncias, de produtos e máquinas e de equipamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador; IV - avaliação do impacto que as tecnologias provocam à saúde; V - informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade sindical e às empresas sobre os riscos de acidentes de trabalho, doença profissional e do trabalho, bem como os resultados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de saúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeitados os preceitos da ética médica; VI participação na normatização, fiscalização e controle dos serviços de saúde do trabalhador nas instituições e empresas públicas e privadas; VII - revisão periódica da listagem oficial de doenças originadas no processo de trabalho, tendo na sua elaboração a colaboração das entidades sindicais; e, VIII - a garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao órgão competente a interdição da máquina, de setor de serviço ou de todo o ambiente de trabalho, quando houver exposição a risco iminente para a vida dos trabalhadores (BRASIL, 1990). No campo prático, mesmo com todo o aparato legal definindo responsabilidades, “os gestores federais, estaduais e municipais ignoraram solenemente essa área durante vários anos” (MAENO; CARMO, 2005, p. 270). Assim, a criação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), pela Portaria GM/MS nº. 1.679, de 19 de setembro de 2002, representou o ponto de inflexão em que o Ministério da Saúde resolveu, com previsão orçamentária, inserir a Saúde do Trabalhador entre as ações sanitárias. Desde então, a rede tem conseguido ampliar as ações em saúde do trabalhador, buscando atingir a meta de ter toda a rede do SUS desenvolvendo ações de assistência e vigilância nessa área. No entanto, nota-se que há um jogo e um caminho a serem percorridos até que sejam superadas as falhas existentes, a saber: 1) nos planos de saúde estaduais e municipais, em que a grande maioria, elaborados pelos gestores e subme- 163 164 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos tidos à aprovação dos conselhos de saúde, ainda não contemplam a área de saúde do trabalho ou então a incluem de forma secundária; 2) no controle social, de maneira geral, os conselhos de saúde não têm incluído a saúde do trabalhador em suas pautas com a devida prioridade; 3) nos recursos humanos, é flagrante a carência, na rede pública de saúde, de profissionais capacitados para desenvolver ações de assistência e vigilância em saúde do trabalhador, decorrente da pouca importância dada à área, especialmente da ausência de uma política eficiente para a capacitação em serviço, bem como das dificuldades de se promover concursos públicos; 4) na assistência, os trabalhadores ainda encontram dificuldades no agendamento de consultas, realização de exames complementares ou para obterem dos profissionais que o atendem relatórios e laudos referentes à sua situação de saúde; 5) na vigilância sanitária, a dificuldade para que seja considerada natural e rotineira a vigilância sanitária nos ambientes e condições de trabalho; 6) na vigilância epidemiológica/sistemas de informação, ainda não existem sistemas de informação de saúde que tratem dos agravos e riscos ocupacionais em dimensão nacional (MAENO; CARMO, 2005). A esse respeito, cumpre informar que em alguns municípios é realizado o registro de acidentes e doenças do trabalho no momento do atendimento, servindo para alimentar o banco de dados, extremamente útil para o planejamento das ações. A exemplo, destaca-se o sistema de informações em saúde do trabalhador do Rio Grande do Sul (SIST/RS), onde as informações sobre os acidentes, doenças e óbitos relacionados ao trabalho estão agrupadas em uma base de dados caracterizada como: [...] O único sistema estadual existente no país que torna os agravos relacionados ao trabalho de notificação compulsória, permitindo assim o desenvolvimento de um banco de dados com informações de todos os acidentes, doenças e óbitos relacionados ao trabalho, tanto os ocorridos no setor formal como informal de trabalho (RIO GRANDE DO SUL, 2005a, p. 68). Trata-se de um sistema descentralizado e regionalizado que abrange todos os trabalhadores, sejam eles provenientes do setor formal ou informal, permitindo monitorar os agravos à saúde relacionados ao trabalho, às causas externas e aos riscos ambientais. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Cumpre informar que, nas três últimas décadas do século XX, a intersetorialidade vem sendo evidenciada diante do objetivo de abranger a saúde para todos, sendo nos anos de 1970, já defendida a participação de vários setores da economia a fim de assegurar os recursos necessários, por meio da declaração de Alma-Ata, que incluiu tal recomendação nos componentes para a promoção da atenção primária de saúde para a população, no ano de 1978, e da Carta de Ottawa que destacou a intersetorialidade como um dos quatro elementos principais da promoção da saúde. Desde então, essa orientação vem sendo apresentada como consenso no campo da saúde pública (BUSS; FERREIRA, 2002). Assim, a intersetorialidade na área da saúde tem sido defendida como a ação na qual tanto o setor da saúde quanto os demais setores envolvidos devem, de maneira articulada, atingir uma meta comum (OMS, 1984 apud ZANCAN, 2003). Novas estratégias, a partir da década de 1990, no Brasil, têm sido adotadas, tanto no que diz respeito à reorientação dos serviços de saúde, quanto no que se refere à articulação do setor da saúde com os demais setores envolvidos nas políticas sociais, tendo em vista reduzir os efeitos da precariedade das condições de vida e os elevados custos gerados pelo sistema médico-sanitário, além de aumentar a eficácia da ação pública na implementação das políticas sociais. Nesse sentido, a estratégia de ação intersetorial implica, necessariamente, a construção de uma “teia de relações” que viabilize novas práticas entre os diversos setores da administração pública e dos segmentos da sociedade. Por conseguinte, possibilita a constituição de novos espaços institucionalizados de discussão e pactuação de ações integradas e integradoras, além da participação da população no processo de decisões (ZANCAN, 2003). Diversas experiências desenvolvidas por programas, centros de referência, serviços, núcleos, coordenações em nível municipal e estadual vêm sendo firmadas no âmbito do SUS. São experiências com diferentes graus de organização, competências, atribuições, que dependem de um conjunto de aspectos: políticas regionais, estrutura organizacional, qualificação dos profissionais envolvidos, dentre outros. Assim, a saúde do trabalhador constitui objeto integrador das ações de saúde pública devido ao potencial articulador das ações de vigilância sanitária, vigilância epidemiológica e de serviços de saúde, contemplando as três grandes 165 166 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos áreas de atuação do setor da saúde (CORDONI, 1988). Essa rede interna, cujo caráter é intrassetorial, estabelece-se pelo desenvolvimento sistemático das ações de vigilância em saúde do trabalhador e amplia-se para o conjunto de instituições e atores sociais, configurando uma série de pontes intersetoriais (MACHADO; PORTO, 2003). Desse modo, o campo da saúde do trabalhador está intimamente vinculado ao desenvolvimento de ações intersetoriais de proteção, prevenção, promoção e recuperação da saúde, tendo em vista o desenvolvimento de estratégias de transformação dos processos e ambientes de trabalho. Para tanto, as instituições públicas – Sistema Único de Saúde (SUS), Ministérios do Trabalho e Emprego (MTE), Previdência Social, Ministérios Públicos, órgão ambiental e regional e poder público –, os setores governamentais e os atores sociais envolvidos podem contribuir para a construção de redes sociais e institucionais fundamentais na saúde do trabalhador, a fim de garantir a qualidade e o progresso das ações, com enfoque potencializador frente aos problemas suscitados nessa área. Ressalte-se que essas ações devem estar voltadas ao coletivo e ao ambiente, num sentido amplo, isto é, contemplando o físico, o social, o político, o econômico e o cultural através de políticas públicas intersetoriais, bem como da capacidade de ação dos indivíduos (BUSS; FERREIRA, 2002). Todavia, embora as experiências de ações intersetoriais em saúde do trabalhador multipliquem-se em todo o país, essas ações costumam se restringir às parcerias entre o Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), os Ministérios Públicos e o Poder Legislativo, não levando em consideração os espaços de organização da sociedade que permitiriam a elaboração e a implementação de políticas públicas em consonância com os princípios de democracia, justiça social e ampliação da cidadania (MACHADO; PORTO, 2003). Nesse contexto, o Poder Legislativo exerce função significativa acerca da definição de leis, diretrizes e políticas públicas a serem seguidas pelos órgãos executivos e empresas. No entanto, os espaços interinstitucionais de negociação e estabelecimento de políticas públicas, como é o caso do Grupo Executivo Interministerial de Saúde do Trabalhador (GEISAT), que reúne os Ministérios da Saúde, Trabalho e Previdência Social, têm sido, sistematicamente inviabilizados devido à ausência de organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler políticas integradas para essa área em esfera federal. Ademais, o modelo de Vigilância em Saúde do Trabalhador (VST) está baseado em “experiências institucionalizadas e generalizadas de múltiplas facetas, repletas de ações voluntaristas e de personalismos, em contexto institucional desestabilizado” (MACHADO; PORTO, 2003, p. 129). Portanto, a intersetorialidade enfrenta grandes desafios na atualidade, pois envolve diferentes perspectivas e espaços de poder de corporações e instituições. Comumente, as ações regionais de vigilância em saúde do trabalhador refletem a fragmentação e a descontinuidade políticas, com instituições que possuem culturas e práticas diferenciadas. Nesse sentido, refletir acerca da construção de redes no campo da saúde do trabalhador implica, em última instância, o emprego de novos conceitos voltados para um diálogo mais amplo, bem como a transformação de velhas práticas sociais e institucionais pautadas em disputas de poder de diferentes níveis de governo que, frequentemente, fragilizam as instituições devido à descontinuidade das políticas setoriais/institucionais em curso. O aprofundamento das relações interinstitucionais devem gerar instâncias mais estruturadas como núcleos institucionais permanentes em torno de problemas específicos de saúde. Esses núcleos têm por finalidade transformarem-se em polos de construção de novas redes e de formulação metodológica interdisciplinar e interinstitucional. Contudo, esse processo ainda se encontra de forma incipiente e a formulação tem se concentrado em instâncias acadêmicas com práticas de apoio às ações de vigilância em saúde do trabalhador (MACHADO; PORTO, 2003). o sistema de informações em saúde do trabalhador (sist) no município de porto alegre-rs: avanços e desafios No estado do Rio Grande do Sul, a vigilância em saúde do trabalhador é efetivada pelo Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS), órgão da Secretaria Estadual de Saúde (SES/RS), através da Divisão de Vigilância em Saúde do Trabalhador (DVST), que trabalha de forma integrada com as demais vigilâncias com o intuito de promover a integralidade e a resolutividade das ações a partir dos eixos: a) vigilância epidemioló- 167 168 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos gica, b) vigilância dos ambientes de trabalho, e c) educação em saúde. A vigilância epidemiológica tem como objetivos “[...] elaborar o perfil epidemiológico em saúde do trabalhador no Estado e de monitorar os eventos e fatores de risco relacionados ao processo produtivo” (RIO GRANDE DO SUL, 2005a, p. 68). A notificação dos agravos à saúde relacionados ao trabalho, às causas externas e aos riscos ambientais é feita através dos seguintes instrumentos de notificação: a) Relatório Individual de Notificação de Agravo (RINA) e b) Ficha de Notificação de Suspeita (FIS) (RIO GRANDE DO SUL, 2005a). Pela sua abrangência, o SIST/RS permite informações mais completas acerca do trabalho se comparado às Comunicações de Acidentes de Trabalho (CATs), instrumento de notificação utilizado pela previdência social para fins de concessão de benefícios exclusivamente aos trabalhadores do setor formal por ela assegurados. Embora as estatísticas oficiais registrem números alarmantes de acidentes de trabalho, em nível nacional, destaca-se a parcialidade desses dados, visto que informa as ocorrências envolvendo tão somente trabalhadores oriundos do mercado formal de trabalho com registro de emprego e vínculo junto ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), excluindo, desse modo, parcela significativa da população trabalhadora que atua no setor informal. Soma-se a isso a análise da estrutura ocupacional brasileira que demonstra maior crescimento, nos últimos anos, com relação às categorias de trabalhadores marcadas pela informalidade e precariedade, resultado da flexibilização das condições legais e efetivas de inserção no mercado de trabalho, deixando sem significativas alterações o estatuto jurídico que regula as relações entre capital e trabalho (HOLZMANN, 2006). Desse modo, enfatiza-se a urgência de se produzir informações estatísticas que contemplem também os trabalhadores que não dispõem de registro em carteira de trabalho, buscando compreender as múltiplas mudanças que ocorrem nos processos de trabalho. Diante desse contexto, o SIST busca cumprir esse objetivo no estado do Rio Grande do Sul. As notificações através do RINA e da FIS ocorrem de acordo com o seguinte fluxograma: organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Figura 1. Fluxograma de notificações no Relatório Individual de Notificação de Agravo (RINA) e na Ficha de Notificação de Suspeita (FIS) Fonte: RIO GRANDE DO SUL, 2000, p. 4. Cumpre informar que o Decreto nº. 40.222/00 instituiu o SIST/RS e implementou a Vigilância Epidemiológica em Saúde do Trabalhador no Estado do Rio Grande do Sul, tornando obrigatória, de acordo com o seu Art. 3, a notificação de acidentes de trabalho, sejam típicos ou de trajeto, ocorridos com qualquer indivíduo, na condição de condutor, passageiro ou pedestre, por exposição acidental a agentes químicos, físicos e biológicos ou acidentes com animais peçonhentos, quando ocorrerem por ocasião da atividade profissional (BRASIL, 2000). As doenças relacionadas ao trabalho foram listadas no Anexo I, desse decreto, sendo incluídas na relação de agravos de notificação compulsória, conforme o Código Internacional de Doenças (CID 10) e a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho, conforme a Portaria do MS, nº. 1.339/99. Igualmente, o referido decreto aprovou o RINA e a FIS, sendo o RINA instrumento de notificação compulsória de doenças e acidentes de trabalho, aplicável aos trabalhadores do mercado formal e informal, urbanos e rurais, sob qualquer regime de relação de trabalho devendo ser preenchido por todos os serviços de atendimento em saúde, sejam públicos, privados, conveniados, filantrópicos, sindicais, empresariais, ambulatoriais ou de pronto atendimento. Seu preenchimento deve ser efetuado por qualquer profissional de saúde do serviço de atendimento do trabalhador, em que, necessariamente, terá participação do profissional responsável pelo diagnóstico do agravo – médico, odontólogo, 169 170 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos psicólogo, dentre outros –, respeitando as competências determinadas pelos respectivos conselhos profissionais e prestando ao notificador do serviço as informações relativas ao agravo avaliado. A partir do ano de 2006, a notificação dos casos suspeitos ou confirmados de acidentes e violências tornou-se compulsória e universal, utilizando-se esse instrumento para notificar as situações de acidentes e violências em todas as faixas etárias do ciclo de vida nos serviços públicos de saúde e em todos os níveis de atenção no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) (RIO GRANDE DO SUL, 2005b). Entende-se por notificação compulsória nesse contexto, o registro [...] sistemático e organizado, em formulário próprio, dos casos onde se conhece o vitimizado, suspeita-se ou se tem a confirmação de situação de violência, independente de ser conhecido ou não o(s) responsável(eis) pelo(s) ato(s) violento(s) (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 4-5). Nesse contexto, a Política de Saúde do Trabalhador no município de Porto Alegre, visa à formulação e à implementação de ações de proteção à saúde para a redução de acidentes, adoecimentos e mortes resultantes das condições, dos processos e dos ambientes de trabalho, além do aprimoramento da assistência à saúde dos trabalhadores. O foco de atuação são todos os trabalhadores presentes em áreas urbanas e rurais, abrangendo os do mercado formal, com carteira assinada ou não, do mercado informal, autônomos, funcionários públicos, desempregados e aposentados. Assim, a estrutura dos serviços de saúde no município de Porto Alegre está organizada da seguinte maneira: a) a Coordenação do Programa de Atenção à Saúde do Trabalhador (COPAST) acompanha as condições nos ambientes de trabalho no que tange ao serviço municipal, avaliando a situação de saúde na admissão e nos afastamentos do servidor, bem como promovendo estudos sobre as condições desses locais de trabalho; b) o Centro Integrado de Atenção à Saúde do Trabalhador (CIAST), o qual presta atendimento ao trabalhador com agravos relacionados ao trabalho por meio do ambulatório; e, c) o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), que tem por objetivo a capacitação técnica da organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler rede do SUS, nas ações de prevenção, promoção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e vigilância em saúde dos trabalhadores urbanos e rurais, independentemente do vínculo empregatício e do tipo de inserção no mercado de trabalho. Disponibiliza serviços de atendimento individual – consulta médica, serviço social, terapia ocupacional, acupuntura e fisioterapia – e coletivo – grupo de trabalhadores expostos a substâncias químicas, grupo voltado à reflexão para o trabalho, oficinas de terapia ocupacional, dentre outros grupos terapêuticos –com vistas à promoção e proteção à saúde através do desenvolvimento de políticas que assegurem o controle de riscos e a prevenção de doenças relacionadas aos ambientes de trabalho. No que diz respeito ao acesso aos serviços de saúde do trabalhador no município de Porto Alegre, verificou-se que, geralmente, se dá por meio do SUS, pois a Política de Saúde do Trabalhador está preconizada em seu âmbito. Nesse sentido, a porta de entrada desses serviços é constituída pela rede de unidades básicas e centros de saúde, que são procurados diretamente pelos trabalhadores usuários. Em situação de urgência/emergência, o acesso a esses serviços se dá através do pronto atendimento. Nos casos de internação hospitalar, a unidade básica de saúde ou o pronto atendimento encarrega-se de encaminhar a solicitação para a Central de Internações Hospitalares (CIH) do município. De acordo com o Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde, elaborado pelo Ministério da Saúde no ano de 2001, mais especificamente no item sobre “o estabelecimento da relação causal entre o dano ou doença e o trabalho”, são apresentadas várias questões para auxiliar o profissional no que concerne ao estabelecimento da relação etiológica ou nexo causal entre doença e trabalho, dentre elas, destacam-se: a) natureza da exposição quanto à identificação do agente patogênico, através da história ocupacional e/ou pelas informações colhidas no local de trabalho e/ou de pessoas familiarizadas com o ambiente ou local de trabalho; b) influência do fator de risco entre os fatores causais da doença; c) tipo de relação causal com o trabalho – fator de risco contributivo de doença de etiologia multicausal, fator desencadeante ou agravante de doença preexistente –; d) grau de intensidade da exposição, tendo em vista a produção da doença; e) tempo de exposição e de latência; f) registros anteriores quanto ao estado de saúde do trabalhador; e g) evidências epidemiológicas que reforçam a 171 172 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos hipótese de relação causal entre a doença e o trabalho (BRASIL, 2001 p. 31). Agrega-se ainda a investigação sobre as ocupações anteriores, dada a variabilidade dos períodos de latência requeridos para o surgimento de uma patologia relacionada ao trabalho, seja de algumas horas, como é o caso de conjuntivite por exposição a irritantes químicos ou para o desencadeamento do quadro de asma ocupacional a períodos superiores a vinte anos, como por exemplo, a silicose e alguns cânceres. O manual ainda chama a atenção para as implicações – previdenciárias, trabalhistas, de responsabilidade civil e, às vezes, criminal, além do desenvolvimento de ações preventivas – acerca do reconhecimento da relação etiológica entre dano/doença e o trabalho, visto que “uma investigação incompleta ou displicente pode acarretar sérios prejuízos para o paciente” (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 31) Por fim, a Divisão de Vigilância em Saúde do Trabalhador (DVST/ CEVS/SES/RS) destacou a dificuldade de adesão por parte dos municípios no processo de notificação de agravos à saúde decorrentes do trabalho, como sendo este o principal desafio que vem enfrentando a Política de Saúde do Trabalhador no Rio Grande do Sul, sobretudo o SIST, que busca através do levantamento dos dados estatísticos planejar ações voltadas ao combate e/ou redução dos agravos à saúde decorrentes do trabalho. A exemplo de algumas ações que visem à integração dos municípios junto à rede no processo de notificação de acidentes e adoecimentos decorrentes do trabalho, a divisão referiu a exigência de envio de relatórios periódicos do desempenho de notificação às coordenadorias regionais e a inserção do indicador de notificação na Pactuação da Vigilância Epidemiológica do Estado do Rio Grande do Sul. Isso se deve ao fato de que o SIST/RS tem como objetivo identificar todos os agravos relacionados ao trabalho para estabelecer os perfis regionais de acidentes e adoecimentos e, desse modo, atuar sobre os fatores de risco, tendo em vista as práticas de intervenção e de vigilância nos ambientes de trabalho. Isso posto, o estudo buscou também delinear o perfil dos trabalhadores acidentados e adoecidos cujas notificações estão contidas no SIST/RS, no período compreendido entre os anos de 2007 e 2010 no município de Porto Alegre. Para caracterizar o perfil desses trabalhadores e identificar as condições que podem estar influenciando os indicadores de acidentes organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler e de morbimortalidade, foram consideradas as seguintes variáveis: faixa etária, sexo, tipos de acidentes e adoecimentos decorrentes do trabalho, prevalência de agravos, ramo de atividade econômica, ocupações e ocorrência de óbitos, tendo em vista caracterizar o perfil desses trabalhadores. delineando o perfil dos trabalhadores acidentados e adoecidos no município de porto alegre entre os anos de 2007 e 2010 De acordo com os dados fornecidos2 pelo SIST/RS, foi o ano de 2010 o que representou o menor número de registros de notificações no município de Porto Alegre dentre o período investigado de 2007 a 20103: sendo 202 agravos entre as mulheres e 108 entre os homens. Porém, no ano anterior, em 2009, foram registrados 599 casos entre as mulheres e 359 entre os homens, caracterizando-se este como o ano que obteve o maior número de notificações. Além disso, as mulheres tiveram o maior registro de notificações de acidentes e adoecimentos nesse período. No que tange à faixa etária, os dados demonstram que os acidentes e as doenças decorrentes do trabalho foram os de maior frequência para a faixa etária dos 18 aos 59 anos para ambos os sexos. Igualmente, observou-se, por meio dos dados coletados, a ocorrência de agravo na faixa etária dos 5 aos 13 anos de idade do sexo feminino, no ano de 2009, demonstrando tratar-se de trabalho infantil, visto que a Constituição Federal, em seu Capítulo II, Art. 7, inciso XXXIII, considera menor o trabalhador da faixa etária de 16 a 18 anos de idade, vedando ao menor de 16 anos qualquer trabalho, salvo, exclusivamente, na condição de aprendiz a partir de 14 anos de idade (BRASIL, 1988). 2 Os dados foram fornecidos pelo SIST por meio de autorização da Divisão de Vigilância em Saúde do Trabalhador (DVST) e da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (SES/RS). A autora teve acesso às informações através de tabelas que, posteriormente, realizou a organização dos dados com vistas ao aprofundamento da análise. 3 A delimitação do período compreende os anos de 2007 a 2010, num total de oito (8) semestres e justifica-se pela possibilidade de acesso aos dados. 173 174 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Outro aspecto significativo evidenciado por meio da pesquisa documental, ainda no ano de 2009, diz respeito à inclusão da faixa etária dos 66 aos 70 anos de idade. Tendo em vista que o aspecto jurídico-legal enquadra a idade superior a 70 anos na modalidade de aposentadoria, tanto no caso de aposentadoria por idade quanto no de aposentadoria por tempo de serviço. Na prática, os dados empíricos revelaram o papel central que o trabalho ocupa na sociedade brasileira, entre homens e mulheres de diferentes faixas etárias. Concomitante a isso, enfatiza-se o aprofundamento das formas flexíveis de trabalho que tem como consequência a precarização e degradação do trabalho, sobretudo das condições de trabalho com implicações diretas aos agravos à saúde. Dentre os agravos à saúde decorrentes do trabalho os de maior prevalência foram os relacionados ao contato com materiais ou à exposição às doenças transmissíveis, incluindo os acidentes com materiais, totalizando 424 registros. Em segundo, foram identificados 303 traumatismos, destes 88 na região do punho e da mão. Em terceiro, foram observados 240 ferimentos, sendo 127 referentes à região do punho e da mão. Em quarto, foram apresentadas 152 luxações, das quais 97 relacionadas ao tornozelo. Observou-se, mais especificamente, que, no ano de 2010, foi registrado o menor número dos referidos agravos de maior prevalência, totalizando 76 contra 231 no ano seguinte, que, curiosamente, obteve o maior registro de agravos desse tipo. Além disso, a pesquisa documental ainda constatou a ausência de registro desse tipo de agravo no ano de 2009, evidenciando uma lacuna, visto que, contraditoriamente a isso, foi também o ano de maior registro acerca de diversos agravos, tais como, as luxações – tornozelo –, os traumatismos e os ferimentos – ambos referentes à região do punho e da mão –, totalizando 128 agravos. Foi possível constatar a falta de detalhamento sobre os agravos, como por exemplo, os 135 casos decorrentes do trabalho, porém não especificados, que receberam as seguintes denominações: “outros agravos relacionados com o trabalho não especificados”; “outras lesões”; “outros traumatismos envolvendo regiões múltiplas do corpo”. Acredita-se que essas denominações vêm dificultando a investigação que envolve a compreensão desses agravos especialmente no que diz respeito à sua origem, bem como as causas que condicionaram tais agravos. Resultado disso são as implicações diretas organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler na Política de Saúde do Trabalhador, podendo repercutir no planejamento de ações, na estrutura dos serviços de saúde do trabalhador, no acesso e no atendimento à população do município de Porto Alegre. Evidenciou-se, também, a ausência de notificações em diversos campos, dificultando o conhecimento da realidade dos agravos e restando a dúvida se de fato não foram notificados ou se realmente não ocorreram. É o caso dos traumatismos do cotovelo e antebraço e do ombro e braço. Esses agravos apresentaram similitude, visto que, entre os anos de 2007 e 2009, tiveram crescente aumento no número de notificações; contudo, no ano de 2010, não houve notificação de nenhum desses agravos. Os traumatismos do cotovelo e do antebraço, no ano de 2007, eram três, elevando para sete em 2008 e dez em 2009; todavia, no ano de 2010, não houve notificação desse agravo. Isso ocorreu também com os traumatismos do ombro e do braço, sendo que, no ano de 2007, eram três, passando a cinco em 2008 e nove em 2009; entretanto, no ano de 2010, também não houve registro desse agravo junto ao SIST/RS. Igualmente, identificou-se, através da pesquisa documental no que concerne às atividades econômicas, que as atividades de atenção à saúde foram as que abrangeram o maior registro de notificação de agravos. Em segundo lugar, destacaram-se as indústrias de metalurgia e da construção civil; em terceiro, as atividades de comércio – varejista e atacadista –; em quarto, a prestação de serviços – investigação, vigilância e segurança, serviços domésticos, transporte, serviços de limpeza em prédios e domicílios, serviços de arquitetura e engenharia, estabelecimentos hoteleiros e outros tipos de alojamento temporário e telecomunicações –; em quinto, os serviços prestados pela administração pública e as atividades relacionadas ao ensino – educação básica e nível superior. Somam-se, ainda, as indústrias de transformação: fabricação de produtos alimentícios, bebidas e fumo, fabricação de produtos de madeira e cortiça, confecção de artigos do vestuário, refino do petróleo, metalurgia básica, fabricação de tubos, metalurgia de metais não ferrosos, forjaria, estamparia, fabricação de máquinas, equipamentos, peças e acessórios diversos. Também foram citadas as obras de infraestrutura para engenharia elétrica e eletrônica, os serviços domésticos, além de outros serviços pessoais e coletivos, como, por exemplo, as atividades de organizações sindicais, dentre outras atividades econômicas. 175 176 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Contudo, percebeu-se, ainda, que os dados fornecidos pelo SIST/ RS não fizeram menção ao(s) ramo(s) de atividade econômica daqueles trabalhadores que sofreram agravos relacionados às amputações – punho, mão e perna. O SIST/RS também não identificou as atividades econômicas relacionadas à mialgia, sendo cinco casos desse agravo identificados no ano de 2007 e três no ano de 2009, bem como àquelas pertencentes aos agravos de maior prevalência no período de análise, ou seja, os relacionados ao contato ou à exposição a doenças transmissíveis, incluindo acidentes com materiais, os quais apresentaram o maior número de notificações registradas pelo SIST/RS, num total de 424, sendo 117 no ano de 2007, 231 em 2008 e 76 em 2010. Diferentemente ocorreu no ano de 2010, em que foi possível constatar as atividades econômicas relacionadas a esse tipo de agravo. As atividades econômicas identificadas foram as de atenção à saúde com 71 agravos; outras atividades associativas com um registro de notificação e os serviços coletivos prestados pela administração pública com um caso identificado, somando o número de 73 agravos identificados nesse ano. Igualmente, os dados revelaram informações desencontradas acerca do real número de notificações. Foi o que aconteceu em 2010, embora caracterizado como sendo o único ano a ter obtido informações sobre as atividades econômicas relacionadas aos agravos de maior prevalência; inicialmente informou a ocorrência de 76 agravos desse tipo e após identificou 73 atividades econômicas relacionadas aos mesmos. Isso demonstra que houve falha na produção desses dados, tendo em vista que o número de trabalhadores que pertenciam a essas atividades econômicas identificadas, nesse ano, não coincidiu com a informação anterior sobre o número total de agravos. Verificou-se, por meio da organização dos dados, que os técnicos e auxiliares de enfermagem foram os que tiveram o maior número de notificações de agravos registrados pelo SIST/RS, com 891 casos no município de Porto Alegre. No entanto, ressalte-se o fato de que o SIST/RS não informou a origem de um número significativo de ocupações, denominando como “outros trabalhadores dos serviços”, impossibilitando, assim, o conhecimento sobre 333 agravos registrados nesse período, e, ocultando, consequentemente, a investigação acerca da relação entre agravos e processos de trabalho. Portanto, acredita-se ter havido maior visibilidade organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler quanto ao processo de notificação de acidentes e doenças decorrentes do trabalho no setor da saúde, o que não significa concluir que na área da saúde ocorreram mais agravos se comparados aos demais setores da atividade econômica e suas ocupações. No que diz respeito ao registro de óbitos, a pesquisa demonstrou um número reduzido de óbitos decorrentes do trabalho pela maioria dos municípios, dentre eles, Porto Alegre. Isso indica que há ainda um percurso a ser percorrido no que se refere ao processo de notificação de adoecimentos e acidentes de trabalho em nível estadual. Segundo informações obtidas junto à Divisão de Vigilância em Saúde do Trabalhador (DVST/CEVS/SES/ RS), trata-se de um processo gradual em que os profissionais envolvidos nesse processo são essenciais à sua continuidade e avanço. Práticas cada vez mais comuns, como, por exemplo, a substituição frequente de servidores, especialmente no setor da vigilância epidemiológica dos municípios, ou ainda, de gestores municipais, além das dificuldades tecnológicas, dentre outras, foram apontadas como as principais causas de descontinuidade desse processo. Concomitante a isso o processo de descentralização tornou-se fundamental para o avanço do SUS, sobretudo no que diz respeito ao encaminhamento de ações planejadas em nível central para as Unidades Básicas de Saúde (UBS), em outras palavras, para o âmbito local. Por fim, o estudo evidenciou, por meio dos dados obtidos, a ausência de informações específicas, principalmente quanto aos rebatimentos do adoecimento e do acidente de trabalho no âmbito da família, evidenciando a noção de que o adoecimento e o acidente de trabalho estão centrados no trabalhador sem repercussões diretas nas relações familiares, afetivas, em última análise, na vida social. considerações finais Após um evento traumatizante como são os adoecimentos e os acidentes decorrentes do trabalho, a recuperação de informações por meio de dados, sejam eles quantitativos e/ou qualitativos, não constitui tarefa fácil. Tampouco a investigação levará a uma descrição exata e completa, isto é, a uma identificação de todos os fatores direta ou indiretamente impli- 177 178 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos cados em sua ocorrência. Apesar disso, conclui-se que o SIST/RS é um importante instrumento na investigação dos acidentes de trabalho e do processo de saúde-doença dos trabalhadores, na medida em que os dados gerados por ele podem contribuir para o planejamento de ações voltadas à redução e/ou à eliminação dos agravos nos ambientes de trabalho, bem como, pela possibilidade, por exemplo, de ter-se constatado, junto a esse sistema, a ocorrência de agravo na faixa etária dos cinco aos treze anos de idade, demonstrando tratar-se de trabalho infantil, ou ainda, a inclusão da faixa etária dos 66 aos 70 anos, revelando o papel central que tem o trabalho na vida dos sujeitos frente às transformações em curso, as quais vêm influenciando diretamente as situações de saúde e de agravos da população trabalhadora. No entanto, o estudo aponta para o desenvolvimento de ações que visem à efetiva produção e ao tratamento dos dados estatísticos, devendo ser promovidas pelos municípios, pois são o lócus da execução desse processo e da possibilidade de integração das vigilâncias junto à rede de saúde através de seus profissionais, os quais têm o papel fundamental na realização e na comunicação das informações referentes a acidentes e doenças decorrentes do trabalho junto ao SIST/RS. O que implica, consequentemente, em capacitação permanente da rede de atenção à saúde do trabalhador no estado do Rio Grande do Sul, tendo em vista a adesão e o comprometimento por parte dos municípios nesse processo de notificação de agravos decorrentes do trabalho. Assim, acredita-se que as lacunas evidenciadas podem estar intimamente relacionadas à dificuldade de adesão por parte dos municípios no tocante à realização das notificações dos agravos por meio do SIST. Além disso, a não participação dos municípios no processo de notificação de agravos à saúde decorrentes do trabalho compromete significativamente o planejamento e o desenvolvimento de ações essenciais à Política de Saúde do Trabalhador no estado do Rio Grande do Sul, sobretudo ações mais amplas, de caráter intersetorial, indispensáveis à área de saúde do trabalhador. Nesse sentido, faz-se necessário, igualmente, aprimorar as práticas intersetoriais e de relação com a sociedade a fim de que questões acerca da saúde do trabalhador estejam presentes nos processos decisórios e nas políticas públicas. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Isso posto, o estudo igualmente enfatiza a urgência de investigação meticulosa buscando desvendar a rede de fatores envolvidos que contribuem para a ocorrência dos adoecimentos e dos acidentes de trabalho a partir de informações mais detalhadas sobre os agravos. Para tanto, essa investigação mais precisa, deve ser alcançada por meio do tratamento atento dos dados, a fim de retratar a realidade da ocorrência desses agravos através da identificação das condições influenciadoras das situações de acidente e de morbimortalidade. referências BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS, n. 737 de 16 de maio de 2001. Define a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Disponível em: dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2001/ GM/GM-737.htm Acesso em: 4 nov. 2012. ______. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil. Doenças relacionadas ao trabalho: manual de procedimentos para os serviços de saúde. Brasília: Ministério da Saúde do Brasil, 2001. Disponível em: http:// bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doencas_relacionadas_trabalho1.pdf Acesso em: 4 nov. 2012. ______. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. 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Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo. Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado (Rubem Alves). O Grupo de Estudos e Pesquisa em Família, Serviço Social e Saúde (GFASSS)1 agregou mais recentemente aos estudos sobre intersetorialidade a Política de Educação. Tendo como fio condutor a intersetorialidade, a qual é entendida como possibilidade de enfrentamento à fragmentação no atendimento às demandas da população e como responsável pela “articulação de saberes e experiências para o planejamento, a realização de avaliação de políticas, programas e projetos, cujo fim é alcançar resultados cooperativos em situações complexas” (NASCIMENTO, 2010, p. 7). Grupo componente do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI). 1 182 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos A pesquisa que inspira este artigo se intitula “Aprender saúde na escola: articulando políticas públicas e garantindo uma adolescência protegida” (Protocolo 29/2011/PPGSS/PUCRS) e foi proposta a partir de projeto executado anteriormente pela equipe de residentes do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PREMUS/2009)2 o qual foi avaliado positivamente pelas equipes das escolas, tendo o grupo de residentes procurado a equipe do NETSI solicitando a continuidade das atividades. Avaliada a importância desse tipo de demanda apresentou-se o projeto, com reformulações, mas mantendo a finalidade, sendo aprovado e contemplado com o recurso de uma de bolsa de Iniciação Científica, oferecida pela FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul). A proposta de fomentar reflexões e práticas de promoção da saúde junto ao espaço escolar tem como objetivo mobilizar e potencializar a comunidade escolar a partir de ações de educação em saúde e cidadania e, ao envolver a comunidade escolar, a rede de saúde e a universidade, garantir o acesso aos direitos fundamentais inerentes aos adolescentes, assim como a proteção e a convivência em meio ambiente adequado. Acredita-se que somente através de ações intersetoriais poderá ser garantido o que está preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ou seja, “a integralidade da proteção prevista no ECA supõe que seja assegurado um conjunto de direitos: o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (GOUVEIA, 2009, p. 12). Para a autora citada, para que isso seja efetivado, é necessário, pois, que as diferentes políticas sociais estejam conectadas em torno de propósitos comuns, uma vez que, na ótica da garantia de direitos, não há hierarquia entre elas. Assim do ponto de vista jurídico, a proteção integral é o solo que reveste de pertinência a gestão intersetorial nos tempos atuais (GOUVEIA, 2009, p. 12). 2 Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PREMUS/PUCRS), que envolvem profissionais dos cursos de Medicina, Enfermagem, Odontologia, Farmácia, Farmácia, Nutrição, Fisioterapia, Psicologia, Serviço Social e Educação Física. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler A perspectiva imanta a direção dada no projeto de pesquisa na medida em que problematiza o pensar/conhecer/intervir em saúde no espaço da escola, ampliando olhares/compreensões/apropriações/ações, rompendo com uma perspectiva histórica que focaliza a saúde como ausência de enfermidade, como propriedade da medicina e como responsabilidade única da política de saúde. As ações propostas no projeto possibilitam articular a política de saúde às demais políticas sociais comprometendo a todos com a vida dos sujeitos que vivenciam o espaço escolar e, de forma inovadora, integra o ensino de graduação e pós-graduação com a educação básica, permitindo troca de experiências e inserção dos universitários na realidade cotidiana da comunidade. O convite estendido mobiliza todos a participarem de uma experiência que pretende criar referências que, ainda que não sejam inéditas, provocam rupturas e inovações nas instituições envolvidas e delegam valores iguais aos “conhecimentos dos adultos (educadores, familiares, agentes culturais) e dos adolescentes” (p. 13). Ao delegar igual valor aos “saberes não formalizados, aos conhecimentos adquiridos pela experiência de vida, pela troca entre as gerações, tanto quanto dos conhecimentos formalizados pelas ciências e disseminados nos espaços escolares” (GOUVEIA, 2009, p. 13) as ações desenvolvidas promovem o “reconhecimento da igualdade (todos são capazes de aprender) e a valorização das diferenças (cada um aprende de um jeito singular)” (p. 14), promovendo em síntese a horizontalidade nas relações e nas ações, sensibilizando os diferentes atores quanto às demandas uns dos outros. Articular e fomentar o diálogo entre universidade, política de saúde e política de educação é um processo que sustenta-se na intersetorialidade e na perspectiva da integralidade tendo como foco, nesse projeto, a abordagem de um segmento em constante processo de tensionamento, seja pelas características da fase, seja pela realidade social precária que a todos atinge: o adolescente brasileiro. Para ser continente às reflexões e às indagações que emanaram do projeto, apresenta-se inicialmente o espaço escolar e seus desafios associados às práticas de educação em saúde. A seguir estão as considerações relacionadas ao desenvolvimento do projeto tendo como estofo a participação e a produção dos adolescentes que se envolveram. 183 184 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos escola e saúde: diálogos possíveis O termo escola tem origem grega como scholé e também no latim schola, esses termos significavam inicialmente “descanso ou o que se fazia à hora do descanso, que era estudar” (SILVA, 2002, p. 175). Sabe-se que na antiguidade estudar era possível somente àqueles que não trabalhavam e que o trabalho era uma atividade vergonhosa não realizada pelos reis e nobres. Posteriormente, com o surgimento das Escolas Catedrais, evento que é identificado por ocasião da Idade Media, identificam-se as escolas urbanas e não mais vinculadas a monastérios e nem à Igreja Católica. Caracterizavam mudanças na sociedade da época em que o ensino e a educação delegava importância social aos sujeitos, e o mestre era lançado a condição de quase um Deus. Já no século XVII, a escola substituiu a família, sai do espaço doméstico e passa a ser realizada mantendo a criança a distancia da família (RODRIGUES, 2012). A história da escola acompanha a historia da civilização humana, da organização familiar e da organização da sociedade. Rodrigues (2012, p. 8) afirma que: A escola tem um papel importante na vida, principalmente, daqueles sujeitos sob cuidados que dela participam. Há quem diga que o papel da escola é ensinar, incutir o conhecimento, e o da família é cuidar e educar, no desenvolvendo das faculdades físicas, morais e intelectuais dos seus membros. Mas com o decorrer do tempo esses papéis já não o são tão assim delimitados, e a escola também se empenha na educação e no cuidado. Para empreender qualquer avaliação ou interlocução com a instituição escolar, é fundamental primeiramente conhecer a realidade em que a escola, objeto de interesse, está inscrita. Esse conhecimento da realidade para Kosik (2002) se expressa em concepção explícita ou implícita dessa realidade o que na totalidade significa: um todo estruturado, dialético, no qual um ou mais fatos podem vir a ser racionalmente compreendido. Kosik (2002) reitera que conhecer todos os fatos não significa conhecer a realidade e todos os fatos juntos não significam necessariamente a totalidade. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Amparado em Kosik (2002), considera-se a realidade social vivenciada pelas escolas brasileiras, palco de inúmeros acontecimentos e violações de direitos, preocupação sistemática nas agendas dos governantes3 e tema explorado pelos meios de comunicação bem como a importância e a valorização que a escola tem historicamente na vida dos sujeitos. Essa constatação impõe a responsabilização e o compartilhamento das diferentes políticas sociais no sentido de propor ações que contribuam para a qualidade da educação e, principalmente, para o resgate da escola como um espaço privilegiado na construção de cidadania, garantia de direitos e inclusão social. O espaço escolar configura-se de uma forma privilegiada para construção de relações de solidariedade, de organização coletiva, de construção do ser político, mas também de forma contraditória, de relações de violência, de construção de estigmas e exclusões. A realidade da escola brasileira denuncia a precarização das condições de trabalho, a pouca valorização dos professores e os baixos salários. Acrescenta-se a realidade dos alunos em que eventos como gravidez na adolescência, aumento dos casos de DSTS/AIDS, bullying, abuso de substâncias psicoativas, reprovações e evasão escolar etc. são mais frequentes, concluindo-se que a escola está atravessada por expressões da questão social fruto de uma sociedade permeada por desigualdades sociais. Questão social aqui compreendida como: [...] conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto apropriação dos seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade. [...] Questão Social que sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela resistem e se opõe (IAMAMOTO, 2004, p. 27). 3 A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) realiza audiência pública para debater a violência nas escolas. Participam, entre outros convidados, Paolo Fontane, representante da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco); Antônio de Lisboa, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação; e Antônio Geraldo, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. 185 186 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos O enfrentamento das expressões, como violência, abuso de drogas, gravidez precoce, passa por minimizar danos e/ou criar ações preventivas que permitam resistir a esses processos de violação da cidadania, propondo uma nova realidade social. Um movimento de contranitência e/ou de rebeldia esse processo perverso tem como estofo a possibilidade de criar novos espaços informais/formais/consensuais de participação e estabelecimento de novos relacionamentos sociais. É fundamental, portanto, realizar estudos, criar estratégias, construir arranjos educativos e de ações concretas que possam substanciar ações preventivas e de fortalecimento da política de saúde e da política de educação na relação com o sujeito adolescente, com seus espaços e grupos de pertencimento. Reitera-se que a escola é um importante espaço para o cuidado, a proteção, a promoção da saúde, o exercício da cidadania e a inclusão social, lócus que possibilita a viabilização de informação, reflexão e promoção das políticas de educação e saúde. Portanto, espaço fundamental para implementação de ações que contribuam para o exercício de cidadania dos adolescentes, para a diminuição dos custos do sistema de saúde e para consecução de uma educação integral, a qual somente será concretizada a partir da construção de uma nova sociabilidade, pois na sociedade regida pelos parâmetros do capital, do lucro e da competitividade não o é possível (RODRIGUES, 2012). Mas que, se executada adequadamente incidirá em melhor qualidade do acesso e da atenção na saúde e na educação. Assim corrobora-se o afirmado por Rodrigues (2012, p. 10) quanto a acreditar que a educação é ferramenta essencial para a construção da consciência dos sujeitos e para a busca por garantia de direitos. Para que ela cumpra seu papel se impõe que os sujeitos que dela participam sejam motivados para isso, para a transformação individual e social. Nessa perspectiva, este artigo, bem como o projeto de pesquisa que o sustenta, está amparado nos pressupostos de que o direito à saúde é universal e dever do Estado e de que esse direito será garantido através de ações fundamentadas na universalidade, equidade e integralidade e organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler na afirmação de que a educação se desenvolve em diferentes espaços e relações como na vida familiar, no trabalho, em outras diversas instituições, mas que tem na escola a possibilidade consagrada. Desde 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS) problematiza os processos de saúde/doença e amplia o entendimento de saúde de forma que sejam englobados aspectos biopsicossociais (BRAVO, 2006). A partir do Movimento da Reforma Sanitária brasileiro, o qual tem importância inquestionável na revolução que aconteceu na política de saúde, a partir de tensionamentos e questionamentos que deram base e origem ao Sistema Único de Saúde (SUS), esta passa a ser resultado dentre vários outros fatores e condições que incidem nas formas de organização social de produção para além de questões orgânicas e genéticas. A interpretação dessas conquistas legais presume que para a garantia da saúde de forma ampliada e integral, faz-se necessário considerar fatores determinantes e condicionantes como, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais (BRASIL, 1990). Com o Sistema Único de Saúde, o Estado Brasileiro passa a ser responsável pela prevenção, promoção e recuperação da saúde e é no nível de promoção da saúde, primordialmente, que se insere a experiência da execução desse estudo (BRASIL, 1990). Cabe salientar, que o significado de promoção da saúde vem se transformando com o passar do tempo, superando o movimento de medicalização da vida social, tendo como enfoque centrado no indivíduo. A partir da concepção ampla do processo saúde-doença e seus determinantes, a promoção da saúde, direciona-se para um enfoque político e técnico, e conforme Sícoli e Nascimento (2003, p. 104), a promoção da saúde ampliou seu marco referencial e assumiu a saúde como produção social, passando a valorizar mais intensamente determinantes socioeconômicos, a investigar o compromisso político e a fomentar as transformações sociais. Para tanto, ao considerarmos o conceito ampliado de saúde e sua promoção, torna-se imprescindível, à luz do que está preconizado no SUS, 187 188 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos a articulação de seus diversos fatores determinantes e condicionantes, por meio das políticas sociais como forma de acesso aos direitos sociais, na perspectiva de uma saúde integral. Buscando promover saúde em um espaço diferenciado dos espaços tradicionais em que essa política é debatida, o processo de pensar saúde no espaço da escola propicia ampliar os olhares e romper com uma perspectiva histórica centrada na doença, na medicalização, no modelo hospitalocêntrico. Potencializar o espaço da escola para pensar saúde prevê discutir aspectos tradicionais/atuais da saúde, como o abuso de substâncias psicoativas e gravidez na adolescência, e impõe a discussão de outros fatores latentes na vida dos sujeitos que vivenciam o espaço escolar como: segurança, trabalho e renda, acesso aos serviços, cultura e lazer etc. Portanto, a escola se caracteriza por criar práticas socioculturais, e as ações de promoção da saúde são efetivas quando a escola assume atribuições na formação do cidadão crítico, e isso se dá pelo estímulo à “autonomia, o exercício de direitos e deveres, o controle das condições de saúde e qualidade de vida, com opção por atitudes mais saudáveis” (BRASIL, 2009, p. 15), reiterando o papel da escola como responsável pela educação do cidadão e, dessa forma, um instrumento de cidadania. Nessa perspectiva, evidencia-se a necessidade da articulação da escola com as demais políticas públicas, grupos e movimentos sociais, para que se possa corroborar na construção de uma educação integral desses sujeitos em formação, buscando a afirmação de seus direitos. Nessa relação, a intersetorialidade, sobretudo, assume um papel fundamental no enfrentamento da fragmentação que, no cenário brasileiro, constitui o atendimento das demandas e necessidades da população que acorre a essas políticas e que historicamente ampara a organização ou a desorganização das políticas públicas brasileiras. A intersetorialidade age como um fio condutor e, por essa razão, a reflexão sobre sua importância tem alcançado o campo da educação em saúde, o qual cada vez mais distancia-se do discurso higienista, da concepção do biologicismo e das práticas reducionistas e autoritárias, as quais negam a subjetividade dos sujeitos. A partir da compreensão do conceito ampliado de saúde, começa-se a pensar no desenvolvimento da autonomia dos sujeitos e na capacidade de reivindicarem seus próprios interesses (ALVES, 2005). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Neste estudo, educação em saúde é conceituada, em concordância com Valadão (2004, p. 5), como “experiências educativas organizadas com a finalidade de proporcionar oportunidade para a construção de conhecimentos teóricos e práticos em prol da saúde de pessoas e da coletividade”, e que tem como base uma educação libertadora e dialógica. Rompe com o modelo tradicional, focado na doença e na intervenção curativa e intenta-se a construir práticas e reflexões oriundas da vida dos sujeitos e de suas experiências. O modelo tradicional está impregnado de uma concepção paternalista. Para além do acesso à informação, preconiza-se um modelo de educação em saúde que incida em práticas emancipatórias, trabalhando na perspectiva de ação dos sujeitos. Com isso, é fundamental conhecer crenças, hábitos, papéis, condições de vida, o dia a dia, o comum e o incomum da vida dos sujeitos implicados com vistas ao desenvolvimento da autonomia dos atores sociais (ALVES, 2005). A educação em saúde possibilita a transformação dos saberes a partir do reconhecimento do usuário como sujeito portador de um saber, objetiva a emancipação e a autonomia através do entendimento acerca do processo saúde-doença e, ainda, a busca e decisão por estratégias apropriadas para sua promoção. Trata-se do modelo dialógico em que a educação em saúde torna-se uma estratégia para operacionalizar a promoção de saúde (ALVES, 2005). O acesso à saúde, bem como as demais políticas sociais, se dá a partir da tomada de conhecimento e de reflexão sobre esta e o processo participativo, que pode ser estimulado e construído no espaço da escola, contribui ao potencializar [...] “os grupos desfavorecidos, faz crescer sua confiança em suas próprias capacidades e contribui para sua articulação. Todos estes elementos colocam-nos em melhor situação para lutar por seus direitos e influir de modo efetivo” (SOUZA, 1987, p. 83). Acredita-se que, ao desencadear o processo de pensar/problematizar/ dialogar sobre a saúde, cuidados, apropriação sobre o próprio corpo, sobre direitos e sobre atribuições das políticas se fomentará a reivindicação pelos direitos, se potencializará a participação em grupos e a troca de experiências e consequente mobilização coletiva. Esse processo, quando realizado com crianças e adolescentes e adequado às necessidades e singularidades de cada fase do ciclo vital, permite o acesso a informações sobre a rede de 189 190 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos saúde, rede socioassistencial, favorece o convívio familiar e no espaço da comunidade, o autoconhecimento e a participação ativa em espaços coletivos. A participação juvenil é de extrema importância para construção de sujeitos políticos e críticos e indicações apontadas pelos Ministérios da Saúde e da Educação se irmanam nas proposições realizadas nesse projeto de pesquisa. Segundo documentos oficiais: Adolescentes e jovens têm o desejo de ser escutados e a necessidade de serem reconhecidos em suas capacidades. Considerados enquanto sujeitos plenos de direito, eles precisam ser vistos de modo concreto como cidadãos, capazes de posicionamento nos diversos níveis do cotidiano em que estão imersos. Um grande número de pessoas jovens tem ideal de transformar a sociedade em algo mais humano e justo, mas não tem ideia de como concretizá-la, nem recebe qualquer incentivo nesse sentido [...] (BRASIL, 2010, p. 52). Com isso afirma-se que o projeto aqui destacado está em consonância com o preconizado pelo Ministério da Saúde, quanto à participação juvenil, como [...] uma forma de ajudar adolescentes e jovens a construírem a sua autonomia, através da geração de espaços e situações propiciadoras da sua participação criativa, construtiva e solidária na solução de problemas reais seja na escola, na comunidade e na vida social mais ampla (BRASIL, 2010, p. 52). Com isso, a proposta de reunir adolescentes em um espaço grupal onde debatem sobre diferentes temáticas com centralidade na saúde, cuidados, responsabilidades, é um exercício de pensar/repensar como sujeitos atuantes na realidade que vivenciam. Esse processo coletivo estimula a consciência crítica, em uma etapa da vida em que as relações de grupo são importantes, em que a formação política dos sujeitos está em processo de iniciação e consolidação. A participação dentro da escola, espaço cotidiano dos adolescentes, cria parâmetros de participação em outros espaços sociais de interesse dos sujeitos como movimentos sociais, conselhos de direitos etc. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler pesquisa com adolescentes: a complexa tarefa de criar consensos, diálogos e escutas Segundo Demo (1991) pesquisa é a atividade científica pela qual se descobre a realidade. O pressuposto é de que a realidade não se desvenda na superfície, sendo o ato de pesquisar fundamental para uma profissão como o serviço social, que fundamenta a análise da realidade e a sua intervenção na gênese dos processos sociais. Isso implica buscar um arcabouço teórico-metodológico, a fim de desvendar e conhecer a realidade, os fenômenos e as contradições. Para Minayo (2010, p. 47), a pesquisa é “uma atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca se esgota, fazendo uma combinação particular entre teoria e dados, pensamento e ação”. Tem um impacto na vida dos sujeitos e de uma nação quando está “compromissada em libertar a verdade de seu confinamento ideológico”, configurando-se como “um espaço de resistência e de luta” (IAMAMOTO, 2008, p. 452). Dessa forma, esse tipo de projeto não poderia ter outra metodologia que não fosse a qualitativa, a qual ampara-se na descrição dos fatos e fenômenos de determinada realidade (TRIVIÑOS, 1995), permitindo que as análises identifiquem as manifestações expressas, nesse caso, no cotidiano da comunidade escolar e nas relações entre seus atores, quais sejam: corpo docente e discente, familiares e a comunidade em geral, bem como as relações com a política social. O percurso investigativo pressupôs um conjunto de procedimentos como: método, instrumentos e técnicas de coleta de dados, aspectos éticos, universo e amostra a ser estudada, indicadores de resultados e, igualmente, as estratégias de divulgação dos resultados obtidos. A preocupação ética da equipe de pesquisadores impôs o estabelecimento e a definição desses aspectos, pois os mesmos atendem e maximizam “[...] aspectos científicos e éticos a fim de se produzir conhecimento confiável e generalizável; responder às necessidades das pessoas e comunidades envolvidas; e garantir a segurança e o respeito aos participantes” (TAUIL, 2008, p. 257). Nesse espaço de resistência e de luta, a pesquisa vincula e articula o ensino, o saber e o fazer, e se mostra como atividade fundamental para essas sucessivas aproximações da realidade, colocando-se como finalidade na construção de um conhecimento científico que dê bases para a qualificação das próprias políticas sociais, subsidiando a práxis profissional. 191 192 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Também se afirma que o método dialético e crítico norteador da pesquisa, possibilita o desvendamento do fenômeno social, partindo de uma análise que considera a estrutura e a busca na história, a sua gênese, considerando a articulação dos múltiplos fatores sociais, culturais, políticos e econômicos. Dessa forma, se interpreta os fenômenos à luz do método dialético, analisando sua totalidade, suas contradições e sua historicidade, relacionando todos esses aspectos para que possa haver uma análise de forma não fragmentada. A pesquisa partiu de uma indagação e de uma curiosidade intelectual que instigou os pesquisadores: como mobilizar e potencializar a comunidade escolar a partir de ações de educação em saúde e cidadania a fim de garantir o direito dos adolescentes à proteção e à convivência em meio ambiente adequado? Na busca dessas respostas, utilizaram-se oficinas educativas, com dinâmicas e atividades construídas e desenvolvidas a partir das demandas dos sujeitos envolvidos; pesquisa documental, observação participante, entrevista semiestruturada e grupo focal. A execução iniciou em agosto de 2011 com a pesquisa documental, contatos com a rede de saúde, com a escola, com a apresentação do projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa da universidade e, a partir de abril de 2012, foram realizadas as primeiras oficinas educativas semanalmente com os adolescentes, usando temáticas escolhidas por eles e que abrangiam suas demandas e interesses. O espaço das atividades é uma escola estadual de ensino fundamental, os adolescentes que participam do estudo têm idades entre 10 e 17 anos e estão vinculados ao Programa Mais Educação4, oferecido pela escola. Além destes também participam docentes e familiares, por meio de reuniões e entrevistas semiestruturadas, em busca da mobilização para a construção de um espaço de exercício da cidadania e inclusão social. 4 O Programa Mais Educação, instituído através da Portaria Interministerial n° 17, de 24 de abril de 2007, firmada entre os Ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social, dos Esportes, da Ciência e Tecnologia, da Cultura e do Meio Ambiente, objetiva a implementação de educação integral a partir da reunião dos projetos sociais desenvolvidos pelos ministérios envolvidos – inicialmente para estudantes do ensino fundamental nas escolas com baixo índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb) (BRASIL, 2009). organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Foram realizadas sete oficinas nesse primeiro semestre, com duração média de uma hora, tendo uma média de quinze participantes por oficina. Desde o primeiro encontro, foi informado aos adolescentes que as oficinas seriam de livre participação, sendo que aqueles que não quisessem participar poderiam optar por outra atividade no Programa Mais Educação. Além disso, foi apresentado o projeto, seus objetivos e metodologia. Foi solicitada a anuência dos responsáveis através dos termos de assentimento livre e esclarecido e de uso imagem, os quais foram apresentados posteriormente aos pais em reunião realizada na escola, onde também foi assinado o termo de consentimento livre e esclarecido. Realizou-se reunião com o corpo docente da escola para a apresentação do projeto e para identificar junto a eles as demandas percebidas no cotidiano escolar referente à saúde dos estudantes, às possibilidades de trabalhar em conjunto e de potencializar os debates e o acesso a informações. Igualmente realizou-se reunião com os pais dos estudantes com a finalidade de apresentar a pesquisa e obter a autorização firmada nos termos que são exigidos para tal prática. Assinalada a importância de se trabalhar a questão da saúde dentro da escola, inclusive a saúde sexual, sendo que alguns pais ressaltaram que a “educação sexual deveria fazer parte do currículo escolar” frisando que não veem a necessidade de solicitar autorização para tal. Também reiteraram ser importante a realização de oficinas com os pais, para que acessem informações que subsidiem as relações e diálogos com seus filhos sobre assuntos como drogas, sexualidade etc. Nas oficinas, buscou-se primeiramente conhecer o grupo de adolescentes e, para tanto, foram utilizadas dinâmicas.5 As temáticas abordadas nas oficinas emergiram conforme as demandas do grupo e os estudantes utilizaram papel e cartolina para registrar os assuntos que gostariam de discutir ao longo do semestre e, com base nessas ideias, foi organizado o cronograma de atividades. O resultado da primeira oficina chamou a atenção, pois o tipo de atividades realizadas por eles incluía esportes (futebol, vôlei) e brincadeiras de rua e poucas atividades ligadas a tecnologias 5 Dinâmicas: Teia de aranha, Chuva de Ideias – dinâmicas utilizadas para promover a integração e estimular a expressão de ideias entre os participantes. 193 194 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos (computador, vídeo game). Evidentemente a condição socioeconômica está presente nessas opções/possibilidades, porém aponta atividades pouco encontradas na classe média ou média alta, onde as crianças e os adolescentes estão dentro de casa e apartamentos ligados nas “telinhas”. Nas oficinas discutiu-se a concepção de saúde e, através de figuras de revistas e com material para confeccionar cartazes, eles representaram suas crenças e concepções. Observou-se que, na apresentação dos cartazes, os estudantes não referiram o termo doença, referindo que para se ter saúde é necessário: “educação de qualidade, boas maneiras, amor, amizade, sentimentos, forma de carinho, alimentação saudável, atividade física, bem-estar, qualidade de vida, estudar, ler, afastar-se do que faz mal como drogas, emagrecimento com saúde.” Referindo também “saúde do corpo, saúde mental e saúde bucal” e que, para ter saúde, é preciso “bons profissionais de saúde e locais adequados para o atendimento”. Ao expressarem sua concepção de saúde os adolescentes reiteraram que saúde está além da condição física, mas também está além de apenas cuidar do corpo e ter hábitos de higiene, e, sim, implica determinantes como condições de vida, acesso a estudo, alimentação saudável e nutritiva, possibilidades de lazer, enfim, todas as variáveis que contêm a concepção ampliada de saúde. Desnecessário informar que as oficinas são barulhentas, movimentadas, por vezes, exige uma boa dose de paciência e tolerância dos coordenadores, pois se trata de um grupo pleno de energia, inquieto, falante, e com todas as características típicas da adolescência. Alguns estudantes referiram que “é difícil ter acesso à saúde, pois tem que estar cedo no posto para conseguir consulta e que não é sempre que se consegue”, denunciando uma das fragilidades visíveis da política de saúde e, frequentemente, matéria da mídia. Demonstrando que eles estão atentos à forma como a saúde vem sendo oferecida, uma vez que este é um direito fundamental de todo o cidadão e dever do Estado, conforme prevê a Constituição Federal de 1988. O depoimento dos jovens expõe uma das contradições da política de saúde que obriga os usuários a enfrentarem longas filas de espera em horários inadequados e que coloca em risco a saúde quando vão à busca de atendimento à saúde. Outro instrumento que forneceu material para compreensão da realidade estudada foi o grupo focal com os adolescentes, em que participaram dez organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler estudantes. Essa atividade foi coordenada por uma assistente social pesquisadora do NETSI que não participou das oficinas, pretendendo-se assim manter a imparcialidade das respostas e na condução dos questionamentos. Foram realizadas quatro perguntas, as quais, debatidas entre os adolescentes, geraram respostas como saúde é: “se alimentar, se exercitar, ter higiene, fazer exercícios, ter felicidade”. As atitudes para terem uma boa saúde envolveriam: “alimentação variada, fazer exercício, educação”. Para eles a escola, em relação à saúde, participa da seguinte maneira: “fornece alimentação, qualidade de ensino, apoio psicológico”, mas que a escola deveria promover a saúde através das seguintes ações: “chamar os médicos, mais segurança, contratar um guardinha, conversar sobre drogas, higiene, meio ambiente, saúde, respeito às diferenças”. Ao apontar a falta de segurança, ou insegurança, e a existência e a circulação de drogas e ao sugerir a necessidade de ter um “guardinha” na escola para proibir ou inibir a entrada de drogas, relacionam saúde enquanto a garantia de segurança e que as drogas também são uma questão da saúde, sugerindo inclusive que se debatesse mais esse assunto no ambiente escolar. Mesclam em suas falas soluções baseadas em diálogo/informações/ participação com medidas de controle/fiscalização. Nas entrevistas realizadas com os docentes, as respostas eram diversificadas, algumas referiam saúde como “equilíbrio entre corpo, mente, meio ambiente, relações interpessoais e espiritualidade”, “é individual e coletiva”, “direito de todo cidadão, é um dever do estado e da própria pessoa” e outras associavam saúde a questões biológicas/doenças físicas. Também relacionaram saúde a “alimentação balanceada”, “cuidados com a higiene”, “hábitos que não comprometam o corpo e a sua imunidade”, “acessos aos direitos básicos como saneamento, boa alimentação, emprego digno, lazer, família, moradia, educação, tratamento médico”, “vida saudável”, “ter sempre um objetivo e passatempos”. Essas respostas indicam a necessidade de realizar oficinas com o corpo docente, o qual apresenta ambivalências na concepção de saúde, o que não parece ser especifico desse grupo, mas sim da sociedade ainda enraizada no modelo biomédico. Os docentes identificaram como temas para serem trabalhados com os adolescentes: sexualidade e drogas. Referiram que esses temas sempre são abordados nas disciplinas curriculares quando procuram atender aos alunos 195 196 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos por meio das atividades. Reforçam a importância do trabalho intersetorial entre as políticas de saúde e educação. Reiteram nos seus depoimentos, a necessidade dessas ações e de “projetos em conjunto que sejam pontuais e de maior duração, e que devem nascer das demandas dos jovens, comunidade e professores, discutindo em conjunto com os profissionais de saúde”. Afirmam também que “e o posto de saúde do bairro poderia ser atuante na escola [...] participar de nossos projetos”, “[...] nossos adolescentes estão em busca constante de respostas. Recebem inúmeras informações, mas necessitam de ajuda para elaborá-las”. Constata-se a preocupação com a escuta dos jovens e dos docentes irmanados em suas necessidades, rompe-se com uma educação bancária/ visão de saúde em que o corpo docente/trabalhador de saúde ditava ações/prescrições/decisões, programas e conteúdos e o aluno/paciente atendia passivamente. Na análise, observa-se uma consonância entre os depoimentos dos jovens e dos docentes, todos ungidos em suas dúvidas e necessidades, o que instiga e justifica dar continuidade às ações configurando-se como projeto de extensão, o que determina responsabilidade continuada da universidade e dos outros atores envolvidos, visto que os envolve de forma diferenciada nos resultados. Amplia-se, dessa forma, a responsabilidade com os atores da escola, com a rede de saúde e com os universitários ao dar continuidade ao projeto, comungando interesse científico, ético e cidadão com interesse poético amparado na famosa afirmação de Antoine de Saint-Exupéry que encantou gerações de adolescentes: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. considerações finais Entende-se que debatendo saúde e educação com os adolescentes no espaço da escola, amplia-se a possibilidade de levar essa discussão para junto de outros sujeitos que fazem parte do cotidiano dos adolescentes: família, grupos de amigos, equipe docente, líderes da comunidade, outras instituições e serviços etc. Pretende-se, assim, o efeito “disparador” do co- organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler nhecimento, em que os sujeitos reflitam sobre determinado tema e depois multipliquem, disseminem, os conhecimentos nas comunidades onde vivem. Pode-se evidenciar, por meio das oficinas educativas, que os adolescentes têm participado ativamente destas e que os mesmos têm trazido uma visão ampliada de saúde ao relacionarem com “lazer, educação, alimentação saudável, amizade, atividade física, segurança”, entre outros. Destacamos que entre os docentes a concepção de saúde circulou entre ausência de doença e concepções mais identificadas com o atual conceito de saúde, demonstrando algumas concepções ainda enraizadas. Os adolescentes compartilham a percepção de que a saúde está muito além do que a relação com a doença e relacionam saúde como educação de qualidade, segurança, condições de se ter uma alimentação saudável e condições dignas de vida, lazer, esporte e cultura, convivência comunitária e familiar, entre outros. Aportam que, a participação familiar na vida escolar é uma forma de saúde, uma vez que as informações que eles ali recebem deveriam ser partilhadas com seus pais e responsáveis. As vozes desses adolescentes ecoam solicitando integralidade e sensibilidade na atenção às demandas postas a eles pela realidade. No que tange às novas gerações, entende-se por educação integral aquela que propicia o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes e que acontece por meio de situações de aprendizagem que oportunizam, simultaneamente, a ampliação de capacidade para a convivência e participação na vida pública; a ampliação de repertórios de competências e habilidades e o acesso e o usufruto aos serviços sociais básicos (NILSON; GOUVEIA; FERREIRA, 2009, p. 6). As ações contribuem tanto para que os adolescentes, os quais são os sujeitos da pesquisa, e a comunidade escolar tenham maior acesso a informações que visam à promoção e à prevenção da saúde e ao acesso a informações sobre outros direitos, assim como o conhecimento sobre suas realidades e possibilidades de solução para algumas demandas, contribuindo para a construção do desenvolvimento dos jovens numa perspectiva crítica e emancipatória e o crescimento social da comunidade na qual estão inseridos. 197 198 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos As oficinas buscam o fortalecimento do sujeito crítico e participativo na sociedade, o qual tem acesso a informações que dizem respeito aos seus direitos enquanto cidadão. O exercício dos pesquisadores é articular as políticas públicas sociais materializadas no espaço da escola, posto de saúde e universidade, no sentido de trabalhar para que as demandas trazidas pelos adolescentes sejam pensadas e articuladas de maneira integral. Enfim, reitera-se a importância da participação da comunidade escolar, dos familiares, do corpo docente e discente em parceria com a rede de saúde, com a universidade, a fim de, conjuntamente, criar estratégias e articular as redes de serviços para que os adolescentes tenham uma juventude protegida em consonância com os objetivos inicialmente propostos neste projeto. Encerra-se o artigo, mas não os questionamentos e o compromisso com esses sujeitos, finalizando com a citação de Gouveia (2009, p. 11) que expressa as reflexões desse grupo de pesquisadores: Portanto, falar de cidadania da população infanto-juvenil constitui importante desafio: tratar crianças e jovens como cidadãos hoje e não como promessa futura. Trata-se de construir uma ética cidadã que requer acolher crianças e adolescentes como estão, reconhecer e valorizar aquilo que eles podem, o que já sabem e as escolhas que querem fazer. E, sobretudo, acreditar que eles podem ser mais e que a convivência entre iguais e diferentes pode expandir o sentido da sua existência para além de estigmas e de qualquer outra forma de aprisionamento, seja ele material, relacional ou afetivo. referências ALVES, V. S. Um modelo de educação em saúde para o programa Saúde da Família: pela integralidade da atenção e reorientação do modelo assistencial. Interface – Comunicação, Saúde e Educação, Botucatu, v. 9, n. 16, p. 39-52, fev. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/icse/v9n16/v9n16a04.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2012. BELLINI, M. I. B. 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Mesmo entendendo que a acessibilidade é um assunto discutido nos âmbitos acadêmicos e políticos, pretendemos realizar uma aproximação ao tema contextualizando as mudanças sociopolíticas e institucionais que aconteceram na Argentina desde a década de 1990 até a atualidade, ao mesmo tempo em que, nos debates e lineamentos de políticas, aparece a família como objeto das políticas sociais e como unidade de intervenção. Versão revisada da Palestra apresentada no “I SERPINF– I SEMINÁRIO REGIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS, INTERSETORIALIDADE E FAMÍLIA – desafios no ensino, pesquisa e formação profissional”, realizado na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (Brasil), nos dias 29 e 30 de Novembro de 2012. 1 Retomam-se resultados do projeto de investigação “Las políticas hacia las familias en Córdoba: institucionalidad, procesos y sujetos”, realizado em Córdoba (2010-2011), aprovado e subsidiado pelo SECYT-UNC. Dirigido por Nelly Beatriz Nucci e codirigido por Rossana Crosetto. Investigadores membros: Ana María Miani, Claudia Bilavcick, Ana Paola Machinandiarena, Sabrina Bermudez; Adscritos à investigação: Juan Carlos Sabogal (2010/2011), Marcela Frencia (2010/2011), Silvana Barros (2010) e Ivana Santiano (2010). 2 202 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos as políticas públicas A relação estado-sociedade se concretiza através de sucessivas tomadas de posição (ou políticas) de diferentes atores sociais e estatais, diante de questões problemáticas que propõe o próprio desenvolvimento da sociedade. Isso significa que não só interessam os comportamentos intraburocráticos que traduzem a política em ação, senão também a dinâmica social gerada por esse processo e seus efeitos de retroalimentação sobre o comportamento dos atores estatais (OSZLACK, 2006). Desde essa interpretação, o autor recusa o caráter monolítico do estado e o concebe como uma privilegiada arena de conflito político, onde pugnam por prevalecer interesses contrapostos e se dirimem questões socialmente problematizadas. A relação entre Estado e sociedade civil é uma construção sócio-histórica e um espaço de lutas, conflitos e negociações entre os atores em torno dos assuntos que se problematizam como questão social. A respeito disso, a política estatal é mais um processo que um plano (GRASSI, 2003) quando se expressa em medidas e formas de ação dirigidas a atender demandas e necessidades sociais consideradas legítimas em um momento sócio-histórico determinado. As principais funções da política pública, segundo Pereira (2008), são: a) concretizar direitos conquistados pela sociedade e incorporados nas leis; b) distribuir bens públicos, que são “indivisíveis”, e que “todos devem, por uma questão de direito, ter acesso”. São “públicos” na medida em que são orientados ao interesse geral, não são pautados pelo mérito nem regidos pela lógica de mercado. As políticas públicas, por sua vez, constituem uma linha de orientação para a ação pública sobre a responsabilidade de uma autoridade também pública (organismos de saúde, educação, assistência etc.) destinada à sociedade e que se operacionalizam em programas, projetos, serviços sociais, que cumprem o papel de materializar de fato as propostas, ideias, desenhos de ação, objetivos e meios especificados por ditas políticas (PEREIRA, 2008). Desde esse enfoque, interessa compartilhar, por um lado, algumas características da lógica político-institucional na gestão, pertinência e alcance da política social na Argentina, assim como seus obstáculos e fortalezas para abordar o problema da multidimensionalidade e heterogeneidade da organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler pobreza e a vulnerabilidade social. Por outro lado, mostrar de que maneira a institucionalidade da política permite analisar os processos nos quais se corporiza a relação Estado-famílias, desde os aspectos constitucionais e legais nos quais se sustentam os modos em que viabilizam bens e serviços para fazer efetivo o cumprimento dos direitos aos que se dirige e, por último, as relações com os sujeitos que são os que expressam as demandas de acordo com uma interpretação das necessidades sociais que devem ser atendidas. políticas sociais e famílias As políticas sociais, como conjunto amplo de intervenções estatais destinadas a melhorar a qualidade de vida dos cidadãos, como já se explicitou, possuem um caráter sócio-histórico e se transformam não sempre em consonância com as necessidades emergentes da situação econômico-social e política. As mudanças que experimentaram as políticas sociais, seguindo a Cecchini (2011), abrevam no debate conceptual que se há dado no meio acadêmico, nos organismos de cooperação e nas instituições financeiras internacionais e se plasmam em lineamentos e modos de intervenção propostos: Uma proteção social baseada no emprego formal, caso em que o rol do Estado é o de provedor. A recente evolução do mercado de trabalho na região trouxe consigo novos desafios a essa forma de encarar a proteção das pessoas mais vulneráveis. Uma proteção social que somente se ativa diante de situações de emergência, nas quais a pobreza e a vulnerabilidade alcançam níveis muito altos. O Estado é entendido como um subsidiário mitigador. Uma proteção social como assistência e acesso à promoção, de natureza focalizada e delimitada. O Estado cumpre o rol de um agente subsidiário promotor. Uma proteção social como garantia da cidadania. Nesse caso se outorga à proteção o carácter de direito. O Estado é “uma garantia.” (CECCHINI, 2011, p. 5). 203 204 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos Diante desses modos de intervenção e lineamentos de política, na última década, na Argentina, se produziram variações no modelo de organização política, econômica e social concomitante à complexidade e à magnitude dos problemas sociais, entre os quais se encontram a pobreza, a informalidade e precariedade laboral e a desigualdade, começando a transitar em um caminho ainda incipiente de políticas públicas desde o enfoque de direitos em relação à provisão e à administração do bem-estar. Por outra parte, as políticas relacionadas com famílias formam parte do conjunto de políticas públicas estatais e expressam o estado das relações sociais entre atores e instituições segundo o modo no qual se dirimem conflitos e negociações. Enquadrados em uma luta simbólica que inclui as representações em torno dos próprios atores, as necessidades, as demandas e os modos de serem atendidas e as implicâncias com relação aos processos de inclusão social. Ou seja, entre as funções que assume, o Estado, para regular a vida familiar, os aspectos normativos e os conteúdos ideológicos, adquirem especial significação, quando as famílias se convertem em objeto de suas políticas, já que, ao mesmo tempo, são submetidas a ações de vigilância e controle (SEGALEN, 1992). A família começa a ser objeto de atenção estatal quando a situação de pobreza se converte em questão social. As primeiras formas de intervenção determinam a família como instrumento de controle social (SEGALEN, 1992) desde um parâmetro de “normalidade” que se assemelha ao modelo de família burguesa, nuclear. Entendemos que a família (NUCCI et al., 2013) é um dos espaços sociais fundantes na vida das pessoas, dado que nela se constroem as primeiras relações, experiências e modos de aprender a ser, a pensar, a atuar, a sentir. É também uma organização social na qual seus membros combinam suas capacidades e recursos em prol de um objetivo comum referido à reprodução cotidiana e social, com divisão do trabalho familiar, distribuição de responsabilidades, direitos e deveres segundo o gênero, geração e parentesco em torno do cumprimento das funções da família. Nela, cada membro tem experiências e interesses próprios segundo a posição que ocupa na mesma, porém essas diferenças tendem a articular-se (não desaparecem, ao contrário, estão em tensão constante entre o comum e o individual) em prol de um objetivo comum. Constitui uma trama de organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler complexas relações e posições onde o setor social, o gênero, a geração e o parentesco nos permitem compreender o processo de conformação das necessidades, carências e os recursos que satisfazem, em momentos e contextos particulares. Compreendemos a família como unidades domésticas (JELIN, 1986); conceito que permite reconhecer sua participação nos processos de produção, reprodução, distribuição e consumo na sociedade, entendendo que não se tratam de sujeitos passivos, apenas receptores, senão sujeitos ativos que, nas condições em que se encontram vivendo, reproduzem suas condições de vida, contribuindo, desse modo, à reprodução da ordem social. Sua característica essencial é a coabitação. Família é o grupo que inclui vários indivíduos ligados entre si por laços de compromissos e de parentesco, e se denomina unidade doméstica ao grupo corresidente que coopera nas tarefas ligadas ao sustento de seus membros. Os grupos domésticos desenvolvem estratégias e implementam mecanismos de acesso a recursos de diversas fontes para a realização das múltiplas atividades que possibilitam a reprodução cotidiana da existência, como por exemplo, a obtenção de ingressos econômicos através do trabalho remunerado de alguns membros da unidade, a fim de aceder a distintos tipos de bens e serviços no mercado. Não obstante, na sociedade pós-fordista de crescente desemprego e precariedade laboral, a inclusão social através do trabalho formal já não é uma possibilidade para a reprodução cotidiana e social de um número cada vez maior de famílias, especialmente de setores de pobreza, e, por isso, cobram relevância outras fontes como as transferências formais do Estado, particularmente as derivadas das políticas sociais de assistência. As intervenções estatais que se vinculam com a família são diversas já que de forma explícita ou implícita estão contidas na legislação que regula a vida familiar e inclui um conjunto amplo de políticas públicas: desde políticas de saúde, educação, moradia, emprego e segurança social até aquelas focalizadas no combate à pobreza. Em geral, todas essas políticas condicionam as famílias e a reprodução cotidiana da existência. Entre elas, há algumas políticas que se referem ao conjunto de medidas ou instrumentos vinculados com as funções atribuídas às famílias, como são a procriação, o sustento e o cuidado dos filhos e outras 205 206 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos pessoas dependentes, como os doentes, os portadores de deficiências, os idosos etc. Ou bem, intervenções do Estado, relacionadas com problemáticas específicas que abarcam responsabilidades reprodutivas como violência doméstica, problemas de saúde, de escolaridade etc. Desde essa perspectiva, reconhecemos que, para o caso argentino, não existe um reconhecimento explícito oficial a respeito de uma “política familiar”, apenas políticas referidas à família, seguindo a Goldani (2005, p. 231): “estas políticas tratariam do conjunto de medidas ou instrumentos de políticas públicas cujo objetivo é fortalecer as funções sociais que cumprem as famílias”. Entre essas funções, destacam-se: “a reprodução e socialização de seus membros, a filiação e a herança, garantir as condições materiais de vida, a construção da subjetividade de seus integrantes (sistemas de valores, atitudes, ideologias e personalidades)” (ARRAIGADA, 2006, p. 23). Por outro lado, visualiza-se que as noções de família contidas nas políticas de provisão de recursos às famílias não desconstroem as diferenças internas para fazê-las visíveis; ao contrário, corresponde-se com o modelo unitário que considera as unidades domésticas como se tivesse uma única pessoa que toma as decisões, ignorando as hierarquias internas de gênero, classe e generacionais (ALDERMAN et al., 1995 apud GONZALEZ et al., 2001). Dessa maneira, não entram em questão problemas transversais como a igualdade de gênero, a conciliação entre o trabalho remunerado com o trabalho não remunerado de homens e mulheres, o acesso desigual a bens e serviços públicos, questões essas que formam parte do debate a respeito das novas formas de relação entre mercado, Estado e sociedade. O que está em jogo, são duas visões sobre as famílias a respeito da distribuição de responsabilidades entre esses atores. Por um lado, o grau de responsabilização do Estado dirigido às famílias da reprodução cotidiana (que remete ao familiarismo existente) e, por outro, é a proposta que tem em conta a heterogeneidade e a distinção das diferenças internas entre gêneros e gerações, assim como suas implicâncias na distribuição do trabalho familiar (MONTAÑO, 2005). Podemos dizer então, que se relacionam com a vida familiar todas aquelas decisões e ações estatais que regulam diretamente ou incidem de forma indireta na organização das condições de reprodução da sociedade. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Isso compreende a organização do trabalho, dos serviços coletivos, dos sistemas de bem-estar, a legislação e as formas institucionais, as possibilidades de acesso a recursos e de exercício de direitos, entre outros. chaves conceituais nas análises das políticas sociais Sottoli (2002) propôs, há uma década atrás, reunindo diferentes enfoques e perspectivas, dez dimensões para a análise das políticas sociais na América Latina, entre as que enumera: os objetivos, a cobertura-alcance, os destinatários, os atores (Estado, mercado, outros), a institucionalidade, a dimensão política, o financiamento, as prioridades da política social, a relação política social/política econômica e o ideário social. A autora finalmente esclarece que estas podem entender-se dentro de três vetores que atravessam a todas as políticas, com forma de pares contrapostos localizados nos extremos de cada vetor: universalidade versus seletividade e focalização, centralização versus descentralização e, finalmente, estatização versus privatização (SOTTOLI, 2002). As dimensões de análises das políticas sociais que propomos em nossos trabalhos de investigação seguem as linhas formuladas na temática por diferentes autores (CECCHINI, 2011; REPETTO 2010; ACUÑA; REPETTO, 2006; CUNILL GRAU, 2005) e remetem, em termos gerais, a essa ideia de vetor em cujos extremos se encontram os pares contrapostos: a) Centralização / Descentralização b) Setorialidade-isolamento / Intersetorialidade-transversalidade c) Universalidade / Focalização d) Acessibilidade / não acessibilidade centralização/descentralização Esse binômio expressa a maior ou a menor intervenção do âmbito local-próximo na tomada de decisões, no desenho, na gestão e na avaliação da política social. Nessa dimensão, Acuña e Repetto (2006) propõem, tendo em conta as regras formais e informais da institucionalidade social, analisar: a) a capacidade de decisão das diferentes hierarquias, quer dizer, 207 208 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos se o poder para tomar decisões está distribuído entre autoridades de distinta escala territorial ou concentrado num escano superior; b) que atribuições lhe cabe a cada autoridade, que tipo e alcance de decisões lhe corresponde a cada nível da hierarquia; c) que mecanismos institucionais (formais-informais) existem para coordenar a atividade entre autoridades de distinta jurisdição; e d) em qual medida as diferenças entre jurisdições coincidem com diferenças reais no entorno social e se existem mecanismos para compensar essas diferenças. Todas as dimensões nos permitirão compreender se uma política social determinada localiza-se mais perto do extremo do vetor que indica tendência a maior centralização ou, o contrário, a maior descentralização. setorialidade-isolamento/intersetorialidadetransversalidade Para Cunill Grau (2005) a intersetorialidade acarreta aspectos políticos e técnicos. O aspecto político dessa dimensão fundamenta-se em que a integração entre setores possibilita a busca de soluções integrais para o qual as políticas públicas devem ser planificadas e executadas intersetorialmente. O fundamento técnico sustenta que a integração entre setores permite que as diferenças entre eles possam ser usadas produtivamente para resolver problemas sociais, com a ideia de que cria melhores soluções (que a setorialidade) porque permite compartilhar os recursos próprios de cada setor. Construir um sistema integral de proteção social implica uma tarefa de médio/longo prazo (REPETTO, 2010), que requer de uma clara coordenação pro-integralidade. São três as razões que, combinadas, segundo Repetto (2010) explicam a necessidade de desenhar e tornar operativo um sistema integral: a) O conjunto de problemas que se busca enfrentar, dado que os principais problemas sociais que afetam a amplos setores da população são de caráter multidimensional, combinam carências e necessidades tangíveis e intangíveis, expressam obstáculos e restrições de diversa índole. Enfrentar a pobreza, a vulnerabilidade e a exclusão conduzem à necessidade de uma perspectiva organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler ampla de gestão social, que abarque a maioria das aristas dos problemas, os quais costumam combinar-se e potenciar-se entre si, particularmente, em seus efeitos negativos. b) O tipo de resposta que se busca dar a problemas complexos e inter-relacionados devem ser respostas amplas e coerentes que conjuguem as intervenções estatais e as das organizações da sociedade civil. c) A abordagem para materializar as respostas. Duas são as abordagens que habitualmente se associam a um sistema integral de programas sociais seletivos: por um lado, o relacionado com o ciclo de vida dos indivíduos, colocando a família no centro da perspectiva de intervenção; por outro lado, o que coloca o acento no território como base concreta onde a integralidade das ações públicas pode passar da intenção do desenho à realidade da implementação. Não se tratam de abordagens antagônicas entre si, o enfoque de direitos e o fortalecimento da cidadania dão sentido claramente democrático ao sistema integral de proteção social e pode constituir-se em um “guarda-chuva” dos mecanismos e das ferramentas de gestão, onde é possível imaginar sinergias entre a abordagem do ciclo de vida e o territorial.3 Problemas, respostas e abordagens constituem três elementos a considerar quando o desafio técnico, político e orçamentário é a conformação de um sistema integral de proteção social conforme os principais desafios sociais. Isso implica que a integralidade afete a própria formulação da política, o enfoque, o seguimento e a avaliação das intervenções concretas (REPETTO, 2010). Esse tema se aprofunda em NUCCI, N.: CROSETTO, R. MIANI, A. M; BILAVCICK, C; MACHINANDIARENA, P.; BERMUDEZ, S. et al, Las familias en las políticas públicas de la Provincia de Córdoba (2010-2011). Aproximaciones desde un estudio de casos. Cuadernos de Trabajo: Serie Investigación, Córdoba, n. 3, 2013, p.30-32. 3 209 210 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos universalidade/focalização O binômio universalismo-focalização mostra os extremos do arco da cobertura a que aspiram as políticas públicas. Em pleno o auge do neoliberalismo as políticas sociais se encaminharam em direção a focalização com o fundamento econômico de cobrir residualmente aos mais pobres. Posteriormente, diante das grandes crises econômicas do final do século e no início do novo, foram se experimentando sistemas mistos, combinando focalização com algumas políticas universais. Na atualidade, o debate em torno da efetivação de direitos sociais nos interpela a pensar desde o universalismo como princípio, entendendo a focalização como um instrumento da política social (definir prestações especiais sobre um setor social, determinado segundo critérios de gênero, idade, renda, capacidades etc.). Quando se fala de cobertura faz-se referência à quantidade e à qualidade de prestações como assim também às necessidades, problemas e demandas da população, tudo o que nos conduz a analisar o conceito de acessibilidade com maior profundidade. acessibilidade / não acessibilidade O conceito de acessibilidade alcança seu auge nos anos 1960, no marco da aliança para o progresso, diante da necessidade de concretizar planos de desenvolvimento social nos países latino-americanos, visão ingênua ou maniqueísta do “desenvolvimento social” que partia da base da necessidade de crédito externo e de tempo para poder igualar a todos os países do mundo. A acessibilidade foi definida como a forma em que os serviços se aproximariam à população. Esse conceito entendia a acessibilidade como um problema da oferta e considerava quatro dimensões nas quais se podiam observar barreiras para chegar com a oferta de bens ou serviços: a geográfica, a administrativa, a econômica e a cultural ou simbólica. As barreiras geográficas remetem a um problema territorial de aproximação entre a população e os serviços públicos. As barreiras econômicas aludem à impossibilidade de acesso por motivos de falta de recursos econômicos. As barreiras administrativas expressam a dificuldade que impõe a organização mesma dos serviços, por exemplo, organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler os horários de atendimento ou as consultas. Enquanto que as barreiras culturais estão centradas na existência de diferentes culturas entre os servidores do serviço público e a população. Stolkiner (2008) propõe pensar a acessibilidade como um problema de encontro/ desencontro entre a população e os serviços, introduzindo uma perspectiva integral em torno do tema. Defende que, se for visto como um problema de oferta, as representações, os discursos e as práticas da população não são necessariamente considerados pelos serviços na hora de dar respostas para melhorar a acessibilidade. Definir a acessibilidade desde a oferta torna invisíveis os sujeitos como construtores de acessibilidade. Pensá-los como um problema de encontro/desencontro entre a população e os serviços leva a considerar o conceito de maneira relacional e em sua complexidade. No entanto, os serviços são produtores de discursos que se entranham em representações e práticas da população, dando como resultado distintos modos de aproximação e utilização (STOLKINER et al., 2008). Pensar na dimensão simbólica é compreender que as representações dos sujeitos estão atravessadas por saberes, experiências, sentimentos, que são produto também dos mecanismos de poder de cada sociedade, da classe de pertencia, da etnia de origem, dos modos de disciplinamento social, e que as intervenções desde a política social também constroem nos sujeitos representações acerca dos direitos e modos para exercê-los (COMES, et al., 2004). A participação social pode ser um meio de construção de cidadania sempre e quando implique o exercício concreto de direitos, acarrete na construção de representações e saberes sobre o direito, a equidade, o rol do Estado. Dessa maneira, existe uma relação entre a dimensão simbólica da acessibilidade e os graus de participação que apresentam os usuários dos serviços. Essa leitura não implica correr a centralidade da responsabilidade do Estado, como garantia da acessibilidade e dos direitos dos cidadãos, ao contrário, tenta uma redefinição da tradicional forma de analisá-la, com a intenção de construir um caminho ao reconhecimento do protagonismo de todos os atores (e suas visões, interesses, lutas, necessidades) no caminho que leva a efetivação de políticas públicas baseadas em direitos. 211 212 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos modalidades de intervenção estatal na argentina nas últimas décadas Realizando um breve percurso sócio-histórico na década de 1990, na Argentina e, de maneira similar, em outros países latino-americanos, as intervenções públicas se enfocaram na construção de novas estruturas para atenuar o crescente incremento da pobreza, do desemprego e da desigualdade. Dentro das características que assumiram as políticas sociais podemos mencionar: • primazia da política assistencial dirigida a atender a emergência; • desarticulação e instabilidade institucional onde se prioriza a abordagem setorial dos problemas com superposição de objetivos; • início de um inovador processo de terceirização de serviços sociais em planos e programas focalizados; • cobertura seletiva em sujeitos em condições de pobreza e problemáticas sociais específicas; • concepção de sujeito como passivo, atribuindo-lhe o rol de beneficiário-cliente; • descentralização como traspasso do desenho e execução de políticas sem o acompanhamento de recursos econômicos o que acarretou dificuldades de implementação nas distintas jurisdições. • subsídios condicionados, dependentes das condições estabelecidas pelos organismos internacionais de crédito e assistência técnica e de seu financiamento; derivados de programas marcadamente voláteis e regressivos no campo da assistência social, cujas diretrizes estabeleciam: a) diminuir a pobreza a curto prazo (mediante a provisão de transferências em numerário) e organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler b) construir capital humano (como solução para pobreza a longo prazo ao romper sua transmissão intergeracional), através do condicionamento das transferências a componentes de saúde, nutrição e educação (COHEN; FRANCO, 2006). Nesse cenário, a família aparece como a destinatária final dos planos e programas assistenciais, sendo o acesso seletivo dirigido exclusivamente às famílias da pobreza. Desde essa suposição, a organização familiar é a base da sociedade e a principal provedora dos membros de uma sociedade, dos “cidadãos da nação”, quer dizer, é a organização fundamentalmente encarregada da reprodução cotidiana e social de seus membros. Tal responsabilidade remete tanto à reprodução da força de trabalho, ligada aos processos produtivos do mercado, como aos processos reprodutivos no interior do âmbito doméstico, relacionados ao trabalho doméstico, de consumo e de relação. O Estado, por sua parte, assume uma função de controle social com relação às responsabilidades assignadas à família. “Acompanha”, “colabora”, “desenvolve e fomenta capacidades para...” a conquista das metas estabelecidas com a população definida como destinatária/beneficiária – ou seja, membros das famílias ou lares4 em situação de maior risco: infância, anciãos, mulheres; reservando a estas as funções e práticas tradicionalmente exercidas (mulheres-mães encarregadas do trabalho doméstico). Como expressa Molyneux (2002), dada a ideia tradicionalmente assumida de que a mulheres estão predispostas “naturalmente” a servir às suas famílias e comunidades, são selecionadas para realizar trabalho comunitário voluntário. Posteriormente diante da profundidade da crise argentina nos anos 2001-2002, aparece uma maior presença estatal que tende a: • concentrar o combate à pobreza com poucos programas; • ampliar a cobertura diante do crescimento de grupos familiares em situação de pobreza; CROSETTO. R, SOLDEVILA, A (2009) “Pobreza y Desarrollo: El lugar de las familias en las políticas asistenciales” Palestra apresentada na “VIII CONFERENCIA IBEROAMERICANA SOBRE FAMILIAS – II CONFERENCIA NACIONAL SOBRE FAMILIAS – CUESTIÓN SOCIAL, DERECHOS HUMANOS Y POLÍTICAS FAMILIARES EN IBEROAMERICA – AVANCES, DESAFÍOS Y PERSPECTIVAS” 4 213 214 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos • manter as estratégias de descentralização de planos e programas para as jurisdições menores na implementação, mantendo financiamento centralizado nacional e dependente de organismos de crédito internacional; • formular políticas intersetorialmente, porém que se executem de maneira setorial, seguindo algum critério de coordenação horizontal e vertical; • fazer surgirem diversos planos como o Plan Jefes y Jefas de Hogar Desocupados (Plano Chefes de Família Desocupadas), o Programa Familias por la Inclusión Social (Programa Famílias pela Inclusão Social), que constituíram programas de transferência condicionada (PTC), ou seja, subsídios econômicos com contraprestações em controles de saúde, permanência na escola, participação e organização de espaços locais comunitários. A noção de família se centra em que são estas as responsáveis pela sua condição de pobreza. Esses planos e programas centrados na perspectiva sobre manejo do risco enfatizam, por um lado, a proteção da subsistência básica e, por outro, impulsa-se disposição para assumir riscos. Centra-se nos pobres, já que são os mais vulneráveis aos riscos e habitualmente carecem de instrumentos adequados para administrá-los (REPETTO, 2010). Ou seja, essa concepção se baseia no sistema de mercado e somente autoriza a intervenção pública quando os mecanismos do mercado não existem ou colapsam. Podemos afirmar que a atenção sobre o sujeito posa somente nas suas ausências, carências e impossibilidades, responsabilizando-o pela sua condição de pobre e ignorando o registro dos mesmos, em uma forma de organização social que se distingue por uma relação desigual entre classes e setores sociais. Desde uma visão caritativa (LO VUOLO; BARBEITO, 2001) reforçam-se as relações desiguais em relação aos “beneficiários” – merecedores dos recursos, disciplinando aos sujeitos e controlando suas práticas cotidianas reprodutivas. A “contraprestação”, ligada ao trabalho familiar, tende, por um lado, a aprofundar as sobrecargas e as condições de exploração das mulheres e, por outro lado, a despojar de conteúdos de cidadania (constituição de sujeitos de direitos), as relações sociais das famílias com o Estado. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler As mulheres emergem como membro central nos processos de reprodução cotidiana do coletivo familiar, sendo sua força de trabalho um fator fundamental que transpassa os muros da vivenda e a vincula com espaços comunitários e com o Estado – através de suas políticas sociais particularmente as assistenciais. Em geral, a partir dos nossos estudos5, podemos concluir que as ações de política social no marco das situações de desigualdade e pobreza que caracterizam a sociedade argentina no período analisado, sempre se relacionam com a provisão de recursos em paralelo com a aplicação de mecanismos de controle de cumprimento das responsabilidades reprodutivas assignadas às famílias. Exemplo disso são os programas de transferências condicionadas que tanto se estenderam na América Latina nos últimos tempos. Essas intervenções trazem como consequência a imposição de uma carga valorativa, que se caracteriza por responsabilizar aos sujeitos – famílias – pela sua condição de pobreza e pela transmissão dessa condição às novas gerações. A partir do ano 2003, derivado dos limites que mostraram os programas de transferência condicionada para combater as causas estruturais dos problemas que afetavam a qualidade de vida da sociedade argentina, produziram-se mudanças na política social inaugurando um conjunto de intervenções vinculadas à proteção de direitos. Como é o caso da sanção da Lei Nacional n° 26.061/05 de Protección Integral de los Derechos de los niños/as y adolescentes (Proteção Integral dos Direitos de crianças e adolescentes), na qual, entre outras coisas, se menciona particularmente a família como sujeito de proteção. E do Ingreso Universal por Hijo (Salário Família), desde 2009. É muito interessante observar, na agenda pública, a abordagem da temática nominada “proteção integral e direitos”. Se bem ainda são bastante incipientes os avanços realizados com respeito a esse tema, estes não são mecânicos, pelo que se observam nas instituições, resistências/dificuldades para incorporar 5 “Las familias en el campo de las políticas asistenciales: representaciones y prácticas configuradas en esta relación” (2008-2009)” e “La familia como objeto de las políticas asistenciales: el lugar de las familias en la reproducción/superación de la pobreza” (2005-2007), dirigidas por Nelly Nucci, realizadas na Institución: Escuela de Trabajo Social – Facultad de Derechos y Ciencias Sociales – Universidad Nacional de Córdoba. 215 216 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos mudanças, para adaptar-se, para criar novas estratégias que não formam parte de sua natureza ritualista e burocratizante. No entanto, não são inertes e se produzem nelas, movimentos para resguardar-se, como estratégias defensivas que na realidade são cenas das velhas estruturas adaptadas aos novos discursos. Com respeito a isso, nos últimos anos vem se estendendo a definição de políticas como viabilização do exercício de direitos, podendo tratar-se de políticas meramente assistencialistas ou baseadas na noção de assistência como direito, mas ainda não se constatam modificações substanciais nos processos institucionais, nem na vida daqueles que são os destinatários dessas políticas. Entendemos que toda e qualquer política em cujo horizonte esteja a efetivação de direitos e, particularmente, que inclua a família, deve contar com um organismo que defina parâmetros e lineamentos com relação às intervenções estatais vinculadas às famílias, desde uma concepção que reivindique as tarefas reprodutivas como responsabilidade da sociedade para além das diferenças de classe, através de um processo participativo com distintos atores sociais, o que possibilitaria a promoção de políticas baseadas em direitos e na igualdade de oportunidades. Desde uma instância desse tipo, poderiam orientar-se políticas setoriais e transversais para que desde cada lugar se intervenha, proporcionando oportunidades de bem-estar segundo as necessidades das pessoas e seus grupos de corresidência. Uma política que pense na acessibilidade como a possibilidade de encontro entre a população e os serviços, que considere o conceito de maneira relacional e em sua complexidade, ao reconhecer os serviços como produtores de discursos que se entremeiam em representações e práticas da população, dando como resultado distintos modos de aproximação e utilização, apresentará estratégias locais de encontro que ofereça a possibilidade de gerar discursos emancipatórios, de igualdade de possibilidades na relação com o exercício de direitos no uso de prestações e nas estruturas familiares. Uma política desse tipo requer superar concepções tradicionais, conservadoras, rígidas e atemporais, com respeito à noção de família. Portanto, requer um trânsito permanente de disputas entre atores e significados contrapostos. Embora, entendamos que a perspectiva de direitos de cidadania em tensão com o marco das desigualdades estruturais deve ser aprofundada em tudo que seja necessário para possibilitar a universalização do exercício dos direitos. organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler É evidente que somente a existência de um organismo desse tipo não é garantia da transformação necessária, porém pode constituir um espaço legitimado de interlocução e de promoção para a expressão dos atores sociais no debate sobre assuntos que se considera que devem formar parte de uma política que reconheça as responsabilidades reprodutivas como assunto público. Assim mesmo, caracterizamos esse espaço como lugar de disputas de significados e sentidos, interpretações e posições sobre as fronteiras entre o privado e o público, o necessário e o supérfluo, o que pode e deve ser transformado. referências ABRAMOVICH, V. 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Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI), coordenadora do Projeto Integração entre Universidade e Política de Saúde: Intersetorialidade e Ensino em Saúde/Edital Pró-ensino na Saúde/CAPES, membro da Assessoria Técnica e de Planejamento da Secretaria Estadual da Saúde/ASSTEPLAN/SES/RS. camília susana faler – Assistente social, mestre em Saúde Coletiva e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS), integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI), bolsista do Projeto Integração entre Universidade e Política de Saúde: Intersetorialidade e Ensino em Saúde/Edital Pró-Ensino na Saúde/CAPES. clarete trzcinski – Bolsista do Programa Nacional de Pós-doutorado (PNPD) MEC/CAPES. Doutorado em Engenharia de Produção (UFRGS). Mestrado em Serviço Social (PUCRS). Graduação em Serviço Social pela Unoesc. eliane de moura martins – Historiadora, mestranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diretora do Departamento do Trabalho da STDS. eunice maria viccari – Assistente social, mestre e doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS), docente do Departamento de Ciências Humanas da Universidade de Santa Cruz (UNISC), técnica científica da STDS. felipe anselmi correa – Médico de Família e de Comunidade da Unidade de Saúde Santíssima Trindade, preceptor da Residência de Medicina de Família e Comunidade do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). 222 intersetorialidade e políticas sociais: interfaces e diálogos fernanda brenner morés – Assistente social, técnica social do Serviço de Atendimento Familiar (SAF) da Associação Liga de Amparo aos Necessitados (ALAN), colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI/PPGSS/PUCRS). gleny terezinha duro guimarães – Professora doutora da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), coordenadora do Departamento de Supervisão e Práticas de Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Assistência Social (GEPsTAS/PPGSS/PUCRS). guilherme gomes ferreira – Assistente social, mestre e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS), integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho Saúde e Intersetorialidade (NETSI). elisa de andrade abreu – Assistente social, especialista em Saúde da Família e Comunidade, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS). lúcia rublescki silveira – Assistente social do Serviço de Saúde Comunitária do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), especialista em Saúde da Família e Comunidade, conselheira do CES/RS, mestre do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS). luiza barreto eidt – Graduanda de Serviço Social da Faculdade de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). patrícia teresinha scherer – Assistente social, mestre em Serviço Social e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS), integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho Saúde e Intersetorialidade (NETSI/ PPGSS), bolsista do Projeto Integração entre Universidade e Política de Saúde: Intersetorialidade e Ensino em Saúde/Edital Pró-ensino na Saúde/ CAPES. priscila françoise vitaca rodrigues – Doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade organizadoras | maria isabel barros bellini | camília susana faler Católica do Rio Grande do Sul (PGSS/PUCRS), professora do Departamento de Sociologia e Política (DESP) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). rossana crosetto – Lic. en Trabajo Social, maestranda en Ciencias Sociales, mención Políticas Sociales, profesora adjunta en Teoría de la Intervención y Trabajo Social. Escuela de Trabajo Social, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales. Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. sabrina bermudez – Lic. en Trabajo Social, maestranda en Ciencias Sociales, mención Investigación Social, profesora asistente en Fundamentos y Constitución Histórica del Trabajo Social. Escuela de Trabajo Social, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales. Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. sirlei fávero cetolin – Assistente social, mestre em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), doutora em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS), docente do Curso de Serviço Social da UNOESC/SMO. tatiane moreira de vargas – Assistente social da Unidade de Saúde Santíssima Trindade (USST), do Serviço de Saúde Comunitária (SSC) e do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), mestre em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS). thiana orth – Jornalista, mestre em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e doutoranda do Programa de PósGraduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/PUCRS), membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Assistência Social (GEPsTAS/PPGSS/PUCRS) e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). tiana brum de jesus – Assistente social, especialista em Saúde da Família e da Comunidade pela Residência Integrada em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), mestre do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGSS/ PUCRS), integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI/PPGSS) vanessa soares rehermann – Assistente social, residente da Saúde de Família e Comunidade do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). 223 tipografia número de páginas ano Gandhi Sans 224 2014