O PRINCÍPIO DA APTIDÃO PARA A PROVA E A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA A REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho1 1 – INTRODUÇÃO Segundo Jose Chiovenda, a teoria do ônus da prova guarda íntima relação com a conservação do princípio dispositivo no processo, ponderando ainda que em um sistema que admitisse uma investigação, de ofício, sobre a verdade dos fatos a repartição da carga da prova não teria razão de ser2. A sua assertiva, contudo, não se adequa com perfeição ao sistema processual brasileiro, onde não obstante se admita uma investigação de ofício pelo juiz3, entende-se que prevalece o princípio dispositivo, corporificado no Código de 1973 em seus artigos 2º, 128 e 460 e, por conseguinte, a distribuição do ônus da prova sempre desempenhou papel destacado na solução das lides. Fato é que no Brasil o processo civil é instaurado por iniciativa das partes, mas movimentado por impulso oficial. Esta regra também é válida para o processo do trabalho onde, conquanto o artigo 765 da CLT que assevere que “Os Juízos e Tribunais do Trabalho terão ampla liberdade na direção do processo e velarão pelo andamento rápido das causas, podendo determinar qualquer diligência necessária ao esclarecimento delas”, parcela significativa das reclamações são solucionadas tendo como parâmetro a distribuição do ônus da prova. A melhor maneira de harmonizar a ampla possibilidade investigatória atribuída aos juízes com a regra de partição do ônus da 1 Advogado militante. Especialista em Direito do Trabalho. Mestrando em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da Universidade Cruzeiro do Sul. 2 La teoria de la carga de la prueba guarda íntima relación con la conservación del principio dispositivo en el proceso, por lo que se refiere a la declaración de los hechos (§ 47). En um sistema que admitiese la investigación de oficio de la verdad de los hechos, el reparto de la carga de prueba no tendría razón de ser (Wach, Hnadbruch, pág 126). Pero sucede que con la tendência contraria al principio dispositivo en la declaración de los hechos se manifiesta una tendência contraria al reparto legal de la carga de la prueba: de estos descúbrense ya manifestaciones en la doctrina y también en las labores legislativas más recientes. (CHIOVENDA, Jose. Princípios de Derecho Procesal Civil. Réus S.A. Madrid, 2000, p. 277). 3 O artigo 130 do Código de Processo Civil estatui caber ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo. prova é concluir que a regra descrita no artigo 333 do Código de Processo Civil consiste em regra de julgamento, não havendo porque se falar em divisão do ônus da prova na fase instrutória4. Não sem razão José Frederico Marques pondera que a questão da repartição da carga probatória surge principalmente quando se verifica, a final, a ausência ou precariedade das provas e orienta a atividade processual das partes por lhes mostrar a necessidade jurídica de serem diligentes, se pretendem evitar prejuízos e inconvenientes5. A distribuição do ônus da prova está disciplinada nos artigos 818 da CLT e 333 do CPC. Aquele afirma que “a prova das alegações incumbe à parte que as fizer”, enquanto este estatui que o ônus da prova será do autor quanto aos fatos constitutivos de seu direito, e do réu quanto aos fatos extintivos, impeditivos e modificativos do direito do autor. Ainda subsiste discussão quanto à aplicabilidade do dispositivo processual civil ao processo do trabalho. Muito embora nomes respeitáveis 6 como os do jurista paranaense Manoel Antônio Teixeira Filho e do Procurador 7 Regional do Trabalho José Cláudio Monteiro de Brito Filho manifestem-se contrariamente à aplicação supletiva da regra de distribuição do ônus estabelecida no 8 Código Buzaid, por entenderem suficiente o artigo 818 da CLT , tem prevalecido, com acerto, a corrente que sustenta a pertinência de sua utilização. A justificativa é simples. Muito embora não haja lacuna no texto consolidado, os dispositivos referidos não se contradizem e nem tampouco são incompatíveis entre si. Muito pelo contrário, o artigo 333 do Código de Processo Civil complementa o estatuído no artigo 818 da CLT, detalhando o que lá está 4 Neste sentido é o magistério de Bento Herculano Duarte, que aduz ainda dever o magistrado “agir com a maior liberdade e o maior campo de ação possível, a fim que busque a alcance a verdade real sobre os fatos. Realça-se tal necessidade no campo do Direito Processual do Trabalho tendo-se em vista a hipossuficiência do empregado, em nítida desvantagem em relação ao empregador” (op cit, p. 159). 5 MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Campinas: Millennium, 1999, p. 341. No mesmo sentido é o escólio de Bento Herculano Duarte que enfatiza a natureza subsidiária do artigo 333 do CPC, destacando que o intérprete e aplicador da norma somente recorre às regras de distribuição do ônus da prova quando não consegue convencer-se da realidade fatual (DUARTE, Bento Herculano. Poderes do juiz: direção e protecionismo processual. São Paulo: LTr, 1999, p. 66). 6 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. A prova no processo do trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1986, p. 84-87. 7 BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Discriminação no trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p 89. 8 Saliente-se a este respeito que José Cláudio Monteiro de Brito Filho defende a complementação do artigo 818 da CLT pelo artigo 6º, VIII do CDC, tema que será tratado a seguir, e não pelo artigo 333 do CPC. escrito. Neste sentido, válidos se mostram os ensinamentos de Carlos Henrique Bezerra Leite: O artigo 818 da CLT estabelece textualmente que “o ônus de provar as alegações incumbe à parte que as fizer”. Essa regra, dada a sua excessiva simplicidade, cedeu lugar, não obstante a inexistência de omissão do texto consolidado, à aplicação conjugada do artigo 333 do CPC, segundo o qual cabe ao autor a demonstração dos fatos constitutivos do seu direito e ao réu a dos fatos 9 impeditivos, extintivos ou modificativos . Verdade seja dita, a Consolidação das Leis do Trabalho, que em sua integralidade nitidamente não apresenta preocupação com a perfeição do linguajar técnico-processual, faz uso de uma linguagem mais simples e menos científica para disciplinar a distribuição do ônus da prova no processo do trabalho. O Código de Processo Civil, por sua vez, desenvolvido com a colaboração de um dos mais notáveis processualistas de sua época, o Professor Alfredo Buzaid, mostrase mais detalhista e científico, razão pela qual a aplicação de sua norma de distribuição do ônus da prova em complementação à norma processual trabalhista mostra-se de grande valia e utilidade. 2 – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO DO TRABALHO As normas de distribuição do ônus da prova, muito embora essenciais, acabam em alguns casos causando injustiças. Situações há em que os elementos necessários para provar os fatos constitutivos do direito do autor encontramse exclusivamente em poder do réu. Nestes casos exigir rigor na aplicação da distribuição do ônus da prova findaria por inviabilizar o direito dos que buscam o judiciário. Para solucionar esta questão vem ganhando força em todo o mundo o chamado princípio da aptidão para a prova, segundo o qual o ônus de produzir prova deve ser atribuído a quem tem os meios para fazê-lo, independentemente de se tratar de fato constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo do direito da outra parte. Alguns autores, como Francisco Meton Marques de Lima, que prefere chamá-lo de princípio da 9 BEZERRA LEITE, Carlos Henrique. Curso de direito processual do trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2005, p. 421. aptidão da prova, chegam a sustentar a substituição das normas usuais de distribuição da prova pelo referido postulado: Entretanto, a teoria do ônus da prova, como se encontra nos arts. 818 da CLT e 333 do CPC, encontra-se superada. Hoje, vige o princípio da aptidão da prova, a significar que o onus probandi é de quem possui condições de cumpri-lo. Essa teoria foi transplantada para o processo do trabalho sob a denominação de inversão do ônus da prova, que já é uma realidade no direito brasileiro, ora implícita, ora expressa, como o art. 6º, VII, do CDC (Lei 8.078/90)10 Esta conclusão, todavia, não se mostra integralmente acertada. Primeiramente, porque o artigo 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor, representa uma corporificação tímida e mitigada do referido princípio. Afinal ele, em sua literalidade, apenas confere ao juiz a faculdade de inverter o ônus da prova quando for verossímil a alegação ou quando for o consumidor hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências, criando uma possibilidade excepcional de inversão do ônus da prova. E o princípio da aptidão para a prova que vem sendo desenvolvido mundialmente torna imperativo que a prova seja produzida sempre por quem tem os meios de fazê-lo, independentemente de comando judicial neste sentido. Desta feita, não houve substituição das regras ordinárias de distribuição do ônus da prova pelo princípio da aptidão para a prova, mas tão somente a atribuição ao juiz de uma faculdade de, verificados certos requisitos, afastar-se dos ditames usuais invertendo o ônus da prova. O referido dispositivo, contudo, deve ser interpretado com ponderação e de forma sistemática e teleológica. Com efeito, interpretando-o gramaticalmente poder-se-ia chegar a duas conclusões desacertadas: a de que ele não teria aplicabilidade no processo do trabalho11 e a de que as condições 10 LIMA, Francisco Meton Marques de. Elementos de direito do trabalho e processo do trabalho. 11ª edição. São Paulo: LTr, 2005. p. 331. 11 Neste sentido se manifestou o douto Procurador José Cláudio Monteiro de Brito Filho, segundo quem “A norma prescrita no Código de Proteção do Consumidor, todavia, não pode ser aplicada diretamente no processo trabalhista, por duas razões básicas. Em primeiro lugar, o artigo 6º, inciso VIII em comento, é claro ao referir sua aplicação no processo civil; em segundo , porque não há omissão na legislação processual do trabalho que permita a utilização da norma alienígena”. (op cit, p. 95). para que a inversão ocorra são alternativas, bastando a presença de uma delas para que o juiz a determine12. No que se refere ao primeiro ponto, o equívoco seria induzido pelo fato de falar expressamente o caput do dispositivo em direitos do consumidor e o inciso correspondente em processo civil o que poderia ser entendido como intenção do legislador de restringir deliberada e conscientemente este mecanismo à referida categoria social e ao referido rito processual. Entendimento que findaria por impossibilitar a sua aplicação para favorecimento dos empregados, e, mais até, a sua aplicação em todos os dissídios que tramitam perante a Justiça do Trabalho, que teve a sua competência recentemente ampliada. Estas conclusões, todavia, não se sustentam. Em primeiro lugar, o fato da inversão do ônus da prova ser tratada no referido dispositivo como um direito do consumidor não implica sua aplicação a esta categoria com exclusividade por duas razões. A uma porque o texto legal em momento algum fala em exclusividade ou utiliza qualquer expressão que conduza a esta conclusão. A duas porque as normas que regem a relação de emprego e os dissídios na Justiça do Trabalho não se exaurem no conteúdo da CLT por expressa determinação legal, razão pela qual podem ser extraídos direitos dos trabalhadores de normas direcionadas a outras categorias, assim como o processo do trabalho pode ser conduzido conforme normas dirigidas a outros tipos de procedimento. E as normas que complementarão o Direito e o Processo do Trabalho não necessariamente serão aquelas inseridas no Código Civil e no Código de Processo Civil, porquanto falam os artigos 8º e 769 da CLT, respectivamente, em aplicação subsidiária do direito comum e do direito processual comum expressões que não se referem exclusivamente aos estatutos acima referidos, abrangendo na verdade todas as normas de direito privado não integrantes da CLT e da legislação trabalhista especializada. Nesta categoria se inserem inequivocamente as normas de proteção ao consumidor, as quais se identificam muito mais com os 12 Neste sentido são as opiniões de Wilson de Souza Campos Batalha e José Cláudio Monteiro de Brito Filho. (Ibid, p. 94) e Eduardo Gabriel Saad (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: Lei 8.078, de 11.9.90, p. 169). postulados basilares do Direito do Trabalho do que a das demais normas de direito privado. Afinal, o direito laboral e o consumerista apresentam o mesmo alicerce fundamental, qual seja a hipossuficiência de uma das partes. Ademais, a presença dos requisitos necessários para aplicação subsidiária do dispositivo é inquestionável. A existência de lacuna evidenciase na medida em que não há na legislação trabalhista nenhuma norma expressa determinando ou vedando a inversão do ônus da prova. O artigo 818 da CLT, como visto, trata da distribuição do ônus da prova, nada afirmando quanto à possibilidade ou impossibilidade de sua modificação por determinação judicial. E a compatibilidade da inversão do ônus da prova prevista no Código de Defesa do Consumidor com o processo do trabalho se torna inconteste na medida em que este expediente já vinha sendo adotado no processo do trabalho em situações pontuais, em decorrência da aplicação da própria legislação trabalhista. É o que se depreende da Súmula 338 do TST, que determina a inversão do ônus da prova, não em decorrência de aplicação subsidiária do CDC, mas por não haver a empresa observado corretamente o que determina o artigo 74, § 2º da CLT. Não fosse isto o bastante, cumpre ressaltar que, se a mesma interpretação restritiva fosse aplicada ao artigo 81 do Código de Defesa Consumidor, desfigurado restaria o sistema de jurisdição civil coletiva, o qual, segundo leciona Xisto Tiago de Medeiros Neto, “sacramenta-se com a integração das normas da Constituição da República, da Lei da Ação Civil Pública e do Título III do Código de Defesa do Consumidor, admitindo apenas subsidiariamente a aplicação do Código de 13 Defesa do Consumidor” . Afinal, o caput do referido dispositivo, cuja aplicação em complementação aos ditames da lei 7.347 (LACP) é pacífica e inquestionável, também se refere expressamente à defesa dos interesses e direitos dos consumidores em juízo. Felizmente, não é esta a interpretação que tem prevalecido quanto a este dispositivo, entendendo majoritariamente a doutrina e a jurisprudência que o referido preceito não tem aplicação limitada aos litígios envolvendo consumidores, sendo perfeitamente aplicável ao processo do trabalho e a todos os demais procedimentos não consumeristas. 13 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. São Paulo: LTr, 2004, p. 230. Ultrapassado este primeiro ponto, cumpre analisar se os requisitos para a inversão do ônus da prova são alternativos ou cumulativos. Muito embora o texto legal utilize uma conjunção alternativa, o que conduziria a conclusão de que bastaria a presença ou da verossimilhança da alegação ou da hipossuficiência da parte para que se desse a inversão do ônus da prova, esta conclusão, questionada no âmbito da própria doutrina processual civil, que entende que a conjunção ou deve ser lida como e, deve ser ainda mais veementemente rechaçada no que se refere à inversão do ônus da prova no processo do trabalho. Afinal, no processo do trabalho a hipossuficiência do trabalhador é sempre presumida, sendo corolário natural da subordinação que rege o contrato de trabalho. E se um dos requisitos para a inversão do ônus da prova está sempre presente, aplicar o dispositivo em comento ao processo do trabalho interpretando-o literalmente resultaria em atribuir ao empregador o ônus de provar sempre todos os fatos discutidos nos dissídios individuais de trabalho, o que não se afigura razoável. Esta conclusão resultaria na exigência de que o empregador provasse fatos negativos como a ausência de assédio sexual ou moral imputado a um de seus prepostos, e provasse fatos que sequer estão relacionados com a sua conduta como, v.g., a preexistência do estado gravídico da gestante. Situações estas que, ao invés de prestigiar, contrariam frontalmente o princípio da aptidão para a prova. Afinal, não se afigura razoável concluir que o empregador possua melhores meios de provar que a gravidez foi posterior ao desligamento do que a empregada de provar o contrário. O ideal seria uma reforma do processo do trabalho, criando-se finalmente um Código de Processo do Trabalho próprio no qual haja previsão expressa da inversão do ônus da prova quando o reclamado detiver os meios necessários para a prova dos fatos constitutivos do direito do reclamante e houver verossimilhança da alegação, a critério do juiz. Enquanto isto não ocorre, é perfeitamente aplicável a inversão do ônus da prova com base no Código de Defesa do Consumidor, sempre que além da hipossuficiência presumida do empregado, forem verossímeis as alegações e os meios de prova necessários estejam na posse do empregador. Isto porque, ainda que haja uma presunção de hipossuficiência em relação ao empregado e ainda que sejam verossímeis suas alegações, não haveria porque inverter o ônus da prova se é ele quem detém os meios indispensáveis para produzi-la. Há que se ponderar ainda que diversos Tribunais Regionais do Trabalho do Brasil, que vem acolhendo requerimentos de inversão do ônus da prova com base no princípio da aptidão para a prova, sem sequer fazer referência expressa ao dispositivo do Código de Defesa do Consumidor acima analisado: SALÁRIO FAMÍLIA – ÔNUS DA PROVA DA APRESENTAÇÃO DOS DOCUMENTOS CORRESPONDENTES. Sem prejuízo das regras insculpidas no art. 818 da CLT, combinadas com as do art. 333 do CPC, inverte-se ao empregador o ônus da prova quanto à apresentação dos citados documentos, no curso do pacto laboral, considerando a aplicação do princípio da melhor aptidão para a prova, vigente sobretudo no âmbito do processo do trabalho, pouco importando que se trate de prova positiva ou negativa ou de que o interesse fosse desta ou daquela parte. Ademais, compete ao empregador, quando da admissão do funcionário, exigir-lhe a declaração da existência ou não de filhos, a fim de verificar se o mesmo está apto à percepção do salário família, bem como em que número de cotas. TRT da 6ª Região, 2ª Turma, Proc. nº TRT – 00434-2002-311-06-00-5, Relatora: Patrícia Coelho Brandão Vieira, decisão oriunda da Vara do Trabalho de Caruaru – PE, publicada no D.O.E. em 15/03/2005. PAGAMENTO. SALÁRIOS. ATRASO. ÔNUS PROBANDI. Pugnando o Reclamante pelo pagamento de multa convencional decorrente de atrasos nos pagamentos salariais, à prima facie, transpareceria ser seu o mister probante. Todavia, em observância à interpretação finalística e as razões ontológicas dos termos erigidos no artigo 818 da CLT; do "princípio da aptidão para a prova" (Porras Lopes) e do critério de utilidade desta para o processo, cabe ao empregador comprovar que efetuou os pagamentos salariais em tempo e modo corretos. TRT 23ª região RO-3147/99, Ac. TP. n. 452/2000, Relator Juiz Nicanor Fávero, Oriunda da 4ª JCJ de Cuiabá/MT. Não se pode deixar de ter em mente, contudo, que a inversão do ônus da prova deve ser sempre uma decisão interlocutória, jamais um critério de julgamento. Melhor esclarecendo, o juiz deve comunicar previamente as partes sobre a decisão de inverter o ônus da prova e os motivos que a justificaram, permitindo-lhes saber a quem incumbirá a produção das provas e a quem caberá realizar a contraprova de cada uma das assertivas. Não fazê-lo e somente na sentença comunicar que a decisão prolatada decorreu de uma inversão do ônus da prova implica injustificável violação ao princípio do devido processo legal e, por conseguinte, em nulidade processual insanável. Conquanto o ônus da prova seja relevante no momento da prolação da sentença, como adiante já evidenciado, há que se ter em mente que as partes vão a juízo imaginando que deverão produzir suas provas consoante determina o artigo 333 do CPC, delimitando previamente quais os tipos de prova e de contra-provas deverá produzir. Logo, se a regra geral não for aplicada ao caso, devem elas ser cientificadas antes do início da instrução. E não se venha dizer que esta cientificação é feita através do requerimento do autor em sua peça vestibular. Como todo requerimento, o pedido de inversão do ônus da prova pode ser acolhido ou rejeitado e isto deve ser feito em audiência antes do início da instrução probatória. 3 – O PRINCÍPIO DA APTIDÃO PARA A PROVA E OS REQUERIMENTOS DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA FORMULADO PELO MPT. Ultrapassadas as considerações iniciais acima expostas, cumpre adentrar ao cerne deste trabalho, qual seja a inversão do ônus da prova a requerimento do Ministério Público do Trabalho. Como já salientado o princípio da aptidão para a prova estatui que o ônus da prova é de quem tem melhores meios de produzi-la. E o Ministério Público do Trabalho, consiste em instituição grande e bem aparelhada, com representação nas capitais de todos os Estados da Federação, bem como em ofícios localizados em cidades interioranas estrategicamente localizadas e que goza de uma série de poderes e prerrogativas que torna a produção de provas mais fácil do que para as demais partes. Ressalte-se, logo de saída, que o Ministério Público possui a prerrogativa de instaurar um procedimento administrativo para investigar as denúncias que lhe são dirigidas, o inquérito civil público (artigo 84, IV da LC 75), III requisitar à autoridade administrativa federal competente, dos órgãos de proteção ao trabalho, a instauração de procedimentos administrativos, podendo acompanhá-los e produzir provas artigo 84, IV da LC 75), receber intimação pessoalmente nos autos em qualquer processo e grau de jurisdição nos feitos em que tiver que oficiar(art. 18, h), expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar (art. 8, VII), notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no caso de ausência injustificada(art. 8º, I); requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta(art. 8º, II); requisitar da Administração Pública serviços temporários de seus servidores e meios materiais necessários para a realização de atividades específicas(art. 8º, III); requisitar informações e documentos a entidades privadas(art. 8º, IV); realizar inspeções e diligências investigatórias(art. 8º, V); ter livre acesso a qualquer local público ou privado, respeitadas as normas constitucionais pertinentes à inviolabilidade do domicílio; Este fato é mais do que suficiente para justificar a não inversão do ônus da prova. Isto porque ela é um corolário lógico do princípio da aptidão para a prova, segundo o qual o ônus de produzir prova deve ser atribuído a quem tem os meios para fazê-lo. E, com todas estas prerrogativas há que se supor que o Parquet possui melhores condições de produzir prova da ausência de discriminação do que as empresas por ele investigadas ou acionadas judicialmente, e não o contrário. Outrossim, tendo-se em conta o princípio geral de hermenêutica que assevera que o ordinário se presume e o extraordinário deve ser provado, deve-se partir sempre do pressuposto que o Ministério Público possui melhores condições de provar suas alegações, somente sendo cabível a inversão do ônus da prova caso este consiga demonstrar, na oportunidade do requerimento, o contrário. Ademais, em se admitindo a inversão com amparo no artigo 6º., VIII, a inversão do ônus da prova reclamada, nos termos expressos da lei, se funda na hipossuficiência de uma parte e na verossimilhança da alegação feita. Ora, com todas as prerrogativas processuais de que dispõe, não há como se aceitar a idéia de que o Ministério Público seja hipossuficiente em relação às empresas investigadas. Mesmo nas hipóteses em que a ação versa sobre discriminação, hipótese em que comumente se afirma a imprescindibilidade da inversão do ônus da prova, ela não pode ser a regra em casos de ações em que se tutela interesses metaindividuais. Via de regra, é fácil demonstrar, em reclamações individuais, que a empresa possui melhores meios de provar a inexistência de conduta discriminatória do que o empregado de provar que houve, de fato, tratamento desigual. Em se tratando de ações para defesa de tutela de interesses metaindividuais o mesmo não é verdade. O Ministério Público pode provar a suposta existência de discriminação em determinada empresa de diversas formas como, por exemplo, colacionando aos autos cópias de diversas decisões reconhecendo uma conduta discriminatória, ouvindo testemunhas, requisitando das empresas documentos que comprovem políticas que estimulam tratamentos desiguais como planos de cargos e salários e contratos de trabalho. Com inspiração no direito estrangeiro, dados estatísticos podem ser reputados válidos como meio de prova, desde que se prove a existência de um prima facie case. Em outras palavras, o Ministério Público deve, além de demonstrar dados estatísticos seguros, demonstrar pelo menos um caso concreto de disparidade de tratamento. Esta demonstração não é nada difícil de ser feita, como sublinham os tribunais norte-americanos. A mesma Suprema Corte, em 1981, assinalou, a propósito exatamente de alegada discriminação de mulheres no emprego: “The burden of establishing a prima facie case of disparate treatment is not onerous. The plaintiff must prove by a proponderence of the evidence that she applied for an available position for which she was qualified, but was rejected under circumstances which give rise to an inference of unlawful discrimination...”(Texas Dept. of Community Affairs v. Burdine - 450 U.S. 253). No direito americano, muitas vezes apontados como vanguardista em matéria de tutela jurisdicional de combate à discriminação, não se vem admitindo o uso exclusivo das estatísticas como meio de prova irrefutável de condutas discriminatórias, o que não é verdade. Observe-se, por exemplo, que no julgamento do relevante precedente Internacional Brotherhood of Teamsters v. United States, referido por Firmino Alves de Lima como o mais importante processo judicial em que se tenha utilizado estatísticas para comprovação de uma política discriminatória promovida por uma empresa, outras provas foram fundamentais para o deslinde da questão14. Segundo o referido autor, “Ele ficou célebre pelo fato de a Suprema Corte aceitar a comprovação de uma discriminação sistêmica por meio de dados estatísticos, tratados em conjunto com outras provas”15. Vê-se, portanto, que nem mesmo no direito americano as estatísticas são aceitas como prova inconteste de discriminação por impacto adverso, a menos que corroboradas por outras provas produzidas nos autos. 14 LIMA, Firmino Alves de. Mecanismos antidiscriminatórios nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2006, p. 207). 15 Ibidem. Acerca deste relevante precedente bastante esclarecedor é o seguinte trecho do estudo desenvolvido por Firmino Alves de Lima: O processo expõe elementos fáticos estarrecedores. A ação foi proposta pelo Governo dos Estados Unidos com base nas disposições do título VII, sob a alegação de que a empresa demandada T.I.M.E.-D.C., Inc., uma grande transportadora de dimensão nacional, bem como o sindicato profissional correspondente, estariam envolvidos na adoção de um padrão de práticas discriminatórias contra negros e hispânicos. Os trabalhadores destas minorias, quando contratados, somente atendiam atividades locais com menor remuneração e atividades menos desejáveis, ao invés de operarem transporte em linhas intermunicipais, atividades com remuneração maior e geralmente ocupada por brancos. O Governo Federal acusou a existência de um sistema de promoções por antigüidade estabelecido por meio de negociação coletiva com o sindicato profissional, como perpetuador dos efeitos de discriminação racial e ética estabelecidas existentes no passado. (...) Mas a decisão reafirmou que não foi um caso onde o Governo Federal baseou-se em estatísticas tão somente, mas sim em testemunhos dos envolvidos, além de outros dados, consagrando o seguinte posicionamento: “Em qualquer situação, nossos casos deixam inquestionavelmente claro que ‘análises baseadas em estatísticas têm servido e irão servir como importante papel nos casos onde a existência de discriminação é questionada’. E em outra passagem mais adiante da decisão, afirma que: “As estatísticas são igualmente competentes em provar discriminação no emprego. Nós somente tomamos cuidado no sentido de que as estatísticas não são irrefutáveis, elas vêm em enorme variedade e, como qualquer outro meio de prova, podem ser desafiadas. Sua utilidade depende de todos os fatos e circunstâncias que cercam o caso”16. Como salienta Firmino Alves de Lima as questões envolvendo estatísticas não são assim tão fáceis de compreender e servir como prova irrefutável, dependendo o seu valor probante da metodologia da estatística utilizada, e dos fatores de comparação utilizados, para se chegar a uma conclusão se há discriminação proporcional17. Isto posto, a prova estatística produza não é irrefutável, sendo perfeitamente razoável que a parte demonstre a ineficiência da prova estatística 16 431 U.S. 324, 97 S.Ct. 1843, 52 L. Ed. 2d. 396 (19770, diponível em find law for legal professionals. Disponível em <http://laws. findlaw.com/us/431/324.html>). In: LIMA, Firmino Alves de. Mecanismos antidiscriminatórios nas relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2006, p. 207/208. 17 Ibid, p. 208. demonstrando que a metodologia utilizada não é adequada, ou que os fatores de comparação utilizados não demonstram o que se pretende provar. Há que se esclarecer que não se trata de inversão do ônus da prova, mas de uma prova que admite contraprova. 4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS. Diante de tudo o que fora exposto até aqui, algumas considerações podem ser feitas: 1) A ampla possibilidade investigatória atribuída aos juízes no processo brasileiro harmoniza-se com a regra de partição do ônus da prova estatuída nos artigos 333 do CPC e 818 da CLT, por serem estas regras de regra de julgamento e não de condução da instrução, verificando-se sua utilidade, sobretudo, em caso de prova insuficiente. Tais dispositivos devem ser aplicados conjugadamente no processo do trabalho, vez que não se contradizem e nem tampouco são incompatíveis entre si, sendo certo que aquele apenas detalha um pouco mais o que este determina; 2) Em virtude de as normas de distribuição do ônus da prova ensejarem em determinados casos injustiças desenvolveu-se a teoria da aptidão para a prova, segundo a qual o ônus de produzi-la deve ser atribuído a quem tem os meios para fazê-lo. No Brasil esta teoria foi corporificada, ainda de forma mitigada, na regra do art. 6º, VI do CDC;