O ÔNUS DA PROVA NA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA José Miguel Garcia Medina* Rafael de Oliveira Guimarães** RESUMO O presente artigo visa sistematizar a regra do ônus da prova na ação de improbidade administrativa. Tendo em vista tal objetivo, mister se faz uma visita às regras gerais sobre ônus da prova. Posteriormente, far-se-á uma pincelada na referida regra no tocante ao Código de Defesa do Consumidor, assim identificando a aplicação daquela no micro-sistema das ações coletivas, e por fim, se tal aplicação é atinente às ações de improbidade, mesmo sendo esta uma ação coletiva, mas com características político-criminais. Palavras-chave: Improbidade. Ações coletivas. Ônus da prova. Presunção de inocência. ABSTRACT This present article seeks to systematize the burden of proof rule in the Government Improbity Action. Considering this aim, it is necessary take a look at the general rules about burden of proof. Later, it will be made a brush up in the referred rule concerning to the Consumer Protection Act, this way identifying the application of that one in the * Mestre e doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP; professor do Mestrado na UEM, UNIAERP e UNIPAR; advogado em Maringá e Curitiba. Contato: www.medina.adv.br ** Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC-SP.Contato: guimaraes rafael@ terra.com.br JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA E RAFAEL DE OLIVEIRA GUIMARÃES minor system of the classes actions, and, finally, if such application is related to the improbity actions, even thought it is a class action, but with criminal-policy characteristics. Keywords: Improbity. Classes actions. Burden of proof. Guiltless presumption. 1 INTRODUÇÃO A Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/92) está em vigor há mais de quinze anos, e, apesar disso, muito se discute ainda quanto à sua interpretação. Um dos pontos mais sensíveis, e que motivam muitas destas discussões, refere-se ao ônus da prova na referida demanda, e a possibilidade de sua inversão. Como é cediço, o Código do Consumidor em seu art. 6o, inc. VIII, estabeleceu a possibilidade da inversão do ônus da prova quando constatada pelo magistrado a hipossuficiência técnica da parte, ou a verossimilhança das alegações desta. Já o art. 21 da Lei de Ação Civil Pública prevê a aplicação do Livro III do CDC às demandas coletivas, mas não fere o assunto da inversão do ônus da prova. Por isso, é necessária uma rápida passagem pelos conceitos de ônus da prova e a possibilidade de sua inversão. Ainda, se tal inversão do ônus probatório é aplicada em todas as demandas coletivas. Como ponto principal, far-se-á uma associação das ações coletivas com a ação de improbidade, motivar por que esta se encontra naquelas, e de acordo com os princípios norteadores da ação de improbidade, verificar se nas ações de improbidade também ocorre a inversão do ônus da prova. 2 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ÔNUS DA PROVA A palavra ônus, mais precisamente dentro da relação jurídica processual, significa poder ou faculdade (em sentido amplo) de executar livremente certos atos ou adotar certa conduta prevista na norma, para benefício e interesses próprios, sem sujeição nem coerção, e sem que exista outro sujeito que tenha o direito de exigir o seu cumprimento, mas cuja inobservância acarreta conseqüências desfavoráveis (PACÍFICO, 2000, p. 37). 152 Depoimentos, Vitória, n. 12, p. 151-164, jul./dez. 2007. O ônus da prova na ação de improbidade administrativa A parte tem o ônus de alegar, e posteriormente de provar que tal fato ocorreu ou não, visando ao esclarecimento do magistrado sob pena deste poder decidir de modo prejudicial àquela. O sujeito é livre para adotar a conduta prescrita pela norma, podendo, arcar com as eventuais conseqüências. O que difere o ônus do dever é que neste seria a subordinação de um interesse próprio a outro alheio, assim, no dever, há o comprometimento de alguém perante a outrem, obrigando a realização do ato. O não exercício de um dever se configura um ilícito, seja em virtude da norma, ou de contrato, o que não ocorre no ônus. No ônus, há a idéia de carga (LOPES, 1999). Tal obrigação não ocorre, facultando a quem tem o ônus de realizar o ato, a possibilidade de ocorrer prejuízo somente sobre o próprio autor do ato. O direito preza pelo Estado Democrático de Direito, e, por conseqüência, pela estabilidade das relações jurídicas. Assim, para que haja uma interferência na esfera jurídica de outrem, é dever de quem pretende essa “invasão”(autor), alegar fatos que, de acordo com a norma jurídica, são suficientemente robustos para justificar a lide, e, posteriormente, provar que tais fatos são verdadeiros. Cabe ao réu simplesmente alegar a inexistência de tais fatos, assim permanecendo o ônus com o autor, ou ainda, alegar outros que prejudiquem a pretensão do autor; neste caso, tais fatos deverão ser provados pelo réu. Num exemplo bem sucinto, a regra de ônus da alegação e ônus da prova é assim elucidada: “A” apresenta sua pretensão em juízo, somente a podendo fazê-lo, alegando fatos que tem o ônus de provar. “B” contesta a ocorrência de tais fatos e alega outro que prejudica os apresentados pelo autor. Somente quanto a estes alegados em defesa é que o ônus da prova compete a “B”. Desta forma é o regramento básico do Diploma Processual em seu artigo 333, I, a de que “o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito”, ou seja, quem alega os fatos, tem o ônus de prová-los. Não pode haver a presunção de existência dos fatos, é ônus de quem os alegou demonstrar sua veracidade. Sábias palavras são ditas por Moacyr Amaral dos Santos ao afirmar que: [...] quem primeiro age na causa, quem primeiro alega um fato do qual pretende induzir uma relação do direito, é o autor. Donde, abstração 153 JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA E RAFAEL DE OLIVEIRA GUIMARÃES feita ainda da atuação do réu no processo, cabe ao autor, aplicando-lhe o princípio fundamental do ônus da prova, dar as provas das alegações que fizer. (SANTOS, 1967, p. 129). Assim, vê-se que, de acordo com o regramento do Código de Processo Civil, cabe ao autor alegar os fatos relevantes para fundamentar seu direito, pois há a presunção de que tal direito não existe, assim, devendo este mesmo autor provar os referidos fatos para dirimir tal presunção, e deste modo ter o seu direito reconhecido. Essa é a regra do ônus da prova. 3 O REGRAMENTO DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR A Lei n. 8.078/90 estabelece em seu artigo 6o, inc. VIII, como direito fundamental do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência.”. Vê-se que o Diploma do Consumidor muda a regra ordinária do ônus da prova trazida no item anterior, quando estabelece que no caso de o juiz constatar a verossimilhança das alegações do consumidor, ou a hipossuficiência técnica deste, pode mudar a presunção que protegia o réu, para vigorar em benefício do autor, assim, fazendo com que o réu se obrigue a provar que a pretensão do autor não encontra resguardo no ordenamento jurídico. Isso é a inversão do ônus da prova. Nos dizeres de Arruda Alvim, [...] a inversão do ônus da prova, a critério do juiz, é outra norma de natureza processual civil com o fito de, em virtude do princípio da vulnerabilidade do consumidor, procurar equilibrar a posição das partes, atendendo aos critérios da existência da verossimilhança do alegado pelo consumidor, ou sendo este hipossuficiente, alteração do onus probandi que se dá ope iudicis e não ope legis. Ocorrendo a hipótese da hipossuficiência do lesado, a análise da plausibilidade da alegação do consumidor deve ser feita com menos rigor pelo magistrado, tendose, ademais, sempre em vista que basta que esteja presente qualquer um desses dois requisitos para que seja lícita a inversão. (ARRUDA ALVIM et al, 1995, p. 68-69) 154 Depoimentos, Vitória, n. 12, p. 151-164, jul./dez. 2007. O ônus da prova na ação de improbidade administrativa Estabelecido que o juiz deve se manifestar se há ou não a inversão do ônus da prova, necessário é somente definir o momento de tal manifestação judicial. Ocorre muito no sistema processual brasileiro tal inversão na sentença de mérito, tendo como justificativa o fato que, por ser uma relação de consumo, tal possibilidade de inversão já era algo previsível pelo réu na demanda; sendo assim esta uma regra de julgamento. No entanto, conforme adverte Ricardo de Barros Leonel (2002, p. 338), “nada impede que o magistrado, vislumbrando a possibilidade de inversão no caso concreto, utilize seu poder de direção e em fase de saneamento do feito preconize às partes que voltem sua atenção para este escopo”. O E. Superior Tribunal de Justiça1 já se manifestou no sentido de que a inversão do ônus na dilação probatória traria maior utilidade ao processo, não podendo o fornecedor ser surpreendido na sentença, quando não há mais a possibilidade de se produzir a maioria das provas, com a decisão de que o ônus da prova era dele. O mais adequado é que o magistrado avalie a conveniência ou não da inversão do ônus probatório ainda na fase de dilação probatória para estabelecer em tempo hábil o ônus da prova para o réu. A regra, mesmo na incidência do Código de Defesa do Consumidor, é a do ônus da prova para o autor (CPC, 333, I), e se o juiz entender que há a presença da hipossufuciência técnica ou da verossimilhança das alegações do autor, pode inverter o ônus da prova, se possível, no despacho de saneamento. A regra da inversão é subsidiária. 4 A AMPLIAÇÃO DA REGRA DO CDC A TODAS AS DEMANDAS COLETIVAS. O MICRO SISTEMA DAS AÇÕES COLETIVAS Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, houve a alteração ao artigo 21 da Lei de Ação Civil Pública, e este estabelece que o Título III do Diploma do Consumidor é aplicável a todas as demandas que versem sobre direito difuso, coletivo ou individual homogêneo. Estabelece um regramento processual aos direitos coletivos lato sensu. O Código de Defesa do Consumidor, em seu Livro III, passou a regrar como lei adjetiva todo o micro sistema das ações coletivas. 155 JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA E RAFAEL DE OLIVEIRA GUIMARÃES Ao mesmo tempo, surgiu o questionamento: pelo fato de o artigo 21 versar sobre questões processuais, se outros regramentos processuais do CDC também deveriam nortear as demais ações coletivas. Eduardo Arruda Alvim2 é um dos partidários de que a parte processual do CDC é aplicável às ações coletivas, mesmo não estando tal norma processual inserida no Título III do Diploma do Consumidor; mas o processualista paulista não fere o tema “ônus da prova”. Ricardo de Barros Leonel já vislumbra a aplicação da regra do ônus da prova às demais demandas coletivas em virtude do art. 21 da LACP. Este afirma que “quando o legislador afirma que às demandas coletivas com fundamento na Lei de Ação Civil Pública aplicam-se as normas do ‘capítulo processual’ do código do Consumidor, não faz referência meramente formal ou gramatical. Não apenas no ‘capítulo processual’ do Código identificam-se normas processuais. Exemplo típico disto é a norma sobre o ônus da prova”. (LEONEL, 2002, p. 340). No mesmo sentido, Gregório Assagra de Almeida opina claramente pela aplicabilidade da regra de ônus da prova do Código do Consumidor a todas as demandas que versem sobre direitos coletivos. Justamente por ser o ônus da prova uma regra processual é que, apesar de não se situar no Título III do CDC, como tal deve ser tratada. O Promotor de Justiça mineiro é preciso ao preceituar que [...] são aplicáveis às ações ajuizadas com fundamento na LACP as disposições processuais que se encontram pelo corpo do CDC, como, por exemplo, a inversão do ônus da prova (CDC, 6o, VI). Este instituto, embora se encontre topicamente no Tit. I do Código, é disposição processual e, portanto, integra ontológica e teleologicamente o Tit. III, isto é, a defesa do consumidor em juízo. (ALMEIDA, 2003, p. 582). Desta forma, constata-se que a regra da possibilidade de inversão do ônus da prova, assim como no CDC, deve ser aplicada a todo o micro-sistema das ações coletivas. A presunção de que o réu não pode ter sua esfera jurídica invadida sem que haja fatos robustos alegados muda substancialmente. Imagine-se na ocorrência de um vazamento de produtos químicos em um rio noticiado amplamente pela imprensa. Nesta situação, no caso de uma associação ambiental demandar a indústria causadora em juízo, pode (e deve) o juiz 156 Depoimentos, Vitória, n. 12, p. 151-164, jul./dez. 2007. O ônus da prova na ação de improbidade administrativa entender que há claramente a verossimilhança das alegações, e determinar que a empresa prove que não causou dano ambiental algum ao rio, e assim se eximir das conseqüências legais de tal ato. Não poderia a associação autora ter o ônus de provar alguma irregularidade cometida pela empresa quando se trata de direito de tamanha importância, e visto que, neste caso, há a dificuldade de aquela conseguir tal prova. A notoriedade do acontecimento presume a ilicitude do réu, obrigando a este se desincumbir de tais alegações mediante a prova de que não polui o rio. Nas demais ações coletivas, diferentes das consumeristas, a hipossufiência técnica é menos constatável; os réus de tais ações não poderiam ser obrigados a ficar sempre produzindo provas quando demandados por partes com menos condições técnicas. A regra para inversão do ônus da prova nas demais ações coletivas é a verossimilhança, como no exemplo citado, ou seja, na avaliação da alegação,3 mas sempre com a determinação judicial anterior pela ocorrência da inversão de tal ônus. Assim, defende-se que sempre se está diante de direitos coletivos lato sensu, pode o magistrado, na constatação da verossimilhança das alegações, inverter o ônus da prova. 5 A AÇÃO DE IMPROBIDADE COMO AÇÃO COLETIVA VISANDO À PROTEÇÃO DE INTERESSE DIFUSO A ação de improbidade administrativa, apesar da natureza mista (processual e material) é usada frequentemente como fundamento da ação civil pública. Mas raramente se encontra alguma fundamentação para justificar o porquê de a referida ação ser direito coletivo e poder usar o instrumento da ação civil pública (art. 1o, IV da LACP). A ação civil pública visa à realização de uma obrigação de fazer ou uma indenização que vai para o Fundo dos Direitos Difusos. Na ação de improbidade, eventual indenização tem como destinatário a pessoa jurídica de direito público lesada, ou seja, em um desvio de verba de uma prefeitura, a esta é dirigida a verba recuperada. Constata-se que a ação de improbidade tem a característica de reparação de danos da administração pública, assemelhar-se ia a uma execução fiscal, que também teria esta função a de abastecer o cofre da pessoa jurídica de direito público com verba que a esta lhe 157 JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA E RAFAEL DE OLIVEIRA GUIMARÃES pertence. Mas se fosse a ação de improbidade uma simples ação de reparação, o objeto não seria indivisível, teria a pessoa jurídica lesada a titularidade de tal direito. Por isso, não cabe a afirmação de que a ação de improbidade objetive a simples reparação do erário, pois vários outros instrumentos também atingiriam o mesmo fim, tais como a Lei no 3.164, de 1o/6/57 (Lei Pitombo Godói), o Decreto-Lei Federal no 3.240/41, o Decreto-Lei no 201/67, dentre outros. A lei de improbidade veio para proteger a moralidade administrativa esculpida no art. 37 da Constituição Federal, essa é a meta da referida ação. Tanto o é que a lei estabelece em seus artigos 9o e 10o condutas que possam causar enriquecimento ilícito e dano ao erário, mas essas não podem ser aplicadas sozinhas, sem a incidência do art. 11, que prega pelo princípio da moralidade administrativa; e somente o referido dispositivo legal pode perfeitamente incidir sozinho, sem a invocação dos outros dois artigos. Seria o caso de um dano moral coletivo à administração pública, quando não constatado enriquecimento ilícito ou lesão ao erário, por exemplo. A lei de improbidade, muito mais do que punir enriquecimentos ilícitos e recuperar verbas desviadas, veio proteger a moralidade dos agentes políticos, regular condutas, que às vezes nem causam prejuízo aos cofres públicos, mas causam uma crise de credibilidade no nosso sistema administrativo. Condutas como a de parlamentares encenando comemorações em pleno Congresso Nacional ante a absolvição de colegas julgados por corrupção são condutas que deveriam ser punidas, e infelizmente não foram, pela ora comentada lei. A honestidade dos agentes políticos é a que lei tem como fim tutelar. O direito tutelado não fica na esfera da pessoa jurídica de direito público, mas de toda a comunidade, sai da esfera de interesse público e entra na do interesse difuso.4 “Como exigência do Estado Democrático de Direito, a probidade administrativa é, portanto, direito difuso por excelência, razão pela qual o seu controle jurisdicional é feito, de regra, por intermédio de uma ação coletiva.” (ALMEIDA, 2003, p. 452). É a moralidade administrativa; esta sendo um bem de todos é que tem como objeto a da lei de improbidade, e por isso indivisível. Aqui se constata o direito difuso na referida ação. Em magistral acórdão da lavra do Ministro Luiz Fux, é afirmado categoricamente que “é lícito que o interesse difuso à probidade administrativa seja veiculado por meio da ação civil pública máxime porque a conduta do Prefeito interessa a toda a comunidade local”.5 158 Depoimentos, Vitória, n. 12, p. 151-164, jul./dez. 2007. O ônus da prova na ação de improbidade administrativa Deste modo, verifica-se que a ação de improbidade corresponde perfeitamente a uma ação de direito difuso por tutelar a moralidade administrativa, e sendo este um direito indivisível, o uso do instrumento da ação civil pública é perfeitamente viável. 6 O ÔNUS DA PROVA NA AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Fazendo um breve retrospecto do preconizado no referido estudo, constatou-se que o ônus da prova pode ser invertido nas ações coletivas, e a ação de improbidade nada mais é do que uma ação coletiva que tutela direito difuso. Diante disso é que facilmente se leva ao entendimento de que poderia haver a inversão do ônus da prova nas ações de improbidade, por se tratar de direito indisponível e pelo fato da existência da possibilidade de inversão do ônus no micro-sistema das ações coletivas. As demandas coletivas, em sua maioria, objetivam a despoluição de um manancial, a substituição de um produto, condutas estas nas quais se vislumbra uma facilitação da produção da prova pelo réu e, na maioria dos casos, nada mais estabelece do que sanções financeiras. Nas ações de improbidade, tal fenômeno não ocorre. A ação de improbidade possui características sui generis, como pesadas sanções no artigo 12 da Lei n. 8.429/92; exemplo disso é a perda do cargo, a proibição de contratar com o Poder Público e multa de até 100 vezes o valor envolvido; possui a preponderância do dolo nas condutas,6 e uma grande reprovação social. Desta forma, tal lei assume um caráter político-adminitrativo conforme entende Flávio Chein Jorge (2006, p. 260), não de natureza penal, mas com vários princípios que norteiam tal ramo do direito, pois penaliza o agente público com as penas aqui citadas. É por isso que vigora nos atos de improbidade administrativa a garantia constitucional da presunção de inocência, assegurada pelo inciso LVII do art. 5o da CF/88, que preceitua que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Vê-se que há uma “pequena” semelhança com o art. 20 da Lei de Improbidade que preceitua que “a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o 159 JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA E RAFAEL DE OLIVEIRA GUIMARÃES trânsito em julgado da sentença condenatória.” Não bastasse, tal garantia constitucional “tem sido admitida em relação às sanções administrativas, até mesmo nas de natureza tipicamente disciplinar”. (PRADO, 2001, p. 45). Verificando-se algumas situações, como o art. 9o, VII da LIA, onde está estabelecido que incorrerão em ato ímprobo os agentes políticos que tiverem patrimônio incompatível com sua renda – assim se presumindo que o autor alega tal disparidade e que o réu deve provar a inocorrência desta – mesmo neste caso, a inversão do ônus da prova não existe. Fábio Medina Osório (2000, p. 388) afirma que “[...] basta a prova da ausência de origem do patrimônio adquirido, tornando-se ilícita a renda assim obtida, sobretudo levando-se em conta a transparência advinda do regime publicista do trabalho daqueles que lidam com a coisa pública, o que não traduziria, tecnicamente, inversão do ônus da prova”. Assim, vê-se que o princípio do processo penal da presunção de inocência norteia a lei de improbidade. Não por fundamento diferente, que o Min. Teori Albino Zavascki7 atribui o ônus da prova ao autor, e mais do que isso, a existência de defesa efetiva, como no processo penal, também nas ações de improbidade. É importante salientar que, felizmente, os tribunais pátrios8 vêm adotando o entendimento de que as ações de improbidade possuem características diferentes das demais demandas coletivas no que tange à prova do fato constitutivo do direito, e por isso não podem se submeter à regra da inversão do ônus da prova. 7 CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS De acordo com o manuseado no presente trabalho, constatouse que o ônus da prova no Código de Processo Civil é do autor, pois corresponde a uma faculdade da parte que o tem de exercê-lo, sob pena de esta mesmo sofrer as conseqüências de sua inércia. Como regra subsidiária presente no Diploma do Consumidor, há a inversão do ônus da prova quando o magistrado verificar a verossimilhança das alegações do consumidor ou a hipossuficiência técnica deste. E pela inteligência do art. 21 da LACP, tal possibilidade de inversão se estende a todo o microssistema das ações coletivas. 160 Depoimentos, Vitória, n. 12, p. 151-164, jul./dez. 2007. O ônus da prova na ação de improbidade administrativa Nas ações de improbidade administrativa, entendeu-se que ocorre fenômeno diverso. Em virtude da gravidade das sanções da Lei n. 8.429/92, da preponderância do dolo nas condutas e pela grande reprovação social que a referida lei impõe aplica-se, nas ações de improbidade, o princípio constitucional da presunção da inocência esculpido no art. 5o, LVII da Carta Magna, que se estende às sanções administrativas no geral. Assim, não ocorre a inversão do ônus da prova nas ações de improbidade. 8 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. ARRUDA ALVIM, José Manoel et al. Código do consumidor comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. ARRUDA ALVIM, Eduardo. Apontamento sobre o processo das ações coletivas. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias. (coord.). Processo civil coletivo. São Paulo: Quarter Latin, 2005. p. 28-61. JORGE, Flávio Chein. A tutela da probidade administrativa: crime de responsabilidade ou ação civil de improbidade administrativa. Revista de Processo, São Paulo, n. 131, p. 258-267, jan. 2006. LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: Saraiva, 2002. LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. São Paulo: Atlas, 2002. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. São Paulo: RT, 2000. PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova no direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende. Improbidade administrativa: requisitos para tipicidade. In: Interesse Público, São Paulo, n. 11, p. 81-86, jul./set. 2001. 161 JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA E RAFAEL DE OLIVEIRA GUIMARÃES PRADO, Francisco Octavio de Almeida. Improbidade administrativa. São Paulo: Malheiros, 2001. SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. 3. ed. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1967. VIGORITI, Vicenzo. Mauro Cappelletti e altri: davvero impossible la class action in Itália?. Revista de Processo, São Paulo, n. 131, p. 83-95, jan. 2006. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2006. Notas 1 “Inversão do ônus da prova. Art. 6o, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. Momento processual. 1. É possível ao Magistrado deferir a inversão do ônus da prova no momento da dilação probatória, não sendo necessário aguardar o oferecimento da prova e sua valoração, uma vez presentes os requisitos do art. 6o, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, que depende de circunstâncias concretas apuradas pelo Juiz no contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor..” (STJ, 3.ª T., REsp 598620-MG, rel. Min. Carlos Menezes Direito, j. 07.12.04, DJ 18.04.2005, p. 314, REVFOR vol. 382, p. 334). 2 “O sistema do Código de Defesa do Consumidor de tutela de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, aplica-se, mesmo que não estejam envolvidas relações de consumo, por força do art. 21 da Lei 7.347/85, que recebeu nova redação pelo art. 117 do CDC. Por esse dispositivo, a parte processual do Código do Consumidor tornou-se como que um sistema geral do processo das ações coletivas.” (ARRUDA ALVIM, Eduardo. Apontamento sobre o processo das ações coletivas. In: MAZZEI, Rodrigo; NOLASCO, Rita Dias. (coord.). Processo civil coletivo. São Paulo: Quarter Latin, 2005, p. 46). 3 “A inversão do ônus pela verossimilhança da alegação, em verdade, não trata de modificação do encargo de produção de prova deferido ao autor ou demandado. Encontra-se no campo da avaliação.” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 335-336). 4 Os italianos afirmam que o interesse difuso possui a característica básica de não ser nem público nem privado. “ Quegli interessi non sono né pubblici (nel senso di generali), né privati (nel senso di singoli individuali): sono collettivi o diffusi.” (VIGORITI, Vicenzo. Mauro Cappelletti e altri: davvero impossible la class action in Itália?. In: Revista de Processo n. 131. São Paulo: RT, Janeiro de 2006, p. 85). 5 “Administrativo e Processual. Improbidade Administrativa. Ação civil Pública. 1. A probidade administrativa é consectário da moralidade administrativa, anseio popular e, a fortiori, difuso. 2. A característica da ação civil pública está, exatamente, no seu objeto difuso, que viabiliza mutifária legitimação, dentre outras, a do Ministério Público como o mais adequado órgão de tutela, intermediário entre o Estado e o cidadão. 3. A Lei de Improbidade Administrativa, em essência, não é lei de ritos senão substancial, ao enumerar condutas contra 162 Depoimentos, Vitória, n. 12, p. 151-164, jul./dez. 2007. O ônus da prova na ação de improbidade administrativa legem, sua exegese e sanções correspondentes. 4. Considerando o cânone de que a todo direito corresponde uma ação que o assegura, é lícito que o interesse difuso à probidade administrativa seja veiculado por meio da ação civil pública máxime porque a conduta do prefeito interessa a toda a comunidade local mercê de a eficácia erga omnes da decisão aproveitar aos demais munícipes, poupandolhes de novas demandas. 5. As consequências da ação civil pública quanto aos provimentos jurisdicionais não inibem a eficácia da sentença que pode obedecer à classificação quinária ou trinária das sentenças 6. A fortiori, a ação civil pública pode gerar comando condenatório, declaratório, constitutivo, autoexecutável ou mandamental. 7. Axiologicamente, é a causa petendi que caracteriza a ação difusa e não o pedido formulado, muito embora o objeto mediato daquele também influa na categorização da demanda. 8. A lei de improbidade administrativa, juntamente com a lei da ação civil pública, da ação popular, do mandado de segurança coletivo, do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Idoso, compõem um microssistema de tutela dos interesses transindividuais e sob esse enfoque interdisciplinar, interpenetram-se e subsidiam-se. 9. A doutrina do tema referenda o entendimento de que “A ação civil pública é o instrumento processual adequado conferido ao Ministério Público para o exercício do controle popular sobre os atos dos poderes públicos, exigindo tanto a reparação do dano causado ao patrimônio por ato de improbidade quanto à aplicação das sanções do art. 37, § 4o, da Constituição Federal, previstas ao agente público, em decorrência de sua conduta irregular [...]. Torna-se, pois, indiscutível a adequação dos pedidos de aplicação das sanções previstas para ato de improbidade à ação civil pública, que se constitui nada mais do que uma mera denominação de ações coletivas, às quais por igual tendem à defesa de interesses meta-individuais. Assim, não se pode negar que a Ação Civil Pública se trata da via processual adequada para a proteção do patrimônio público, dos princípios constitucionais da administração pública e para a repressão de atos de improbidade administrativa, ou simplesmente atos lesivos, ilegais ou imorais, conforme expressa previsão do art. 12 da Lei 8.429/92 (de acordo com o art. 37, § 4o, da Constituição Federal e art. 3o da Lei no 7.347/85)” (Alexandre de Moraes in Direito constitucional, 9. ed., p. 333-334) 10. Recurso especial desprovido.” (STJ, 1.ª T., REsp 510150-MA, rel. Min. Luiz Fux, j. 17.02.04, DJU 29.03.2004, p. 173, RNDJ vol. 54, p. 112). 6 “Em outras palavras, a vontade específica de violar a Lei é requisito fundamental da imposição das pesadas sanções previstas na Lei ora comentada.” (PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende. Improbidade administrativa – requisitos para tipicidade. In: Interesse Público. n. 11, p. 83). “A Lei no 8.429/92 consagrou a responsabilidade subjetiva do servidor público exigindo o dolo nas três espécies de ato de improbidade administrativa. (MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. São Paulo: Ed. Atlas, 2002, p. 320-321). 7 “Um dos princípios do processo penal que é também comum ao sistema punitivo de atos de improbidade é o da presunção de inocência. No campo do processo, a consequência principal decorrente da adoção desse princípio é impor ao autor da ação todo o ônus da prova dos fatos configuradores do ilícito imputado. No que se refere à ação de improbidade, é descabida, assim, a invocação, contra o réu, dos efeitos da revelia, notadamente o da confissão ficta (CPC, art. 319). A falta de contestação, ou a contestação por negativa geral, sem o detalhamento 163 JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA E RAFAEL DE OLIVEIRA GUIMARÃES preconizado no art. 300 do CPC, não dispensa o autor do ônus imposto pelo art. 333, I, de fazer prova dos fatos constitutivos da infração.” (ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. São Paulo: RT, 2006, p. 116). 8 “Ação Civil Pública. Ato de Improbidade Administrativa. Contrato Administrativo. Ausência Indevida de Prévia Licitação. Dano ao Erário Público. Não Comprovação. Ônus da Prova. Autor. Artigo 333, Inciso I, do CPC. Sentença Confirmada. Não obstante a ocorrência de ato de improbidade administrativa, atinente à ausência indevida de prévia licitação para firmar contrato administrativo, o ressarcimento ao erário imprescinde que o autor traga aos autos prova de dano material ao patrimônio público, pois o ônus da prova incumbe a quem alega, segundo o artigo 333, I, do CPC. Não se desincumbindo do “”onus probandi””, inviável o acolhimento do pedido inicial. Recurso desprovido.” (TJMG, ApCív. n. 1.0439.04.030152-5/001(1), rel. Des. Batista Franco, j. 07.03.2006, DJ 31.03.2006) “Ação civil pública. Improbidade administrativa. Ministério Público. O prejuízo ao erário público deve restar sobejamente comprovado ante o princípio, a que se submete o Ministério Público, de que o autor tem o ônus de provar o fato constitutivo do seu direito. [...]” (TJRS, 3.ª Câm. Civ., Ap. Cív. 70001704360, rel. Juiz Augusto Otávio Stern, j. 22.03.2001, disponível em: <www.tj.rs.gov.br>.) “Apelação Cível. Ação Civil Pública. Ato de Improbidade Administrativa. Artigo 18 da Lei n. 7.347/85. Ausência de Prova. Improcedência do Pedido. Inaplicabilidade de Invesão do Ônus da Prova na Ação Civil. Apelo Desprovido” (TJPR, 8.ª Câm. Cív., ApCiv. n. 125537-0, rel. Des. Celso Rotoli de Melo, j. 12.11.2003). Recebido para publicação em: 10/12/2007 Aprovado em: 28/12/2007 164 Depoimentos, Vitória, n. 12, p. 151-164, jul./dez. 2007.