AUTONOMIA DO PROCEDIMENTO SUMÁRIO E
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
KARINA SCHUCH BRUNET
I - INTRODUÇÃO
O processo é, inegavelmente, o instrumento pelo qual se podem ver
efetivadas as pretensões de direito material. Assim sendo, cabe à ciência do direito
processual determinar a ( s ) forma ( s ) como se dá essa efetivação. Aos juristas
processualistas, reserva-se, então, a tarefa de instrumentalizar o processo a fim de
que se tenha a real efetivação dos direitos.
Desde a concepção do Direito Processual como ciência jurídica
autônoma, houve a referida preocupação em conferir instrumentalidade ao processo.
Como não poderia deixar de ser, essa árdua atividade dos juristas esteve sempre
circunstanciada pelos aspectos histórico-ideológicos da época em que se operaram.
Acontece, porém, que, não obstante as profundas alterações sociais advindas da
globalização, ainda se mantém a mentalidade científica do contexto histórico que
circunscreveu
as
primeiras
codificações
processuais.
2
No momento em que se questiona o papel do Direito frente à economia
globalizada, em que se vê a decadência do Estado de Bem Estar, o processo
continua apegado às já inúteis formas do liberalismo capitalista do século XIX.
Conseqüência direta desse descompasso histórico-social é a inefetividade do
processo e o seu descrédito como instrumento de realização de direitos.
Nesses termos, a tão falada e desejada reforma do processo deve
exceder os limites de estrutura, pessoal e produção legislativa ( inclusive já
inflacionada ) se pretende ter alguma utilidade prática. O Direito Processual deve,
assim, ser repensado em seus contornos ideológico, sociológico e filosófico.
Como vestígio do ultrapassado Estado Liberal e da visão aritmética do
Direito, o Direito Processual ainda prima pela certeza do direito como valor supremo.
Essa exigência, no entanto, conduz o processo ao equívoco da universalização da
ordinariedade. Acreditava-se, e parece que ainda se acredita, que a forma ordinária
com cognição plenária, aliada à logicidade da atividade jurisdicional, garante a
certeza do direito. Não se compreende, entretanto, que esta é inatingível nas
ciências sociais, que são constituídas de mutáveis elementos ideológicos e
históricos.
A sumarização, nesse contexto, foi, e ainda é, relegada a segundo ou
inexistente plano, uma vez que não se permite ao juiz um juízo de verossimilhança,
por não ser capaz de garantir a tão aclamada certeza do direito. Acontece, porém,
que, mais do que nunca, a sumariedade é essencial para a efetividade do processo.
A sociedade evolui com intensa rapidez, de modo a não se poder aguardar a
morosidade da certeza, que, na verdade, sequer é alcançável.
Aliada a manutenção da postura ideológica da certeza, surge, na
contemporaneidade, a distorção doutrinária dos princípios constitucionais do
3
processo. São compreensíveis os anseios garantistas de uma Constituição pós
ditadura. O que não se pode, no entanto, é pecar pelo exagero de garantias que
podem acabar gerando outras violações.
Entende-se, equivocadamente, que o princípio do contraditório e da
ampla defesa, conforme exposto na Constituição Federal, artigo 5º, inciso LV, só é
garantido por meio de um devido processo legal que, em igual equívoco, se
compreende como o devido processo ordinário de cognição plenária. Não se
concebem formas sumárias com garantia do contraditório, o que, mais uma vez,
evidencia o apego à universalização da ordinariedade consolidada no liberalismo do
século XIX.
Vê-se, assim, que a atual questão da efetividade do processo deve
passar por uma reflexão de seus fundamentos histórico-ideológicos, a fim de se
compreender as necessidades contemporâneas de conciliação da autonomia do
processo e garantia do contraditório. Precisa-se compreender o limite entre a
ordinariedade excessiva e a possibilidade de sumarização dos procedimentos, para
que o processo cumpra seu papel de instrumento adequado para a realização
efetiva de direitos.
II – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Toda ciência é constituída de princípios fundamentais que servem de
base de sustentação para as proposições que se pretendem estudar. Assim, fala-se
nos princípios gerais do direito e nos princípios processuais. São idéias, postulados
e mesmo normas que norteiam toda a atividade jurídica, ainda que não expressas.
4
Servem de orientação para a dinâmica do ordenamento jurídico, procurando garantir
direitos fundamentais na medida que se fazem presentes em casos de lacunas,
ambigüidades e violações à pessoa humana em sua dignidade.
Os princípios processuais, em especial, procuram garantir o justo
desenvolvimento da atividade jurisdicional. São princípios formadores em que se
pretende a melhor adaptação do processo à realidade, através de instrumentos que
viabilizem o exercício da jurisdição com economia, celeridade, igualdade e justiça.
2.1 - I
REVE HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Considerado como inerente à própria administração da justiça organizada,
o princípio do contraditório verificou-se já no direito romano, bem como na Alemanha
medieval, alcançando-se a concepção atual após um longo período de evoluções1.
Naquele período, ao juiz não era permitido julgar se o demandado não
comparecesse em juízo2, dispondo-se para sua coerção da possibilidade de
imposição de força física ( direito romano ) ou de embargo de seus bens ( direito
germânico medieval ). Evidencia-se, assim, que o contraditório, em seu sentido de
bilateralidade, desde essa época era exigência fundamental para a legitimidade do
pronunciamento jurisdicional.
Acontece, no entanto, que a tutela jurisdicional não podia ficar à mercê da
vontade do demandado. Assim, introduziu-se a possibilidade do Pretor fazer uso da
1
MILLAR, Robert Wyness. Los principios formativos del procedimiento civil. Traducción de
Catalina Grossmann, Buenos Aires: Ediar, 1945, p. 47.
2
No direito romano clássico, a forma processual adotada era a litiscontetatio, ou quase contrato, em que
as partes juntamente dirigiam-se ao juízo ( iure ) para escolherem um juiz privado ( iudex ) para decidir a causa.
Assim, fica evidente a necessidade de comparecimento do demandado, uma vez que devia participar da escolha
do seu julgador. A sentença relacionava-se com a submissão voluntária das partes.
5
missio in bona como medida para forçar o seu comparecimento, bem como,
posteriormente, surgiu o processo contumacial:
“En consecuencia, antes de que el pretor introdujera un
recurso admitiendo el uso da missio in bona como medida para forzar
la comparecencia, el derecho romano carecía de autoridad para dictar
fallo contra un demandado que dejara de comparecer, ya
voluntariamente ya bajo coacción física del actor.
...
La idea de que el tribunal puede considerar la causa en
ausencia del demandado, si éste ha sido notificado com arreglo a los
términos de la ley, tiene su origen en el procedimiento contumacial
del derecho romano postclásico; pero tuvo que sostener una larga y
penosa lucha para sobreponerse a la persistencia de la concepción
3
primitiva” .
Vê-se, com isto, que o processo contumacial introduziu no direito
processual a possibilidade de se exercer a atividade jurisdicional sem a presença do
demandado, desde que devidamente notificado, ou como nos dias atuais, sendo
válida a citação. Surge, então, como evolução direta desse tipo processual, a figura
da revelia, entendida como pena de confesso. Inicialmente, só era possível aplicá-la
após terem sido esgotadas todas as possibilidades de coerção para o
comparecimento do demandado; sendo, depois, admitida em caso de mera falta de
sua presença4.
Entende-se que a necessidade de comparecimento do demandado estava
vinculada a uma idéia dialética do processo, com inspiração na retórica aristotélica5.
Tendo que aplicar a lei da forma mais justa possível, o juiz tinha que alcançar o grau
máximo de probabilidade de ocorrência do fato alegado, nos exatos termos da
alegação. Não se concebia, ainda, a noção de certeza ou verdade jurídica como
manifestação do poder soberano, mas sim verossimilhança. E esta só se constituía
3
MILLAR, op. cit., p. 47/48.
Idem, p. 52.
5
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. A garantia do contraditório, in Revista da Faculdade de
Direito da UFRGS, vol. 15, Porto Alegre: Síntese, 1998, p. 8.
4
6
para o julgador a partir do diálogo e cooperação das partes numa real atividade
argumentativa.
Entendendo-se que os exageros oriundos da argumentação podiam levar
a injustiças, uma vez que se realizava o direito do intelectualmente mais forte6,
houve um repúdio à retórica argumentativa para mascarar os novos ideais políticos
que surgiam na sociedade. Na verdade, buscou-se uma forma de se fazer
prevalecer o direito estatal, que, igualmente, representava os anseios do mais forte,
aqui, no entanto, a nível econômico. O advento da burguesia ao poder precisava ser
assegurado por meios legítimos como o Direito.
Assim, com a filosofia política do século XVII, o direito passou a ser visto
sob o ponto de vista da lógica aritmética, desprezando-se, assim, os juízos de
verossimilhança. Abandonou-se a argumentação aristotélica, entendendo-se que a
lei era unívoca. O juiz, assim, foi compreendido como um ser iluminado e racional,
capaz de identificar e dizer a única verdade da lei.
Nesses termos, o contraditório, ou bilateralidade do processo, não
cumpria mais a exigência de convencimento, argumentação. As partes deviam
exercer mera atividade instrutória no processo, disponibilizando meios para que o
juiz pudesse identificar a verdade da lei e proclamá-la como realização da justiça. O
contraditório apresentava-se como a oportunidade de uma parte contrapor seus
argumentos probatórios aos apresentados pela parte contrária. Nesse sentido, a
revelia tomou relevo, a partir da compreensão de que o juiz era capaz de dizer a
vontade da lei, independentemente da argumentação que poderia ser feita pelo
demandado revel.
6
A esse respeito, Calamandrei diz que: “Ao choque das espadas se tem substituído, com a civilização, a
polêmica dos argumento, mas existe ainda neste contraste, o ensinamento de um assalto. A razão se dará a quem
melhor saiba raciocinar: se ao final o juiz outorga o triunfo a quem melhor consiga persuadi-lo com sua
argumentação, se pode dizer que o processo, de brutal choque de ímpetos de guerreiros, tem passado a ser jogo
sutil de raciocínios engenhosos.” CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil. Tradução de Luiz Abezia e
Sandra Drina Fernandez Barbiery, vol. 3, Campinas: Bookseller, 1999, p. 225.
7
Os ideais da Revolução Francesa e a adoção da tripartição de poderes do
Estado, da doutrina de Montesquieu, vieram a consolidar a tendência racionalista já
surgida no século anterior. Separou-se o Direito da Moral, “confinando-se” o juiz ao
mundo jurídico7. A questão da justiça era tratada pelo Poder Legislativo. Ao
Judiciário cabia apenas dizer a vontade da lei com neutralidade. Nesse contexto, o
princípio do contraditório garantia às partes a possibilidade de demonstrarem suas
razões, sem, no entanto, interferir no convencimento do juiz neutro e aplicador da
verdade da lei.
Assim, com o advento do positivismo e liberalismo do século XIX, mais
que a verdade da lei, buscou-se a certeza e segurança jurídica. O direito processual
instaurou-se como disciplina autônoma e desenvolveu seus princípios nesse
contexto. A processualística, então, consolidou formas e técnicas que garantissem
tais requisitos, em detrimento das questões materiais de justiça, que continuavam
relegadas ao “espírito do legislador”. A teoria liberal primava, ainda, pela igualdade
dos homens livres. Essa máxima devia ser garantida também no processo para que
se pudessem ver garantidas a certeza e segurança, bem como a aceitação da
decisão promulgada pelo juiz neutro e imparcial.
Assim sendo, o direito processual dissociou-se do direito material,
desenvolvendo técnicas gerais e abstratas, com base em conceitos e lógicas
universais8, no intuito de garantir a certeza e a segurança do direito, bem como a
igualdade das partes, através de instrumentos que não beneficiassem a ninguém. O
contraditório inseriu-se nessas formas e passou a ser garantido com a finalidade de
que as partes igualmente pudessem esgotar todas as possibilidades de dúvidas
acerca do direito a ser aplicado ao caso concreto, através da bilateralidade dos atos
processuais.
7
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.155.
8
Idem, p. 162.
8
Esse anseio pela certeza e segurança jurídica acabou conduzindo o
processo à ordinariedade. O princípio do contraditório foi compreendido em termos
meramente de técnica finalística em que se buscava alcançar as máximas do
processo vigente na época, quais sejam, igualdade, certeza e segurança.
Universalizou-se, assim, a forma ordinária em suprimento de outras técnicas.
A crise do liberalismo, no entanto, deu origem ao Estado Contemporâneo
com ideologias sócio-democratas. Assim, o welfare state do século XX, com sua
preocupação intervencionista, estava comprometido com a efetividade de suas
políticas sociais. O processo, nesse contexto, teve de ser repensado a fim de que
fosse justo e efetivo. O contraditório, assim, passou a ter uma tendência mais
substancial, mas não obteve muito resultado prático, pois as formas e ritos ainda
estavam muito arraigados na ideologia da ordinarização que se fez presente no
século anterior.
2.2 – CO
GARANTIA CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Até o advento da Constituição Federal de 1988, o princípio do
contraditório era garantia processual expressamente atribuída unicamente ao
processo penal. A partir dessa Carta Magna, estendeu-se a aplicabilidade do
referido princípio igualmente ao processo civil e administrativo. A concepção do
Estado como democrático e de direito trouxe para o processo essas veias
democráticas através da generalização do contraditório, na medida em que permite
ao indivíduo a participação na preparação da decisão ( ato de poder ) a qual deve se
submeter9.
9
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 161.
9
A partir dessa idéia democrática do contraditório, ele deixou de ser um
princípio apenas técnico de bilateralidade com vistas a percepção da certeza e
segurança do direito. O contraditório passou a ser efetivo, não se limitando à ciência
dos atos processuais. Essa preocupação, na verdade, é uma tendência moderna
que já figurava no processo civil brasileiro mesmo antes da Constituição Federal de
1988. O Código de Processo Civil, através de institutos próprios, como, por exemplo,
a distinção entre a configuração da revelia e a produção de seus efeitos, já
manifestava essa idéia de efetividade do contraditório.
Dentro da principiologia da Constituição Federal de 1988, o princípio do
contraditório decorre direta e logicamente da exigência de igualdade. Sendo todos
iguais perante a lei, o são também perante as normas que regulam ao atos
processuais, devendo-se dar às partes iguais condições de se manifestarem no
processo, proporcionando, inclusive, não apenas a oportunidade, mas a efetiva
participação.
O princípio do contraditório, ainda, insere-se na garantia constitucional do
devido processo legal, sem o qual ninguém pode ser privado de sua liberdade ou
seus bens. Procura-se, assim, garantir o acesso de todos ao Poder Judiciário
através de um processo justo e efetivo previamente estabelecido.
Acontece, porém, que, equivocadamente, grande parte da doutrina tem
entendido que o respeito ao contraditório só é garantido através de um processo
com formas ordinárias. Entende-se que isso decorre de uma errônea compreensão
do próprio princípio do devido processo legal, oriunda da ideologia liberal e
positivista que universalizou a ordinariedade. O devido processo legal não é
necessariamente o processo ordinário de conhecimento que se consagrou no século
XIX como procedimento apto a garantir a certeza e a segurança jurídica que as
relações sociais da época impunham. Ao contrário, é um princípio dinâmico que
deve se adequar às exigências de efetividade e justiça de cada momento histórico.
1
0
Assim sendo, para a garantia do contraditório não se fazem necessárias
unicamente formas plenárias de cognição, efetivadas através do rito ordinário. Podese garanti-lo efetivamente em procedimentos especiais e sumários, em que se
verifique a adequação de um devido processo legal ao direito material em questão,
ou à situação específica que se queria resguardar, priorizando-se interesses sociais
emergentes.
Nesse sentido, pode-se falar em restrições à amplitude do contraditório,
sem, no entanto, ofendê-lo. Na verdade, tais restrições se fazem no interesse da
própria justiça, como bem refere MILLAR: “..., el principio de la audiencia bilateral
queda sujeto en todas partes a ciertas restriciones, consideradas por el poder
legislativo como favorables a la justicia.”10. Assim, no intuito de se obter a efetividade
do direito, sua satisfação e realização, e, conseqüentemente, a justiça da decisão, é
possível que haja um derrogação do princípio do contraditório inicial11, ou restrição
quanto às questões examinadas
Esse aspecto de postergação, ou restrição do contraditório já se verificava
no direito intermédio. A lei sálica previa a hipótese de penhora dos bens do devedor,
sem prova do crédito, garantindo-se àquele a oportunidade de, em ação
independente, levar o contraditório ao tribunal do rei. Semelhante situação ocorria no
direito longobardo, em que no curso da ação executiva, ou posteriormente,
instaurava-se um processo regular de contraditório12.
Vê-se, assim, que os limites à extensão do contraditório são inerentes à
própria atividade jurisdicional. A negação de restrições, ou postergação do
contraditório é, evidentemente, uma postura conservadora e contrária à própria
10
MILLAR, op. cit., p. 52.
Calamandrei, em item destinado a tratar dos expedientes para acelerar o curso do processo, refere-se a
derrogação do princípio do contraditório inicial, que é invertido ou aprazado, conforme a finalidade a que se
propõe a aceleração. CALAMANDREI, op. cit., vol. 3, p. 239.
12
LIEBMAN, Enrico Tullio. Embargos do executado ( oposições de mérito no processo de execução
). Tradução de J. Guimarães Menegale, 2º ed., São Paulo: Saraiva, 1968, p. 34/37.
11
1
1
justiça. Nesse sentido, então, é que se tem verificado, nas codificações processuais
mais modernas, a presença de ritos sumários, em que o contraditório é diferido ou
eventual.
O contraditório diferido é aquele em que o seu exercício é relegado para
outro momento processual. A tutela desejada é concedida ao autor, parcial ou
totalmente, mas não de forma definitiva, até que se verifique uma análise plenária de
suas razões em momento posterior do processo, ou em outro processo que lhe
cabe o compromisso de ajuizar. No contraditório eventual13, por sua vez, verifica-se
uma inversão. Ao autor é deferida a tutela, mas a análise plenária de suas razões
não lhe compete, cabendo ao réu prejudicado que venha a juízo reclamar os seus
direitos que entende violados pela tutela conferida ao autor do processo anterior.
Nesse sentido, muito bem esclarece o professor Ovídio Araújo BAPTISTA DA
SILVA:
“Ás vezes o demandante que obtém a realização imediata do
direito, através de uma liminar, como acontece nas ações
possessórias, nas cautelares, nas ações de alimentos ou no
mandado de segurança, tem o ônus de prosseguir na demanda,
como autor, ou de promover uma demanda subseqüente destinada a
permitir a investigação exauriente das razões de direito de que a
parte que sofrera a medida liminar, não pudera, naquele primeiro
momento, valer-se. Outra vezes, a vitória obtida na ação sumária
desobriga o vitorioso de intentar a demanda plenária posterior,
transferindo-se ao réu, contra quem fora editado o provimento, o ônus
de iniciar a demanda plenária inversa. Neste caso, diz-se que o
processo sumário contém contraditório eventual, de tal modo que
se o réu não inverte seu papel e retorna a juízo como autor da ação
14
contrária, o resultado obtido na ação sumária torna-se definitivo.”
Acontece, porém, que a aceitação do procedimento sumário, com
postergação do contraditório inicial ( reservadas as questões para outro momento )
ou material ( limite substancial das questões sobre as quais recaem a discussão )
não tem sido muito bem compreendida pela doutrina. Esta entende possível tal
13
Verifica-se a existência do contraditório eventual, concebido nos termos em que cabe ao devedor
chamar o credor a juízo se pretende ver apreciadas as suas possíveis alegações, já no direito intermédio francês.
Idem, p. 77.
14
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Curso de processo civil., vol. 2, 2ª ed., Porto Alegre: Safe,
1993, p. 179.
1
2
situação por considerar que as decisões advindas dos processos com cognição
sumária são provisórias15, o que acaba causando a inefetividade do direito, pela
impossibilidade de realização do mundo dos fatos. Assim sendo, entende-se que é
preciso se verificar as reais necessidades de sumarização do processo, com
garantia efetiva do contraditório e da autonomia do procedimento.
III – SUMARIZAÇÃO
A sumarização dos procedimentos processuais apresenta-se, no contexto
histórico-social em que vivemos, como a necessidade de se encontrar um equilíbrio
entre exigências fundamentais – efetividade e contraditório – que visam a garantir a
cidadania e a democracia. A Constituição Federal de 1988 primando por esses dois
valores fundamentais, dispôs sobre um processo democrático e justo, em que se
pode conciliar a efetivação de direitos sociais através da participação ativa das
partes.
Acontece, porém, que em determinadas situações, tais princípios
constitucionais acabam entrando em conflito. A universalização da forma ordinária
gera uma incontestável morosidade da prestação jurisdicional que leva, na maioria
das vezes, a sua inefetividade. Na sociedade constantemente evolutiva de nosso
século, as relações sociais são muito efêmeras e a demora da atividade judicial
pode causar a completa inutilidade de seu resultado. Com isto, ao regular conflitos e
sua forma de composição, cabe ao legislador fazer uma opção entre a morosidade e
15
Nesse sentido, pode-se referir a professora Ada Pellegrini Grinover que entende que as restrições ao
contraditório realizadas face a efetividade da atividade judicial não são ofensivas porque ocorrem em decisões
provisórias. GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o código de processo civil. São
Paulo: Bushatsky, 1975, p. 95/96.
1
3
a certeza jurídica, com exagero da garantia democrática do contraditório; e a
efetividade e redução probatória, com vistas ao exercício da cidadania.
Vê-se, assim, que se deve buscar um meio de conciliar esses dois
princípios constitucionais. Entende-se que a ordinariedade não é o único meio de se
garantir o contraditório. É possível respeitá-lo também através de procedimentos
sumários. A sumarização, sem violação ao contraditório, configura a melhor forma
de se garantir a efetividade da prestação jurisdicional, com real configuração da
justiça material
3.1 – SÉCNICAS DE SUMARIZAÇÃO
A
sumariedade
das
formas
processuais,
com
postergação
do
contraditório, não é uma alternativa processual do direito moderno. No direito
romano, através da sistemática do interdictum, o Pretor exercia atividade executiva e
mandamental, antes da cognição acerca da prova do direito, que ficava reservada
para outra ação. Na verdade, somente a actio ( em que se operava o conhecimento
da causa ) era considerada atividade jurisdicional, entendendo-se os interditos,
como providências meramente administrativas, justamente pela ausência de
atividade cognitiva plena:
“O que transparece com suficiente clareza da lição de
Luzzatto é o fato de recusar a doutrina a natureza jurisdicional aos
interditos, fundamentalmente, por serem eles decretados pelo
magistrado com base num “sommario esame delle circostanze” ( p.
243 ), capaz de permitir apenas um “accertamento istruttorio”, sujeito
a ser revisto no subseqüente judicium secutorium, sempre a que
16
contraparte impugnasse sua legitimidade.”
16
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.35.
1
4
Com o mercantilismo do direito intermédio, fez necessário que se livrasse
o processo dos formalismos exagerados, através de uma forma simplificada de
busca da verdade, como bem refere FAIREN GUILLÉN: “...; las crecientes
necesidades de rapidez impuestas por la entidad del tráfico mercantil que se
desarrollaba en torno al Mediterráneo, impusieron también en, materia civil, la
sumarización del proceso.”17.
Ainda quanto ao direito intermédio, especificamente italiano, Enrico Tullio
LIEBMAN, ao tratar dos embargos do executado, faz referência à sumariedade da
cognição. Explica que no juízo executivo se podiam conhecer apenas exceções
passíveis de prova fácil, de modo que a atividade cognitiva a seu respeito era
limitada, sendo parcial e superficial. Mas a limitação da cognição só era concebível
se a sua eficácia não fosse definitiva18.
Acontece, porém, que a evolução social, assim como exigiu a
sumarização no Alto Medievo, consolidou a universalização da ordinariedade no
liberalismo do século XIX. Nessa época, as raízes da forma ordinária fixaram-se com
tanta profundidade que sobreviveram, inclusive, no intervencionismo estatal do
século XX, que, na verdade, manteve a política capitalista do século anterior, porém
de forma sutil.
A ideologia do século XIX, que perdurou até hoje, não apenas consolidou
a universalização da ordinariedade, como também impôs ao juiz a passividade
oriunda da neutralidade. Ao magistrado cabia a única atividade de dizer a lei - que
se supunha unívoca - com certeza e segurança. Assim, não se podia conceder
qualquer tipo de tutela que satisfizesse o direito da parte sem um exaustivo
contraditório acerca das questões da causa. O juiz neutro devia apenas compilar
17
FAIREN GUILLÉN, Victor. El juicio ordinario y los plenarios rápidos ( los defectos en la
recepción del derecho procesal común; sus causas e consecuensias en doctrina e legislación actuales).
Barcelona: Bosch, 1953, p. 42.
1
5
provas e aplicar o direito, que, por sua vez, identificava-se com a lei sem qualquer
perquirição a respeito da justiça. O juízo de verossimilhança e a concessão de
medidas mandamentais ou executivas que realizassem o direito reclamado, ainda
que provisoriamente, era totalmente contrário à neutralidade imposta ao magistrado.
Com isso, verificou-se, então, a exclusão da sumariedade.
A neutralidade era uma imposição da igualdade exigida pelo liberalismo
da época. O juiz não podia interpretar a lei. Ele devia aplicá-la na estrita medida em
que as partes, em igualdade de condições, traziam a causa para o processo.
Qualquer atitude intervencionista do magistrado era considerada como ofensiva ao
princípio da equidade processual. Acontece, porém, que o tratamento igualitário das
partes na relação processual era apenas formal19, mantendo-se, assim, as
desigualdades materiais.
Essa preocupação com a neutralidade não se limitou ao magistrado,
estendendo-se ao próprio processo em sua concepção institucional. Assim sendo, o
processo desvinculou-se de qualquer relação que tivesse com o direito material20.
Não se podiam conceber formas diferenciadas de tutela, sob pena de se ferir a
neutralidade processual e, também, a liberdade e igualdade das partes. Com isto,
criou-se um circulo vicioso entre igualdade, ordinariedade e neutralidade. Para a
garantia do tratamento igualitário das partes, o juiz e o processo deveriam ser
neutros, o que era alcançado através de um único instrumento de tutela processual,
qual seja, o procedimento ordinário. Este, porém, gerou uma intensa desigualdade
18
LIEBMAN, Enrico Tullio. Embargos do executado ( oposições de mérito no processo de execução
), op. cit., p. 66/67.
19
Nesse sentido, “A “imparcialidade” que o procedimento ordinário impõe ao magistrado, impedindolhe de conceder medidas liminares ou, por qualquer outra forma, de dar regulação provisória ao estado de fato
da lide, é uma conseqüência natural dos princípios que presidiram à formação da “ciência” jurídica européia do
século XIX, especialmente da idéia de que ao Poder Judiciário cabia apenas a missão de cumprir a lei, sem
mesmo poder interpretá-la, lei essa perante a qual “todos os homens eram iguais”, independentemente das
injustiças concretas e de toda a sorte de discriminações sociais que a ordem jurídica estivesse a produzir em
homenagem a tais princípios.” BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Curso de processo civil. 2ª ed., vol. 1
Porto Alegre: Safe, 1991, p. 104.
20
A esse respeito ver MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 2ª ed., São Paulo:
Malheiros, 1996, p. 30/31.
1
6
substancial, justamente por não ser adequado às exigências do direito a ser
tutelado, o que levou o juiz deste século a “camuflar” espécies de proteção
jurisdicional não previstas, sob diversos nomes e formas, a fim de conferir garantia
efetiva aos direitos, não obstante a patente não neutralidade de sua postura, como
no caso das cautelares inominadas ou satisfativas.
O que aconteceu, então, foi uma completa inversão de valores que
merece ser referida. A fim de se alcançar a efetividade da prestação jurisdicional, os
operadores do direito passaram a aplicar a lei de formas por vezes “distorcidas” em
detrimento do valor supremo de certeza e segurança até o momento prevalecente.
Essa conduta, no entanto, levou a outro extremo, ou seja, ao risco da arbitrariedade
do magistrado ao conferir tutelas diferenciadas às causas, em relação ao disposto
na lei. Ou, por vezes, em casos de leis especiais, conduzir o processo com o vício
da ordinariedade.
Fica evidente que a classe jurídica, inserida no senso comum teórico, não
tem condições de trabalhar independentemente em situações de especialidade,
urgência e cautelaridade do direito a ser resguardado ou reparado. Não se pode
deixar ao arbítrio dos operadores do direito a tarefa de prescrever tutela diferenciada
a cada caso concreto. Essa atividade deve ficar a cargo do processualista e do
legislador que, em conjunto, devem adequar os procedimentos às necessidades
sociais.
Nesse sentido, Enrico REDENTI fala de um princípio de adaptabilidade (
ou ainda, elasticidade ) do procedimento às exigências da causa, chegando a admitir
uma certa dose de arbitrariedade na medida em que as partes e o juiz podem
determinar o procedimento de acordo com os fins substanciais de justiça, dentro dos
contornos legais:
“ No se cae así en los peligros que se seguirían de dejar al
juez arbitro absoluto del procedimiento, puesto que el procedimiento
1
7
está fijado de antemano por la ley; pero ésta, en vez de construirlo
todo él de una pieza, lo ha construído como un mecanismo
compuesto de piezas desmontables y diversamente combinables
entre sí, que corresponde a la sensibilidad de las partes y a la
prudencia del juez de montar en cada caso de la manera más en
21
consonancia com los fines substanciales de la justicia.” .
Entende-se, no entanto, que a determinação do procedimento deve ser
fixada em lei, a fim de se garantir uma efetiva igualdade das partes perante o órgão
jurisdicional. Só a lei pode legitimamente reconhecer distinções e privilégios em
nome da justiça. A sensibilidade das partes e a prudência do juiz não são formas
legítimas de “escolha” procedimental, face a nítida disparidade de interesses
envolvidos e a hipossuficiência do magistrado para fixar a técnica mais justa.
Verifica-se, assim, que a técnica processual é fundamental para a
garantia da efetividade da prestação jurisdicional, bem como a realização da justiça
concreta. Deve haver um pluralismo processual a fim de se verem tutelados os
diversos direitos carentes de proteção22. Não se confunde, aqui, ação de direito
material e de direito processual. Mas sendo esta o instrumento de realização
daquela, não se compreende como um único processo ordinário de cognição
plenária possa ser capaz de realmente assegurar tais direitos.
Nesse sentido, fala-se em técnicas de sumarização, a fim de que se
possa adequar o procedimento às exigências impostas pela necessidade de
satisfação efetiva dos direitos. Essas técnicas são formas de se sumarizar o
processo em atenção à realização do direito material – urgência e/ou cautela - ou
com vistas a uma maior justiça social, pela priorização de interesses, como ocorre
no caso da ação de desapropriação por interesse social, conforme o disposto na
Constituição Federal de 1988, art. 184, § 3º.
21
REDENTI, Enrico. Derecho Procesal Civil. Traducción de Santiago Sentís Melendo y Marino Ayerra
Redín, tomo III, Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1957, p. 194/195.
22
MARINONI, Luiz Guilherme. A técnica da cognição e a construção de procedimentos adequados à
tutela de direitos, in Revista Forense, n. 325, p. 51.
1
8
Giuseppe
CHIOVENDA
refere-se
a
três
específicos
casos
de
sumarização, ao tratar da questão das declarações com predominante função
executiva: condenação com execução provisória, condenação com reserva e
procedimento monitório. Entende que em tais situações o conhecimento é
incompleto por não ser definitivo, no primeiro caso; por ser parcial, no segundo; e
por ser superficial, no terceiro23.
No direito brasileiro moderno, entende-se, no entanto, que há quatro tipos
de técnicas de sumarização24. Numa primeira técnica, fala-se em cognição
horizontalmente sumária, ou seja, a atividade cognitiva é apenas superficial, porém
irrestrita quanto às questões que podem ser analisadas. É possível o exame de
qualquer matéria a respeito da lide, mas não pode haver profundidade do
conhecimento. Exemplos desse tipo de sumarização são as decisões liminares e
medidas cautelares, em que só é admissível o juízo de verossimilhança, com
evidente redução de contraditório, especialmente na concessão de liminares inaudita
altera pars.
Na segunda técnica de sumarização, trata-se da hipótese de cognição
verticalmente sumária. Aqui a atividade cognitiva é exauriente, mas limitada a
determinadas questões da causa. Há profundidade no exame da matéria levada à
juízo, porém o conhecimento não pode exceder as fronteiras em que a lide foi posta.
Excluem-se previamente certas questões que, embora controvertidas, não podem
ser objeto de apreciação jurisdicional. A lide processual é íntegra, pois o corte na
suas questões é feito pela própria natureza do direito material e antecede o
processo. Exemplo típico dessa técnica são as ações cambiárias, em que não se
pode alegar as exceções causais e pessoais, verificando-se, assim, a redução do
contraditório.
23
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituiciones de derecho procesal civil. Traducción por E. Gómez
Orbaneja,
2ª ed., vol. 1, Madrid: Revista de Derecho Privado, 1948, p. 242/243.
24
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Procedimentos especiais.2ª ed., São Paulo: Aide, 1993, p. 46.
1
9
A terceira técnica de sumarização refere-se aos processos documentais
em que se reduz a atividade probatória a determinado tipo de prova. A cognição fica,
assim, restrita ao convencimento que a especificidade de certa instrução pode
oferecer. Reduz-se aqui também o contraditório, uma vez que as partes ficam
adstritas a uma determinada espécie de prova para fazer valer suas alegações.
Exemplo desse tipo de sumarização é o mandado de segurança, embora parte da
doutrina o considere como uma ação ordinária25.
E, por fim, pode-se falar em sumarização por exceções reservadas. No
processo sumário com “reserva de exceções”, as alegações das partes ficam
limitadas a determinadas questões, reservando-se as demais para eventual “ação
direta”, o que deixa claro a postergação de parte do contraditório. Nos limites do que
pode ser discutido, a cognição é exauriente. Difere-se esta técnica de sumarização
da exposta como segundo tipo, no sentido de que lá não há uma reserva para outra
causa já previamente determinada. Exemplo típico deste tipo de sumarização é a
ação de desapropriação por utilidade pública prevista no Decreto-lei nº 3.365/41. O
art. 20 do referido texto legal expressamente limita a matéria de contestação,
remetendo qualquer outra questão para ser decidida por ação direta. Não obstante
esta disposição, a própria lei determina que feita a citação, a ação segue rito
ordinário.
Comete aqui o legislador uma imprecisão técnica, uma vez que a
cognição é evidentemente sumária, pela limitação da matéria que pode ser objeto de
discussão, sendo incabido o prosseguimento do processo pelo rito ordinário.
O que ocorre na situação acima exposta é uma manifesta confusão entre
ordinariedade e plenariedade ou sumariedade. Pode-se dizer que a ordinariedade é
uma questão procedimental; já a plenariedade ou sumariedade é uma questão de
cognição. Uma coisa é o rito, o instrumento que será usado para que se chegue ao
conhecimento da causa. Outra coisa é o método utilizado para o desenvolvimento da
25
Assim é o equivocado entendimento de Alfredo Buzaid que afirma ser o mandado de segurança uma
ação ordinária de conhecimento. BUZAID, Alfredo. Do mandado de segurança. vol. 1, São Paulo: Saraiva,
1989, p. 75.
2
0
própria atividade intelectiva. O procedimento ordinário é o instrumental mais
“completo” que o direito processual pôde conceber. É o meio em que se melhor
pode adaptar as exigências da plenariedade. Quanto à cognição sumária, entendese que a ordinariedade é ou pode ser exagerada, pois dispõe de formas extensas
demais para uma atividade intelectiva que é breve, ou por ser superficial, ou por ser
restrita a determinadas questões.
E aí reside um dos maiores problemas da sumarização no direito
processual brasileiro. A doutrina processualista dificilmente consegue fazer a
referida distinção, o que confirma, ainda nos diais atuais, a universalização da
ordinariedade consolidada no século XIX, com exclusão das formas diferenciadas e
especiais de tutela sumária. Vê-se o exemplo da ação de depósito, prevista do
Código de Processo Civil, dentre os procedimentos especiais – art. 901 a 906. Esta
é uma ação apenas formalmente sumária, uma vez que a cognição é materialmente
plenária, permitindo-se ao réu alegar a nulidade ou falsidade do título, a extinção das
obrigações e todas as matérias que a lei civil prever. O que acaba acontecendo,
aqui, é uma falsa sumariedade, mesmo formal, pois a especialidade do rito não
comporta a plenariedade da cognição.
Assim sendo, vê-se a importância de distinguir entre o instrumento e o
método de cognição para que se possa adaptar com efetividade o processo ao
direito material a ser tutelado. Não basta que a lei disponha aleatoriamente de
procedimentos especiais com cognição sumária, independentemente da verificação
fática de suas disposições. É preciso que tais procedimentos sejam adequados à
satisfação do direito. E para isso as técnicas de sumarização, ainda que com
redução do contraditório, são úteis. São capazes de efetivamente realizar o direito
ao possibilitar formas especiais de tutela conforme a necessidade do direito, ou seja,
restringindo as questões da lide, superficializando o exame da causa, limitando os
instrumentos probatórios ou reservando exceções.
2
1
3.2 - T UTONOMIA
A universalização da ordinariedade, se não excluiu totalmente os
procedimentos sumários, relegou-os a um segundo plano, de menor relevância.
Essa “importância diminuta” da sumariedade pode ser verificada no caráter
provisório que a doutrina insiste em lhe conferir ou na especialidade confusa de
determinadas ações, conforme já abordado.
É de relevante valor para a efetiva adaptação da técnica processual à
necessidade de realização do direito material, a compreensão dessa questão da
provisoriedade26 ou autonomia das decisões em procedimentos sumários. A
sumariedade relaciona-se a juízos de verossimilhança e a limitações ao
contraditório. É evidente que em uma ação onde há restrição das questões da lide, o
contraditório não é pleno., pois a discussão da causa pode versar somente a
respeito da matéria expressamente prevista. Limites ao contraditório verificam-se,
também, nos casos em que o magistrado deve fazer uma análise superficial da
causa, num verdadeiro juízo de verossimilhança.
As limitações impostas ao contraditório nos procedimentos sumários –
postergação, ou restrição da matéria – são exigências da própria efetividade que se
quer alcançar através desta técnica processual. Em nada ofendem a garantia
constitucional da ampla defesa e do contraditório, uma vez que se compreenda a
exata noção do devido processo legal. Este princípio deve ser entendido como a
adequação do procedimento à situação jurídica de direito material que se pretende
tutelar. Assim sendo, deve haver uma observância do contraditório específico ao
26
CALAMANDREI, op. cit., vol. 3, p. 293: “Aqui, nestes procedimentos sumários, basta o juízo de
verossimilitude para dar lugar, sem mais, à providência ( possessória ou cautelar ) favorável: a qual se admite
porque é uma providência destinada a ter vida provisória, até que em outro processo, no qual procederá o juiz
normalmente a uma indagação a fundo da verdade, se possa chegar à providência definitiva, destinada a ocupar o
lugar da provisória”.
2
2
caso, previamente determinado em um devido processo legal substancial que
adequa o procedimento à satisfação efetiva do direito.
Sabe-se que a busca da verdade da lei, supostamente unívoca, é uma
ilusão. A lei possui tantas verdades quantas forem as situações a ela submetida,
quantos forem os julgadores a aplicá-la, quantos forem os destinatários a obedecêla. Enfim, a verdade da lei é contingente. Assim sendo, não há uma única “verdade
da lei”, mas existem diferentes manifestações dela para diferentes versões trazidas
ao processo. E como versões, não são verdades – que esta só pode ser uma – mas
sim verossimilhança.
As “verdades jurídicas” são compostas de fatos circunstanciados,
situações definidas pela percepção sensorial e intelectiva do homem. A esse
respeito, CALAMANDREI diz que:
“ Mesmo para o juiz mais escrupuloso e atento, vale o limite
fatal de relatividade próprio da natureza humana: o que enxergamos,
só é o que nos parece que enxergamos. Não verdade, senão
verossimilitude: é dizer, aparência ( que também pode ser ilusão ) de
27
verdade ”.
Assim sendo, toda a atividade jurisdicional, e mesmo humana, é baseada
em juízos de verossimilhança. Esta faz parte da própria razão jurídica, embora o
racionalismo e liberalismo tenham consolidado a supremacia da “verdade” e,
consequentemente, a busca da certeza através da ordinariedade, mito que deve ser
derrubado. O direito processual regula a evidência e a aparência da mesma forma,
qual seja, o procedimento ordinário, por entender que existe uma veracidade plena a
ser atingida. Acontece, porém, que a verdade é ilusória e a certeza existe em
diversos graus. Os procedimentos, então, devem ser definidos em consonância com
essa realidade.
27
CALAMANDREI, op. cit., vol. 3, p. 271.
2
3
Com isto, tem-se que a postergação ou restrição do contraditório, seja
pela exclusão de determinadas questões, seja pelo juízo de verossimilhança, não
podem ser argumentos suficientes para atingir a autonomia do procedimento
sumário, em seu sentido de definitividade. O provimento jurisdicional deve ser
definitivo e produzir, desde logo, seus efeitos no mundo fático e jurídico. Não se
pode lhe conferir provisoriedade apenas por não atingir grau máximo de certeza ou
de discussão da causa. Quando a relação jurídica de direito material, ou mesmo a
política social judiciária, impõem a necessidade da cognição sumária, a própria
provisoriedade transforma-se em elemento de incerteza e insegurança jurídicas, na
medida em que a realização do direito fica sujeita à modificação ou confirmação
posterior.
A autonomia, assim, refere-se à terminalidade, à suficiência do
procedimento. Entende-se que o procedimento é autônomo na medida em que não é
preciso nenhum outro ato processual para a preservação do resultado obtido, não
obstante o réu tenha a possibilidade de, em outro processo, discutir as questões
excluídas do provimento obtido em juízo sumário. O sistema não impõe qualquer
outro tipo de atividade jurisdicional, realizando-se o direito apenas com o comando
da decisão sumária, ressalvado, é claro, o segundo grau de jurisdição.
Nesse sentido, o professor Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA, ao tratar
das ações cautelares, fixa posição fundamental a respeito da autonomia, aplicável
inclusive aos casos que excedem a cautelaridade:
“Autonomia não significa impedimento ou supressão de uma
eventual ação satisfativa posterior que controverta a respeito da
existência, validade ou eficácia do direito acautelado.
...
Quando defendemos a possibilidade - por enquanto eventual
e rara em nosso direito – de uma ação cautelar autônoma, apenas
queremos significar que seu autor fica dispensado de promover a
ação satisfativa que serviria de “processo principal”, transferindo este
ônus para o adversário que sofrera a medida cautelar, técnica esta,
aliás, não só conhecida secularmente como instrumento de
2
4
sumarização processual, como preconizada mesmo por aqueles que,
em certos momentos, aderem a doutrina da acessoriedade e
28
dependência do processo cautelar.”
Vê-se, assim, que a autonomia relaciona-se, como já referido, a
definitividade e suficiência do provimento, ainda que sumário. A sumarização tanto
horizontal quanto vertical, não deixa de assegurar os princípios processuais do
sistema em sua conjugação e equilíbrio de prevalência. O contraditório pode ser
postergado ou restrito e a verossimilhança é uma realidade.
Independentemente do tipo de técnica de sumarização utilizada, o
contraditório é sempre respeitado dentro dos limites do processo no qual se insere a
discussão da causa. O que pode ocorrer, no entanto, é que ainda se tenham
questões a serem discutidas, além das já julgadas e decididas. Mas não tendo estas
feito parte da lide sumária, não há que se falar em ofensa ao contraditório, pois o
processo com lide total ( independente de qualquer corte material, a lide processual
é sempre total ) e decisum ilimitado é, ou pelo menos deve ser, autônomo na medida
que é suficiente para garantir seu próprio resultado.
A problemática das questões não examinadas é “jogada” para o sistema
jurídico que, em sua complexidade dinâmica, deve resolvê-la sob alguma forma de
tutela em que se permita a discussão das matérias excluídas. O fato de não terem
sido apreciadas num determinado tipo de processo ou procedimento não afeta a
autonomia deste, nem mesmo o respeito ao contraditório. A sua observância deve
ser sistêmica, no sentido de que o ordenamento jurídico como um todo deve dispor,
em determinado momento, de instrumento de proteção que recepcione as questões
que não puderam ser alegadas em outro processo anterior ou mesmo
contemporâneo. A autonomia, assim, é garantida pela inversão do contraditório,
onde o réu do procedimento sumário vai ser autor de outro processo em que busque
reparar qualquer dano que tenha sofrido em virtude da decisão sumária.
28
175.
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Curso de processo civil, vol. 3, Porto Alegre: Safe, 1993, p.
2
5
IV - CONCLUSÃO
Na sociedade globalizada em que vivemos, onde os avanços tecnológicos
encurtam espaços geográficos, estreitando ou alargando fronteiras, onde o tempo
não é mais cronológico, mas sim real; o Direito deve acompanhar as evoluções
sociais, sob pena de ser negado como sistema legítimo para a harmonização de
conflitos. O ordenamento jurídico deve adaptar-se às transformações sociais para
garantir sua eficiência regulamentadora.
No direito processual civil, entende-se que a universalização da
ordinariedade é elemento que tem dificultado essa adaptação do Direito à realidade
dos fatos sociais. A sociedade evolui de forma descontrolada, proliferando-se
conflitos das mais diferentes espécies. Assim sendo, a adoção de um processo
único – ordinário – para a efetiva instrumentalização da prestação jurisdicional,
torna-se inviável.
Para ser eficiente e legítimo, o Direito deve garantir a efetiva satisfação
dos interesses juridicamente postulados. E, para isso, é preciso que haja uma
conformidade entre o que se quer e a forma de que se dispõe para alcançar, ou
seja, entre o direito e o procedimento. Não se pode adotar, indiscriminadamente, a
ordinariedade, com seus vícios de plenariedade, para a realização de todo e
qualquer direito que venha a juízo. Com isso, faz-se necessário o implemento de
tutelas diferenciadas capazes de atender a especialidade, a cautelaridade ou a
urgência que os direitos possam impor. Só a diferença poderá garantir a efetividade
e a instrumentalidade do processo.
Os procedimentos diferenciados, assim, devem ser desenvolvidos em
estreita relação com o direito material que se pretende tutelar, bem como em
2
6
conformidade com os princípios e garantias constitucionais. Deve-se atentar para a
melhor forma de realizar o direito sem, no entanto, descuidar-se no disposto na
Constituição Federal.
Nesse sentido, tem-se que é preciso que haja uma especial atenção ao
princípio do devido processo legal, entendido em seu sentido de efetividade:
processo adequado à realização do direito. Não pode haver um apego ao devido
processo legal de forma ordinária e cognição plenária. Devido, aqui, deve ser
entendido como justo, legítimo.
Inserido no devido processo legal, o princípio do contraditório deve,
igualmente, ser observado nos limites da justiça e efetividade da satisfação do
direito. Não se pode conceber que tal princípio seja apenas respeitado nos
processos ordinários com cognição plenária. Restrições ao contraditório, sob a
forma diferida ou eventual, são imprescindíveis para a implementação de tutelas
diferenciadas.
Entende-se que a sumariedade, como rito e atividade cognitiva, dever ser
revalorizada pelo processo civil como forma alternativa de diferenciação de tutela. O
procedimento sumário, face a universalização da ordinariedade, foi, durante muito
tempo, relegado a segundo plano. Acontece, no entanto, que o rito ordinário já não
tem mais condições ( se é que algum dia teve ) de atender com efetividade e justiça
às exigências da sociedade moderna.
Na condição secundária a que foi relegado, o procedimento sumário era (
e ainda tem sido ) aceito apenas como tutela provisória. A doutrina, em grande
parte, acredita que a sumariedade é incompatível com a definitividade da decisão,
pois esta é proferida em juízos de mera verossimilhança, com restrições patentes ao
contraditório.
2
7
Não se concorda, todavia, com a posição doutrinária acima exposta.
Acredita-se, ao contrário, que a sumariedade não só pode como deve levar a
decisões definitivas. A verossimilhança é uma realidade. Não existe a certeza e a
verdade no processo, existem apenas versões. Quanto ao contraditório, existem
técnicas de restrição - eventual e diferido - que garantem a sua plenitude.
Com isso, entende-se que a efetividade do processo, enquanto
instrumento de satisfação de direitos, só é possível através da adoção de tutelas
diferenciadas, adaptando-se o procedimento ao direito material de forma autônoma.
A autonomia, assim, é compreendida no sentido de suficiência e terminalidade do
processo para a garantia de realização do direito no mundo fático.
Assim sendo, processos sumários autônomos são fundamentais para a
efetividade e a justa realização do direito material, uma vez que permitem uma
composição rápida do litígio e asseguram seu resultado sem necessidade de
medidas complementares. O contraditório fica, assim, garantido pelo sistema jurídico
em sua complexidade. Isto significa que o ordenamento como um todo dinâmico
deve prever, em algum momento, a discussão das questões não tratadas no juízo
sumário.
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