AUTONOMIA DO PROCEDIMENTO SUMÁRIO E PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO KARINA SCHUCH BRUNET I - INTRODUÇÃO O processo é, inegavelmente, o instrumento pelo qual se podem ver efetivadas as pretensões de direito material. Assim sendo, cabe à ciência do direito processual determinar a ( s ) forma ( s ) como se dá essa efetivação. Aos juristas processualistas, reserva-se, então, a tarefa de instrumentalizar o processo a fim de que se tenha a real efetivação dos direitos. Desde a concepção do Direito Processual como ciência jurídica autônoma, houve a referida preocupação em conferir instrumentalidade ao processo. Como não poderia deixar de ser, essa árdua atividade dos juristas esteve sempre circunstanciada pelos aspectos histórico-ideológicos da época em que se operaram. Acontece, porém, que, não obstante as profundas alterações sociais advindas da globalização, ainda se mantém a mentalidade científica do contexto histórico que circunscreveu as primeiras codificações processuais. 2 No momento em que se questiona o papel do Direito frente à economia globalizada, em que se vê a decadência do Estado de Bem Estar, o processo continua apegado às já inúteis formas do liberalismo capitalista do século XIX. Conseqüência direta desse descompasso histórico-social é a inefetividade do processo e o seu descrédito como instrumento de realização de direitos. Nesses termos, a tão falada e desejada reforma do processo deve exceder os limites de estrutura, pessoal e produção legislativa ( inclusive já inflacionada ) se pretende ter alguma utilidade prática. O Direito Processual deve, assim, ser repensado em seus contornos ideológico, sociológico e filosófico. Como vestígio do ultrapassado Estado Liberal e da visão aritmética do Direito, o Direito Processual ainda prima pela certeza do direito como valor supremo. Essa exigência, no entanto, conduz o processo ao equívoco da universalização da ordinariedade. Acreditava-se, e parece que ainda se acredita, que a forma ordinária com cognição plenária, aliada à logicidade da atividade jurisdicional, garante a certeza do direito. Não se compreende, entretanto, que esta é inatingível nas ciências sociais, que são constituídas de mutáveis elementos ideológicos e históricos. A sumarização, nesse contexto, foi, e ainda é, relegada a segundo ou inexistente plano, uma vez que não se permite ao juiz um juízo de verossimilhança, por não ser capaz de garantir a tão aclamada certeza do direito. Acontece, porém, que, mais do que nunca, a sumariedade é essencial para a efetividade do processo. A sociedade evolui com intensa rapidez, de modo a não se poder aguardar a morosidade da certeza, que, na verdade, sequer é alcançável. Aliada a manutenção da postura ideológica da certeza, surge, na contemporaneidade, a distorção doutrinária dos princípios constitucionais do 3 processo. São compreensíveis os anseios garantistas de uma Constituição pós ditadura. O que não se pode, no entanto, é pecar pelo exagero de garantias que podem acabar gerando outras violações. Entende-se, equivocadamente, que o princípio do contraditório e da ampla defesa, conforme exposto na Constituição Federal, artigo 5º, inciso LV, só é garantido por meio de um devido processo legal que, em igual equívoco, se compreende como o devido processo ordinário de cognição plenária. Não se concebem formas sumárias com garantia do contraditório, o que, mais uma vez, evidencia o apego à universalização da ordinariedade consolidada no liberalismo do século XIX. Vê-se, assim, que a atual questão da efetividade do processo deve passar por uma reflexão de seus fundamentos histórico-ideológicos, a fim de se compreender as necessidades contemporâneas de conciliação da autonomia do processo e garantia do contraditório. Precisa-se compreender o limite entre a ordinariedade excessiva e a possibilidade de sumarização dos procedimentos, para que o processo cumpra seu papel de instrumento adequado para a realização efetiva de direitos. II – PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO Toda ciência é constituída de princípios fundamentais que servem de base de sustentação para as proposições que se pretendem estudar. Assim, fala-se nos princípios gerais do direito e nos princípios processuais. São idéias, postulados e mesmo normas que norteiam toda a atividade jurídica, ainda que não expressas. 4 Servem de orientação para a dinâmica do ordenamento jurídico, procurando garantir direitos fundamentais na medida que se fazem presentes em casos de lacunas, ambigüidades e violações à pessoa humana em sua dignidade. Os princípios processuais, em especial, procuram garantir o justo desenvolvimento da atividade jurisdicional. São princípios formadores em que se pretende a melhor adaptação do processo à realidade, através de instrumentos que viabilizem o exercício da jurisdição com economia, celeridade, igualdade e justiça. 2.1 - I REVE HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO Considerado como inerente à própria administração da justiça organizada, o princípio do contraditório verificou-se já no direito romano, bem como na Alemanha medieval, alcançando-se a concepção atual após um longo período de evoluções1. Naquele período, ao juiz não era permitido julgar se o demandado não comparecesse em juízo2, dispondo-se para sua coerção da possibilidade de imposição de força física ( direito romano ) ou de embargo de seus bens ( direito germânico medieval ). Evidencia-se, assim, que o contraditório, em seu sentido de bilateralidade, desde essa época era exigência fundamental para a legitimidade do pronunciamento jurisdicional. Acontece, no entanto, que a tutela jurisdicional não podia ficar à mercê da vontade do demandado. Assim, introduziu-se a possibilidade do Pretor fazer uso da 1 MILLAR, Robert Wyness. Los principios formativos del procedimiento civil. Traducción de Catalina Grossmann, Buenos Aires: Ediar, 1945, p. 47. 2 No direito romano clássico, a forma processual adotada era a litiscontetatio, ou quase contrato, em que as partes juntamente dirigiam-se ao juízo ( iure ) para escolherem um juiz privado ( iudex ) para decidir a causa. Assim, fica evidente a necessidade de comparecimento do demandado, uma vez que devia participar da escolha do seu julgador. A sentença relacionava-se com a submissão voluntária das partes. 5 missio in bona como medida para forçar o seu comparecimento, bem como, posteriormente, surgiu o processo contumacial: “En consecuencia, antes de que el pretor introdujera un recurso admitiendo el uso da missio in bona como medida para forzar la comparecencia, el derecho romano carecía de autoridad para dictar fallo contra un demandado que dejara de comparecer, ya voluntariamente ya bajo coacción física del actor. ... La idea de que el tribunal puede considerar la causa en ausencia del demandado, si éste ha sido notificado com arreglo a los términos de la ley, tiene su origen en el procedimiento contumacial del derecho romano postclásico; pero tuvo que sostener una larga y penosa lucha para sobreponerse a la persistencia de la concepción 3 primitiva” . Vê-se, com isto, que o processo contumacial introduziu no direito processual a possibilidade de se exercer a atividade jurisdicional sem a presença do demandado, desde que devidamente notificado, ou como nos dias atuais, sendo válida a citação. Surge, então, como evolução direta desse tipo processual, a figura da revelia, entendida como pena de confesso. Inicialmente, só era possível aplicá-la após terem sido esgotadas todas as possibilidades de coerção para o comparecimento do demandado; sendo, depois, admitida em caso de mera falta de sua presença4. Entende-se que a necessidade de comparecimento do demandado estava vinculada a uma idéia dialética do processo, com inspiração na retórica aristotélica5. Tendo que aplicar a lei da forma mais justa possível, o juiz tinha que alcançar o grau máximo de probabilidade de ocorrência do fato alegado, nos exatos termos da alegação. Não se concebia, ainda, a noção de certeza ou verdade jurídica como manifestação do poder soberano, mas sim verossimilhança. E esta só se constituía 3 MILLAR, op. cit., p. 47/48. Idem, p. 52. 5 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. A garantia do contraditório, in Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, vol. 15, Porto Alegre: Síntese, 1998, p. 8. 4 6 para o julgador a partir do diálogo e cooperação das partes numa real atividade argumentativa. Entendendo-se que os exageros oriundos da argumentação podiam levar a injustiças, uma vez que se realizava o direito do intelectualmente mais forte6, houve um repúdio à retórica argumentativa para mascarar os novos ideais políticos que surgiam na sociedade. Na verdade, buscou-se uma forma de se fazer prevalecer o direito estatal, que, igualmente, representava os anseios do mais forte, aqui, no entanto, a nível econômico. O advento da burguesia ao poder precisava ser assegurado por meios legítimos como o Direito. Assim, com a filosofia política do século XVII, o direito passou a ser visto sob o ponto de vista da lógica aritmética, desprezando-se, assim, os juízos de verossimilhança. Abandonou-se a argumentação aristotélica, entendendo-se que a lei era unívoca. O juiz, assim, foi compreendido como um ser iluminado e racional, capaz de identificar e dizer a única verdade da lei. Nesses termos, o contraditório, ou bilateralidade do processo, não cumpria mais a exigência de convencimento, argumentação. As partes deviam exercer mera atividade instrutória no processo, disponibilizando meios para que o juiz pudesse identificar a verdade da lei e proclamá-la como realização da justiça. O contraditório apresentava-se como a oportunidade de uma parte contrapor seus argumentos probatórios aos apresentados pela parte contrária. Nesse sentido, a revelia tomou relevo, a partir da compreensão de que o juiz era capaz de dizer a vontade da lei, independentemente da argumentação que poderia ser feita pelo demandado revel. 6 A esse respeito, Calamandrei diz que: “Ao choque das espadas se tem substituído, com a civilização, a polêmica dos argumento, mas existe ainda neste contraste, o ensinamento de um assalto. A razão se dará a quem melhor saiba raciocinar: se ao final o juiz outorga o triunfo a quem melhor consiga persuadi-lo com sua argumentação, se pode dizer que o processo, de brutal choque de ímpetos de guerreiros, tem passado a ser jogo sutil de raciocínios engenhosos.” CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil. Tradução de Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbiery, vol. 3, Campinas: Bookseller, 1999, p. 225. 7 Os ideais da Revolução Francesa e a adoção da tripartição de poderes do Estado, da doutrina de Montesquieu, vieram a consolidar a tendência racionalista já surgida no século anterior. Separou-se o Direito da Moral, “confinando-se” o juiz ao mundo jurídico7. A questão da justiça era tratada pelo Poder Legislativo. Ao Judiciário cabia apenas dizer a vontade da lei com neutralidade. Nesse contexto, o princípio do contraditório garantia às partes a possibilidade de demonstrarem suas razões, sem, no entanto, interferir no convencimento do juiz neutro e aplicador da verdade da lei. Assim, com o advento do positivismo e liberalismo do século XIX, mais que a verdade da lei, buscou-se a certeza e segurança jurídica. O direito processual instaurou-se como disciplina autônoma e desenvolveu seus princípios nesse contexto. A processualística, então, consolidou formas e técnicas que garantissem tais requisitos, em detrimento das questões materiais de justiça, que continuavam relegadas ao “espírito do legislador”. A teoria liberal primava, ainda, pela igualdade dos homens livres. Essa máxima devia ser garantida também no processo para que se pudessem ver garantidas a certeza e segurança, bem como a aceitação da decisão promulgada pelo juiz neutro e imparcial. Assim sendo, o direito processual dissociou-se do direito material, desenvolvendo técnicas gerais e abstratas, com base em conceitos e lógicas universais8, no intuito de garantir a certeza e a segurança do direito, bem como a igualdade das partes, através de instrumentos que não beneficiassem a ninguém. O contraditório inseriu-se nessas formas e passou a ser garantido com a finalidade de que as partes igualmente pudessem esgotar todas as possibilidades de dúvidas acerca do direito a ser aplicado ao caso concreto, através da bilateralidade dos atos processuais. 7 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.155. 8 Idem, p. 162. 8 Esse anseio pela certeza e segurança jurídica acabou conduzindo o processo à ordinariedade. O princípio do contraditório foi compreendido em termos meramente de técnica finalística em que se buscava alcançar as máximas do processo vigente na época, quais sejam, igualdade, certeza e segurança. Universalizou-se, assim, a forma ordinária em suprimento de outras técnicas. A crise do liberalismo, no entanto, deu origem ao Estado Contemporâneo com ideologias sócio-democratas. Assim, o welfare state do século XX, com sua preocupação intervencionista, estava comprometido com a efetividade de suas políticas sociais. O processo, nesse contexto, teve de ser repensado a fim de que fosse justo e efetivo. O contraditório, assim, passou a ter uma tendência mais substancial, mas não obteve muito resultado prático, pois as formas e ritos ainda estavam muito arraigados na ideologia da ordinarização que se fez presente no século anterior. 2.2 – CO GARANTIA CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO Até o advento da Constituição Federal de 1988, o princípio do contraditório era garantia processual expressamente atribuída unicamente ao processo penal. A partir dessa Carta Magna, estendeu-se a aplicabilidade do referido princípio igualmente ao processo civil e administrativo. A concepção do Estado como democrático e de direito trouxe para o processo essas veias democráticas através da generalização do contraditório, na medida em que permite ao indivíduo a participação na preparação da decisão ( ato de poder ) a qual deve se submeter9. 9 PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 161. 9 A partir dessa idéia democrática do contraditório, ele deixou de ser um princípio apenas técnico de bilateralidade com vistas a percepção da certeza e segurança do direito. O contraditório passou a ser efetivo, não se limitando à ciência dos atos processuais. Essa preocupação, na verdade, é uma tendência moderna que já figurava no processo civil brasileiro mesmo antes da Constituição Federal de 1988. O Código de Processo Civil, através de institutos próprios, como, por exemplo, a distinção entre a configuração da revelia e a produção de seus efeitos, já manifestava essa idéia de efetividade do contraditório. Dentro da principiologia da Constituição Federal de 1988, o princípio do contraditório decorre direta e logicamente da exigência de igualdade. Sendo todos iguais perante a lei, o são também perante as normas que regulam ao atos processuais, devendo-se dar às partes iguais condições de se manifestarem no processo, proporcionando, inclusive, não apenas a oportunidade, mas a efetiva participação. O princípio do contraditório, ainda, insere-se na garantia constitucional do devido processo legal, sem o qual ninguém pode ser privado de sua liberdade ou seus bens. Procura-se, assim, garantir o acesso de todos ao Poder Judiciário através de um processo justo e efetivo previamente estabelecido. Acontece, porém, que, equivocadamente, grande parte da doutrina tem entendido que o respeito ao contraditório só é garantido através de um processo com formas ordinárias. Entende-se que isso decorre de uma errônea compreensão do próprio princípio do devido processo legal, oriunda da ideologia liberal e positivista que universalizou a ordinariedade. O devido processo legal não é necessariamente o processo ordinário de conhecimento que se consagrou no século XIX como procedimento apto a garantir a certeza e a segurança jurídica que as relações sociais da época impunham. Ao contrário, é um princípio dinâmico que deve se adequar às exigências de efetividade e justiça de cada momento histórico. 1 0 Assim sendo, para a garantia do contraditório não se fazem necessárias unicamente formas plenárias de cognição, efetivadas através do rito ordinário. Podese garanti-lo efetivamente em procedimentos especiais e sumários, em que se verifique a adequação de um devido processo legal ao direito material em questão, ou à situação específica que se queria resguardar, priorizando-se interesses sociais emergentes. Nesse sentido, pode-se falar em restrições à amplitude do contraditório, sem, no entanto, ofendê-lo. Na verdade, tais restrições se fazem no interesse da própria justiça, como bem refere MILLAR: “..., el principio de la audiencia bilateral queda sujeto en todas partes a ciertas restriciones, consideradas por el poder legislativo como favorables a la justicia.”10. Assim, no intuito de se obter a efetividade do direito, sua satisfação e realização, e, conseqüentemente, a justiça da decisão, é possível que haja um derrogação do princípio do contraditório inicial11, ou restrição quanto às questões examinadas Esse aspecto de postergação, ou restrição do contraditório já se verificava no direito intermédio. A lei sálica previa a hipótese de penhora dos bens do devedor, sem prova do crédito, garantindo-se àquele a oportunidade de, em ação independente, levar o contraditório ao tribunal do rei. Semelhante situação ocorria no direito longobardo, em que no curso da ação executiva, ou posteriormente, instaurava-se um processo regular de contraditório12. Vê-se, assim, que os limites à extensão do contraditório são inerentes à própria atividade jurisdicional. A negação de restrições, ou postergação do contraditório é, evidentemente, uma postura conservadora e contrária à própria 10 MILLAR, op. cit., p. 52. Calamandrei, em item destinado a tratar dos expedientes para acelerar o curso do processo, refere-se a derrogação do princípio do contraditório inicial, que é invertido ou aprazado, conforme a finalidade a que se propõe a aceleração. CALAMANDREI, op. cit., vol. 3, p. 239. 12 LIEBMAN, Enrico Tullio. Embargos do executado ( oposições de mérito no processo de execução ). Tradução de J. Guimarães Menegale, 2º ed., São Paulo: Saraiva, 1968, p. 34/37. 11 1 1 justiça. Nesse sentido, então, é que se tem verificado, nas codificações processuais mais modernas, a presença de ritos sumários, em que o contraditório é diferido ou eventual. O contraditório diferido é aquele em que o seu exercício é relegado para outro momento processual. A tutela desejada é concedida ao autor, parcial ou totalmente, mas não de forma definitiva, até que se verifique uma análise plenária de suas razões em momento posterior do processo, ou em outro processo que lhe cabe o compromisso de ajuizar. No contraditório eventual13, por sua vez, verifica-se uma inversão. Ao autor é deferida a tutela, mas a análise plenária de suas razões não lhe compete, cabendo ao réu prejudicado que venha a juízo reclamar os seus direitos que entende violados pela tutela conferida ao autor do processo anterior. Nesse sentido, muito bem esclarece o professor Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA: “Ás vezes o demandante que obtém a realização imediata do direito, através de uma liminar, como acontece nas ações possessórias, nas cautelares, nas ações de alimentos ou no mandado de segurança, tem o ônus de prosseguir na demanda, como autor, ou de promover uma demanda subseqüente destinada a permitir a investigação exauriente das razões de direito de que a parte que sofrera a medida liminar, não pudera, naquele primeiro momento, valer-se. Outra vezes, a vitória obtida na ação sumária desobriga o vitorioso de intentar a demanda plenária posterior, transferindo-se ao réu, contra quem fora editado o provimento, o ônus de iniciar a demanda plenária inversa. Neste caso, diz-se que o processo sumário contém contraditório eventual, de tal modo que se o réu não inverte seu papel e retorna a juízo como autor da ação 14 contrária, o resultado obtido na ação sumária torna-se definitivo.” Acontece, porém, que a aceitação do procedimento sumário, com postergação do contraditório inicial ( reservadas as questões para outro momento ) ou material ( limite substancial das questões sobre as quais recaem a discussão ) não tem sido muito bem compreendida pela doutrina. Esta entende possível tal 13 Verifica-se a existência do contraditório eventual, concebido nos termos em que cabe ao devedor chamar o credor a juízo se pretende ver apreciadas as suas possíveis alegações, já no direito intermédio francês. Idem, p. 77. 14 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Curso de processo civil., vol. 2, 2ª ed., Porto Alegre: Safe, 1993, p. 179. 1 2 situação por considerar que as decisões advindas dos processos com cognição sumária são provisórias15, o que acaba causando a inefetividade do direito, pela impossibilidade de realização do mundo dos fatos. Assim sendo, entende-se que é preciso se verificar as reais necessidades de sumarização do processo, com garantia efetiva do contraditório e da autonomia do procedimento. III – SUMARIZAÇÃO A sumarização dos procedimentos processuais apresenta-se, no contexto histórico-social em que vivemos, como a necessidade de se encontrar um equilíbrio entre exigências fundamentais – efetividade e contraditório – que visam a garantir a cidadania e a democracia. A Constituição Federal de 1988 primando por esses dois valores fundamentais, dispôs sobre um processo democrático e justo, em que se pode conciliar a efetivação de direitos sociais através da participação ativa das partes. Acontece, porém, que em determinadas situações, tais princípios constitucionais acabam entrando em conflito. A universalização da forma ordinária gera uma incontestável morosidade da prestação jurisdicional que leva, na maioria das vezes, a sua inefetividade. Na sociedade constantemente evolutiva de nosso século, as relações sociais são muito efêmeras e a demora da atividade judicial pode causar a completa inutilidade de seu resultado. Com isto, ao regular conflitos e sua forma de composição, cabe ao legislador fazer uma opção entre a morosidade e 15 Nesse sentido, pode-se referir a professora Ada Pellegrini Grinover que entende que as restrições ao contraditório realizadas face a efetividade da atividade judicial não são ofensivas porque ocorrem em decisões provisórias. GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o código de processo civil. São Paulo: Bushatsky, 1975, p. 95/96. 1 3 a certeza jurídica, com exagero da garantia democrática do contraditório; e a efetividade e redução probatória, com vistas ao exercício da cidadania. Vê-se, assim, que se deve buscar um meio de conciliar esses dois princípios constitucionais. Entende-se que a ordinariedade não é o único meio de se garantir o contraditório. É possível respeitá-lo também através de procedimentos sumários. A sumarização, sem violação ao contraditório, configura a melhor forma de se garantir a efetividade da prestação jurisdicional, com real configuração da justiça material 3.1 – SÉCNICAS DE SUMARIZAÇÃO A sumariedade das formas processuais, com postergação do contraditório, não é uma alternativa processual do direito moderno. No direito romano, através da sistemática do interdictum, o Pretor exercia atividade executiva e mandamental, antes da cognição acerca da prova do direito, que ficava reservada para outra ação. Na verdade, somente a actio ( em que se operava o conhecimento da causa ) era considerada atividade jurisdicional, entendendo-se os interditos, como providências meramente administrativas, justamente pela ausência de atividade cognitiva plena: “O que transparece com suficiente clareza da lição de Luzzatto é o fato de recusar a doutrina a natureza jurisdicional aos interditos, fundamentalmente, por serem eles decretados pelo magistrado com base num “sommario esame delle circostanze” ( p. 243 ), capaz de permitir apenas um “accertamento istruttorio”, sujeito a ser revisto no subseqüente judicium secutorium, sempre a que 16 contraparte impugnasse sua legitimidade.” 16 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p.35. 1 4 Com o mercantilismo do direito intermédio, fez necessário que se livrasse o processo dos formalismos exagerados, através de uma forma simplificada de busca da verdade, como bem refere FAIREN GUILLÉN: “...; las crecientes necesidades de rapidez impuestas por la entidad del tráfico mercantil que se desarrollaba en torno al Mediterráneo, impusieron también en, materia civil, la sumarización del proceso.”17. Ainda quanto ao direito intermédio, especificamente italiano, Enrico Tullio LIEBMAN, ao tratar dos embargos do executado, faz referência à sumariedade da cognição. Explica que no juízo executivo se podiam conhecer apenas exceções passíveis de prova fácil, de modo que a atividade cognitiva a seu respeito era limitada, sendo parcial e superficial. Mas a limitação da cognição só era concebível se a sua eficácia não fosse definitiva18. Acontece, porém, que a evolução social, assim como exigiu a sumarização no Alto Medievo, consolidou a universalização da ordinariedade no liberalismo do século XIX. Nessa época, as raízes da forma ordinária fixaram-se com tanta profundidade que sobreviveram, inclusive, no intervencionismo estatal do século XX, que, na verdade, manteve a política capitalista do século anterior, porém de forma sutil. A ideologia do século XIX, que perdurou até hoje, não apenas consolidou a universalização da ordinariedade, como também impôs ao juiz a passividade oriunda da neutralidade. Ao magistrado cabia a única atividade de dizer a lei - que se supunha unívoca - com certeza e segurança. Assim, não se podia conceder qualquer tipo de tutela que satisfizesse o direito da parte sem um exaustivo contraditório acerca das questões da causa. O juiz neutro devia apenas compilar 17 FAIREN GUILLÉN, Victor. El juicio ordinario y los plenarios rápidos ( los defectos en la recepción del derecho procesal común; sus causas e consecuensias en doctrina e legislación actuales). Barcelona: Bosch, 1953, p. 42. 1 5 provas e aplicar o direito, que, por sua vez, identificava-se com a lei sem qualquer perquirição a respeito da justiça. O juízo de verossimilhança e a concessão de medidas mandamentais ou executivas que realizassem o direito reclamado, ainda que provisoriamente, era totalmente contrário à neutralidade imposta ao magistrado. Com isso, verificou-se, então, a exclusão da sumariedade. A neutralidade era uma imposição da igualdade exigida pelo liberalismo da época. O juiz não podia interpretar a lei. Ele devia aplicá-la na estrita medida em que as partes, em igualdade de condições, traziam a causa para o processo. Qualquer atitude intervencionista do magistrado era considerada como ofensiva ao princípio da equidade processual. Acontece, porém, que o tratamento igualitário das partes na relação processual era apenas formal19, mantendo-se, assim, as desigualdades materiais. Essa preocupação com a neutralidade não se limitou ao magistrado, estendendo-se ao próprio processo em sua concepção institucional. Assim sendo, o processo desvinculou-se de qualquer relação que tivesse com o direito material20. Não se podiam conceber formas diferenciadas de tutela, sob pena de se ferir a neutralidade processual e, também, a liberdade e igualdade das partes. Com isto, criou-se um circulo vicioso entre igualdade, ordinariedade e neutralidade. Para a garantia do tratamento igualitário das partes, o juiz e o processo deveriam ser neutros, o que era alcançado através de um único instrumento de tutela processual, qual seja, o procedimento ordinário. Este, porém, gerou uma intensa desigualdade 18 LIEBMAN, Enrico Tullio. Embargos do executado ( oposições de mérito no processo de execução ), op. cit., p. 66/67. 19 Nesse sentido, “A “imparcialidade” que o procedimento ordinário impõe ao magistrado, impedindolhe de conceder medidas liminares ou, por qualquer outra forma, de dar regulação provisória ao estado de fato da lide, é uma conseqüência natural dos princípios que presidiram à formação da “ciência” jurídica européia do século XIX, especialmente da idéia de que ao Poder Judiciário cabia apenas a missão de cumprir a lei, sem mesmo poder interpretá-la, lei essa perante a qual “todos os homens eram iguais”, independentemente das injustiças concretas e de toda a sorte de discriminações sociais que a ordem jurídica estivesse a produzir em homenagem a tais princípios.” BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Curso de processo civil. 2ª ed., vol. 1 Porto Alegre: Safe, 1991, p. 104. 20 A esse respeito ver MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 30/31. 1 6 substancial, justamente por não ser adequado às exigências do direito a ser tutelado, o que levou o juiz deste século a “camuflar” espécies de proteção jurisdicional não previstas, sob diversos nomes e formas, a fim de conferir garantia efetiva aos direitos, não obstante a patente não neutralidade de sua postura, como no caso das cautelares inominadas ou satisfativas. O que aconteceu, então, foi uma completa inversão de valores que merece ser referida. A fim de se alcançar a efetividade da prestação jurisdicional, os operadores do direito passaram a aplicar a lei de formas por vezes “distorcidas” em detrimento do valor supremo de certeza e segurança até o momento prevalecente. Essa conduta, no entanto, levou a outro extremo, ou seja, ao risco da arbitrariedade do magistrado ao conferir tutelas diferenciadas às causas, em relação ao disposto na lei. Ou, por vezes, em casos de leis especiais, conduzir o processo com o vício da ordinariedade. Fica evidente que a classe jurídica, inserida no senso comum teórico, não tem condições de trabalhar independentemente em situações de especialidade, urgência e cautelaridade do direito a ser resguardado ou reparado. Não se pode deixar ao arbítrio dos operadores do direito a tarefa de prescrever tutela diferenciada a cada caso concreto. Essa atividade deve ficar a cargo do processualista e do legislador que, em conjunto, devem adequar os procedimentos às necessidades sociais. Nesse sentido, Enrico REDENTI fala de um princípio de adaptabilidade ( ou ainda, elasticidade ) do procedimento às exigências da causa, chegando a admitir uma certa dose de arbitrariedade na medida em que as partes e o juiz podem determinar o procedimento de acordo com os fins substanciais de justiça, dentro dos contornos legais: “ No se cae así en los peligros que se seguirían de dejar al juez arbitro absoluto del procedimiento, puesto que el procedimiento 1 7 está fijado de antemano por la ley; pero ésta, en vez de construirlo todo él de una pieza, lo ha construído como un mecanismo compuesto de piezas desmontables y diversamente combinables entre sí, que corresponde a la sensibilidad de las partes y a la prudencia del juez de montar en cada caso de la manera más en 21 consonancia com los fines substanciales de la justicia.” . Entende-se, no entanto, que a determinação do procedimento deve ser fixada em lei, a fim de se garantir uma efetiva igualdade das partes perante o órgão jurisdicional. Só a lei pode legitimamente reconhecer distinções e privilégios em nome da justiça. A sensibilidade das partes e a prudência do juiz não são formas legítimas de “escolha” procedimental, face a nítida disparidade de interesses envolvidos e a hipossuficiência do magistrado para fixar a técnica mais justa. Verifica-se, assim, que a técnica processual é fundamental para a garantia da efetividade da prestação jurisdicional, bem como a realização da justiça concreta. Deve haver um pluralismo processual a fim de se verem tutelados os diversos direitos carentes de proteção22. Não se confunde, aqui, ação de direito material e de direito processual. Mas sendo esta o instrumento de realização daquela, não se compreende como um único processo ordinário de cognição plenária possa ser capaz de realmente assegurar tais direitos. Nesse sentido, fala-se em técnicas de sumarização, a fim de que se possa adequar o procedimento às exigências impostas pela necessidade de satisfação efetiva dos direitos. Essas técnicas são formas de se sumarizar o processo em atenção à realização do direito material – urgência e/ou cautela - ou com vistas a uma maior justiça social, pela priorização de interesses, como ocorre no caso da ação de desapropriação por interesse social, conforme o disposto na Constituição Federal de 1988, art. 184, § 3º. 21 REDENTI, Enrico. Derecho Procesal Civil. Traducción de Santiago Sentís Melendo y Marino Ayerra Redín, tomo III, Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1957, p. 194/195. 22 MARINONI, Luiz Guilherme. A técnica da cognição e a construção de procedimentos adequados à tutela de direitos, in Revista Forense, n. 325, p. 51. 1 8 Giuseppe CHIOVENDA refere-se a três específicos casos de sumarização, ao tratar da questão das declarações com predominante função executiva: condenação com execução provisória, condenação com reserva e procedimento monitório. Entende que em tais situações o conhecimento é incompleto por não ser definitivo, no primeiro caso; por ser parcial, no segundo; e por ser superficial, no terceiro23. No direito brasileiro moderno, entende-se, no entanto, que há quatro tipos de técnicas de sumarização24. Numa primeira técnica, fala-se em cognição horizontalmente sumária, ou seja, a atividade cognitiva é apenas superficial, porém irrestrita quanto às questões que podem ser analisadas. É possível o exame de qualquer matéria a respeito da lide, mas não pode haver profundidade do conhecimento. Exemplos desse tipo de sumarização são as decisões liminares e medidas cautelares, em que só é admissível o juízo de verossimilhança, com evidente redução de contraditório, especialmente na concessão de liminares inaudita altera pars. Na segunda técnica de sumarização, trata-se da hipótese de cognição verticalmente sumária. Aqui a atividade cognitiva é exauriente, mas limitada a determinadas questões da causa. Há profundidade no exame da matéria levada à juízo, porém o conhecimento não pode exceder as fronteiras em que a lide foi posta. Excluem-se previamente certas questões que, embora controvertidas, não podem ser objeto de apreciação jurisdicional. A lide processual é íntegra, pois o corte na suas questões é feito pela própria natureza do direito material e antecede o processo. Exemplo típico dessa técnica são as ações cambiárias, em que não se pode alegar as exceções causais e pessoais, verificando-se, assim, a redução do contraditório. 23 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituiciones de derecho procesal civil. Traducción por E. Gómez Orbaneja, 2ª ed., vol. 1, Madrid: Revista de Derecho Privado, 1948, p. 242/243. 24 BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Procedimentos especiais.2ª ed., São Paulo: Aide, 1993, p. 46. 1 9 A terceira técnica de sumarização refere-se aos processos documentais em que se reduz a atividade probatória a determinado tipo de prova. A cognição fica, assim, restrita ao convencimento que a especificidade de certa instrução pode oferecer. Reduz-se aqui também o contraditório, uma vez que as partes ficam adstritas a uma determinada espécie de prova para fazer valer suas alegações. Exemplo desse tipo de sumarização é o mandado de segurança, embora parte da doutrina o considere como uma ação ordinária25. E, por fim, pode-se falar em sumarização por exceções reservadas. No processo sumário com “reserva de exceções”, as alegações das partes ficam limitadas a determinadas questões, reservando-se as demais para eventual “ação direta”, o que deixa claro a postergação de parte do contraditório. Nos limites do que pode ser discutido, a cognição é exauriente. Difere-se esta técnica de sumarização da exposta como segundo tipo, no sentido de que lá não há uma reserva para outra causa já previamente determinada. Exemplo típico deste tipo de sumarização é a ação de desapropriação por utilidade pública prevista no Decreto-lei nº 3.365/41. O art. 20 do referido texto legal expressamente limita a matéria de contestação, remetendo qualquer outra questão para ser decidida por ação direta. Não obstante esta disposição, a própria lei determina que feita a citação, a ação segue rito ordinário. Comete aqui o legislador uma imprecisão técnica, uma vez que a cognição é evidentemente sumária, pela limitação da matéria que pode ser objeto de discussão, sendo incabido o prosseguimento do processo pelo rito ordinário. O que ocorre na situação acima exposta é uma manifesta confusão entre ordinariedade e plenariedade ou sumariedade. Pode-se dizer que a ordinariedade é uma questão procedimental; já a plenariedade ou sumariedade é uma questão de cognição. Uma coisa é o rito, o instrumento que será usado para que se chegue ao conhecimento da causa. Outra coisa é o método utilizado para o desenvolvimento da 25 Assim é o equivocado entendimento de Alfredo Buzaid que afirma ser o mandado de segurança uma ação ordinária de conhecimento. BUZAID, Alfredo. Do mandado de segurança. vol. 1, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 75. 2 0 própria atividade intelectiva. O procedimento ordinário é o instrumental mais “completo” que o direito processual pôde conceber. É o meio em que se melhor pode adaptar as exigências da plenariedade. Quanto à cognição sumária, entendese que a ordinariedade é ou pode ser exagerada, pois dispõe de formas extensas demais para uma atividade intelectiva que é breve, ou por ser superficial, ou por ser restrita a determinadas questões. E aí reside um dos maiores problemas da sumarização no direito processual brasileiro. A doutrina processualista dificilmente consegue fazer a referida distinção, o que confirma, ainda nos diais atuais, a universalização da ordinariedade consolidada no século XIX, com exclusão das formas diferenciadas e especiais de tutela sumária. Vê-se o exemplo da ação de depósito, prevista do Código de Processo Civil, dentre os procedimentos especiais – art. 901 a 906. Esta é uma ação apenas formalmente sumária, uma vez que a cognição é materialmente plenária, permitindo-se ao réu alegar a nulidade ou falsidade do título, a extinção das obrigações e todas as matérias que a lei civil prever. O que acaba acontecendo, aqui, é uma falsa sumariedade, mesmo formal, pois a especialidade do rito não comporta a plenariedade da cognição. Assim sendo, vê-se a importância de distinguir entre o instrumento e o método de cognição para que se possa adaptar com efetividade o processo ao direito material a ser tutelado. Não basta que a lei disponha aleatoriamente de procedimentos especiais com cognição sumária, independentemente da verificação fática de suas disposições. É preciso que tais procedimentos sejam adequados à satisfação do direito. E para isso as técnicas de sumarização, ainda que com redução do contraditório, são úteis. São capazes de efetivamente realizar o direito ao possibilitar formas especiais de tutela conforme a necessidade do direito, ou seja, restringindo as questões da lide, superficializando o exame da causa, limitando os instrumentos probatórios ou reservando exceções. 2 1 3.2 - T UTONOMIA A universalização da ordinariedade, se não excluiu totalmente os procedimentos sumários, relegou-os a um segundo plano, de menor relevância. Essa “importância diminuta” da sumariedade pode ser verificada no caráter provisório que a doutrina insiste em lhe conferir ou na especialidade confusa de determinadas ações, conforme já abordado. É de relevante valor para a efetiva adaptação da técnica processual à necessidade de realização do direito material, a compreensão dessa questão da provisoriedade26 ou autonomia das decisões em procedimentos sumários. A sumariedade relaciona-se a juízos de verossimilhança e a limitações ao contraditório. É evidente que em uma ação onde há restrição das questões da lide, o contraditório não é pleno., pois a discussão da causa pode versar somente a respeito da matéria expressamente prevista. Limites ao contraditório verificam-se, também, nos casos em que o magistrado deve fazer uma análise superficial da causa, num verdadeiro juízo de verossimilhança. As limitações impostas ao contraditório nos procedimentos sumários – postergação, ou restrição da matéria – são exigências da própria efetividade que se quer alcançar através desta técnica processual. Em nada ofendem a garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório, uma vez que se compreenda a exata noção do devido processo legal. Este princípio deve ser entendido como a adequação do procedimento à situação jurídica de direito material que se pretende tutelar. Assim sendo, deve haver uma observância do contraditório específico ao 26 CALAMANDREI, op. cit., vol. 3, p. 293: “Aqui, nestes procedimentos sumários, basta o juízo de verossimilitude para dar lugar, sem mais, à providência ( possessória ou cautelar ) favorável: a qual se admite porque é uma providência destinada a ter vida provisória, até que em outro processo, no qual procederá o juiz normalmente a uma indagação a fundo da verdade, se possa chegar à providência definitiva, destinada a ocupar o lugar da provisória”. 2 2 caso, previamente determinado em um devido processo legal substancial que adequa o procedimento à satisfação efetiva do direito. Sabe-se que a busca da verdade da lei, supostamente unívoca, é uma ilusão. A lei possui tantas verdades quantas forem as situações a ela submetida, quantos forem os julgadores a aplicá-la, quantos forem os destinatários a obedecêla. Enfim, a verdade da lei é contingente. Assim sendo, não há uma única “verdade da lei”, mas existem diferentes manifestações dela para diferentes versões trazidas ao processo. E como versões, não são verdades – que esta só pode ser uma – mas sim verossimilhança. As “verdades jurídicas” são compostas de fatos circunstanciados, situações definidas pela percepção sensorial e intelectiva do homem. A esse respeito, CALAMANDREI diz que: “ Mesmo para o juiz mais escrupuloso e atento, vale o limite fatal de relatividade próprio da natureza humana: o que enxergamos, só é o que nos parece que enxergamos. Não verdade, senão verossimilitude: é dizer, aparência ( que também pode ser ilusão ) de 27 verdade ”. Assim sendo, toda a atividade jurisdicional, e mesmo humana, é baseada em juízos de verossimilhança. Esta faz parte da própria razão jurídica, embora o racionalismo e liberalismo tenham consolidado a supremacia da “verdade” e, consequentemente, a busca da certeza através da ordinariedade, mito que deve ser derrubado. O direito processual regula a evidência e a aparência da mesma forma, qual seja, o procedimento ordinário, por entender que existe uma veracidade plena a ser atingida. Acontece, porém, que a verdade é ilusória e a certeza existe em diversos graus. Os procedimentos, então, devem ser definidos em consonância com essa realidade. 27 CALAMANDREI, op. cit., vol. 3, p. 271. 2 3 Com isto, tem-se que a postergação ou restrição do contraditório, seja pela exclusão de determinadas questões, seja pelo juízo de verossimilhança, não podem ser argumentos suficientes para atingir a autonomia do procedimento sumário, em seu sentido de definitividade. O provimento jurisdicional deve ser definitivo e produzir, desde logo, seus efeitos no mundo fático e jurídico. Não se pode lhe conferir provisoriedade apenas por não atingir grau máximo de certeza ou de discussão da causa. Quando a relação jurídica de direito material, ou mesmo a política social judiciária, impõem a necessidade da cognição sumária, a própria provisoriedade transforma-se em elemento de incerteza e insegurança jurídicas, na medida em que a realização do direito fica sujeita à modificação ou confirmação posterior. A autonomia, assim, refere-se à terminalidade, à suficiência do procedimento. Entende-se que o procedimento é autônomo na medida em que não é preciso nenhum outro ato processual para a preservação do resultado obtido, não obstante o réu tenha a possibilidade de, em outro processo, discutir as questões excluídas do provimento obtido em juízo sumário. O sistema não impõe qualquer outro tipo de atividade jurisdicional, realizando-se o direito apenas com o comando da decisão sumária, ressalvado, é claro, o segundo grau de jurisdição. Nesse sentido, o professor Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA, ao tratar das ações cautelares, fixa posição fundamental a respeito da autonomia, aplicável inclusive aos casos que excedem a cautelaridade: “Autonomia não significa impedimento ou supressão de uma eventual ação satisfativa posterior que controverta a respeito da existência, validade ou eficácia do direito acautelado. ... Quando defendemos a possibilidade - por enquanto eventual e rara em nosso direito – de uma ação cautelar autônoma, apenas queremos significar que seu autor fica dispensado de promover a ação satisfativa que serviria de “processo principal”, transferindo este ônus para o adversário que sofrera a medida cautelar, técnica esta, aliás, não só conhecida secularmente como instrumento de 2 4 sumarização processual, como preconizada mesmo por aqueles que, em certos momentos, aderem a doutrina da acessoriedade e 28 dependência do processo cautelar.” Vê-se, assim, que a autonomia relaciona-se, como já referido, a definitividade e suficiência do provimento, ainda que sumário. A sumarização tanto horizontal quanto vertical, não deixa de assegurar os princípios processuais do sistema em sua conjugação e equilíbrio de prevalência. O contraditório pode ser postergado ou restrito e a verossimilhança é uma realidade. Independentemente do tipo de técnica de sumarização utilizada, o contraditório é sempre respeitado dentro dos limites do processo no qual se insere a discussão da causa. O que pode ocorrer, no entanto, é que ainda se tenham questões a serem discutidas, além das já julgadas e decididas. Mas não tendo estas feito parte da lide sumária, não há que se falar em ofensa ao contraditório, pois o processo com lide total ( independente de qualquer corte material, a lide processual é sempre total ) e decisum ilimitado é, ou pelo menos deve ser, autônomo na medida que é suficiente para garantir seu próprio resultado. A problemática das questões não examinadas é “jogada” para o sistema jurídico que, em sua complexidade dinâmica, deve resolvê-la sob alguma forma de tutela em que se permita a discussão das matérias excluídas. O fato de não terem sido apreciadas num determinado tipo de processo ou procedimento não afeta a autonomia deste, nem mesmo o respeito ao contraditório. A sua observância deve ser sistêmica, no sentido de que o ordenamento jurídico como um todo deve dispor, em determinado momento, de instrumento de proteção que recepcione as questões que não puderam ser alegadas em outro processo anterior ou mesmo contemporâneo. A autonomia, assim, é garantida pela inversão do contraditório, onde o réu do procedimento sumário vai ser autor de outro processo em que busque reparar qualquer dano que tenha sofrido em virtude da decisão sumária. 28 175. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Curso de processo civil, vol. 3, Porto Alegre: Safe, 1993, p. 2 5 IV - CONCLUSÃO Na sociedade globalizada em que vivemos, onde os avanços tecnológicos encurtam espaços geográficos, estreitando ou alargando fronteiras, onde o tempo não é mais cronológico, mas sim real; o Direito deve acompanhar as evoluções sociais, sob pena de ser negado como sistema legítimo para a harmonização de conflitos. O ordenamento jurídico deve adaptar-se às transformações sociais para garantir sua eficiência regulamentadora. No direito processual civil, entende-se que a universalização da ordinariedade é elemento que tem dificultado essa adaptação do Direito à realidade dos fatos sociais. A sociedade evolui de forma descontrolada, proliferando-se conflitos das mais diferentes espécies. Assim sendo, a adoção de um processo único – ordinário – para a efetiva instrumentalização da prestação jurisdicional, torna-se inviável. Para ser eficiente e legítimo, o Direito deve garantir a efetiva satisfação dos interesses juridicamente postulados. E, para isso, é preciso que haja uma conformidade entre o que se quer e a forma de que se dispõe para alcançar, ou seja, entre o direito e o procedimento. Não se pode adotar, indiscriminadamente, a ordinariedade, com seus vícios de plenariedade, para a realização de todo e qualquer direito que venha a juízo. Com isso, faz-se necessário o implemento de tutelas diferenciadas capazes de atender a especialidade, a cautelaridade ou a urgência que os direitos possam impor. Só a diferença poderá garantir a efetividade e a instrumentalidade do processo. Os procedimentos diferenciados, assim, devem ser desenvolvidos em estreita relação com o direito material que se pretende tutelar, bem como em 2 6 conformidade com os princípios e garantias constitucionais. Deve-se atentar para a melhor forma de realizar o direito sem, no entanto, descuidar-se no disposto na Constituição Federal. Nesse sentido, tem-se que é preciso que haja uma especial atenção ao princípio do devido processo legal, entendido em seu sentido de efetividade: processo adequado à realização do direito. Não pode haver um apego ao devido processo legal de forma ordinária e cognição plenária. Devido, aqui, deve ser entendido como justo, legítimo. Inserido no devido processo legal, o princípio do contraditório deve, igualmente, ser observado nos limites da justiça e efetividade da satisfação do direito. Não se pode conceber que tal princípio seja apenas respeitado nos processos ordinários com cognição plenária. Restrições ao contraditório, sob a forma diferida ou eventual, são imprescindíveis para a implementação de tutelas diferenciadas. Entende-se que a sumariedade, como rito e atividade cognitiva, dever ser revalorizada pelo processo civil como forma alternativa de diferenciação de tutela. O procedimento sumário, face a universalização da ordinariedade, foi, durante muito tempo, relegado a segundo plano. Acontece, no entanto, que o rito ordinário já não tem mais condições ( se é que algum dia teve ) de atender com efetividade e justiça às exigências da sociedade moderna. Na condição secundária a que foi relegado, o procedimento sumário era ( e ainda tem sido ) aceito apenas como tutela provisória. A doutrina, em grande parte, acredita que a sumariedade é incompatível com a definitividade da decisão, pois esta é proferida em juízos de mera verossimilhança, com restrições patentes ao contraditório. 2 7 Não se concorda, todavia, com a posição doutrinária acima exposta. Acredita-se, ao contrário, que a sumariedade não só pode como deve levar a decisões definitivas. A verossimilhança é uma realidade. Não existe a certeza e a verdade no processo, existem apenas versões. Quanto ao contraditório, existem técnicas de restrição - eventual e diferido - que garantem a sua plenitude. Com isso, entende-se que a efetividade do processo, enquanto instrumento de satisfação de direitos, só é possível através da adoção de tutelas diferenciadas, adaptando-se o procedimento ao direito material de forma autônoma. A autonomia, assim, é compreendida no sentido de suficiência e terminalidade do processo para a garantia de realização do direito no mundo fático. Assim sendo, processos sumários autônomos são fundamentais para a efetividade e a justa realização do direito material, uma vez que permitem uma composição rápida do litígio e asseguram seu resultado sem necessidade de medidas complementares. O contraditório fica, assim, garantido pelo sistema jurídico em sua complexidade. Isto significa que o ordenamento como um todo dinâmico deve prever, em algum momento, a discussão das questões não tratadas no juízo sumário. V - BIBLIOGRAFIA BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Doutrina e prática do arresto ou embargo. Rio de Janeiro: Forense, 1976. _______________________________ . Jurisdição e execução da tradição romano-canônica. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. 2 8 _______________________________ . Procedimentos especiais. 2ª ed., Rio de Janeiro: Aide, 1993. _______________________________ . Curso de processo civil. 2ª ed., vol. 1, Porto Alegre: SafE, 1991. _______________________________ . 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