Latusa Digital Ano 8 – N. 44/45 – Março e Junho de 2011.
Indicações topológicas sobre o corte analítico:
em busca da ética na clínica diferencial1
Mariana Mollica2
Resumo
O texto discute as diferenças topológicas entre a estrutura neurótica e psicótica como
proposta ética para discernir o corte da intervenção analítica na psicose. Os artifícios
inventados pelos psicóticos em análise servem de ensinamento para o analista na sua
desafiante tarefa de interpretar. O saber-fazer com lalíngua, singularmente inventado
pelos psicóticos, serve-nos de indicação para interrogar o fazer clínico com a neurose.
Palavras-chaves: interpretação, topologia, corte, psicose, neurose.
Abstract
We discuss the topological differences between neurotic and psychotic structure, as an
ethics proposal to discern cutting and analytical intervention in psychosis. The devices
invented by psychotic in analysis serve as a teaching to the analyst in his challenging
task of interpreting. The savoir-faire with lalangue, singularly invented by the psychotic,
serves
as an
indication to
interrogate the
clinical work
in
neurosis.
Keywords: interpretation, topology, cutting, psychosis, neurosis.
1
Este trabalho foi apresentado na Jornada do ICP de 2010 (turma 2007) e publicado, na íntegra, na brochura da
Jornada.
2
Ex-aluna do curso regular do ICP-RJ, participante da EBP-RJ e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica da UFRJ.
Indicações topológicas sobre o corte analítico: em busca da ética na clínica diferencial
Latusa Digital Ano 8 – N. 44/45 – Março e Junho de 2011.
Este trabalho se orienta pelo princípio da interpretação lacaniana visando à ética
na clínica diferencial neurose-psicose, ou seja, não tomando a psicose como deficitária
em relação à neurose. No Seminário 23, Lacan3 faz uma generalização, afirmando que,
em todo nó, independentemente da estrutura, há um lapso. O lapso está ligado ao
modo de constituição do sujeito na linguagem, já que há sempre um hiato entre o que
se diz e o que se quer dizer. Acreditamos que a interpretação, no sentido do trabalho
que o próprio inconsciente realiza para cifrar e decifrar o mundo, é produzida no ponto
do lapso do nó, ali onde há instabilidade, lugar impossível de suportar para o falante. A
interpretação opera com lógicas absolutamente diversas em cada estrutura, mas seria
para todo sujeito uma tentativa sintomática de articular os registros, ali onde o nó rateia.
Como o analista deve intervir no trabalho que o próprio sujeito realiza?
A direção da intervenção do analista em cada uma das estruturas é diferente.
Quais seriam as diferenças? Orientamo-nos na topologia lacaniana, buscando
investigar nesse trabalho os fundamentos do corte analítico4.
O corte é uma invenção clínica de Lacan, que visa a reduzir a proliferação
imaginária que as análises pós-freudianas produziam e traz para primeiro plano a
articulação direta entre pulsão e significante. Lacan utiliza o termo ressonância para
sublinhar a dimensão da ética psicanalítica5, que visa o nonsense. Não se trata da pura
ausência de sentido, mas precisamente no que reverbera de mal-entendido entre o que
é dito e o que é escutado. Quem interpreta? O inconsciente ou o analista?
Lacan utiliza a banda de Moebius6 para demonstrar a lógica topológica própria à
dialética inconsciente na neurose, que articula interno e externo, sujeito e Outro,
analista e inconsciente. Há um ponto de “exclusão interna”
7
que determina o lugar do
sujeito na linguagem e é responsável pelo paradoxo onde o mais estranho, unheimlich,
é o familiar.
O ponto de desconhecido perseguido por Freud desde a interpretação dos
sonhos, que funda o desejo inconsciente, é retomado por Lacan com o conceito de
objeto a. Tratar-se-ia então de fazer a interpretação incidir no objeto? Como?
3
LACAN, J. O Seminário. Livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007 p.148.
LACAN, J. Idem.
5
LACAN, J. “Função e Campo da fala e da linguagem em psicanálise”, 1953. Em: Escritos. São Paulo: Perspectiva,
1999, p.317.
6
LACAN, J. “A Direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Em: Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 603.
7
MILLER, J-A. “A topologia no ensino de Lacan”. Em: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p.75.
4
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Avesso da interpretação
A perspectiva milleriana problematiza o que não se deve interpretar: a fantasia.
O fantasma é uma mensagem cifrada de gozo, é uma frase da qual se goza8. Uma
prática analítica deve interpretar visando o além do princípio do prazer e, portanto,
deve: “interpretar na contramão do inconsciente” 9, pelo avesso.
Miller e Laurent indicam que, para isso, é preciso “pensar a neurose a partir da
psicose”
10
. Como se situa a interpretação na psicose? Segundo Laurent11, o sujeito
psicótico interpreta de maneira original. Ele acredita em sua interpretação; está pronto
para impô-la ao mundo.
É com o exemplo do fenômeno elementar, a presença do significante sozinho
que não reenvia a nenhum outro, mas a uma significação da significação, que toca o ser
do sujeito, que a lógica do corte se sustenta. O corte tende a separar S1 de S2,
isolando o S1, reconduzindo o sujeito à opacidade de seu gozo, cuja articulação
significante busca escamotear. “O significante sozinho é sempre um enigma, sempre
em falta de interpretação”
12
. O corte se caracterizaria por isolar um significante que não
se interpreta.
Cabe ainda colocar a seguinte questão: o que corresponde ao corte analítico
numa análise com a psicose? Se na foraclusão o objeto a não se encontra extraído (o
sujeito o carrega colado a ele ou como pura presença, a exemplo do olhar e da voz), se
o sujeito não articula o objeto pela fantasia, também não possui um ponto de alteridade
interna.
Um prazer que não serve à comunicação
O chiste diverge das demais formações do inconsciente por sua peculiar
sociabilidade. Se o sonho é um produto absolutamente associal, o chiste apresenta
como condição de sua realização o riso de um terceiro, se não, seria descartado pela
8
MILLER, J-A. “A interpretação pelo avesso”. Em: La Cause Freudienne, n. 32, Paris, Navarin, 1996.
MILLER, J-A. Ibidem, p. 99.
10
MILLER, J-A. Idem.
11
LAURENT, E. Interpretar a psicose no cotidiano. Em: Mental, Revue Internationale de Santé Mentale et Psycanalise
Apliquée, n.16, outubro, 2005.
12
MILLER, J-A. Ibidem, p. 98.
9
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civilização como nonsense, não transmitindo ao ouvinte a mensagem nele contida. O
prazer experimentado pela gargalhada sanciona um significante fora do código da
língua que nomeia um gozo, estabelecendo uma paróquia entre o autor do chiste e o
ridente. A interpretação tem exatamente a estrutura triádica do Witz em três tempos13.
Trata-se de um pas-de-sens, nonsense e passo de sentido, fundado pelo grande Outro.
O conceito de lalíngua justifica o motivo pelo qual o sujeito obtém prazer no
nonsense e radicaliza o paradoxo se é o autor do chiste ou o ridente o criador do dito
espirituoso. Lalíngua o faz sem, contudo, supor um Outro prévio articulado. Lalíngua é o
que há de mais singular num ser falante e paradoxalmente é “lalíngua dita materna”
14
,
ou seja, um depósito de mal-entendidos deixados por outros falantes. Por meio da
insistência de um significante que marca um corpo, não articulado ao S2; apenas por
repetir, implica o gozo. Esse prazer com o fora do sentido não serve nem aos princípios
civilizatórios, nem faz apelo ao Outro. É inútil, serve apenas para gozar. Entretanto,
esse mesmo gozo pode ser responsável por produzir a inscrição do sujeito no Outro. A
vertente de gozo que porta o significante, destacada no último Lacan, funda o
inconsciente como um saber-fazer com lalíngua e permite ao analista abordar a psicose
a partir do conceito de inconsciente, ainda que o sintoma psicótico não se estruture a
partir do significante Nome-do-Pai.
Que intervenção estabilizadora?
A transferência de alguns psicóticos em análise nos mostra que, quando o
analista ouve o trabalho singular do psicótico com lalíngua, por uma via diversa da
fantasia ou do delírio, advém daí a construção de uma ficção que permite um
distanciamento entre o sujeito e o objeto avassalador. O texto poético escrito por um
paciente e trazido para a análise, via de reestruturação após o surto, guarda um espaço
para o vazio de significação, diferentemente de uma narrativa literária que tenta
escamotear a fuga de sentido ou do delírio que fixa a significação numa certeza não
dialetizável. Seu artifício é criado para endereçamento no laço transferencial e só se
torna estabilizador quando é assinalada pelo analista sua função de ponto de parada,
de corte com a metonímia sem ponto de basta. Utilizando a homofonia como motor,
13
14
LACAN,J. O Seminário. Livro 4: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1989.
LACAN,J. O Seminário. Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1982, p.188.
Indicações topológicas sobre o corte analítico: em busca da ética na clínica diferencial
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derivada de lalíngua, a poesia aqui mantém a mesma função triádica do chiste, embora
passando ao largo do recalque, abrindo caminho original de mediação entre o sujeito e
a enxurrada de significação que o deixava parasitado e refém do gozo do Outro.
Conclusão
Lacan15 define o corte como o que introduz a própria banda, que enquadra a
realidade por meio da fantasia. Nessa medida, diferencia os registros de real, simbólico
e imaginário; donde o corte é a banda. Ele fornece toda a estrutura da fantasia e esta só
se sustenta pela extração do objeto a. O inconsciente na neurose é moebiano — não
diferencia contradição, é atemporal e a noção de absurdo está ausente — pode ser
explicado pelo fato de que objeto e sujeito correspondem a uma mesma borda e,
portanto, ocupam topologicamente o mesmo lugar. A fantasia articula singularmente
esses dois elementos. Miller16 esclarece qual a relação entre esse corte e o corte
interpretativo do ato analítico. O segundo opera sobre o primeiro: a superfície com uma
única borda passa a demonstrar um lado direito e um avesso como efeito do corte. Para
Miller, “o corte interpretativo é transverso à banda de Moebius”
17
. Ou seja, é como
efeito do corte que o sujeito se percebe situado num ponto absolutamente exterior a ele
e paradoxalmente central.
O que podemos aprender com os psicóticos em análise sobre a operação
analítica do corte? O que funciona na clínica da psicose como arrimo, que faz parar o
excesso interpretativo?
O delírio não é tão eficaz quanto as diversas ficções singulares que os psicóticos
em análise produzem em seu trabalho alquímico com lalíngua. Segundo Jimenez18, o
delírio re-amarra os fios cortados pelo desencadeamento, fazendo um nó de trevo,
menos estável que um nó amarrado por um quarto elo, como o da neurose ou como,
diversamente, opera o sinthoma joyciano. O recurso à poesia mencionado é a tentativa
de criar um “clip” no lugar do lapso do nó, trazendo maior estabilidade. A poesia produz
um efeito de leitura da própria fala, permitindo situar-se de fora da enxurrada de sentido
15
LACAN, J. (1957-58) Op.cit.
MILLER, J-A. “A topologia no ensino de Lacan”. Op.cit., p. 89.
17
MILLER, J-A. Idem.
18
JIMENEZ, S. e PEQUENO, A. “Joyce. O sinthoma”. Em: Boletim da EBP- RJ, Rio de Janeiro, ano 1, n. 5, julho, 1995,
p. 3-4.
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e da perspectiva delirante de ser visado pelo olhar aterrorizante do Outro. Como não se
amarra pelo Nome-do-Pai, que enquadra a fantasia e produz um corte que separa o
objeto a do próprio sujeito, é preciso criar um outro artifício.
Não caberia ao analista cortar aquilo que já é cortado, operando ao avesso do
inconsciente, como nos indica Miller no trabalho com a neurose. Tratar-se-ia, no caso
da operação analítica com a psicose, de sublinhar o ponto a partir do qual o sujeito
tenta produzir um enlace, um clipe no ponto de corte? Poderíamos dizer que cabe ao
analista na clínica com a psicose, em vez de cortar, recortar, no sentido de demarcar o
saber-fazer com lalíngua tão singularmente inventado.
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