A NOVA SISTEMÁTICA DA PRISÃO PREVENTIVA E O POSTULADO NORMATIVO DA PROPORCIONALIDADE Mário Henrique ALBERTON1 Andreza Cristina MANTOVANI2 1 INTRODUÇÃO Se a prisão preventiva podia ser aplicada mediante a constatação dos motivos que a autorizavam (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal), agora, além da verificação de um desses motivos, a lei exige não ser suficiente a aplicação de medidas cautelares. O Estado-Juiz deverá demonstrar, concretamente, a inocuidade de se aplicar uma das medidas cautelares do art. 319 do CPP, para, só depois, poder lançar-mão da prisão preventiva. E vale lembrar que os motivos que fundamentam a aplicação das medidas cautelares confundem-se mesmo com os da prisão preventiva. O legislador cuidou ainda, nos incisos I e II do art. 282 do CPP, notadamente quanto à garantia da ordem pública, de condicionar a “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”. Para uns, as mudanças na sistemática de aplicação da prisão preventiva representa avanço nas práticas persecutórias do poder punitivo estatal, pois estariam em consonância com o direito fundamental da presunção de inocência. Para outros, a Lei brinda a impunidade e gera intranqüilidade social, pois proíbe o juiz de decretar a prisão preventiva de indiciados ou de acusados pela prática de crimes, e lhe impõe a obrigação de aplicar medidas cautelares não restritivas da liberdade, sem disponibilizar os meios de controle do efetivo cumprimento de tais medidas. Pretendemos analisar os fundamentos desses dois posicionamentos, para verificar se as alterações promovidas pela Lei 12403/03 está em consonância com o postulado 1 Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Mestrando em Ciências Jurídicas pelo Programa de Mestrado da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Advogado militante na Comarca de Maringá – PR. 2 Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina. Mestranda em Ciências Jurídicas pelo Programa de Mestrado da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Professora do curso de graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – câmpus Maringá. Advogada militante na Comarca de Maringá-PR. 1 normativo da proporcionalidade, e se, de fato, tais alterações representam uma sinalização do Poder Legislativo de mudança no rumo das políticas punitivistas do Estado brasileiro. 2 DO POSTULADO DA PROPORCIONALIDADE É certo que qualquer ato do Poder Legislativo que vise alterações na legislação penal e processual penal deve considerar os limites à atuação do Estado sobre a esfera do direito fundamental à liberdade, mas também a necessidade de se proteger determinados bens jurídicos e assim garantir o mínimo de segurança aos indivíduos. Ou seja, o Estado ora deverá abster-se de avançar sobre a esfera do direito à liberdade, ora deverá agir, suprindo lacuna ou insuficiência legislativa para disciplinar – ou disciplinar de outra forma determinada relação jurídica, visando, em ambos os casos, preservar direitos fundamentais que não necessariamente convivam harmonicamente entre si. Por isso, os atos dos poderes públicos estão sempre sujeitos a serem submetidos ao crivo do postulado normativo da proporcionalidade, que já foi chamado de proibição de excesso. ÁVILA esclarece que o “postulado da proporcionalidade cresce em importância no Direito Brasileiro. Cada vez mais ele serve como instrumento de controle dos atos do Poder Público”3. Também para SARLET, o „princípio‟4 da proporcionalidade “desponta como instrumento metódico de controle dos atos – tanto comissivos quanto omissivos – dos poderes públicos.”5. Citando GRABITZ, esclarece BONAVIDES que “Sua principal função, o princípio da proporcionalidade exerce na esfera dos direitos fundamentais; aqui serve ele antes de mais nada (e não somente para isto) à atualização e efetivação da proteção da liberdade aos direitos fundamentais”6. E prossegue o citado autor, mas agora citando ZIMMERLI: “Protegendo, pois, a liberdade, ou seja, amparando os direitos fundamentais, o princípio da 3 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2005, p. 112. 4 Os apóstrofos se justificam em vista da inexatidão do termo princípio para designar o postulado normativo da proporcionalidade, segundo Eros Grau, in Ensaio e Discurso sobre interpretação..., 4.ª Edição, p. 189. 5 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2009, p. 396. 6 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editora, 2000, p. 359. 2 proporcionalidade entende principalmente, (...), com o problema da limitação do poder legítimo, devendo fornecer o critério das limitações à liberdade individual.7 BONAVIDES esclarece que, embora tal princípio, ou melhor dizendo, postulado normativo, “não haja sido ainda formulado como „norma jurídica global‟, ele flui do espírito que anima em toda a sua extensão e profundidade o § 2.° do art. 5.° da CF. Explicando melhor as etapas às quais o intérprete deverá submeter o objeto de análise, para saber se uma determinada norma ou um ato normativo está em conformidade com o postulado da proporcionalidade, ÁVILA diz que... “Ele [o postulado da proporcionalidade] se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?) ”8. Assim, podemos colocar o problema da seguinte forma: as medidas cautelares do art. 319 do CPP são adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito para se evitar que o indiciado ou acusado venha a cometer novos crimes, não se furte à aplicação da lei penal ou não tumultue a instrução processual (finalidade), sem que seja necessário fazer uso da medida mais drástica - a prisão preventiva – e assim preservar a liberdade e, ao mesmo tempo, a segurança? Ou somente por meio da prisão preventiva é que se podem alcançar tais resultados, o que importaria num sacrifício maior da liberdade frente a segurança? 2.1 Da adequação Segundo ÁVILA... “O exame da necessidade envolve a verificação da existência de meios que sejam alternativos àquele inicialmente escolhido pelo Poder Legislativo ou Poder Executivo, e que possam promover igualmente o fim sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais afetados. Nesse sentido, o exame da necessidade envolve duas etapas de investigação: em primeiro lugar, o exame da igualdade de adequação dos meios, para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim; em segundo lugar, o exame dos meios menos restritivo, para examinar se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados”9. 7 Idem. ÁVILA, ob. cit., p. 112. 9 Ob. cit. p. 122. 8 3 O exame da adequação está diretamente relacionado com a realização de um fim, e este, segundo HUSTER, citado por ÁVILA, pode ter um aspecto interno: quando se relacionar a resultados que reside na própria pessoa ou na situação objeto de comparação (relação entre a culpa e a pena10, p. ex); e outro externo: quando se estabelecem resultados que não são propriedades ou características dos sujeitos atingidos, mas se constituem em finalidades atribuídas ao Estado e possuem uma dimensão extrajurídica.11 Ao restringirmos nosso objeto de estudo à investigação da possibilidade de as medidas cautelares alcançarem igual resultado da prisão preventiva, preservando de forma mais efetiva os direitos fundamentais da liberdade e da segurança, não se está pretendendo que o meio escolhido pelo legislador busque alcançar uma finalidade interna (querer que o indiciado ou acusado se convença verdadeiramente de que não deve praticar as condutas proscritas), mas sim, uma finalidade externa, de tal modo que as restrições e as proibições que caracterizam as medidas cautelares do art. 319 do CPP sejam potencialmente suficientes a evitar que o indiciado ou acusado volte a praticar novos crimes, se furte à aplicação da lei penal ou tumultue a instrução processual. Neste sentido, ÁVILA esclarece que o legislador não está obrigado a escolher o meio mais intenso, o melhor e o mais seguro, mas sim “um meio que promova minimamente o fim, mesmo que esse não seja o mais intenso, o melhor, nem o mais seguro”12. Na fase de análise da adequação do ato do poder público, não se exige que o resultado seja efetivamente realizado no caso concreto, ou que se aplique a todos os casos individualmente, nem que se verifique no momento da adoção da medida, bastando que se forme um juízo abstrato, geral e prévio sobre tal potencialidade. Assim, fazendo um juízo de adequação das medidas cautelares ao fim a que se propõem, é possível supor que tais medidas têm um potencial coercitivo suficiente para evitar que o indiciado ou acusado venha a praticar novos crimes, furte-se à aplicação da lei penal ou perturbe a instrução processual. Isto porque, além de encerrar proibições, restrições ou suspensões de direitos de quem a elas estiver submetido, poderão ser revogadas acaso sejam descumpridas as condições impostas, para dar lugar à decretação da prisão preventiva. E não será nem um pouco razoável acreditar que as pessoas submetidas às restrições das medidas cautelares queiram que essas sejam convertidas em prisão preventiva. 10 Ob. cit. p. 114. VOGEL e WALDHOFF apud ÁVILA, ob. cit. p. 115. 12 Ob. cit. p. 118. 11 4 Portanto, sob um juízo abstrato, geral e prévio das medidas cautelares, pode-se dizer que o legislador optou por um meio adequado para se alcançar o resultado proposto, que é o de garantir a liberdade de quem goza do estado de inocência sem por em risco a segurança social. 2.2 Da necessidade Estando superada a etapa da adequação do meio para se alcançar o fim, podemos concluir que as medidas cautelares são aptas a produzir o mesmo resultado que a prisão preventiva, no sentido de evitar a prática de condutas proscritas, e que a imposição da prisão preventiva no início ou durante a persecução penal a indiciados ou acusados de crime é bem mais restritiva do direito fundamental da liberdade do que a adoção das medidas cautelares. Por outro lado, pode-se argumentar que as medidas cautelares são insuficientes para proteção o direito fundamental à segurança, visto que o Poder Judiciário não teria meios de fiscalização para averiguar o cumprimento das restrições e proibições impostas aos indiciados ou acusados de crime. Sob esse ponto de vista e aplicando-se o critério da necessidade, que busca identificar entre vários meios, o menos restritivo ao bem jurídico afetado, a prisão preventiva surgiria como o meio mais restritivo ao direito fundamental da segurança, segundo entendimento que vem sendo utilizado para criticar as mudanças inauguradas pela Lei 12403/11. Considerado que as medidas cautelares se mostram adequadas a promover o mesmo fim da prisão preventiva, conforme visto acima, as medidas cautelares tendem a sacrificar menos a liberdade e mais a segurança, enquanto a prisão preventiva aponta para sentido oposto, i.e., tende a restringir menos a segurança e mais o da liberdade. Assim, é forçoso reconhecer que, ao vencermos as duas primeiras etapas do postulado da proporcionalidade, tanto as medidas cautelares quanto a prisão preventiva se mostram adequadas e necessárias ao fim que se propõem, a depender do bem jurídico que se atribua maior importância. Portanto, a escolha do melhor meio para a finalidade de garantir a ordem pública, assegurar a aplicação da lei penal e ser conveniente à instrução processual somente poderá ser resolvida por meio da ponderação dos dois direitos fundamentais mais diretamente 5 afetados pela escolha do Legislador: a liberdade e a segurança; ambos, integrantes do rol do caput do art. 5.°, da Constituição Federal. 2.3 Da proporcionalidade em sentido estrito Em nossa ponderação dos direitos fundamentais em questão, não podemos restringir conteúdo do direito fundamental de liberdade apenas à liberdade dos indivíduos que já estejam sob algum tipo de custódia estatal, nem a das pessoas assim consideradas em sua individualidade. Conquanto se trate, prioritariamente, de uma possível restrição à liberdade de locomoção e circulação da pessoa, é certo que qualquer restrição legislativa a tal direito traz em si a potencialidade de restrição desse mesmo direito sob a perspectiva da coletividade, pois se estará fazendo uso daquilo que HÖFFE denomina mandato para exercício da coerção: “As instituições se definem com uma regulação de comportamentos perpassada de coerção. Para um agir social, dependendo das circunstâncias, pode-se contar com reconhecimento, louvor, apoio e honra; mas para um comportamento desviante, ao contrário, ao contrário, pode-se contar com punições, crítica, subtração de amor e desprezo. (...). Instituições limitam a liberdade de ação e se impõem, em casos, através da coerção” 13. Mas não se trata de um mandato ilimitado de coerção do qual poderia dispor livremente o Estado. É, antes, um poder secundário que encontra seu fundamento - e suas limitações - na coerção exercida de forma pré-estatal entre os próprios indivíduos integrantes de uma sociedade, no momento em que renunciam à parcela de suas liberdades primariamente ilimitadas e passam a ter a pretensão de exigir dos outros indivíduos a mesma renúncia: “Fundamentalmente por direito uma coerção de homens contra homens alcança tão longe quanto alcançam as renúncias distributivamente vantajosas à liberdade, as liberdades fundamentais. Qualquer coerção que vai além disto significa uma intervenção nas liberdades fundamentais do outro e uma injustiça elementar para cujo impedimento o outro está moralmente autorizado”14. Diante dessas considerações, tem-se que a liberdade somente poderá ser exercida se houver o mínimo de segurança para garantir que os direitos fundamentais sejam respeitados, autorizando o uso da coerção estatal sobre aquele que violar tais direitos. Portanto, a questão posta tenta buscar os limites do mandato outorgado ao Estado para que possa exercer a coerção e assim preservar ou restabelecer “convivência social que permite que todos gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem perturbação de outrem, salvo nos 13 HÖFFE, Otfried. A Justiça Política: Fundamentos de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad. Ernildo Stein. São Paulo – Martins Fontes, 2005, p. 49. 14 HÖFFE, op. cit., p. 362. 6 limites de gozo e reivindicações de seus próprios direitos e defesa de seus legítimos interesses.”15 CALLIESS, citado por SARLET, diz ser justamente na etapa da proporcionalidade em sentido estrito que... “...se verifica a confluência entre as proibições de excesso e de insuficiência, (...), é necessário proceder a uma ponderação que leve em conta o quadro global, ou seja, tanto as exigência do dever de proteção, quanto os níveis de intervenção em direitos de defesa de terceiros ou outros interesses coletivos (sociais), demonstrando a necessidade de se estabelecer uma espécie de „concordância prática multipolar‟”. 16 A opção do legislador pela primazia das medidas cautelares sobre a prisão preventiva estaria a contemplar a proibição de excesso sem garantir a proteção eficiente do direito à segurança? Ou, de forma mais pragmática: - as medidas cautelares, ao protegerem a liberdade, põem em risco a segurança do cidadão, visto que o Poder Judiciário não terá como exercer o controle sobre quem delas se beneficiar, e que, por outro lado, a prisão preventiva garantiria melhor esse direito fundamental? A resposta a essa questão não pode estar tão somente na interpretação do texto da Lei 12403/11, mas no cotejo deste com a realidade fática, pois “...não apenas a norma é o resultado da interpretação, cujo objeto é o texto, mas também que o intérprete não interpreta apenas os textos, porém, em conjunto com os textos, os fatos”17. Neste sentido, não podemos deixar de analisar o contexto histórico, mormente o período antecedente ao que a Lei em comento foi editada, pois estaríamos sonegando o substrato material que motivou a decisão legislativa que culminou na Lei 12403/2011. Sob um espectro mais geral, a mudança no Código de Processo Penal feita pela Lei 12403/11 segue a lógica da modernização da legislação pátria como um todo, que visa adequar os textos normativos infraconstitucionais à Constituição Federal de 1988, às mudanças sociais e aos avanços tecnológicos próprios da sociedade do início do século XXI, e que não se resume à área penal, mas estende-se a outros os ramos do Direito18. Sob o ponto de vista do conteúdo normativo, especialmente quanto à definição da natureza subsidiária da prisão preventiva em comparação às medidas cautelares 15 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Ed., 1999, p.752. SARLET, ob. cit. p. 400. 17 GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros Ed., 2006, p. 191. 18 Vide: Lei de Falências: 11.101/05; Lei 10.406/02, novo Código Civil; Lei 10.792/03, Lei 11.689/08, Lei 11690/08, Lei 11.719/08, Lei 11.900/09, reforma do CPP; 16 7 não privativas de liberdade, a aprovação do Projeto-de-Lei n.° 4.208/2001 é o ponto culminante das mudanças que já vinham sendo implementada pelas reformas anteriores da legislação processual penal, todas elas originadas dos trabalhos da comissão composta pelos notáveis juristas ADA PELLEGRINI GRINOVER (presidente), PETRÔNIO CALMON FILHO (secretário), ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, ANTONIO SCARANCE FERNANDES, LUIZ FLÁVIO GOMES, MIGUEL REALE JÚNIOR, NILZARDO CARNEIRO LEÃO, RENÉ ARIEL DOTTI, posteriormente substituído por RUI STOCCO, ROGÉRIO LAURI TUCCI e SIDNEY BENETI, que constituída em 20 de janeiro de 2000, pela Portaria n.° 61, e apresentou ao Sr. Ministro da Justiça a exposição de motivos n.° 22, em 25 de janeiro de 2001. Já pelo ângulo do monopólio do poder punitivo estatal, pode-se dizer que a aprovação da Lei 12403/2011 representa um quase-rompimento19 com a política de tolerância zero que vinha sendo implementada no Brasil desde o início da década de 1990 e foi responsável pelo aumento da população carcerária da ordem de 400%, de aproximadamente 100.000 para quase 500.000 presos, dos quais 44% estão presos provisoriamente, sem uma condenação definitiva, segundo dados do Ministério da Justiça. Ao contrário do que muitos poderiam pensar, o processo de encarceramento em massa não guarda qualquer relação com o suposto número do aumento da criminalidade, sendo, antes, uma opção política do Estado capitalista moderno de resolver os problemas sociais, direcionando o aparato do poder punitivo contra a população mais vulnerável às intempéries do mercado. WACQUANT constata que: “...desde os trabalhos pioneiros de Georg Rusche e Otto Kirscheimer, confirmados por cerca de 40 estudos empíricos em uma dezena de sociedades capitalistas, que existe no nível societário uma estreita e positiva correlação entre a deteriorização do mercado de trabalho e o aumento dos efetivos presos – ao passo que não existe vínculo algum comprovado entre índice de criminalidade e índice de encarceramento”.20 Ainda que não seja a proposta do presente trabalho apresentar um estudo sobre as causas da criminalidade nos últimos anos, o que demandaria maior fôlego, interessa- 19 A utilização advérbio de modo justifica-se em razão da emenda substitutiva do Senado Federal que incluiu o inciso IX ao referido art. (anexo II), após já ter sido aprovado na Câmara a redação original feita pela referida comissão. 20 WACQUANT, Löic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 8 nos constatar que o aumento do número da população carcerária está diretamente ligado à precarização do processo de trabalho21. Ainda, a forma como o legislador disciplinou a aplicação das medidas cautelares, evitando, num primeiro momento, que a pessoa seja lançada no cárcere porque praticara este ou aquele crime, visa evitar os efeitos deletérios da prisão sobre o indivíduo, como fator criminógeno e, portanto, de insegurança social. Lembre-se que o grau de gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do agente são requisitos para que o agente possa ser beneficiado por uma das medidas cautelares (art. 282, II). De modo que é possível concluir que as medidas cautelares preservam não só a liberdade, mas também a segurança, ao evitar que os indiciados ou acusados possam sofrer, já num primeiro momento, os efeitos criminógenos do cárcere, permitindo-lhes assim que repensem nos motivos e nas conseqüências de seu ato estando junto a seus familiares, em seu emprego, enfim, sob a custódia da própria sociedade e não dos grupos que se formam no interior das cadeias. Ganha adeptos o argumento de que a proteção insuficiente residiria no fato de que o Poder não teria se preocupado com a falta de estrutura do Poder Judiciário para poder fiscalizar se o beneficiado está, de fato, cumprindo as condições impostas. O que desloca o problema de um juízo abstrato, geral e prévio sobre a escolha do meio (medidas cautelares) pelo legislador para um juízo aparentemente concreto, individualizado e a posteriori sobre a efetividade desse meio, permitindo assim o questionamento da constitucionalidade da norma com base, justamente, na vertente da proteção insuficiente ao bem jurídico segurança, com todas as conseqüências jurídicas que possam advir deste entendimento, desde a declaração incidenter tantum da inconstitucionalidade da norma até a provocação do controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal. Como a proposta do presente estudo cinge-se à análise do conteúdo normativo dos dispositivos de lei que tratam das medidas cautelares e da prisão preventiva, consideramos que a premissa da qual partiria qualquer questionamento sobre a 21 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1981. Idem, As Raízes do Crime. Rio de Janeiro. Editora Forense, 1984. Ibidem, A Criminologia da Repressão: uma crítica ao positivismo em criminologia. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1979. SOUZA SERRA, Marco Alexandre de. Economia Política da pena. Rio de Janeiro: Revan Ed., 2009. TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YONG, Jock. Criminologia Crítica. Rio de Janeiro: Graal, 1980. ZAFFARONI, Eugênio Raul. El Enemigo En El Derecho Penal. Bueno Aires: Ediar, 2006. 9 inconstitucionalidade da referida norma – a proteção ineficiente por conta da falta de aparelhamento do poder judiciário para fiscalizar o cumprimento das medidas cautelares – teria grande chance de ser uma premissa falsa. Isto porque seria humanamente impossível (exceto por meio da monitoração eletrônica) a fiscalização da rotina diária daqueles que estivessem em cumprimento de alguma das medidas cautelares. Mas isso não significa que tal fiscalização não possa ser feita de forma difusa por toda a sociedade e de forma concentrada pelas instituições e pessoas que estão, de alguma forma, vinculados à persecução penal (judiciário, polícia, vítimas, testemunhas, advogados, afins etc.), tal como ocorria ao indiciado que estava sob as condições da liberdade provisória. As medidas que podem ser fiscalizadas diretamente pelo próprio judiciário são “o comparecimento [do beneficiado] em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz” (inc. I), a “proibição de ausentar-se da Comarca...”, além das mais restritivas, como a “internação provisória nos casos em que especifica” e a “monitoração eletrônica”. O discurso da proteção insuficiente não se sustenta em bases sólidas e, a nosso ver, visa deslocar o foco da discussão para a necessidade de se implementar, como regra, a monitoração eletrônica, atendendo, uma vez mais, sob o pretexto de se garantir a segurança, aos interesses de setores políticos mais conservadores e comerciais das empresas que fabricam e operacionalizam o apetrecho que permite a monitoração do indiciado. Sublinhe-se aqui, a aparente inconstitucionalidade da monitoração eletrônica. É bom lembrar que tal medida não integrava o rol das que foram apresentadas pela comissão responsável pela elaboração do Projeto de Lei 4208/2001, e foi inserida no corpo do diploma pelo Senado Federal, que aprovou substitutivo ao Projeto de Lei 111, de 2008, da Câmara dos Deputados, cuja votação já se havia realizado nessa Casa, e inseriu o inciso IX ao art. 319 do CPP. Não por este fato, mas porque tal medida assemelha-se à prisão preventiva, visto que o indivíduo ostentará o apetrecho eletrônico como a uma chaga, um estigma, pensamos que a decisão do legislador de incluí-la no rol das medidas cautelares fere o postulado da proporcionalidade. A natureza dessa medida não se coaduna com a das medidas cautelares, posto ser aplicada sobre o próprio corpo do indivíduo e, neste sentido, pode ser considerada como antecipação de pena e não como cautela, com as mesmas implicações da prisão preventiva sobre os direitos fundamentais que a Lei 12.403/2011 visou preservar. Por isso, o uso da monitoração eletrônica deve ser bastante restritivo, sob pena de desvirtuamento 10 da natureza das medidas cautelares, que é, em última instância, evitar a antecipação de pena e os efeitos estigmatizantes do cárcere, neste caso substituído pela humilhação em obrigar o indiciado a ostentar publicamente o apetrecho da monitoração. Com isso, encerramos a análise da terceira etapa do postulado da proporcionalidade, concluindo que, diante da ponderação do direito fundamental da liberdade frente ao da segurança, o fim proposto pelo legislador ao escolher priorizar a aplicação das medidas cautelares em detrimento da prisão preventiva, mostra-se a mais razoável, pois é a que mais preserva os direitos fundamentais em questão, garantindo ao indiciado a oportunidade de continuar gozando de sua liberdade, enquanto não lhe sobrevenha a decisão definitiva sobre sua culpabilidade, ao mesmo tempo em que evita os fatores criminógenos, que é fonte de insegurança e instabilidade sociais. Ressalvadas as hipóteses de abuso da monitoração eletrônica. CONCLUSÃO Iniciamos nosso trabalho fazendo um breve relato acerca das mudanças promovidas pela Lei 12.403/2011, quanto priorização da medidas cautelares frente à prisão preventiva, pontuando as que as serviram de objeto de análise e estabelecendo a hipótese que pretendíamos demonstrar por meio dele. Em seguida, confrontamos o objeto do estudo com o postulado normativo da proporcionalidade, a fim de demonstra se o mesmo seria adequado, necessário e razoável ao fim a que se propõe, para o que foi necessária a ponderação dos direitos fundamentais mais diretamente atingidos pela norma em questão: a liberdade e a segurança. Concluímos que as medidas cautelares, exceto a monitoração eletrônica, cumprem a função de preservar tanto a liberdade, ao não privar o gozo de tal direito antes de uma decisão definitiva sobre a culpabilidade do indivíduo, quanto a segurança, ao evitar, num primeiro momento, os efeitos criminógenos da prisão, rechaçando, ainda, os argumentos de que a opção do legislador não estaria protegendo de forma eficiente esta última. REFERÊNCIAS ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2005, p. 113 e ss. 11 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editora, 2000, Cap. 12, p. 356 a 397. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2003. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977. GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros Ed., 2006. HÖFFE, Otfried. A Justiça Política: Fundamentos de uma filosofia crítica do direito e do Estado. Trad. Ernildo Stein. São Paulo – Martins Fontes, 2005. SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1981. _____. As Raízes do Crime. Rio de Janeiro. Editora Forense, 1984. _____. A Criminologia da Repressão: uma crítica ao positivismo em criminologia. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1979. _____. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual. Instituto de Criminologia e Política Criminal. Disponível em <http.//www.cirino.com.br>. Acesso em 16/12/2010. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2009. ____________ O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade. Revista Eletrônica sobre Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n.° 9, março/abril/maio, 2007. Disponível na internet: http://www.direitodoestado.com.br/rere.asp. Acesso em: 10/12/2010. 1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Ed., 1999, Cap. III, Tit. VI, p. 751-755. SOUZA SERRA, Marco Alexandre de. Economia Política da pena. Rio de Janeiro: Revan Editora, 2009. TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YONG, Jock. Criminologia Crítica. Rio de Janeiro: Graal, 1980. 12 ZAFFARONI, Eugênio Raul. El Enemigo En El Derecho Penal. Bueno Aires: Ediar, 2006. _____. Um Replanteo Epistemológico em Criminologia (A propósito Del Libro de Wayne Morrison). Iuspenalismo. Disponível em http://www.iuspenalismo.com.ar/doctrina/comentarioraulmorrison.pdf. Acesso em 16/12/2010. 13