1 MODELOS DE ESTADO, CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E SERVIÇO PÚBLICO Raquel Vasconcellos Brambilla1 RESUMO Os instrumentos políticos e jurídicos que possibilitaram o desenvolvimento das noções dos institutos do controle da Administração Pública e do serviço público surgiram com o advento do Estado de Direito, passando por diversas mudanças no decorrer da história. Assim, a pesquisa realizada busca analisar os enfoques conferidos pelas diversas fases do Estado de Direito aos institutos em questão, bem como a noção, o regime jurídico e o tratamento constitucional do serviço público. Por constatar-se no estudo desenvolvido que o serviço público está inserido em uma dimensão teórica e constitucional que o vincula à instrumentalização de direitos fundamentais, é reforçada neste trabalho a necessidade de controle dessa atividade. E, para tanto, será demonstrada a forma pela qual esse controle se configura em uma garantia fundamental e também sua respectiva vinculação com a democracia e os direitos fundamentais. PALAVRAS-CHAVE: modelos de Estado; controle da Administração Pública; serviço público; direitos fundamentais. INTRODUÇÃO O Direito é fruto de produção histórica, ideológica, política e cultural e muito do Direito Público atual é reflexo de idéias que foram consagradas com o surgimento do Estado de Direito, idéias essas que nem sempre são internalizadas e empregadas. 2 É nesse panorama que se insere a apreciação do tema do controle da Administração Pública e do serviço público: tais institutos surgiram com o advento do Estado de Direito e é por isso que o contexto que culminou o nascimento desse Estado será o ponto de partida do presente trabalho. 1 Acadêmica de Direito das Faculdades Integradas do Brasil – Unibrasil, orientada pela Profa. Ms. Adriana da Costa Ricardo Schier. 2 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 30. 2 Passando o Estado de Direito por diversas fases – Estado Liberal, Estado Social e Crise do Estado Social –, que lhe atribuíram diversos enfoques, os institutos do controle e do serviço público, por terem nascido atrelados a ele, também se transformam. Assim, não se pretende abordar de forma exaustiva cada período histórico, mas tão somente descrever alguns dos aspectos que contribuíram para o desenvolvimento das noções de serviço público e do controle da Administração Pública em tais diferentes períodos. 1 ESTADO LIBERAL – A NECESSIDADE DO CONTROLE DA ATUAÇÃO ADMINISTRATIVA Foi só com o surgimento do Estado de Direito, que teve como sua primeira versão o Estado Liberal, que surgiram os mecanismos que possibilitaram o desenvolvimento o desenvolvimento do instituto do controle da Administração Pública, bem como da noção de serviço público adotada neste trabalho. Nesse diapasão, tem-se que os primórdios da noção podem ser pensados a partir da Idade Média. Tal período foi marcado por um poder descentralizado3: as ordens do monarca, da Igreja, do senhor feudal, das corporações de ofício e de outros poderes menores deveriam ser seguidas. 4 Isso não apenas gerava uma insegurança jurídica, pelo fato das normas virem de todos os lados, como também um grande impasse ao desenvolvimento comercial, pois os comerciantes acabavam por pagar impostos em cada feudo que passavam para exercer suas funções. 5 Foi nessa situação que o conceito de soberania se tornou necessário – um poder centralizador e independente, que sobressaísse aos outros, sobre um determinado povo, em um determinado território, 6 e que estabelecesse o monopólio 3 Característica que também pode ser chamada de “descentralização política” – expressão utilizada por Alexandre Santos de ARAGÃO. (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 27.) 4 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do Estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 23-24 e 155; SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos..., p. 33. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 70. 6 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 24. 3 dos tributos e do exército nacional, a unificação da moeda, 7 dos pesos e das medidas, além de exercer a atividade de produção de leis e de dizer o direito 8 – e a figura chave para exercer essa soberania foi o rei – autoridade que também tinha grande interesse na centralização política para fortalecer sua influência decisória, o que só foi possível através do financiamento da mais nova classe da sociedade européia, a burguesia. 9 Em outras palavras, um poder capaz de realizar uma “organização burocrática”, 10 distinta da sociedade civil, que monopolizasse “(...) alguns serviços essenciais para a manutenção da ordem interna e externa, tais como a produção do direito através da lei (...)”. 11 Assim, a partir das deficiências da sociedade política medieval, iniciava-se um novo formato do Estado – o Moderno, que além do poder centralizado, caracterizam-se, também, como seus elementos essenciais o território e o povo. 12 Nesse período já era possível identificar atividades materialmente comparáveis com aquelas que hoje são prestados através de serviços públicos. Por evidente, existiam concepções jurídica e política distintas, não sendo prestadas necessariamente pelo Estado. Um grande exemplo são as atividades assistencialistas prestadas pela Igreja. 13 Ainda assim, parece certo que não há como identificar nesse período, o serviço público como uma atividade que caracterizasse o modelo de Estado. Modelo este que pelo fato de existir “uma identificação absoluta entre o Estado e o monarca” 14 , ou seja, por este exercer a soberania estatal, ficou conhecido como Absolutista. 15 Exercendo todos os poderes, o monarca se apropriava do Estado como uma propriedade, assim como os senhores feudais faziam no período medieval, o que fez garantir a “unidade territorial do reino”. 16 7 Ibidem, p. 25 e 29. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos..., p. 35. 9 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 24-25. 10 Ibidem, p. 29. 11 Ibidem, p. 25. 12 Ibidem, p. 24. 13 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 29-31. 14 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 25. 15 Ibidem, p. 44; SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos..., p. 34; MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 42. 16 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 44-45. 8 4 Autores da época, como Nicolau MAQUIAVEL e Jean BODIN desenvolveram obras que demonstram a amplitude e o significado dessa situação. 17 MAQUIAVEL, com a obra Il príncipe (O príncipe), de 1513, foi pioneiro a desenvolver, por métodos empíricos, o conceito político de Estado e justificou “(...) a organização das monarquias nacionais absolutas como forma política do Estado moderno que permitiria e facilitaria um ulterior desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo.” 18 BODIN, com a obra Les Six Livres de la Republique (Os Seis Livros da República), de 1576, foi o primeiro teórico a falar do poder soberano do Estado, 19 tratando-o como perpétuo, inalienável e imprescritível, a fim de fundamentar a razão política do Estado moderno. 20 Ademais, conforme Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS, A base de sustentação do poder monárquico absolutista estava alicerçada na idéia de que o poder dos reis tinha origem divina. O rei seria o “representante” de Deus na Terra, o que lhe permitia desvincular-se de qualquer vínculo limitativo de sua autoridade. Dizia Bodin, um de seus doutrinadores, que a soberania do monarca era perpétua, originária e irresponsável em face de qualquer outro poder terreno. Portanto, pode-se dizer que o Estado absolutista, de um ponto de vista descritivo, seria aquela forma de governo em que o detentor do poder exerce este último sem dependência 21 ou controle de outros poderes, superiores ou inferiores, como refere Pierangelo Schiera. (grifos do autores.) Tratava-se, então, de um poder sem limites – internos e externos – e, conseqüentemente, juridicamente irresponsável e incontrolável, o que significa dizer que não era possível um indivíduo questionar a (in)validade de um ato ou pedir o ressarcimento por um prejuízo causado pelo Estado, ou seja, não existia demanda contra o Estado. 22 Esse poder, por estar concentrado nas mãos do rei, era exacerbado, arbitrário, independente, ilimitado, irresponsável, incontrolável, perpétuo, originário e 17 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos paradigmas em face da globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 47. 18 Ibidem, p. 49. 19 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 156; SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 51. 20 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 51. 21 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 45. 22 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos…, p.34. 5 impunha qualquer tipo de obrigação ou restrição aos particulares e, portanto, não havia direitos individuais em face do Estado. 23 Veja-se que é contra essas circunstâncias que se impõem os liberais, e um dos institutos que permitiu a limitação desse poder exacerbado foi o controle da atividade administrativa. Diante dessas circunstâncias, apesar da soberania do monarca ter possibilitado o nascimento do capitalismo – que nasceu como mercantil – ao favorecer os interesses, principalmente econômicos, da burguesia, esta, carecendo de liberdade, passou a desconfiar do poder e já não se satisfazia mais apenas com o poder econômico, almejando, também, o poder político. 24 Autores da época, como John LOCKE, Charles de MONTESQUIEU e JeanJacques ROUSSEAU, influenciaram nas lutas contra esse contexto de opressão estatal. 25 John LOCKE, em sua obra, no século XVII, defendeu que só com a limitação do poder estatal, protegendo-se os direitos individuais relacionados à vida e à propriedade, é que existiria a liberdade. 26 E para que houvesse um certo controle do Estado, propôs a separação dos poderes em mãos diferentes, a fim de evitar que a constituição e a execução das leis fossem adequadas aos próprios interesses. 27 Charles de MONTESQUIEU, com o L’esprit des lois (O espírito das leis), de 1747, inovou e contribuiu com a sua teoria de separação dos poderes inserida num sistema de freios e contrapesos, 28 sistema esse que se configura na “(...) cooperação e controle mútuo entre as funções desempenhadas, buscando-se o equilíbrio das instâncias governamentais e a concretização dos princípios da liberdade política.” 29 Jean-Jacques ROUSSEAU, em Du contrat social (Do contrato social), de 1762, retirou a soberania das mãos do monarca para colocá-la nas mãos do povo, 23 30 Idem. STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 46-47; BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed., São Paulo: Malheiros, 2001. p. 68. 25 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 47. 26 Ibidem, p. 60. 27 Ibidem, p. 63. 28 Ibidem, 66-67. 29 Ibidem, p. 66. 30 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 46 e 156. Tal teoria demonstra que o conceito de soberania apresenta diversas facetas dependendo do contexto em que está inserido, o que não significa que não exista um ponto de intersecção entre as mesmas, que, na 24 6 criando o conceito de “vontade geral”, que se configura na vontade do povo como vontade soberana do Estado. 31 também deveria ser ilimitada. E assim como era o poder real, a vontade popular 32 Isso significa que, em sua teoria, o Estado é controlado pela vontade do povo. Portanto, as idéias da Reforma Protestante e do Renascimento, com um “direito natural laicizado”, 33 do Iluminismo e das teorias acerca do contrato social influenciaram consideravelmente as revoluções burguesas. A Constituição, então demandada, era vista como expressão do contrato social. 34 Nesse sentido, aduz Clèmerson Merlin CLÈVE que A proposta do Estado Constitucional era a de limitar o poder político, mantendo-o concentrado. E isto ocorreria da seguinte forma. Primeiro, tratava-se de organizar o político de tal modo que o poder se encarregasse de controlar o próprio poder. Aqui, sustenta-se o núcleo da teorização conducente à separação dos poderes. Depois, deslocando a soberania 35 das mãos do monarca para as mãos do povo ou da nação. As revoluções burguesas cumpriram, então, um importante papel no início das transformações, pois foram elas que deram ensejo ao controle do poder do Estado pelos destinatários das normas, ao obrigar os indivíduos encarregados de exercer o poder político a obedecer normas jurídicas cujo fim é limitar o poder. 36 As Revoluções Americana e Francesa, que aconteceram, respectivamente, em 1776 e 1789, são consideradas as mais importantes delas, a ponto da Revolução Francesa ser considerada como o marco inicial da Idade Contemporânea e talvez seja por isso que se convencionou que ela pôs fim ao Estado Absolutista, dando início à nova fase do Estado Moderno – o Estado Liberal. 37 Conforme explica Carlos Ari SUNDFELD, “A transformação radical da regulação do poder político, dando-lhe a feição que tem hoje e ensejando a construção da ciência do direito público, ocorrerá na Idade Contemporânea, sendo lição de Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS, um “poder supremo” e uma “qualidade do poder estatal”. (Ibidem, p. 155-156.) 31 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 70. 32 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.150. 33 BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 67. 34 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 49. 35 CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo no estado contemporâneo e na constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 26. 36 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos…, p. 35. 37 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 45-46. 7 as Revoluções Americana e Francesa (e as Constituições delas resultantes) seus marcos históricos mais notáveis.” 38 Assim, nascia o Estado de Direito, que teve como sua primeira versão o Estado Liberal, sendo este, por sua vez, a segunda versão do Estado Moderno. 39 O Estado de Direito submete-se ao Direito, respeitando “os limites de sua atividade” 40 e da “esfera de liberdade dos indivíduos” 41 , ao contrário do Estado Absolutista, que não se submetia ao Direito, sujeitando-se a este apenas os indivíduos, que não tinham direitos em face do Estado. 42 Para que essa idéia do Estado de Direito seja efetiva é imprescindível que haja: a separação das funções do poder (legislar, administrar e julgar), para que a autoridade que administra ou julga não possa alterar a lei no momento de sua aplicação e que exista autoridade que não exerça a função legislativa ou administrativa para que possa “julgar irregularidades da lei e de sua aplicação”; 43 um diploma normativo superior ao próprio Estado – a Constituição –, estruturando o Estado e garantindo direitos individuais, para que a lei não possa extinguir o poder do administrador e do julgador e nem os direitos dos indivíduos em face do Estado. 44 Carlos Ari SUNDFELD bem define o Estado de Direito: “(...) criado e regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais), onde o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos, que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de ser necessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de direitos, possam opô-los ao próprio Estado.” 45 Nesse sentido, em sua concepção, os elementos essenciais caracterizadores do Estado de Direito são a supremacia constitucional, a separação dos poderes, a superioridade da lei e a garantia dos direitos individuais.46 38 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos..., p. 35. BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 41; STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 46. 40 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos..., p. 38. 41 Idem. 42 Ibidem, p. 34 e 37. 43 Ibidem, p. 38. 44 Idem. 45 Ibidem, p. 38-39. 46 Ibidem, p. 37-49. 39 8 Vale dizer que, para SUNDFELD, os elementos da supremacia constitucional, da separação dos poderes e da superioridade da lei só existem em razão do elemento da garantia dos direitos individuais. 47 No mesmo sentido, defende Jorge Reis NOVAIS que “(...) só haverá Estado de Direito quando o objectivo de protecção da liberdade e direitos fundamentais do cidadão mobiliza na sua prossecução e garantia o empenhamento do Estado.” 48 Com isso, apesar de apresentar um enfoque liberal, o Estado Liberal de Direito não pode se desvirtuar da lógica comum dos modelos de Estado de Direito. 49 No que tange ao referido enfoque, ele advém do contexto que fez nascer o Estado de Direito, o qual atendeu aos interesses burgueses, garantindo, portanto, “(...) um núcleo de direitos fundamentais interpretados e integrados à luz dos valores supremos da iniciativa privada, da segurança da propriedade e das exigências da calculabilidade requeridas pelo funcionamento do sistema capitalista (...)”. 50 É só nesse contexto que, segundo Dinorá Adelaide Mussetti GROTTI, é possível identificar o surgimento de atividades de serviço público, pois o Estado se viu obrigado a prestar as atividades assistencialistas – como as de saúde e educação – que até então eram realizadas pelas associações (profissionais, políticas ou culturais) e estas eram antagonizadas por serem consideradas como um empecilho à liberdade individual. 51 Para tanto, foi construída uma ideologia para dar sustentação ao Estado Liberal, tendo alguns pressupostos, que podem ser citados como exemplos as separações entre Estado e economia, Estado e moral e Estado e sociedade civil. 52 A primeira separação foi teorizada por Adam SMITH, tendo como base a liberdade empresarial e concorrencial, a fim de construir algo que propiciasse o capitalismo concorrencial. 53 Para SMITH, o Estado tem o dever apenas de assegurar a “paz externa e a segurança interna” 54, por entender que “(...) é da livre iniciativa de cada membro da sociedade e do funcionamento espontâneo do 47 Ibidem, p. 48. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito: do estado de direito liberal ao estado social e democrático de direito. Coimbra: Coimbra, 1987. p. 67. 49 Ibidem, p. 67-68. 50 Ibidem, p. 68. 51 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Op. cit., p. 20 e 23-24. 52 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 51-52. 53 Ibidem, p. 52. 54 Ibidem, p. 54. 48 9 mercado que resultará automaticamente a máxima vantagem para todos.” 55 Tal “funcionamento espontâneo” se configuraria na idéia de SMITH de “mão invisível”, 56 que, segundo Atilio A. BORON, acreditava que distribuiria a riqueza de forma harmoniosa, diminuindo as desigualdades sociais 57 - e, aqui, pode-se visualizar um fundamento ético na teoria de SMITH. Assim, qualquer ação estatal que ultrapassasse os limites do seu dever era considerada como prejudicial à sociedade. 58 A segunda separação foi construída por KANT. Para ele, o Estado deveria se desvincular de qualquer moral social para assegurar o Direito, que seria sua única finalidade, e isso possibilitaria a coexistência de liberdades individuais, permitindo com que cada indivíduo escolhesse “(...) seus próprios critérios morais e procurar a felicidade pessoal.” 59 A terceira separação decorre das duas primeiras, pois as autonomias econômicas e morais dos indivíduos se desenvolvem na sociedade civil. 60 Nas palavras de Jorge Reis NOVAIS, “(...) as duas premissas da separação Estadoeconomia e Estado-moralidade – intimamente ligadas à exigência de protecção dos direitos e garantias individuais – convergem no projecto de racionalização e limitação do Estado, no quadro de uma terceira separação que constitui o pano de fundo da caracterização liberal do Estado de Direito – a separação Estado-sociedade.” 61 Wilhelm Von HUMBOLDT teoriza esta separação e defende a idéia de que a ação do Estado que derrubou o absolutismo é contrária às suas finalidades e faz surtir os efeitos daquele Estado.62 Em resumo, para HUMBOLDT, nas palavras de Jorge Reis NOVAIS, “Quanto mais o estado procura responder às insuficiências da sociedade civil, mas essas insuficiências se multiplicam e novos males se revelam (...)”. 55 63 Ibidem, p. 53. Idem. 57 BORON, Atilio A. Os “novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo II: que Estado para que democracia? Petrópolis: Vozes, 1999. p. 29-30. 58 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit.,p. 54. 59 Ibidem, p. 60. 60 Ibidem, p. 63; STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 25. 61 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 67. 62 Ibidem, p. 64-65. 63 Ibidem, p. 65. 56 10 A partir desses três pressupostos ideológicos do Estado Liberal, pode-se afirmar que para o seu desenvolvimento era necessária a menor intervenção possível do Estado na sociedade e, por conseqüência, na economia e na moral dos indivíduos e a ação do Estado, quando necessária, deveria ser calculável e previsível. 64 Nesse momento, o controle da Administração Pública no Estado Liberal implicava que o Estado fosse abstêmio em relação à economia, à moral e, por decorrência, à sociedade, a fim de que fossem garantidos os direitos fundamentais. Assim, os direitos fundamentais que esse Estado pretendeu assegurar foram os individuais, conhecidos também como direitos fundamentais de primeira geração, 65 que, segundo Alexandre Santos de ARAGÃO, “(...) impunham essencialmente deveres de abstenção ao Estado (...).” 66 Tais direitos, na concepção de Paulo BONAVIDES, são os direitos de liberdade, quais sejam, os “direitos civis e políticos” 67 , dos quais os indivíduos são titulares, podendo opô-los em face do Estado.68 Pelo fato do indivíduo ter sido valorizado, institucionalizaram-se direitos civis e políticos. Foram garantidos: o fim da escravidão; as liberdades religiosa, de imprensa, de associação, de manifestação e de discurso (esta também chamada de “liberdade de expressão”); a inviolabilidade de domicílio e de propriedade. Ampliaram-se a educação e o direito ao voto até a chamada “universalização”. Foram criadas constituições escritas limitando e responsabilizando os Estados. Consolidou-se como modelo de governo a forma representativa. 69 Por conta do enfoque liberal dado ao Estado, institucionalizaram-se liberdades econômicas. Eliminaram-se as taxações das mercadorias, expandindo-se os mercados, inclusive mundial. As trocas foram facilitadas pelas inovadoras práticas bancárias. Ocorreu um desenvolvimento econômico, que criou condições para a 64 65 p. 562. 66 Ibidem, p. 68. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16. ed., São Paulo: Malheiros, 2005. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 26. BONAVIDES, Paulo. Curso..., p. 563. 68 Idem. É claro que a perspectiva de tais direitos nesta fase era formal e que não eram assegurados a todos os cidadãos, o que, ainda assim, não o desqualificava como conquistas sociais nesse período. 69 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 58-60; DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 277. 67 11 Revolução Industrial, acarretando um desenvolvimento produtivo e técnico-científico. O desenvolvimento técnico-científico acarretou o aumento do nível de vida das pessoas, da população mundial, das cidades e das comunicações. 70 Ainda no que tange ao enfoque liberal atribuído ao Estado e às liberdades econômicas, o serviço público na época era uma atividade que, por não ser lucrativa, era prestada pelo Estado, servindo de base para o desenvolvimento do capitalismo concorrencial. Portanto, cabe citar a explicação de Jorge Reis NOVAIS acerca dessa situação: Porém, a separação política-econômica – mesmo considerando só o modelo teórico – não é tão absoluta como uma certa leitura de SMITH sugere. (...) A. SMITH previa a criação e manutenção de serviços e instituições que, por não serem lucrativos, não interessavam à iniciativa privada. Ora, nesta constatação, SMITH reconhece limites às possibilidades de auto-regulação do mercado, já que esta não abrangia a totalidade da esfera econômica; as tarefas não lucrativas, onde se incluíam as infra-estruturas necessárias ao funcionamento da economia, tais como a construção de portos, vias férreas, pontes e os seguros sociais, 71 continuavam a ser asseguradas pelo domínio público. Complementando essa idéia, Alexandre Santos de ARAGÃO, explica que como a burguesia dominava politicamente o Estado, este atuava para proteger a classe de seus únicos eleitores, construindo estradas, meios de comunicação e de transporte, etc. 72, e que na esfera social o Estado Liberal “(...) desempenhava ação meramente voluntarista, para melhorar situações individuais de maior gravidade, sem pretensões de efetuar mudanças na realidade social e econômica.” 73 A partir daí, pode-se tirar duas conclusões: que o serviço público tratava-se da “infra-estrutura necessária para o progresso dos negócios”, 74 bem como que o 75 controle da Administração Pública era feito pela burguesia. Em síntese, o Estado Liberal (i) se justificou pelo controle do poder do Estado, (ii) tendo como funções a estruturação do Estado e a garantia, de forma abstêmia, dos direitos fundamentais e (iii) como elementos estruturais o Estado de Direito – princípio da legalidade – e a tripartição de poderes. 70 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 58-60. NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 191.; DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 277. 71 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 54-55. 72 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 33-34. 73 Ibidem, p. 33. 74 Idem. 75 Ibidem, p. 33-34. 12 Assim, no século XIX, os liberais (incluindo-se os movimentos e os partidos) modificaram a estrutura política, social e econômica da Europa e a comunidade internacional. 76 2 ESTADO SOCIAL E A PROLIFERAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS Segundo Paulo BONAVIDES, o conceito de liberdade atribuído pela burguesia em suas Revoluções começou a ser criticado, por conter erros, lacunas, imperfeições e um normativismo vazio, que era incapaz de “(...) prover as necessidades e reivindicações sociais das classes desfavorecidas, maiormente aquelas que compunham os escuros quadros da miséria urbana e proletária nas minas e fábricas da chamada Revolução Industrial.” 77 Assim, no século XIX foi possível observar tanto a consolidação e a expansão do modelo liberal quanto a expansão dos malefícios aos segmentos populares em decorrência do modelo econômico vigente. 78 Isso se deu em razão do Estado Liberal ser um Estado protetor da burguesia, ao desempenhar a função de manutenção das relações de produção do capitalismo concorrencial, que aparece, por exemplo, em sua interferência no âmbito do trabalho (coibindo a greve, a associação sindical, entre outras ações coletivas de trabalhadores) e na ação de colonização (utilizando as colônias como provedoras de matérias-primas). Por isso, a idéia de separação entre o Estado e a economia, proposta por Adam SMITH, deve ser relativizada.79 Nesse sentido, as correntes marxistas, conforme aduz Jorge Reis NOVAIS, denunciaram que “(...) a relativa autonomia do aparelho de estado liberal está directamente relacionada com a forma particular de dominação burguesa.” 80 No mesmo sentido, Atilio A. BORON ensina que a teoria liberal foi refutada pela realidade, pois “(...) as desigualdades nos sucessivos países incorporados à 76 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 58. BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 67. 78 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 59-60. 79 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 56-57. 80 Ibidem, p. 57. 77 13 órbita do capitalismo tornaram-se cada vez maiores e o passar do tempo só as fazia se agigantar.” 81 Além disso, “(...) o Estado jurídico Kantiano se propunha garantir a cada indivíduo a liberdade como homem, a igualdade como súdito e a independência como cidadão (...)”. 82 Constituindo-se como cidadão apenas quem tem direito de voto, por conseqüência, o Estado de Direito de KANT garantia apenas aos burgueses a plenitude dos atributos jurídicos da liberdade, igualdade e independência, enquanto os outros indivíduos somente os possuiriam se se transformassem em burgueses. 83 No mesmo sentido, Paulo BONAVIDES afirma que a liberdade política restrita não era efetiva por não solucionar as incoerências sociais, principalmente dos que não possuíam bens. 84 Por fim, o Estado de Direito de HUMBOLDT é definido pelos contornos de sua função, que é a de proteger o ordenamento jurídico, tendo este, por sua vez, a reduzida função de demarcar e garantir o âmbito de “liberdade e propriedade individual”. 85 No mesmo sentido, Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS descrevem que o Estado Liberal possuía uma atividade reduzida e previsível, que se configurava na manutenção da ordem, da paz e da segurança e na proteção das liberdades civis e econômica. Assim, a intervenção estatal era exceção. Além disso, pregava-se que qualquer ação desse Estado que ultrapassasse esse rol de tarefas desrespeitava os direitos do indivíduo. 86 A própria essência do constitucionalismo, nessa época, segundo José Joaquim Gomes CANOTILHO, era a segurança da propriedade e de outros direitos liberais. 87 Portanto, considerando-se que a função Liberal se reduzia a garantir à liberdade e à propriedade, os serviços públicos até então existentes não davam conta de inúmeras necessidades coletivas vinculadas diretamente ao respeito à dignidade da pessoa humana. 81 BORON, Atilio A. Op. cit., p. 30. NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 62. 83 Ibidem, p. 57. 84 BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 188. 85 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 67. 86 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 56-57 e 62. 87 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 99. 82 14 Conforme Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS, tais fatos geraram “uma postura ultra-individualista, assentada em um comportamento egoísta; 88 uma concepção individualista e formal da liberdade onde há o direito, e não o poder de ser livre; e a formação do proletariado em conseqüência da Revolução Industrial e seus consectários, tais como a urbanização, condições de trabalho, segurança pública, saúde, etc.”, 89 (grifos dos autores) acabando com os “(...) modos de vida antigos e tradicionais.” 90 (grifos dos autores.) Além disso, (...) na medida em que o sufrágio se estendeu a novos setores sociais, os partidos políticos começaram a surgir, buscando votos de modo a governar na base do que ofereciam ao eleitorado, tornado os governos suscetíveis às solicitações populares, o que vai impor uma mudança de rota no projeto do Estado Mínimo no sentido da intervenção do poder público 91 estatal em espaços até então próprios à iniciativa privada. (grifos dos autores). Assim, a partir do alargamento da participação política, a justiça social foi reivindicada, pois era necessário satisfazer as necessidades básicas que não eram satisfeitas pela simples iniciativa dos indivíduos ou pelo mercado. 92 Portanto, graças às lutas populares, incluindo movimentos operários e socialistas, e iniciativas políticas de reforma social, atividades positivas de auxílio e serviços mútuos começaram a ser realizadas pelo Estado, principalmente na Europa, já em meados do século XIX e se intensificaram no século XX, modificando o Estado Liberal. 93 Vale dizer que grande parte dessas iniciativas, atividades e serviços se configuraram na ampliação do rol de serviços públicos. Tais ações estatais interventivas sobre e no domínio econômico, sendo que algumas delas eram até então apresentadas como de competência da iniciativa privada, aconteceram para assegurar a continuidade do mercado que estava sendo ameaçado. 94 Todavia, Paulo BONAVIDES explica que todos se beneficiam com a reconciliação, através da democracia, entre o capital e o trabalho: as reivindicações 88 No mesmo sentido, Alexandre Santos de ARAGÃO narra que tratava-se de “(...) uma sociedade de indivíduos e não de grupos, embebida toda numa consciência anticoletivista.” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 32-33.) 89 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 62. 90 Idem. 91 Ibidem, p. 59-60. 92 Idem. 93 Ibidem, p. 58-60 e 62; NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 189-190. 94 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 62. 15 mais urgentes dos trabalhadores são atendidas e o capitalismo garante sua sobrevivência. 95 Entre essas reivindicações estavam a prestação de atividades que viriam a se configurar como serviços públicos – diretamente relacionados aos direitos sociais. Assim, verificou-se “(...) ao progressivo estabelecimento por parte do Estado dos seguros contra acidentes de trabalho ou doenças profissionais e ao aparecimento de uma legislação laboral tendente a refrear os excessos mais chocantes do capitalismo selvagem, especialmente nos domínios dos horários de trabalho e do trabalho infantil e feminino.” 96 Nesse período, era possível identificar “(...) as primeiras propostas de fundamentação de uma política de reforma social na teorias de pensadores (...) ou na prática política dos movimentos socialistas ou das associações inspiradas na doutrina e na acção social da Igreja.” 97 O Estado começou a intervir nas relações produtivas: regulação da jornada de trabalho, da segurança no trabalho e do trabalho de menores; oficinas públicas para resolver o problema do desemprego. Assim, a atuação do Estado nos âmbitos social e econômico, não apenas produzindo normas, mas também como agente econômico, relativizou as liberdades contratual e econômica. 98 Contudo, na concepção de Jorge Reis NOVAIS, “(...) só o impacto provocado pela I Guerra Mundial estimularia uma alteração radical na forma de conceber as relações entre o Estado e a Sociedade, podendo-se dizer que ela marca o termo do optimismo liberal fundado na ideia de uma justiça imanente às relações sociais autónoma e livremente desenvolvidas a partir da auto-regulação do mercado.” 99 E complementa: (...) as próprias necessidades da Guerra impeliam o Estado a uma intervenção decisiva na vida económica (com as restrições à liberdade contratual e ao direito de propriedade, a disciplina pública de importantes sectores industriais e da comercialização da generalidade dos bens, o fraccionamento político dos mercados internacionais), a qual, longe de cessar com o termo do conflito, seria perpetuada pelas exigências de reconstrução e, 100 posteriormente, pela nova crise ecónomica e nova Guerra Mundial. 95 BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 189. NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 189. 97 Ibidem, 189-190. 98 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 59. 99 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 190-191. 100 Ibidem, p. 191-192. 96 16 Portanto, conforme bem ensina NOVAIS, é só neste momento que o Estado admitia “(...) a necessidade de superar os pressupostos do liberalismo e assumia, no objectivo da prossecução da justiça social, a via para a integração das camadas até então marginalizadas. E este objectivo era tanto mais inadiável quanto, nas convulsões que atravessavam a Europa, era cada vez mais presente a referência à alternativa soviética de resolução da questão social.” (grifos do autor). 101 Além do mais, “(...) o que a nova época exigia era não apenas um acréscimo das intervenções do Estado, mas uma alteração radical na forma de conceber as suas relações com a sociedade.” 102 Por essa razão, o Estado Liberal era incapaz de satisfazer tal contexto.103 Por conseguinte, a crise do Estado Liberal e as demandas igualitárias deram ensejo a uma série de mudanças nas “formas de exercício do poder e de políticas públicas” 104 , transformando o âmbito dos direitos e resultando na criação de um novo modelo de Estado – o Estado Social. 105 Segundo Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS, (...) a percepção minimalista do Estado, atuante apenas para a segurança individual, é, senão, desfeita, deslocada, pois a sua função passa a ser a de removedor de obstáculos para o autodesenvolvimento dos homens pois, com um maior número de indivíduos podendo usufruir das mais altas liberdades, estar-se-ia garantindo efetivamente o cerne liberal, qual seja: a liberdade individual, dando-se valor novo e fundamental à igualdade de 106 oportunidades e a uma certa opção solidária. (grifos dos autores). Assim, o Estado encontrava-se em crise e essa crise implicou na crise da noção de serviço público, pois, se num primeiro momento algumas atividades comerciais e industriais, próprias da iniciativa privada, passaram a ser de sua titularidade, posteriormente percebeu-se que não possuía uma suficiente organização para prestar tais atividades. Com isso, admitiu-se a prestação de serviços públicos por particulares sem que a atividade fosse submetida a um regime jurídico de direito público. 107 101 Ibidem, p. 192. Ibidem, p. 193. 103 Idem. 104 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 51. 105 Ibidem, p. 51 e 59. 106 Ibidem, p. 57. 107 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Op. cit., p. 53-54. 102 17 Segundo Paulo BONAVIDES, a noção de Estado Social surge no momento “(...) em que se busca superar a contradição entre a igualdade política e a desigualdade social...”. 108 Ainda nas palavras do mesmo autor, “À medida, porém, que o Estado tende a desprender-se do controle burguês de classe, e este se enfraquece, passa ele a ser, consoante as aspirações de Lorenz von Stein, o Estado de todas as classes, o Estado fator de conciliação, o Estado mitigador de conflitos sociais e pacificador necessário entre o trabalho e o capital.” 109 Logo, como bem ensina Jorge Reis NOVAIS, “É na plena assunção desde novo princípio de socialidade e na forma como ele vai impregnar todas as dimensões da sua actividade – e não na mera consagração constitucional de medidas de assistência ou no acentuar da sua intervenção económica – que o Estado se revela como <<Estado social>>.” 110 Assim, o que dá sentido ao Estado Social é “uma intenção de estadualização da sociedade e recíproca socialização do Estado”, superando, assim, o pressuposto liberal de separação Estado-sociedade. 111 Vale dizer que dessa forma também supera-se outro pressuposto liberal, qual seja a separação Estado-economia, 112 pois converte-se em Estado econômico, se envolvendo na produção (como Estado empresário) e intervindo na economia “em função das exigências sociais e dos objectivos políticos por ele definidos.” 113 Este projecto, orientado para a prossecução de uma justiça social generalizada, desenvolve-se não apenas numa política económica com o sentido referido, mas também na providência estadual das condições de existência vital dos cidadãos, na prestação de bens, serviços e infra-estruturas materiais, sem os quais o exercício dos direitos 114 fundamentais não passa de uma possibilidade teórica e a liberdade de uma ficção (...). Com o Estado Social, vieram os direitos sociais, também chamados de direitos fundamentais de segunda geração, 115 e, por isso, verificou-se um grande aumento de serviços públicos. 116 Tais direitos, na concepção de Paulo BONAVIDES, alicerçados no princípio da igualdade, “São os direitos sociais, culturais e 108 BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 185. Idem. 110 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 193. 111 Ibidem, p. 188-189. 112 Ibidem, p. 192. 113 Ibidem, p. 193. 114 Ibidem, p. 194. 115 BONAVIDES, Paulo. Curso..., p. 564. 116 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 41. 109 18 econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades (...)”. 117 No mesmo sentido, Asa Cristina LAURELL conceitua os direitos sociais como “(...) o direito de ter acesso aos bens sociais pelo simples fato de ser membro da sociedade, e a obrigação desta última de garanti-los através do Estado.” 118 Cabe ressaltar que o serviço público e, portanto, os direitos sociais estão diretamente relacionados com as políticas sociais, estas compreendidas por Asa Cristina LAURELL como “(...) o conjunto de medidas e instituições que têm por objeto o bem-estar e os serviços sociais.” 119 Ainda no que tange aos direitos sociais, Mário Lúcio Quintão SOARES defende que os mesmos são direitos fundamentais, “(...) pois não tendem a absorver ou anular a liberdade individual, mas visam garantir o pleno desenvolvimento da subjetividade humana.” 120 Relacionado-o com os direitos sociais, o Estado Social, nas palavras de Paulo BONAVIDES, confere (...) os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia a as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios 121 que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual (...). De forma complementar, Jorge Reis NOVAIS expõe que (...) apesar das variações decorrentes de situações particulares, o Estado deve, na medida comportada pelas circunstâncias objectivas, procurar garantir: os serviços e os sistemas essenciais ao desenvolvimento das relações sociais na complexidade da sociedade actual (desde os tradicionais serviços de transportes e fornecimento de água e eletricidade, à protecção do ambiente, aproveitamento dos tempos livres e fruição dos bens culturais); a segurança e estabilidade das relações de produção face às contingências da vida económica, às flutuações do crescimento e aos antagonismos sociais, sem prejuízo da iniciativa e parcialidade no incremento de políticas económicas e fiscais conducentes à redistribuição da riqueza; um conjunto de prestações sociais tendentes a garantir uma vida digna e protegida, independentemente da capacidade ou viabilidade da integração individual 117 BONAVIDES, Paulo. Curso..., p. 564. LAURELL, Asa Cristina. Avançando em direção ao passado: a política social do neoliberalismo. In: _____ (Org.). Estado e políticas sociais no liberalismo. Trad. Rodrigo Leon Contrera. São Paulo: Cortez, 1995. p. 155. 119 Ibidem, p. 153. 120 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 200. 121 BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 186. 118 19 no processo produtivo, dos imponderáveis das condições naturais ou das desigualdades sectoriais ou regionais (desde o salário mínimo e seguros sociais às prestações no domínio 122 da saúde, habitação e educação). Neste contexto, segundo Mário Lúcio Quintão SOARES, “(...) as liberdades públicas deverão ser asseguradas em consonância com a atuação e a presença do Estado para garantir à grande maioria da população o acesso a bens e direitos que, sem sua interferência, dificilmente seriam alcançados.” 123 Ainda sobre o tema, explica que o espaço de aplicação dos direitos à igualdade e à propriedade é aumentado, através de mudanças no sistema econômico capitalista. 124 Cabe ressaltar, conforme bem destaca Jorge MIRANDA, que esse novo modelo de Estado é uma segunda versão de Estado de Direito, pelo fato da liberdade individual, da limitação do poder estatal e do povo – como titular do poder político – continuarem a ser valores fundamentais. 125 Se o povo e a limitação do poder estatal continuam a ser valores fundamentais nesse modelo de Estado, por conseqüência continua a existir um controle sobre a Administração Pública, tendo, no entanto, enfoques diferentes dos existentes no modelo liberal. 126 A separação dos poderes, por exemplo, assume, agora, muito mais a posição de evitar o exercício arbitrário, a concentração e o excesso do poder, em detrimento da divisão muito mais mecanicista que fora realizada no modelo liberal, possibilitando o pluralismo e uma certa interferência de um poder no outro na realização das funções, 127 que tem como fim a garantia do interesse público. Sobre o assunto, Jorge Reis NOVAIS narra que “(...) a instrumentalização e politização da lei, requeridas pelo progressivo papel intervencionista do Estado social, implicam a desvalorização do sentido material da lei (...) em favor de um entendimento que privilegia a concordância, material e formal, da lei com as normas e princípios constitucionais.” 128 (grifos do autor.) 122 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 196. SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p.199. 124 Idem. 125 MIRANDA, Jorge. Op. cit., p.53. 126 NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 214. 127 Idem. 128 Ibidem, p. 215. 123 20 Dessa forma, se é acoplado o enfoque social ao controle da Administração Pública nesse modelo de Estado de Direito, o controle está à serviço também dos direitos sociais, da igualdade material – e não apenas formal –, o que significa dizer que o Estado Social é, com base nos ensinamentos de Jorge Reis NOVAIS, o único modelo que pode ser democrático, por ser o único a garantir todos os direitos fundamentais e, portanto, o Estado de Direito. 129 Ademais, justamente por seu caráter democrático, no Estado Social são ampliados os mecanismos de controle do Poder Público, controle este que passa a impor o cumprimento de critérios matérias de justiça, conforme Adriana da Costa Ricardo SCHIER. 130 Em síntese, o Estado Social (i) se justificou não apenas por um controle de legalidade, mas também de igualdade e de legitimidade; (ii) tendo como função a garantia, de forma intervencionista, dos direitos fundamentais – e não mais a estruturação do Estado, pois este já assim se encontrava – e (iii) como elementos estruturais o Estado de Direito e a tripartição de poderes – não mais mecanicista. Por fim, cabe mencionar que as Constituições mexicana de 1917 e alemã de 1919 (Constituição de Weimar) foram as precursoras desse novo modelo de Estado de Direito, harmonizando em suas redações direitos de liberdade e direitos socioeconômicos 131 (e, portanto, de serviços públicos). 3 CRISE DO ESTADO SOCIAL No que tange ao Estado Social, Paulo BONAVIDES afirma que Alcançá-lo, já foi difícil; conservá-lo, parece quase impossível. E, no entanto, é o Estado a que damos, do ponto de vista doutrinário, valoração máxima e essencial, por afigura-se-nos aquele que busca realmente, como Estado de coordenação e colaboração, amortecer a luta de classes e promover, entre os homens, a justiça social, a paz econômica. A técnica de implantá-lo sem distúrbios mostra-se, todavia, rodeada de problemas e dificuldades. Basta comparar a sua caracterização constitucional, a palavra dos textos, com a pobreza dos resultados obtidos na realidade. 129 Ibidem, p. 224-233. A relação entre Estado de Direito, democracia e direitos fundamentais será retomada no capítulo 3 deste trabalho. 130 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na administração pública: o direito de reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 249-250. 131 MIRANDA, Jorge. Op. cit., p.53; NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 188; SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 205. 21 Como ele oscila, frágil, no meio do drama do poder, em face da tempestade de interesses hostis e divergentes, alguns de cunho material, outros de cunho ideológico, todos a lhe 132 contrariarem de fato a aplicação! O trecho acima ilustra a preocupação que os autores brasileiros, vinculados aos valores democráticos, vem demonstrando frente às investidas contra o Estado. Isso porque, segundo Asa Cristina LAURELL, “O avanço da produção e organização social capitalistas sempre vem acompanhado de questões sociais complexas e intensas.” 133 Tal relação pôde ser observada ao longo do trabalho com as exposições sobre o avanço da produção e organização social capitalistas com as Revoluções Burguesas e com a crise do modelo de Estado Liberal. Apresentados os aspectos gerais do modelo de Estado Social, mostra-se oportuno analisar, agora, a referida relação com o avanço da produção e a organização social capitalistas no decorrer do século XX. Fatores estes que podem ser tomados como causa da crise desse modelo de Estado. Ana Cláudia FINGER pontua que o Estado Social “(...) acabou por revelar-se ineficiente e, portanto, incompetente para concorrer com a iniciativa privada na prestação de determinados serviços. É a crise do Estado Social, que surgiu basicamente com os ventos da ideologia do Estado Neoliberal.” 134 A autora, como se vê, vai apreciar a crise do Estado Social a partir da crítica feita a tal modelo pelo neoliberalismo. Perry ANDERSON, sobre o tema do neoliberalismo, refere que se trata de “(...) uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar.” 135, sendo, portanto, diferente do liberalismo clássico, iniciando-se após a II Guerra Mundial, em regiões em que predominava o capitalismo na Europa e na América do Norte. 136 132 BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 187. LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., p. 153. 134 FINGER, Ana Cláudia. Serviço Público: Um Instrumento de Concretização de Direitos Fundamentais. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, a. 3, n. 12, p. 141-165, abr./jun. 2003. p. 157. 135 ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In.: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 9. 136 Idem. 133 22 Segundo o mesmo autor, o neoliberalismo apareceu pela primeira vez em 1944, em O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, no qual a intervenção do Estado no mercado é apresentada como um ataque a liberdade econômica e política. 137 Narra que logo após, em 1947, foi fundada a Sociedade de Mont Pèlerin, formada por Hayek e outras pessoas contrárias ao Estado de bem-estar europeu e norte-americano, que defendia a desigualdade como algo positivo e imprescindível, combatia o Estado Social e propunha um novo capitalismo (anômico). 138 No entanto, conta que apenas em 1973, com a crise do modelo econômico que fez com que grande parte do mundo tivesse baixo crescimento econômico e muita inflação, é que o neoliberalismo começou a ganhar espaço e crença, pois até então o capitalismo encontrava-se em um período de auge.139 Segundo Mário Lúcio Quintão SOARES, foi principalmente devido à crise do fordismo (regime de acumulação firmado após a II Guerra Mundial), que internacionalizou os mercados e a produção, que fez surgir, a partir de 1970, a crise do Estado Social, que foi sofrida por suas respectivas instituições.140 O autor coloca, ainda, que essa crise deve ser entendida como a crise do capitalismo e que ela ainda põe em cheque a eficiência do Estado. 141 Em relação à explicação para a crise, Perry ANDERSON narra que para a Sociedade de Mont Pèlerin a crise teve origem “(...) no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais.” 142 Sobre o tema, Asa Cristina LAURELL explica que a crise econômica mundial fez ascender a “Nova Direita como força político-ideológica” 143 e o discurso desta força, fundamentado nas teorias de Hayek e Friedman, propõe uma explicação 137 Idem. Ibidem, p. 9-10. 139 Ibidem, p. 10. 140 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 207. 141 Ibidem, p. 208. 142 ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 10. 143 LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., 161. 138 23 sobre a crise e uma proposta para extingui-la, 144 a partir de concepções de um novo modelo de Estado: o Neoliberal. Neste modelo agora proposto, tem-se que “(...) o mercado é o melhor mecanismo dos recursos econômicos e da satisfação das necessidades dos indivíduos. De onde se conclui que todos os processos que apresentam obstáculos, controlam ou suprimem o jogo das forças do mercado terão efeitos negativos sobre a economia, o bem-estar e a liberdade dos indivíduos.” 145 Todas as características pretendidas para esse Estado Neoliberal se colocam a partir de uma crítica às instituições do Estado Social. Por isso, segundo Mario Lucio Quintão SOARES, Os defensores do Estado mínimo questionam o Welfare State por suas intervenções estatais, especialmente as políticas assistencialistas de altos custos, e pela burocratização da vida social e econômica, que redunda em efeitos mais perniciosos do que os causados pelas anomalias de mercado que pretendem corrigir: ineficácia das prestações, ausência de 146 produtividade dos serviços públicos, inflação e déficit público. E o Estado proposto será então pautado nas seguintes medidas: a) reprivatização dos serviços e prestação de bens de interesses sociais; b) restrição das funções estatais no tocante à garantia do marco legal dos direitos e liberdades; c) redução da burocracia pelo critério custo/benefício; d) desoneração dos custos dos serviços públicos, que devem ser imputados mais 147 diretamente aos seus usuários. Assim, com tantas medidas em relação ao serviço público, a crise do Estado Social, conforme será tratado no próximo capítulo, implicou na crise da noção de serviço público. Vale dizer que, nesse momento, começou a ser desenvolvido um modelo de Administração Gerencial e, com este modelo de gestão, o controle da Administração deixa de ser burocrático para ser pautado no resultado eficiente. Isso porque passou a se defender que o controle burocrático é arcaico e que o controle proposto ampliaria a participação popular no âmbito de decisões administrativas. 148 144 Idem. Idem. 146 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 153. 147 Ibidem, p. 209-210. 148 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Op. cit., p. 129-130, 251-252. 145 24 Perry ANDERSON sustenta que a proposta era a de que o Estado deveria ser forte para: acabar com o poder sindical, criando, para tanto, uma determinada taxa de desemprego; controlar os recursos, fazendo poucos gastos sociais e poucas intervenções econômicas; fazer reformas fiscais, a fim de incentivar os agentes econômicos.149 O mesmo autor explica que “A partir daí, a onda de direitização desses anos tinha um fundo político para além da crise econômica do período. (...) O ideário do neoliberalismo havia sempre incluído, como componente central, o anticomunismo mais intransigente de todas as correntes capitalistas do pós-guerra.” 150 Isso pode ser visualizado, por exemplo, com a eclosão da Segunda Guerra Fria, em 1978, e esse combate contra o socialismo trouxe mais adeptos ao neoliberalismo político, 151 “(...) consolidando o predomínio da nova direita na Europa e na América do Norte.”152 De qualquer forma, as primeiras experiências neoliberais ocorreram em governos de inspiração direitista.153 Porém, aqui já se tem o primeiro referencial que permite a apuração crítica desse modelo. Assim, é possível citar definição mais complexa de Perry ANDERSON sobre o neoliberalismo: “(...) é um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional.” 154 No entanto, como bem afirma José COMBLIN, “(...) o processo de desenvolvimento não pode ser igual nos países dominantes e nos países dominados. O que é bom para os dominadores não será necessariamente bom para os dominados.” 155 149 ANDERSON, Perry. Op. cit. p. 11. Ibidem, p. 11-12. 151 Idem. 152 Ibidem, p. 12. 153 Sustenta Perry ANDERSON que “No início, somente governos explicitamente de direita radical se atreveram a pôr em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo, inclusive os que se autoproclamavam e se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal.” (Ibidem, p. 14.) – o que demonstra a hegemonia do neoliberalismo como ideologia. (Idem.) 154 Ibidem, p. 22. 155 COMBLIN, José. O neoliberalismo: ideologia dominante na virada do século. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 103. 150 25 Em outras palavras, pode-se dizer que a política neoliberal poderia ser boa para o desenvolvimento de alguns países e ruim para o de outros, notadamente para o daqueles que não asseguraram aos cidadãos o pleno gozo dos direitos sociais. Isto porque entende-se no presente trabalho que a consagração de tais direitos só ocorrerá com a devida atuação do Estado através da prestação do serviço público – o que é absolutamente incompatível com as propostas neoliberais. Assim, o neoliberalismo obteve êxito no tocante à deflação, aos lucros, no crescimento das taxas de desemprego, na contenção do poder do movimento sindical, das greves e dos salários. 156 Porém, a partir de uma análise crítica, os efeitos sociais do neoliberalismo são a desigualdade, o desemprego, a redução dos serviços sociais e algumas conseqüências culturais. 157 Ademais, o controle da Administração realizado mormente pelos cidadãos pode se configurar numa falácia se não existirem reais condições dessa participação popular, pois os excluídos do exercício de direitos sociais (que, em decorrência das práticas neoliberais, não são poucos) não terão condições de estarem incluídos nessa participação, diminuindo, então, o exercício do controle sobre aquela. 158 Note-se que também do ponto de vista econômico, o neoliberalismo não alcançou os êxitos buscados, não permitindo a reanimação do capitalismo.159 Isso porque a recuperação dos lucros não recuperou os investimentos, pois a desregulamentação financeira “(...) criou condições muito mais propícias para a inversão especulativa do que produtiva.” 160 e, principalmente, pelos gastos sociais não terem diminuído. Esta última razão se deu pelos gastos com o desemprego e com as pensões (pelo aumento da taxa de aposentados na população). 161 Em 1991, o capitalismo entrou novamente em recessão, pois a dívida pública da maioria dos países ocidentais e a dívida privada de empresas e famílias aumentaram muito, acarretando muito desemprego e intensificando a crise. Apesar das referidas conseqüências, o neoliberalismo continuou a ser sustentado, 156 ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 14-15. COMBLIN, José. Op. cit., p. 104-115. 158 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Op. cit., p. 252. 159 ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 15. 160 Ibidem, p.16. 161 Idem. 157 26 demonstrando seu dinamismo. 162 “O temário político segue sendo ditado pelos parâmetros do neoliberalismo, mesmo quando seu momento de atuação econômica parece amplamente estéril ou desastroso.” 163 Diante de tal contexto, em que o ideário neoliberal não é suficiente para as demandas capitalistas e em que, ao mesmo tempo, o Estado não dá conta das demandas sociais em face da adoção das medidas liberalizantes, cabe verificar as soluções propostas. Conforme COMBLIN, alguns governantes, na busca de solucionar a crise, já começaram a fazer “(...) controle dos movimentos de capitais, limitação do comércio exterior, freio às privatizações, reserva diante da diminuição dos impostos.” 164 Asa Cristina LAURELL faz um balanço sobre esse contexto e afirma que “Por outro lado, nos países europeus, ocorre uma tendência à “americanização” das políticas sociais. Ou seja, manifesta-se o fortalecimento do Estado de bem-estar liberal, aumentando o domínio do mercado no campo social; essa é a expressão concreta de que esta forma de Estado pode assimilar a plataforma neoliberal.” 165 Segundo Perry ANDERSON, Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, 166 milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes. Por isso, Asa Cristina LAURELL considera que, embora tenham ocorrido transformações nas políticas sociais, o Estado de bem-estar é irreversível, fundamentando que os governos, por uma questão de ordem eleitoral, não 162 Ibidem, p. 16-17. Ibidem, p. 17. 164 COMBLIN, José. Op. cit., p. 102. 165 LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., p. 165. 166 ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 23. 163 27 conseguem se abster de seu dever de garantir os direitos sociais e acabar com as instituições sociais básicas. 167 Ainda assim, pode-se dizer que o neoliberalismo é um movimento inacabado e um balanço atual dele é provisório. 168 No entanto, “a desmontagem de serviços públicos, as privatizações de empresas, o crescimento de capital corrupto e a polarização social” 169 são fatos inegáveis, principalmente nos países que são considerados “em desenvolvimento”, o que faz com que os direitos fundamentais de primeira e segunda gerações sejam violados, em razão do serviço público nem sempre ser bem prestado – quando prestado – e dos poderes do Estado e do cidadão ficarem de mãos atadas devido à submissão às práticas neoliberais. Justifica-se, então, a análise do presente trabalho, pois, na medida em que reconhece o Estado brasileiro como um Estado Democrático de Direito, no qual devem ser assegurados os direitos sociais, é imposto o dever da prestação de serviços públicos. E vai além, impõe-se o dever de controle da prestação de tais serviços, tomando tal idéia como necessária para a garantia de democracia. É essa a abordagem dos próximos capítulos. CONCLUSÃO A partir da pesquisa realizada, podem ser tecidas algumas conclusões do presente trabalho. Com o advento do Estado de Direito, surgiram os mecanismos que possibilitaram o desenvolvimento do instituto do controle da Administração Pública, bem como da noção de serviço público adotada neste trabalho. Tal Estado passou por diversas fases – que se configuraram nos modelos de Estado Liberal e de Estado Social, bem como na crise do Estado Social – que lhe atribuíram diversos enfoques, enfoques estes que, por conseqüência, modificaram os institutos do controle e do serviço público. A primeira dessas fases, que se conforma no Estado Liberal, se justificou pelo controle do Poder Público e teve como funções a estruturação do Estado e a 167 LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., p. 164-165. ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 22. 169 Ibidem, p. 18-19. 168 28 garantia, de forma abstêmia, dos direitos fundamentais. Estruturou-se pelo Estado de Direito – princípio da legalidade – e a tripartição de poderes. Por esse Estado ter sido controlado pela burguesia, o serviço público servia tão somente para proporcionar a infra-estrutura necessária para o desenvolvimento do modelo econômico capitalista e o controle da Administração Pública era restrito ao critério de legalidade. Nessa dimensão, não existia justiça social. Por isso, o Estado Liberal não deu conta das demandas sociais e estas levaram ao aparecimento de um novo modelo de Estado, o Social. Esse modelo se justificou não apenas por um controle de legalidade, mas também de igualdade e de legitimidade, tendo como função a garantia, de forma intervencionista, dos direitos fundamentais – pulverizando-se, então, os serviços públicos. Seus elementos estruturais são o Estado de Direito e a tripartição de poderes – não mais mecanicista. Pelo aumento das atividades desse Estado, ocorreu a chamada crise do Estado Social, sendo proposto um novo modelo de Estado – o Neoliberal. A partir dessa proposta, houve uma diminuição considerável da prestação de serviços públicos a fim de assegurar a manutenção do modelo econômico. No que tange ao controle da Administração, foi proposta sua realização mormente pelos cidadãos, a partir do critério da eficiência. Contudo, essa proposta gera muita desigualdade social e o controle sobre a Administração é diminuído. Com isso, em razão das conseqüências de cada um desses enfoques pelos quais passaram o controle da Administração e o serviço público, foi possível adotar uma concepção acerca desses institutos no presente trabalho: a do Estado Social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In.: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed., São Paulo: Malheiros, 2001. 29 _____. Curso de Direito Constitucional. 16. ed., São Paulo: Malheiros, 2005. BORON, Atilio A. Os “novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo, decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. 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