1
MODELOS DE ESTADO, CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E
SERVIÇO PÚBLICO
Raquel Vasconcellos Brambilla1
RESUMO
Os instrumentos políticos e jurídicos que possibilitaram o desenvolvimento das
noções dos institutos do controle da Administração Pública e do serviço público
surgiram com o advento do Estado de Direito, passando por diversas mudanças no
decorrer da história. Assim, a pesquisa realizada busca analisar os enfoques
conferidos pelas diversas fases do Estado de Direito aos institutos em questão, bem
como a noção, o regime jurídico e o tratamento constitucional do serviço público. Por
constatar-se no estudo desenvolvido que o serviço público está inserido em uma
dimensão teórica e constitucional que o vincula à instrumentalização de direitos
fundamentais, é reforçada neste trabalho a necessidade de controle dessa atividade.
E, para tanto, será demonstrada a forma pela qual esse controle se configura em
uma garantia fundamental e também sua respectiva vinculação com a democracia e
os direitos fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: modelos de Estado; controle da Administração Pública;
serviço público; direitos fundamentais.
INTRODUÇÃO
O Direito é fruto de produção histórica, ideológica, política e cultural e muito
do Direito Público atual é reflexo de idéias que foram consagradas com o surgimento
do Estado de Direito, idéias essas que nem sempre são internalizadas e
empregadas. 2
É nesse panorama que se insere a apreciação do tema do controle da
Administração Pública e do serviço público: tais institutos surgiram com o advento do
Estado de Direito e é por isso que o contexto que culminou o nascimento desse
Estado será o ponto de partida do presente trabalho.
1
Acadêmica de Direito das Faculdades Integradas do Brasil – Unibrasil, orientada pela
Profa. Ms. Adriana da Costa Ricardo Schier.
2
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros,
2001. p. 30.
2
Passando o Estado de Direito por diversas fases – Estado Liberal, Estado
Social e Crise do Estado Social –, que lhe atribuíram diversos enfoques, os institutos
do controle e do serviço público, por terem nascido atrelados a ele, também se
transformam.
Assim, não se pretende abordar de forma exaustiva cada período histórico,
mas tão somente descrever alguns dos aspectos que contribuíram para o
desenvolvimento das noções de serviço público e do controle da Administração
Pública em tais diferentes períodos.
1 ESTADO LIBERAL – A NECESSIDADE DO CONTROLE DA ATUAÇÃO
ADMINISTRATIVA
Foi só com o surgimento do Estado de Direito, que teve como sua primeira
versão o Estado Liberal, que surgiram os mecanismos que possibilitaram o
desenvolvimento o desenvolvimento do instituto do controle da Administração
Pública, bem como da noção de serviço público adotada neste trabalho.
Nesse diapasão, tem-se que os primórdios da noção podem ser pensados a
partir da Idade Média. Tal período foi marcado por um poder descentralizado3: as
ordens do monarca, da Igreja, do senhor feudal, das corporações de ofício e de
outros poderes menores deveriam ser seguidas.
4
Isso não apenas gerava uma
insegurança jurídica, pelo fato das normas virem de todos os lados, como também
um grande impasse ao desenvolvimento comercial, pois os comerciantes acabavam
por pagar impostos em cada feudo que passavam para exercer suas funções. 5
Foi nessa situação que o conceito de soberania se tornou necessário – um
poder centralizador e independente, que sobressaísse aos outros, sobre um
determinado povo, em um determinado território, 6 e que estabelecesse o monopólio
3
Característica que também pode ser chamada de “descentralização política” – expressão
utilizada por Alexandre Santos de ARAGÃO. (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços
públicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 27.)
4
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do
Estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 23-24 e 155; SUNDFELD, Carlos Ari.
Fundamentos..., p. 33.
5
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 24. ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 70.
6
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 24.
3
dos tributos e do exército nacional, a unificação da moeda,
7
dos pesos e das
medidas, além de exercer a atividade de produção de leis e de dizer o direito 8 – e a
figura chave para exercer essa soberania foi o rei – autoridade que também tinha
grande interesse na centralização política para fortalecer sua influência decisória, o
que só foi possível através do financiamento da mais nova classe da sociedade
européia, a burguesia. 9
Em outras palavras, um poder capaz de realizar uma “organização
burocrática”,
10
distinta da sociedade civil, que monopolizasse “(...) alguns serviços
essenciais para a manutenção da ordem interna e externa, tais como a produção do
direito através da lei (...)”. 11
Assim, a partir das deficiências da sociedade política medieval, iniciava-se
um novo formato do Estado – o Moderno, que além do poder centralizado,
caracterizam-se, também, como seus elementos essenciais o território e o povo. 12
Nesse
período
já era
possível identificar
atividades materialmente
comparáveis com aquelas que hoje são prestados através de serviços públicos. Por
evidente, existiam concepções jurídica e política distintas, não sendo prestadas
necessariamente
pelo
Estado.
Um
grande
exemplo
são
as
atividades
assistencialistas prestadas pela Igreja. 13
Ainda assim, parece certo que não há como identificar nesse período, o
serviço público como uma atividade que caracterizasse o modelo de Estado. Modelo
este que pelo fato de existir “uma identificação absoluta entre o Estado e o monarca”
14
, ou seja, por este exercer a soberania estatal, ficou conhecido como Absolutista. 15
Exercendo todos os poderes, o monarca se apropriava do Estado como uma
propriedade, assim como os senhores feudais faziam no período medieval, o que fez
garantir a “unidade territorial do reino”. 16
7
Ibidem, p. 25 e 29.
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos..., p. 35.
9
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 24-25.
10
Ibidem, p. 29.
11
Ibidem, p. 25.
12
Ibidem, p. 24.
13
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988.
São Paulo: Malheiros, 2003. p. 29-31.
14
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 25.
15
Ibidem, p. 44; SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos..., p. 34; MIRANDA, Jorge. Teoria do
Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 42.
16
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 44-45.
8
4
Autores
da
época,
como
Nicolau
MAQUIAVEL
e
Jean
BODIN
desenvolveram obras que demonstram a amplitude e o significado dessa situação.
17
MAQUIAVEL, com a obra Il príncipe (O príncipe), de 1513, foi pioneiro a
desenvolver, por métodos empíricos, o conceito político de Estado e justificou “(...) a
organização das monarquias nacionais absolutas como forma política do Estado
moderno que permitiria e facilitaria um ulterior desenvolvimento das forças
produtivas do capitalismo.” 18
BODIN, com a obra Les Six Livres de la Republique (Os Seis Livros da
República), de 1576, foi o primeiro teórico a falar do poder soberano do Estado, 19
tratando-o como perpétuo, inalienável e imprescritível, a fim de fundamentar a razão
política do Estado moderno. 20
Ademais, conforme Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS,
A base de sustentação do poder monárquico absolutista estava alicerçada na idéia de que o
poder dos reis tinha origem divina. O rei seria o “representante” de Deus na Terra, o que lhe
permitia desvincular-se de qualquer vínculo limitativo de sua autoridade. Dizia Bodin, um de
seus doutrinadores, que a soberania do monarca era perpétua, originária e irresponsável
em face de qualquer outro poder terreno.
Portanto, pode-se dizer que o Estado absolutista, de um ponto de vista descritivo, seria
aquela forma de governo em que o detentor do poder exerce este último sem dependência
21
ou controle de outros poderes, superiores ou inferiores, como refere Pierangelo Schiera.
(grifos do autores.)
Tratava-se, então, de um poder sem limites – internos e externos – e,
conseqüentemente, juridicamente irresponsável e incontrolável, o que significa dizer
que não era possível um indivíduo questionar a (in)validade de um ato ou pedir o
ressarcimento por um prejuízo causado pelo Estado, ou seja, não existia demanda
contra o Estado. 22
Esse poder, por estar concentrado nas mãos do rei, era exacerbado,
arbitrário, independente, ilimitado, irresponsável, incontrolável, perpétuo, originário e
17
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos paradigmas em face da
globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 47.
18
Ibidem, p. 49.
19
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 156; SOARES, Mário
Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 51.
20
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 51.
21
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 45.
22
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos…, p.34.
5
impunha qualquer tipo de obrigação ou restrição aos particulares e, portanto, não
havia direitos individuais em face do Estado. 23
Veja-se que é contra essas circunstâncias que se impõem os liberais, e um
dos institutos que permitiu a limitação desse poder exacerbado foi o controle da
atividade administrativa.
Diante dessas circunstâncias, apesar da soberania do monarca ter
possibilitado o nascimento do capitalismo – que nasceu como mercantil – ao
favorecer os interesses, principalmente econômicos, da burguesia, esta, carecendo
de liberdade, passou a desconfiar do poder e já não se satisfazia mais apenas com
o poder econômico, almejando, também, o poder político. 24
Autores da época, como John LOCKE, Charles de MONTESQUIEU e JeanJacques ROUSSEAU, influenciaram nas lutas contra esse contexto de opressão
estatal. 25
John LOCKE, em sua obra, no século XVII, defendeu que só com a limitação
do poder estatal, protegendo-se os direitos individuais relacionados à vida e à
propriedade, é que existiria a liberdade.
26
E para que houvesse um certo controle do
Estado, propôs a separação dos poderes em mãos diferentes, a fim de evitar que a
constituição e a execução das leis fossem adequadas aos próprios interesses.
27
Charles de MONTESQUIEU, com o L’esprit des lois (O espírito das leis), de
1747, inovou e contribuiu com a sua teoria de separação dos poderes inserida num
sistema de freios e contrapesos,
28
sistema esse que se configura na “(...)
cooperação e controle mútuo entre as funções desempenhadas, buscando-se o
equilíbrio das instâncias governamentais e a concretização dos princípios da
liberdade política.” 29
Jean-Jacques ROUSSEAU, em Du contrat social (Do contrato social), de
1762, retirou a soberania das mãos do monarca para colocá-la nas mãos do povo,
23
30
Idem.
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 46-47; BONAVIDES,
Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed., São Paulo: Malheiros, 2001. p. 68.
25
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 47.
26
Ibidem, p. 60.
27
Ibidem, p. 63.
28
Ibidem, 66-67.
29
Ibidem, p. 66.
30
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 46 e 156. Tal teoria
demonstra que o conceito de soberania apresenta diversas facetas dependendo do contexto em que
está inserido, o que não significa que não exista um ponto de intersecção entre as mesmas, que, na
24
6
criando o conceito de “vontade geral”, que se configura na vontade do povo como
vontade soberana do Estado.
31
também deveria ser ilimitada.
E assim como era o poder real, a vontade popular
32
Isso significa que, em sua teoria, o Estado é
controlado pela vontade do povo.
Portanto, as idéias da Reforma Protestante e do Renascimento, com um
“direito natural laicizado”,
33
do Iluminismo e das teorias acerca do contrato social
influenciaram consideravelmente as revoluções burguesas. A Constituição, então
demandada, era vista como expressão do contrato social. 34
Nesse sentido, aduz Clèmerson Merlin CLÈVE que
A proposta do Estado Constitucional era a de limitar o poder político, mantendo-o
concentrado. E isto ocorreria da seguinte forma. Primeiro, tratava-se de organizar o político
de tal modo que o poder se encarregasse de controlar o próprio poder. Aqui, sustenta-se o
núcleo da teorização conducente à separação dos poderes. Depois, deslocando a soberania
35
das mãos do monarca para as mãos do povo ou da nação.
As revoluções burguesas cumpriram, então, um importante papel no início
das transformações, pois foram elas que deram ensejo ao controle do poder do
Estado pelos destinatários das normas, ao obrigar os indivíduos encarregados de
exercer o poder político a obedecer normas jurídicas cujo fim é limitar o poder. 36
As Revoluções Americana e Francesa, que aconteceram, respectivamente,
em 1776 e 1789, são consideradas as mais importantes delas, a ponto da
Revolução Francesa ser considerada como o marco inicial da Idade Contemporânea
e talvez seja por isso que se convencionou que ela pôs fim ao Estado Absolutista,
dando início à nova fase do Estado Moderno – o Estado Liberal. 37
Conforme explica Carlos Ari SUNDFELD, “A transformação radical da
regulação do poder político, dando-lhe a feição que tem hoje e ensejando a
construção da ciência do direito público, ocorrerá na Idade Contemporânea, sendo
lição de Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS, um “poder supremo” e uma “qualidade
do poder estatal”. (Ibidem, p. 155-156.)
31
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 70.
32
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado: o substrato clássico e os novos
paradigmas como compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.150.
33
BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 67.
34
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 49.
35
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Atividade legislativa do poder executivo no estado
contemporâneo e na constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. p. 26.
36
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos…, p. 35.
37
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 45-46.
7
as Revoluções Americana e Francesa (e as Constituições delas resultantes) seus
marcos históricos mais notáveis.” 38
Assim, nascia o Estado de Direito, que teve como sua primeira versão o
Estado Liberal, sendo este, por sua vez, a segunda versão do Estado Moderno. 39
O Estado de Direito submete-se ao Direito, respeitando “os limites de sua
atividade”
40
e da “esfera de liberdade dos indivíduos”
41
, ao contrário do Estado
Absolutista, que não se submetia ao Direito, sujeitando-se a este apenas os
indivíduos, que não tinham direitos em face do Estado. 42
Para que essa idéia do Estado de Direito seja efetiva é imprescindível que
haja: a separação das funções do poder (legislar, administrar e julgar), para que a
autoridade que administra ou julga não possa alterar a lei no momento de sua
aplicação e que exista autoridade que não exerça a função legislativa ou
administrativa para que possa “julgar irregularidades da lei e de sua aplicação”;
43
um
diploma normativo superior ao próprio Estado – a Constituição –, estruturando o
Estado e garantindo direitos individuais, para que a lei não possa extinguir o poder
do administrador e do julgador e nem os direitos dos indivíduos em face do Estado.
44
Carlos Ari SUNDFELD bem define o Estado de Direito: “(...) criado e
regulado por uma Constituição (isto é, por norma jurídica superior às demais), onde
o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos,
que controlem uns aos outros, de modo que a lei produzida por um deles tenha de
ser necessariamente observada pelos demais e que os cidadãos, sendo titulares de
direitos, possam opô-los ao próprio Estado.” 45 Nesse sentido, em sua concepção, os
elementos essenciais caracterizadores do Estado de Direito são a supremacia
constitucional, a separação dos poderes, a superioridade da lei e a garantia dos
direitos individuais.46
38
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos..., p. 35.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 41; STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis
Bolzan de. Op. cit., p. 46.
40
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos..., p. 38.
41
Idem.
42
Ibidem, p. 34 e 37.
43
Ibidem, p. 38.
44
Idem.
45
Ibidem, p. 38-39.
46
Ibidem, p. 37-49.
39
8
Vale
dizer
que,
para
SUNDFELD,
os
elementos
da
supremacia
constitucional, da separação dos poderes e da superioridade da lei só existem em
razão do elemento da garantia dos direitos individuais. 47
No mesmo sentido, defende Jorge Reis NOVAIS que “(...) só haverá Estado
de Direito quando o objectivo de protecção da liberdade e direitos fundamentais do
cidadão mobiliza na sua prossecução e garantia o empenhamento do Estado.” 48
Com isso, apesar de apresentar um enfoque liberal, o Estado Liberal de
Direito não pode se desvirtuar da lógica comum dos modelos de Estado de Direito.
49
No que tange ao referido enfoque, ele advém do contexto que fez nascer o
Estado de Direito, o qual atendeu aos interesses burgueses, garantindo, portanto,
“(...) um núcleo de direitos fundamentais interpretados e integrados à luz dos valores
supremos da iniciativa privada, da segurança da propriedade e das exigências da
calculabilidade requeridas pelo funcionamento do sistema capitalista (...)”.
50
É só nesse contexto que, segundo Dinorá Adelaide Mussetti GROTTI, é
possível identificar o surgimento de atividades de serviço público, pois o Estado se
viu obrigado a prestar as atividades assistencialistas – como as de saúde e
educação – que até então eram realizadas pelas associações (profissionais, políticas
ou culturais) e estas eram antagonizadas por serem consideradas como um
empecilho à liberdade individual. 51
Para tanto, foi construída uma ideologia para dar sustentação ao Estado
Liberal, tendo alguns pressupostos, que podem ser citados como exemplos as
separações entre Estado e economia, Estado e moral e Estado e sociedade civil.
52
A primeira separação foi teorizada por Adam SMITH, tendo como base a
liberdade empresarial e concorrencial, a fim de construir algo que propiciasse o
capitalismo concorrencial.
53
Para SMITH, o Estado tem o dever apenas de
assegurar a “paz externa e a segurança interna” 54, por entender que “(...) é da livre
iniciativa de cada membro da sociedade e do funcionamento espontâneo do
47
Ibidem, p. 48.
NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito: do estado de direito
liberal ao estado social e democrático de direito. Coimbra: Coimbra, 1987. p. 67.
49
Ibidem, p. 67-68.
50
Ibidem, p. 68.
51
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Op. cit., p. 20 e 23-24.
52
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 51-52.
53
Ibidem, p. 52.
54
Ibidem, p. 54.
48
9
mercado que resultará automaticamente a máxima vantagem para todos.”
55
Tal
“funcionamento espontâneo” se configuraria na idéia de SMITH de “mão invisível”,
56
que, segundo Atilio A. BORON, acreditava que distribuiria a riqueza de forma
harmoniosa, diminuindo as desigualdades sociais
57
- e, aqui, pode-se visualizar um
fundamento ético na teoria de SMITH. Assim, qualquer ação estatal que
ultrapassasse os limites do seu dever era considerada como prejudicial à sociedade.
58
A segunda separação foi construída por KANT. Para ele, o Estado deveria
se desvincular de qualquer moral social para assegurar o Direito, que seria sua única
finalidade, e isso possibilitaria a coexistência de liberdades individuais, permitindo
com que cada indivíduo escolhesse “(...) seus próprios critérios morais e procurar a
felicidade pessoal.” 59
A terceira separação decorre das duas primeiras, pois as autonomias
econômicas e morais dos indivíduos se desenvolvem na sociedade civil.
60
Nas
palavras de Jorge Reis NOVAIS, “(...) as duas premissas da separação Estadoeconomia e Estado-moralidade – intimamente ligadas à exigência de protecção dos
direitos e garantias individuais – convergem no projecto de racionalização e limitação
do Estado, no quadro de uma terceira separação que constitui o pano de fundo da
caracterização liberal do Estado de Direito – a separação Estado-sociedade.”
61
Wilhelm Von HUMBOLDT teoriza esta separação e defende a idéia de que a ação
do Estado que derrubou o absolutismo é contrária às suas finalidades e faz surtir os
efeitos daquele Estado.62 Em resumo, para HUMBOLDT, nas palavras de Jorge Reis
NOVAIS, “Quanto mais o estado procura responder às insuficiências da sociedade
civil, mas essas insuficiências se multiplicam e novos males se revelam (...)”.
55
63
Ibidem, p. 53.
Idem.
57
BORON, Atilio A. Os “novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo,
decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina. In: SADER, Emir; GENTILI,
Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo II: que Estado para que democracia? Petrópolis: Vozes, 1999. p.
29-30.
58
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit.,p. 54.
59
Ibidem, p. 60.
60
Ibidem, p. 63; STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 25.
61
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 67.
62
Ibidem, p. 64-65.
63
Ibidem, p. 65.
56
10
A partir desses três pressupostos ideológicos do Estado Liberal, pode-se
afirmar que para o seu desenvolvimento era necessária a menor intervenção
possível do Estado na sociedade e, por conseqüência, na economia e na moral dos
indivíduos e a ação do Estado, quando necessária, deveria ser calculável e
previsível. 64
Nesse momento, o controle da Administração Pública no Estado Liberal
implicava que o Estado fosse abstêmio em relação à economia, à moral e, por
decorrência, à sociedade, a fim de que fossem garantidos os direitos fundamentais.
Assim, os direitos fundamentais que esse Estado pretendeu assegurar foram
os individuais, conhecidos também como direitos fundamentais de primeira geração,
65
que, segundo Alexandre Santos de ARAGÃO, “(...) impunham essencialmente
deveres de abstenção ao Estado (...).” 66
Tais direitos, na concepção de Paulo BONAVIDES, são os direitos de
liberdade, quais sejam, os “direitos civis e políticos”
67
, dos quais os indivíduos são
titulares, podendo opô-los em face do Estado.68
Pelo fato do indivíduo ter sido valorizado, institucionalizaram-se direitos civis
e políticos. Foram garantidos: o fim da escravidão; as liberdades religiosa, de
imprensa, de associação, de manifestação e de discurso (esta também chamada de
“liberdade de expressão”); a inviolabilidade de domicílio e de propriedade.
Ampliaram-se a educação e o direito ao voto até a chamada “universalização”.
Foram criadas constituições escritas limitando e responsabilizando os Estados.
Consolidou-se como modelo de governo a forma representativa. 69
Por conta do enfoque liberal dado ao Estado, institucionalizaram-se
liberdades econômicas. Eliminaram-se as taxações das mercadorias, expandindo-se
os mercados, inclusive mundial. As trocas foram facilitadas pelas inovadoras práticas
bancárias. Ocorreu um desenvolvimento econômico, que criou condições para a
64
65
p. 562.
66
Ibidem, p. 68.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16. ed., São Paulo: Malheiros, 2005.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 26.
BONAVIDES, Paulo. Curso..., p. 563.
68
Idem. É claro que a perspectiva de tais direitos nesta fase era formal e que não eram
assegurados a todos os cidadãos, o que, ainda assim, não o desqualificava como conquistas sociais
nesse período.
69
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 58-60; DALLARI, Dalmo
de Abreu. Op. cit., p. 277.
67
11
Revolução Industrial, acarretando um desenvolvimento produtivo e técnico-científico.
O desenvolvimento técnico-científico acarretou o aumento do nível de vida das
pessoas, da população mundial, das cidades e das comunicações. 70
Ainda no que tange ao enfoque liberal atribuído ao Estado e às liberdades
econômicas, o serviço público na época era uma atividade que, por não ser lucrativa,
era prestada pelo Estado, servindo de base para o desenvolvimento do capitalismo
concorrencial. Portanto, cabe citar a explicação de Jorge Reis NOVAIS acerca dessa
situação:
Porém, a separação política-econômica – mesmo considerando só o modelo teórico – não é
tão absoluta como uma certa leitura de SMITH sugere. (...) A. SMITH previa a criação e
manutenção de serviços e instituições que, por não serem lucrativos, não interessavam à
iniciativa privada. Ora, nesta constatação, SMITH reconhece limites às possibilidades de
auto-regulação do mercado, já que esta não abrangia a totalidade da esfera econômica; as
tarefas não lucrativas, onde se incluíam as infra-estruturas necessárias ao funcionamento
da economia, tais como a construção de portos, vias férreas, pontes e os seguros sociais,
71
continuavam a ser asseguradas pelo domínio público.
Complementando essa idéia, Alexandre Santos de ARAGÃO, explica que
como a burguesia dominava politicamente o Estado, este atuava para proteger a
classe de seus únicos eleitores, construindo estradas, meios de comunicação e de
transporte, etc. 72, e que na esfera social o Estado Liberal “(...) desempenhava ação
meramente voluntarista, para melhorar situações individuais de maior gravidade,
sem pretensões de efetuar mudanças na realidade social e econômica.” 73
A partir daí, pode-se tirar duas conclusões: que o serviço público tratava-se
da “infra-estrutura necessária para o progresso dos negócios”,
74
bem como que o
75
controle da Administração Pública era feito pela burguesia.
Em síntese, o Estado Liberal (i) se justificou pelo controle do poder do
Estado, (ii) tendo como funções a estruturação do Estado e a garantia, de forma
abstêmia, dos direitos fundamentais e (iii) como elementos estruturais o Estado de
Direito – princípio da legalidade – e a tripartição de poderes.
70
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 58-60. NOVAIS, Jorge
Reis. Op. cit., p. 191.; DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 277.
71
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 54-55.
72
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 33-34.
73
Ibidem, p. 33.
74
Idem.
75
Ibidem, p. 33-34.
12
Assim, no século XIX, os liberais (incluindo-se os movimentos e os partidos)
modificaram a estrutura política, social e econômica da Europa e a comunidade
internacional. 76
2 ESTADO SOCIAL E A PROLIFERAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
Segundo Paulo BONAVIDES, o conceito de liberdade atribuído pela
burguesia em suas Revoluções começou a ser criticado, por conter erros, lacunas,
imperfeições e um normativismo vazio, que era incapaz de “(...) prover as
necessidades e reivindicações sociais das classes desfavorecidas, maiormente
aquelas que compunham os escuros quadros da miséria urbana e proletária nas
minas e fábricas da chamada Revolução Industrial.” 77
Assim, no século XIX foi possível observar tanto a consolidação e a
expansão do modelo liberal quanto a expansão dos malefícios aos segmentos
populares em decorrência do modelo econômico vigente. 78
Isso se deu em razão do Estado Liberal ser um Estado protetor da
burguesia, ao desempenhar a função de manutenção das relações de produção do
capitalismo concorrencial, que aparece, por exemplo, em sua interferência no âmbito
do trabalho (coibindo a greve, a associação sindical, entre outras ações coletivas de
trabalhadores) e na ação de colonização (utilizando as colônias como provedoras de
matérias-primas). Por isso, a idéia de separação entre o Estado e a economia,
proposta por Adam SMITH, deve ser relativizada.79
Nesse sentido, as correntes marxistas, conforme aduz Jorge Reis NOVAIS,
denunciaram que “(...) a relativa autonomia do aparelho de estado liberal está
directamente relacionada com a forma particular de dominação burguesa.”
80
No mesmo sentido, Atilio A. BORON ensina que a teoria liberal foi refutada
pela realidade, pois “(...) as desigualdades nos sucessivos países incorporados à
76
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 58.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 67.
78
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 59-60.
79
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 56-57.
80
Ibidem, p. 57.
77
13
órbita do capitalismo tornaram-se cada vez maiores e o passar do tempo só as fazia
se agigantar.” 81
Além disso, “(...) o Estado jurídico Kantiano se propunha garantir a cada
indivíduo a liberdade como homem, a igualdade como súdito e a independência
como cidadão (...)”.
82
Constituindo-se como cidadão apenas quem tem direito de
voto, por conseqüência, o Estado de Direito de KANT garantia apenas aos
burgueses a plenitude dos atributos jurídicos da liberdade, igualdade e
independência, enquanto os outros indivíduos somente os possuiriam se se
transformassem em burgueses. 83
No mesmo sentido, Paulo BONAVIDES afirma que a liberdade política
restrita não era efetiva por não solucionar as incoerências sociais, principalmente
dos que não possuíam bens. 84
Por fim, o Estado de Direito de HUMBOLDT é definido pelos contornos de
sua função, que é a de proteger o ordenamento jurídico, tendo este, por sua vez, a
reduzida função de demarcar e garantir o âmbito de “liberdade e propriedade
individual”. 85
No mesmo sentido, Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS
descrevem que o Estado Liberal possuía uma atividade reduzida e previsível, que se
configurava na manutenção da ordem, da paz e da segurança e na proteção das
liberdades civis e econômica. Assim, a intervenção estatal era exceção. Além disso,
pregava-se que qualquer ação desse Estado que ultrapassasse esse rol de tarefas
desrespeitava os direitos do indivíduo.
86
A própria essência do constitucionalismo,
nessa época, segundo José Joaquim Gomes CANOTILHO, era a segurança da
propriedade e de outros direitos liberais. 87
Portanto, considerando-se que a função Liberal se reduzia a garantir à
liberdade e à propriedade, os serviços públicos até então existentes não davam
conta de inúmeras necessidades coletivas vinculadas diretamente ao respeito à
dignidade da pessoa humana.
81
BORON, Atilio A. Op. cit., p. 30.
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 62.
83
Ibidem, p. 57.
84
BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 188.
85
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 67.
86
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 56-57 e 62.
87
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 99.
82
14
Conforme Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS, tais fatos
geraram “uma postura ultra-individualista, assentada em um comportamento egoísta;
88
uma concepção individualista e formal da liberdade onde há o direito, e não o
poder de ser livre; e a formação do proletariado em conseqüência da Revolução
Industrial e seus consectários, tais como a urbanização, condições de trabalho,
segurança pública, saúde, etc.”, 89 (grifos dos autores) acabando com os “(...) modos
de vida antigos e tradicionais.” 90 (grifos dos autores.)
Além disso,
(...) na medida em que o sufrágio se estendeu a novos setores sociais, os partidos políticos
começaram a surgir, buscando votos de modo a governar na base do que ofereciam ao
eleitorado, tornado os governos suscetíveis às solicitações populares, o que vai impor uma
mudança de rota no projeto do Estado Mínimo no sentido da intervenção do poder público
91
estatal em espaços até então próprios à iniciativa privada. (grifos dos autores).
Assim, a partir do alargamento da participação política, a justiça social foi
reivindicada, pois era necessário satisfazer as necessidades básicas que não eram
satisfeitas pela simples iniciativa dos indivíduos ou pelo mercado. 92 Portanto, graças
às lutas populares, incluindo movimentos operários e socialistas, e iniciativas
políticas de reforma social, atividades positivas de auxílio e serviços mútuos
começaram a ser realizadas pelo Estado, principalmente na Europa, já em meados
do século XIX e se intensificaram no século XX, modificando o Estado Liberal.
93
Vale dizer que grande parte dessas iniciativas, atividades e serviços se configuraram
na ampliação do rol de serviços públicos.
Tais ações estatais interventivas sobre e no domínio econômico, sendo que
algumas delas eram até então apresentadas como de competência da iniciativa
privada, aconteceram para assegurar a continuidade do mercado que estava sendo
ameaçado.
94
Todavia, Paulo BONAVIDES explica que todos se beneficiam com a
reconciliação, através da democracia, entre o capital e o trabalho: as reivindicações
88
No mesmo sentido, Alexandre Santos de ARAGÃO narra que tratava-se de “(...) uma
sociedade de indivíduos e não de grupos, embebida toda numa consciência anticoletivista.”
(ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 32-33.)
89
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 62.
90
Idem.
91
Ibidem, p. 59-60.
92
Idem.
93
Ibidem, p. 58-60 e 62; NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 189-190.
94
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 62.
15
mais urgentes dos trabalhadores são atendidas e o capitalismo garante sua
sobrevivência.
95
Entre essas reivindicações estavam a prestação de atividades que
viriam a se configurar como serviços públicos – diretamente relacionados aos
direitos sociais.
Assim, verificou-se “(...) ao progressivo estabelecimento por parte do Estado
dos seguros contra acidentes de trabalho ou doenças profissionais e ao
aparecimento de uma legislação laboral tendente a refrear os excessos mais
chocantes do capitalismo selvagem, especialmente nos domínios dos horários de
trabalho e do trabalho infantil e feminino.”
96
Nesse período, era possível identificar
“(...) as primeiras propostas de fundamentação de uma política de reforma social na
teorias de pensadores (...) ou na prática política dos movimentos socialistas ou das
associações inspiradas na doutrina e na acção social da Igreja.”
97
O Estado começou a intervir nas relações produtivas: regulação da jornada
de trabalho, da segurança no trabalho e do trabalho de menores; oficinas públicas
para resolver o problema do desemprego. Assim, a atuação do Estado nos âmbitos
social e econômico, não apenas produzindo normas, mas também como agente
econômico, relativizou as liberdades contratual e econômica. 98
Contudo, na concepção de Jorge Reis NOVAIS, “(...) só o impacto
provocado pela I Guerra Mundial estimularia uma alteração radical na forma de
conceber as relações entre o Estado e a Sociedade, podendo-se dizer que ela
marca o termo do optimismo liberal fundado na ideia de uma justiça imanente às
relações sociais autónoma e livremente desenvolvidas a partir da auto-regulação do
mercado.” 99 E complementa:
(...) as próprias necessidades da Guerra impeliam o Estado a uma intervenção decisiva na
vida económica (com as restrições à liberdade contratual e ao direito de propriedade, a
disciplina pública de importantes sectores industriais e da comercialização da generalidade
dos bens, o fraccionamento político dos mercados internacionais), a qual, longe de cessar
com o termo do conflito, seria perpetuada pelas exigências de reconstrução e,
100
posteriormente, pela nova crise ecónomica e nova Guerra Mundial.
95
BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 189.
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 189.
97
Ibidem, 189-190.
98
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 59.
99
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 190-191.
100
Ibidem, p. 191-192.
96
16
Portanto, conforme bem ensina NOVAIS, é só neste momento que o Estado
admitia “(...) a necessidade de superar os pressupostos do liberalismo e assumia, no
objectivo da prossecução da justiça social, a via para a integração das camadas até
então marginalizadas. E este objectivo era tanto mais inadiável quanto, nas
convulsões que atravessavam a Europa, era cada vez mais presente a referência à
alternativa soviética de resolução da questão social.” (grifos do autor).
101
Além do
mais, “(...) o que a nova época exigia era não apenas um acréscimo das
intervenções do Estado, mas uma alteração radical na forma de conceber as suas
relações com a sociedade.”
102
Por essa razão, o Estado Liberal era incapaz de
satisfazer tal contexto.103
Por conseguinte, a crise do Estado Liberal e as demandas igualitárias deram
ensejo a uma série de mudanças nas “formas de exercício do poder e de políticas
públicas”
104
, transformando o âmbito dos direitos e resultando na criação de um
novo modelo de Estado – o Estado Social. 105
Segundo Lenio Luiz STRECK e José Luis Bolzan de MORAIS,
(...) a percepção minimalista do Estado, atuante apenas para a segurança individual, é,
senão, desfeita, deslocada, pois a sua função passa a ser a de removedor de obstáculos
para o autodesenvolvimento dos homens pois, com um maior número de indivíduos
podendo usufruir das mais altas liberdades, estar-se-ia garantindo efetivamente o cerne
liberal, qual seja: a liberdade individual, dando-se valor novo e fundamental à igualdade de
106
oportunidades e a uma certa opção solidária.
(grifos dos autores).
Assim, o Estado encontrava-se em crise e essa crise implicou na crise da
noção de serviço público, pois, se num primeiro momento algumas atividades
comerciais e industriais, próprias da iniciativa privada, passaram a ser de sua
titularidade,
posteriormente
percebeu-se
que
não
possuía
uma
suficiente
organização para prestar tais atividades. Com isso, admitiu-se a prestação de
serviços públicos por particulares sem que a atividade fosse submetida a um regime
jurídico de direito público. 107
101
Ibidem, p. 192.
Ibidem, p. 193.
103
Idem.
104
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Op. cit., p. 51.
105
Ibidem, p. 51 e 59.
106
Ibidem, p. 57.
107
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Op. cit., p. 53-54.
102
17
Segundo Paulo BONAVIDES, a noção de Estado Social surge no momento
“(...) em que se busca superar a contradição entre a igualdade política e a
desigualdade social...”.
108
Ainda nas palavras do mesmo autor, “À medida, porém,
que o Estado tende a desprender-se do controle burguês de classe, e este se
enfraquece, passa ele a ser, consoante as aspirações de Lorenz von Stein, o Estado
de todas as classes, o Estado fator de conciliação, o Estado mitigador de conflitos
sociais e pacificador necessário entre o trabalho e o capital.” 109
Logo, como bem ensina Jorge Reis NOVAIS, “É na plena assunção desde
novo princípio de socialidade e na forma como ele vai impregnar todas as dimensões
da sua actividade – e não na mera consagração constitucional de medidas de
assistência ou no acentuar da sua intervenção económica – que o Estado se revela
como <<Estado social>>.”
110
Assim, o que dá sentido ao Estado Social é “uma
intenção de estadualização da sociedade e recíproca socialização do Estado”,
superando, assim, o pressuposto liberal de separação Estado-sociedade.
111
Vale
dizer que dessa forma também supera-se outro pressuposto liberal, qual seja a
separação Estado-economia,
112
pois converte-se em Estado econômico, se
envolvendo na produção (como Estado empresário) e intervindo na economia “em
função das exigências sociais e dos objectivos políticos por ele definidos.” 113
Este projecto, orientado para a prossecução de uma justiça social generalizada,
desenvolve-se não apenas numa política económica com o sentido referido, mas também
na providência estadual das condições de existência vital dos cidadãos, na prestação de
bens, serviços e infra-estruturas materiais, sem os quais o exercício dos direitos
114
fundamentais não passa de uma possibilidade teórica e a liberdade de uma ficção (...).
Com o Estado Social, vieram os direitos sociais, também chamados de
direitos fundamentais de segunda geração,
115
e, por isso, verificou-se um grande
aumento de serviços públicos. 116 Tais direitos, na concepção de Paulo BONAVIDES,
alicerçados no princípio da igualdade, “São os direitos sociais, culturais e
108
BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 185.
Idem.
110
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 193.
111
Ibidem, p. 188-189.
112
Ibidem, p. 192.
113
Ibidem, p. 193.
114
Ibidem, p. 194.
115
BONAVIDES, Paulo. Curso..., p. 564.
116
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit., p. 41.
109
18
econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades (...)”. 117 No mesmo
sentido, Asa Cristina LAURELL conceitua os direitos sociais como “(...) o direito de
ter acesso aos bens sociais pelo simples fato de ser membro da sociedade, e a
obrigação desta última de garanti-los através do Estado.” 118
Cabe ressaltar que o serviço público e, portanto, os direitos sociais estão
diretamente relacionados com as políticas sociais, estas compreendidas por Asa
Cristina LAURELL como “(...) o conjunto de medidas e instituições que têm por
objeto o bem-estar e os serviços sociais.” 119
Ainda no que tange aos direitos sociais, Mário Lúcio Quintão SOARES
defende que os mesmos são direitos fundamentais, “(...) pois não tendem a absorver
ou anular a liberdade individual, mas visam garantir o pleno desenvolvimento da
subjetividade humana.” 120
Relacionado-o com os direitos sociais, o Estado Social, nas palavras de
Paulo BONAVIDES, confere
(...) os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como
distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego,
protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as
profissões, compra a produção, financia a as exportações, concede crédito, institui
comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas,
coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio
econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios
121
que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual (...).
De forma complementar, Jorge Reis NOVAIS expõe que
(...) apesar das variações decorrentes de situações particulares, o Estado deve, na medida
comportada pelas circunstâncias objectivas, procurar garantir: os serviços e os sistemas
essenciais ao desenvolvimento das relações sociais na complexidade da sociedade actual
(desde os tradicionais serviços de transportes e fornecimento de água e eletricidade, à
protecção do ambiente, aproveitamento dos tempos livres e fruição dos bens culturais); a
segurança e estabilidade das relações de produção face às contingências da vida
económica, às flutuações do crescimento e aos antagonismos sociais, sem prejuízo da
iniciativa e parcialidade no incremento de políticas económicas e fiscais conducentes à
redistribuição da riqueza; um conjunto de prestações sociais tendentes a garantir uma vida
digna e protegida, independentemente da capacidade ou viabilidade da integração individual
117
BONAVIDES, Paulo. Curso..., p. 564.
LAURELL, Asa Cristina. Avançando em direção ao passado: a política social do
neoliberalismo. In: _____ (Org.). Estado e políticas sociais no liberalismo. Trad. Rodrigo Leon
Contrera. São Paulo: Cortez, 1995. p. 155.
119
Ibidem, p. 153.
120
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 200.
121
BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 186.
118
19
no processo produtivo, dos imponderáveis das condições naturais ou das desigualdades
sectoriais ou regionais (desde o salário mínimo e seguros sociais às prestações no domínio
122
da saúde, habitação e educação).
Neste contexto, segundo Mário Lúcio Quintão SOARES, “(...) as liberdades
públicas deverão ser asseguradas em consonância com a atuação e a presença do
Estado para garantir à grande maioria da população o acesso a bens e direitos que,
sem sua interferência, dificilmente seriam alcançados.”
123
Ainda sobre o tema,
explica que o espaço de aplicação dos direitos à igualdade e à propriedade é
aumentado, através de mudanças no sistema econômico capitalista. 124
Cabe ressaltar, conforme bem destaca Jorge MIRANDA, que esse novo
modelo de Estado é uma segunda versão de Estado de Direito, pelo fato da
liberdade individual, da limitação do poder estatal e do povo – como titular do poder
político – continuarem a ser valores fundamentais. 125
Se o povo e a limitação do poder estatal continuam a ser valores
fundamentais nesse modelo de Estado, por conseqüência continua a existir um
controle sobre a Administração Pública, tendo, no entanto, enfoques diferentes dos
existentes no modelo liberal. 126
A separação dos poderes, por exemplo, assume, agora, muito mais a
posição de evitar o exercício arbitrário, a concentração e o excesso do poder, em
detrimento da divisão muito mais mecanicista que fora realizada no modelo liberal,
possibilitando o pluralismo e uma certa interferência de um poder no outro na
realização das funções, 127 que tem como fim a garantia do interesse público.
Sobre o assunto, Jorge Reis NOVAIS narra que “(...) a instrumentalização e
politização da lei, requeridas pelo progressivo papel intervencionista do Estado
social, implicam a desvalorização do sentido material da lei (...) em favor de um
entendimento que privilegia a concordância, material e formal, da lei com as normas
e princípios constitucionais.” 128 (grifos do autor.)
122
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 196.
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p.199.
124
Idem.
125
MIRANDA, Jorge. Op. cit., p.53.
126
NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 214.
127
Idem.
128
Ibidem, p. 215.
123
20
Dessa forma, se é acoplado o enfoque social ao controle da Administração
Pública nesse modelo de Estado de Direito, o controle está à serviço também dos
direitos sociais, da igualdade material – e não apenas formal –, o que significa dizer
que o Estado Social é, com base nos ensinamentos de Jorge Reis NOVAIS, o único
modelo que pode ser democrático, por ser o único a garantir todos os direitos
fundamentais e, portanto, o Estado de Direito. 129
Ademais, justamente por seu caráter democrático, no Estado Social são
ampliados os mecanismos de controle do Poder Público, controle este que passa a
impor o cumprimento de critérios matérias de justiça, conforme Adriana da Costa
Ricardo SCHIER. 130
Em síntese, o Estado Social (i) se justificou não apenas por um controle de
legalidade, mas também de igualdade e de legitimidade; (ii) tendo como função a
garantia, de forma intervencionista, dos direitos fundamentais – e não mais a
estruturação do Estado, pois este já assim se encontrava – e (iii) como elementos
estruturais o Estado de Direito e a tripartição de poderes – não mais mecanicista.
Por fim, cabe mencionar que as Constituições mexicana de 1917 e alemã de
1919 (Constituição de Weimar) foram as precursoras desse novo modelo de Estado
de Direito, harmonizando em suas redações direitos de liberdade e direitos
socioeconômicos 131 (e, portanto, de serviços públicos).
3 CRISE DO ESTADO SOCIAL
No que tange ao Estado Social, Paulo BONAVIDES afirma que
Alcançá-lo, já foi difícil; conservá-lo, parece quase impossível. E, no entanto, é o Estado a
que damos, do ponto de vista doutrinário, valoração máxima e essencial, por afigura-se-nos
aquele que busca realmente, como Estado de coordenação e colaboração, amortecer a luta
de classes e promover, entre os homens, a justiça social, a paz econômica.
A técnica de implantá-lo sem distúrbios mostra-se, todavia, rodeada de problemas e
dificuldades. Basta comparar a sua caracterização constitucional, a palavra dos textos, com
a pobreza dos resultados obtidos na realidade.
129
Ibidem, p. 224-233. A relação entre Estado de Direito, democracia e direitos
fundamentais será retomada no capítulo 3 deste trabalho.
130
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. A participação popular na administração pública: o
direito de reclamação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 249-250.
131
MIRANDA, Jorge. Op. cit., p.53; NOVAIS, Jorge Reis. Op. cit., p. 188; SOARES, Mário
Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 205.
21
Como ele oscila, frágil, no meio do drama do poder, em face da tempestade de interesses
hostis e divergentes, alguns de cunho material, outros de cunho ideológico, todos a lhe
132
contrariarem de fato a aplicação!
O trecho acima ilustra a preocupação que os autores brasileiros, vinculados
aos valores democráticos, vem demonstrando frente às investidas contra o Estado.
Isso porque, segundo Asa Cristina LAURELL, “O avanço da produção e organização
social capitalistas sempre vem acompanhado de questões sociais complexas e
intensas.” 133
Tal relação pôde ser observada ao longo do trabalho com as exposições
sobre o avanço da produção e organização social capitalistas com as Revoluções
Burguesas e com a crise do modelo de Estado Liberal. Apresentados os aspectos
gerais do modelo de Estado Social, mostra-se oportuno analisar, agora, a referida
relação com o avanço da produção e a organização social capitalistas no decorrer
do século XX. Fatores estes que podem ser tomados como causa da crise desse
modelo de Estado.
Ana Cláudia FINGER pontua que o Estado Social “(...) acabou por revelar-se
ineficiente e, portanto, incompetente para concorrer com a iniciativa privada na
prestação de determinados serviços. É a crise do Estado Social, que surgiu
basicamente com os ventos da ideologia do Estado Neoliberal.”
134
A autora, como
se vê, vai apreciar a crise do Estado Social a partir da crítica feita a tal modelo pelo
neoliberalismo.
Perry ANDERSON, sobre o tema do neoliberalismo, refere que se trata de
“(...) uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de
bem-estar.” 135, sendo, portanto, diferente do liberalismo clássico, iniciando-se após a
II Guerra Mundial, em regiões em que predominava o capitalismo na Europa e na
América do Norte. 136
132
BONAVIDES, Paulo. Do Estado..., p. 187.
LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., p. 153.
134
FINGER, Ana Cláudia. Serviço Público: Um Instrumento de Concretização de Direitos
Fundamentais. A&C Revista de Direito Administrativo e Constitucional, Belo Horizonte, a. 3, n. 12, p.
141-165, abr./jun. 2003. p. 157.
135
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In.: SADER, Emir; GENTILI, Pablo
(Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1998. p. 9.
136
Idem.
133
22
Segundo o mesmo autor, o neoliberalismo apareceu pela primeira vez em
1944, em O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, no qual a intervenção do
Estado no mercado é apresentada como um ataque a liberdade econômica e
política.
137
Narra que logo após, em 1947, foi fundada a Sociedade de Mont Pèlerin,
formada por Hayek e outras pessoas contrárias ao Estado de bem-estar europeu e
norte-americano, que defendia a desigualdade como algo positivo e imprescindível,
combatia o Estado Social e propunha um novo capitalismo (anômico). 138
No entanto, conta que apenas em 1973, com a crise do modelo econômico
que fez com que grande parte do mundo tivesse baixo crescimento econômico e
muita inflação, é que o neoliberalismo começou a ganhar espaço e crença, pois até
então o capitalismo encontrava-se em um período de auge.139
Segundo Mário Lúcio Quintão SOARES, foi principalmente devido à crise do
fordismo (regime de acumulação firmado após a II Guerra Mundial), que
internacionalizou os mercados e a produção, que fez surgir, a partir de 1970, a crise
do Estado Social, que foi sofrida por suas respectivas instituições.140 O autor coloca,
ainda, que essa crise deve ser entendida como a crise do capitalismo e que ela
ainda põe em cheque a eficiência do Estado. 141
Em relação à explicação para a crise, Perry ANDERSON narra que para a
Sociedade de Mont Pèlerin a crise teve origem “(...) no poder excessivo e nefasto
dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído
as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os
salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez
mais os gastos sociais.” 142
Sobre o tema, Asa Cristina LAURELL explica que a crise econômica mundial
fez ascender a “Nova Direita como força político-ideológica”
143
e o discurso desta
força, fundamentado nas teorias de Hayek e Friedman, propõe uma explicação
137
Idem.
Ibidem, p. 9-10.
139
Ibidem, p. 10.
140
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 207.
141
Ibidem, p. 208.
142
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 10.
143
LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., 161.
138
23
sobre a crise e uma proposta para extingui-la,
144
a partir de concepções de um novo
modelo de Estado: o Neoliberal.
Neste modelo agora proposto, tem-se que “(...) o mercado é o melhor
mecanismo dos recursos econômicos e da satisfação das necessidades dos
indivíduos. De onde se conclui que todos os processos que apresentam obstáculos,
controlam ou suprimem o jogo das forças do mercado terão efeitos negativos sobre
a economia, o bem-estar e a liberdade dos indivíduos.” 145
Todas as características pretendidas para esse Estado Neoliberal se
colocam a partir de uma crítica às instituições do Estado Social. Por isso, segundo
Mario Lucio Quintão SOARES,
Os defensores do Estado mínimo questionam o Welfare State por suas intervenções
estatais, especialmente as políticas assistencialistas de altos custos, e pela burocratização
da vida social e econômica, que redunda em efeitos mais perniciosos do que os causados
pelas anomalias de mercado que pretendem corrigir: ineficácia das prestações, ausência de
146
produtividade dos serviços públicos, inflação e déficit público.
E o Estado proposto será então pautado nas seguintes medidas:
a) reprivatização dos serviços e prestação de bens de interesses sociais;
b) restrição das funções estatais no tocante à garantia do marco legal dos direitos e
liberdades;
c) redução da burocracia pelo critério custo/benefício;
d) desoneração dos custos dos serviços públicos, que devem ser imputados mais
147
diretamente aos seus usuários.
Assim, com tantas medidas em relação ao serviço público, a crise do Estado
Social, conforme será tratado no próximo capítulo, implicou na crise da noção de
serviço público.
Vale dizer que, nesse momento, começou a ser desenvolvido um modelo de
Administração Gerencial e, com este modelo de gestão, o controle da Administração
deixa de ser burocrático para ser pautado no resultado eficiente. Isso porque passou
a se defender que o controle burocrático é arcaico e que o controle proposto
ampliaria a participação popular no âmbito de decisões administrativas. 148
144
Idem.
Idem.
146
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: novos..., p. 153.
147
Ibidem, p. 209-210.
148
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Op. cit., p. 129-130, 251-252.
145
24
Perry ANDERSON sustenta que a proposta era a de que o Estado deveria
ser forte para: acabar com o poder sindical, criando, para tanto, uma determinada
taxa de desemprego; controlar os recursos, fazendo poucos gastos sociais e poucas
intervenções econômicas; fazer reformas fiscais, a fim de incentivar os agentes
econômicos.149
O mesmo autor explica que “A partir daí, a onda de direitização desses anos
tinha um fundo político para além da crise econômica do período. (...) O ideário do
neoliberalismo havia sempre incluído, como componente central, o anticomunismo
mais intransigente de todas as correntes capitalistas do pós-guerra.”
150
Isso pode
ser visualizado, por exemplo, com a eclosão da Segunda Guerra Fria, em 1978, e
esse combate contra o socialismo trouxe mais adeptos ao neoliberalismo político,
151
“(...) consolidando o predomínio da nova direita na Europa e na América do Norte.”152
De qualquer forma, as primeiras experiências neoliberais ocorreram em
governos de inspiração direitista.153 Porém, aqui já se tem o primeiro referencial que
permite a apuração crítica desse modelo.
Assim, é possível citar definição mais complexa de Perry ANDERSON sobre
o neoliberalismo: “(...) é um movimento ideológico, em escala verdadeiramente
mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um
corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a
transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão
internacional.” 154
No entanto, como bem afirma José COMBLIN, “(...) o processo de
desenvolvimento não pode ser igual nos países dominantes e nos países
dominados. O que é bom para os dominadores não será necessariamente bom para
os dominados.” 155
149
ANDERSON, Perry. Op. cit. p. 11.
Ibidem, p. 11-12.
151
Idem.
152
Ibidem, p. 12.
153
Sustenta Perry ANDERSON que “No início, somente governos explicitamente de direita
radical se atreveram a pôr em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo, inclusive os que
se autoproclamavam e se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal.”
(Ibidem, p. 14.) – o que demonstra a hegemonia do neoliberalismo como ideologia. (Idem.)
154
Ibidem, p. 22.
155
COMBLIN, José. O neoliberalismo: ideologia dominante na virada do século. Petrópolis:
Vozes, 1999. p. 103.
150
25
Em outras palavras, pode-se dizer que a política neoliberal poderia ser boa
para o desenvolvimento de alguns países e ruim para o de outros, notadamente para
o daqueles que não asseguraram aos cidadãos o pleno gozo dos direitos sociais.
Isto porque entende-se no presente trabalho que a consagração de tais direitos só
ocorrerá com a devida atuação do Estado através da prestação do serviço público –
o que é absolutamente incompatível com as propostas neoliberais.
Assim, o neoliberalismo obteve êxito no tocante à deflação, aos lucros, no
crescimento das taxas de desemprego, na contenção do poder do movimento
sindical, das greves e dos salários. 156
Porém, a partir de uma análise crítica, os efeitos sociais do neoliberalismo
são a desigualdade, o desemprego, a redução dos serviços sociais e algumas
conseqüências culturais.
157
Ademais, o controle da Administração realizado
mormente pelos cidadãos pode se configurar numa falácia se não existirem reais
condições dessa participação popular, pois os excluídos do exercício de direitos
sociais (que, em decorrência das práticas neoliberais, não são poucos) não terão
condições de estarem incluídos nessa participação, diminuindo, então, o exercício
do controle sobre aquela. 158
Note-se que também do ponto de vista econômico, o neoliberalismo não
alcançou os êxitos buscados, não permitindo a reanimação do capitalismo.159 Isso
porque a recuperação dos lucros não recuperou os investimentos, pois a
desregulamentação financeira “(...) criou condições muito mais propícias para a
inversão especulativa do que produtiva.”
160
e, principalmente, pelos gastos sociais
não terem diminuído. Esta última razão se deu pelos gastos com o desemprego e
com as pensões (pelo aumento da taxa de aposentados na população).
161
Em 1991, o capitalismo entrou novamente em recessão, pois a dívida
pública da maioria dos países ocidentais e a dívida privada de empresas e famílias
aumentaram muito, acarretando muito desemprego e intensificando a crise. Apesar
das referidas conseqüências, o neoliberalismo continuou a ser sustentado,
156
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 14-15.
COMBLIN, José. Op. cit., p. 104-115.
158
SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Op. cit., p. 252.
159
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 15.
160
Ibidem, p.16.
161
Idem.
157
26
demonstrando seu dinamismo.
162
“O temário político segue sendo ditado pelos
parâmetros do neoliberalismo, mesmo quando seu momento de atuação econômica
parece amplamente estéril ou desastroso.” 163
Diante de tal contexto, em que o ideário neoliberal não é suficiente para as
demandas capitalistas e em que, ao mesmo tempo, o Estado não dá conta das
demandas sociais em face da adoção das medidas liberalizantes, cabe verificar as
soluções propostas.
Conforme COMBLIN, alguns governantes, na busca de solucionar a crise, já
começaram a fazer “(...) controle dos movimentos de capitais, limitação do comércio
exterior, freio às privatizações, reserva diante da diminuição dos impostos.”
164
Asa Cristina LAURELL faz um balanço sobre esse contexto e afirma que
“Por outro lado, nos países europeus, ocorre uma tendência à “americanização” das
políticas sociais. Ou seja, manifesta-se o fortalecimento do Estado de bem-estar
liberal, aumentando o domínio do mercado no campo social; essa é a expressão
concreta de que esta forma de Estado pode assimilar a plataforma neoliberal.” 165
Segundo Perry ANDERSON,
Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização
básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu
muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não
tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo
alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam,
disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos,
seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma
sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século
como o neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente,
166
milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes.
Por isso, Asa Cristina LAURELL considera que, embora tenham ocorrido
transformações nas políticas sociais, o Estado de bem-estar é irreversível,
fundamentando que os governos, por uma questão de ordem eleitoral, não
162
Ibidem, p. 16-17.
Ibidem, p. 17.
164
COMBLIN, José. Op. cit., p. 102.
165
LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., p. 165.
166
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 23.
163
27
conseguem se abster de seu dever de garantir os direitos sociais e acabar com as
instituições sociais básicas. 167
Ainda assim, pode-se dizer que o neoliberalismo é um movimento inacabado
e um balanço atual dele é provisório.
168
No entanto, “a desmontagem de serviços
públicos, as privatizações de empresas, o crescimento de capital corrupto e a
polarização social”
169
são fatos inegáveis, principalmente nos países que são
considerados “em desenvolvimento”, o que faz com que os direitos fundamentais de
primeira e segunda gerações sejam violados, em razão do serviço público nem
sempre ser bem prestado – quando prestado – e dos poderes do Estado e do
cidadão ficarem de mãos atadas devido à submissão às práticas neoliberais.
Justifica-se, então, a análise do presente trabalho, pois, na medida em que
reconhece o Estado brasileiro como um Estado Democrático de Direito, no qual
devem ser assegurados os direitos sociais, é imposto o dever da prestação de
serviços públicos. E vai além, impõe-se o dever de controle da prestação de tais
serviços, tomando tal idéia como necessária para a garantia de democracia. É essa
a abordagem dos próximos capítulos.
CONCLUSÃO
A partir da pesquisa realizada, podem ser tecidas algumas conclusões do
presente trabalho.
Com o advento do Estado de Direito, surgiram os mecanismos que
possibilitaram o desenvolvimento do instituto do controle da Administração Pública,
bem como da noção de serviço público adotada neste trabalho.
Tal Estado passou por diversas fases – que se configuraram nos modelos de
Estado Liberal e de Estado Social, bem como na crise do Estado Social – que lhe
atribuíram diversos enfoques, enfoques estes que, por conseqüência, modificaram
os institutos do controle e do serviço público.
A primeira dessas fases, que se conforma no Estado Liberal, se justificou
pelo controle do Poder Público e teve como funções a estruturação do Estado e a
167
LAURELL, Asa Cristina. Op. cit., p. 164-165.
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 22.
169
Ibidem, p. 18-19.
168
28
garantia, de forma abstêmia, dos direitos fundamentais. Estruturou-se pelo Estado
de Direito – princípio da legalidade – e a tripartição de poderes. Por esse Estado ter
sido controlado pela burguesia, o serviço público servia tão somente para
proporcionar a infra-estrutura necessária para o desenvolvimento do modelo
econômico capitalista e o controle da Administração Pública era restrito ao critério de
legalidade. Nessa dimensão, não existia justiça social.
Por isso, o Estado Liberal não deu conta das demandas sociais e estas
levaram ao aparecimento de um novo modelo de Estado, o Social. Esse modelo se
justificou não apenas por um controle de legalidade, mas também de igualdade e de
legitimidade, tendo como função a garantia, de forma intervencionista, dos direitos
fundamentais – pulverizando-se, então, os serviços públicos. Seus elementos
estruturais são o Estado de Direito e a tripartição de poderes – não mais
mecanicista.
Pelo aumento das atividades desse Estado, ocorreu a chamada crise do
Estado Social, sendo proposto um novo modelo de Estado – o Neoliberal. A partir
dessa proposta, houve uma diminuição considerável da prestação de serviços
públicos a fim de assegurar a manutenção do modelo econômico. No que tange ao
controle da Administração, foi proposta sua realização mormente pelos cidadãos, a
partir do critério da eficiência. Contudo, essa proposta gera muita desigualdade
social e o controle sobre a Administração é diminuído.
Com isso, em razão das conseqüências de cada um desses enfoques pelos
quais passaram o controle da Administração e o serviço público, foi possível adotar
uma concepção acerca desses institutos no presente trabalho: a do Estado Social.
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