HISTÓRIA E POLÍTICAS EDUCACIONAIS: UMA DISCIPLINA EM PERSPECTIVA E EM CONSTRUÇÃO Rachel Duarte Abdala UNITAU A ausência da História da Educação entre as disciplinas componentes da grade curricular das Licenciaturas vinha sendo sentida por especialistas da área educacional e apontada como um obstáculo, tanto no que se refere ao desenvolvimento de pesquisas na Licenciatura, quanto à formação dos futuros docentes. O debate considerava que a sensibilização e a formação de pesquisadores em História da Educação não deveria se restringir aos Cursos de Educação e de Pedagogia, mas estender-se à Licenciatura. Com a Reforma Universitária promovida pelo Ministério da Educação, foram apresentadas novas diretrizes curriculares de âmbito nacional para a formação de professores. Nessas novas diretrizes há a orientação de objetivos que poderiam ser alcançados por meio das reflexões propiciadas pelo estudo da história da educação. Partindo da premissa de que a complexidade do fenômeno educacional se articula com base, não só nos princípios antropológico, axiológico e epistemológico, mas também na dinâmica histórica, a compreensão dessa dinâmica torna-se fundamental para a própria compreensão da educação com vistas à percepção da prática transformadora da sociedade pela docência. O presente trabalho, gerado a partir da reflexão sobre a área de História da Educação e sobre a atuação da pesquisadora como docente responsável pela incipiente disciplina de História e Políticas Educacionais na Licenciatura, tem por objetivo contribuir com o debate, oferecendo uma análise da problemática e da experiência na constituição desta disciplina. A partir das disposições legais e do anseio de profissionais da área educacional, mais especificamente comprometidos com a História da Educação, constituiu-se, a partir de 2003, iniciando os trabalhos no ano letivo de 2004, a disciplina História e Políticas Educacionais, na Universidade de Taubaté, assim como em outras instituições de ensino superior que oferecem cursos de licenciatura, no País. Ë significativo o fato de essa disciplina ter sido inserida entre as disciplinas do primeiro ano dos cursos de licenciatura; desse modo, foi revestida da função de introduzir as disciplinas pedagógicas. Ainda que permaneça a ênfase, nas deliberações do Ministério da Educação e dos Conselhos Nacional e Estaduais de Educação, na prática como componente curricular das licenciaturas, a incorporação, na grade curricular, dessa disciplina fundamentalmente reflexiva, indica a necessidade e a percepção dos órgãos oficiais de ensino acerca da necessidade de questionar e discutir a educação. Tal constatação parte da premissa de que os alunos, futuros professores, devem, não somente conhecer, mas também refletir sobre as condições delimitadas pela legislação e pela constituição histórica da área educacional na qual atuarão. Os objetivos estabelecidos para essa disciplina são: iniciar os alunos no estudo do pensamento histórico, para possibilita-lhesr a compreensão do campo educacional, tendo como base a análise da conjuntura atual no país; estimular a reflexão sobre as relações entre escola e sociedade; incitar a discussão e a reflexão acerca das políticas públicas de educação, da organização do sistema escolar e da destinação e aplicação de recursos financeiros para a educação; analisar as transformações do modelo escolar e a constituição do campo educacional no Brasil, considerando influências internas e externas; e, problematizar a área educacional e incentivar o debate acerca das políticas públicas educacionais. Sua ementa prevê e propõe a análise das implicações histórico-sociais do fenômeno educacional, considerando como ponto de partida as discussões acerca das relações atuais entre escola e sociedade. Para tanto, parte da premissa de que tais relações só podem ser compreendidas a partir de uma incursão na história da constituição do campo educacional. Assim, privilegiará as transformações sofridas pelo campo educacional e seu impacto na história brasileira, considerando as especificidades da formação da escola no Brasil. Além disso, a disciplina tem, como meta, discutir as determinações políticas que incidem diretamente sobre a organização, a administração e as concepções educacionais. Nesse sentido, enfatizará as seguintes temáticas: políticas públicas de educação, organização do sistema escolar e recursos financeiros para educação. Para trabalhar essas temáticas, o programa estabelecido inicialmente para a disciplina contempla dois eixos principais, procurando enfatizar a sua historicidade: constituição e organização do campo e do sistema educacional no Brasil; e, políticas públicas de educação no país e, mais especificamente, no Estado de São Paulo. De acordo com Paulo Ghiraldelli (2001), a História da Educação divide-se em dois principais eixos temáticos: as construções pedagógico-didáticas e as políticas educacionais. O foco dessa disciplina recai sobre o segundo. Importa saber que as políticas educacionais guardam relação direta com a política nacional, assim como a História da Educação com a História do país. É consenso que o fenômeno educacional faz parte da história em geral. Sem perder a percepção dessas relações, aprofunda o estudo das políticas educacionais especificamente, o que, por sua vez, estabelece relação entre o Estado, a sociedade e a educação, e é, ao mesmo tempo, fruto dessa relação. Outro ponto de partida foi considerar a complexidade educacional e a especificidade da política como forma de articulação de interesses humanos. A complexidade educacional assenta-se nos princípios que lhe são inerentes: antropologia (aspecto das relações e da diversidade humana), epistemologia (conteúdo) e axiologia (valores que mediam as relações sociais). Essa complexidade estende-se à organização do sistema educacional no Brasil. Segundo David Plank (2001, p. 93), a complexidade organizacional do sistema educacional brasileiro é responsável por alguns problemas, tais como: a dificuldade em definir linhas de autoridade ou de divisão de responsabilidade administrativa e financeira entre os quatro sistemas educacionais (Nacional, Estadual, Municipal e Privado) que se sobrepõem, o que permite que dirigentes públicos em todos os níveis livrem-se de suas obrigações no sentido de assegurar e de oferecer educação a todos os brasileiros. Quanto à política, esta seria, por princípio, o meio a partir do qual o homem se organizaria em sociedade. Considerando o aspecto histórico, há que se mencionar os embates travados por meio da política para consolidar determinados interesses particulares. Nesse sentido, é possível asseverar que a política não estaria cumprindo sua função mais fundamental: assegurar que os direitos e deveres de todos os cidadãos sejam garantidos. Segundo Severino (2000), o Estado seria o gerenciador institucional do poder, e, nessa condição, deveria ser necessariamente democrático. “O Estado só se legitimaria se estivesse a serviço da justiça, se fosse um mediador da instauração histórica da equidade.” (Severino, 2000, p. 59). Assim, para estudar-se a configuração política atual, a legislação por ela concebida e suas conseqüências, é preciso, antes de tudo, observar que, ao longo do tempo, a História da Educação e das políticas educacionais é marcada por um aspecto que Severino (2000) chama de “frustrações históricas”. Com essa expressão ele se refere diretamente à expectativa gerada a cada nova lei elaborada com o intuito de solucionar, ou minimizar, os problemas enfrentados historicamente pela Educação. Expectativa esta, mais recentemente reavivada com a promulgação da Constituição de 1988 e da aprovação da Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996. Portanto, qualquer estudo que se dedique a compreender as políticas educacionais deve, necessariamente, englobar uma perspectiva histórica. David Plank (2001) aponta dois “problemas-chave” no sistema educacional brasileiro: “a freqüente e radical disjunção entre as metas publicamente declaradas e os objetivos de fato perseguidos pelos encarregados do sistema; e, a desproporção na ênfase colocada sobre a administração e o controle às custas do ensino e aprendizagem”. (Plank, 2001, 93). É preciso frisar que esses problemas se desdobram em outros. Com relação aos objetivos declarados pelo poder público em relação à educação, Plank (2001) observa que, historicamente, centralizam-se em dois: 1) reduzir o analfabetismo e garantir o acesso ao ensino fundamental para todos; 2) resolver o persistente dualismo (educação popular e de elite) do sistema de educação. Acrescente-se que, para compreender os motivos pelos quais esses problemas não foram sanados e, portanto, continuam a obstaculizar o desenvolvimento educacional e, conseqüentemente, político, cultural e econômico, é fundamental olhar retrospectivamente a constituição do campo educacional e as relações que este foi estabelecendo nesse processo. Estudar as políticas educacionais implica perceber a dicotomia e a dinâmica entre a elaboração das leis e a sua aplicação. Para Vanilda Paiva (1990), “a fixação de objetivos e de políticas passa sempre por uma complicada rede de interesses e por uma trama que envolve os políticos profissionais e setores importantes do colchão tecnocrático. Por outro lado, a implementação já supõe a interferência de novos atores e novas contradições que permeiam a vida social. Por isso mesmo, entre uma política estabelecida e seus resultados, a distância é sempre e necessariamente grande” (Paiva, 1990, p. 17). Assim, para compreender e atuar na educação, não é suficiente apenas conhecer a legislação vigente, mas perceber seus limites históricos e políticos. Desse modo, a inserção do estudo da História da Educação entre as disciplinas constituintes do currículo do curso de Licenciatura, cuja função é formar professores aptos a atuar no Ensino Fundamental e no Médio, representou, não só o atendimento à necessidade de propiciar, no período de formação, a reflexão acerca da importância de rever e de questionar a história educacional, mas também o reconhecimento da relevância da História da Educação como campo e como disciplina. Superando os limites dos cursos de Pedagogia, aos quais ficava restrita, a disciplina assume seu papel precípuo de incitar a reflexão e a compreensão da complexidade educacional e sua relação com a sociedade. Além disso, preenche a lacuna freqüentemente apontada e profundamente sentida pelos profissionais da área. Ao refletir acerca da História das disciplinas escolares, André Chervel (1990) analisa a concepção que se consolidou a respeito do conceito de disciplina escolar. Nessa abordagem, demonstra o desenvolvimento histórico do conceito e de sua aplicabilidade. O conceito de disciplina está, segundo Chervel (1990), associado a seus sinônimos: “matéria” e “conteúdo” de ensino. Entretanto, ainda que essa tenha sido a noção cristalizada, percebe-se, em determinados momentos históricos, a disciplina como um exercício intelectual. Para Chervel (1990), outro aspecto complicador, na análise do conceito de disciplina, é a sua relação com o verbo disciplinar, cujo sentido é o de exigir obediência às regras e normas estabelecidas. Apesar dessas ressalvas, Chervel (1990) conclui que: “Uma disciplina, é igualmente, para nós, em qualquer campo que se a encontre, um modo de disciplinar o espírito, quer dizer, de lhe dar os métodos e as regras para abordar os diferentes domínios do pensamento, do conhecimento e da arte”. (Chervel, 1990, p. 181). É essa concepção que norteia a constituição dessa nova disciplina das licenciaturas: a de oferecer subsídios e a de fomentar a reflexão acerca dos problemas, das regras e da constituição, a partir de uma abordagem fundamentalmente histórica, do campo educacional aos futuros professores. Além do conceito de disciplina, há que se estudar ainda os de democracia, cidadania, educação, história, apenas para citar os mais fundamentais, para compreender e perceber o papel que cabe ao professor, não como mero coadjuvante do sistema educacional, mas como ativo participante que segue, sim, as regras estabelecidas, mas que, ao mesmo tempo, as compreende e as questiona. Pois, conforme Paulo Ghiraldelli (2001), o papel da História da Educação é o de questionar filosoficamente a educação, ultrapassando o espontâneo e o senso comum, tornando a prática do questionamento intencional e consciente, sem, contudo, cair na falácia do radicalismo contestatório, que não se preocupa em construir a partir dos questionamentos. Deve-se, ao contrário, conceber a educação como uma práxis, ou seja, como uma prática que estabelece a relação entre o agir e o pensar, dinamizando e fundamentando a ação. É precisamente este o papel que se projeta a esta disciplina, que desencadeia, assim como cada nova lei educacional, uma expectativa de mudança. Esse é o “olhar prospectivo” aludido por Ghiraldelli (2001): compreender o passado possibilita dar sentido ao presente e projetar o futuro. A implantação da disciplina “História e Políticas Educacionais” vem sendo acompanhada de reflexão e de intenso debate entre os professores responsáveis por sua aplicação, no intuito de perceber seus limites e suas funções. Assim, este trabalho pretendeu divulgar a experiência vivida e apresentar as reflexões desenvolvidas no processo de implantação da disciplina: “História e políticas educacionais” na Universidade de Taubaté, percebendo que a legislação, a política e a própria educação se constituem com base nos processos históricos. Referências bibliográficas: CHERVEL, André. “História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa”. In: Teoria & Educação, (2), 1990. GHIRALDELLI Jr., Paulo. História da Educação. 2. ed., São Paulo: Cortez, 2001. GIROUX, Henry. Os professores como intelectuais transformadores: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1998. 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