LUCAS OLIVEIRA ANDRADE COELHO Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasília Cientista Político pela Universidade de Brasília Especialista em Direito do Estado e Constituição pela UCAM Procurador do Estado de Minas Gerais Advogado POLITÍCAS PÚBLICAS DE SAÚDE E A PROTEÇÃO À PROPRIEDADE INTELECTUAL DAS PATENTES DE MEDICAMENTOS Artigo científico apresentado como tese para o Congresso Nacional de Procuradores do Estado - 2013 BRASÍLIA 2012 2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 3 1 DO SISTEMA DE PROTEÇÃO À PROPRIEDADE INTELECTUAL ..................................... 6 2 O ACORDO TRIPS E AS PATENTES DE MEDICAMENTOS .............................................10 3 A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA DE LICENCIAMENTO COMPULSÓRIO DE ANTIRRETROVIRAIS..................................................................................................................13 CONCLUSÃO .............................................................................. 1Error! Bookmark not defined. REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 16 3 INTRODUÇÃO O presente Artigo Científico pretende analisar o polêmico e atual debate entre os Direitos de propriedade intelectual referentes aos fabricantes de medicamentos e as políticas de saúde pública, o amplo acesso aos medicamentos e o direito universal aos tratamentos existentes. O entrave que aqui se adentra é extremamente complexo, constituindo uma verdadeira dicotomia entre Direitos Humanos e os Direitos Econômicos e de Propriedade. O que se pretende neste ensaio é abordar as múltiplas facetas que envolvem a temática. Existem variáveis econômicas, jurídicas e sociais que devem ser levadas em consideração. Há uma preocupação com o exercício da atividade empresarial e da livre iniciativa, há uma dicotomia presente nessa relação. Para que haja o desenvolvimento de fármacos e tratamentos medicamentosos, há um massivo investimento por parte das indústrias do setor, investimento esse que deve ser devidamente remunerado, para que haja continuidade no desenvolvimento desses produtos. Ademais, em não havendo o devido retorno econômico, uma verdadeira crise acometerá o setor e os avanços tecnológicos poderão ser prejudicados o que geraria um prejuízo para toda a humanidade que se beneficia diretamente dos avanços tecnológicos auferidos pela Pesquisa e Desenvolvimento das Indústrias Farmacêuticas. Por outro lado, por mais que essas indústrias invistam valores vultosos no desenvolvimento de seus produtos, os seus ganhos são proporcionalmente elevados. Deve haver uma parcimônia na ponderação dos ganhos e investimentos, por mais que o lucro seja um produto do labor, este deverá ser razoável. A Constituição brasileira é lastreada pela razoabilidade e proporcionalidade, considerados super-princípios 1 constitucionais balizadores de todo nosso ordenamento jurídico, juntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o direito à vida e à saúde constituem direitos humanos fundamentais, que possuem uma proteção especial em nosso ordenamento jurídico. Por outro lado, esse mesmo ordenamento jurídico protege a livre iniciativa e a propriedade intelectual que, igualmente, são direitos da própria personalidade, pois a invenção e a inovação estão diretamente relacionadas aos direitos autorais, direitos de cunho personalíssimos. 1 Conceito utilizado por Alexandre de Moraes 4 Em face de todos esses valores jurídicos, econômicos e sociais tão importantes, é necessário beber da fonte da filosofia do Direito e da Hermenêutica jurídica, para que se chegue a uma solução razoável. A teoria defendida por Robert Alexy afirma que não existem Direitos Absolutos e não há como sobrepesar direitos fundamentais. Não existiria assim, um método objetivo para valorar e escalonar direitos, estes devem ser ponderados em cada caso, utilizando-se de um juízo de razoabilidade se buscará um solução na qual não haverá o sacrifício pleno de nenhum dos direitos e sim uma intersecção onde haverá o sacrifício razoável de cada um desses direitos para que haja a sobrevivência de ambos. Nesse sentido é o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux; Ocorre que nenhuma norma constitucional, nem mesmo a regra da coisa julgada ou o princípio da segurança jurídica, pode ser interpretada isoladamente. A Constituição brasileira em vigor caracteriza-se como um típico compromisso entre forças políticas divergentes, que em 1988 se uniram para definir um destino coletivo em comum, balizando a atuação dos poderes políticos através das regras e dos princípios definidos no pacto constitucional. Trata-se de compromisso porquanto a base plural da sociedade, no momento constituinte, assinalava relevância a valores díspares, sem uma univocidade ideológica, provocando a convivência, por exemplo, da liberdade de expressão (CF, art. 5º, IV) e do direito à intimidade (CF, art. 5º, X), da proteção do consumidor (CF, art. 5º, XXXII, e art. 170, V) e do princípio da livre iniciativa (art.170, caput), e de muitos outros casos mais. A finalidade por detrás deste pacto político abrangente, como explicita o art. 3º do texto Constitucional, consiste em conduzir o Estado brasileiro à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional de forma a erradicar a pobreza, a marginalização e a reduzir as desigualdades sociais e regionais,com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, inc. I a IV). É justamente na concretização de tais metas, porém, que o caráter compromissório da Carta de 1988 se mostra mais evidente, porquanto no caminhar para atingir tais desideratos podem entrarem rota de colisão valores igualmente caros ao texto constitucional. Nesses casos, que sob um primeiro ângulo poderiam ensejar verdadeiras arbitrariedades pelo intérprete, ao optar, em voluntarismo, pela norma que lhe parecesse merecedora de maior prestígio, impõe-se, como ensina a novel teoria da interpretação constitucional, a harmonização prudencial e a concordância prática dos enunciados constitucionais em jogo, a fim de que cada um tenha seu respectivo âmbito de proteção assegurado, como decorrência do princípio da unidade da Constituição. Em outras palavras, cabe ao intérprete conciliar as normas constitucionais cujas fronteiras não se mostram nítidas à primeira vista, assegurando a mais ampla efetividade à totalidade normativa da Constituição, 5 sem que qualquer de seus vetores seja relegado ao vazio,desprovido de eficácia normativa. Todo esse caminho lógico a ser percorrido para a harmonização de comandos normativos indicando soluções opostas demanda do aplicador da Constituição a reconstrução do sistema de princípios e de regras exposto no seu texto,guiado por um inafastável dever de coerência. E é somente quando essa tentativa de definição dos limites próprios a cada norma fundamental se mostrar infrutífera, já que sobrepostos os respectivos âmbitos de proteção, que cabe ao intérprete fazer o uso da técnica da ponderação de valores, instrumentalizada a partir do manuseio do postulado da proporcionalidade, a fim de operar concessões recíprocas, tanto quanto se faça necessário, entre os enunciados normativos em jogo, resguardado, sempre, o núcleo essencial de cada direto fundamental. E por não ser lícito, mesmo nessas hipóteses, a ablação da eficácia, em abstrato, das normas constitucionais, o resultado do método ponderativo há de ser o estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios em jogo, identificando-se o peso prevalecente de uma das normas com o devido balizamento por parâmetros (standards) interpretativos que reduzam a arbitrariedade e estimulem a controlabilidade intersubjetiva do processo decisório. [...] [...] Não basta, no entanto, cotejar, imediatamente após isso, o peso de tal razão subjacente diante dos outros princípios em jogo. É imprescindível que se leve em conta, ainda, que as regras jurídicas, como categoria normativa, têm por reflexo, em sua aplicação, a promoção de valores como previsibilidade, igualdade e democracia. Assim, a técnica da ponderação apenas poderá levar ao afastamento de uma regra jurídica quando restar demonstrado, de modo fundamentado, que os princípios que lhe são contrapostos superam, axiologicamente, o peso (i) da razão subjacente à própria regra e (ii) dos princípios institucionais da previsibilidade, da igualdade e da democracia. Deste modo, como afirma o Prof. Luís Roberto Barroso especificamente quanto à tese da relativização da coisa julgada material, a técnica da ponderação, instrumentalizada pelo postulado da proporcionalidade, tem de ser usada com cautela, já que a previsão da coisa julgada como uma regra “reduz a margem de flexibilidade do intérprete”. 2 Por mais que o debate teórico pareça distante da realidade prática, esse é a solução mais razoável para a regência dessas relações, considerando que deve haver o acesso à saúde e aos ganhos que esses medicamentos podem proporcionar para a humanidade. Entretanto as empresas deverão ser devidamente remuneradas pelo seu trabalho, porque se não o for, pela própria lógica das vantagens comparativas, esse negócio deixará de ser interessante aos olhos dos investidores e a indústria farmacêutica ruirá. 2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 363889/DF, Voto vista, Min. Luiz Fux. Julgado em: 02 jun. 2011. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE363889LF.pdf> Acesso em: Dez, 2012. 6 A conclusão a que se chega é objetiva e direta: no presente ensaio, para que criação de uma síntese, será necessária a análise de ambas as teses, realizando um estudo acerca da proteção das patentes farmacêuticas e os mecanismos que o próprio sistema possui de flexibilização destas. Os debates principais passarão pelo sistema brasileiro de proteção à propriedade intelectual, o sistema internacional dos TRIPS - Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights 3 (TRIPS) e o licenciamento compulsório de patentes. Constituindo estes os marcos jurídicos e o sistema que atualmente regulamenta as relações de patentes farmacêuticas. 1 DO SISTEMA DE PROTEÇÃO À PROPRIEDADE INTELECTUAL Nos dias atuais, existe um sistema de proteção à propriedade intelectual, ao contrário do que ocorria em um passado remoto, onde as criações eram livremente compartilhadas pela comunidade local. Em outros tempos, conforme disserta Francisco Viegas Neves da Silva 4, as invenções e tudo que o homem produzia caíam em domínio público, podendo ser usufruído por todos os membros da comunidade sem restrições e sem nenhuma pena ou sanção, porquanto ainda não existia a mentalidade de que as idéias e invenções úteis para a sociedade poderiam ter algum valor pecuniário. Esse pensamento amadureceu no início do mercantilismo, quando os comerciantes agregavam valor aos produtos e invenções que trouxessem novidades para o mercado. Com o decorrer do tempo, percebeu-se que a invenção por sua própria utilidade e pelo tempo e investimento desprendido por seu criador deveria trazer algum beneficio aos seus idealizadores. Na falta de um sistema, o que foi empiricamente construído se constituía mais como um privilégio do que qualquer outra coisa, somente depois de muito tempo é que o instituto da Patente foi pensado. 3 Em português: Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. 4 SILVA, Francisco Viegas Neves da, Patentes farmacêuticas e direitos humanos: pela flexibilização do acordo TRIPS em face da saúde pública in Revista de Direito Privado, Ano 8, n° 31, jul-set/2007, Revista dos Tribunais. p. 74 7 Francisco Viegas Neves da Silva assim descreve acerca da diferença entre privilégio e patente: “(...) não são sinônimos, uma vez que privilégio é o próprio direito do inventor, enquanto a patente consiste no título legal de seu exercício.” 5. Para Eduardo Maldonado Casinhas da Silva o instituto da patente é uma recompensa, na medida em que permite ao seu titular ressarcir-se das vultosas despesas efetuadas com pesquisa, desenvolvimento e aplicação industrial do novo produto. Este monopólio é a retribuição que o Estado confere ao inventor pelos benefícios por este proporcionados à sociedade. 6 Uma definição mais precisa e mais atual do sistema de Patente, inclusive levando em consideração a legislação pátria, é acertadamente conceituado por Wiecko Volkmer de Castilho 7: “A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar produto objeto de patente, processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado, bem como de obter indenização pela exploração indevida.” Segundo o Professor Denis Borges Barbosa 8, o Brasil foi um dos primeiros países a criar um sistema de proteção por meio do Alvará de 28 de abril de 1809, assinado por D. João VI, que instituiu a lei de patentes, válida apenas em território nacional, concedendo ao inventor o privilégio de uso exclusivo por 14 anos. Com a ampliação das transações internacionais, a necessidade de uma regulamentação das invenções foi crescendo paulatinamente. As feiras internacionais eram os lugares onde ocorriam as divulgações das invenções. Entretanto, com o receio de que essas 5 SILVA, Francisco Viegas Neves da, Patentes farmacêuticas e direitos humanos: pela flexibilização do acordo TRIPS em face da saúde pública in Revista de Direito Privado, Ano 8, n° 31, jul-set/2007, Revista dos Tribunais. p. 74 6 SILVA, Eduardo Maldonado Casinhas da, A indústria e as patentes farmacêuticas no Brasil, in Revista da ABPI, nº 15, mar-abr 1995, p 37. 7 CASTILHO, E. W. V. . Patentes de Produtos de Origem Biológica. In: XVII Conferência Nacional dos Advogados: Justiça, realidade ou utopia, 2000, Brasília. XVII Conferência Nacional dos Advogados. Brasília: OAB - Conselho Federal, 2000. v. 2. p. 1507-1522. 8 BARBOSA, Denis Borges, Porque o Brasil entrou na Convenção de Paris em 1883. Disponível em: <http://denisbarbosa.addr.com> Acesso em Dez, 2012. 8 fossem apropriadas por outrem, sem a compensação financeira cabível, alguns expositores optaram em não participar desses eventos 9. Nesse cenário, em 1883, ocorreu a Convenção da União de Paris para a proteção da Propriedade Intelectual, que vigorou por quase um século, sendo o primeiro sistema de proteção aos direitos autorais de ordem internacional. Em sua gênese, poucos foram os signatários, entretanto com o decorrer do tempo os países foram aderindo à Convenção 10. Nos dizeres de Mônica Steffen Guise 11, A CUP foi o primeiro tratado internacional de grande alcance destinado a facilitar que os nacionais de um país obtivessem proteção em outros países para suas criações intelectuais mediante direitos de propriedade industrial, a saber: as patentes, as marcas, os desenhos e os modelos industriais. Entrou em vigor em 1884 em quatorze Estados, e para ela criou-se uma secretaria própria encarregada de realizar tarefas administrativas. A CUP não buscava uma padronização das normas substantivas relativas a patentes nos regimes jurídicos nacionais, mas sim o estabelecimento de garantias mínimas aos inventores quando tornassem públicas suas invenções. Os três princípios fundamentais da Convenção no tocante à proteção patentária, e que até hoje regem a proteção internacional da propriedade intelectual, eram: o tratamento nacional, a independência e a prioridade. No modelo seguido pela Convenção, as relações referentes à propriedade intelectual eram reguladas na órbita da Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Contudo, com o passar do tempo e com o grande desenvolvimento do Comércio Internacional e o surgimento do Multilateralismo, o debate das patentes e desses direitos de propriedade intelectual com reflexo econômico passou a ser travado na órbita econômica. Fato esse que atraiu a aplicação do Acordo Geral de Tarifas e Comércio - GATT, como foro mais conveniente para a negociação de um novo acordo, agora na órbita do comércio exterior. Ainda nos dizeres de MÔNICA STEFFEN GUISE, A escolha do GATT como foro mais conveniente aos países desenvolvidos explica-se por uma série de razões. A partir da década de 1980, os direitos de propriedade intelectual converteram-se em um dos principais temas de conflito nas negociações de 9 PIMENTEL, L. O. . Direito de patentes: evolução histórica do regime de proteção jurídica das invenções. Saberes (Jaraguá do Sul), Jaraguá do Sul, v. 1, n.3, p. 138, 2000. 10 Para ter acesso à totalidade dos membros da CUP, verificar site da OMPI. Disponível em: WWW.wipo.org 11 GUISE, Mônica Steffen Guise, COMÉRCIO INTERNACIONAL, PATENTES E SAÚDE PÚBLICA, PósGraduação em Direito UFSC, Florianópolis: 2006. 9 alcance econômico internacional. De fato, desde a década anterior, os conhecimentos tecnológicos começaram a adquirir papel de importância fundamental na economia, gerando um movimento de internacionalização do comércio sem precedentes. Além disso, houve maior conscientização de que numerosas novas tecnologias poderiam ser facilmente copiadas (ROFFE, 1997, p. 239) Nesse cenário, inexistia um acordo que obrigasse os países a respeitarem a propriedade intelectual, impedindo assim a falsificação e apropriação desse capital intelectual. Os países desenvolvidos, em especial, os Estados Unidos da América, em face da ineficácia do CUP – que não restringia os países signatários no âmbito de suas legislações internas – os países clamavam por uma regulamentação internacional do setor. Tendo em vista que os países desenvolvidos e os Estados Unidos, eram e são detentores da maioria das criações e inovações tecnológicas. Nesse sentido, o debate no GATT era mais interessante aos países desenvolvidos, estes e suas grandes corporações lutaram com empenho, especialmente na última rodada do Uruguai, onde ficaram explícitas as intenções, dos países desenvolvidos, de ampliar a patenteabilidade dos produtos, em especial os do ramo farmacêutico 12. Interessante discurso foi proferido pelo então Senador Romero Jucá, em 11 de novembro de 2003, oportunidade em que críticou o acordo TRIPS, afirmando que os países desenvolvidos, por serem os maiores detentores de patentes, objetivavam modificar os dispositivos da Convenção de Paris. Contudo, como não foi possível, porque eles não conseguiram a maioria dos votos no âmbito da Convenção de Paris. Com o fito de contornar essa situação, os países desenvolvidos trouxeram a questão para o âmbito do Comércio Internacional. Nesse momento é oportuno delimitar o atual sistema jurídico de proteção de patentes. O atual sistema internacional é o supramencionado TRIPs. Basicamente, esse acordo estabelece um patamar mínimo que deverá ser seguido por todos os integrantes. Por constituírem normas de ordem internacionalistas, não poderiam interferir diretamente nas legislações locais, por isso que o estabelecimento de patamares mínimos foi um mecanismo útil. 12 GUISE, Mônica Steffen Guise, COMÉRCIO INTERNACIONAL, PATENTES E SAÚDE PÚBLICA, PósGraduação em Direito UFSC, Florianópolis: 2006, p 10. 10 Esse acordo compõe o Anexo 1-C do Acordo Geral que cria a Organização Mundial do Comércio – OMC. Nesse sentido, se um país tem interesse em participar da OMC, o que é praticamente requisito mínimo de sobrevivência na nova ordem mundial, ele deve seguir esses padrões mínimos estabelecidos pelo TRIPs. O problema segundo doutrina estabelecida é que, ao criar esse “piso”, ou esse patamar mínimo, há uma generalização no nível de desenvolvimento e de estruturação dos países e um tratamento que não gera isonomia, pois antes na vigência da CUP, os países adequavam sua legislação de acordo com a necessidade de desenvolvimento, podendo relativizar amplamente o tratamento das patentes às suas reais necessidades. 2 O ACORDO TRIPS E AS PATENTES DE MEDICAMENTOS O Brasil, por exemplo, conforme explanação de Francisco Viegas Neves da Silva 13 “optou por não conceder patentes a produtos farmacêuticos, possuindo tal motivação um cunho político, qual seja, de proporcionar, via apropriação do conhecimento alheio, o desenvolvimento tecnológico nacional”. Essa faculdade exercida pelo Brasil era amparada pela Convenção de Paris por ser considerado produto essencial, por razões de interesse social, ameaça à saúde e à segurança pública. Nessa contraposição de interesses preponderaram os interesses dos países desenvolvidos. O lobby das indústrias foi fortíssimo e mesmo com a forte oposição do Brasil e Índia, o TRIPs foi aprovado. No ramo das empresas farmacêuticas, o argumento era de que o investimento em Pesquisa & Desenvolvimento eram cada vez mais altos e o desrespeito aos seus direitos de propriedade intelectual iam criar uma estagnação do desenvolvimento, argumento que foi considerado e criou-se esse cenário momentaneamente favorável à corrente própatenteamento. 13 SILVA, Francisco Viegas Neves da, Patentes farmacêuticas e direitos humanos: pela flexibilização do acordo TRIPS em face da saúde pública in Revista de Direito Privado, Ano 8, n° 31, jul-set/2007, Revista dos Tribunais. p. 76 11 Além do lobby e do poder de coalizão intrínseco à política externa dos países desenvolvidos, eles ainda detém o controle da cláusula de single undertaking, assim foi aprovado o acordo TRIPS como sendo uma das disposições da OMC. Os países em desenvolvimento não desejavam o desrespeito às patentes e sim que houvesse real transferência de tecnologia 14. O TRIPs prevê oito modalidades de propriedade intelectual, quais sejam: direitos de autor e conexos, marcas, indicações geográficas, desenhos industriais, patentes, topografias de circuitos integrados, proteção de informação confidencial e controle de práticas de concorrência desleal em contratos de licença. O acordo prevê também exceções, ou seja, algumas hipóteses de relativização das patentes como o licenciamento compulsório – o que ocorreu em alguns casos no Brasil – sob o argumento de acesso à saúde como, por exemplo, no caso dos genéricos e dos retrovirais que combatem à AIDS. O acordo prevê algumas hipóteses de flexibilização no que tange ao acesso aos medicamentos. Entre elas os chamados períodos de transição, a exaustão internacional de direitos e a importação paralela e por fim, o uso experimental, a licença bolar e o licenciamento compulsório. Em relação aos períodos de transição, os artigos 66 e 65 do TRIPS preveem um prazo para que os países integrantes da OMC adéquem suas legislações de propriedade intelectual aos ditames previstos no acordo. Nos dizeres de Lia Hasenclever 15 Os prazos variam conforme o nível de desenvolvimento de cada país. Países desenvolvidos tiveram até um ano (até 1996) para reformular suas legislações, enquanto países em desenvolvimento e menos desenvolvidos tiveram respectivamente, cinco anos (até 2000) e 11 anos (2006) para fazê-lo. O artigo 65 também estabeleceu que os países em desenvolvimento tinham 5 anos adicionais, ou seja até 2005 para conferir proteção da propriedade intelectual em campos tecnológicos não protegidos anteriormente. Posteriormente, a Declaração de Doha, estabelece que países menos desenvolvidos, que não 14 JUCA, Romero, Discurso proferido perante o Senado Federal em 11 de novembro de 2003,Disponível em: <www.senado.gov.br> Acesso em Dez, 2012. 15 HASENCLEVER, Lia. A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor farmacêutico e acesso a medicamentos. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2007. 12 reconheciam as patentes para produtos farmacêuticos antes da entrada em vigor do TRIPS, teriam um período de transição até 2016 para iniciar o reconhecimento. A Índia, por exemplo, optou por utilizar todo o período de transição e fortaleceu internamente seu parque industrial, o que viabilizou sua competitividade nesse setor, inclusive exportando medicamentos a preços mais acessíveis. O Brasil, por outro lado, em face das múltiplas retaliações efetivadas pelos EUA na década de 1980, para que o país reconhecesse as patentes dos produtos farmacêuticos, não teve êxito nesse sentido. Com isso, o Brasil passou a reconhecer essas patentes a partir de 1997. O instituto da importação paralela cinge-se à possibilidade de país poder importar produtos patenteados, desde que o produto tenha sido disponibilizado naquele mercado pelo detentor da patente. Portanto, ele já fora recompensado no país de origem. Nesse sentido, facultam-se aos múltiplos países importar o produto de onde seja mais economicamente viável e nesse intercambio de valores não há nenhuma vedação. Há ainda o uso experimental e a exceção polar, o primeiro se refere ao uso para investigação e pesquisa cientifica. Se o proprietário da patente está sendo remunerado por ela é justo que compartilhe seu conhecimento, como forma de consolidar uma relação recíproca e atribuir finalidade social à sua atuação. Já a exceção bolar é exatamente a possibilidade de se realizar testes, com a patente em questão, antes do vencimento da mesma, como forma de viabilizar, por exemplo, a produção de genéricos, após o prazo de expiração 16. Entre as relativizações previstas, a mais relevante é a licença compulsória. Está prevista no Art. 31 do TRIPS, resumidamente, trata-se da possibilidade da exploração por terceiros de uma patente sem o consentimento de seu detentor. Insta ressaltar, que as licenças compulsórias não devem ser concedidas de forma deliberada, somente algumas circunstâncias a autorizam. Dentre elas a falta de exploração do titular, existência de interesse público relevante e a ocorrência situações emergenciais. Para sanar práticas abusivas de mercado, por exemplo. 16 Barbosa, DBB. Uma introdução à propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. 13 O uso da licença compulsória não ocorre somente nos países subdesenvolvidos, os EUA e Canadá, por diversas vezes, se utilizaram desse instrumento como forma de regular os preços dos remédios em seus mercados internos. 17 3 A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA DE LICENCIAMENTO COMPULSÓRIO DE ANTIRRETROVIRAIS. Em 1986, deu-se inicio ao Programa Nacional de combate às DSTs e AIDS, que entre seus objetivos tinha a conscientização da população, a vigilância epidemiológica e especialmente a melhoria da qualidade de vida dos soropositivos 18. Entretanto, somente 10 anos após a criação desse Programa nacional foi editada a lei nº 9.313/1996, que expressamente previa a distribuição gratuita dos medicamentos necessários para o tratamento da AIDS, pelo Sistema Único de Saúde. 19 O governo brasileiro necessitava baratear o custo desses tratamentos, que era adquirido em dólar, em valores elevadíssimos. Uma forma seria estimular o parque industrial pátrio a produzir especialmente os antirretrovirais, componentes mais relevantes do chamado “coquetel” contra a AIDS. Dentre esses medicamentos, dois foram considerados de maior relevância pelos gestores brasileiros, o Nelfinavir e o Efavirenz. Em 2001, o governo brasileiro movimentou-se e iria realmente promover o licenciamento compulsório desses medicamentos, entretanto os laboratórios optaram por baratear os medicamentos. O mesmo fato se deu em 2005, oportunidade em que o governo brasileiro iria licenciar o Kaletra. O primeiro antirretroviral a ter o seu licenciamento compulsório concedido 17 HASENCLEVER, Lia. A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor farmacêutico e acesso a medicamentos. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2007. 18 PROGRAMA Nacional DST e AIDS. http://www.portalsida.org/Organisation_Details.aspx?orgid=1428 Acesso em Dez, 2012. 19 Disponível em: BRASIL. Lei 9.313, de 13 de novembro de 1996. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores de HIV e doentes de AIDS. 14 pelo governo brasileiro foi o Efavirenz, no ano de 2010, com isso reduziu-se de imediato o custo de 50% nos gastos com ele 20. Neste caso, o governo brasileiro decretou que o supramencionado medicamento era de interesse público, via portaria nº 886/2007. Abriu-se prazo para que o laboratório detentor da patente, Merck Sharp & Dohme oferecesse contraproposta. O Governo brasileiro não se satisfez com o preço proposto que passaria de US$ 1,59, para US$ 1,11, tendo em vista que o mesmo laboratório vendia esse medicamento na Tailândia por US$ 0,65. Em face da necessidade pública das políticas de saúde e dos elevados gastos que o governo brasileiro tinha anualmente com o medicamento, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto de nº 6.108/2007 e concedeu o licenciamento para o uso público e não comercial, ressalta-se. Apesar de um entrave com a Câmara de Comércio Norte-Americana, o Brasil persistiu na iniciativa. Contudo, decorridos 3 (três) anos do licenciamento a FIOCRUZ, responsável pela produção do medicamento, ainda não conseguira atender à demanda nacional pelo mesmo. 21 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste pequeno ensaio esboçado acerca da relação da propriedade intelectual com as patentes farmacêuticas, foi possível perceber que o cenário global mudou recentemente e tem havido um crescente fortalecimento das garantias às patentes. Por mais que o debate tenha saído da OMPI e seguido diretamente para o âmbito do Comercio Exterior, percebe-se que os entraves foram dificultosos e há resistência por parte de boa parte do mundo, especialmente dentro dos países em desenvolvimento, à rigidez absoluta e inflexibilidade ao sistema de patentes. 20 GALVÃO, Jane. A política brasileira de distribuição e produção de medicamentos anti-retrovirais: privilégio ou um direito. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/csp/v18n1/8158.pdf > Acesso em: Dez 2012 21 PRODUÇÃO de genérico contra aids ainda não atende demanda nacional. O Estado de São Paulo, São Paulo, p. A20, 06 mai. 2010. Disponível em: < http://www2.senado.gov.br/bdsf/bitstream/id/184409/1/noticia.htm> Acesso em: dez 2012 15 A estratégia de vincular à sujeição ao TRIPS ao próprio ingresso à OMC foi realmente extremamente eficaz, constituindo quase que uma coerção aos países para que respeitassem minimamente os direitos de propriedade intelectual. Posto que dificilmente um país sobreviveria nos tempos atuais sem o auxílio do Comércio Exterior em seu sistema de produção. É importante perceber que nesses assuntos os interesses públicos e privados estão extremamente intrincados e a maneira que os Governos locais assumem as demandas de seus industriais, o que representa o grande poder de lobby dessas indústrias. Conforme foi dito na introdução, o sistema atual prevê a existência de certos mecanismos de flexibilização. O que não impede, caso sejam implementados, que o país sofra sanções comerciais, especialmente bilaterais. Nesse diapasão, efetivamente, é na negociação internacional e na ponderação de valores que residem as soluções corretas casos concretos que se apresentam. Trazendo o debate para a seara jurídica, novamente reitera-se que o método da ponderação de valores constitucionais, de Robert Alexy, é totalmente adequado à resolução dos casos concretos, caso a caso, sendo que os valores constitucionais devem ser minimamente sacrificados. 16 REFERÊNCIAS BARBOSA, Denis Borges, Porque o Brasil entrou na Convenção de Paris em 1883. Disponível em: <http://denisbarbosa.addr.com> Acesso em Dez/2012. BARBOSA, DBB. Uma introdução à propriedade intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 363889/DF, Voto vista, Min. Luiz Fux. Julgado em: 02 jun. 2011. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE363889LF.pdf> Acesso em: dez, 2012. CASTILHO, E. W. V. . Patentes de Produtos de Origem Biológica. In: XVII Conferência Nacional dos Advogados: Justiça, realidade ou utopia, 2000, Brasília. XVII Conferência Nacional dos Advogados. Brasília: OAB - Conselho Federal, 2000. v. 2. GALVÃO, Jane. A política brasileira de distribuição e produção de medicamentos antiretrovirais: privilégio ou um direito. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/csp/v18n1/8158.pdf > Acesso em: dez 2012 GUISE, Mônica Steffen Guise, COMÉRCIO INTERNACIONAL, PATENTES E SAÚDE PÚBLICA, Pós-Graduação em Direito UFSC, Florianópolis: 2006. HASENCLEVER, Lia. A evolução do sistema internacional de propriedade intelectual: proteção patentária para o setor farmacêutico e acesso a medicamentos. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 2007. JUCA, Romero, Discurso proferido perante o Senado Federal em 11 de novembro de 2003,Disponível em: <www.senado.gov.br> Acesso em 30/12/2012. PIMENTEL, L. O. . Direito de patentes: evolução histórica do regime de proteção jurídica das invenções. Saberes (Jaraguá do Sul), Jaraguá do Sul, v. 1, n.3, p. 138, 2000 SILVA, Francisco Viegas Neves da, Patentes farmacêuticas e direitos humanos: pela flexibilização do acordo TRIPS em face da saúde pública in Revista de Direito Privado, Ano 8, n° 31, jul-set/2007, Revista dos Tribunais. SILVA, Eduardo Maldonado Casinhas da, A indústria e as patentes farmacêuticas no Brasil, in Revista da ABPI, nº 15, mar-abr 1995.