Proc. nº 145/89 – 1ª Recurso por imposição legal Alegações Intenção de matar Homicídio voluntário Atenuantes Atenuação extraordinária Sumário: I. II. III. IV. V. Sempre que se trate de um recurso por imposição legal, interposto pelo Ministério Público, é dispensável a apresentação de alegações nos termos do art. 69º, alínea 5) do C. P. Civil, aplicável subsidiàriamente. A intenção de matar é um elemento essencial do crime de homicídio voluntário, por isso, a sentença condenatória deve fazer menção expressa quanto à intenção de matar sob pena de nulidade, nos termos do art. 668º, alínea d) do C. P. Civil, aplicável subsidiariamente. A intenção de matar é privativa do foro íntimo da pessoa humana. Ela manifesta-se ou presume-se através da conduta do agente atenta a sede da agressão, a intensidade e a violência da mesma, o instrumento utilizado etc. Para que se dê como provada a circunstância atenuante do bom comportamento anterior, é necessário que o agente tenha um comportamento anterior melhor que o da normalidade dos indivíduos em iguais condições de vida, idade, cultura e colocados nas mesmas condições de criminalidade. Para que se justifique o uso da atenuação especial da pena nos termos do art. 91º nº 1, do C. Penal deve-se ponderar todo o circunstancialismo atenuativo e agravativo da responsabilidade criminal do réu. Acórdão Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal Supremo: A à data dos factos, de 35 anos de idade, casado, camponês, filho de B e de C, natural e residente em Namapa, distrito de Éràti, província de Nampula, foi julgado pelo Tribunal Provincial de Nampula tendo sido condenado na pena de 16 anos de prisão maior, entre outras medidas por haver sido considerado autor de um crime de homicídio prevenido nos termos do artigo 349º do Código Penal. Por dever de ofício, o Digno Agente do Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância interpôs o presente recurso (vide fls. 50) que veio a ser admitido por despacho de fls. 54, exarado pelo Meritíssimo juiz “a quo”. Nesta instância, o Exmo. Procurador da República substituto, requereu a anulação da sentença, oferecendo como fundamento do pedido que a sentença em apreço não analisa o elemento essencial do crime de homicídio voluntário que é a intenção de matar. Conclui, assim, que foi violado o disposto no nº 3 do art. 450º do C. P. Penal. A fls. 77, o Exmo. relator precedente ainda ao tempo do Tribunal Superior de Recurso elaborou uma exposição onde doutamente enumera as graves irregularidades e, mesmo nulidades de que enfermam os autos para, em conclusão, propor a anulação da sentença, obedecendo o princípio de economia processual. Tal questão prévia não foi decidida pelo Tribunal Superior de Recurso até à entrada em funcionamento do Tribunal Supremo. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir: Antes, porém de nos debruçarmos sobre o fundo da causa, várias questões prévias se levantam cujo conhecimento se impõe, desde já. A primeira delas e, como muito bem expendeu o Exmo. relator precedente na exposição de fls. 77, prende-se com a espécie de recurso. Na verdade, o despacho que o admite fixou-o como de apelação em manifesto desrespeito com o que a lei manda. Todavia tal questão já se acha devidamente apreciada por este tribunal – vide acórdão inserto a fls. 81 dos autos. A segunda refere-se à datação irregular de peças processuais, senão vejamos: A acta de julgamento atesta que o mesmo se realizou a 21 de Janeiro de 1981 e nesta data, proferida a sentença (fls. 47) e o réu conduzido à cadeia (fls. 49). O recurso foi interposto a 22 de Janeiro de 1981. No entanto, na conclusão que antecede, a sentença vem datada de 21 de Fevereiro e a própria sentença tem a data de 9 de Fevereiro. Não se compreende, assim, como pode ter sido publicada uma sentença ainda não lavrada. A terceira questão é suscitada pelo Exmo. Procurador da República substituto quando afirma, no parecer de fls. 66 que a sentença dos presentes autos não apreciou o elemento típico do crime de homicídio voluntário de que foi condenado o réu que é a intenção de matar, violando assim o disposto no nº 3 do art. 450º, do C. P. Penal. Na verdade, a sentença não só não aprecia a intenção de matar como também não analisa as alegações da defesa do réu nas quais diz que agiu sem intenção de matar. Está-se perante as nulidades a que se refere o artigo 668º, d) do C. P. Civil “ex vi” o disposto no § único do art. 1º do C. P. Penal. Mais ainda, a acusação não se mostra articulada, como impõe o art. 359º do C. P. Penal para o tipo de processo no caso vertente que é o de querela. Na douta exposição já citada, afirma-se que o réu foi notificado do despacho de pronúncia, que foi apenas notificado o defensor oficioso com alegação de que o réu se havia evadido o que vem a ser desmentido a fls. 55. No entanto, compulsando o processo, mostra-se a fls. 40 que o réu foi regularmente notificado, não subsistindo assim a nulidade do nº 5º do art. 98º do C. Penal. As irregularidades e nulidades acima descritas, justificariam a anulação de todo o processado a partir da acusação inclusivê, despacho de pronúncia e sentença. Todavia, há que ponderar se tal medida surtiria hoje o efeito desejado que é a reposição da justiça e da legalidade, tanto mais que com o despacho de pronúncia muitas dessas irregularidades ficaram sanadas. O réu vem indiciado da prática de um crime de homicídio voluntário simples prevenido pelo artigo 349º do Código Penal. Os factos, porém, tiveram lugar em 1979, mais precisamente no dia 7 de Outubro e o julgamento, nos princípios de 1981. Desde então para cá transcorreu um largo período de tempo que, de certo modo minaria a objectividade e imparcialidade dos depoimentos dos declarantes em caso da realização de novo julgamento. Por outro lado, no que respeita à acusação, ela se acha ferida de nulidade apenas quanto à forma, por não se mostrar articulada. No entanto, pelo seu conteúdo, ela reflecte com exactidão a prova indiciará vertida nos autos. Sendo de assinalar tal reparo mas tendo porém em conta a economia de juízo entendemos não ser de anular esta peça processual. Com efeito, tal nulidade foi sanada por actos subsequentes, nomeadamente, o despacho de pronúncia. No que diz respeito à nulidade invocada pelo Exmo. Procurador da República substituto, merece o nosso inteiro acolhimento. Com efeito, a sentença dos presentes autos não analisou, como devia, a intenção de matar – requisito essencial do crime de homicídio voluntário simples; isto por um lado. Por outro lado, não se descortina dos autos como foi apreciada a contestação do réu onde afirma que não quis a morte da vítima, sua mulher. Ao assim proceder, o Meritíssimo juiz “a quo” não indicou na sentença os factos julgados provados, distinguindo os que constituem circunstâncias agravantes ou atenuantes em manifesto desrespeito do preceituado no nº 3º do art. 423º do C. P. Penal. Está-se, assim, perante a nulidade fixada na alínea d) do nº 1 do art. 668º do C. P. Civil aplicável subsidiariamente. Assim sendo, declara-se nula a sentença proferida nos presentes autos. É de assinalar também e aqui ficaram registadas as discrepâncias e irregularidades patentes nos autos nas folhas 49, 50 a 54. Mostra-se, com efeito, do mandado de condução à cadeia (fls. 49) que a sentença foi proferida a 21 de Janeiro de 1981. A 21 de Janeiro, o Digno Agente do Ministério Público interpôs recurso, por dever de ofício, nos termos do artigo 473º § único do C. P. Penal. Tem-se assim que tratando-se, como se trata de um recurso por imposição legal, interposto pelo Ministério Público, é dispensável a apresentação de alegações nos termos do nº 5 do artigo 690º do C. P. Civil aplicável por força do § único do art. 1º do C. P. penal. Não há lugar à deserção de recurso como se afirma na douta exposição do Exmo. Relator precedente. Outro erro assinalável se regista no que respeita à datação de actos processuais seguidos. Já ficou dito que o mandato de condução à cadeia do Réu para o cumprimento da pena vem datado de 21 de Janeiro de 1981. Em seguida, a conclusão vem datada de 21 de Fevereiro de 1981 e a sentença datada de 9 de Fevereiro de 1981. Mais ainda, o recurso foi interposto a 22 de Janeiro de 1981. Tudo isto leva a crer que a sentença, sendo proferida a 22 de Janeiro de 1981, só foi posteriormente datada, isto a julgar pela acta e pelo mandado de condução do Réu à cadeia para o cumprimento da pena. Portanto, a ordem destes actos acha-se trocada. O recurso não pode ser interposto antes da realização da audiência de discussão e julgamento e, nem tão pouco antes da publicação da sentença. Deste modo, fixada já a espécie do recurso nos termos do art. 702 nº 1 do C. P. Civil com referência ao artigo 649º do C. P. Penal, por acórdão deste Tribunal Superior inserto a fls. 81 dos autos, passa-se a conhecer do fundo da causa nos termos do artigo 715º do Código de Processo Civil aplicável por força do artigo 1º § único do Código de Processo Penal. Apreciando “de meritis”: Vem o Réu incurso no crime de homicídio voluntário prevenido pelo artigo 349º do C. Penal. Com efeito, no dia 7 de Outubro de 1979, encontrando-se o réu em casa e a mulher ausente envolvida em trabalhos de lavoura passou pelo lugar da sua residência um outro camponês que dá pelo nome de D, sem demais sinais nos autos propondo-lhe a venda de cajueiros. O Réu A mostrou-se interessado na aquisição de tais cajueiros e, para tal necessitaria da importância de 650$00 (seiscentos e cinquenta escudos), moeda então em uso, que se achava, à guarda da mulher C, com os demais sinais do processo. Deste modo, o Réu seguiu a mulher tendo-a encontrado próximo da casa do casal e já de regresso ao lar. Uma vez chegados a casa, o réu exigiu à mulher a entrega daquele valor para o propósito já acima aludido tendo esta se oposto, argumentando que já haviam acordado conservar aquele valor até que tivessem dinheiro suficiente para comprar uma nova máquina de costura. Perante tal recusa, envolveram-se ambos em acesa discussão tendo o réu pegado numa enxada com a qual agrediu a mulher produzindo-lhe lesões traumáticas (3 ferimentos na região temporal, todos eles atingindo a massa encêfalo-craniana) lesões essas descritas a fls. 3 dos autos e que causaram a morte imediata de E, vítima nos presentes autos. Contestando, confessa o Réu ter sido ele o autor da agressão que vitimou a mulher E. Dá uma ligeira modificação dos factos relativamente às respostas dadas na instrução preparatória. Diz, então, que havia vendido uma máquina de costura tendo, o produto da venda, sido guardado na mala cujas chaves estavam à guarda e responsabilidade da mulher. Pretendendo fechar o negócio da aquisição de cajueiros ao D, pediu à mulher, tendo esta se recusado. Face a tal recusa, réu e mulher travaram-se de razões. Como forma de compensação, o réu oferecia à última 300$00 (trezentos escudos) para a compra de capulanas, tendo esta recusado. Desta feita envolveram-se os dois em agressões mútuas que foram ganhando cada vez maior intensidade. Estando a vítima estatelada no chão, ela muniu-se de um pau com o qual bateu no Réu. É assim que, enfurecido, o Réu pegou numa enxada com a qual agrediu a mulher até à morte atingindo-a na cabeça. Consumado o crime, o Réu foi apresentar-se às autoridades, voluntàriamente. Já atrás se havia dito que a sentença “sub judice” não se pronunciou sobre a intenção de matar – requisito essencial do crime de homicídio voluntário por que vem condenado o Réu nem tão pouco dela se descortina em que medida foi tida em consideração a defesa do Réu. Todavia, os presentes autos contêm elementos suficientes para se poder determinar se o Réu agiu ou não animado de intenção de matar. Valorando a prova recolhida e vertida nos autos, tem-se que o Réu, na sua contestação vem oferecer mais elementos no que respeita à descrição das circunstâncias em que se deu o evento criminoso. Em suma, o Réu confessa o crime, dizendo, no entanto que não teve intenção de matar. Ora, do relatório de fls. 3, apreende-se que a vítima apresentava três (3) ferimentos na região temporal esquerda com profundidade tal que atingiram cada um deles a massa encâfo-craniana, originando forte hemorragia; que a vítima apresentava várias escoriações, que a morte de E foi instantânea, em consequência de choque hemorrágico e que se presume ter havido intenção de matar por parte do agressor. Na verdade, a intenção de matar é algo privativo do foro íntimo da pessoa humana. Ela manifesta-se ou presume-se através da conduta do agente atenta a sede da agressão – cabeça, região anatómica habitualmente procurada quando o autor da agressão quer a morte da vítima, o instrumento de agressão (no caso corto-perfurante) – enxada; a intensidade da agressão – 3 ferimentos na região temporal esquerdo, sendo qualquer deles com profundidade tal que atingiu a massa encenfálica e a violência empregue na agressão. É corrente jurisprudencial presumir-se a intenção de matar atenta a sede da agressão, a intensidade e a violência da mesma, o instrumento do crime e a conclusão médico-legal de que a morte resultou necessariamente da referida agressão. Por outro lado, se é certo que quer o despacho de pronúncia quer a sentença recorrida não fazem menção expressa à intenção de matar – requisito essencial do homicídio voluntário, é também certo que o réu foi pronunciado e condenado pelo crime de homicídio voluntário. A subsunção dos factos na norma do art. 349º do C. Penal afigurase-nos acertada, isso implica, à partida que o elemento subjectivo da intenção de matar é por demais evidente. Era vontade do réu causar a morte da vítima e ela sobreveio em consequência directa da acção do réu. (vide Acórdão do STJ, de 2 de Novembro de 1972, BMJ nº 221, pag. 147). É de concluir que o réu agiu com a intenção de matar, pelo que procede a qualificação jurídico-legal dada pelo tribunal da primeira instância. No que respeita às circunstâncias atenuantes, o tribunal “a quo” considerou provado o bom comportamento anterior e a confissão espontânea do crime. Não procede a circunstância do bom comportamento na medida em que, para que tal aconteça, é necessário que o agente tenha um comportamento melhor que o da normalidade dos indivíduos em iguais condições de vida, idade, cultura e colocados nas mesmas condições de criminalidade. Procede, porém, a circunstância de confissão espontânea do crime. Procede ainda a atenuante da apresentação voluntária às autoridades e a falta de antecedentes judiciários. Quanto às circunstâncias agravantes, o Tribunal recorrido considerou provadas a 27º, 28º, ambos do artigo 34º do Código Penal que procedem. Ponderando o circunstancionalismo atenuativo e agravativo da responsabilidade penal do réu, justifica-se o uso da atenuação da pena nos termos do art. 91º e nº 1 “in fine” Pelo exposto, condenam o réu A, com os demais sinais dos autos na pena de 14 (catorze) anos de prisão maior, mínimo de imposto de justiça 5.000,00 Mt (cinco mil meticais) de emolumentos ao defensor oficioso e no pagamento de 300.000,00 Mt (trezentos mil meticais) de indemnização aos familiares da vítima. Declaram perdido a favor do Estado o instrumento do crime. Beneficia o réu do perdão fixado pelas Leis n.ºs 7/83, de 25 de Dezembro (art. 1º, nº 1, alínea d) – metade da pena), 6/87, de 30 de Janeiro (artigo 2, n.º 1, alínea b) – um ano de prisão maior e 3/89, de 19 de Julho (artigo 2, n.º 1, alínea d) - dois anos de prisão maior. Restam ainda por cumprir 4 anos de prisão maior. Considerando, porém, que estava detido preventivamente entre 7 de Outubro de 1979 (fls 2) e 24 de Março de 1987 (fls. 73), dá-se por expirada a pena que lhe foi imposta. Nesta instância, sem custas por não serem devidas. Maputo, 27 de Setembro de 1993 Ass: Luís António Mondlane e João Carlos Trindade