Nº 14 | Qua 17 de Julho
N
ão foi por acaso
que na sua 30.ª
edição o Festival
regressou ao Pátio Prior
do Crato. Não foi por acaso que François Chattot
e Martine Schambacher
regressaram. Não foi por
acaso.
E a reacção do público
ao espectáculo que nos
trouxeram na sua “carroça” também não foi
por acaso. O público do
Festival sabe distinguir
entre Arte e Embuste: sabe
escolher “certo”, quando
tem de optar entre a poesia e o pensamento, e a
frivolidade disfarçada de
pós-dramatismo ou pós-o-que-quer-que-seja. Quando não gosta, levanta-se e
sai da sala, civilmente. A
diversidade de linguagens
e linhas estéticas sempre
foram uma preocupação
nas programações desta
Casa. E achamos que o
público tem o direito de
confrontar-se com algumas das opções artísticas
mais “modernamente” em
voga, tão incensadas por
alguma crítica. Citando
Chattot, que foi buscar a
Robert Walser O elogio
da lentidão para o seu
espectáculo, “o discurso
dos especialistas confiscou as palavras às pessoas
comuns: cabe ao teatro
ajudar a devolvê-las”.
Rodrigo Francisco
Nini
A isto chamam amor louco:
eu por ti e tu por outro
S
onho de uma noite de São
João é uma das traduções
possíveis para A midsummer night’s dream, de Shakespeare, já que a “midsummer
night” é a noite de solstício, a
mais curta do ano, que em muitas culturas se assinala como
sendo a do nascimento de São
João Baptista, tendo sido fixada a 24 de Junho. E realmente
é num ambiente de noite louca
de São João que as peripécias
se desenrolam: num bosque
à saída de Atenas, Oberon e
Titânia, rei e rainha das fadas,
estão desavindos; um quarteto de jovens, em que Helena
ama Demétrio que ama Hérmia que ama Lisandro, perseguem-se mutuamente; um
grupo de artesãos tenta ensaiar uma peça para comemorar o casamento real de Teseu
e Hipólita; e tudo se complica
quando Puck, ao serviço de
Oberon, administra uma dose
de poção do amor às pessoas
Maestro Pedro Neves
erradas. Só faltam o alho-porro, a erva-cidreira, os balões,
as fogueiras e os martelos. A
peça inspirou Mendelssohn a
compor música incidental (ou
aquilo a que hoje chamaríamos uma banda sonora) para
acompanhar as montagens do
texto; esta composição inspirou o Maestro Pedro Neves,
da Orquestra Gulbenkian, a
dirigir um concerto para assinalar o trigésimo aniversário
do Festival de Almada; a comemoração inspirou Teresa
Gafeira a participar, lendo a
narração da obra; e tudo isto
junto nos inspirará a fechar o
festival em júbilo, ao som da
marcha nupcial mais tocada
do mundo. Escolha bem com
quem vai de núpcias.
New op-era
N
o Festival de Almada,
há espaço para todos.
Para obras consagradas
e em devir. Para a beleza clássica de o Sonho de uma noite de
Verão e para a modernidade
inquiridora de A laugh to cry, a
ópera multimédia que estreia
hoje, no São Luiz Teatro Municipal. O premiado compositor
e autor do libreto, Miguel Azguime, procura, através dela,
aproximar-se do ideal criativo que há muito persegue:
o equilíbrio entre palavras,
sons e imagens de natureza
diversa, que harmoniza tendo em vista a comunicação de
uma angústia humana, quase
sempre contemporânea. Uma
contemporaneidade formal e
temática que a encenação de
Paula Azguime favorece e que
se manifesta na reunião de
instrumentos acústicos, electrónicos e de meios interactivos, nas projecções de vídeo,
no multilinguismo do libreto
e, ainda, na reflexão proposta sobre as consequências do
mundo globalizado que construímos – e que destruímos, a
todo o momento.
Sobre o seu trabalho, Miguel
Azguime afirma: “O que faço e
como o faço está muito próximo
do trabalho num laboratório;
não porque dê por mim rode-
© Perseu Mandillo
- Parte II
O Sr. Joaquim zangava-se conosco, mas também sabia dar valor a todos os seus empregados – via-se
isso nas reuniões. Eu tinha um grande respeito e admiração por ele. Ficam as saudades.
© João Vasco
Elogio da
lentidão
Imagem de
A laugh to cry
ado de máquinas, mas antes
porque vivo no presente, um
tempo que me fornece um tipo
de conhecimento muito específico. Não é a relação com a tecnologia em si que me interessa,
mas a compreensão do fenómeno do som. Apesar de parcialmente herdada, ela também me
pertence.”
Canto triste
O Maestro João Paulo Santos
dizia outro dia que os cantores líricos portugueses tinham
aquilo a que se chama um
“canto triste”: a tendência para
interpretar toda e qualquer
melodia com uma lágrima no
canto do olho. Esse sentimentalismo é primo do melodrama
e da farsa em que vivemos,
digo eu, e faz parte das regras
de género teatral que usamos
para construir e desconstruir
o real: as peças de teatro, o
noticiário, o dia-a-dia. Todos
querem saber, antes de mais,
quem é a vítima e o mau da fita,
e todos tentam negociar a cotação das personagens na bolsa do protagonismo. A fama é
a moeda de troca no mercado
da democracia e o sensacionalismo é a bandeja onde se
servem as cabeças dos heróis
do momento. Enquanto isso,
a verdadeira acção desenrola-se por baixo da mesa, sem
que possamos imaginar uma
forma épica, lírica ou dramática que a exponha. Talvez seja
esse o verdadeiro bloqueio do
teatro e da política. Enquanto
nos regozijamos no sofrimento
próprio e alheio, nada fazemos
para mudar os papéis, as personagens e as regras do jogo.
O Festival de Almada trouxe
espectáculos mais do que suficientes para nos ajudar a pensar nisso. Obras escandinavas,
ex-jugoslavas, dos PIIGS e até
do antigo império franco. A
imaginação que nos ata ao
destino é a mesma que desata
os nós da vida. Desliguemos
os cabos e pisemos os palcos.
O teatro é público.
Jorge Louraço
Legendatore, traditore
D
© Luana Santos
ezanove horas
de hoje. Colóquio. Um espectador de Macadamia nut
brittle, da dupla italiana
ricci/forte, sentado na
esplanada da Escola
D. António da Costa,
prepara-se para interpelar os criadores do
espectáculo de ontem
no Fórum Romeu Correia. Muitas perguntas
possíveis. Como contribuição para o debate
de hoje à tarde, relatamos o seguinte episódio:
Steffano Ricci e Gianni Forte tiveram a preocupação de seguir
de perto o processo de criação
das legendas em português
– o que, não sendo extraordi-
televisão, música e política italianas foi o de escolher fazer – ou não – a
adaptação para a realidade nacional. Como se
traduz “Silvio Berlusconi”
em português?
Foi a alguns dos colaboradores desta folha informativa que os criadores perguntaram “existe
alguma cantora de música popular que tenha
Agradecimentos no final do espectáculo de ontem
sido muito famosa há
alguns anos e que agora
nário, nem sempre é possível, não seja ninguém?”. Respondepor falta de interesse, tempo, mos “Linda de Suza”, que para
ou meios. Um dos problemas sempre ficará como legenda
com que se nos deparámos ao em português da italiana “Lotraduzir um espectáculo cujo redana Bertè”.
texto contém referências cons- Silvio Berlusconi, esse, não se
tantes ao imaginário pop da traduziu.
AGENDA de amanhã
Restaurante da Esplanada
Espectáculos
19H00: E se nos metêssemos ao barulho?
Pátio Prior do Crato
21H00: A laugh to cry
São Luiz Teatro Municipal
21H30: Heroína
Culturgest
Hoje
SOPA
PRATOS
- Carbonada argentina
- Medalhões de pescada
21H30: Cada sopro
Teatro da Politécnica
22H00: Sonho de uma noite de Verão
Escola D. António da Costa
Palco Grande
colóquios
19H00: Claudio Tolcachir, autor e
encenador de O vento num violino
Esplanada da Escola D. António da Costa
Amanhã
SOPA
PRATOS
- Carne à portuguesa
- Torta de bacalhau com
molho de tomate
música
21H00: Louro e Lima
Esplanada da Escola D. António da Costa
Escola D. António da Costa
Avenida Prof. Egas Moniz
ALMADA 2804- 503
Carregar
na
farinheira*
U
m casal de lésbicas
decide passar por
cima dos procedimentos burocráticos e, para
ter um filho, viola um jovem
de boas famílias. O tema
de hoje não podia ser mais
candente. Prova disso, o interesse da imprensa: duas
páginas do I e uma na Time
Out, secção Gay. Enquanto a
lei da co-adopção é discutida no nosso País, a Ordem
dos Psicólogos veio afirmar
que a aprova “por parte de
casais do mesmo sexo”, tese
que se baseia, segundo
afirmam, em “estudos científicos” (sic). Com o aval dos
psicólogos, o País fica mais
descansado. Entretanto, os
problemas morais suscitados por este tema não deixam de estimular-nos a imaginação: uma torradeira e a
parte de trás de um esquentador poderão eles adoptar
um clip, se jurarem perante
um cardeal patriarca serem
alimentados a pilhas alcalinas? Os olhos ficam postos
no Tribunal Constituional, e
no espectáculo de hoje.
* Na gíria teatral, diz-se que os
actores “carregam na farinheira”
quando exageram. Nós carregamos
na farinheira quando a realidade
ultrapassa a ficção.
Download

A isto chamam amor louco: eu por ti e tu por outro