Nº 4 – 07 de Julho de 2015
Maria Barroso: uma grande actriz
que combateu pela liberdade
A Folha de hoje presta homenagem a Maria Barroso (1925-2015), que faleceu esta madrugada, publicando o texto
que Joaquim Benite lhe dedicara em 2010, intercalado com excertos dos poemas Prometeu, de Joaquim Namorado,
Soneto imperfeito da caminhada perfeita, de Sidónio Muralha, e Esta gente, de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Maria Barroso foi a personalidade homenageada na 27.ª edição do Festival, há cinco anos.
N
um fim de tarde de Primavera
de 1966 um jovem jornalista
de 22 anos desceu, a pé, a Rua
da Misericórdia, com a vista
do Tejo ao fundo, a luz do pôr-do-sol e o
cheiro a maresia que se combinam nesta
artéria de uma forma tão dolente, lisboeta.
Atravessou o Chiado e entrou na Rua António Maria Cardoso, que percorreu até ao
então cine-teatro São Luiz. Ao lado desta
velha sala de espectáculos (que havia sido
antes o Theatro D. Amélia e ganhara o seu
novo nome em homenagem ao banqueiro
torna-viagem Visconde de S. Luiz, o mais
famoso dos seus antigos empresários) situava-se a sede da PIDE, a polícia política
de Salazar.
pusera-se aos que presenciavam o ritual
e criara essa atmosfera de suspensão do
tempo que só os grandes actores tornam
possível. De súbito, subitamente de súbito, o sórdido ataque explodiu. Os polícias,
vindos da casa do lado, tinham espalhado
pela sala frascos de um cheiro de vómitos
que anunciava a presença da peçonha que
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
Abafai meus gritos com mordaças,
maior será minha ânsia de gritá-lo!
Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!
O jovem jornalista apresentou na bilheteira as suas credenciais, recebeu um bilhete,
entrou no átrio da grande sala, onde uma
considerável parte do público já estava
sentada, reconheceu, nos que ainda permaneciam, conversando com agitação, cá
fora, escritores, artistas, intelectuais, políticos da oposição.
O espectáculo começou. Uma frágil mulher
ao telefone tentava, com amargura e impaciência, religar os fios partidos de uma
vida. A sua voz era a voz da perplexidade e
da angústia da perda, a voz humana.
O jovem jornalista ficou fascinado por essa
voz que penetrava a consciência, plena de
verdade, matizada de cambiantes de cor,
veemente e contida, doce e amarga, alegre
e triste. O teatro, como então o imaginava, como um acto real de transmissão que
proporcionava uma realidade superior,
onde as contradições se anulavam, im-
dentro de mim, nítida, minuciosa. A actriz
era Maria Barroso. O texto era A voz humana, de Jean Cocteau. Os provocadores
eram os agentes da PIDE, a quem, em última análise, cabia manter as condições de
repressão para a hipocritamente chamada
“política do espírito” do Estado Novo.
A notícia do espectáculo, que escrevi para
o meu jornal de então, o República, foi, obviamente, cortada pela Censura. Não sabia,
na altura, não podia adivinhar, que estava
a assistir à última criação teatral de Maria
Barroso e não imaginava que quase meio
século depois estaria aqui a evocar essa
tarde, num País diferente – um País democrático, que não é aquele com que sonhei, é
certo, mas onde o fascismo foi derrotado.
Maria Barroso no espectáculo Carmen. Dolores. Maria (2010)
representavam. O público teve de abandonar a sala. Tumulto. Gritos de protestos.
Impropérios. Frases indignadas.
Já não há mordaças, nem ameaças,
[nem algemas
que possam perturbar a nossa
[caminhada,
Em que os poetas são os próprios
[versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira
[desfraldada
O espectáculo deu lugar à manifestação. A
realidade real assassinava a poesia que uma
frágil figura de mulher (mas grande figura
de actriz) soubera invocar e fazer surgir.
Tenho a memória dessa tarde longínqua
Homenageamos Maria Barroso – que terminou o Curso do Conservatório (com 18
valores) em 1943, o ano em que nasci – não
só porque é uma grande actriz (e se não voltou a fazer teatro, fez, felizmente, filmes
que permitem às novas gerações conhecê-la), mas também porque a sua acção de
combate corajoso contra a Ditadura constitui um exemplo para os jovens de hoje.
Como divulgadora da poesia, Maria Barroso deu voz aos poetas da Resistência, a
uma geração de grandes criadores que pensava que a Arte não podia abstrair-se das
causas sociais. O Festival de Almada sente-se orgulhoso de contribuir para saldar,
através desta homenagem, uma parte da
dívida que todos temos para com as generosas mulheres e os generosos homens que
nos mostraram os caminhos da liberdade.
Joaquim Benite
Um hotel de uma Europa em ruínas
© Paolo Cambursano
Ö
dön von Horváth (19011938) tinha 22 anos
quando escreveu Hotel
da Bela Vista. Na altura, na sua
memória, estavam ainda bem
vivos os terrores da Primeira
Guerra Mundial – e, no seu coração, morava o medo de que a
aristocracia e a burguesia mitteleuropeias não fossem capazes de
arrepiar caminho, acabando, irremediavelmente, por condenar
tudo e todos à miséria económica e moral. O encenador italiano
Paolo Magelli já teve ocasião de
sublinhar que nutre um carinho
especial pelo dramaturgo, em
cuja vida se revê e de quem só
ainda não encenou duas peças.
Esta é, inclusivamente, a segunda vez que parte ao encontro de
Hotel da Bela Vista. Por um lado,
porque “este hotel é uma alegoria
da Europa de hoje. Um hotel falido,
dividido, em que os funcionários já
não têm nada para fazer e toda a
A encenação de Magelli foi a primeira representação deste texto em Itália.
gente espera ganhar a lotaria”. E,
por outro, porque não existia
qualquer tradução italiana deste
texto, nunca antes representado
naquele país. “Comenta-se muito
que o Horváth previu a ascensão
do nazismo”, declara Magelli em
entrevista ao jornal Público, “mas
eu acho que previu mais do que isso:
denunciou o fim da civilização europeia”. Num momento em que
vários criadores têm sublinhado
a ligeireza crescente de algumas
manifestações culturais, e quando o Velho Continente vive um
dos maiores impasses da sua
História recente, com ameaças
de dissolução de tratados que a
AGENDA
de amanhã
‘Hamlet’: teatro em
busca da sinceridade
15h00 Peter Stein
Casa da Cerca
dramafest
© Luana Santos
O
ntem aconteceu o primeiro Colóquio na Esplanada deste ano, um
dia depois da estreia de Hamlet,
espectáculo que junta o Teatro
da Cornucópia e a CTA. Luis
Miguel Cintra esteve à conversa com Maria Helena Serôdio
sobre alguns dos aspectos mais
importantes na criação deste
projecto, incluindo a qualidade
da tradução de Sophia de Mello
Breyner ou a escolha dos intérpretes (em particular a aposta
em Guilherme Gomes enquanto Hamlet, um actor que é “um
caso absolutamente extraordinário”, segundo o encenador). Para
além dos aspectos relacionados
com a criação teatral, falou-se
também da pertinência de voltar a este texto de Shakespeare,
hoje. Nas peças do dramaturgo
O sentido dos mestres
16h00 Iluminação
Teatro Municipal Joaquim Benite
O novíssimo teatro espanhol
18h00 Sei de um lugar
maioria julgava já irrevogáveis,
Hotel da Bela Vista surpreende
pela pertinência das questões
que levanta. Influenciado, talvez,
pela crise das dívidas soberanas
e pelos valores duvidosos que
vão imperando, Paolo Magelli
regressa ao texto com um olhar
ainda mais cru do que da primeira vez. Afinal, é preciso definir
claramente “quem é quem, quem
come quem”, para que a ponte
com o presente seja transitável.
Nesta peça, será a única hóspede
do hotel, a velha baronesa Ada
von Stetten, que fará gravitar em
seu redor um ex-artista, um exoficial e um ex-representante de
uma empresa de vinhos… Uma
mão cheia de parasitas que há
muito se venderam e continuam
com sonhos por cumprir. Mas só
até que surja no horizonte uma
carteira mais recheada. Hotel da
Bela Vista sobe amanhã ao Palco
Grande.
Desconjuntou-se
o tempo, e é meu
triste fado ter
de pôr direito
o tempo errado.
Hamlet, I, 5.
Incrível Almadense
Artistas unidos
19h00 Os acontecimentos
Teatro da Politécnica
Música na esplanada
20h30 Sonidos de mi tierra
Escola D. António da Costa
serviço educativo
Cintra abriu os colóquios na Esplanada.
inglês, “tudo tinha a ver com a
vida”, portanto este “trajecto de
consciência, de aprendizagem”
que o protagonista faz continua
a interpelar os espectadores. Em
particular num tempo em que
“há qualquer coisa a mudar no próprio público, que parece ir ao teatro
em busca de uma sinceridade que
muitas vezes não existe lá fora”.
21h15 Gesto como tradução
Átrio da Esc. D. António da Costa
mala voadora
21h30 Your Best Guess
Culturgest
performance
21h45 e 24h00
Povera.Cena.Cenoura
Átrio da Esc. D. António da Costa
Teatro metastasio stabile...
22h00 Hotel da Bela Vista
Escola D. António da Costa
Restaurante
da Esplanada
Hoje
- Pescada c/ tomate
e azeitonas
- Entrecosto frito c/ migas
serranas
Amanhã
- Bacalhau com natas
- Chili c/ carne e esparguete
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uma grande actriz que combateu pela liberdade