P.º n.º R.P. 39/2010 SJC-CT Aquisição. Usucapião. Justificação notarial. Acessão
na posse. Interpretação e aplicação do disposto no artigo 1256.º do Código
Civil. (Im)possibilidade de afastar, em sede de justificação notarial, a presunção
legal contida na parte final do n.º 2 do artigo 1260.º do Código citado.
PARECER
1 – Em .../…/…, sob a Ap. n.º …, foi requerido na conservatória recorrida o registo
de aquisição a favor dos recorrentes, …, ... e …, todos solteiros, maiores, residentes na
Rua ..., de um prédio urbano, inscrito sob o artigo ... da respectiva matriz predial
urbana, constituído por uma casa térrea, para habitação, com a área coberta de ...m2 e
descoberta de …m2.
Casa que teria sido edificada numa parcela de terreno cuja superfície correspondia
à soma daquelas áreas parcelares e que integrava a parte rústica do prédio misto,
descrito sob o n.º …, da freguesia de …, daquele concelho de …, inscrito na matriz
cadastral rústica sob o artigo … da Secção ...
Instruíram o referido pedido uma escritura de justificação lavrada pela Notária, …,
do mesmo concelho, bem como três cadernetas prediais, duas urbanas e uma rústica,
obtidas via Internet, e dois duplicados de requerimentos apresentados no respectivo
Serviço de Finanças em … e … de ... do ano em curso (por intermédio dos quais foram
respectivamente solicitadas a correcção da área de logradouro e das confrontações do
artigo urbano registando, e a rectificação da área do antes citado artigo rústico ...), além
de 3 duplicados de imposto de selo, entregues no mesmo Serviço de Finanças.
2 – A qualificação outorgada ao registo assim peticionado foi a de recusa, fundada
na circunstância da posse invocada pelos justificantes não observar o prazo legalmente
estabelecido para a aquisição por usucapião, uma vez que, atento o referido no título,
tendo a compra efectuada sido apenas verbal, a posse se presume de má fé, o que
amplia para 20 vinte anos o prazo para usucapir, sendo certo que a posse que alegam
deter sobre o prédio se reporta apenas ao ano de 1993.
Por outro lado, relativamente à possibilidade também ali admitida de acessão
pelos recorrentes na posse daqueles de quem adquiriram por forma verbal, entende a
conservatória recorrida que “ … a acessão na posse pressupõe e exige a existência de um
vínculo jurídico por via do qual a situação possessória haja sido regularmente transmitida
1
ao que actualmente a invoca. Transmitida a posse por mera tradição verbal, acto nulo
como modo legítimo de aquisição da propriedade imobiliária, apenas pode ser invocada a
exercida pessoalmente e não a posse dos seus antepossuidores. Para que se verifique
acessão da posse entre o transmitente e o adquirente, nos termos do art.º 1256.º do C.
Civ., é imperativo que o negócio entre ambos constitua título justo, ou seja, que se trate
de negócio jurídico válido, formal e substancialmente.”.
Assim, o despacho de recusa conclui que os adquirentes não podem fazer-se valer
da posse do seu antecessor, mas somente prevalecer-se da sua própria posse,
resultando do título que os justificantes só exerceram actos materiais sobre o prédio
desde 1993, pelo que não se mostram cumpridos os prazos da usucapião, motivo
determinante da recusa do registo por falta de título.
A exposta qualificação encontrou apoio legal nos artigos 1256.º, 875.º e 220.º, do
Código Civil, e nos artigos 43.º, n.º 1, 68.º e 69.º, n.º 1, alínea b), do Código do Registo
Predial.
3 – Dela discordaram os ora recorrentes que, mediante impugnação deduzida em
.../…/…,
sob a Ap. n.º …, expuseram as razões do seu diverso entendimento sobre a
questão, justificando-o essencialmente com base nos fundamentos assim alinhados:
inexigibilidade de qualquer negócio juridicamente materializado em título válido, como
condição para utilizar a usucapião baseada na acessão na posse; possibilidade de elidir a
presunção de que é considerada de má fé a posse não titulada; e não reconhecimento
aos ora recorrentes da possibilidade, ao abrigo da previsão contida no artigo 73.º do
Código do Registo Predial, de suprimento das deficiências constatadas através da junção
do título julgado necessário pelo conservador “a quo”.
Quanto às alegações que, em favor da sua tese, produziram, dá-se aqui por
reproduzido o teor do recurso hierárquico a que nos vimos referindo.
4 – No despacho em que o conservador recorrido sustenta a qualificação de
recusa pela qual se decidiu, centra-se a questão em debate não na possibilidade de
celebrar a escritura de justificação com vista a obter um título para registo – como, em
seu entender, fizeram os recorrentes - , mas sim na acessão na posse, de modo a
preencher os prazos legais da usucapião. E, a este propósito, socorrendo-se dos
ensinamentos fornecidos pelas doutrina e jurisprudência nacionais, reitera-se a ideia de
que, para se cumprir o art.º 1256.º, n.º 1 do Código Civil, se deveria verificar um nexo
de aquisição derivada entre a posse actual e a anterior, apenas podendo invocar-se a
posse exercida pessoalmente e não a dos seus antepossuidores quando esta tenha sido
2
transmitida por mera tradição verbal (consubstanciando um acto nulo como modo
legítimo de transmissão da propriedade imobiliária).
No que respeita à tese defendida pelos recorrentes de que a sua posse é de boa
fé, apesar de não titulada, porque foi afastada a presunção decorrente do n.º 2 do art.º
1260.º do Código Civil, sustenta-se, mediante transcrição de alguns trechos do acórdão
do STJ, de 2 de Junho de 2009, proc. 269/2003-7, que, face à definição legal de posse
estabelecida no art.º 1251.º do Código Civil, é indefensável que a posse seja de boa fé
quando o sujeito sabe ou, pelo menos, devia saber que é uma posse sem título, uma vez
que aquela demanda a presença, a par do elemento negativo – desconhecimento dos
vícios do título -, de um elemento positivo, que é o próprio título.
Atento o disposto no n.º 1 do art.º 1259.º do Código Civil, a posse titulada tem de
proceder de um facto jurídico idóneo para dar azo à aquisição do próprio direito real, que
pode ser substancialmente inválido, mas não formalmente, razão pela qual, na situação
concreta, o prazo para usucapir resulta prolongado para os 20 anos de posse.
Já no que respeita à aplicação “in casu” do regime previsto no art.º 73.º do
Código do Registo Predial, entende-se que o prazo de cinco dias previsto no n.º 2 de tal
preceito tem em vista dar um impulso positivo à feitura do registo e não o
estabelecimento de um prazo para dilação, quando, na situação em análise, não
existindo o documento definitivamente, não cobra sentido a concessão de tal prazo, e a
existir, questionada fica a veracidade das declarações prestadas na escritura.
5 – Considerando que as partes são legítimas e capazes, o processo é o próprio e
válido, o recurso foi interposto em tempo e não se constata a existência de nulidades,
excepções ou questões prévias capazes de obstar ao conhecimento do mérito, importa
que sobre este o Conselho se pronuncie, o que agora passa a fazer, alinhando para o
efeito a seguinte
Fundamentação
1 – A escritura de justificação notarial para efeitos de registo, hoje disciplinada
nos artigos 89.º a 101.º do Código do Notariado, é, como se sabe, um título de natureza
excepcional, cujo aparecimento resultou da necessidade de colmatar a falta ou
insuficiência dos títulos normais, consagrando um mecanismo apto à resolução prática de
situações outrossim difíceis, quando não impossíveis de solucionar, nesta sede de actos
ou factos jurídicos sujeitos a registo.
3
Assente, pois, no pressuposto de que o interessado não dispõe de documento
bastante para comprovar o seu direito registando, a lei permite que o mesmo recorra ao
aludido tipo de escritura, quando tenha em vista: obter a primeira inscrição, ou seja,
estabelecer o trato sucessivo, estando em causa prédios omissos ou descritos conquanto,
neste caso, sem inscrição de aquisição ou equivalente; e reatar ou estabelecer um novo
trato
sucessivo,
tratando-se
de
prédios
descritos
com
inscrição
de
aquisição,
reconhecimento ou mera posse, com vista ao suprimento da ausência de intervenção do
respectivo titular, imposta pela regra do n.º 2 do artigo 34.º do Código do Registo Predial
(cfr. art.º 116.º do Código do Registo Predial).
Assim, nos termos da previsão contida no n.º 2 deste artigo 116.º, o adquirente
que careça de título para prova do seu direito sobre prédio relativamente ao qual exista
inscrição de aquisição1 ou equivalente pode socorrer-se para o anunciado efeito de uma
escritura de justificação notarial, sendo certo que, de acordo com o preconizado no
subsequente n.º 3, a invocação da usucapião implica o estabelecimento de novo trato
sucessivo a partir do titular do direito assim justificado (hipótese dos autos).
Nesta eventualidade, a justificação consiste na afirmação por parte do interessado
das circunstâncias em que a aquisição originária se baseia, indicando as transmissões
que a tenham antecedido e as subsequentes, reconstituindo-as, com a especificação das
suas causas e identificação dos respectivos sujeitos e, relativamente às transmissões a
respeito das quais o interessado declare a impossibilidade de obter o título, mediante a
indicação das razões de que a mesma resulte. Quando a usucapião alegada como causa
1
2
Registe-se que, segundo o previsto no artigo 99.º, n.º 1, do Código do Notariado, no caso de reatamento do
trato sucessivo ou de estabelecimento de novo trato, quando se verificar a falta de título em que tenha
intervindo o titular inscrito, a escritura não pode ser lavrada sem a sua prévia notificação, a menos que este se
disponibilize a vir à escritura de justificação para, na qualidade de declarante, confirmar a transmissão alegada
– Cfr. Neto Ferreirinha, in “A Justificação Notarial Para Fins do Registo Predial”, Separata anexa ao
BRN 1/2004. Foi, de resto, o que aconteceu no caso “sub judice”, em que, além do mais, a actual titular, a
favor de quem, no estado de viúva, se acha registada a aquisição do prédio-mãe, actuou, juntamente com o
seu marido, como transmitente, da parcela de terreno – cuja alienação verbal reconhece na escritura de
justificação apresentada – em que, consoante o declarado, teria sido construído o prédio urbano (casa de
habitação), cuja aquisição originária, por usucapião, se invocou.
2
Por causa entende-se o facto jurídico donde provém o direito que se invoca. Entre os factos jurídicos que
podem constituir causas idóneas para fundamentar a justificação notarial conta-se a compra e venda, a
sucessão por morte e a doação, além de outras formas de aquisição originária, como a acessão e a usucapião.
Ainda a propósito da invocação da usucapião como causa da aquisição na hipótese visada, prevista no n.º 3 do
artigo 116.º do C.R.P. (havendo inscrição de aquisição), refira-se a posição sustentada por Borges de Araújo
in “Prática Notarial”, IV edição, a págs. 353/4: “Quer dizer, quando a epígrafe de estabelecimento de novo
trato sucessivo a que está subordinado o art.º 91.º (C. Notariado) nos faz supor que estaremos perante um
terceiro tipo de justificação notarial, um género diferente dos dois anteriormente estabelecidos, verifica-se que
4
da aquisição se funde em posse não titulada, deve ainda o justificante proceder à
menção expressa das circunstâncias de facto que determinaram o exercício da posse,
bem como daquelas que integram e caracterizam a posse geradora da usucapião (cfr.
art.º s 91.º e 89.º, n.º 2, do Código do Notariado).
2 – De acordo com a noção legal deste instituto, contida no artigo 1287.º do
Código Civil - “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo,
mantida por um certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição legal em
contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se
chama usucapião.” –, diversos são os pressupostos em que o mesmo repousa, ainda que
todos eles se mostrem determinados e condicionados por aquele que é o decisivo e sem
a ocorrência do qual não pode, em absoluto, acontecer a existência da usucapião: a
posse.
Segundo a tradição romanista, até hoje admitida pelas doutrina e jurisprudência
nacionais, confluem na posse, caracterizando-a, dois elementos: o objectivo, o
denominado “corpus”, que corresponde à actuação de facto correspondente ao exercício
do direito, por parte do possuidor, à apreensão ou controlo material de uma coisa
corpórea (ainda que, em casos de posse derivada, a lei pressuponha o “corpus”,
independentemente da apreensão material da coisa); e o subjectivo, o chamado
“animus” que é havido como a intenção, por parte do detentor, do poder de facto sobre a
coisa, de exercer, como seu titular, um direito real sobre ela.3
Mas, para que esta posse conduza à aquisição do direito
4
por parte do possuidor,
é ainda indispensável que a mesma reúna outras características, tais como: que seja
afinal o que se pretende é diminuir as características e efeitos da usucapião no caso de reatamento de trato
sucessivo, atribuindo-lhe mero efeito de ligação entre as anteriores transmissões e as subsequentes. (…) Em
conclusão: a lei admite, expressamente, que seja invocada a usucapião, quer para o estabelecimento do trato
sucessivo, primeira inscrição, quer para o reatamento. Neste último caso atribui à usucapião efeitos menores
dos que lhe são próprios, ao exigir a dedução do trato sucessivo para as transmissões que a tenham
antecedido.”.
3
É certo que o conceito legal de posse expresso no artigo 1251.º do Código Civil – “Posse é o poder que se
manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro
direito real.” – não integra qualquer referência ostensiva a este elemento subjectivo, que, não obstante,
decorre de outras disposições do mesmo Código, em particular, do artigo 1253.º, por força do qual não são
havidos como possuidores, antes como meros detentores ou possuidores precários, os que exercem o poder de
facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, os que apenas se aproveitam da tolerância do titular
do direito e os representantes ou mandatários do possuidor, bem como, de modo geral, os que possuem em
nome de outrem.
5
pública – exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art.º 1262.º, C.C.)
- e pacífica - adquirida sem violência (art.º 1261, n,º 1, C.C.); que respeite a direitos
susceptíveis de ser adquiridos por tal via – somente os direitos reais de gozo e, mesmo
assim, nem todos, uma vez que a lei (art.º 1293.º do Código Civil) afasta as servidões
prediais não aparentes e os direitos de uso e habitação; e que se mantenha pelos prazos
legalmente fixados, os quais variam em função da boa ou má fé do possuidor, da
existência ou inexistência de título de aquisição e seu registo, ou do registo de mera
posse (art.ºs 1294.º a 1296.º, C.C.)5. O que, neste particular, nos remete para outras
espécies de posse, quais sejam, titulada ou não titulada, de boa fé ou de má fé.
Assim, no que à primeira – posse titulada – respeita, a lei (art.º 1259.º, C.C.)
define-a
como
a
posse
fundada
em
qualquer
modo
legítimo
de
adquirir,
independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do
negócio jurídico (n.º 1), acrescentando que o título não se presume, devendo a sua
existência ser provada por aquele que a invoca (n.º 2).
Relativamente à segunda – posse de boa fé – a lei (art.º 1260.º, C.C.) considera
que a mesma acontece quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito
de outrem (n.º 1), presumindo-a de boa fé, quando titulada, e de má fé, quando não
titulada (n.º 2).
E é em função destes anunciados caracteres que se acha fixado o período de
tempo de duração da posse respectiva, com vista à proclamada aquisição do direito a
cujo exercício corresponde a actuação do possuidor. Assim, e tendo em linha de conta a
situação dos autos, é o artigo 1296.º do mesmo Código, que prescreve que, na ausência
4
Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª edição, pág. 65: “… o
legislador (…) não diz que pela posse se adquirem direitos, mas sim que a posse faculta ao possuidor a sua
aquisição (…) a usucapião, para ser eficaz, necessita de ser invocada judicial ou extrajudicialmente por aquele
a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público.”.
5
“Vide” parecer emitido no P.º C.P. 71/2003 DSJ-CT, in BRN II, n.º 4/2004, pág. 49.
6
de registo do título
6
ou da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze
anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos , se for de má fé.
3 – Reportando-nos, agora, à escritura de justificação notarial que serviu de título
ao registo ora recusado, verificamos que a declaração (com vista à aquisição por
usucapião)7, dos justificantes ora recorrentes, de que são donos e legítimos possuidores
em comum e partes iguais, diz respeito a um prédio urbano, inscrito em seu nome na
respectiva matriz predial sob o artigo …, composto de casa de rés-do-chão, para
habitação, com as superfícies coberta de ...m2 e descoberta de ...m2, não descrito na
conservatória, que veio à sua posse por compra meramente verbal, que fizeram em dia e
mês que não podem precisar do ano de …, a … e mulher… já falecidos, os quais por sua
vez haviam comprado em dia e mês que não podem precisar do ano de … a ... e marido
…, tendo estes, por seu turno, adquirido em dia, mês e ano que não podem precisar,
mas terá sido por volta do ano de ..., uma parcela de terreno com a área de …m2, a … e
mulher, …, não tendo nunca sido celebradas as competentes escrituras de compra e
venda.
3.1 - Assim, o novo trato sucessivo estabelece-se apenas, como aliás decorre do
que já antes dissemos, relativamente a uma parte desanexada do prédio sobre o qual
estava inscrito um trato sucessivo anterior, trato este que a usucapião, invocada por
meio da justificação notarial, visa interromper, relativamente ao prédio urbano naquela
6
É certo que o preceito em causa apenas faz referência à falta de registo do título e não à falta do próprio
título. Parece, contudo, evidente que, sendo aquela a consequência legalmente associada à omissão do registo
do título, menos penalizadora, nunca haveria de ser a determinada pela falta do próprio título, pelo que, sendo
neste preceito que se encontra estabelecido, para efeito de usucapião, o regime mais desfavorável ao
possuidor, é este que deve também ser aplicado à situação em que a falha seja a do título em si mesmo. – Cfr.
Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. cit. págs. 76/77.
No mesmo sentido, também, Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, 1979, pág. 473, manifestando o
entendimento de que, não estando embora prevista no Código Civil a hipótese de total falta do título, o artigo
1296.º deve aplicar-se a tais situações, já que é uma solução que se enquadra na letra da lei – não há registo
do título quando este não existe – como também porque se justifica a analogia com o artigo 1298.º, alínea b),
quando equipara, no âmbito de móveis sujeitos a registo, a falta do registo do título à falta do próprio título.
7
Na escritura de justificação, seja qual for a modalidade assumida, intervêm sempre duas categorias de
outorgantes: o titular do direito ou justificante, e os declarantes, em número de três, pessoas que se limitam a
confirmar as declarações por aquele produzidas, e que devem reunir os requisitos legais de idoneidade das
testemunhas instrumentárias e que não sejam parentes sucessíveis do justificante ou os cônjuges de um ou
outros (art.º 96.º, C. Notariado).
7
parcela edificado. Sucede que o facto do destaque de tal parcela para construção ter
acontecido por volta do ano de ..., associada à falta de referência à data exacta da
edificação naquela do prédio urbano justificado, supondo-se apenas, pelo declarado na
escritura, que a mesma terá ocorrido entre ... e …, configura novos motivos originadores
de deficiências, ora não equacionadas, do título em apreço. E, conquanto a nossa
primordial atenção seja endereçada às questões jurídicas concretamente suscitadas nos
presentes autos, não prosseguiremos neste intuito, sem àquelas fazer uma referência,
ainda que sumária.
Deste modo, não podemos deixar de recordar que, àquelas datas, bem como à
data da alegada compra verbal do prédio construído na referida parcela – … - , todos os
actos de fraccionamento de prédios, com ou sem construção, fora dos casos excepcionais
previstos na lei, tinham de obedecer ao processo formal do loteamento (cfr. art.º 27.º do
D.L. n.º 289/73, de 6 de Junho, art.º 27.º do D.L. n.º 400/84, de 31 de Dezembro, e
art.º 53.º do D.L. n.º 448/91, de 29 de Novembro).
Daí que a posição de há muito sufragada por este Conselho, partindo da ideia
sustentada na lei [art.º 1317.º, alínea c), do C.Civil] de que, no caso de usucapião, o
direito de propriedade é adquirido no momento do início da posse, vá no sentido de que
devem constar do título, designadamente, da escritura de justificação notarial, em que se
invoque a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre um lote de terreno
para construção (ou sobre a edificação nele implantada), as menções sobre loteamentos
urbanos exigidas pela lei em vigor no momento em que se iniciou a posse e, portanto, se
verificou a aquisição 8.
Acontece que nenhum lastro da observância deste procedimento se vislumbra na
escritura que titulou o registo em apreço.
3.2 – Atendendo, agora, ao ano alegado como sendo o da compra – ... –, e à
inobservância da forma da escritura pública (ao tempo, único meio formal admitido) a
que se encontrava sujeito, sob pena de invalidade, o contrato de compra e venda de
bens imóveis (art.º 875.º, C.Civil) - responsável pela ocorrência “ in casu” de uma posse
não titulada, que a lei presume de má fé (art.º 1260.º, n.º 2, cit.) -, somos, à partida,
levados a concluir que, na escritura de justificação em apreço, não foi respeitado o prazo
legalmente necessário para que a posse mantida por um certo lapso de tempo sobre um
determinado prédio conduzisse à aquisição originária do mesmo, uma vez que, em lugar
dos exigidos 20 anos, teriam decorrido apenas 16.
8
Cfr. sobre o assunto os pareceres do CT emitidos nos P.º 17/96 R.P. 4, in BRN II, n.º 12/96, P.º R.P.
165/2000 DSJ-CT, in BRN II, n. º 4/2001, P.º R.P. 28/2001, in BRN II, n.º 10/2001, e
P.º R.P.
30/2001, in BRN II, n.º 11/2001.
8
A reserva que ponteou a conclusão acabada de enunciar justifica-se pelo facto de
a mesma não ter levado em conta dois factores capazes de a infirmar, quais sejam, a
eventualidade de recurso ao instituto da acessão na posse e a possibilidade de ilidir a
aludida presunção de má fé da posse não titulada.
3.2.1 –
Relativamente
ao
primeiro,
convém
lembrar
que
o
mesmo
foi
expressamente introduzido no actual Código Civil pelo artigo 1256.º, cujo n.º 1 define,
assim, o condicionalismo em que o mesmo pode ocorrer: “Aquele que houver sucedido
na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse
do antecessor.”.
Daqui resulta que, ao invés do que acontece na sucessão por morte, a acessão
exige, por parte do novo possuidor, o elemento material da posse, o chamado “corpus”
que, no entanto, porque a posse é agora adquirida com o consentimento do anterior
possuidor, não tem que revestir a mesma intensidade exigida para a aquisição originária,
bastando-se, por isso, com a tradição material ou simbólica por parte do antepossuidor
9
. Isto porque, no primeiro caso, a posse é única, é a mesma que pertencia ao possuidor
falecido e que continua nos seus sucessores desde o momento da morte (art.º 1255.º,
C.C.), enquanto na acessão existem duas posses, a do actual e a do anterior possuidor,
posses essas que a lei permite somar. Por isso também é que, enquanto na primeira a
continuidade decorre da lei, na acessão, a junção das duas posses é facultativa, sendo
atribuído ao actual possuidor o direito potestativo de a invocar, com vista à respectiva
adição.
Por seu turno, face ao contexto do artigo, a palavra “sucedido” não foi, com
certeza,
aí
utilizada
em
sentido
próprio
e,
muito
menos,
técnico-jurídico 10,
correspondendo antes à ideia, por parte do legislador, de aí prever todo e qualquer acto
translativo da posse, resulte o mesmo de negócio jurídico (compra e venda, permuta ou
9
Cfr. art.º 1263.º, C.C. que, sob a epígrafe “Aquisição da posse”, refere, na alínea b), que esta se adquire pela
tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor. Trata-se de uma aquisição derivada
da posse em que a intervenção do antepossuidor dispensa a prática reiterada de actos materiais
correspondentes ao exercício do direito, exigida (alínea a) para a aquisição originária, bastando-se com a
entrega, material ou simbólica da coisa.
10
A imperfeição, do ponto de vista técnico, da terminologia legal utilizada, tem sido objecto de censura,
nomeadamente porque a menção naquele preceito àquele “que houver sucedido na posse” pode gerar alguma
confusão com a figura diversa da “sucessão na posse”, de que se ocupa o artigo 1255.º, além da falta de rigor
que implica falar daquele que sucede “por título diverso da sucessão por morte”. Como, a propósito, refere
José Alberto C. Vieira, in “Direitos Reais”, a págs. 415: “Se não é de sucessão na posse que se trata, mais
vale abdicar do uso do termo. Só gera equívocos.”.
9
doação), ou de uma expropriação ou execução. O que parece ser indispensável é que
exista “… um verdadeiro acto translativo da posse, que haja uma relação jurídica entre
os dois possuidores …”, para além de que, por outro lado, há-de tratar-se “… de uma
relação jurídica formalmente válida, o que não acontece, por exemplo, na venda de
imóveis por mero acordo verbal.”.11
Ambas as posses devem ser consecutivas, não podendo intermediar entre elas a
posse de um terceiro, e, em princípio, devem ser homogéneas. Desvio importante a esta
última regra é o que se acha consignado no n.º 2 do mencionado artigo, ao dispor que se
as posses forem de diferente natureza, a acessão só poderá funcionar dentro dos limites
daquela que tiver menor âmbito; assim, por exemplo, um possuidor de boa fé pode
juntar à sua uma posse de má fé e vice-versa, ainda que, em qualquer dos casos, a
posse seja havida como de má fé, por ser a que tem âmbito menor.
A acessão na posse tem sido pacificamente encarada como um instituto destinado
a propiciar e facilitar o funcionamento da usucapião, permitindo ao possuidor que a
invoque usufruir da redução do período da sua própria posse, adicionando a esta, para o
efeito, a posse do antepossuidor.
Nesta perspectiva, a doutrina que não alinha na ideia antes exposta de que só
existe acessão na posse se esta for transmitida através de uma relação jurídica válida
entre os dois possuidores sucessíveis, de tal modo que, sendo nulo o acto de transmissão
do direito, não há transmissão do jus possidendi, que aqui é a causa da junção ao jus
possessionis,
11
argumenta
que
esta
interpretação
12
do
preceito
em
exame,
In “Código Civil Anotado”, cit., pág. 14. Cfr. também, a propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação do
Porto (2.ª Secção), de 7/10/2008, de cujo sumário consta o seguinte: “I – A acessão na posse, a que se
reporta o art.º 1256.º, exige que a transmissão do anterior para o actual possuidor seja titulada; II – O título
exigido é o que a lei exige para que o negócio de transmissão seja formal e substancialmente válido, não
relevando para o efeito, como título legítimo de aquisição um acto nulo. III – No caso de posse que tem na
origem um acto de transmissão nulo o possuidor actual só pode invocar a sua própria posse, não podendo fazer
acrescer à sua a dos antepossuidores.
12
Orientação que radica nas teses defendidas por Manuel Rodrigues – “A Posse” – e Dias Marques – “A
Prescrição Aquisitiva”.
Na esteira do primeiro, salienta o segundo Autor que o fundamento da acessão das posses é a transmissão da
situação jurídica possessória, que não poderá – transcrevemos - realizar-se senão por um acto que validamente
a provoque, como, por exemplo, uma doação, uma troca, uma dação em pagamento … À acessão das posses é
indispensável a existência de um vínculo jurídico por via do qual a situação possessória haja sido regularmente
transmitida ao que actualmente a invoca. (Tal) circunstância implica, por sua vez, que, quando se dê o caso de
que o sujeito haja sido investido na sua posse na base de um negócio jurídico inválido, possa ele invocar a sua
própria posse, mas não a do seu antecessor, por lhe faltar o nexo de válidas transmissões que é indispensável
à identidade e continuidade das duas posses em causa.
10
maioritariamente seguida pela jurisprudência nacional, apenas vem impedir a consecução
do fim – facilitar a usucapião - a que o referido instituto propende13.
Certo é que, quando se invoque um título de aquisição derivada, como, por
exemplo, a compra e venda, tem o justificante ainda que demonstrar que esse direito já
existia na titularidade do transmitente, uma vez que o referido contrato não é
constitutivo do direito de propriedade, mas apenas translativo. Quando tal aconteça,
pode, então, assumir relevância a dita figura da acessão na posse, de que trata o artigo
1256.º em apreço, permitindo juntar à posse invocada a do antecessor.
Já na falta de título de transmissão da posse alegada, ainda que prescindindo de
contrato válido, não é permitido ao justificante aproveitar-se do benefício da aludida
acessão na posse. Além de que, como antes se referiu “ … é entendimento
jurisprudencial constante que o título a que alude e exige a norma do n.º 1 do artigo
13
“Vide” Meneses Cordeiro, in “A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais”, 3.ª ed., Autor que,
justamente considerando o fim assinalado ao instituto da acessão na posse, de facultar o funcionamento da
usucapião, acentua, a págs. 133, que, por isso, não faz sentido exigir para a acessão na posse mais requisitos
do que os postos à própria usucapião. Assim, partindo da ideia de que o essencial, na acessão, é que a posse
se transmita (transmissão que pode acontecer por tradição e por constituto possessório), afirma que em parte
alguma a lei portuguesa exige, para que tal suceda, títulos, negócios ou vínculos válidos, destarte censurando a
posição de Manuel Rodrigues - quando identifica como uma das características essenciais da acessão na
posse o facto da mesma dever assentar num vínculo jurídico entre o novo e o antigo possuidor. E, em
consequência, chega a concluir que a transmissão não exige qualquer título válido. “Simplesmente – refere – a
posse do transmissário será então uma posse não titulada: a acessão opera … dentro dos limites da posse com
menos âmbito … , pelo que a posse do antecessor valerá como não titulada – Artigo 1256.º/2.” (pág. 138, ob.
cit.).
No mesmo sentido milita José Alberto Vieira, que, na obra “Direitos Reais” cit., a págs. 415, refere - e
transcrevemos - “Não é exacto, à luz do art.º 1256.º, n.º 1, afirmar que deve haver um vínculo jurídico entre o
novo e o antigo possuidor, vínculo esse que poderia ser um negócio jurídico … ou outro acto, … execução ou …
expropriação. (…) se o instituto da acessão visa facilitar o funcionamento da usucapião, tendo sido no seu
contexto que encontrou explicação, não faz qualquer sentido exigir para ela mais requisitos do que aqueles que
se colocam à própria usucapião. O direito português abandonou a exigência de título e de boa fé para efeitos de
usucapião e permite que o possuidor formal beneficie desta. Por que razão exigir um título para um instituto
que funciona no âmbito da usucapião se o regime desta não o faz? Nesta ordem de ideias, o possuidor actual
pode juntar a sua posse à do antecessor caso tenha adquirido a posse deste por qualquer um dos meios da
transmissão
da
posse
que
o
direito
português
conhece
(a
tradição
e
o
constituto
possessório),
independentemente da validade do título de transmissão. O título pode mesmo faltar de todo, sem que a
acessão na posse seja prejudicada.” (Sublinhado nosso). Um limite coloca, todavia, este Autor ao
aproveitamento pelo possuidor actual do tempo de posse dos seus antecessores para o efeito do cômputo do
prazo de posse respectivo, e esse reside no facto do recurso à acessão na posse do seu transmitente só poder
ter lugar quando a usucapião não venha a funcionar contra ele (prejudicando o titular do direito real cujo tempo
de posse venha a ser aproveitado na invocação daquela).
11
1256.º é o que a lei também exigir para que o negócio de transmissão seja formal e
substancialmente válido, não relevando, para o efeito, como título legítimo de aquisição
um acto nulo, sendo que, neste caso, só pode ser invocada a posse pessoalmente
exercida e não a dos antepossuidores.”.14
O recurso à figura da acessão na posse em caso de falta de título de transmissão
podia conduzir, no limite, à inobservância casuística do preenchimento dos requisitos
que, nos termos legais, integram e caracterizam a posse geradora da usucapião,
precludindo até a própria formalização do respectivo título (escritura de justificação) o
qual, visando o estabelecimento de novo trato sucessivo e fundando-se em posse não
titulada, demanda ao justificante a menção expressa dos requisitos estruturantes de uma
posse boa para efeitos de usucapião, conduta que apenas pode assumir relativamente à
sua própria posse.
Interessa frisar, a este respeito, que a posse e a usucapião são institutos
diferentes, do ponto de vista das suas razões, causas e funções.
Assim, consistindo a posse no poder que se manifesta quando alguém actua de
modo correspondente ao direito de propriedade, a sua aquisição pode ser originária – por
apossamento ou inversão do título -, ou derivada – por tradição, constituto possessório
ou transmissão por morte.
A usucapião, por sua vez, constitui uma forma originária de constituição de
direitos reais de gozo mediante a transformação de uma situação de facto objectiva e
subjectiva sobre uma coisa, com certa duração e determinadas características, em
situação jurídica.
Daí que seja legítimo interrogarmo-nos sobre se a transmissão da posse operada,
nos termos legais, por simples cedência/tradição, material ou simbólica, por exemplo,
implica a transmissão do direito, relevante na perspectiva da aquisição por usucapião.
Isto porque, como se sabe, apoiando-se esta na posse, não é qualquer posse que serve
os interesses daquela, mas apenas a que, consoante decorre do próprio artigo 1297.º,
reúna os caracteres de pública e pacífica, de tal sorte que se a posse for oculta, ela não
conta para a usucapião, a menos que se torne pública, e, se adquirida com violência, o
prazo para a usucapião só começa a contar quando ela se tornar pacífica. São, pois,
estas as duas qualidades que a mencionada situação de posse deve revestir para que se
possa iniciar o prazo de aquisição do direito real por usucapião; já os requisitos de justo
título de aquisição e registo deste somente relevam para efeitos do prazo de duração da
posse (arts. 1294.º a 1297.º, C.Civ.).
14
In Acórdão do STJ, de 27/11/2007, proc. 07ª3815, publicado in www.dgsi.pt/jstj.
12
Entendemos, portanto, que o intuito de facilitar a usucapião, assinalado à acessão
na posse, não pode justificar a preterição do cumprimento dos requisitos a que, por força
da lei, a invocação daquela está sujeita, designadamente, no que respeita ao período de
tempo legalmente fixado para usucapir, como acabaria por suceder quando, tendo a
posse do justificante origem num acto nulo em razão da falta de título, o mesmo,
aproveitando-se da acessão, fizesse acrescer à sua posse a dos anteriores possuidores,
quando, de facto, unicamente pode invocar a sua própria posse, até porque, no limite, o
recurso à acessão na posse do seu transmitente, por parte do actual possuidor, podia
redundar em prejuízo do titular do direito real cujo tempo de posse viesse a ser
aproveitado na invocação da falada usucapião.15
Por isso é que, independentemente da orientação doutrinal a que, nesta matéria,
se dê acolhimento, somos de parecer que a escritura de justificação notarial não pode
servir para invocar a acessão na posse, dada a ausência de intervenção na mesma do
dito antepossuidor transmitente, e tendo em linha de conta a indispensabilidade de tal
intervenção ao nível do contraditório16.
3.2.2 – No que respeita à possibilidade de ilidir a presunção legal de má fé
estabelecida pelo n.º 2 do artigo 1260.º do Código Civil para a posse não titulada,
considerando que se trata de uma presunção “iuris tantum”, como tal ilidível mediante
prova em contrário (art.º 350.º, n.º 2, C.Civ.), é ao justificante que cabe essa prova,
15
Daí os limites colocados por alguns autores ao aproveitamento pelo possuidor actual do tempo de posse dos
seus antecessores com vista ao cômputo do prazo de posse respectivo. Cfr. nota 13 de rodapé, “in fine”.
16
O princípio do contraditório é um dos princípios basilares do processo civil, que, na sua noção tradicional,
correspondia à imposição de que, “formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia à outra
ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão, tal como, oferecida uma prova por uma
parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar,
assim se garantindo o desenvolvimento do processo em discussão dialéctica, com as vantagens decorrentes da
fiscalização recíproca das afirmações e provas feitas pelas partes.”.
Esta concepção acha-se hoje substituída por uma noção mais lata de contraditoriedade, entendida como
garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, através da possibilidade de,
em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas e questões de direito) que se encontrem
em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente
relevantes para a decisão, revelando-se o dito princípio nos planos da alegação dos factos (concedendo a
ambas as partes, em igualdade, a faculdade de se pronunciarem sobre todos eles), da sua prova (a produção
ou admissão de prova há-de ter lugar com a audiência contraditória de ambas as partes de modo a que estas
se possam pronunciar sobre a apreciação das provas produzidas), e das questões de direito (facultando às
partes a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie). – “Vide” José
Lebre de Freitas, in “Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais”, 2.ª edição, págs.
108 e segs.
13
demonstrando que o facto presumido não se verificou, que o direito presumido não
existe.
Entendem os recorrentes, nas suas alegações de recurso, que a dita presunção foi
ilidida na própria escritura de justificação quando declararam – declaração confirmada
pelas três testemunhas nela intervenientes – que agiram de boa fé, na convicção de
serem os únicos donos e plenamente convencidos de que não lesavam quaisquer direitos
de outrem.
Ora, no que concerne à força probatória dos documentos, importa distinguir entre
a sua força probatória formal – saber se o documento provém da pessoa ou entidade a
quem é imputada a sua autoria -, e a sua força probatória material – saber em que
medida os actos nele referidos e os factos nele mencionados se consideram como
correspondentes à realidade.
Estando em causa um documento autêntico, como é o caso da escritura pública, a
sua força probatória formal – o documento faz prova por si mesmo da sua proveniência,
desde que se mostre subscrito pelo autor com assinatura reconhecida pelo notário ou
com o selo do próprio serviço – baseia-se em presunção legal, a qual só pode ser ilidida
em incidente especial de falsidade e mediante prova do contrário (art.º 370.º e art.º
372.º, C.Civ.).
Relativamente à força probatória material do documento autêntico, definida no
artigo 371.º, ela analisa-se no facto dos documentos autênticos fazerem prova plena dos
factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, bem
como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade
documentadora, não sendo por ela abrangidos os factos do foro interno dos outorgantes
ou de factos exteriores, não ocorridos no acto da escritura e até fora do cartório notarial,
aos quais não chegam as percepções do funcionário documentador, factos estes que, por
não estarem cobertos pela força probatória plena do documento, podem ser impugnados
por qualquer das partes sem que, para tal, tenham de arguir a falsidade do documento.
Assim, o documento autêntico faz prova plena quanto à materialidade das
afirmações atestadas, mas já não quanto à sinceridade, veracidade ou validade das
declarações emitidas pelas partes e quanto aos meros juízos pessoais do documentador.
17
Daqui resulta que, tendo a escritura de justificação notarial plena força probatória
relativamente aos factos que atesta, não tem, contudo, força suficiente para ilidir uma
presunção legal, motivo pelo qual, a prova da boa fé dos justificantes terá que ser feita
17
Cfr. “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora,
págs. 513 a 522.
14
judicialmente, não sendo bastante a alegação produzida na escritura pelos justificantes
de que estavam convencidos de que não lesavam quaisquer direitos de outrem.
Estando, pois, em causa uma posse não titulada, presumivelmente de má fé, para
que se possa usucapir antes de decorridos 20 anos sobre o início da mesma, é necessário
que a prova da boa fé, com vista a ilidir essa presunção, se faça em sede judicial.18
3.3 – Importa ainda fazer referência à inobservância no título apresentado de um
outro requisito de admissibilidade e de legitimidade para o acesso dos factos a registo
mediante a justificação, e que respeita à comprovação da existência da licença de
utilização correspondente ao prédio urbano objecto da escritura apresentada para titular
o registo, exigência esta decorrente da previsão contida no n.º 1 do artigo 1.º do D.L. n.º
281/99, de 28/07.
Nos termos deste preceito, conforme a redacção introduzida pelo artigo 6.º do
D.L. n.º 116/2008, de 4 de Julho, não podem ser realizados actos que envolvam a
transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que
se faça prova da existência da correspondente licença de utilização perante a entidade
que celebrar a escritura pública ou autenticar o documento particular, apresentação que
é dispensada quando a sua existência estiver anotada no registo predial e o prédio não
tiver sofrido alterações (n.º 4 do art.º 1.º cit.).
É que, não obstante, e, rigorosamente, a justificação não titular qualquer
transmissão, tem este Conselho vindo a entender que, por motivações que, no essencial,
se prendem com a defesa do consumidor, o legislador quis, mediante a inclusão no
mencionado Decreto-Lei n.º 281/99 da norma do artigo 4.º - “A justificação para os
efeitos do artigo 116.º do Código do Registo Predial que tiver por objecto prédios
urbanos fica sujeita à disciplina deste diploma na parte que lhe for aplicável” –,
condicionar a justificação (notarial ou para-judicial) de direitos sobre prédios urbanos à
comprovação da existência da correspondente licença de utilização, criando assim um
novo requisito de admissibilidade.
19
4 – Posto isto, atendendo a que a justificação é o título formal criado para
conseguir a inscrição do direito, fazendo a prova deste e beneficiando da publicidade e
legitimação que o registo lhe concede, há que reconhecer-lhe o valor que representa em
termos de suprimento do documento normal em falta, sendo certo que, para tal,
18
Cfr. P.º n.º 1/11 R.P. 95 DST; e P.º R.P. 48/2006 DSJ-CT
19
Cfr. Deliberação do CT, relativa ao P.º C.N. 27/2000 DSJ-CT, in BRN II, n.º 6/2002.
15
necessário se mostra que nela se tenha observado um requisito essencial para a
aquisição da propriedade por usucapião e esse tem a ver com o decurso do prazo fixado
para o efeito – 20 anos - , uma vez que, no caso, a posse alegada, porque sem título, foi
considerada de má fé.
Não tendo decorrido o prazo legalmente necessário para a aquisição da
propriedade por usucapião, o interessado continua a não dispor de título para registar a
seu favor a aquisição do prédio, uma vez que a escritura de justificação refere uma posse
- que não é titulada – com uma duração inferior à estabelecida na lei ( cfr. art.s 1260.º,
n.º 2, e 1296.º, C. Civ.) o que conduz à respectiva nulidade20 e, consequentemente, à
sua impossibilidade para comprovar a aquisição do direito.
Ora, não constituindo a escritura de justificação notarial o próprio título aquisitivo,
mas apenas um instrumento criado pela necessidade de suprir a falta de daquele, a
recusa do registo peticionado, pelos motivos expostos, deve sediar-se no fundamento
enunciado na alínea b) do n.º 1 do artigo 69.º do Código do Registo Predial (facto não
titulado nos documentos apresentados) – como, aliás, consta do despacho ora
impugnado - , e não no referido na alínea d) do mesmo n.º 1 (manifesta nulidade do
facto).
5 – Relativamente à censurada (pelos recorrentes) falta de recurso por parte da
conservatória recorrida ao processo de suprimento de deficiências, diremos apenas o
seguinte.
Em
caso
de
impossibilidade
de
suprimento
oficioso
das
deficiências
do
procedimento de registo, prevê o n.º 2 do artigo 73.º do Código do Registo Predial a
notificação dos interessados com vista a que, no prazo de 5 dias, os mesmos se ocupem
dessa tarefa, sob a cominação de o registo pretendido ser lavrado como provisório por
dúvidas ou recusado.
Do rol das deficiências capazes de ser supridas por esta via estão literalmente
excluídas as que envolvam novo pedido de registo e as que constituam motivo de recusa
nos termos das alíneas c) a e) do n.º 1 do art.º 69.º do mesmo Código, ou seja, aquelas
que, atentas as suas características, se revelam, desde logo, como impossíveis de
20
A escritura em causa foi, portanto, lavrada contra uma disposição legal, já que não se verificou um requisito
legalmente imposto, e, nos termos do disposto no art.º 294.º do Código Civil, os negócios jurídicos celebrados
contra disposição legal de carácter imperativo são nulos (o facto de aqui estarmos perante um quase-negócio
jurídico não preclude a aplicação “in casu” da sua disciplina jurídica).
Ora, como refere Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, II vol., “a nulidade
pressupõe que o negócio jurídico foi concluído, mas sem os requisitos que legalmente é necessário observar na
sua conclusão para que daí se sigam os efeitos jurídicos pretendidos.”.
16
resolver, mesmo com a colaboração dos requerentes do registo, em princípio, os
principais interessados na sua efectivação e, por consequência, dos quais é legítimo
esperar o maior empenho na superação dos obstáculos surgidos.
O que significa que a concessão deste prazo adicional assenta, de facto, no
pressuposto de que objectivamente ainda é possível, por via da colaboração dos
interessados no registo, “salvar” de uma qualificação minguante o processo a este
endereçado. Quando essa possibilidade se não vislumbre, a disponibilização da faculdade
prevista no mencionado n.º 2 do artigo 73.º consubstanciará apenas um expediente
dilatório, não pragmático e contrário à clara intenção do legislador.
Assim aconteceria na situação “sub judice”, em que, tendo sido invocada uma
posse não titulada, não seria possível, face às declarações produzidas, obter a junção de
qualquer documento - alegadamente inexistente - sob pena de, em caso de apresentação
do mesmo (título válido para a transmissão da posse), ficar infirmado todo o conteúdo da
escritura
de
justificação
apresentada,
atenta
a
então
decorrente
falsidade
das
declarações nela contidas.
Note-se que a referência feita ao título que constitua motivo de recusa nos termos
da alínea b) do artigo 69.º, inserta no n.º 6 do mesmo preceito, contempla o suprimento
da deficiência que, ao contrário do sucedido na situação dos autos, resultou da falta de
apresentação do referido título, pelo que a solução aí preconizada não tem aplicação no
caso em análise.
6 – Considerando tudo o que viemos de expor, entendemos que o recurso não
merece provimento, formulando as seguintes
Conclusões
I – O adquirente que careça de título para prova do seu direito sobre
parte delimitada de prédio relativamente ao qual exista inscrição de aquisição
ou
equivalente
pode
socorrer-se,
para
tal
efeito,
de uma
escritura
de
justificação notarial em que invoque a usucapião como causa de aquisição do
seu direito, determinando, assim, o estabelecimento de novo trato sucessivo
quanto ao prédio justificando.
II – Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária, quando
invocada como título de aquisição do direito de propriedade, conduz ao
17
reconhecimento deste, contanto que se mostrem provados os factos que a
integram, entre os quais avulta o do lapso de tempo pelo qual a posse se
manteve, prazo que, sendo função da boa ou má fé do possuidor, se acha fixado
pela lei, quanto aos imóveis, em 15 e 20 anos, respectivamente.
III – Presume-se de má fé a posse não titulada (art.º 1260.º, n.º 2, C.C.),
sendo havida como tal a que não se baseie em qualquer modo legítimo de
adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade
substancial do negócio jurídico (art.º 1259.º, n.º1, C.C.).
Trata-se de uma presunção “iuris tantum”, que, por isso, pode ser ilidida
mediante prova em contrário, a qual, todavia, não poderá ser produzida em
sede de escritura de justificação notarial.
IV -
Não configura o predito modo legítimo de aquisição o contrato de
compra e venda verbal que, não tendo observado a forma da escritura pública –
ao tempo, único meio formal admitido -, está ferido de nulidade.
Obstáculo este que impede, por seu turno, o possuidor de recorrer, em
escritura de justificação notarial, mormente atenta a ausência de contraditório,
ao instituto da acessão na posse (art.º 1256.º, C.C.) adicionando à sua própria
posse a do antepossuidor, já que, não relevando, para o efeito, como título
legítimo de aquisição, um acto nulo, ele só pode invocar a posse que,
pessoalmente, exerceu.
V – Assim, não tendo decorrido o prazo legalmente necessário para a
aquisição da propriedade por usucapião, continua o interessado a não dispor de
título para registo, já que a escritura de justificação notarial – que, todavia, não
constitui o próprio título aquisitivo, mas antes o instrumento criado para suprir
a falta deste – refere uma posse que não é titulada com uma duração inferior à
legal (art.s 1260.º, n.º 2, e 1296.º, C.C.), o que conduz à respectiva nulidade e
consequente impossibilidade para comprovar a aquisição do direito, justificando
a recusa do registo com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 69.º do
Código do Registo Predial.
VI – Acresce que, invocada a usucapião, porque a aquisição do direito de
propriedade se reporta ao momento do início da posse, quando aquela respeite
a um lote de terreno para construção ou à edificação nele implantada, devem
18
constar do título as menções sobre loteamentos urbanos exigidas pela lei em
vigor no momento em que a posse se iniciou e, portanto, a usucapião se
verificou.
Do mesmo modo, quando o título comprovativo da justificação disser
respeito a um prédio urbano, funciona como mais um dos requisitos de
admissibilidade do mesmo, a comprovação da existência da correspondente
licença de utilização.
VII – No âmbito do processo de suprimento de deficiências, o recurso ao
expediente previsto no n.º 2 do artigo 73.º do Código do Registo Predial assenta
no
pressuposto
de
que
ainda
é
possível,
mediante
a
colaboração
dos
peticionários do registo “salvar” o respectivo processo de uma qualificação
minguante, pelo que, não se entrevendo essa possibilidade, deixa de ter sentido
o uso de tal expediente cujo alcance passaria, então, a ser meramente dilatório,
não pragmático e adverso à intenção do legislador.
Parecer aprovado em sessão do Conselho Técnico de 23 de Setembro de 2010.
Maria Eugénia Cruz Pires dos Reis Moreira, relatora, Maria Madalena Rodrigues
Teixeira, Luís Manuel Nunes Martins, Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, António Manuel
Fernandes Lopes, João Guimarães Gomes Bastos, José Ascenso Nunes da Maia.
Este parecer foi homologado pelo Exmo. Senhor Presidente em 29.09.2010.
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