Guimarães Rosa – “O Feiticeiro das palavras” "Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte." “Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade. ...” I – O Autor • Permanência realista do testemunho humano • Universalização do Regionalismo • Mundo de fantasia e realidade do sertão (místico ) mineiro • Sondagem do mundo interior de personagens com poder generalizante. • Grande preocupação em manter o enredo e o suspense. • A natureza, além de cenário, é um agente ativo, participante, diretamente ligado aos destinos do homem. • Revitalização dos recursos da expressão poética, tais como ritmo, rima, aliterações, cortes e deslocamentos de sintaxe, vocabulário insólito, erudito e arcaico, neologismos, a fim de captar e imortalizar os valores espirituais, humanos e culturais de um povo . • A lírica e a narrativa fundem-se, abolindo os limites entre ambos. “O Sertão é o mundo” “O Sertão está em toda a parte.” “O Sertão está em nós.” II – A Obra Sagarana • Elementos centrais: M.G., sertão,bois,vaqueiros e jagunços,o bem e o mal, solidão, amor, violência. • Repletos de histórias dentro de histórias, de digressões filosóficas e de monólogos interiores que desvendam o universo dos homens, dos bichos e das coisas, os contos nos permitem uma espécie de ritual de iniciação, ao longo da leitura. • Esta iniciação ocorre se conseguirmos compreendê-los em sua simbologia, na cosmovisão alógica, mágica, mítica e poética que humaniza em sentido profundo os protagonistas. • SAGA- radical de origem germânica, significa “canto heróico” • RANA- língua indígena, que significa “à maneira de” “Lá em cima daquela serra, / passa boi, passa boiada, passa gente ruim e boa, / passa a minha namorada.” Assim, todas essas histórias têm um tom épico, heróico, embora não grandiloqüente, mas lírico. Em Sagarana, pontuam-se aqueles valores espirituais comuns aos homens de qualquer lugar ou época, valores estes que consagram a “radiosa aventura humana”, ou seja, a coragem, a alegria e o amor. A filosofia religiosa, a intuição e o sentimento de universo colocam seus contos no nível das grandes obras da literatura universal. • O cavalo, simbolicamente, pode ser interpretado como o veículo da vontade, que, com clarividência e pertinácia, conduz o cavaleiro ao sucesso de sua empreitada. • Por sua vez, o boi é carregado de simbologia ambígua: é associado às formas cósmicas da fecundação, mas também é ligado á idéia de morte. III – Linguagem - Criação de vocábulos: é o que podemos chamar de neologismos: a) derivação prefixal. Um dos prefixos mais usados é ainda dês-: desfeliz, desinquieto, desenxergar, etc. sempre em sentido negativo ou como mero reforço. b) derivação sufixal. funciona como expressivo recurso estilístico, principalmente em se tratando de linguagem popular. Exemplos: vaqueirama, assinzinho, coisama, pensação, cigarrar, rapaziar, quilometrosa, maismente, saudadear, pererecar, etc. • Às vezes o sufixo é usado mesmo em palavras que não o comportam, como é o caso, já citado, de maismente, assinzinho, arranjeizinho (“Arranjeizinho lá um lugar de guarda-civil”) e amormeuzinho que aparece no conto “São Marcos”. c) derivação parassintética. Consiste no uso de prefixo e sufixo ao mesmo tempo. Não é muito freqüente em Sagarana, mas mesmo assim podemos anotar alguns exemplos: avoamento, esmoralizado, desbriado, amaleitado, etc. d) abreviação. Na abreviação, registre-se o caso de estranja (“você não tem vergonha de trabalhar p’ra esses gringos, p’ra uns estranjas, gente atoa?” ), além de largo uso da síncope, como é o caso de corgo em vez de córrego, p’ra em vez de para, e muitos outros casos que refletem a nossa língua popular. Veja-se ainda vam’bora para “vamos embora” e ixa para “virgem” (como interjeição). e) composição aglutinada. Consiste na junção de dois vocábulos de modo que percam a sua individualidade fônica. É o caso de: passopreto (pássaro + preto), milmalditas (mil + malditas), suaviloqüência (suave + eloqüência), destamanho (deste + tamanho), membora (me + embora), santiaméin (santo + amém) e o curioso nomopadrofilhospritossantamêin (em nome do pai, do filho e do espírito santo, amém) que sugere a rapidez com que Nhô Augusto fez o sinal da cruz, naquelas circunstâncias em que se achava.É curioso também o dei’stá (deixa + está) de largo uso no f) composição justaposta. Consiste na união de dois ou mais vocábulos em que se mantém a integridade fônica de ambos. Como exemplo, anotese: hoje-em-dia, mulheres-atoa, todo-o-mundo e aqueles vocábulos formados pela introspecção bovina de “Conversa de Bois” como: “boigrande-que-berra-feio-e-carrega-uma-cabeça-na-cacunda (para marruás, touro) e homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta ( homem que guia os bois e leva o ferrão). 2 - Arcaísmos: arcaísmos são “vocábulos, formas ou construções frasais que saíram do uso na língua corrente”. O arcaísmo em Sagarana é um reflexo da linguagem popular, visto que a língua do interior, afastada do contato com a civilização, é estática, conservando muitos vocábulos do português arcaico. Exemplos: riba (por riba do monte), banda (em lugar de lado), vigiar (em vez de olhar), quentar (em vez de esquentar) e uma enfiada de verbos com prótese de um a, outrora bastante em voga em nossa língua e que ainda existe na fala do nosso homem do interior: agarantir, alembrar, alumiar, amostrar, arreconhecer, arrenegar, arresolver, arresponder, arresistir, etc. 3 – Erudismo: ocorre sempre quando é o escritor que narra, quando não pretende registrar modismos regionais ou a linguagem popular. Nesse sentido nos parecem válidos os contos “São Marcos” e “Minha Gente”, principalmente este último, donde extraímos este exemplo: “Eu tinha cochilado na rede, depois de um almoço gostoso e pesado, enquanto Tio Emílio, na espreguiçadeira, lia sua pilha de jornais de uma semana. A varanda era uma praia de ilha, ao mar da chuva. Meu espírito fumaceou, por ares de minha só pos-se — e fui, por inglas de Inglaterra, e marcas de Dinamarcas, e landas de Holanda e Irlanda. Subi à visão de deusas, lentas apsaras de sabor de pétalas, lindas todas: Dária, da Circássia; Ragna de Aase; e Gúdrun, a de olhar cor dos fiordes; e Vivian, violeta; e Érika, sílfide loira; e Varvára, a de belos feros olhos verdes; e a princesa Vladislava, císnea e junoniana; e a princesinha Berengária, que vinha, sutil, ao meu encontro, no alternar esvoaçante dos tornozelos preciosos...” 4 - Figuras: aqui sobressaem pelo menos três figuras importantes: a) Metáfora. Consiste numa transposição do sentido de um vocábulo por se tornar opaco ou gasto o existente. Anote-se: “De noite, saiu uma lua rodo-leira, que alumiava até passeio de pulga no chão” ; em vez de dizer que a lua era cheia e brilhava intensamente; “Estou como ovo depois de dúzia”para dizer que está sobrando; “em mão de vaqueiro com dez anos de lida nos currais do sertão” para dizer que o vaqueiro era experiente; “Só de vez em quando é que um quer me saudar com a mão canhota” para indicar que, vez por outra, surgiam ingratidões, ou coisa semelhante; “aproveitava para encher, mais um trecho, a infinda lingüiça da vida”para indicar que ia levando a vida de qualquer jeito; “arquipélago de reses” para indicar ajuntamentos de reses aqui e ali. E assim muitas outras. b) Anacoluto. Ou frase quebrada é aquela em que uma palavra ou locução, apresentada inicialmente, se segue uma construção oracional em que essa palavra ou locução não se integra. •A definição é de Mattoso Câmara, que acrescenta: “Na língua oral coloquial o anacoluto é um processo freqüente de construção de frase”. •Guimarães busca a estilização da sintaxe popular. •Veja-se esse exemplo: “Que há? O senhor sabe que, a mim, eu gosto de estimar e respeitar os meus amigos, e, grande principalmente, as suas famílias excelentíssimas...” c) Silepse. A silepse é uma concordância ideológica. Quer dizer, é uma concordância que se faz com a idéia e não com o termo expresso. É o caso do coletivo com o verbo no plural que ocorre várias vezes em Sagarana. “Eu acho que a boiada vai bem, sêo Major. Não vão dar muito trabalho, porque estão bem gordos” “Ele é de uma turma de gente sem-que-fazer, que comeram carne e beberam cachaça na frente da igreja, em sexta-feira da Paixão, só p’ra pirraçar o padre e experimentar a paciência de Deus...” d) Musicalidade: é o que o escritor chama de “plumagem e canto das palavras”. Com efeito, amiúde Guimarães apela para os aspectos auditivos (“canto”) e visuais (“plumagem”), fazendo uma verdadeira orquestração sonora com as palavras. Rimas: Vejam-se esses exemplos: “por amos e anos” ; “boi sanga sapiranga”; “veio apropinquando, brando”; “suspiro de vaca não arranca estaca”,etc. Onomatopéia: Entre outros, citemos: “A boiada entra no beco - Tchou! Tchou! Tchou!... para tanger o gado; “lho... lho... lho... - vão, devagar, as braçadas de Sete-de-Ouros” , para o burrinho atravessando o rio; “-Prrr-tic-tic-tic!” para chamar galinha; “i-tchungs”-tchungou uma piabinha” , para o movimento da piaba, etc. IMPORTANTE: Aliteração:“repetição de dado fonema, numa frase, em vocábulos seguidos, próximos, distantes e simetricamente dispostos” “Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando.. . Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando...” Ritmo: elemento poético que se pode constatar em Sagarana. Principalmente em “O Burrinho Pedrês”, onde a disposição das palavras parece acompanhar as marchas e contra-marchas do rebanho que começa a trotar em passos cadentes: “Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combuscos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do mocho macheado, e as cuarmas antigas do boi cornalão...”. Assim, em Sagarana, “não é a linguagem que se acomoda à realidade, mas a realidade que se transforma em linguagem”. IV – Enredos: 1. “O Burrinho Pedrês” • O burrinho Sete-de-Ouros, decrépito, torna-se uma cavalgadura de emergência para um dos vaqueiros do Major Saulo, os quais tinham que transportar uma boiada (480 reses) até uma cidade, donde deverá ser transportada por trem. • Epígrafe: “E ao meu macho rosado/ carregado de algodão perguntei: pra onde ia?/ Pra rodar no mutirão.” O macho é o burrinho, cuja carga traz a ambigüidade de ser leve e pesada: é o algodão, ou, no texto, é um homem, que vai leve e leviano, pois é um apaixonado. A carga pode, metaforicamente, ser associada também ao fardo da vida, peso do mundo, a carga existencial. A pergunta da cantiga tem estofo filosófico, pois é o próprio sentido da vida, e a resposta acena para a solidariedade, pois mutirão é ajutório, forma de ajuda mútua no meio rural brasileiro. Assim, o destino do velho burrinho é o de cumprir o seu papel no “mutirão”; vai ter sua “hora e vez”. • O nome do burrinho, Sete-de-Ouros é recoberto pela magia de um número místico (sete) e pela força simbólica do ouro, indicador de superação e de transcendência para os alquimistas. • O burrinho é velho, sábio, limpo. • É sempre estóico, resignado, guardando sua força para quando for preciso, impassível, sereno, contrapondo-se ao mundo, aos homens e suas paixões. • Sete-de-Ouros é um filósofo em meio aos tumultos humanos, imune à confusão dos bois e à impaciência dos cavalos. • A serenidade o caracteriza: Só e sério. • Sem desperdício, sem desnorteio, cumpridor de obrigação, aproveitava para encher, mais um trecho, a infinda lingüiça da vida. • Durante a viagem chove muito. • Os vaqueiros relatam casos do seu mundo: o caso do boi Calundu que, inexplicavelmente, mata Vadico, filho do Seu Neco Borges; e o caso de Leôncio Madureira, homem herodes, que vendia o gado e depois mandava cercar os boiadeiros na estrada, para matar e tornar a tomar os bois - A conseqüência dessas malvadezas foi que, “quando ele morreu, e os parentes estavam fazendo quarto ao corpo, as vacas de leite começaram a berrar feio, de repente, no curral. Coisa que o garrote preto urrava: - Madurêra!... Madurêra!... E as vacas respondiam, caminhando: - Foi p’r’os infernos!... Foi pr’r’os infernos...!” • Chegam ao destino. Põem a boiada no trem e retornam sob o comando de Francolim, posto o major ter permanecido na cidade. • Uma tragédia paira sobre as cabeças: Silvino quer matar Badu; a escuridão trevosa envolve a noite; a enchente embarga a travessia. • Uma tragédia paira sobre as cabeças: Silvino quer matar Badu; a escuridão trevosa envolve a noite; a enchente embarga a travessia. • Os vaqueiros enfrentam as trevas, com exceção de João Manico e Juca, sendo tragados pela fúria das águas daquela noite sinistra. • Apenas se salvam o Francolim e Badu, o primeiro agarrado à cauda de Sete-de-Ouros, o segundo à crina do burrinho que, alquebrado, decrépito, desacreditado, salvara duas vidas humanas. • O autor procura mostrar, tendo como pano de fundo o mundo dos vaqueiros, que todos têm a sua hora e sua vez de ser útil. • É o caso do burrinho “a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e salvar-se numa cheia onde os cavalos afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro náufrago enclavinhado no rabo”(Oscar Lopes). • Em O Burrinho Pedrês, o mote implícito de que não vale a pena nadar contra a correnteza, responde-se pela lógica da espiral como modelo de funcionamento para todos os elementos constituintes do conto; a chuva, o rio, a boiada, o amor, o ódio. • Tudo a girar propondo sempre a volta, a reversibilidade dos movimentos. • Sete-de-Ouros é todo potência e força não usada. • Observe-se que tudo é colocado como coisa do Destino, acontecida por acaso, dentro do espaço de um dia: “Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas - seis da manhã à meia-noite - nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.” • Veja-se que as outras histórias contadas no decorrer do conto estão também neste sentido: os caprichos inexplicáveis do Destino que esmaga o homem. • Dentro desse Fatalismo sobressai a hora e vez de Sete-de-Ouros, apenas um burro. • Na espiral dos acontecimentos, ele tem a sabedoria de deixar que o movimento do mundo o envolva sem desperdício de vã oposição. • O burrinho, que é personificado como um velho e sábio, que lembra um monge oriental, possui dois cavos sobre as órbitas, que lembram óculos; não tem pressa e triunfa com serenidade, sabe que no fundo de tudo, tem o pátio, com os cochos, muito milho, na Fazenda; e depois o pasto: sombra, capim e sossego. 2. A Volta do Marido Prodígio • O marido pródigo é Lalino Salãthiel - Eulálio de Souza Salãthiel. É homem de muito riso, de muita graça e pouco trabalho: “Mulatinho levado! Entendo um assim, por ser divertido. E não é de adulador, mais sei que não é covarde. Agrada a gente, porque é alegre e quer ver todo-o-mundo alegre, perto de si. Isso, que remoça. Isso é reger o viver.” . • Mas o que o Lalino queria mesmo era (des)venturar por este mundo, pelo Rio de Janeiro. • Deixou a mulher, Maria Rita, entregue (ou vendida) ao Ramiro, um espanhol que há muito a perseguia. Lalino foi. O espanhol ficou. Maria Rita chorou e... depois se acomodou ao espanhol. • No Rio, o marido pródigo logo se enfara da beleza e das beldades: volta o marido pródigo: “- Quero só ver a cara daquela gente, quando eles me enxergarem!...” • Espanto pasmagórico. Olhos que se arregalam e enregelam. Lalino, o que vendera a mulher, voltara. E • Entra na política do Major Anacleto. Faz o diabo. • Tudo dentro dos conformes e da paz. • Lalino tinha tino e tirocínio. • Tinha diplomacia, sim senhor, tinha: “E falando nisso, que magnífico, o senhor Eulálio! Divertira-os! o Major sabia escolher os seus homens. Sim, em tudo o Major estava de parabéns...” - é elogio graúdo. De altas personalidades. Gente do governo. • Final feliz: Maria Rita volta. O Major aceita. O dia afoita. • Falece a (des)ventura. De Lalino. De Maria Rita. • As eleições estavam ganhas com a volta do marido pródigo: “no brejo - friíssimo e em festa - os sapos continuavam a exultar” • O conto apresenta também, de forma picaresca, os caprichos do Destino: Lalino, o marido pródigo, dá voltas e desvoltas pela vida, e acaba tudo bem. Com a mulher. Com a política. Consigo mesmo: “No alto, com broto de brilhos e asterismos tremidos, o jogo de destinos esteve completo. Então, o Major voltou a aparecer na varanda, seguro e satisfeito, como quem cresce e acontece, colaborando, sem o saber, com a direçãoescondida-de-todas-as-coisas-que-devem-depressaacontecer.” • O que tem que acontecer, acontece. • 3. “Sarapalha” • A ação de “Sarapalha” se desenvolve sobre um monte de ruínas causadas pela maleita: “Ela veio de longe (...) matando muita gente” • E o resultado da calamidade foi a morte e tristeza dos moradores: “os primeiros para o cemitério, os outros por aí afora, por este mundão de Deus”. • Numa fazenda em ruínas, “perto do vau da Sarapalha”, Primo Ribeiro, ora em diálogo, ora em monólogo, vai reconstituindo, alquebrado e decrépito pela maleita, a sua história ao Primo Argemiro, uma das poucas pessoas que lhe restaram. • Trágica e triste história a do Primo Ribeiro: Luisa, a sua mulher, fugira com outro, deixando-o só com sua maleita: “P’ra que é que há-de haver mulher no mundo, meu Deus?...” - pondera Primo Argemiro. • Mas ao saber que o Primo Argemiro pretendia-lhe a mulher também, Primo Ribeiro enxota-o da sua presença, e Argemiro dos Anjos sai por aí, perambulando por entre maleitas e belezas, buscando um lugar para cair e morrer: “- Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p’ra gente deitar no chão e se acabar” “Sarapalha” é de linha trágica, o que contrasta com o conto anterior. • Mostra não só um mundo em ruínas, ainda fumegando os efeitos da Malária, como a infidelidade feminina com o conceito de honra do sertanejo. • São dois mundos em ruínas: a população vitimada pela maleita e o primo Ribeiro sucumbido pela mulher infiel: “a maleita era uma mulher de muita lindeza” 4. O Duelo • O duelo, que não houve propriamente, foi entre Turíbio Todo e Cassiano Gomes. • Motivo d’honra: Turíbio encontra, certa vez, voltando a casa “sem contra-aviso”, a mulher “em pleno adultério” com o Cassiano Gomes. • O marido chifrado não fez nada. Preferiu agir traiçoeiramente e assim procurou dar finalmência ao desonrador, “baleandoo bem na nuca.” • Quanto à esposa, Dona Silvana, o narrador escreve irônica e humoristicamente: “Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona Silvana tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta), porque era um cavalheiro, incapaz da covardia de maltratar uma senhora, e porque basta, de sobra, o sangue de uma criatura, para lavar, enxaguar e enxugar a honra mais exigente.” • Mas enganara-se o Turíbio Todo: “eliminara não o Cassiano Gomes, mas sim o Levindo Gomes, irmão daquele”. • Foi exatamente esse engano “que veio pôr dois bons sujeitos, pacatíssimos e pacíficos, num jogo dos demônios, numa comprida complicação”. • Trava-se um comprido duelo: Turíbio fugindo e o outro atrás. E nessa desavença passaram-se muitos meses: “E continuou o longo duelo, e com isso já durava cinco ou cinco meses e meio a correria, monótona e sem desfecho” . • Mas, “porque um homem é um homem e não é de ferro, e o seu vício cardíaco começara a dar sinal de si”, Cassiano Gomes voltou para o sossego do arraial e da mulher do Turíbio. • Agrava-se o seu mal quando viajava para capturar o assassino que fora para São Paulo. • Acaba morrendo nas boas amizades de um tal Antônio, • • • • • • • apelidado de Timpim e Vinte-e-Um, “p’r’a-mór-de que nem que a minha mãe teve vinte e um filhos, e eu fui o derradeiro...” Sabedor da morte do Cassiano, volta, saudoso, Turíbio, todo civilizado e cheio de noves-fora. Espera-o, um pouco além da estação férrea, a garrucha do Timpim. Vinte-e-Um chamado: “- Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!” E mata. A causa do “duelo” foi também a infidelidade amorosa cuja honra o marido queria lavar com sangue (“se o sangue lavasse alguma coisa neste mundo...”). Aqui também entra um pouco de Fatalismo: Voltas e desvoltas e o marido, que matara a pessoa errada, acaba sendo morto por um sujeitinho “caguincho”, incapaz de matar uma galinha: todos têm a sua hora e a sua vez. Outra temática desenvolvida no conto é a saga dos valentões. 5. Minha gente • A técnica narrativa de “Minha Gente” é a primeira pessoa. • Ao longo do caminho, até a fazenda do tio Emilio, o narrador se perde em descrições várias do mundo que o cerca, ao mesmo tempo que joga xadrez com Santana. • São guiados pelo José Malvino, vaqueiro do tio Emilio. Chegam. • Na fazenda, no convívio de sua gente, o tio Emilio e a prima Maria Irma, o narrador vai contando pormenores da política do tio Emilio, ao mesmo tempo que desenvolve o seu romance-melhor dito idílio - com Maria Irma. • No decorrer dos seus passeios na fazenda, demonstra uma grande admiração pelo homem do campo: “- Mas, como é que você pode saber isso tudo, José?” • Mas, misturado com a política e com a natureza, o conto concentra-se mesmo é no romance dos dois primos: Maria Irma cada vez mais arredia e arrisca, o narrador cada vez mais apaixonado. • O desfecho de “Minha Gente” é um autêntico “happy end”: o tio Emílio ganha a política e o destino se incumbe de casar o primo com Armanda, noiva de Ramiro, que, por sua vez, casa-se com Maria lima: “E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro Gouvêia, dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no Todo-Fim-E-Bom” Muitas temáticas são desenvolvidas: a) a saga da política no interior (tio Emilio); b) a honra sertaneja (morte do Bento Porfírio); c) os caprichos do Destino (casamento de Armanda com o narrador). • Aliás, esse último aspecto é desenvolvido também num conhecido poema de Drummond: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para a tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história” 6. São Marcos • Narrado também na primeira pessoa, “São Marcos” é outro conto de linha trágica e esta sob o signo da superstição. • Izé ou José, o narrador, era um homem que não acreditava em feiticeiro: “Naquele tempo eu morava no Calango-Frito e não acreditava em feiticeiros”. • Vivia a fustigar João Mangalô, feiticeiro de fama e escama naqueles rincões. Nhã Rita, preta cozinheira dele, vivia a adverti-lo: “- Se o senhor não aceita, é rei no seu; mas abusar não deve-d”. • E relatava o caso da lavadeira que desfeiteara a velha Cesária e sofrera, de repente, agulhadas inexplicáveis “no pé (lá dela!)”. • Mas ele, sempre incrédulo: “Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe? “Primeiro: todo negro é cachaceiro...” “Segundo: todo negro é vagabundo”. “Terceiro: todo negro é feiticeiro...” Ai, espetado em sua dor-de-dentes, ele passou do riso bobo à carranca de ódio, resmungou, se encolheu para dentro, “como um caramujo à cocléia, e ainda bateu com a porta” • Depois disso, voltando da missa, encontra com Aurísio Manquitola que lhe narra o caso de Tião Tranjão, que era um sujeito um tanto tolo e burro, e acabou aprendendo a oração de São Marcos que é “sesga, milagrosa e proibida”, com que resolveu os seus problemas conjugais de ter mulher, e esta dormir com os outros. • O narrador vai andando. A natureza atrai as suas vistas. • Escreve versos num tronco, e quando lhe faltou inspiração, certa vez, limitou-se a fazer um rol de reis caldeus. • Reconhece que “as palavras têm canto e plumagem” • Perde-se em descrições e cenas que seus olhos vêem: “E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta, vertiginosa, mas batendo de grau em grau - um ponto, um grão, um besouro, um anu, um urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo.” • Uso acentuado da audição. Até os olhos cegos ouvem (“meus olhos o ouvem”). • Vaga, sem rumo, pela floresta, para depois defrontar-se com João Mangolô e as vistas que tinham sido amarradas por este: “- Pelo amor de Deus, Sinhô... Foi brincadeira... Eu costurei o retrato, p’ra explicar ao Sinhô...” • E o narrador conclui com um mundo de cores: “Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul.” • “São Marcos” é de linha frenética. • Aqui está presente o mundo das superstições e feitiçarias que envolvem o homem interiorano. • Outra tese desenvolvida é a da “plumagem e canto das palavras”. 7. “Corpo Fechado” • A técnica narrativa de “Corpo Fechado” é em forma de entrevista. • O “doutor”, no decorrer da história, vai entrevistando Manuel Fulô, “um valentão manso e decorativo, como mantença da tradição e para glória do arraial”. • O papo começou com o doutor passando em revista os principais nomes de valentões daquelas bandas: José Boi, Desidério Cabaça, Adejalma, “nome bobo, que nem é de santo...” Miligido, que já se aposentara, e o terrível Targino: “Esse-um é maligno e está até excomungado... Ele é de uma turma de gente sem-que-fazer, que comeram carne e beberam cachaça na frente da igreja, em sexta-feira da Paixão, só p’ra pirraçar o padre e experimentar a paciência de Deus...” • Esses valentões todos já tinham sido castigados. Só faltava o Targino. Mas o seu fim havia de chegar como chegou para os outros: “Eles todos já foram castigados: o Roque se afogou numa água rasinha de enxurrada... ele estava de chifre cheio... Gervásio sumiu no mundo, asem deixar rasto... Laurindo, a mulher mesma torou a cabeça dele com um machado, uma noite... foi em janeiro do ano passado... Camilo Matias acabou com mal-de-lázaro... Só quem está sobrando mesmo é o Targino. E o castigo demora, mas não falta...” • E Manuel Fulô, o entrevistado, vai narrando as suas aventuras entre os ciganos; como os tapeou, uma vez; o seu desejo de possuir uma sela mexicana para a mulinha BeijaFulô. • E então chegamos ao casamento de Manuel da raça dos Peixoto, do que tinha honra e fazia alarde. • A noiva era a das Dor. E aqui é que começa a história propriamente. • O Targino aparece e diz assim para o Manuel Fuló: “- Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho visitar sua noiva. amanhã.. Já mandei recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês podem se casar... Se você ficar quieto, não te faço nada... Se não... “ • Reboliço. Correrias. Movimentação do doutor. • E então “a história começa mesmo é aqui”: Antonico das águas, “que tinha alma de pajé” e era “curandeiro-feiticeiro” agora entra na história para “fechar o corpo” de Manuel Fuló, “requisitando agulha-e-linha, um prato fundo, cachaça e uma lata com brasas”: “- Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo, que para arma de fogo eu garanto!...” • E o doutor conclui a história assim: “E, quando espiei outra vez, vi exato: Targino, fixo, como um manequim, e Manu e Fulô pulando nele e o esfaqueando, pela altura do peito - tudo com rara elegância e suma precisão. Targino girou na perna esquerda, ceifando o ar com a direita; capotou; e desviveu, num átimo. Seu rosto guardou um ar de temor salutar. - Conheceu, diabo, o que é raça de Peixoto?!” “Corpo Fechado” ainda continua a problemática apresentada em “São Marcos”: mundo de feitiçarias e bruxarias. • Além dessa temática, sobressai também a saga dos valentões das gerais, principalmente com o temível Targino, e a saga dos ciganos, muito freqüente no interior. 8. “A Saga dos Bois” • Em “Conversa de Bois”, Guimarães Rosa, procura desenvolver a “psicologia” dos animais o que já se vislumbra em “O Burrinho Pedrês”, também aqui, e com largo uso, explorando “a plumagem e canto das palavras”. • O narrador é de terceira pessoa, narrado por Manuel Timborna, que é entrevistado pelo autor, que pede para recriar a história: “- Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco... - Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja” • E então Manuel Timborna começa a “contar um caso acontecido que se deu”, procurando demonstrar que “boi fala o tempo todo”. • Buscapé, Namorado, Capitão, Brabagato, Dansador, Brilhante, Realejo e Canindé são os protagonistas bovinos da história, que vão na sua marcha lenta, carregando “o peso pesado” do carro-de-bois, carregado de rapaduras e um defunto. • O guia é Tiãozinho, filho do defunto carregado. • Vai triste e “babando água dos olhos” • Visto pelos bovinos é “o bezerro-de-homem-que-caminhasempre-na-frente-dos-bois”. • O carreiro, orgulhosão e perverso, é o Agenor Soronho: “o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta” que vem “trepado no chifre do carro...” • Na sua marcha, os oito bovinos vão conversando. “- O homem é um bicho esmochado, que não devia haver.” • Criticam o modo de vida dos homens, o animal pensante: “É ruim ser boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens... As coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor - tudo pensado, é pior...” “Mas é melhor não pensar como o homem.” • Brilhante conta a história do boi Rodapião - “o boi que pensava de homem, o-que-come-de-olho-aberto...”, que saiu certa vez, com esse raciocínio silogístico: “Cada dia o boi Rodapião falava uma coisa difícil p’ra nós bois. Deste jeito: - Todo boi é bicho. Nós todos somos bois. Então, nós todos somos bichos!... Estúrdio...” • E porque pensava muito-pensava como o homem - o boi Rodapião tem fim trágico: “Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e chão solto... Bateu aqui em baixo e berrou triste, porque não pôde se levantar mais do lugar das suas costas...” • Tiãozinho vai relembrando a morte do pai. • Tem uma raiva danada do Agenor Soronho que “bate em todos os meninos do mundo: Seu Agenor Soronho é o diabo grande” • Encontram João Bala acidentou o carro no Morro do Sabão. • A falta de fraternidade de Agenor não permite que o outro seja ajudado. • Tiãozinho relembra sua vida, onde aparece Seo Agenor: “Só não embocava era no quartinho escuro, onde o pai ficava gemendo; mas não gemia enquanto o Soronho estava lá, sempre perto da mãe, cochichando os dois, fazendo dengos...Que ódio!” • Os bois observam, conversam, tramam e resolvem matar o homem, livrando o menino de toda a injustiça futura. • O fim é trágico. Deus e o Demo: Agenor Soronho é castigado pelos bois e por Tiãozinho que “pensa quase como nós bois” : “A roda esquerda do carro lhe colhera o pescoço.” • Tiãozinho fica como um possesso diante daquela tragédia. “Conversa de Bois” procura interpretar a psiquê bovina. • É uma história trágica também, e pode ser aproximada de “O Burrinho Pedrês” pela relevância que dá ao animal. • Dentro dessa perspectiva está implícita uma crítica ao comportamento do homem, o animal pensante. • Outra temática bastante nítida no conto é a da oposição entre o Bem e o Mal, onde os maus têm sempre fim trágico, como foi o caso de Seo Agenor Soronho. 09) A hora e a vez de Augusto Matraga - Epígrafe “Eu sou pobre, pobre, pobre, vou-me embora, vou-me embora... Eu sou rica, rica, rica, rica, vou-me embora daqui!...”( Cantiga Antiga ) “Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão.” ( Provérbio Capiau ) I- Espaço • Murici – onde vive inicialmente como bandoleiro • Tombador – onde faz penitência e se arrepende da vida de perversidades • Rala-coco – onde encontra sua “hora e vez” II - Enredo Apresentação do personagem: “Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto – o homem – nessa noitinha de novena, num leilão de atrás de igreja.” •Término da procissão - Leilão da prostituta •Surra no capiau - Saída com a mulher “Marinha é como a chuva: boa é, p’ra quem quer bem! Ela vem sempre de graça, só não sei quando ela vem...” - Que é?!... Você tem perna de manuel-fonseca, uma fina e outra seca! E está que é só osso, peixe cozido sem tempero... Capim p’ra mim, com uma sombração dessas!... Váse embora, frango-d’água! Some daqui!” • Augusto Esteves não concebe para si nenhuma conexão com o mundo de fora. • Obedece apenas a impulsos internos, sua atividade, ao contrário de Sete-de-Ouros, é a do desperdício. • Augusto Esteves não se economiza. • Quim Recadeiro traz aviso da esposa \ Desprezo de Nhô Augusto “Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede branca.” • Viagem da esposa Dionóra com a filha Mimita para o Morro Azul • Fuga da esposa com Ovídio Moura • Os capangas o renegam e passam a trabalhar para o Major Consilva “-Mal em mim não veja, meu patrão Nhô Augusto, mas todos no lugar estão falando que o senhor não possui mais nada, que perdeu suas fazendas e riquezas, e que vai ficar pobre, no já-já... E estão conversando, o Major mais outros grandes, querendo pegar o senhor à traição. Estão espalhando... – o senhor dê o perdão p’ra minha boca, que eu só falo o que preciso – estão dizendo que o senhor nunca respeitou filha dos outros nem mulher casada, e mais que é que nem cobra má, que quem vê tem de matar por obrigação... Estou lhe contando p’ra modo de o senhor não querer facilitar, Carece de achar outros companheiros bons, p’ra o senhor não ir sozinho... Eu, não, porque sou medroso. Eu cá pouco presto... Mas, se o senhor mandar, também vou junto.” • Ida à casa do Major e a surra “Já os porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de matrinchãs na rede. Pauladas na cabeça, nos ombros, nas coxas. Nhô Augusto desdeu o corpo e caiu. ainda se ajoelhou em terra, querendo firmar-se nas mãos, mais isso só lhe serviu para poder ver as caras horríveis dos seus próprios bate-paus, e, no meio deles, o capiauzinho mongo que amava a mulher-atoa Sariema.(...) Mas, aí, pachorrenta p’ra longe e cuspida, tressoou a voz do Major: - Arrestem p’ra longe, para fora das minhas terras... Marquem a ferro, depois matem.” • Salvamento por um casal de negros \ Arrependimento de Nhô Augusto “Esfriou o tempo, antes do anoitecer. as dores melhoraram. E aí, Nhô Augusto se lembrou da mulher e da filha. Sem raiva, sem sofrimento, mesmo, só com uma falta de ar enorme, sufocando. Respirava aos arrancos, e teve até medo, porque não podia Ter tento nessa desordem toda, e era como se o corpo não fosse mais eu. Até que pôde chorar, e chorou muito, um choro solto, sem vergonha nenhuma, de menino ao abandono. E, sem saber e sem poder, chamou alto, soluçando: - Mãe... Mãe... O preto, que estava sentado, pondo chumbada no anzol, no pé da porta de casa, ouviu e ficou atrapalhado; chamou a preta, que veio ligeira e se enterneceu: - Não faz assim, seu moço, não desespera. reza, que Deus endireita tudo... P’ra tudo Deus dá o jeito!................... E ele teve uma vontade virgem, uma precisão de contar a sua desgraça, de repassar as misérias da sua vida. Mas mordeu a fala e não desabafou. Também não rezou................ Se eu pudesse ao menos Ter absolvição dos meus pecados!...” • Meses \ Vinda de um padre | Fuga com os “negros samaritanos” “- Fé eu tenho, fé eu peço, Padre... - Você nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um potro bravo, e que você é mais mandante do que ele... Peça a Deus assim, com seta jaculatória: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei seu coração semelhante ao vosso...”....................... - Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de Ter a sua............................ - Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!... • Vida de trabalho e rezas com as velhas do Tombador • Passaram-se seis, seis ano e meio. • O egoísmo anterior era a absoluta inconsciência do outro, voltado para si, Augusto era o avesso de si mesmo – o nada – o demo quem que se transforma o homem quando se aliena do outro e do mundo ao redor. • A dor e a humilhação fazem com que Nhô Augusto olhe ao redor de si e veja as outras pessoas e também a lei que rege as relações no sertão. • Visita de Tião da Thereza. \ Notícias da família e morte de Quim “- Pára, chega, Tião!... Não quero saber de mais coisa nenhuma! Só te peço é para você fazer de conta que não me viu, e não contar p’ra ninguém, pelo amor de Deus, por amor de sua mulher, de seus filhos e de tudo o que para você tem valor!... Não é mentira muita, porque é a mesma coisa em como eu tivesse morrido mesmo... Não tem mais nenhum Nhô Augusto Esteves, das Pindaíbas, Tião...” • Desejo de vingança • Volta ao cigarro \ Chegada do Bando de cangaceiros “O bando desfilou em formação espaçada, o chefe no meio. E o chefe – o mais forte e o mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de moça – era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até os Montes Claros, de Carinha até Paracatu; maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o arranca-toco, o tremeterra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.”........... Mas Nhô Augusto, parecendo não ver os demais, veio direto ao chefe, encarando-o firme e perguntando: - O senhor, de sua graça, é que é mesmo o seu Joãozinho BemBem, pois não é? - P’ra lhe servir, meu senhor. - A pois, se o senhor não se acanha de entrar em casa de pobre, eu lhe convido para passar mal e se arranchar comigo, enquanto for o tempo de querer ficar por aqui... E de armar sua rede debaixo do meu telhado, que vai me dar muita satisfação! - Eu aceito sua bondade, mano velho. Agora, preciso é de ver quem é mais, desse povinho assustado, que quer agasalhar o resto da minha gente... - Pois eu gostaria era que viessem todos juntos para o meu rancho... - Não será abuso, mano velho? - É não...É de coração. - Pois então, vamos, que Deus lhe pagará!” • Através da observçaõ desse outro – Joãozinho Bem-Bem e seu bando – Augusto faz o movimento de volta ao encontro de algo que o definia como homem do sertão: a coragem e a homência. • Busca de alimentos\Diálogo com líder\Convite para seguir o bando • Novo desejo de vingança \ Nova consciência do pecado • Ida de Nhô Augusto \ Encontro com um cego \ Encontro com o Bando “Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o que ia na frente e ficava nos ares, para o outro escalão, que avançava lá trás............ Quando ele encostou e enxada e veio andando para a porta da cozinha, ainda não possuía idéia alguma do que ia fazer. Mas, dali a pouco, nada adiantavam, para retê-lo, os rogos reunidos de mãe preta Quitéria e de pai Serapião. - Adeus, minha gente, que aqui é que mais não fico, porque a minha vez vai chegar, e eu tenho que estar por ela em outras partes! - Espera o fim das chuvas, meu filho! Espera a vazante... - Não posso, mãe Quitéria. Quando coração está mandando, todo tempo é tempo!... E, se eu não voltar mais, tudo o que era de meu fica sendo para vocês. Rodolpho Merêncio quis emprestar-lhe um jegue. - Que nada! Lhe agradeço o bom desejo, mas não preciso de montada, porque eu vou é mesmo a pé... Mas, depois, aceitou, porque mãe Quitéria lhe recordou ser o jumento um animalzinho assim meio sagrado, muito misturado às passagens da vida de Jesus. “Seu Joãozinho Bem-Bem parou em frente de Nhô Augusto, e continuou: - ... eu gostei da sua pessoa, em-desde a primeira hora, quando o senhor caminhou para mim, na rua daquele lugarejo... Já lhe disse, da outra vez, na sua casa: o senhor não me contou coisa nenhuma de sua vida, mas eu sei que já deve ser te sido brigador de ofício. Olha: eu, até de longe, com os olhos fechados, o senhor não me engana: juro como não há outro homem p’ra ser mais sem medo e disposto para tudo. É só senhor mesmo querer... - Sou um pobre pecador, seu Joãozinho Bem-Bem... - Que-o-quê! Essa mania de rezar é que está lhe perdendo... O senhor não é padre nem frade, p’ra isso; é algum?... Cantoria de igreja, dando em cabeça fraca, desgoverna qualquer valente... Bobajada!... Bate na boca, seu Joãozinho Bem-Bem meu amigo, que Deus pode castigar! • Chegada do Velho que seria vingado “- Lhe atender não posso, e com o senhor não quero nada, velho. É a regra... Senão, até quem é mais que havia de oferecer a um homem que não vinga gente sua, morta de traição?... É regra. Posso até livrar de sebaça, às vezes, mas não posso perdoar isto não... Um dos dois rapazinhos seus filhos tem de morrer, de tiro ou à faca, e o senhor pode é escolher qual deles é que deve de pagar pelo crime do irmão. E as moças... Para mim não quero nenhuma, que mulher não me enfraquece: as mocinhas são para os meus homens....... -Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, que o desgraçado do velho está pedindo em nome de Nosso Senhor e da Virgem Maria! E o que vocês estão querendo fazer em casa dele é coisa que nem Deus não manda e nem o diabo não faz!” • CLÍMAX – sua “hora e vez” • Nhô Augusto renuncia à vingança, mas não à honra • Homem capaz de agir com coragem, justiça, fraternidade e compaixão “- Pois então... – e Nhô Augusto riu, como quem vai contar uma grande anedota - ... Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que passar primeiro por riba de eu defunto........... Epa! NOMOPADROFILHOSPRITOSSANTAMÊIN! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez!............. Ô gostosura de fim-de-mundo!... • Reconhecimento pela população “Mas Nhô Augusto tinha o rosto radiante, e falou: Perguntem quem aí que algum dia já ouviu falar no nome de Nhô Augusto Esteves, das Pindaóbas! Virgem Santa! Eu logo vi que só podia ser você, meu primo Nhô Augusto...(...........) Põe a benção na minha filha........seja lá onde for que ela esteja...E, Dionóra...Fala com Dionóra que está tudo em ordem! Depois morreu.” III – Conclusão • Matraga recupera a honra e a coragem no momento da morte. • Augusto Esteves, Nhô Augusto e Augusto Matraga são os passos da travessia de um homem ao encontro de seu destino – buscado e construído na dor, mas também na alegria, no encontro com o sagrado e no desfrute do mundano – sua hora e sua vez. • Representação da luta entre o bem e o mal e as angústias que essa luta provoca em cada homem durante toda a vida. • Quatro temáticas parecem bem nítidas: a) a oposição Deus e o Demo (Bem x Mal); b) a saga dos cangaceiros e valentões (Joãozinho Bem-Bem); c) misticismo (Augusto Matraga depois do encontro com o padre); d) todos têm a sua vez e hora. • Em A Hora e a Vez de Augusto Matraga há o longo aprendizado de que a espera é um valor na existência de um homem e também a lógica do mundo natural. • Na espera se experimenta a fé e o sentido da divindade se revela inusitadamente na ordem do sertão. • Augusto compreende a si a partir de uma conexão com o mundo ao redor. • Sobre o Símbolo: Antigo símbolo ternário em todas as civilizações pré-cristãs, o triângulo pode significar duas linhas de força produzindo uma outra, a resultante da tensão entre positivo e negativo; ou a natureza tresdobrável do universo entre o divino, o humano e o natural; ou a idéia da família, com pai, mãe e filho; ou a relação entre corpo, mente e espírito; ou a Terra, o céu e o arque medeia entre ambos. Em relação à circunferência, a autora destaca ainda: “ Em todas as religiões e em todas as seitas esotéricas, como a cabala e a Alquimia, a circunferência e o o círculo significam conceitos tão amplos e tão abstratos quanto a eternidade, o universo, a divindade, a perfeição, alguns dos quais ela compartilha com o triângulo.” “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” “O homem nasceu para aprender, aprender tanto quanto a vida lhe permita.” “No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou um tu: por ali os anjos e o diabo ainda manuseiam a língua.” • Referências: Veredas de Rosa – Silvana Oliveira (UEPG/UniAndrade) Tentações e Descaminhos do Poder – Alcebíades Diniz Miguel Sagarana – João Guimarães Rosa (Ed.Nova Fronteira / 31ªEdição) Sagarana – Análise da Obra – Prof. Fernando Teixeira de Andrade- Sistema de Ensino Objetivo www.portrasdasletras.com.br Observação: as referências acima não seguem o padrão da ABNT por opção do professor.