Megalomania: amor a si mesmo
Raquel Coelho Briggs de Albuquerque1
Alfredo estava na casa dos 30 anos. Trabalhava com gesso. Era usuário
de drogas: maconha e cocaína. Psicótico, contava casos persecutórios, claramente
delirantes. Morava com a mãe. Usuário pouco assíduo de um CAPS. As maiores
queixas da família se relacionavam ao uso de drogas e aos “amigos”, que “se
aproveitavam” dele, que “não eram boas companhias”.
Foi internado em um Hospital Psiquiátrico, mas devido ao histórico de
uso de drogas acabou indo parar na ala de dependentes químicos. Lá foi abusado
sexualmente e precisou ser encaminhado para um hospital geral, devido às lesões
corporais que sofreu. Retornou ao CAPS num quadro de confusão mental severa. Não
conversava com ninguém, passava os dias andando de um lado para o outro, falando
sozinho, xingando, agressivo por vezes. Tirava a roupa, urinava e defecava onde
estivesse.
Certo dia, a analista ouve, em meio a sua conversa impossível de ser
decifrada, as palavras estupro e médico, ao que a mesma intervém perguntando se ele
tinha vontade de ser médico. Alfredo abre um sorriso muito marcante e continua sua
caminhada pelo corredor: andando e falando sozinho.
Na semana seguinte, a analista dirige a palavra a ele, que lhe diz: “sou
médico de almas, quer ver?”. Alfredo senta a analista em uma cadeira, segura sua
cabeça com as mãos, faz alguns gestos e pergunta se ela está se sentindo melhor.
A situação se repete com os técnicos do serviço, que agradecem Alfredo
e dizem estar se sentindo melhores. A partir de então, paulatinamente, Alfredo pôde
voltar a conversar com as pessoas ao seu redor, falar de sua filha, de seu trabalho de
gesseiro, de sua relação com as drogas...
Esse recorte clínico nos aponta não um delírio megalomaníaco
propriamente dito, mas nos ajuda a pensar a função do amor a si mesmo na reconstrução
delirante do eu. Afinal, a mudança do quadro se dá pela possibilidade de identificação
do eu a um Ideal.
1
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008). Pós-graduanda em
Dependência Química pela Universidade Federal de São João del Rey. Mestranda em Psicanálise
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Endereço: Rua São Domingos Sávio, 61. Nossa Senhora Auxiliadora. Ponte Nova – MG. CEP:
35430-223. e-mail: [email protected]
O narcisismo como formador do eu
Freud (1914/206), ao abordar o desenvolvimento libidinal, fala de duas
principais fases, pelas quais toda criança passaria ao longo de seu desenvolvimento, a
saber, o auto-erotismo e o narcisismo (primário). A primeira destas fases seria aquela
em que o bebê ainda não diferenciaria seu próprio eu do mundo externo, sendo por isso,
esta, uma fase auto-erótica, na qual as pulsões buscam satisfação no próprio corpo, ou
melhor, no próprio órgão.
Não basta, entretanto, que haja o investimento nos objetos externos, é
preciso, ainda, haver o retorno desse investimento em si mesmo - o narcisismo.
O eu, enquanto representação complexa que o indivíduo faz de si
mesmo, não existe desde o início, ele é desenvolvido. Assim, o ‘narcisismo’ surge de
uma nova ação psíquica sobre o ‘auto-erotismo’ (Freud, 1914/2006.) – ação esta que
Lacan (1953-54) desenvolve e denomina “estádio do espelho” - momento no qual a
criança teria um “júbilo narcísico” ao reconhecer-se em seu reflexo no espelho.
É importante frisar que esse reconhecimento imaginário não se dá sem o
intermédio simbólico do Outro – cuja primeira encarnação poderíamos associar à mãe -,
que assegura à criança sua identificação a um outro semelhante – primórdio da função
paterna – objeto de desejo deste Outro primordial. (Lacan, 1964).
Neste momento, como afirma Freud (1914/2006), tudo é ab-rogado em
favor da criança, que é ‘Sua Majestade o Bebê’, aquela que concretizará os sonhos
dourados que os pais jamais realizaram. Ou seja, a criança encarna aqui o ideal dos pais.
Freud (1914/2006, p.99) nos aponta - ainda que não desenvolva, que este
é o ponto mais importante quanto aos distúrbios aos quais o narcisismo original de uma
criança estaria exposto. Afinal, seria só com o Complexo de Castração que essa
identificação ao ideal poderia ser abalada.
Se, com o estádio do espelho, tínhamos o triângulo amoroso do
Complexo de Édipo freudiano e a operação lacaniana da “alienação”, é só com o
Complexo de Castração que podemos ter a castração simbólica de Lacan (195758/1999), esta que é mola-mestra da operação da “separação” e que insere a falta no
sujeito, tornando-o desejante.
Freud (1914/2006) assinala a separação entre eu ideal e Ideal de eu como
importante para o mecanismo do recalque. “Para o ego, a formação de um ideal seria o
fator condicionante do recalque” (Freud, 1914/2006, p.100) “O que ele [o indivíduo]
projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua
infância na qual ele era o seu próprio ideal.” (Freud, 1914/2006, p.101)
E, se levarmos em consideração que o que diferencia psicoses e neuroses
é o mecanismo de defesa - ou seja, na neurose, recalque e, na psicose, rejeição, ou como
sugeriu Lacan, foraclusão – então a afirmação de Freud (1914/2006), de que a formação
de um Ideal separado do eu ideal da infância seria fator condicionante para o recalque,
nos é muito preciosa.
Megalomania
Em 1915, Freud (1015/2006) classifica a paranóia, juntamente à
esquizofrenia, como uma neurose narcísica. É só em 1924 que Freud (1924/2006)
formaliza as diferenças entre neuroses e psicoses, atribuindo à primeira um conflito
entre o eu e o isso e à segunda um conflito entre o eu e o mundo externo. Ele diferencia
ainda, as neuroses narcísicas, que aqui seriam as melancolias, as quais sofreriam pelo
conflito entre o eu e o supereu.
Propomos destacar o caráter megalomaníaco (face da melancolia) das
paranóias e a função de tal característica na construção delirante do sujeito psicótico.
Freud (1914/2006, p. 81-82) afirma que a concepção “de um narcisismo
primário e normal” surgiria da tentativa de explicar a psicose (então chamada de
parafrenia) – cujas principais características seriam a megalomania e o desvio de seus
interesses do mundo externo – pela teoria da libido.
Ao apresentar o famoso “caso Schreber”, o autor já havia (Freud,
1911/2006) afirmado que as pessoas que não se libertaram completamente do estádio do
narcisismo, isto é, que teriam neste ponto uma fixação, estariam expostas ao perigo de
que uma parte da libido excepcionalmente intensa não encontrasse outro escoadouro e
desfizesse as sublimações que o indivíduo pudesse ter alcançado.
Além disso, Freud (1911/2006) acentua o caráter megalomaníaco dos
delírios paranóicos, afirmando que, na paranóia, a libido liberada dos investimentos
sociais anteriores vincula-se ao ego e é utilizada para o engrandecimento deste, o que
poderia ser caracterizado como um retorno ao estádio do narcisismo.
Alienação ao desejo (do Outro)
Se um exemplo tão comum de descrição da paranóia é o sujeito que se
diz Napoleão; na clínica não é raro vermos sujeitos paranóicos que se intitulam pessoas
importantes, ou pelo menos pessoas que julgam importantes. Pacientes que se dizem
donos de grandes negócios, médicos, Jesus Cristo, Buda, Deus, são freqüentes nos
serviços de saúde mental. E demonstram a característica megalomaníaca da paranóia.
Quando a castração evidencia-se na vida de um sujeito psicótico, isto é,
quando algo torna evidente que o eu daquele sujeito não corresponde ao ideal, então o
supereu surge com toda a sua força - não recalcado, mas vindo de fora. Freud
(1914/2006) assinala que a medição entre o eu e o ideal de eu é feita por esta instância
crítica, o supereu, e nos diz que o fenômeno psicótico das ‘vozes’ denuncia a existência
dessa instância.
Se o famoso Schreber pôde se organizar minimamente e ter seus direitos
civis concedidos de volta, foi graças à sua construção delirante, na qual ele identifica-se
à nada menos que a mulher de Deus, capaz de gerar uma nova humanidade. (Freud,
1911)
Sem entrar nos detalhes do caso, tão conhecido, do presidente Schreber,
destaquemos apenas a importância de que ali a identificação a um eu ideal fica patente.
Mas, é importante destacar também a importância do Ideal de procriar uma nova raça.
Um Ideal, contudo, diferente. Um Ideal que não carrega a duplicidade de sentido do
simbólico, mas sim a encarnação imaginária.
Dessa forma, através do estudo do narcisismo, podemos perceber uma
diferença crucial no desenvolvimento libidinal do sujeito quando, através da separação
entre eu ideal e Ideal de eu - momento apontado por Freud como sendo o do Complexo
de Castração e desenvolvido por Lacan como momento da castração simbólica – o
mecanismo do recalque se instaura – e, com ele, a possibilidade de dialética do desejo.
Não sendo tal mecanismo instaurado, o desejo do sujeito fica apenas
alienado ao desejo do Outro. Não havendo separação, não havendo lacuna entre seu eu e
seu Ideal de eu, base para constituição de seus desejos, não há dialética do desejo, que
acaba por permanecer congelado.
Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund . Obras completas ESB, Rio de Janeiro: Imago, 2006.
(1911) “Notas psicanalíticas de um relato autobiográfico de um caso de
paranóia”, v.XII.
(1914) “Sobre o narcisismo: uma introdução”, v. XIV.
(1915) “Os instintos e suas vicissitudes”
(1924) “Neurose e Psicose”, v.XIX.
LACAN, Jacques. (1957-1958). O Seminário. Livro 5: as formações do inconsciente.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
______________. (1953-54) O seminário. Livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1996.
______________. (1964) O seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
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Uma vez que a clínica da paranóia é perpassada por inúmeros