III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)
DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE
POR ENTRE LUME E LIXO: A ELEGIA DA POESIA DE
ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE
Paulo Ricardo Braz de Sousa 1
“frágeis as coisas justamente duram
instantes só: o tempo
de queimar-se.
ardem e surgem do fulgor das chamas,
pesam em nós quanto as fazemos leves.” 2
Perder é a condição primeira a que o homem está sujeito. Assim ele nasce, a
experiência
da
aventura
existencial
transcorre
por
caminhos
erráticos
indubitavelmente em direção à morte. “Errei todo o discurso de meus anos”: o
verso mais glosado da Literatura Portuguesa pode fazer às vezes de magno
exemplo de uma consciência do desengano gerado pela privação – a perdição em
que os erros, má fortuna e amor ardente se conjuraram. Aprender a lidar com a
perda de pessoas próximas ou de conhecimento público; de Deus; da identidade;
da morte; do amor; da linguagem e mesmo da própria poesia. Nestes termos, o
sentido de perda assimila-se a um caráter próprio do ser humano, o saldo negativo
com que adentra e se despede da vida.
Com estas palavras poderia se apresentar a poesia de António Franco
Alexandre: seus versos podem ser vistos como um grande aceno de despedida – à
plenitude da linguagem, ao poema. E, afinal, com a consciência da linguagem que
foi legada pelos estudos linguísticos e pela própria poesia, pôde-se constatar as
fragilidades de sua estrutura assim como as imprecisas fronteiras de sua
capacidade significativa. A melancólica distância que separa o verbo de sua
significação é signo de luto recorrente em toda a poesia portuguesa dos séculos XX
e XXI e, também para AFA 3, tal perspectiva é posta em questão. No entanto, para
um estudo de sua poesia, outras problemáticas devem ser trazidas à luz.
Um primeiro desafio que se impõe a leitura da poesia de AFA diz respeito à
multiplicidade de feições que a sua obra constitui e, quanto a este propósito, mais
do que determinar um corpus específico de trabalho é imprescindível, para um
estudo que se proponha a debruçar-se sobre os seus textos, a definição de com
qual poeta (dentre os tantos como se apresenta) está se a defrontar, sob o risco de
se perder em meio ao vertiginoso labirinto de seus versos. Já de começo, a poesia
1
2
3
Mestrando em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
(ALEXANDRE, 1996, p. 44).
AFA: António Franco Alexandre.
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de AFA pode se apresentar como assunto delicado, tendo em vista os caminhos
tortuosos de sua poética a qual se apresenta ao leitor que venha a se interessar
pelos seus textos. O poeta de dicções herméticas e que começa a publicar em finais
dos anos 60 (A Distância é seu primeiro livro, lançado em 1969) certamente não é
o mesmo de então. Outras distâncias separam sua poesia de si mesma,
característica de um escritor tão afeito a uma noção intervalar da linguagem, “entre
os fios da sintaxe”, como afirma Rosa Maria Martelo em seu O especialista em
sublimação e os usos da linguagem (acerca da poesia de António Franco
Alexandre), mas o que parece saltar aos olhos é uma postura incisiva no que tange
à renovação do seu material poético. Próximo da abjuração pasoliniana de que fala
Barthes em sua pedagógica Aula, o poeta português é esquivo em relação à crítica,
que não lhe possibilita uma leitura outra que não seja ao menos oblíqua.
Nos últimos anos – em especial em suas obras Duende (2002) e Aracne
(2004) –, em que parece aos poucos abandonar sua cadência dodecafônica e podese perceber uma recuperação da sintaxe e de construções imagéticas menos
radicais, o poeta apresenta um texto “de mais enredo”, contudo, não deixa de
experimentar ao trazer a baila o jogo em si que encena a linguagem. E, afinal,
havendo uma constante em sua obra, talvez seja esta um olhar atento sobre a
própria linguagem. Trate-se do labor criativo ou da construção de sentido pelo
leitor, ela tem assento cativo em sua poesia.
*
O trabalho, lado a lado, com um poeta como AFA é naturalmente uma
experiência desconcertante. Esta sentença, embora pudesse ser afirmada sobre
tantos outros autores de poesia, tem um uso preciso quando em referência a este.
Há na poesia alexandrina aquele mesmo sentido de uma busca por um “equilíbrio
na tensão, na turbulência” (SILVEIRA, 2003, p. 42), o que empreende, justamente,
um gesto criativo em face da contradição. Eis tal zona de conflito entre forças
contraditórias no seio do discurso amoroso, o qual compõe os versos de AFA. Ora,
neste caso, as implicações de um desconcerto engendrado pelos desníveis de tal
movimento são compreendidas a partir de um atento olhar sobre as configurações
do imaginário mítico-amoroso português em revisita, e, cumpre destacar, este
imaginário está fundado na poesia de Luis de Camões.
É certo que trazer para a conversa o poeta quinhentista pode ser um
incomparável ganho, assim como ingênuo descuido de impertinentes livres
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associações, justificado, tão somente, pelo espectro assombroso de seus versos na
Literatura Portuguesa. Mas é certo também que, mesmo em excesso, o auxílio é
luxuoso e a escrita se enche de umas filigranas retóricas irresistíveis. Mais certo
ainda é que Aracne (obra que aqui se pretende estudar) assinala, imperativamente,
intrínseco diálogo com a poesia camoniana e para tanto bastariam algumas notas,
que sejam a sua divisão em corretos vinte poemas (em contraste aos dezanove de
Luiza), o que marca, nesta medida, uma dobra dos dez cantos d’Os Lusíadas, e a
sua estruturação episódica à maneira do épico, ou, num âmbito mais amplo, a
viagem (iniciática) que o texto de AFA, a seu modo, também trilha.
Enfim, este ensaio pretende contornar este quadro observando-o por meio
do signo da perda, ou seja, indicar alguns caminhos de leitura da poesia de AFA a
partir de uma análise dos efeitos provocados por seus usos da linguagem, os quais,
em falta, tentariam desdobrar as experiências em causa na constituição de um
discurso amoroso possível em novos tempos. A elegia da poesia, designada no
título deste trabalho, refere-se a uma tal retomada, em diferença, do gênero a
partir da perspectiva de uma carência na interlocução, ou seja, não se trata de
determinar um complexo de características que fundamentem a poética de AFA em
consonância a este mesmo gênero, mas sim observar como são desenvolvidos
alguns temas pertinentes sob a ótica de um modo elegíaco em sua obra 4. Assim,
pensar a elegia na contemporaneidade é mais um estudo em torno da imperiosa
questão que se colocam os poetas: perante a certeza da transitoriedade da
existência humana, em tempos em que prevalece o efêmero e o precário, afinal,
qual seria o lugar da poesia? Neste âmbito, portanto, a questão do erotismo é
apresentada como a possibilidade de suprir este vazio, o momento de encontro
entre obra e leitor que irromperia contra esta falência dos sentidos.
Rui Lage, em sua tese A elegia portuguesa nos séculos XX e XXI: Perda, luto
e desengano, parte de uma discussão acerca da definição da elegia que,
tradicionalmente, construía-se por meio de uma perda real que se transmuta em
perda ideal (Schiller) – terreno propício para a afirmação de uma dicção mais
4
A crítica acerca do tema da elegia observa, de maneiras distintas, uma mesma concepção
de tal abordagem na poesia contemporânea. Nas origens do gênero, a forma em dístico
elegíaco associava-se a “um poema de assunto triste”, mais especificamente, a um poema
fúnebre. Todavia, das formas clássicas ressoam hoje, sobretudo, os ecos da meditação da
morte e consciência da transitoriedade da condição humana que, em outros termos, não
mais refletem que um posicionamento do homem perante a experiência da perda. A poesia
que ora ocupa a atenção deste estudo preocupa-se, fundamentalmente, com esta última
perspectiva assinalada, obedecendo aos critérios teóricos notados por Mário Helder Gomes
Luís (citando Morton W. Bloomfield) de que se deve distinguir o gênero do modo literário.
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esperançosa, a consolattio – para, então, perscrutar suas modernas conformações,
em que se apresenta como anti-elegia:
Decretada a morte de Deus e dos deuses confinou-se a morte
e a perda à esfera do físico. A morte tornou-se laica. Um
fenómeno civil. Na impossibilidade de retirar a morte da
esfera terrena e de transferi-la para um plano supraterreno
ou transcendental em que já não se acredita, passa-se da
metafísica à ontologia e a uma morte sem mistério porque
sem abertura para outra coisa que não o seu nada (...)
(LAGE, 2010, p. 353).
Frente a estas duas concepções de morte, pode-se estabelecer um campo de
análise da obra de AFA em que tais concepções possam se entrançar ao tecido
textual. “É verdade que a morte se embaraça / na trança irregular da minha tela”
(ALEXANDRE, 2004, p. 27), diz o aranhiço. O próprio eu lírico assinala o caminho
pelo qual a morte (como forma metonímica exemplar da noção de perda) se
confunde com o fazer literário, o deslocamento de si mesmo que exige o exercício
da escrita (seu projeto de alteridade), e com o qual se assemelha. Resta discutir
como é elaborada a tensão provocada por estas duas percepções: de uma morte
que ainda é capaz de vislumbrar uma transcendência e de uma morte que não
encontra “abertura para outra coisa que não seu nada”. Respectivamente
relacionadas com uma linguagem que, mesmo pelo engano ou falhanço, é capaz de
revelar o poético e com uma linguagem que toma consciência de “ser escasso o
poder das palavras e da escrita”. O que chama atenção no texto de AFA é como
eficazmente conjuga tais perspectivas de morte pela palavra poética; o poeta não
alcança simplesmente esta conjunção pela força de suas construções imagéticas,
como a encena em sua tela, põe em questão seus conflitos, interpelando
constantemente os limites da representação em seu jogo erótico-lírico: “Se o meu
desgosto é ser, na grande Tela, / mensagem virtual ou sopro vago, / talvez me
queira tu dar o teu rosto, / e eu no teu corpo me transforme em alma.”
(ALEXANDRE, 2004, p. 28).
Rosa Maria Martelo, em seu artigo já citado, expõe uma perspectiva de
leitura de AFA pautada numa ideia de sublimação deveras peculiar ao seu trabalho.
Associada ao conceito de física, “de passagem directa do estado sólido ao estado
gasoso”, a ensaísta apropria-se desta imagem para desenvolvê-la em termos de
uma volatilização do material linguístico, em que as construções poéticas são
engendradas para suas consequentes desestruturação e desvalorização, em outras
palavras, um discurso que se esforça em elaborar a falência do próprio discurso.
Contudo, nesta mesma empreitada que nota investidos os textos de AFA, é possível
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se depreender sinais de poeticidade. Da linha de pensamento apontada, interessa,
acima de tudo, a noção de passagem explicitada, na medida em que a poesia em
questão neste trabalho revela indícios de uma mesma postura de indecidibilidade.
Indecidibilidade esta que se encontra num posicionamento da subjetividade lírica de
Aracne, na tentativa de fixar os (des)limites da linguagem poética, resultando como
efeito de tal procedimento uma perspectiva em paradoxo a qual, invariavelmente,
deixa seu leitor em estado de suspensão.
Um tal efeito de sublimação, diga-se desde já, apanha o leitor
desprevenido, porque a linguagem de Franco Alexandre,
sendo intensamente imagética e metafórica, não deixa de
activar uma tradição de modernidade que atribuíra à palavra
poética uma larga capacidade de descoberta, assente no
processo de significância. Ora, a poesia de Franco Alexandre
funciona, como tentarei mostrar, às avessas, usando a
significância para lhe expor a in-significância, assim
assumindo uma posição perversa relativamente a uma
tradição que, sem deixar de actualizar, drasticamente
modifica, se bem que para a reposicionar. ( MARTELO, 2009,
p. 267).
Pensemos no texto de AFA. Trata-se da constituição de um discurso
amoroso, da palavra que busca o outro, ou assim pretende um eu lírico
(transmutado em aranhiço) ávido de exterioridade até esbarrar-se nos limites de
seu verso. Roland Barthes, em epígrafe a sua conhecida obra, afirma que “o
discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema solidão.” (BARTHES, 1981). Tal
assertiva vem ancorada pela argumentação de que as propriedades que mantém
este discurso são desvalidadas ou mesmo excluídas do poder. Não há fundo que
sustente a cena amorosa; o isolamento experimentado pelo amador é este de não
encontrar
um
sistema
que
partilhe
de
seu
vocabulário,
pois,
forçosa
e
insistentemente, compreende uma linguagem nova. Não há recolha para o
enamorado, senão ao falar a sua língua. Estes índices ajudam na compreensão do
que se pretende neste trabalho, afinal, a lírica amorosa de AFA é afinada em uma
espécie de sintonia dissonante com a tradição, como quer a poesia a mais
inovadora, logo, seus propósitos de interlocução acenam a um primeiro objeto: a
própria poesia, mais precisamente, um diálogo entre poetas.
Cumprindo um rito antigo, hoje visito
os longos corredores onde se guardam
as obras milenares da nossa espécie;
vejo as belas paredes recobertas
por densos mantos, rendas espectrais,
esferas, tubos, aparências, redes;
engenho, paciência, e labor mudo
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de geração em geração legados
aqui numa só teia transmutados.
(ALEXANDRE, 2004, p. 40).
Evidente o papel da memória a consubstanciar o labor poético numa única
teia. O rito antigo cumprido pelo aranhiço em que se metamorfoseia o eu lírico
direciona nosso olhar para o passado, para uma enorme rede de significações sobre
a
qual
esta
subjetividade
se
lança
na
busca
pelo
conhecimento,
mas,
consequentemente, um conhecimento que não é seu, não lhe pertence na medida
em que é legado por outros mestres. A relação tensa com a tradição faz-se ao
modo de uma via de mão dupla em que o exercício de leitura demarca um ponto de
interseção entre obra e leitor, em outras palavras, o conhecimento reivindicado
nesta viagem fica em suspenso, como se somente viesse à tona quando (co)movido
pela interlocução. Tal movência insinuada pela interação entre os sujeitos da
construção de sentido concorre no fazer literário à maneira mesmo de um gesto
amoroso. Eis o projeto alexandrino: a transformação do amador na coisa amada
por meio do labor poético.
Jorge Fernandes da Silveira, em seu O Tejo é um rio controverso: António
José Saraiva contra Luis Vaz de Camões, destaca, dentre outras questões, as
implicações do drama camoniano em meio à problemática da recepção. Tal
perspectiva é de imensa importância para a formulação das propostas aqui
pretendidas, na medida em que, também em Aracne, é este o principal conflito. Em
meio ao que o ensaísta designa por imaginário mítico amoroso, é ressaltado o papel
que, em especial, três peitos amantes (Inês, Adamastor e o Poeta) assumem n’Os
Lusíadas, no que diz respeito à falência do projeto camoniano de concertar a
experiência do sujeito no mundo. Centrando-se a leitura sobre esta proposição –
que aqui vem a amplificar os horizontes de estudo –, é afirmado:
(...) quem matou os nossos três peitos ilustres lusitanos
amantes foi um poder superior à opinião pública, no caso de
Inês, à estratégica força discursiva da Proposição do Poema,
no episódio do Adamastor, e superior à morte civil do Poeta;
quem os matou foi um mal terrível que até hoje nos invade e
que se chama doença do vazio na interlocução. Não tenhamos
dúvidas, portanto: o que calou os três peitos ilustres lusitanos
amantes foi a desvalorização dos seus discursos por ouvidos
voltados para valor novo, embora outro, diferentes do que se
sonhara, que contra os três mais alto os levanta (...).
(SILVEIRA, 2008, p. 27).
O problema da/na interlocução, pode ser então referido, emblematicamente,
nos famosos versos da estrofe 145 do canto X d’Os Lusíadas, tão em uso às custas
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de exemplo, em que o Poeta exorta a Musa do canto épico para que cesse o canto,
pois vê que está a “Cantar a gente surda e endurecida”. Jorge Fernandes da
Silveira diagnostica o problema situando-o em seu meridiano acidental: a recepção;
ou, como se pode ler na esteira de Helder Macedo, na intercepção de sua viagem
iniciática em meio à distância entre o eu e o outro, no jogo (amoroso) literário.
Afinal, também Os Lusíadas faz-se uma epopeia em tom menor, melancólico
demais
para o canto épico, elegíaco em demasia para fazer as vezes do
timbre laudatório, excessivamente lírico-amoroso. Deste modo, a leitura que mais
me interessa reconhece no rito antigo o olhar para o passado em vista de
transformar o presente. AFA acerta ao manter este diálogo com a tradição,
ocupando o espaço tenso da reflexão sobre o imaginário mítico amoroso da
Literatura Portuguesa.
Sendo assim, não sei se surpreende ler em AFA certo mutismo, como já em
referido fragmento é possível observar: “engenho, paciência, e labor mudo / de
geração em geração legados / aqui numa só teia transmutados.” (ALEXANDRE,
2004, p. 40). Mesmo num possível jogo de linguagem em que a palavra
transmutados explora a ambivalência semântica entre mutismo/mutado, parece
pulsar algum rasto de memória, o sangue de geração em geração legado, separado
pela distância improvidente da ausência de leitores.
Sombra de um verso, não sei como possa
ter bom sucesso neste meu projecto
de te fazer meu cúmplice leitor;
uma vírgula mais talvez mudasse
o sentido do mundo, mas duvido
que uma tão ténue pausa chegue a teu ouvido.
(ALEXANDRE, 2004, p. 27-28).
Estes versos, profundamente camonianos, indicam a noção de projeto que
sua poesia também propõe. Tal perspectiva de um poder-ser no outro se conforma
a mesma ideia desenvolvida por Maria Theresa Abelha Alves, a qual já notara n’Os
Lusíadas a expressão erótica do domínio sobre o desconhecido: “Os mares ‘nunca
de outrem navegados’ vão sendo domados, possuídos pelos navegantes, ajudados
por Vênus e pelas ninfas (cf. Lus., II 22).” (ALVES, 1979-80, p. 83). A cumplicidade
requerida pelo eu lírico de Aracne ganha os ares mesmo de um crime (passional?),
de modo que a sua busca pelo conhecimento necessita do outro, o corpo do amado
eroticamente salientado na imagem construída nestes últimos versos (“[...] mas
duvido / que uma tão ténue pausa chegue a teu ouvido.”). Desta forma, parece-
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me evidente o quanto AFA aposta numa ética da/pela movência, o que não é mais
que uma ética amorosa.
Chego, enfim, ao ponto desejado, quando para AFA a relação amorosa é
dada pela língua, na língua, digo: a portuguesa. Lição muito bem compreendida em
Camões para quem a própria poesia faz-se um gesto amoroso pela palavra interdita
na distância encerrada entre poeta e leitor: “Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos /
a diversas vontades! Quando lerdes / num breve livro casos tão diversos, //
verdades puras são, e não defeitos... / E sabei que segundo o amor tiverdes, /
tereis o entendimento de meus versos.” Do fragmento retirado atenta-se não
somente ao interesse pela recepção, mas como a interação linguística se configura
por meio de um mesmo movimento ambivalente característico do pathos amoroso,
afinal, o entendimento destes versos prescinde de um leitor que, sujeito ao amor,
passe a ser sujeito do amor. AFA elabora a sua poética nestes mesmos interstícios,
problematizando a questão da linguagem como falta; lacuna, entretanto, cheia de
significação.
Refletindo acerca da representação, na esteira da leitura de Foucault em As
palavras e as coisas, nota-se que o ensaísta traça um corte epistemológico,
situando-o no século XVI, o qual estabelece a passagem de uma ordem de
semelhança e analogia para uma ordem de diferença e análise. Desta perspectiva,
o signo linguístico é concebido a partir de uma razão de identidades a qual relegará
à ordem de similitudes um caráter de desrazão e imaginação (FOUCAULT, 1992, p.
63-64). Articular tais problematizações com a noção camoniana de desconcerto do
mundo pode parecer prato cheio para investigações sobre este tema, contudo, não
chego a tanto, prefiro não me aventurar por terrenos tão pantanosos. Fico com
AFA, para quem a linguagem se faz instrumental de exposição das próprias
fragilidades e a representação o jogo por meio do qual move as peças do sentido
fraturado pela distância que irrompe entre as palavras e as coisas. “Vai tão
pequena a teia, que lamento / ter perdido o meu tempo em outros jogos, / pois
com talento e tempo poderia / abandonar a fria geometria / e desenhar figuras, tão
reais / que nelas revelasse / a verdade maior da fantasia.” (AFA, 2004, p. 15). Fica
assim exposta, brevemente, quase que uma arte poética de AFA. O universo
especular criado pelo poeta como que torna repleto de significação o espaço vazio
do signo até transbordá-lo de sentido: a sua revelação poética? Mesmo que
precária, tal revelação permite a compreensão de certo processo metamórfico em
contínuo movimento, como incessante maquinaria de um fazer artificioso ao qual só
é permitido demonstrar os mecanismos do próprio engenho. O complexo semântico
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de Aracne nos oferece a imagem: um escafandro dentro do escafandro, a morte
seguida de nova vida dada a quem não se outorga mais que tempo perdido. “É
breve a vida; mal sabemos / fiar um fio, e conceber a seda, / já se gastou a areia
na ampulheta;” (AFA, 2004, p. 36). Segue ainda o aranhiço: “a frágil obra que
fizemos, fica / aberta ao vento, à chuva, ao descuidado / ofício da coruja e da
serpente.” (AFA, 2004, p. 36). Nestes versos, o brilhante enjambement “a frágil
obra que fizemos, fica / aberta ao vento (...)” compõe o quadro propício para se
depreender a estruturação dialética de mudança e permanência característica ao
movimento de metamorfose, articulado, aqui, com as ideias de tempo e recepção.
É visto que, a partir da transfiguração do eu lírico no aranhiço de peito
amante da obra alexandrina, o poeta inicia o embate com seu leitor, enfrentando os
(des)limites
da
linguagem,
incapaz
de
estabelecer
os
laços
de
interação
pretendidos. Assim, o sábio aranhiço de AFA professa a arte do verso em obscura
aula e também sofre com a falta de recepção, “à espreita de um ouvido que não
cabe / nos estreitos limites do horário.” (AFA, 2004, p. 34).
O
universo
poético
de
AFA
problematiza
a
linguagem
como
valor,
reelaborando a imagética amorosa de Camões por meio de um movimento
ambivalente de ação e retração da palavra poética (por exemplo, como pode se
constatar nos tópicos binários de grandeza e pequenez pertinentes ao seu fazer
literário). Na busca pelo encontro figurado pela relação erótica, a subjetividade
lírica coloca-se ao lado dos grandes, de novos barões assinalados, mas seguro por
fino fio em estado de suspensão – as frágeis amarras da Literatura: “Assim eu
sonho e penso, já suspenso / por fino fio, à altura do teu peito;” (AFA, 2004, p.
22).
A encenação operada pela representação distende os limites entre as
identidades em questão, ocupando o eu lírico um lugar de dúvida numa rede de
significações traçada, também, como armadilha para o leitor.
(...) para António Franco Alexandre, nunca a poesia é uma
resposta ao que falha ou falta, como o tem pretendido ser a
poesia de tradição moderna: ela também é propriamente isso
que nos mostra ou deixa ver. E não esconde os limites que
observa na linguagem. (MARTELO, 2009, p. 280-281).
Enfim, a poesia alexandrina faz-se ao ocupar o próprio espaço lacunar da
interlocução, momento limítrofe entre os sujeitos da construção de sentido em que
a fala (falha, falta) poética compreende-se em seus desníveis. Resta à obra
estudada a angústia de habitar este entre lugar. Camões, em sua equação lírico-
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amorosa, oferece uma chave de leitura talvez a mais justa para se entender um tal
fenômeno poético quando afirma que o “[Amor] é um cuidar que ganha em se
perder”: que possa o leitor receber o poema de AFA, e, ao deitar suas marcas sobre
este corpo, se deixe perder em seus versos.
Referências:
ALEXANDRE, António Franco. Aracne. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
______. Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.
ALVES, Maria Theresa Abelha. Topofilia e topocrítica na paisagem ideal da Ilha dos
Amores. In. Convergência Lusíada. Rio de Janeiro: Revista cultural do centro de
estudos do RGPL. Ano IV, nº 7, jul. 79 a dez. 80.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortência dos
Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981.
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Edição organizada por Emanual Paulo Ramos. Porto:
Porto editora, 1978.
______. Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa Pimpão.
Coimbra: Atlântida Editora, 1973.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tradução Salma Tannus Mucail. 6ª Ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LAGE, Rui. A elegia portuguesa nos séculos XX e XXI: Perda, luto e desengano.
Tese de doutorado. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010.
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LUÍS, Mário Helder Gomes – “Estoicismo cristão” na poesia elegíaca de António
Ferreira. In III Colóquio Clássico – Actas. Coord. de João Manuel Nunes Torrão.
Aveiro, Departamento de Línguas e Literaturas da Universidade de Aveiro, 1999,
pp. 321-346.
MACEDO, Helder. Camões e a viagem iniciática. Lisboa: Morais Editores, 1980.
MARTELO, Rosa Maria. O “especialista em sublimação” e os usos da linguagem
(acerca da poesia de António Franco Alexandre). In. Cadernos de Literatura
Comparada 20 – Artes da Perversão. Porto: Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa da faculdade de Letras da Universidade do Porto. Junho de 2009.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Discurso/desconcerto: Alguns nós na literatura
portuguesa. In. Verso com verso. Coimbra: Angelus Novus, 2003.
______. O Tejo é um rio controverso – António José saraiva contra Luís Vaz de
Camões. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
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