ANISTIA PARA QUEM??
Cecília Maria Bouças Coimbra∗
“A anistia quando surgiu em 1979 jamais se
caracterizou como ampla, geral e irrestrita”.
(Ivan Cavalcanti Proença)
A luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita que levou milhares de brasileiros
às ruas, que mobilizou diferentes segmentos sociais, ainda em pleno terrorismo
de Estado, na segunda metade dos anos 70, parece que nunca existiu. Nas
“comemorações” que se fazem todos os anos a uma anistia restrita, parcial e,
mesmo, limitada, nada se ouviu sobre a intensa participação da sociedade
brasileira naqueles tortuosos anos. Uma participação que vinha no bojo dos
novos movimentos sociais que já se anunciavam desde o início da década de
70. Uma participação que denunciava não só as prisões arbitrárias, seqüestros,
torturas, assassinatos e desaparecimentos de opositores políticos à ditadura
militar, mas que também clamava pela democratização da sociedade brasileira
em todos os seus níveis. Uma participação que contou com a presença
massiva das mulheres.
Além de se relegar esta luta ao esquecimento, essas “comemorações” oficiais
– através de matérias na mídia impressa e televisionada – têm produzido uma
“outra” anistia. Esta anistia teria trazido todos os exilados, libertado todos os
presos, feito com que voltassem a seus trabalhos e funções todos os que deles
foram afastados e/ou expulsos, ressarcido todos os que foram perseguidos.
Enfim, uma anistia que pacificou a sociedade brasileira.
Ousamos trazer uma outra interpretação. A anistia brasileira se caracterizou,
no contexto latino-americano, por ser a mais atrasada, a mais retrógrada. O
Brasil que, nos anos 60, exportou know-how de tortura e a triste figura do
desaparecido político para as recém-instaladas ditaduras da América Latina,
nos anos 90, vergonhosamente, é o país mais atrasado não só quanto aos
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Psicóloga, Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo; PósDoutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Vice-Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e Conselheira do
Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro
direitos de todos os que foram atingidos pelos diferentes atos de exceção,
como também pelo resgate de nossa história recente.
Nem todos foram anistiados – muitos, ainda hoje, continuam lutando e
reivindicando seus direitos – pois os mortos e desaparecidos políticos
encontram-se totalmente ausentes dessa anistia. De forma perversa impõe-se
o silêncio, produz-se o esquecimento sobre aqueles que, generosamente,
lutaram contra o terror. Aqueles que foram perseguidos, caçados como feras,
assassinados e desaparecidos como animais peçonhentos. Nega-se o direito
de se trazer a história de todos eles, até mesmo dos que sobreviveram.
Até hoje os arquivos considerados secretos e confidenciais da ditadura – CISA,
CENIMAR, CIE, DOI-CODI e SNI – não foram trazidos à público. Somente os
dos DOPS – bastante desfalcados de informações, como os do Rio de Janeiro
e São Paulo, pois foram mexidos pela repressão – encontram-se abertos. Ou
seja, falam de uma anistia que, deixando à margem milhares de perseguidos,
sequer permite que se faça uma análise crítica desse período histórico recente,
sequer fala dos crimes cometidos em nome da “segurança do regime”. Anistia
que, enfim, tem funcionado como um grande favor, uma enorme concessão
daqueles que cometeram esses crimes de lesa humanidade.
E, o que é pior, o atual governo federal apela para uma lei vergonhosa, feita ao
apagar das luzes do governo anterior, o de FHC, para justificar a não abertura
dos arquivos sobre o Araguaia, solicitação esta feita judicialmente.
Além de se negar a história, ela é oficialmente distorcida e mudada. A Lei da
Anistia coloca como data final de sua abrangência 15 de agosto de 1979. Ou
seja, toda e qualquer perseguição e/ou crime perpetrados pela ditadura militar
após esta data, não estariam inscritos na Anistia. Este período de abrangência
foi copiado por todas as demais reparações em nível federal e estadual, que
colocam o ano de 1979 como se ele marcasse o final do período de exceção
em nosso país. Nesses documentos, a ditadura não terminou em 1985, mas
sim em agosto de 1979!
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Uma outra questão diz respeito à interpretação oficial dada pelos juristas da
ditadura e aceita integralmente por significativas parcelas da sociedade e pela
própria esquerda brasileira.
Trata-se dos chamados crimes conexos.
A
interpretação hegemônica afirma que este parágrafo da lei anistia todos os que
praticaram “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou
praticados por motivação política”, ou seja, os torturadores. O significado da
palavra conexo refere-se a “alguma coisa que tenha relação com outra, que
tenha dependência, nexo”. Pretende-se com isso, além de anistiar assassinos,
perversamente, igualar os atos dos opositores políticos com os que foram
praticados pelo Estado ditatorial terrorista.
Esta interpretação oficial da lei tem sido contestada por vários movimentos de
direitos humanos e de familiares de mortos e desaparecidos políticos e por
alguns juristas renomados, como Fábio Konder Comparato, que afirma que
“sob o aspecto constitucional, nunca houve nenhuma conexidade que
permitisse estender a anistia aos torturadores e assassinos”.
Além disso,
ressalta que o Brasil ratificou em 1992 a Convenção Americana de Direitos
Humanos que torna imprescritível o crime de tortura.
Estas e muitas outras questões referentes à Lei da Anistia precisam ser
encaradas e enfrentadas. Não podemos continuar aceitando passivamente a
gradativa negação de nossos direitos, de nossa história.
É necessário
aprender com ela sob pena de continuarmos aceitando passivamente e,
mesmo, aplaudindo as mortes cotidianas, as chacinas, os massacres, os
extermínios, as arbitrariedades que, mais do que nunca hoje, são perpetrados
contra a pobreza.
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