Vigilância da saúde e/ou/na Saúde da Família? Carmen Fontes Teixeira Instituto de Humanidades Artes e Ciências Universidade Federal da Bahia “A Saúde da Família, estratégia de reorganização da Atenção Básica do SUS, ao eleger o atendimento integral à saúde da população em territórios delimitados como objeto de atuação de equipes multiprofissionais, apresenta-se como espaço privilegiado para o exercício de práticas de Vigilância da Saúde” (Vilasbôas, AL e Teixeira, CF, Revista Brasileira de Saúde da Família, MS, 2007, p.67) Há motivos para esse otimismo? Tudo tem uma história... O processo de Reforma Sanitária Brasileira, especificamente a construção do Sistema Único de Saúde tem sido o cenário onde são apresentadas (e disputam) várias propostas de mudança na organização do sistema, dos serviços e das práticas de saúde, entre as quais a Vigilância da Saúde e a Saúde da Família A análise dessas propostas implica: Emergência: quem (sujeito/ator) propôs e com que intenção, com que finalidade Características: princípios, diretrizes, conceitos e métodos incluídos em cada proposta Desenvolvimento de cada proposta: incorporação à agenda política da saúde, grau de institucionalização, redefinições na trajetória Aproximações, justaposições, tensões, conflitos, distanciamentos entre elas, na teoria e na prática... Relação com outras propostas em curso... Emergência: Vigilância da Saúde (período Collor 1991) (período SUDS 87-89) • Influência 2000) • Implantação dos Sanitários (SILOS) • da Saúde da Família OPAS (SPT Distritos Experimentação de propostas alternativas de organização das ações e serviços de saúde • Elaboração conceitual da VISAU (1992) (Paim; Vilaça Mendes) Influência do Banco Mundial (Focalização) Epidemia de cólera Implantação do PACS nas regiões Norte e Nordeste Experiências “exitosas” (Ceará, Paraíba, etc..) FHC/Jatene: Surgimento do PSF (1994); expansão de cobertura (FHC/LULA) Princípios, conceitos e métodos Vigilância da Saúde Territorialização em vários níveis (político, administrativo, epidemiológico, domiciliar) Planejamento e programação local (enfoque situacional) Reorganização do processo de trabalho (inclusão do profissional graduado em Saúde Coletiva na equipe) Integralidade da atenção à saúde (controle de determinantes, riscos e danos): articulação entre ações de promoção, prevenção, assistência e reabilitação Integração de serviços em vários níveis de atenção (sistemas regionalizados redes de atenção à saúde) Saúde da Família Base territorial (área de abrangência da USF); Programação local das atividades das equipes; Trabalho em equipe multiprofissional Reorganização da atenção primária à saúde (APS) Ações de educação para a saúde; prevenção e controle de riscos e problemas priorizados, atenção básica a grupos priorizados Desenvolvimento institucional Vigilância da Saúde Difusão da proposta no âmbito acadêmico: (confrontada com outras propostas de mudança do modelo assistencial) Incorporação restrita na prática institucional (MS, SES e SMS): Vigilância em saúde (VE + Programas de Controle de doenças + VA); Articulação (incipiente) com ESF em alguns municípios. Saúde da Família Incorporação na agenda política do MS: transformação em “estratégia de Saúde da Família”, entendida como eixo da reorganização da Atenção Básica (grande expansão 1998-2000) Aproximação inicial com as propostas da VISAU; Redefinição posterior com fortalecimento da perspectiva Clínica (simplificada ou ampliada) • APS restrita /APS abrangente Momento atual Qual a direcionalidade da política de reorganização do modelo de atenção à saúde no SUS? Melhoria da qualidade da Atenção Básica: organização da rede de USF e implantação dos NASF; Implantação das UPAS; expansão do SAMU; Expansão e melhoria da rede hospitalar Manutenção dos programas de controle de doenças (epidemias e endemias); separação entre vigilância epidemiológica e sanitária; incipiência da vigilância ambiental Fragmentação das ações de Promoção da Saúde e quase inexistência de ações intersetoriais voltadas para o controle de Determinantes Sociais da Saúde (DSS) Em síntese: fortalecimento do modelo médicoassistencial hospitalocêntrico e conseqüentemente reforço do processo de medicalização; Tensões, articulações e conflitos Disputa no campo político entre propostas de mudança /conservação do modelo de atenção à saúde no SUS Modelo (ainda) hegemônico: médico-assistencial hospitalocêntrico Propostas “alternativas” (complementares): • Saúde da família (“SUS para pobres”): universalização da atenção básica; os interesses econômicos e políticos vem “colonizando” o espaço da ESF, produzindo sua articulação com a reprodução ampliada do modelo hegemônico na atual fase de desenvolvimento científico e tecnológico (complexo médico-industrial) • Vigilância da Saúde: suplantada por um lado, pela hegemonia do modelo assistencialista e por outro pelo surgimento da “nova saúde pública” (redução do papel do Estado) que contamina, inclusive o campo da Saúde Coletiva(Paim, 2006) Desafios a enfrentar No Produção científica e tecnológica Formação de pessoal em saúde No âmbito acadêmico: âmbito institucional (SUS) Possibilidade de articulação VISAU-ESF? No campo político Desafios no âmbito acadêmico Desenvolver pesquisas que contribuam para: a fundamentação teórica, metodológica e práticoinstrumental das políticas e das ações de promoção e vigilância da saúde em vários planos e níveis da realidade social levando em conta a vigência da “utopia da Saúde Coletiva” (Paim e Almeida Filho, 2000); a análise das limitações conceituais, metodológicas e operacionais da ESF, como base para a reflexão acerca da possibilidade (e necessidade) de “refuncionalização” levando em conta os conceitos, métodos e experiências acumuladas no movimento em torno da promoção da saúde e as propostas da Vigilância da Saúde Desafios no âmbito acadêmico Analisar os limites dos processos de reforma curricular nos cursos profissionais na área de saúde (reprodução do modelo hegemônico) Investir em propostas inovadoras de formação e capacitação de pessoal que abram espaço para: o estudo e problematização da Saúde e seus determinantes sociais (Paim, 2010) a análise crítica das políticas e práticas de saúde à luz do debate sobre o “campo da Saúde” e suas relações com o mundo contemporâneo. (Teixeira, 2010); a experimentação de práticas que propiciem o desenvolvimento científico, tecnológico e organizacional das ações de promoção e vigilância da saúde; a formação de sujeitos críticos, sensibilizados e comprometidos com os princípios e diretrizes que fundamentam as propostas de mudança das políticas e práticas de saúde em direção a uma “sociedade de bem-estar” (Dreyfuss, ) Desafios no âmbito do SUS É possível pensar na formação de uma “aliança” entre atores que defendem a Reforma Sanitária, o SUS (formal) e apostem na mudança do modelo de prestação de serviços em direção à integralidade da atenção à saúde? Ênfase nas políticas e práticas de Promoção da saúde visando a intervenção sobre Determinantes sociais da saúde e melhoria da qualidade de vida? Fortalecimento,descentralização e ampliação das práticas de vigilância epidemiológica, sanitária e ambiental, articuladas às ações territoriais desenvolvidas pelas equipes de Saúde da Família? Reorientação das práticas de assistência ambulatorial e hospitalar, com ênfase na “humanização” da atenção, compensando os efeitos perversos produzidos pela intermediação de tecnologias diagnósticas e terapêuticas na relação entre profissionais de saúde e usuários? Desafios no âmbito do SUS Nessa perspectiva, caberia investir na articulação da VISAU e a ESF, o que demanda: Retomada do debate acerca da mudança do modelo de atenção à saúde no SUS nos espaços de controle social e no âmbito institucional; Problematização dos limites das propostas alternativas ao modelo hegemônico e da importância de sua articulação, redefinindo a direcionalidade do processo de reforma na organização dos serviços (redes) e na reorientação do conteúdo das práticas de saúde; Análise crítica das propostas políticas apresentadas pelos atuais dirigentes nos vários níveis de gestão do SUS; Resgate e difusão de experiências bem sucedidas de operacionalização dos princípios e diretrizes da VISAU no âmbito do processo de trabalho das equipes de Saúde da Família; Desafios no campo político Mapear o surgimento de “novos atores” na sociedade brasileira contemporânea, capazes de transformar o “mal-estar da pós-modernidade” (Baumann, 1998) em inquietação existencial e protagonismo político em torno de mudanças nos “modos de andar a vida”. Investir na “politização” da Saúde junto a estes novos atores e movimentos, problematizando a ênfase quase exclusiva que tem sido dada à ocupação de posições no aparelho de Estado, apostando na democratização da democracia (Santos, 2002; 2007) Referências bibliográficas Almeida Filho, e Paim, JS. A crise da saúde pública e a utopia da Saúde Coletiva. Casa da Qualidade, Salvador, Bahia, 2000. Baumann, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1998, 272 p. Batistella. C. Abordagens contemporâneas do conceito de saúde. In: Fonseca, A.F. (org.). O território e o processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV, FIOCRUZ, 2007b, p. 51-86. Freitas, CM A Vigilância da Saúde para a promoção da saúde. IN: Czeresnia, D. promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Fiocruz, 2003, p. 141-159 Lima NT et al (orgs.) Saúde e Democracia: história e perspectivas do SUS. Editora FIOCRUZ, 2005, 502 p. 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Teixeira, CF e Vilasbôas, AL Desafios da formação técnica ética dos profissionais das equipes de Saúde da Família, In: Trad, LA. (org.) Família contemporânea e Saúde: significados,práticas e políticas públicas, Editora FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2010, p. 133156. Adendo: mapeamento estado da arte (2010) Seminário PNH José Ricardo Ayres: práticas de saúde, processo de trabalho em saúde, a reflexão sobre o cuidado. (rever os textos deles e caracterizar melhor essa “escola de pensamento”); apóia-se em Heidegger para valorizar a elaboração de “projetos de felicidade”; Ricardo Teixeira: a problemática do cuidado à luz da Ética de Spinoza? (ver sua tese de doutorado); a noção de “redes”... redes de cuidado; Ricardo é consultor da PNH, ocupando, portanto, uma posição privilegiada com relação aos outros autores. Rubem Matos e Roseni Pinheiro: a retomada da questão da integralidade e a abertura do diálogo com uma multiplicidade de autores; Agora Rubem retoma a questão do “sofrimento”, mas não tematiza, não conceitua, suficientemente isso; Gastão Wagner e sua “clínica ampliada” (ver crítica, pela Saúde mental, (Paulo Amarante) à clínica... não se trata de ampliar a clínica senão que de transformá-la...) Emerson Merhy e a “clínica do corpo sem órgãos”, ponto de vista do qual pretende questionar/problematizar o avanço do pensamento epidemiológico (a problemática do risco e a antecipação da ação sobre os corpos...) (biopoder sobre o medo, a apreensão... corre-se o risco de deitar fora o menino com a água do banho, e a bacia também... ao renegar os benefícios (existem, acreditem), do avanço científico e tecnológico na área biomédica e da saúde pública...) Muita gente ficou “silenciada”... toda a discussão considerada “antiga” provavelmente (na perspectiva do grupo que convocou o seminário) sobre a Saúde da família, Promoção da Saúde, Vigilância da Saúde... e, ademais, as idéias de regionalização de serviços, planejamento e gestão descentralizada do sistema... enfim...muita coisa (e os autores que defendem essas idéias, como Eugenio Vilaça, Jairnilson Paim, eu mesma... Ligia Giovanella, Sarah Escorel, Patricia Ribeiro, etc, etc...).