Pró-Reitoria de Graduação Curso de Direito Trabalho de Conclusão de Curso O ABUSO DE AUTORIDADE NA ABORDAGEM POLICIAL Autor: Paulo Sérgio Medeiros Orientadora: Dra. Arinda Fernandes Brasília - DF 2010 PAULO SÉRGIO MEDEIROS O ABUSO DE AUTORIDADE NA ABORDAGEM POLICIAL Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito. Orientadora: Dra. Arinda Fernandes Brasília 2010 Monografia de autoria de Paulo Sérgio Medeiros, intitulada “O ABUSO DE AUTORIDADE NA ABORDAGEM POLICIAL”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em ___/___/2010, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinalada: __________________________________________________ Orientadora: Dra. Arinda Fernandes Curso de Direito – UCB __________________________________________________ Prof. Dr. Arnaldo Sampaio Moraes Godoy Membro __________________________________________________ Prof. Dr. João Rezende Almeida Oliveira Membro Brasília 2010 RESUMO MEDEIROS, Paulo Sérgio. O abuso de autoridade na abordagem policial. Defesa em 2010. 72 folhas. Monografia de curso de graduação em Direito - Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2010. O abuso de autoridade na abordagem policial representa hoje um tema merecedor de especial atenção. Esse tema é bastante complexo por envolver os direitos fundamentais do cidadão, consagrados na Carta Maior, e a segurança pública, a qual tem suas bases no poder de polícia do Estado. O abuso de autoridade na abordagem policial é uma agressão ao princípio da dignidade da pessoa humana, aos direitos humanos fundamentais e a outros princípios consagrados na Constituição. Por isso, este trabalho tem por objetivo apresentar um estudo sobre os crimes de abuso de autoridade previstos na Lei nº 4.898/65. Também será alvo de estudo do presente trabalho, a análise da abordagem policial com o fim de estabelecer uma relação entre a necessidade de prevenção e repressão ao crime. A prevenção e a repressão ao crime têm por finalidade a paz social, para isso o Estado deve buscar estabelecer o limite de atuação do agente público para que este não incorra nos crimes previstos na referida lei. O trabalho investigará, ainda, a origem do abuso de autoridade, bem como buscará esclarecer as consequências jurídicas resultantes dessa prática. Será, ainda, explorada a expressão “fundada suspeita”, prevista no Código de Processo Penal, haja vista a vaguidão do termo, o qual pode ser interpretado subjetivamente de diferentes maneiras. Assim, este trabalho de conclusão de curso busca identificar as origens das condutas abusivas na atividade policial a fim de encontrar uma solução para transformar a polícia em uma instituição democrática e cidadã. Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana, Direitos Humanos, Liberdade de Locomoção, Incolumidade Física do Indivíduo, Segurança Pública, Abuso de Autoridade, Abordagem Policial. ABSTRACT MEDEIROS, Paulo Sergio. The misuse of authority at police approach. Defense in 2010. 72 pages. Monograph of undergraduate course of law. Universidade Católica de Brasília – UCB, Brasília, 2010. The misuse of authority at police approach, represents nowadays, a deserving theme of special attention. This theme is quite complex for involving fundamental citizen rights, consecrated in the Federal Constitution, and the public security, whose base is in the power of state police. The misuse of authority at police approach it is an aggression to the principle of human person dignity, to the human fundamental rights and also to other principles consecrated in the Constitution. Therefore, this work objective itself to present a study about misuse of authority crimes provided in Law n.4.8898 65. Likewise it will be aim of study of the present job, the analysis of police approach in order to establish a relation between prevention necessity and crime repression. The prevention and crime repression have social peace as finality, and for that, the state must look for establish an acting limit of the public agent so he would not incurs in provided crimes, in the above mentioned law. This work still will investigate the origin of misuse of authority, and it'll seek for clarify the juridical consequences resulting of this practice. In addition, will be explored the expression, ''founded suspicion" provided in the Code of Criminal Procedure, given the inaccuracy of the term, that can be subjectively interpreted in different ways. Thus, this work of course conclusion, seeks identifying the origins of abusive behavior in police activity in order to find a solution to transform the police in a democratic and citizen institution. Key- words: Human Dignity, Human Rights, Freedom of Locomotion, Physical Safety of the Individual, Public Security, Misuse of Authority, Police Approach. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 6 1. DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS ............................................................ 8 1.1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ................................... 9 1.1.1. O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição brasileira de 1988 ............................................................................................. 13 1.2. PROTEÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS ............................. 14 1.2.1. Os direitos humanos fundamentais nas Constituições Brasileiras ......................................................................................................... 17 1.3. TUTELA CONSTITUCIONAL À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO............... 21 1.4. TUTELA CONSTITUCIONAL À INCOLUMIDADE FÍSICA DO INDIVÍDUO 222 1.5. RELATIVIDADE DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS ................ 24 2. A LEI Nº 4.898 DE 1965 – O ABUSO DE AUTORIDADE ................................. 26 2.1. ASPECTOS GERAIS DA LEI Nº 4.898 DE 1965 ........................................ 26 2.2. SUJEITOS ATIVO E PASSIVO DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE ....................................................................................................... 28 2.3. PENAS – CONSEQUÊNCIAS DO ABUSO DE AUTORIDADE .................. 31 2.4. OS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE OBJETOS DE ESTUDO ....... 34 2.4.1. Atentado à liberdade de Locomoção ............................................... 35 2.4.2. Atentado à Incolumidade Física do Indivíduo ................................. 37 2.5. VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA (ART. 322 DO CÓDIGO PENAL). .................... 40 3. ASPECTOS GERAIS DA ATIVIDADE POLICIAL ............................................. 42 3.1. SEGURANÇA PÚBLICA ............................................................................. 42 3.1.1. As Forças Policiais no Brasil ............................................................ 44 3.2. A HERANÇA DOS REGIMES POLÍTICOS DITATORIAIS ......................... 46 3.3. ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL ........................................ 48 3.4. PODER DE POLÍCIA .................................................................................. 50 3.4.1. Características do Poder de Polícia ................................................. 52 3.5. ABORDAGEM POLICIAL ............................................................................ 53 3.5.1. Busca Pessoal.................................................................................... 56 3.5.2. Subjetividade na busca pessoal ....................................................... 57 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 62 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 66 6 INTRODUÇÃO O art. 144 da Constituição Federal afirma que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo essencial para o desenvolvimento da sociedade. Sabemos que a função das forças policiais, civis ou militares, é a preservação da ordem pública. Para garantir o cumprimento dessa função, o Estado concede certo arbítrio aos agentes policiais para que estes possam atingir seus objetivos. Há a possibilidade do emprego da força física legítima, por parte do agente policial, limitando os direitos individuais que estão em confronto com a ordem, para que a paz social seja restabelecida. No entanto, o uso dessa força não autoriza a prática do abuso ou excesso, pois esse arbítrio deverá ocorrer dentro dos limites da legalidade, sob pena de constituir crime o excesso praticado. O cidadão, por sua vez, tem a expectativa de encontrar na polícia o apoio necessário para o exercício dos direitos e garantias que lhe são assegurados pela Constituição Federal, ou seja, ele espera que o policial atue dentro da lei, prevenindo e reprimindo a criminalidade, preservando a ordem pública. Entretanto, há policiais que se afastam de sua missão constitucional e praticam abusos. Constantemente nos deparamos com notícias, vinculadas pela mídia, narrando fatos envolvendo policiais que praticam atos de violência no exercício de suas funções públicas, principalmente envolvendo pobres e negros, o que indica o seu caráter seletivo. Portanto, trata-se de um assunto polêmico, que está em constante debate e que interessa a toda sociedade. Por isso, a importância de se fazer um estudo desse assunto: investigar as causas que levam um policial atuar acima da lei, praticando a violência contra o cidadão; como também, informar quais as consequências da atuação de uma polícia mal preparada no exercício de sua função pública. Assim, com o objetivo de delimitar o tema e deixá-lo mais compreensível e didático, este trabalho foi dividido em três capítulos. No primeiro capítulo serão abordados os Direitos e Garantias Individuais, o qual apresentará um estudo sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, 7 considerado o princípio reitor de todos os outros direitos e garantias; a proteção universal aos direitos humanos; a tutela constitucional à liberdade de locomoção e à integridade física do indivíduo, todos eles passíveis de serem atingidos pelo agente público no momento da abordagem policial. Será também abordada a relatividade dos direitos e garantias individuais, haja vista que eles não têm caráter absoluto. O segundo capítulo versa sobre a Lei nº 4.898/65 – Lei de Abuso de Autoridade, que regula a responsabilidade civil, penal e administrativa nos casos de abuso de autoridade. No entanto, para delimitar o assunto, serão analisados apenas os aspectos mais importantes dessa lei. Primeiramente, haverá uma análise da origem e finalidade dessa lei. Posteriormente, serão examinados os sujeitos ativo e passivo dos crimes de abuso de autoridade, bem como, quais as consequências para o infrator dessa lei, nas áreas civil, penal e administrativa. Abordaremos também os crimes de atentado à liberdade de locomoção e à incolumidade física do indivíduo, previstos, respectivamente, nas alíneas “a” e “i”, artigo 3º, da Lei de Abuso de Autoridade. Merece, ainda, ser analisado, o art. 322 do Código Penal, que trata da violência arbitrária, haja vista a semelhança desse dispositivo com o art. 3º, alínea “i”, da Lei nº 4.898/65. No terceiro capítulo será abordada a atividade policial, englobando a segurança pública, que é assegurada pela Carta Magna em seu artigo 144, e as características das forças policiais existentes no Brasil, principalmente a polícia militar, tendo em vista seu maior contato com a população nas ruas. São temas do terceiro capítulo: a influência dos regimes ditatoriais na formação e atuação da policial brasileira; o estrito cumprimento do dever legal, previsto no inciso III, art. 23, do Código Penal e no inciso III, art. 42 do Código Penal Militar; o poder de polícia do Estado frente aos direitos do cidadão; a abordagem policial, a qual é uma forma de intervenção que atinge as liberdades públicas; e a busca pessoal e sua subjetividade, conceituada pela expressão “fundada suspeita”, prevista nos artigos 240, parágrafo 2º, e 244 do Código de Processo Penal. 8 1. DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS A Constituição brasileira de 1988 constitui um marco jurídico na proteção dos direitos do cidadão por ter inserido em seu texto temas como a dignidade da pessoa humana, direitos humanos e direitos e garantias fundamentais. A dignidade da pessoa humana, valor espiritual e moral inerente à pessoa, foi elevado a princípio fundamental da Carta Magna, nos termos do seu art. 1º, inciso III. A dignidade da pessoa humana constitui um direito individual protetivo que deve ser respeitado tanto pelo Estado quanto pelos cidadãos em suas relações interpessoais. A prevalência dos direitos humanos, cuja previsão encontra-se no art. 4º, inciso II da Constituição Federal, é um princípio orientador das relações internacionais e tem por objetivo compor uma imagem positiva do Brasil no contexto internacional como um país respeitador dos direitos humanos. Previstos na Constituição brasileira de 1988, arts. 5º ao 17º, “os direitos e garantias fundamentais” 1, estão subdivididos em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos; e partidos políticos. Segundo Alexandre de Moraes2, os direitos individuais e coletivos “correspondem aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria personalidade, como por exemplo: vida, dignidade, honra e liberdade.” Todos esses sistemas interagem e se completam a fim de proporcionar a maior efetividade possível na proteção aos direitos fundamentais do cidadão. Por isso, a relevância de se abordar, neste capítulo, temas referentes ao princípio da dignidade da pessoa humana, os direitos humanos e os direitos individuais (mais precisamente o direito à liberdade de locomoção e à incolumidade física do indivíduo), haja vista que esses direitos podem sofrer violações no momento da abordagem policial, o que configura o abuso de autoridade. 1 Segundo Chimenti: “Em direito constitucional, “Direitos” são dispositivos declaratórios que imprimem existência ao direito reconhecido. Por sua vez, as “garantias” podem ser compreendidas como elementos assecuratórios, ou seja, são os dispositivos que asseguram o exercício dos direitos e, ao mesmo tempo, limitam os poderes do Estado”. CHIMENTI, Ricardo Cunha, et alii. Curso Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004. p.49 2 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 23 9 1.1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Constitui uma tarefa difícil indicar a origem da dignidade da pessoa humana como um valor a ser reconhecido e respeitado por todos. Entretanto, analisando a história, podemos assinalar quatro momentos fundamentais nesse percurso: o Cristianismo, o Iluminismo, a obra de Immanuel Kant e a Segunda Guerra Mundial.3 O pensamento trazido pela ideologia cristã, ao reconhecer os princípios da igualdade e fraternidade, e ao afirmar que todos os homens, independentemente da origem, raça, sexo ou credo são iguais, representou uma sensível mudança na estrutura da sociedade até então existente. Encontramos tanto no Novo quanto no Velho Testamento diversas referências de que o homem foi criado a imagem e semelhança de Deus, premissa da qual o cristianismo extraiu a consciência de que o ser humano – e não apenas os cristãos – é dotado de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento.4 Esta postura igualitária, de valorização da pessoa humana, identifica-se com o princípio da dignidade humana, no qual todos os homens são livres e responsáveis por seus atos já que são possuidores da mesma dignidade. Séculos depois (séc. XVII e XVIII), o movimento Iluminista5, com sua crença na razão humana, foi o responsável por desalojar a religiosidade do centro do sistema de pensamento, substituindo-a pelo próprio homem. O desenvolvimento teórico do humanismo acabará por redundar em um conjunto de conseqüências relevantes para o desenvolvimento da ideia de dignidade humana, como a 3 BARCELLOS, Ana Paula. Eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.104 4 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p.30. 5 O Iluminismo surgiu na França (século XVII). Este movimento defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica que dominava a Europa desde a Idade Média. Para os filósofos iluministas, esta nova forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade. Com este movimento o homem deveria ser o centro e passar a buscar respostas para as questões que, até aquele momento, eram justificadas pela fé, ou seja, o pensamento racional deveria substituir as crenças religiosas e o misticismo. Disponível em: <http://www.suapesquisa.com/historia/iluminismo/>. Acesso em: 11 mar. 2010. 10 preocupação com os direitos individuais do homem e o exercício democrático do poder.6 No entanto, com o pensamento de Immanuel Kant, talvez tenha surgido a melhor expressão do conceito de dignidade humana, pois, até hoje, é justamente no pensamento de Kant que a doutrina parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana: Verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana parece continuar sendo reconduzido – e a doutrina majoritária conforta esta conclusão – primordialmente à matriz Kantiana, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de 7 cada pessoa). A filosofia kantiana concebia o homem como um ser racional, que existia como um fim em si mesmo, e não como um meio para os outros. Em função dessa condição de ser racional, comum a todos os seres humanos, é que o homem poderia ser chamado de pessoa – pessoa humana. Com base nessa premissa, Kant sustenta que: O Homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim... Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita 8 nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito). Para Kant, essa pessoa seria dotada de um valor intrínseco, um valor próprio da sua essência, e, por ser uma qualidade intrínseca da pessoa humana, seria algo irrenunciável e inalienável. Na medida em que esse valor, irrenunciável e inalienável, qualifica o ser humano, ele não pode ser destacado deste, já que, como dito, o ser humano seria um fim e não um meio passível de utilização e manipulação. Esse 6 BARCELLOS, 2002. p.106 SARLET, 2007. p.45 8 KANT, Immanuel. Fundamento da metafísica dos costumes, in: os pensadores – Kant, trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 134. 7 11 valor intrínseco seria um valor absoluto, uma qualidade absoluta, ou seja, uma dignidade absoluta.9 Portanto, como afirma Sarlet10: “o ser humano é dotado de um valor e que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em um mero objeto ou instrumento”. Por isso, a dignidade da pessoa humana é algo que se reconhece, respeita e protege. O último marco importante na trajetória histórica da noção de dignidade da pessoa humana é também o mais trágico. Os horrores da Segunda Guerra Mundial11 (1939 - 1945) abalaram completamente as convicções que até aquele momento se tinham como pacíficas e universais. Como a reação à barbárie do nazismo e do fascismo, consagrou-se, no pósguerra, a dignidade da pessoa humana no plano internacional e interno como valor máximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos organismos internacionais.12 Após o fim da Segunda Guerra Mundial, especialmente após a criação das Organizações das Nações Unidas, a discussão a respeito dos direitos humanos e fundamentais tomou uma nova dimensão: no âmbito internacional, Declarações e Pactos sobre direitos foram firmados, bem como Organizações e Cortes foram criadas13. Devido a importância do princípio da dignidade humana, que é inerente a todo ser humano e que deve ser respeitado por todos, podemos afirmar que este princípio serve como princípio orientador de muitos outros. É possível afirmar que o princípio da dignidade humana se relaciona com os chamados direitos fundamentais ou humanos. Pelo que foi exposto, sendo reconhecida a sua existência e sua importância, é necessário conceituar a dignidade da pessoa humana. 9 BOLDRINI, Rodrigo Pires da Cunha. A proteção da dignidade da pessoa humana como fundamentação constitucional do sistema penal. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4171>. Acesso em: 11 mar. 2010. 10 SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.106. 11 As violações de direitos humanos e a morte de milhões de seres humanos, das mais variadas nacionalidades, ainda hoje causa revolta. 12 BARCELLOS, 2002. p.108 13 Foram criadas a Declaração dos Direitos do Homem (1948); Comissão Européia de Direitos Humanos (1950); Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966); Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (1969). 12 Dentre os conceitos existentes, podemos adotar dois: um proposto por Ingo Wolfgang Sarlet; outro, por Alexandre de Moraes. Eles procuraram condensar alguns dos pensamentos mais utilizados para a definição do conceito de dignidade da pessoa humana. Ingo Wolfgang Sarlet14: É a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos de deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Alexandre de Moraes15: A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. Importante salientar, entretanto, que tendo em vista a diversidade históricocultural que reina entre os povos, em muitas situações somente poderemos afirmar se houve ou não a violação da dignidade da pessoa humana por meio da análise do caso concreto. Desse modo, aquilo que numa determinada cultura pode ser considerada uma gritante violação dos direitos à dignidade humana, em outra pode ser reconhecido como uma conduta legal. Assim, são precisas as lições de Ingo Wolfgang Sarlet16 quando indaga: Até que ponto a dignidade não está acima das especificidades culturais, que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas que, em certos quadrantes, são tidos por legítimos, encontrando-se profundamente enraizados na prática social e jurídica de determinados comunidades. Em verdade, ainda que se pudesse ter o conceito de dignidade como universal, isto é, comum a todas as pessoas em todos os lugares, não haveria como evitar uma disparidade e até mesmo conflituoso sempre que se tivesse de 14 SARLET, 2007. p.62. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. São Paulo: Atlas, 2002. p.128-129. 16 SARLET, 2007. p.60. 15 13 avaliar se uma determinada conduta é, ou não, ofensiva à dignidade. Então, respeitando as diversidades culturais existentes, podemos dizer, de forma concisa, que o princípio da dignidade humana se relaciona com os direitos humanos, ou melhor, inspira os direitos humanos. 1.1.1. O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição brasileira de 1988 O princípio da dignidade da pessoa humana é a matriz de diversos outros direitos e garantias fundamentais das Cartas Políticas de diversos povos e da Constituição brasileira de 1988, dos quais decorre a liberdade de pensamento, a liberdade de reunião, a inviolabilidade de domicílio, a liberdade de locomoção, o direito à vida, o direito ao trabalho, o direito à saúde, o direito à educação e o direito à segurança, dentre outros valores essenciais ao homem. A sétima Constituição adotada no país, a Carta Cidadã17, foi promulgada no dia 5 de outubro de 1988. Foi a que apresentou maior legitimidade popular e também a que substituiu a Constituição imposta pelo regime militar. O princípio da dignidade humana está inserido expressamente no art. 1º, Título I – Dos Princípios Fundamentais, in verbis: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; Essa evolução constitucional propiciou o reconhecimento da importância da dignidade humana, fazendo com que o legislador constituinte concedesse status normativo ao princípio da dignidade humana, entendendo-o como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. 17 Em 1988, Ulysses Guimarães, na época deputado federal e também Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, fez um grande discurso na promulgação da Constituição e ali a chamou de cidadã, referindo-se à intensa participação popular na elaboração da nova Carta Magna como também pelo fato dela marcar um novo período político-jurídico, restaurando o Estado Democrático de Direito, ampliando as liberdades civis e os direitos e garantias fundamentais e com isto instituindo um verdadeiro Estado Social. 14 Com o reconhecimento expresso na Constituição Federal da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático (e Social) de Direito, o Constituinte de 1987/1988, além de ter tomado uma decisão a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.18 O princípio da dignidade humana é um princípio constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. Desse modo, reafirmamos que, como princípio constitucional, a dignidade da pessoa humana deverá ser entendida como “viga mestre” destinada a orientar todo o sistema no que diz respeito à criação, à sua interpretação e à aplicação de normas jurídicas. 1.2. PROTEÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS A ideia de direitos humanos é bastante antiga e seu surgimento pode ser apontado no antigo Egito e Mesopotâmia, onde já havia alguns mecanismos para a proteção do indivíduo em relação ao Estado. O Código de Hammurabi (1690 a.C.) constitui um marco no que tange aos mecanismos protetores de direitos humanos das civilizações. Tal código tutelava bens como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade e a família, prevendo, igualmente a supremacia das leis em relação aos governantes.19 Embora de extremo rigor para aplicação nos tempos atuais, representou um sensível avanço ao estabelecer proporcionalidade entre o delito praticado e a pena cominada. No direito romano, surge A Lei das XII Tábuas (451-433 a.C.), um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais em relação aos arbítrios estatais.20 18 SARLET, 2007. p.106. MORAES, 2009. p. 6. 20 ARAGÃO, Selma Regina. Direitos Humanos: do mundo antigo ao Brasil de todos. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.20 19 15 Assim, no decorrer da história, foram surgindo outros textos legais que visaram amparar o indivíduo contra a tirania dos governantes. Na Inglaterra surgiram a Magna Charta Libertatum (1215), a petition of Rights (1628), o Hábeas Corpus Act (1679), o Bill of Rights (1689) e Act of Settlement (1701). A Magna Charta Libertatum, imposta pelo Rei João Sem Terra, previa, entre outras garantias: a proporcionalidade entre o delito e a sanção; a previsão do devido processo legal; o livre acesso à justiça; a liberdade de locomoção e a livre entrada e saída do país. A petition of Rights, reclamava o respeito ao princípio do consentimento na tributação; o julgamento pelos pares para a privação da liberdade ou da propriedade; e a proibição de detenções arbitrárias. O Hábeas Corpus Act, criado para proteger a liberdade de locomoção (prisão arbitrária e liberdade de ir e vir), tornou-se a matriz de outras garantias judiciais que vieram a ser criadas posteriormente, para a proteção de outras liberdades fundamentais. O Bill of Rights significou enorme restrição ao poder estatal, pois previa, dentre outras regulamentações: o fortalecimento do princípio da legalidade; a criação do direito de petição; e a vedação à aplicação de penas cruéis. O Act of Settlement configurou-se em um ato normativo que reafirmava o princípio da legalidade e da responsabilização política dos agentes públicos. Posteriormente, na evolução dos direitos humanos, encontramos nos Estados Unidos da América os seguintes documentos históricos: Declaração de Direitos da Virgínia (1776), Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e Constituição dos Estados Unidos da América (1787). A Declaração de Direitos da Virgínia proclamava, dentre outros direitos: o direito à vida; o direito à liberdade; o direito à propriedade; o princípio da legalidade; o tribunal do júri; e o princípio do juiz natural e imparcial. A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América representou o ato inaugural da democracia moderna, a qual combinou a representação popular com a limitação de poderes governamentais e o respeito aos direitos humanos. A Constituição dos Estados Unidos da América, por sua vez, visando limitar o poder estatal, estabeleceu a separação dos poderes estatais e proclamou diversos 16 direitos humanos fundamentais como, por exemplo, o devido processo legal, a liberdade religiosa, a inviolabilidade de domicílio, a ampla defesa e a proibição de aplicação de penas cruéis. Na França, temos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a Constituição Francesa (1791). O marco basilar na consagração normativa dos direitos humanos fundamentais coube à França, a qual promulgou, em 26 de agosto de 1789, por meio da Assembleia Nacional, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, composta por 17 artigos. Dentre as importantes previsões destacam-se as seguintes: o princípio da igualdade; o direito à liberdade; o direito à propriedade; o direito à segurança; o direito de resistência à opressão; o princípio da presunção da inocência; e o direito à livre manifestação de pensamento. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é a mais famosa das declarações de direitos humanos. Sua importância decorre do fato de esta ter sido, por um século e meio, um modelo, por excelência, das declarações; e ainda hoje merecer o respeito e a reverência dos que se preocupam com liberdade e os direitos do homem.21 No século XX destacaram-se, dentre outras, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada em Paris, em 1948, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, criada em San Jose, em 1969. A convenção de San Jose reafirmou o propósito dos Estados Americanos em consolidar no Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito aos direitos humanos essenciais.22 A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada em 10 de dezembro de 1948. Ela constitui a mais importante conquista dos direitos humanos fundamentais em nível internacional.23 Ela foi uma reação, uma manifestação histórica, contra as atrocidades cometidas na II Guerra Mundial, e apontava o devido e necessário respeito aos direitos humanos, entendidos como universais. 21 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Direitos Humanos Fundamentais. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.19. 22 MORAES, 2007. p.19 23 Ibidem. p.17 17 Alexandre de Moraes24 reafirma a importância dessa Declaração: A Declaração Universal dos Direitos dos Homens adotada e proclamada pela Resolução nº 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10-12-1948, reafirmou a crença dos povos das Nações Unidas nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher, visando à promoção do progresso social e à melhoria das condições de vida em uma ampla liberdade. O mesmo autor apresenta o conceito de direitos humanos: O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser 25 definido como direitos humanos fundamentais. Pelo exposto, podemos afirmar que o sentido maior dessa Declaração foi o resgate e a proteção da dignidade humana, uma vez que ela traz a previsão de que basta ser um humano para ter dignidade e ser titular dos direitos nela inseridos. 1.2.1. Os direitos humanos fundamentais nas Constituições Brasileiras Alexandre de Moraes26 sintetiza a importância do tema “direitos humanos” na Constituição Brasileira: A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significou mera enunciação de princípios, mas a plena positivação de direitos, a partir dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário para concretização da democracia. Ressaltamos, ainda, que a proteção judicial é absolutamente indispensável para tornar efetiva a aplicabilidade e o respeito aos direitos humanos fundamentais previstos na Constituição Federal e no ordenamento jurídico em geral. Por isso, a grande relevância do tema direitos humanos nas Constituições do Brasil, as quais, paralelamente às evoluções do Direito do Homem, também evoluíram no tempo. No Brasil, a Proclamação da Independência, em 1822, trouxe consigo Constituição do Império de 1824, que, no seu Título VIII, previa um extenso rol de 24 MORAES, 2007. p.17 Ibidem. p.20 26 Ibidem. p.3. 25 18 direitos humanos fundamentais (garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros). O artigo 179 possuía 35 incisos, consagrando direitos e garantias individuais, tais como: o princípio da igualdade; o princípio da legalidade; o direito à liberdade de locomoção; o direito à inviolabilidade do domicílio; a possibilidade de prisão somente em flagrante delito ou por ordem da autoridade competente; o princípio da reserva legal; e a abolição da tortura e de todas as penas cruéis. Importante lembrar que a Proclamação da República trouxe também o Código Criminal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832. Essas legislações, de acordo com José Frederico Marques, substituíram as Ordenações Filipinas e sua tradição legislativa de crueldade e terror: A fundação do Império, abre-se, para o processo penal, um período de reação às leis opressoras e monstruosas da monarquia portuguesa, e do qual o Código de Processo Criminal de 1832 constitui o diploma legal culminante e mais expressivo, síntese que é dos anseios humanitários e 27 liberais que palpitavam no seio do povo e nação. Os direitos humanos fundamentais foram novamente declarados pela 1ª Constituição Republicana de 1891, a qual, em seu Título III, Seção II, previa a Declaração de Direitos. Além dos tradicionais direitos e garantias individuais que já haviam sido consagrados pela Constituição de 1824, podemos destacar as seguintes previsões: a abolição da pena de morte (ressalvadas as disposições da legislação militar em tempo de guerra), o habeas corpus e a instituição do tribunal do júri. A tradição de as Constituições brasileiras reservarem um capítulo para tratar dos direitos e garantias fundamentais, foi mantida na Constituição de 1934, a qual repetiu, em seu art. 113 e seus 38 incisos, um extenso rol de direitos humanos fundamentais, destacando-se, dentre outros: a consagração do direito adquirido; a assistência jurídica gratuita; a irretroatividade da lei penal; o mandado de segurança; e a ação popular. 27 MARQUES, Jose Frederico, Tratado de direito Processual Penal, v. I. São Paulo: Millennium, 1980. p.117. 19 A Constituição de 1937, apesar das características políticas preponderantes à 28 época , também consagrou um grande número de direitos e garantias individuais, inseridos nos 17 incisos de seu art. 122. Visando dar fim aos instrumentos repressivos criados durante o Estado Novo, a Constituição de 1946, que também previa um capítulo específico para os direitos e garantias individuais (Título IV, Capítulo II), passou a utilizar-se de uma nova redação em seu art. 141, caput, que assim proclamava, in verbis: Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes [...] Devido à sua importância, essa nova redação foi utilizada posteriormente pelas demais Constituições brasileiras. Anos mais tarde, com a chegada dos militares ao poder em 1964, houve uma série de mudanças no cenário político brasileiro, era o início do Regime Militar 29. Os novos governantes priorizavam a contenção das oposições políticas, por meio de Atos Institucionais que ignoravam completamente as diretrizes estabelecidas pela Constituição de 1946 – a defesa dos direitos humanos fundamentais. Foi nesse período de exceção que a Constituição de 1967 foi outorgada, com predominância do autoritarismo e do arbítrio político. Este documento autoritário foi largamente emendado em 1969, absorvendo mais instrumentos ditatoriais como os do Ato Institucional nº 5 (AI-5) de 1968. A sua promulgação foi aprovada por um Congresso Nacional mutilado pelas cassações, baseada nas reflexões da conjuntura de guerra fria e focada no combate aos inimigos internos tidos como subversivos (opositores de esquerda), ou seja, o ideal era a teoria da segurança nacional.30 Rompendo com a ordem jurídica anterior, marcada pelo autoritarismo advindo do regime ditatorial, que perdurou de 1964 a 1985, a Constituição brasileira de 1988, no propósito de instaurar a democracia no país e de institucionalizar os direitos humanos, fez com que ocorresse uma revolução na ordem jurídica nacional, 28 Em 1937, com um golpe de Estado, Getúlio Vargas decretou o fechamento do Congresso e anunciou a nova Constituição, a Polaca, inspirada na Constituição fascista da Polônia. Era o início do Estado Novo. 29 O Regime Militar vigorou entre 1964 a 1985, e foi o período da política brasileira em que os militares governaram o Brasil. Tinha como características a falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar. 30 CRETELLA JÚNIOR, José. Elementos do direito constitucional. São Paulo: RT, 2000. p. 21 20 passando a ser o marco fundamental da abertura do Estado brasileiro ao regime democrático e à normatividade internacional de proteção dos direitos humanos. Como marco fundamental do processo de institucionalização dos direitos humanos no Brasil, a Carta de 1988, logo em seu primeiro artigo, erigiu a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental (art. 1º, inciso III), instituindo, com este princípio, uma “pilastra mestre” a todo o sistema jurídico a qual deve ser sempre levada em conta quando se trata de interpretar qualquer das normas constantes do ordenamento nacional. Flávia Piovisan31 assim expressa mesmo pensamento: O valor da dignidade humana impõe-se como núcleo base e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro. Essa nova Constituição, além disso, seguindo a tendência do constitucionalismo contemporâneo, deu um grande passo rumo à abertura do sistema jurídico brasileiro ao sistema internacional de proteção de direitos, quando, no parágrafo 2º, do art. 5º, deixou expresso que, in verbis: § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Essa inovação trazida pela Constituição de 1988, referente aos tratados internacionais de que o Brasil seja parte, assim, além de ampliar os mecanismos de proteção da dignidade da pessoa humana, vem também reforçar e engrandecer o princípio da prevalência dos direitos humanos, consagrado pela Carta como um dos princípios pelo qual a República Federativa do Brasil se rege nas suas relações internacionais, in verbis: Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] II - prevalência dos direitos humanos; Portanto, a Constituição Federal de 1988 passou a reconhecer expressamente, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla 31 PIOVISAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos, São Paulo: Max Limonad, 2003. p.339. 21 fonte normativa: aquela advinda do direito interno (direitos expressos e implícitos na Constituição), e aquela outra advinda do direito internacional (decorrente dos tratados internacionais de que o Brasil faça parte), ou seja, o país assume que os direitos humanos são um tema global. Além das normas constitucionais e da incorporação das normas internacionais, segundo o sistema dos parágrafos 2º e 3º do artigo 5º, da Carta Maior, o ordenamento jurídico nacional dispõe de normas internas próprias, as quais, em boa parte, reafirmam os direitos humanos. Podemos citar como exemplo, a Lei nº 4.898 de 1965, que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade; a Lei nº 9.455 de 1997, que define os crimes de tortura e dá outras providências; e o Decreto nº 7.037 de 2009, que instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH III). O governo também conta com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência República (SEDH/da PR), criada pela Lei nº 10.683 de 2003, que atua no engajamento efetivo do Governo Federal em ações voltadas para a proteção e promoção de direitos humanos. 1.3. TUTELA CONSTITUCIONAL À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO A Constituição Federal consagra o direito à livre locomoção no território nacional em tempo de paz, autorizando diretamente a qualquer pessoa o ingresso, a saída e a permanência. A liberdade de locomoção é um direito fundamental do indivíduo. Esse direito é de importância fundamental, visto que é requisito essencial para que se exerça o direito das demais liberdades. Com grande maestria, Ferreira Filho32 sintetiza o direito à livre locomoção: A liberdade de locomoção, assim impropriamente chamada, pois é o direito de ir, vir e também ficar, é a primeira de todas as liberdades, sendo condição de quase todas as demais. Consiste em poder o individuo deslocar-se de um lugar para outro, ou permanecer cá ou lá, segundo lhe convenha ou bem lhe pareça. Claro que essa liberdade de ir ou ficar termina onde atenta contra o bem geral. 32 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. p.299. 22 A principal tutela legal do direito de locomoção está inserida no artigo 5º, incisos XV e LXI da Constituição Federal de 1988, in verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. [...] LXI - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão ou crime militar, definidos em lei. A destinação constitucional do direito à livre locomoção abrange tanto os brasileiros quanto os estrangeiros, residentes ou não no território nacional. Entretanto, por não se tratar de um direito absoluto, poderá ocorrer, excepcionalmente, a restrição legal do direito de ir e vir, visando preservar a segurança nacional e integridade do território nacional. Na vigência do estado de sítio, previsto no art. 137 da Carta Magna, poderá ocorrer a suspensão temporária e localizada das garantias dos direitos fundamentais. O texto constitucional, em hipótese excepcional, limita o direito de locomoção ao prever no inciso I, do art. 139, a obrigação de as pessoas permanecerem em localidade determinada na vigência do estado de sítio. Importante ressaltar que há a possibilidade da suspensão das garantias dos direitos fundamentais, porém, nunca pode ocorrer a suspensão dos próprios direitos fundamentais. 1.4. INDIVÍDUO TUTELA CONSTITUCIONAL À INCOLUMIDADE FÍSICA DO 23 Proteger a integridade física do indivíduo é uma forma de proteger a vida, como bem expressa José Afonso Silva33: Agredir o corpo humano é um modo de agredir a vida, pois esta se realiza naquele. A integridade física-corporal constitui por isso, um bem vital e revela um direito fundamental do individuo daí por que as lesões corporais são punidas pela legislação penal. A proteção à integridade pessoal está fundamentada no princípio da dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos. A vedação do delito de tortura, presente na Carta Magna, faz parte dos direitos fundamentais de primeira geração34 e constitui cláusula pétrea nos termos do art. 60, parágrafo 4º, IV, da Carta Maior, compondo, assim, seu núcleo intocável. O respeito à incolumidade física do indivíduo encontra-se prevista no bojo dos direitos e garantias fundamentais, mais precisamente no inciso III, artigo 5º, da Constituição de 1988, conforme segue, in verbis: Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. A condenação é tão incisiva que o inciso XLIII, art. 5º, determina que a lei considere a prática de tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça, por ele respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-la, se omitirem. Desse modo, a fim de preservar a integridade do cidadão, nem mesmo o Estado, ente público supremo dotado do poder de punir, está legitimado a, por meio de seus agentes, desrespeitar ou ofender a integridade física, psicológica e/ou moral dos indivíduos. 33 SILVA, José Afonso. Curso direito constitucional positivo, 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p.199. 34 São aqueles que se fundamentam na liberdade, civil e politicamente considerada. São as liberdades públicas negativas que limitam o poder do Estado, impedindo-o de interferir na esfera individual. O direito à integridade física e à liberdade são exemplos. A liberdade é a essência da proteção dada ao indivíduo, de forma abstrata, que merece apenas por pertencer ao gênero humano e estar socialmente integrado (CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Márcio F. Elias; SANTOS, Maria F. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004. p.46). 24 1.5. RELATIVIDADE DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS Com o advento da Constituição Federal, o princípio da dignidade humana passou a ter importância ímpar, sendo considerado a força motriz de todo nosso ordenamento jurídico. É por meio dele que irradiam todos os demais princípios. No entanto, segundo a posição doutrinária majoritária, a dignidade da pessoa humana não possui caráter absoluto. Com isso, queremos afirmar que em determinadas situações devemos, obrigatoriamente, trabalhar com outros princípios que servirão como ferramentas de interpretação, levando-se a efeito a chamada ponderação de bens ou interesses, que resultará na prevalência de um sobre o outro.35 Percebe-se, assim, que a dignidade, como valor individual de cada ser humano, deverá ser avaliada e ponderada em cada caso concreto. Não devemos nos esquecer, contudo, daquilo que deve ser entendido como núcleo essencial da dignidade da pessoa humana e que jamais poderá ser abalado. Assim, uma coisa é permitir que alguém, que praticou uma infração penal, seja privado da sua liberdade pelo próprio Estado; outra coisa é permitir que esse mesmo condenado seja torturado por agentes do governo, com a finalidade de arrancar-lhe uma confissão. Nesse exemplo, a dignidade do indivíduo deverá ser preservada, pois ao Estado foi permitido somente privar-lhe a liberdade, ficando resguardados, entretanto, os demais direitos. Embora constitua inequívoca e grave restrição de liberdade da pessoa, ela será justificada pela necessidade de coibir e prevenir violações da dignidade e direitos fundamentais de terceiros.36 Nesse mesmo posicionamento, transcrevemos, parcialmente, a ementa do seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal: [...] OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a 35 GRECO, Rogério. Atividade Policial: Aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais, 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p.12 36 Ibidem. p.12 25 adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercida em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros. [...] (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança. MS 23452/RJ. Tribunal Pleno, rel. min. Celso de Mello, j. 16.09.99, DJU 12.05.00, p. 20). A própria Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, no seu artigo 4º, já previa que: A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados por lei. A Declaração dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo XXIV, nº 2, também já previa a relativização de direitos e liberdades ao preceituar que: No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. Desse modo, considerando que também o princípio isonômico (no sentido de tratar os desiguais de forma desigual) é corolário da dignidade da pessoa humana, é possível admitir certa graduação e relativização dos diretos e garantias, especialmente quando se tratar de resguardar direitos e garantias de todos os integrantes de uma determinada comunidade. No entanto, não podemos nos esquecer, mais uma vez, que o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana será intangível. 26 2. A LEI Nº 4.898 DE 1965 – O ABUSO DE AUTORIDADE O delito de abuso de autoridade é previsto pela Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965. Esse diploma legal tem por finalidade proteger os cidadãos dos abusos praticados por autoridades públicas ou por seus agentes, que possam comprometer direitos e garantias constitucionais como: liberdade de locomoção, inviolabilidade domiciliar, incolumidade física etc. Dentre esses agentes públicos, um tem importância fundamental para este estudo: os policiais (civis e militares), haja vista os inúmeros casos de abusos cometidos por eles no desempenho da atividade policial. 2.1. ASPECTOS GERAIS DA LEI Nº 4.898 DE 1965 Dispõe o art. 1º da Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965: O direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, contra as autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem abusos, são regulados pela presente Lei. A Lei nº 4.898 de 1965, portanto, além de regular o direito de representação, define os crimes de abuso de autoridade e estabelece a forma de apuração das responsabilidades administrativa, civil e penal. Por isso, é conhecida como Lei de Abuso de Autoridade. Trata-se de legislação que disciplina a responsabilização do agente em três esferas distintas: a administrativa, a civil e a criminal. Jorge César de Assis37, a respeito dessa lei, afirma: “é, inegavelmente, o pesadelo da atividade policial, que, por suas características coercitivas, anda bem próximo da margem da lei”. Entretanto, antes de adentrarmos no tema específico, faz-se necessária, desde logo, uma observação quanto ao nome pela qual esta lei é conhecida: Lei de Abuso de Autoridade. Alguns doutrinadores afirmam haver uma incoerência na terminologia empregada. Para eles, o mais correto seria a utilização da expressão 37 ASSIS, Jorge César de, etii. Lições de direito para a atividade das polícias militares e das forças armadas. Curitiba: Juruá Editora, 2007. p.62 27 abuso de poder no lugar de abuso de autoridade. A terminologia hoje adotada veio a ser consagrada pelo uso. Assim se expressa Paulo Fernando dos Santos38: Inicialmente, cumpre alertar que a doutrina, de um modo geral, reconhece uma impropriedade nessa denominação, porque quando se tem por base uma relação de direito público ou função pública na qual se cometem abusos, correto seria falar-se não em abuso de autoridade, mas abuso de poder. A expressão abuso de autoridade melhor guarida encontraria nos casos de abusos, excessos ou desvios no campo das relações privadas, intersubjetivas. Na realidade, a expressão correta seria “abuso de poder”, pois nem todo funcionário público exerce uma função de autoridade. Não é só que detém um cargo de autoridade que pode ser sujeito ativo desse crime; basta ver o conceito legal de funcionário público. Também os funcionários públicos que não são considerados autoridade pública podem ser sujeito ativo. Pela análise desta lei, podemos concluir que ela possui um caráter subsidiário. Isto porque da prática de um abuso podem nascer consequências nas esferas administrativa, civil e penal. Na área penal, inclusive, as sanções penais pela conduta criminosa revestem-se de pequena carga retributiva ou intimidatória, posto que, no mais das vezes, restringem-se à aplicação de pena pecuniária de pequeno valor ou pena privativa de liberdade entre 10 dias e 6 meses. Por isso, não se pode pretender que a lei de abuso de autoridade absorva, por exemplo, um caso de sequestro praticado por quem que esteja no exercício de uma função pública, ou, noutro exemplo, um policial militar que venha a praticar um cárcere privado ou um crime de tortura. Não faz sentido, desse modo, pretender puni-lo nos termos da Lei de Abuso de Autoridade, deixando de lado a figura extremamente mais severa prevista no Código Penal. Diante disso, os crimes definidos na Lei nº 4.898 de 1965 serão absorvidos sempre que o comportamento possa ser tipificado sob a forma de delitos mais graves.39 Faz-se necessário, ainda, dizer que a Lei de Abuso de Autoridade foi criada para punir pequenos abusos, que não encontravam punição no Código Penal, e que desta feita poderiam ficar impunes. Não podemos nos esquecer também o contexto histórico no qual se insere o diploma em comento, haja vista que ele entrou em vigor no ano 1965, em pleno regime ditatorial. 38 SANTOS, Paulo Fernando dos. Crimes de Abuso de Autoridade – Aspectos Jurídicos da Lei nº 4.898/65. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2003. p.17. 39 Ibidem. p.18 28 Essa Lei ingressou em nosso ordenamento jurídico há mais de quatro décadas, sendo publicada sob a égide do Regime Militar (1964-1985), e tinha como inspiração ideológica a busca pela moralização da função pública e a punição aos pequenos abusos, de modo que as primeiras providências nesse sentido foram, de fato, tipificar os delitos outrora não tipificáveis.40 Foi nesse contexto histórico e sob essa inspiração que a Lei de Abuso de Autoridade foi editada, destinada ao combate da violência exercida pelos órgãos oficiais de controle social. No entanto, em termos práticos, de pouca ou de nenhuma repercussão coercitiva resultaram tais medidas, como bem explana Fernando Capez: A Lei de Abuso de Autoridade foi criada em um período autoritário com intuito meramente simbólico, promocional e demagógico. A despeito de pretensamente incriminar os chamados abuso de poder e de ter previsto um procedimento célere, na verdade, cominou penas insignificantes, passíveis de substituição por multa e facilmente alcançáveis pela prescrição. De qualquer modo, a finalidade da Lei nº 4.898 de 1965 é prevenir os abusos praticados por autoridades, no exercício de suas funções, ao mesmo tempo em que, por meio de sanções de natureza administrativa, civil e penal, 41 estabelece a necessária reprimenda. Com isso, podemos concluir que a Lei de Abuso de Autoridade está ultrapassada. Ela precisa ser repensada, em especial para melhor proteger os direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Maior de 1988, bem como para que se possam tornar realmente efetivas as sanções destinadas a coibir e punir o abuso de autoridade. 2.2. SUJEITOS ATIVO E PASSIVO DO CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE A lei fala em abuso de autoridade. Mas quem seria o sujeito ativo do crime de abuso de autoridade? Os delitos previstos na Lei nº 4.898 de 1965 são considerados crimes próprios, haja vista que somente podem ser praticados por autoridade. 40 SANTOS, 2003. p.19. CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal - legislação penal especial, vol. 4, 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.7 41 29 O conceito de autoridade está descrito no art. 5º da referida lei, in verbis: “Considera-se autoridade, para fins desta lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente.” Desse modo, o sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade deve exercer a função pública, de natureza civil ou militar, não importando a sua transitoriedade ou que não perceba remuneração dos cofres públicos. Trata-se, portanto, de conceito bastante amplo. Mas devemos considerar que o mais importante é a natureza da função exercida pelo agente, e não a forma de investidura na Administração.42 Fernando Capez43 apresenta uma relação de quem deve ser considerado autoridade: Autoridades são, assim: (a) os titulares de cargos públicos criados por lei, regularmente investidos e nomeados, que exerçam função pública; (b) os contratados sob regime diverso do direito público, para o exercício de funções de natureza pública; (c) os mensalistas, diaristas, tarefeiros e qualquer outro nomeado a título precário, desde que exerçam a função pública; (d) qualquer pessoa que, ainda que transitória, precária e gratuitamente, exerça a função pública; (e) o serventuário da Justiça; (f) o comissário de menores; (g) o funcionário de autarquia; (h) o vereador; (i) o advogado encarregado da dívida do Estado etc. (J) o guarda municipal. Damásio de Jesus44 apresenta o conceito de autoridade policial baseado no direito administrativo: Conceito de autoridade policial é aquele com fulcro no direito administrativo, sendo qualquer agente público com poder legal para influir na vida de outrem, o qualificativo „policial‟ serve para designar os agentes públicos, encarregados do policiamento, seja preventivo, seja repressivo. Assim, podemos, lato sensu, conceituar autoridade como todo servidor público dotado do poder legal de submeter pessoas ao exercício da atividade de policiamento. Então, dentro desse contexto, enquadram-se como autoridade policial, os policiais civis ou militares, haja vista que eles são agentes públicos, ou seja, eles são agentes do Poder Público na área da segurança, com capacidade para intervir em ocorrências envolvendo membros de uma coletividade. Um aspecto interessante que deve ser analisado é no que tange à responsabilidade do autor quando ele incidir em uma das figuras descritas nos tipos 42 CAPEZ, 2008. p.31 Ibidem. p.31 44 JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 36 43 30 penais previstos na referida lei, caso este não esteja no exercício de seu cargo ou função. Estaria o agente cometendo o crime de abuso de autoridade? A solução, porém, já está pacificada pelos tribunais: Conforme decidiu a 1ª Câmara do TACrim: Ressalta-se que, para o surgimento do crime de abuso de autoridade, é preciso que o ilícito seja perpetrado no exercício da função (Lei 4.898, de 1965, art. 1º). Imprescindível a existência de íntima conexão entre a violência e o desempenho da função, mesmo porque tal classe de delitos é caracterizada pela violação do dever de exercer corretamente a autoridade pública (RT 423/426). No mesmo sentido a orientação do Colendo STJ: Comete o delito o agente que mesmo não estando no exercício da função age invocando a autoridade do cargo, com exibição da carteira funcional (RT 665/359). Pelo exposto, a autoridade, ainda que fora do exercício da sua função, que invocar os poderes que lhe são conferidos, praticará crime de abuso. Como exemplo, podemos citar a hipótese de um policial que, de folga, detenha ilegalmente uma pessoa, invocando para tal o cargo que ocupa. Neste caso, o agente agiu invocando a sua condição de autoridade e, por isso, deverá responder pelo crime previsto na Lei nº 4.898 de 1965. Portanto, em muitas ocasiões poderá haver a ocorrência do delito em questão, principalmente nos casos em que o agente público se excede, confundindo o poder legal que o cargo lhes atribui, praticando o abuso. Após identificar o sujeito ativo do crime de abuso de autoridade, passemos à análise do sujeito passivo. O sujeito passivo do crime de abuso de autoridade pode ser qualquer cidadão, maior ou menor, capaz ou incapaz, brasileiro ou estrangeiro. De acordo com o ensinamento de Damásio Evangelista de Jesus45, os crimes de abuso de autoridade são de dupla subjetividade passiva: Há dupla subjetividade passiva. Sujeito passivo mediato: é o Estado, titular da Administração Pública. Sujeito passivo imediato: é o cidadão, titular da garantia constitucional lesada ou molestada. É evidente que, à vezes, o Estado, ou outra entidade de direito público, é o único sujeito passivo. Exemplo: atentado ao sigilo de correspondência, em que seja o próprio Estado o seu titular. 45 DAMÁSIO, Evangelista de Jesus, apud FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de autoridade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.22. 31 Importante salientar que, em sendo a vítima uma criança ou um adolescente, o abuso de autoridade poderá configurar, também, alguns dos crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990). 2.3. PENAS – CONSEQUÊNCIAS DO ABUSO DE AUTORIDADE O abuso de autoridade pode implicar responsabilidade administrativa, civil e penal. As sanções para os crimes de abuso de autoridade estão previstas no art. 6º da Lei nº 4.898 de 1965. Para fins administrativos, temos o tratamento no parágrafo 1º, para fins civis temos o parágrafo 2º e para fins penais temos o parágrafo 3º. As instâncias administrativa, civil e penal são autônomas, ou seja, uma eventual punição na área penal não afeta o campo administrativo ou civil e assim sucessivamente. Portanto, nada impede que um policial seja punido nas três esferas por um mesmo fato. No parágrafo 1º, art. 6º, da lei em estudo, temos elencadas as sanções administrativas, as quais serão aplicadas de acordo com a gravidade do abuso. São elas: advertência; repreensão; suspensão do cargo ou função ou posto por prazo de 5 a 180 dias, com perda de vencimentos e vantagens; destituição de função; demissão; e demissão a bem do serviço público. A responsabilidade administrativa resulta da infringência de alguma norma funcional e interessa apenas aos limites internos da Administração Pública. Trata-se de ilícito administrativo que pode gerar punição disciplinar a ser imposta pela autoridade competente.46 No art. 6º, parágrafo 2º, da Lei nº 4.898 de 1965, há a previsão da sanção civil: “a sanção civil, caso não seja possível fixar o valor do dano, consistirá no pagamento de uma indenização de quinhentos a dez mil cruzeiros”. O valor fixado neste dispositivo legal é inaplicável, pois a moeda que os representava desapareceu, não se podendo empreender uma atualização senão por meio de lei. 46 FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de autoridade, 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.98. 32 Do dispositivo em exame se conclui que tal sanção será aplicada pelo magistrado, o qual arbitrará, de acordo com seu livre convencimento, o valor da indenização, devendo levar em conta as pessoas do ofendido e do agente causador do dano, bem como o alcance do dano.47 Portanto, o agente responsável pelo abuso fica obrigado à reparação civil do dano. Não podemos esquecer que um dos efeitos da condenação definitiva é tornar certa a obrigação de reparar o dano (Código Penal, art. 91, inciso I), e que a sentença condenatória transitada em julgado é título executivo judicial no juízo cível (Código de Processo Penal, art. 63). No art. 6º, parágrafo 3º, da mesma lei, estão previstas as sanções penais: Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e penal. [...] § 3º. A sanção penal será aplicada de acordo com as regras dos arts. 42 a 56 do CP e consistirá em: a) multa de cem a cinco mil cruzeiros; b) detenção de 10 dias a 6 meses; c) perda do cargo, com inabilitação para qualquer função pública pelo prazo de até três anos. Quanto à alínea “a”, parágrafo 3º, do art. 6º, onde se lê: “multa de cem a cinco mil cruzeiros”, lê-se somente “multa”, pois o art. 2º da Lei nº 7.209/84 (reforma da Parte Geral do Código Penal) estabeleceu que os valores de multas fixados no Código Penal e nas leis especiais serão substituídos, apenas, pelo termo “multa”. Desse modo, a lei em comento prevê a pena de multa, mas não terá como referência os valores especificados na alínea “a”. O valor agora será obtido pelo critério de dias-multa, de acordo com o art. 49 a 52 e 60 do Código Penal.48 Quanto à pena privativa de liberdade, prevista no art. 6º, parágrafo 3º, alínea “b”: “detenção de 10 dias a 6 meses”, podemos perceber que ela foi fixada em patamar muito baixo, sendo que a pena máxima cominada está prevista em seis meses de detenção. Essa penalidade pode até servir como estímulo para o cometimento de abusos, pois, além de ser irrisória, prescreverá49 em pouco tempo. 47 FREITAS, 2001. p.100 CAPEZ, 2008. p.36 49 A Lei nº 4.898/65 não estabeleceu normas prescricionais específicas, pelo que devem ser aplicadas as regras previstas pelo Código Penal. Assim, para as penas pecuniária e privativa de liberdade, previstas no § 3º, do art. 6º, aplica-se o art. 109, VI, do Código Penal, que estabelece o 48 33 Cumpre lembrar, ainda, que em caso de concurso de crimes, a pena de multa é aplicada distinta e integralmente (Código Penal, art. 72), e que, de acordo com a súmula 171 do Superior Tribunal de Justiça: “cominadas cumulativamente, em lei especial, penas privativas de liberdade e pecuniária, é defeso a substituição da prisão por multa”. Temos, no art. 6º, parágrafo 3º, alínea “c” da lei em estudo, como sanção penal, “a perda do cargo e a inabilitação para o exercício da função pública pelo prazo de até três anos”. Trata-se de pena principal e autônoma a ser aplicada isolada ou cumulativamente com a sanção pecuniária e com a pena privativa de liberdade. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a esse respeito. Para o Colendo Tribunal, a referida pena é principal, não constituindo, portanto, efeito secundário da condenação: 3. A pena de perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública, prevista no artigo 6º, parágrafo 3º, alínea „c‟, da Lei nº 4.898 de 1965, é de natureza principal, assim como as penas de multa e detenção, previstas, respectivamente, nas alíneas „a‟ e „b‟ do mesmo dispositivo, em nada se confundindo com a perda do cargo ou função pública, prevista no artigo 92, inciso I, do Código Penal, como efeito da condenação. 4. Recurso especiais prejudicados, em face da declaração da extinção da punibilidade do crime. (STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Resp 279429/SP, j. 21-10-2003, DJ, 15-12-2003). Já no parágrafo 4º, do mesmo artigo, está a previsão de que as penas previstas no parágrafo 3º poderão ser aplicadas autônoma ou cumulativamente: “As penas previstas no parágrafo anterior poderão ser aplicadas autônoma ou cumulativamente”. Por fim, o parágrafo 5º prevê que “quando o abuso for cometido por agente policial, civil ou militar, poderá ser cominada pena acessória de proibição do exercício da função no local da culpa, pelo prazo de 1 a 5 anos”. Pelo disposto no parágrafo 5º, existe a possibilidade de o policial, civil ou militar, receber sanção diferenciada das demais autoridades. Esta pena é de suma importância, pois, além de afastar o policial do local onde praticou o abuso de autoridade, exercendo uma função preventiva, ela servirá de advertência para os demais policiais do local onde ocorreu o abuso. prazo prescricional em dois anos. (MORAES, Alexandre de. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação especial, 10. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p.24) 34 2.4. OS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE OBJETOS DE ESTUDO A Lei nº 4.898 de 1965 elencou em seus artigos 3º e 4º o rol das hipóteses fáticas para a ocorrência do crime de abuso de autoridade. No entanto, com o objetivo de delimitar este trabalho, tornou-se necessário escolher as situações que nos deparamos com mais frequência no dia a dia das abordagens policiais e que se enquadram no crime de abuso de autoridade. Elegemos, por isso, para análise, as figuras típicas previstas nas alíneas “a” e “i”, do art. 3º: Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; b) à inviolabilidade do domicílio; c) ao sigilo da correspondência; d) à liberdade de consciência e de crença; e) ao livre exercício do culto religioso; f) à liberdade de associação; g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; h) ao direito de reunião; i) à incolumidade física do indivíduo; j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. (grifo nosso) Sobre a relevância das hipóteses fáticas passíveis de serem violadas, previstas nas alíneas do art. 3º, Baltazar Júnior50 se expressa: As alíneas do art. 3º da Lei 4.989/65 fazem referência a vários direitos fundamentais previstos no art. 5º da CF, o que demonstra, significativamente, que os delitos em questão se situam no âmago da tensão entre os direitos individuais e a atuação do Estado. Essa escolha é importante, pois, nas abordagens policiais, esses direitos são constantemente violados. Por isso, a importância de conhecer os limites de atuação desses agentes públicos. Então, podemos indagar: Qual o limite de atuação do policial na abordagem policial sem que ocorra a restrição na liberdade de locomoção do cidadão? Ou, até que ponto o policial pode utilizar-se da força sem agredir a integridade física do indivíduo? 50 BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. 4. ed., Porto Alegre: livraria do advogado, 2009, p.259 35 2.4.1. Atentado à liberdade de Locomoção A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, trata dos direitos e garantias individuais. Dentre os muitos direitos consagrados na Carta Maior podemos destacar a liberdade de locomoção do cidadão, prevista nos incisos XV e LXI: Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens. [...] LXI - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão ou crime militar, definidos em lei. De acordo com o inciso LXI, art. 5º, da Constituição Federal, a prisão somente poderá ocorrer diante de mandado judicial ou em caso de flagrante delito, não podendo o cidadão ser privado de sua liberdade fora das hipóteses legais. A prisão para averiguações51, que já foi prática comum por parte da polícia, também é vedada. Consagrado na Constituição Federal, o atentado à liberdade de locomoção constitui a primeira figura típica que caracteriza o abuso de autoridade na Lei nº 4.898 de 1965, art. 3º, alínea “a”: Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção; [...] 51 Utilizada largamente na prática investigatória pela Polícia Judiciária nos tempos dos governos militares, a "prisão para averiguação", que consistia em cercear a liberdade de locomoção de um cidadão sem que houvesse nenhuma investigação a seu respeito, passou a ser vista como grave violação ao texto constitucional, que não mais admite a prisão senão a decorrida do estado de flagrância ou por ordem da autoridade judiciária competente. Disponível em http://www.acrimesp.com.br/Especiais_024.htm. Acessado em 28 abr. 2010. 36 Configura-se atentado à liberdade de locomoção, qualquer forma de restrição, mesmo que a privação da liberdade não se dê em uma cela, mas em uma sala, corredor ou pátio.52 Entretanto, em situações específicas poderá ocorrer um conflito aparente de direitos: de um lado o poder de polícia do Estado; do outro, a liberdade de locomoção do cidadão. Qual interesse deve prevalecer? Nesse caso, o interesse público prevalece ao interesse particular, o que justifica a restrição da liberdade de locomoção dos indivíduos que, com sua conduta, possam oferecer perigo à paz social. Assim, por exemplo, um policial (atuando dentro legalidade) que aborda um cidadão limitando “temporariamente” o seu direito de ir e vir, não estará cometendo nenhum abuso, haja vista que neste caso deverá prevalecer um bem maior: a segurança pública, ou seja, o interesse público. Portanto, essa liberdade não é irrestrita, pois haverá situações em que ela poderá ser restringida. Outro exemplo bastante claro é o caso da vigência do estado de sítio (art. 139, Constituição Federal) onde as pessoas poderão ser obrigadas a permanecer em locais determinados ou poderão ser detidas em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns. Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos de Freitas, na mesma esteira, expressam: Com efeito, todo cidadão tem o direito de locomover-se, transportando-se para onde deseje, sem limitações, ressalvados os casos expressos em lei ou por imperiosas necessidades ditadas pelo Estado. Tal liberdade não pode ser total, pois necessárias são certas restrições, não só em face da 53 liberdade dos demais indivíduos, como à do Estado. Assim, diante da supremacia do Estado, sempre será necessário observar os casos concretos, a fim de poder distinguir a nem sempre clara faixa que separa os atos discricionários dos arbitrários. O cidadão, entretanto, não está desamparado caso ocorra qualquer situação em que ele se sinta prejudicado em seu direito de locomoção. Neste caso, ele poderá valer-se de um remédio constitucional: o Habeas Corpus, conforme assegura a Carta Maior em seu art. 5º, LXVII: “conceder-se-á habeas-corpus sempre que 52 53 BALTAZAR JÚNIOR, 2009. p.261 FREITAS; FREITAS, 2001. p. 31. 37 alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. De forma concisa, Alexandre de Moraes54 conceitua este remédio constitucional: Portanto, o habeas corpus é uma garantia individual ao direito de locomoção, consubstanciada em uma ordem dada pelo Juiz ou Tribunal ao coator, fazendo cessar a ameaça ou coação à liberdade de locomoção em sentido amplo – o direito do indivíduo de ir, vir e ficar. Portanto, o Habeas Corpus constitui uma garantia da liberdade de locomoção contra ilegalidade ou abuso de poder de autoridade pública. Desse modo, qualquer conduta praticada por uma autoridade, que atente contra a liberdade de locomoção (liberdade de ir, vir e permanecer), que não se enquadre nas hipóteses legais autorizadoras da restrição, configura o crime de abuso de autoridade. Podemos concluir, então, que todo o cidadão tem o direito de se locomover para onde bem entender, desde que respeite o direito dos demais cidadãos e as normas legais vigentes. 2.4.2. Atentado à Incolumidade Física do Indivíduo O direito à incolumidade física tem previsão constitucional no artigo 5°, inciso III, que estabelece: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Essa proteção também está prevista na Lei de Abuso de Autoridade, alínea “i”, do art. 3º: Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: [...] i) à incolumidade física do indivíduo; [...] Esse crime, previsto na lei em comento, para que se enquadre no crime de abuso de autoridade, deve ter como sujeito ativo o agente da administração pública e como sujeito passivo o cidadão, de forma que venha atingir a integridade física deste último, não importando se a violência deixou ou não vestígios ou casou lesões 54 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed., São Paulo:Atlas, 2008, p.124 38 corporais, conforme entendimento de Alexandre de Moraes e Gianpaolo Poggio Smanio: Consiste na ofensa praticada pelo agente da administração, no exercício de um cargo, emprego ou função, contra o indivíduo, de modo a atingir sua integridade física. Irrelevante, no caso, tenha a conduta deixado vestígios, à medida que a violência se caracteriza pelo emprego de força física, maus55 tratos ou vias de fato. Portanto, somente haverá crime se houver abuso ou mau uso da força. Esse crime abrange toda ofensa praticada pela autoridade, que pode ir de uma violência mais leve, como as vias de fato, à uma violência mais grave, como o homicídio. Estão englobadas tanto a violência física como a violência moral (tortura psicológica, emprego de gases, disparo de armas de fogo para o ar, etc.).56 Se, além do atentado praticado pela autoridade, resultarem do abuso de autoridade lesões corporais ou a morte da pessoa, o agente responderá por ambos os crimes em concurso material (duas condutas com dois resultados) conforme entendimento dos tribunais57, segundo o qual o agente deverá responder pelas infrações, somadas as penas previstas para cada tipo penal. Convém lembrar, que nem todo atentado à incolumidade física do indivíduo constituirá o delito em apreço, pois, em caso de necessidade, poderá ocorrer o uso da força. O Código de Processo Penal trata do uso força nos artigos 284 e 292: Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso. [...] Art. 292 Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas. O Código de Processo Penal Militar, em seu art. 234, também traz essa previsão: 55 MORAES, Alexandre de. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Especial, 10. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p.13 56 CAPEZ, 2008. p.17 57 STF, RTJ, 101/595; STJ, 5ª T., Resp 12.614-0MT, Rel. Min. Flaquer Scartezzini, Ementário STJ, 6/696. 39 Art. 234. O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Assim, quando configurada a necessidade, não haverá o crime em estudo, uma vez que a violência empregada pela autoridade terá por finalidade a execução da lei ou de ordem judicial, conforme lição de Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos de Freitas: É de todo evidente que as autoridades policiais necessitam de certo arbítrio para poder alcançar seus objetivos e realizar sua funções. Seria fechar os olhos à realidade e torná-los ineficientes impedi-las de assim agir. Mas este arbítrio deve ser exercido dentro dos limites da sua necessidade, sob pena 58 de, ocorrendo o excesso, constituir crime. Outra lei que deve ser analisada é a Lei nº 9.455 de 1997 – Lei de Tortura, tendo em vista a proximidade entre os crimes de tortura e o de abuso de autoridade, o que pode levar a uma série de problemas de interpretação. Apesar de tais institutos jurídicos serem bastante próximos, eles estão definidos em leis distintas. No entanto, pelo posicionamento da doutrina, podemos dizer que se o atentado à incolumidade física for crime de tortura, a tortura absorverá o crime de abuso de autoridade. Nesta mesma linha, se posicionam Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos de Freitas: Se a violência praticada pela autoridade ou quem a exerça for cometida com a finalidade de obter informação, declaração ou confissão, ou, ainda, para provocar ação ou omissão de natureza criminosa, o delito a se configurar será o da tortura, previsto na Lei 9.455/97, que regulamentou o inciso XLIII, 59 do art. 5º da CF. Capez, na mesma esteira, traz um exemplo pertinente ao tema em comento: Com efeito, se um policial, por exemplo, constranger um criminoso com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação, declaração ou confissão, haverá a 60 configuração do crime previsto no art. 1º, I, a, da Lei 9.455/97. Portanto, nas relações entre o Estado e os cidadãos, o uso da força é permitido para garantir a paz social, desde que a polícia atue empregando a força comedida, proporcional ao risco representado pela resistência alheia à autoridade 58 FREITAS; FREITAS, 2001. p. 57 Ibidem. p.59 60 CAPEZ, 2008. p.19 59 40 policial, ou seja, este agente público deve atuar dentro dos princípios da legalidade, da proporcionalidade e, principalmente, respeitando a dignidade da pessoa humana. 2.5. VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA (ART. 322 DO CÓDIGO PENAL). A violência arbitrária está prevista no art. 322 do Código Penal: “Praticar violência, no exercício de função, ou a pretexto de exercê-la”. No entanto, tendo em vista a semelhança desse dispositivo com o art. 3º, alínea “i”, da Lei nº 4.898 de 1965, surgiu a dúvida se o art. 322 do Código Penal havia sido revogado. Duas correntes doutrinárias e jurisprudenciais se formaram com vistas a solucionar esse conflito de normas. O entendimento majoritário da doutrina61 é que o art. 322 do Código Penal foi revogado tacitamente pela mencionada lei especial, embora na jurisprudência exista uma corrente em sentido contrário62. O doutrinador Cezar Roberto Bitencourt63 ao comentar o art. 322 do Código Penal também defende a revogação do referido artigo penal: É objeto de discussão doutrinária e jurisprudencial a vigência do art. 322 do CP após o advento da Lei nº 4.898/65, que dispõe sobre o abuso de autoridade. Entendemos revogado o art. 322 em consonância com a doutrina (Damásio de Jesus, Questões criminais, p.14; Gilberto e Vladimir Passos de Freitas, Abuso de Autoridade, p. 120; Júlio Fabrini Mirabete, Manual de Direito Penal. v.3, p.130). Reina grande divergência na Jurisprudência: a) a favor: (JTAC, 11:152, 14:372, 31:340 e 46:371, TR 376:246, 382:206, 533:565 e 592:326); b) contra: (STF, RT, 449:504, TACrim, RT, 609:344; TJRJ, RT 520:466). Dentro da estrutura do Código Penal, o art. 322 está entre os crimes funcionais, ou seja, é um crime que só pode ser praticado por funcionário público e que ofende a administração pública em geral. Embora a pena privativa de liberdade prevista na Lei de Abuso de Autoridade, a qual prevê uma pena de 10 dias a 6 meses, seja menor que a pena prevista no 61 JESUS, Damásio E. De. Direito penal, parte especial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p.186; MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, parte especial. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p.342; FREITAS; FREITAS, 2001. p.171; BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2000, p.1095. Em sentido contrário: NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 272. 62 No sentido de que houve a revogação do art. 322 do CP: RT, 405/417, 512/343, 592/326. Em sentido contrário: RT, 472/392, 511/322, 520/466. 63 BITENCOURT, 2000. p. 1095 41 Código Penal para o crime de violência arbitrária, o qual prevê uma pena de 6 meses a 3 anos, as outras sanções impostas pela lei de abuso, como a perda do cargo e inabilitação para o exercício da função pública pelo prazo de até três anos etc., tornam a punição mais eficiente.64 Pelo exposto, devemos entender que a corrente que deve vigorar é a que prega a revogação do art. 322 do Código Penal, pois a violência praticada no exercício da função pública foi abarcada pelo delito especial da Lei de Abuso de Autoridade. 64 SANTOS, 2003. p.58 42 3. ASPECTOS GERAIS DA ATIVIDADE POLICIAL A atividade policial é de suma importância para a preservação da ordem pública. O Estado, por meio dos órgãos de segurança pública, faz o uso da força física legítima para garantir a paz social, a qual é assegurada pela Carta Maior, no seu art. 144, que trata da segurança pública. Na verdade, tratar do tema “polícia” é sempre problemático, pois estamos tratando de uma atividade bastante complexa, onde se confrontam os direitos do cidadão e a supremacia do Estado, neste ato representado pelo poder de polícia. Não podemos nos esquecer que é tênue a linha que separa a legalidade da arbitrariedade na atividade policial, principalmente no momento da abordagem policial. A abordagem policial é um momento de bastante crítico e tenso tanto para o policial quanto para o cidadão abordado, e poderá, dependendo das pessoas envolvidas e da situação, produzir reações agressivas. Desse procedimento policial poderá resultar a prisão de pessoas em flagrante delito, a troca de tiro com criminosos, a apreensão de drogas e munições, etc. Poderá resultar, também, em abusos, pois há policiais que se afastam de sua missão constitucional e aproveitam-se do poder concedido pelo Estado para praticar excessos. Assim, faz-se necessário conhecer quais os reais poderes e limites de atuação desse agente público, para que ele não venha a cometer abusos e, consequentemente, violar os direitos fundamentais do cidadão. 3.1. SEGURANÇA PÚBLICA Baseado na ideia dos contratualistas, por intermédio do pacto social, cada indivíduo deveria abdicar parte de sua liberdade em prol de um contrato coletivo, cuja finalidade maior era a de garantir a todos os pactuantes o direito à vida. Um desses meios de garantir a vida seria por meio do direito à segurança. O Estado, 43 então, com o objetivo de fornecer a paz social, assumiu a tarefa de garantir ao cidadão a segurança. No entanto, hoje, no Brasil, essa paz social ainda não foi alcançada, pois é notório o aumento da violência e da criminalidade no país. Talvez por isso, a segurança pública seja um dos assuntos mais discutidos em nosso país. A situação é tão grave que já se ouve o clamor da população pela presença das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) nas ruas65, mesmo sabendo que a sua formação não é direcionada ao confronto com criminosos. Prevista no art. 144 da Constituição Federal, a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é será exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, in verbis: Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares Conforme ensina o constitucionalista José Afonso da Silva a “segurança pública é a manutenção da ordem pública interna” 66 . Em nome desta segurança pública se tem praticado as maiores arbitrariedades, e com a justificativa de garantir a ordem pública, na verdade, muitas vezes, o que se faz é desrespeitar direitos fundamentais da pessoa humana, quando apenas é autorizado o exercício regular do poder de polícia. Originariamente, o termo polícia origina-se do grego politeia e significava o conjunto de funções necessárias ao funcionamento e à conservação da cidadeestado (polis). 65 No Rio de Janeiro, houve duas experiências: na ECO92 (2ª Conferência Mundial sobre Meio Ambiente, em 1992) e na Operação Rio, em 1994. “Durante os dias em que foram realizadas as atividades da “ECO92”, a cidade foi patrulhada pelas Forças Armadas. Este fato, com a adicional manipulação dos meios de comunicação, criou no imaginário social – não apenas dos cariocas, mas de todos os brasileiros - uma sensação irreal de paz e segurança que até hoje é lembrada quando os segmentos mais conservadores e reacionários apresentam a intervenção das Forças Armadas nas ruas como solução eficaz para o combate ao crime... Em 1994, houve a presença do Exército nas favelas e subúrbios do Rio de Janeiro, a chamada Operação Rio, que se mostrou um fracasso no que se refere aos objetivos anunciados. Levou pânico aos moradores de favela, apesar de a mídia tentar vender uma imagem simpática dos soldados...” DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e Segurança: Entre Pombos e Falcões. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p.153 66 SILVA, 2007. 44 Entretanto, hoje, principalmente no Brasil, a expressão polícia está ligada mais a violência e a repressão. Nesse sentido, se manifesta Pereira67, nos seguintes termos: “A polícia é a instituição estatal incumbida do controle social formal, mediante o uso da força física permitida.” 68 Nessa mesma concepção, podemos dizer que a polícia é a instituição do Estado que detém o monopólio da violência física legítima. No Brasil, as polícias são órgãos do Estado, com a finalidade constitucional de preservar a ordem pública, protegendo as pessoas e seus patrimônios contra os atos ilegais, e, ainda, com a finalidade de realizar investigações e reprimir os crimes, controlando, enfim, a violência. O mais importante, contudo, sendo a polícia instrumento de um Estado Democrático de Direito, é o seu dever de observar igualmente a democracia e o Direito, vinculando-se aos seus princípios e regras. Essa vinculação decorre de sua inserção como órgão na Administração Pública, e, como tal, deve se vincular aos princípios fundamentais da Constituição Federal. 3.1.1. As Forças Policiais no Brasil Com a finalidade de delimitar este trabalho, resolvemos enfatizar os trabalhos das policias civil, federal e militar, principalmente esta última, pois, devido à sua atividade ostensiva é ela que, no dia a dia, tem um maior contato com a população. As instituições policiais – a Polícia Federal, a Polícia Civil e a Polícia Militar – são órgãos tradicionais do Estado, dedicados à aplicação da lei e ao controle da ordem pública. As atribuições de cada uma dessas polícias estão previstas na Constituição em seu art. 144, parágrafos 1º, 4º e 5º, respectivamente. A Polícia Federal, organizada e mantida pela União, tem como responsabilidade, dentre outras: apurar infrações penais em detrimento de bens e serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas; combater o crime organizado, principalmente aqueles ligados às fronteiras 67 68 PEREIRA, Eliomar da Silva. Revista Brasileira de Ciências Criminais 2009. n. 78. Ibidem. p.230. 45 nacionais: tráfico de seres humanos, contrabando de armas, tráfico de drogas ilícitas, trabalho escravo, bem como os crimes políticos. Ela atua em todo território nacional, principalmente em portos, aeroportos e áreas alfandegárias. A Polícia Civil e a Polícia Militar são órgãos da Administração Pública dos Estados. Cada Estado mantém a sua própria polícia, seu efetivo e suas políticas. As polícias do Distrito Federal e dos Territórios serão organizadas e mantidas pela União, conforme art. 21, inciso XIV, da Carta Maior. A Polícia Civil, dirigida por delegado de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Assim, além de auxiliar o Poder Judiciário cabe a essa polícia exercer uma função de natureza investigativa. Na lição de Denílson Feitoza, ele destaca que: a Constituição utilizou a expressão polícia judiciária no sentido original com o qual ingressou em nosso idioma há mais de cem anos, ou seja, como órgão que tem o dever de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens judiciárias relativas à execução de mandado de prisão ou mandado de busca e apreensão, à condução de presos para oitiva pelo juiz, à condução 69 coercitiva de testemunhas. À Polícia Militar cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. Ela realiza o policiamento de rua e as intervenções em desordens, tumultos e manifestações públicas e coletivas. Ela também atua no policiamento de trânsito de veículos. A Constituição de 1988, art. 144, parágrafo 6º, colocou as polícias Militares como força auxiliar e reserva do Exército. Diferentemente da Polícia Civil, a Polícia Militar é marcada por uniformes, símbolos, veículos caracterizados e pelo desenvolvimento de táticas que propiciem a maior visibilidade possível e a demonstração de força. Seus integrantes seguem um modelo de comando baseado na hierarquia e disciplina e de formação semelhante ao modelo das Forças Armadas. De maneira simplificada, o objetivo da dessa polícia consiste na atuação anterior à prática de um crime, no sentido de evitá-lo. Portanto, dentre essas instituições, podemos destacar que a Polícia Militar é a que está em maior evidência, e isso pode ser explicado por dois motivos: primeiro, 69 FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal. Niterói: Impetus, 2009. p.171. 46 porque ela conta com efetivo70 policial bem maior que as outras duas forças policiais – Federal e Civil; depois, porque sua atividade exige uma maior exposição nas ruas. Por isso, ela tem um contato maior com a população, ou seja, essa relação polícia x cidadão é mais constante com a Polícia Militar. 3.2. A HERANÇA DOS REGIMES POLÍTICOS DITATORIAIS De acordo com Souza71 “no Brasil, assim como na América Latina, as organizações policiais sofreram forte influência dos regimes ditatoriais e somente recentemente algumas passaram a ser remodeladas pelos governos democráticos.” As políticas do Estado Novo, no período de 1937 a 1945, e a Ditadura Militar no Brasil, que teve início em 1964 e perdurou por quase 20 anos, foram significativos na formação da polícia brasileira e na sua natureza violenta de atuação. Esses períodos de excepcionalidade política deixaram um legado triste para nossas polícias, por isso, hoje, polícia e repressão são duas palavras que estão intimamente interligadas. A institucionalização de determinadas práticas não democráticas ou fora dos padrões exigíveis ao profissionalismo policial, dificulta os processos de reforma. Isso explica o fato de que, mesmo após a substituição do regime ditatorial pelo Estado Democrático de Direito, não se observam alterações nos meios e nas formas de atuação das nossas polícias. Com efeito, muitos policiais ainda estão habituados com os procedimentos estabelecidos no período da ditadura. Nesse contexto, ainda há muita resistência interna que atrapalha o estabelecimento de novas estruturas que poderiam mudar as organizações policiais e, consequentemente, seus modos de atuação. Hélio Bicudo72 expressa o seu descontentamento com a polícia brasileira: 70 Por exemplo, no Distrito Federal, atualmente, a Polícia Militar possui um efetivo de 15 mil ativos e a Polícia Civil um efetivo aproximado de seis mil. Disponível em: <http://www.pmdf.df.gov.br/?pag=noticia&txtCodigo=4701>. Acesso em: 02 mai. 2010. 71 SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Revista Brasileira de Ciência Criminais n. 51 – Segurança pública, polícia e violência policial. Revista dos Tribunais, 2004. p.263 72 BICUDO, Hélio. A polícia e o uso da força letal. Revista de Direito Constitucional n. 3, 2004. p.709 47 No sistema atual, em decorrência de uma organização instituída durante a ditadura militar, voltada para a segurança do Estado, a polícia, dividida em entre polícia civil e militar, não mais preenche as necessidades de segurança reclamadas pela sociedade. Vale lembrar, por exemplo, que a polícia militar, em nosso país, foi criada por meio da união da Força Pública Estadual com a Guarda Civil, na oportunidade do Golpe de 1964. Constitui-se, assim, em uma milícia auxiliar do Exército a fim de conter as manifestações populares e os movimentos de guerrilha estimulados pelos ideais comunistas.73 A polícia, na verdade, não consistia em um órgão de conservação e de garantia da paz e da tranquilidade pública. Era, na verdade, um órgão de repressão ao cidadão, o qual era visto como um inimigo do Estado, incluídas entre as suas performances a prática da tortura e o desaparecimentos dos opositores do regime. Desde o fim do regime militar ainda não se ousou mudar esse aparelho de segurança estabelecido. A polícia militar é sua herdeira principal, tendo em vista que seus treinamentos de formação se assemelham aos treinamentos de guerra. Eles são mais militares do que policiais. Assim, com esse modelo, a polícia nas ruas não servirá à prevenção dos crimes, mas sim à sua repressão.74 Este mesmo pensamento é expresso por Luiz Amaral: A formação do militar, que é essencialmente profissional da guerra, não deve ser confundida com a do policial, mesmo porque o mais cruel dos bandidos não é o inimigo mortal a ser eliminado (senão a ser preso) como é fato normal e decisivo nas guerras. A essência da guerra é a eliminação do inimigo, a essência da missão policial é preservar a ordem pública e prender o criminoso, nada mais que isso... Essa confusão na formação e na rotina operacional do policial explica muitas de nossas crises no sistema de 75 segurança pública brasileiro. Podemos afirmar que a violência policial é tolerada por grande parte da sociedade. Essa tolerância acaba se transformando em apoio à violência policial além de criar obstáculos para a reforma das polícias. Essa prática nociva, aos olhos de algumas autoridades públicas e de certos setores da sociedade, é encarada como um meio legítimo empregado na guerra contra o crime. 73 BRUTTI, Roger Spode. Revista IOB de direito penal e processo penal. Ano X, nº 55, Abr-Maio 2009. p.9. 74 BICUDO, 2004. p.711 75 AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Direito e segurança pública – a juricidade operacional da polícia. Brasília: Consulex, 2003. p.60. 48 Entretanto, esse tipo de pensamento acaba por criar um círculo vicioso, pois a imagem de polícia autoritária, com autorização do Estado para usar da violência, sobrevive no imaginário coletivo da população, o que será refletido na formação do policial recém chegado na instituição, pois o policial é um ser oriundo da sociedade em que vive e reflete o pensamento dessa sociedade. Com grande maestria Jorge da Silva corrobora com essa tese: A ideia de que a segurança pública é sinônimo de polícia, e de que polícia é sinônimo de força, além de ser nutrida por boa parte da população, também o é por um grande número de autoridades e operadores do setor. Tendo em vista que os Estados são os principais responsáveis por lutar contra a insegurança, é nesse âmbito que se percebe mais nitidamente como essa idéia é prejudicial, e como a pretensão de enfrentar o crime e a violência 76 apenas com a policia resulta no aumento desses males. Por isso, o despreparo de agentes policiais devido à formação deficitária proporcionada pelo Estado, transforma aqueles que deveriam ser protetores da população em vilões fardados, que se utilizam da força contra aqueles que não têm como se defender, principalmente pobres e negros, o que indica o seu caráter seletivo e classista: A predominância de uma imagem negativa da polícia em todas as classes sociais também indica que os pobres, negros, índios, populações carentes, setores sociais “vulneráveis”, estão submetidos a maiores arbitrariedades e maus tratos, enquanto as classes mais abastadas recebem um tratamento 77 melhor. Desse modo, a polícia brasileira e a sua história de violência e arbitrariedade contrastam negativamente com a consolidação de uma sociedade democrática, com um Estado de Bem-Estar Social, com uma ordem baseada na cidadania e no respeito aos direitos humanos.78 3.3. ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL De acordo com o art. 23, inciso III, do Código Penal não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento do dever legal. 76 SILVA, Jorge da. Criminologia Critica – Segurança e Polícia. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p.194. 77 DORNELLES, 2003. p. 83. 78 Ibidem. p. 77. 49 Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato: [...] III – em estrito cumprimento de dever legal. O Código Penal Militar, no art. 42, inciso III, também traz a mesma previsão: Art. 42. Não há crime quando o agente pratica o fato: [...] III - em estrito cumprimento do dever legal; Trata-se de uma causa de excludente de ilicitude. Quem cumpre um dever legal dentro dos limites impostos pela lei obviamente não pode estar praticando ao mesmo tempo um ilícito penal, a não ser que aja fora daqueles limites.79 O Código Penal não definiu o conceito de estrito cumprimento do dever legal e a sua conceituação coube à doutrina. Fernando Capez80 assim define o estrito cumprimento do dever legal: “causa de exclusão da ilicitude que consiste na realização de um fato típico, por força do desempenho de uma obrigação imposta por lei.” O dever legal é uma obrigação imposta por lei, significando que o agente, ao atuar tipicamente, não faz nada mais do que cumprir uma obrigação. Entretanto, para que esta conduta, embora típica, seja lícita, é necessário que esse dever seja derivado direta ou indiretamente de lei. Pode, portanto, constar de regulamento, decreto ou qualquer ato administrativo infralegal, desde que sejam originados da lei. Esse dever também pode ser emanado de decisões judiciais, que são determinações emanadas do Poder Judiciário em cumprimento da ordem legal.81 O cumprimento estrito, por sua vez, deve ocorrer nos exatos termos da lei, não podendo em nada ultrapassá-los, ou seja, há limites para que tal obrigação seja cumprida, e o agente obrigado só dever proceder até esse exato limite. Assim, exige-se que o agente atue dentro dos rígidos limites que obriga a lei. Ultrapassando esses limites, desaparece a excludente, e os excessos cometidos pelos agentes poderão constituir crime de abuso de autoridade (Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965), ou delitos previstos no Código Penal. 79 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. 10. ed. rev. e atual. vol. I. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 290. 80 Ibidem. p.290. 81 Ibidem. p.290 50 Portanto, para que a haja a excludente é necessário que o executor seja um funcionário público ou agente público que age por ordem da lei, tais como os policiais e oficiais de justiça. Não será excluído o particular quando ele estiver exercendo a função pública, por exemplo: perito, jurado ou mesário da Justiça Eleitoral. Dessa forma, agem em estrito cumprimento do dever legal os policiais que empregam força física para cumprir o dever (evitar fuga de presídio, impedir a ação de pessoa armada que está praticando um ilícito ou prestes a fazê-lo, controlar a perturbação da ordem pública etc.).82 Importante também salientar que se exige o elemento subjetivo nessa excludente, ou seja, o agente deve ter conhecimento de que está praticando um fato em face de um dever imposto pela lei. Caso contrário, o fato será considerado ilícito. Portanto, o agente policial, que faz parte da Administração Pública, deve exercer a sua missão de acordo com o que está previsto na legislação, a fim de cumprir a missão constitucional atribuída aos órgãos de segurança pública. Para a consecução deste objetivo, o agente policial que cumprir a determinação legal somente poderá valer-se de meios autorizados pela ordem jurídica e de modo que atinja, o menos possível, o interesse dos particulares, com atenção especial à não violação dos direitos fundamentais, salvo na medida expressamente permitida pela Constituição Federal. Então, desde que o policial aja com proporcionalidade e razoabilidade e dentro do estrito cumprimento do dever legal, fica excluída a ilicitude da conduta, conforme previsão do artigo 23, inciso III, do Código Penal e artigo 42, inciso III, do Código Penal Militar. 3.4. PODER DE POLÍCIA Desde que o homem concebeu a ideia de Estado, nasceu também a ideia de que deveria fazer parte de seu próprio conceito a existência de um poder superior para fazer frente aos membros da coletividade. 82 MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal – parte geral. vol. I, 24 ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2007. p.185 51 Essa ideia se baseia no entendimento de que a vida em sociedade traz aos particulares algumas limitações, pois, em muitas ocasiões, o interesse individual do cidadão deve ceder lugar ao interesse coletivo. Com fundamento no poder de polícia vigora o princípio da predominância do interesse público sobre o particular, ou seja, é a supremacia da Administração sobre os administrados.83 Pelo conceito moderno, adotado pelo direito brasileiro, Di Pietro84 conceitua o poder de polícia como sendo “a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”. Esse interesse público compreende muitos setores da sociedade, tais como a segurança, a moral, a saúde, o meio ambiente, o patrimônio cultural, a propriedade, etc. O conceito legal de poder de polícia encontra-se no artigo 78 do Código Tributário Nacional, in verbis: Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder. O poder de polícia pode incidir em duas áreas de atuação do Estado: na área administrativa e na área judiciária. A diferença principal consiste que a polícia administrativa tem caráter preventivo e a polícia judiciária tem caráter repressivo. A primeira tem por objetivo impedir as ações anti-sociais, e é regida pelo Direito Administrativo, incidindo sobre bens, direitos ou atividades; a segunda tem por objetivo punir os infratores da lei penal, e é regida pelo Direito Processual Penal, incidindo sobre pessoas.85 Importante a explanação de Amaral sobre essa diferença de atuação das polícias administrativa e judiciária: 83 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 126 Ibidem. p.129 85 Ibidem. p.129 84 52 A polícia administrativa (antítese da judiciária) tem por objeto a manutenção habitual da ordem pública em cada lugar e em cada parte da administração geral. Ela tende, no âmbito da segurança pública, principalmente a prevenir os delitos e as desordens. A polícia judiciária investiga os delitos que a polícia administrativa não pôde evitar que fossem cometidos, colige as provas e entrega os autores aos tribunais incumbidos de puni-los. Na verdade, a atividade de qualquer polícia é sempre administrativa e nunca judiciária (daí por que vinculadas ao executivo, jamais ao Poder Judiciário) embora proceda por normas de Direito Processual Penal, eis que seu serviço é aviar a melhor atuação do jus puniendi cujo titular é o Estado e que é exercido pelo Ministério Público, mas julgado e decidido pelo Poder 86 Judiciário. O poder de polícia, mesmo que seja discricionário, esbarra em algumas limitações impostas pela lei, pois não é concebível que o exercício do poder de polícia desrespeite direitos e garantias individuais. O poder de polícia possui limitações que, se ultrapassadas, levam ao exercício anormal do poder administrativo, levam à arbitrariedade, ao abuso de autoridade, e sujeita o agente público responsável às sanções legais, de natureza administrativa, civil e criminal.87 Para Di Pietro, alguns autores indicam regras a serem observadas pela polícia administrativa, para não eliminar os direitos individuais, são elas: 1. A da necessidade, em consonância com a qual a medida de polícia só deve ser adotada para evitar ameaças reais ou prováveis de perturbações ao interesse público; 2. A da proporcionalidade, já referida, que significa a exigência de uma relação necessária entre a limitação ao direito individual e o prejuízo a ser evitado; 3. A da eficácia, no sentido de que a medida deve se adequada para 88 impedir o dano ao interesse público. Desse modo, o poder de polícia só deve ser exercido para atender ao interesse público, não sendo válido quando desproporcional ou excessivo em relação aos direitos do cidadão. 3.4.1. Características do Poder de Polícia 86 AMARAL, 2003. p.71. MUKAI, Toshio. Direito administrativo sistematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 96. 88 DI PIETRO, 2006. p. 133 87 53 O poder de polícia possui certos atributos específicos: a discricionariedade, a auto-executoriedade e a coercibilidade. Às vezes, a lei deixa certa margem de liberdade de apreciação quanto a determinados elementos, como o motivo ou o objeto, mesmo porque ao legislador não é dado prever todas as hipóteses possíveis a exigir a atuação da polícia. Desse modo, em grande parte dos casos concretos, a Administração terá que decidir qual o melhor momento de agir, qual o meio de ação mais adequado, qual a sanção cabível diante das previstas na norma legal. Nessas circunstâncias, o poder de polícia será discricionário.89 A auto-executoriedade é a possibilidade que a Administração tem de, com os próprios meios, pôr em execuções as suas decisões, ou seja, a Administração não precisa recorrer previamente ao Poder Judiciário para tomar suas decisões. Importante frisar que a auto-executoriedade não existe em todas as medidas de polícia. Para que a administração possa se utilizar dessa faculdade, é necessário que a lei a autorize expressamente, ou que se trate de medida urgente, sem a qual poderá ser ocasionado prejuízo maior para o interesse público.90 Quanto à coercibilidade, esta é indissociável da auto-executoriedade. O ato de polícia só é auto-executório porque dotado de força coercitiva. A coercibilidade é imposição imediata ao administrado da obrigação de atender fielmente à determinação contida no ato, sob pena de cumprimento forçado. Desse modo, as medidas de polícia, de natureza imperativa, justificam até mesmo o uso de força policial para executá-las.91 3.5. ABORDAGEM POLICIAL No dia a dia da atividade policial a abordagem policial é uma constante na relação entre a polícia e o cidadão. Trata-se de uma forma de intervenção que atinge as liberdades públicas. Márcio Luiz Boni, assim define a técnica da abordagem policial: 89 DI PIETRO, 2006. p. 130. Ibidem. p. 131. 91 MUKAI, Toshio, 2000. p.97 90 54 A abordagem policial pode ser compreendida como atividade material desempenhada pelas autoridades legalmente investidas nas funções públicas e dotadas de competência para a ação preventiva e repressiva, com fundamento no poder de polícia, visando à preservação da ordem 92 pública. Embora haja previsão legal, não podemos dizer que se trata de uma situação agradável. Por isso, é compreensível entender que um cidadão honesto se sinta ofendido ao ser abordado por um policial. Assim, a abordagem policial nos leva a uma discussão sobre tal procedimento policial. De acordo com o Manual Básico de Técnicas Operacionais Policiais da Academia Nacional de Polícia a abordagem é utilizada para averiguações, para efetuar prisões em flagrante, para cumprir mandados de busca, bem como, destinase à apreensão e à prisão. A abordagem é também conhecida como técnica de aproximação e domínio de pessoas, veículos e edificações.93 A abordagem pessoal é realizada a partir do surgimento de fundadas suspeitas, flagrante delito ou cumprimento de mandado de prisão, sendo a ação policial direcionada a uma ou mais pessoas. Ela tem por objetivo levantar subsídios para uma investigação policial em curso ou atender às circunstâncias de momento. Durante a sua realização poderá resultar em prisão em flagrante, caso seja encontrado com a pessoa abordada material de origem ilícita, ou em termo circunstanciado em decorrência de desacato, desobediência e resistência. Interessante é o termo “fundada suspeita”, pois não há normas específicas definindo o que pode ser a fundada suspeita, um dos requisitos para que possa ocorrer a abordagem policial. Assim, os critérios para “selecionarem” locais e pessoas que serão alvos de revistas policiais estão resguardados no poder discricionário dos policiais. A abordagem também poderá ocorrer em veículos com a finalidade de interceptá-los e vistoriá-los. Esse tipo de abordagem também é realizado com o intuito de averiguar práticas delituosas e efetuar prisões. Essas operações policiais também são conhecidas como “blitz”, “batida” ou “barreira”. 92 BONI, Márcio Luiz. Revista da faculdade de direito de campos, Ano VII, N° 9 - Dez. 2006. p. 639. Manual básico de técnicas operacionais policiais da academia nacional de polícia - polícia federal, 2006. p. 7. 93 55 Portanto, a abordagem policial, em pessoas ou veículos, não constitui abuso, desde que o policial não restrinja o direito de ir e vir do indivíduo por espaço de tempo exagerado ou use a força sem necessidade: Os agentes policiais devem compenetrar-se de que se usam a força na estrita medida da necessidade, pena de descambar para a arbitrariedade violenta e agressão, que não se confunde com discricionariedade. Assim, responde por abuso de autoridade o policial que, a pretexto injustificado, detém alguém mediante emprego de força física e agressões, máxime porque, embora possa o agente da lei, nas hipóteses legais, suprimir a liberdade do cidadão, impõe-se o respeito à incolumidade física e às condições primárias de vida do detido. (TACRIM-SP- AC - Rel. Geraldo Gomes- JUTACRIM 44/425). Dessa forma, a autoridade policial não pode deter uma pessoa por prazo superior aos trâmites normais e burocráticos que visam identificar o suspeito, nem pode atingir sua integridade física fora das hipóteses legais. Da mesma forma, não poderá haver abordagem ou prisão baseada em mera suspeita. Por isso, nas abordagens de rotina, as autoridades policiais não podem agir suprimindo direitos dos cidadãos, tomando medidas abusivas e ilegais sob a simples justificativa de interesse social de segurança pública. A realização da abordagem policial deve ter como base a regra geral da liberdade individual do cidadão, que se encontra amparada nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da integridade física, da liberdade de locomoção e da presunção de inocência, consagrados, respectivamente, nos artigos 1° e 5°, incisos III, XV e LVII da Carta Magna. No entanto, haverá momentos em que outros direitos apresentem-se mais explícitos, por se revestir do interesse público, nestes casos, um princípio pode ceder passagem ao outro, permitindo a relativização aos direitos fundamentais enunciados, por intermédio da atuação preventiva ou repressiva, devidamente sujeita aos limites legais e razoáveis. Desse modo, visando resguardar os princípios que regem o ordenamento jurídico, nas abordagens policiais são impostos limites à discricionariedade da administração, para que, assim, o ato de polícia não se converta em abuso ou excesso. Assim, todo e qualquer agente público, principalmente o agente policial, só pode agir submetido aos princípios jurídicos e éticos que norteiam a atividade pública. Essa atuação só se dará, legitimamente, ao abrigo dos princípios da 56 razoabilidade, da proporcionalidade e, principalmente, da legalidade, pois na atividade pública não há liberdade de atuação, mas sim vinculação à lei. 3.5.1. Busca Pessoal A busca em pessoas, em veículos e em domicílios é uma constante na atividade policial. No entanto, não se admitirá que ela seja arbitrária ou desnecessária. O Código de Processo Penal brasileiro especifica duas modalidades de busca: a domiciliar e a pessoal, in verbis: Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal. § 1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para: a) prender criminosos; b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; g) apreender pessoas vítimas de crimes; h) colher qualquer elemento de convicção. § 2o Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior. (grifo nosso) Como vimos, a busca poderá ser domiciliar ou pessoal. No entanto, para fins de delimitar este tema, vamos nos ater mais à busca pessoal, pois, nas abordagens policiais realizada nas ruas, é a mais usual. Trata-se de ação que impõe restrição aos direitos individuais, por isso, a busca somente poderá ser realizada nas condições estabelecidas na lei processual e nos direitos e garantias constitucionais. No entanto, na prática, essa vedação legal tem sido desrespeitada. A busca pessoal, que também pode ser denominada revista ou, vulgarmente, “baculejo”, é procedida quando há fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nos termos do parágrafo 2º, art. 240, do Código de Processo Penal. Isso quer dizer, algum fato ou situação deve ocorrer para 57 que se desperte o interesse do policial para a necessidade de se realizar a busca pessoal. A busca pessoal é feita diretamente no corpo, por meio de investigações oculares ou manuais; poderá também ser feita nos objetos que a pessoa traga consigo, como, por exemplo, bolsas e sacolas. Em mulheres, de acordo o art. 249 do Código de Processo Penal, a busca será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência. Assim, em situação de emergência, o policial executará a busca, com discrição e o devido respeito. A busca realizada em veículos particulares, realizadas nas “blitz” policiais, tão comum nos dias de hoje, também deverá ter como fundamento alguma suspeita, e constitui parte da atividade de prevenção aos delitos. No entanto, seja na busca pessoal ou veicular, os excessos não podem ser tolerados, devendo ser punido o abuso praticado pela autoridade investida de poder pelo Estado: Caso a busca tenha sido feita sem que haja fundada suspeita, a conduta do agente policial poderá se caracterizar como crime de abuso de autoridade (art. 3º, a, da lei nº 4.898/65), por exemplo, se o fizer tão somente para 94 demonstrar seu poder. Conforme afirmado anteriormente, a busca pessoal não poderá ser arbitrária, ou seja, não pode ser feita desnecessariamente. Além disso, não pode implicar em humilhação às pessoas, pois o policial como representante oficial do Estado, deve velar pela prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, conforme previsto no inciso III, art. 1º, da Carta Maior. 3.5.2. Subjetividade na busca pessoal A busca pessoal também está prevista no art. 244 do Código de Processo Penal. Este artigo prescreve que se houver fundada suspeita de que a pessoa esteja 94 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumin Júris, 2009. p.151. 58 na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituem o corpo de delito, o agente policial poderá revistá-la, sem a necessidade de mandado, in verbis: Art. 244 A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar. A vaga e subjetiva expressão “fundada suspeita”, carece de objetividade e precisão, e abre um leque enorme de conflitos sobre o seu alcance. Vislumbra-se, desse modo, um terreno fértil para interpretações subjetivas, preconceituosas e racistas, pelo agente público autorizado a realizar a busca pessoal. De acordo com pesquisa realizada com policiais, na cidade do Rio de Janeiro, em 2003, sobre pessoa suspeita, ficou demonstrada a falta de critérios nas respostas: As entrevistas revelaram que, para um policial, talvez não haja pergunta mais difícil de responder do que esta: “O que leva um policial a considerar uma pessoa suspeita”? Algumas falas ilustram bem a dificuldade: ...nós não temos um detector de bandido... Vai depender muito da área. São tantos os fatores, que não vale a pena enumerar, porque um fator entra dentro do outro... Olha só: a abordagem é uma situação muito discutível porque a abordagem é muito subjetiva. Às vezes uma coisa pode ser suspeita para mim, mas pode não ser suspeita para outra pessoa, vai depender do ponto de vista. Não está escrito na testa. O policial não tem bola de cristal. 95 Tem policial que tem estrela para farejar. Segundo as autoras Silvia Ramos e Leonarda Musumeci: É um tema onde não existe literatura policial, e, por existir uma lacuna, os policiais da ponta da linha se sentem à vontade para usar a discricionariedade em suas abordagens ou mesmo definir quem é o suspeito. Outro aspecto que chama a atenção na pesquisa junto à PM é a pobreza do discurso sobre a suspeita. Não só não conseguimos localizar um único documento que definisse parâmetros para a constituição da “fundada suspeita” (expressão usada reiteradamente por policiais, mas sem qualquer sentido preciso), como encontramos nas falas de oficiais, antigos ou jovens, de alta ou baixa patente, uma articulação tão precária a respeita desse tema quanto a observada na “cultura policial de rua” expressa pelas praças de polícia. É surpreendente, para não dizer espantoso, que a instituição não elabore de modo explicito o que os próprios agentes definem como uma das principais ferramentas do trabalho policial (a suspeita); que não focalize detidamente esse conceito nos cursos de formação, nas documentações e nos processos de qualificação, nem o defina de modo 95 RAMOS, Silvia e; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.37-38. 59 claro e objetivo, deixando a mercê do senso comum, da “intuição”, da 96 cultura informal e dos preconceitos correntes. Desse modo, devido à complexidade do assunto, podemos perguntar: quando ocorre a fundada suspeita? De acordo com o ensinamento de Guilherme de Souza Nucci a respeito do termo “fundada suspeita”: É requisito essencial e indispensável para a realização da busca pessoal, consistente na revista do indivíduo. Suspeita é uma desconfiança ou suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de um revólver. Enfim, torna-se impossível e impróprio enumerar todas as possibilidades autorizadoras de uma busca, mas continua sendo curial destacar que a autoridade encarregada da investigação ou seus agentes podem – e devem – revistar pessoas em busca de armas, instrumentos do crime, objetos necessários à prova do fato delituoso, elementos de 97 convicção, entre outros, agindo escrupulosa e fundamentadamente. Nota-se também que, diferentemente da busca domiciliar, que é limitada por critérios objetivos, conforme inciso XI, artigo 5º, da Constituição Federal, abaixo transcrito, a busca pessoal não possui um rol taxativo de situações do que seria a fundada suspeita, deixando ao arbítrio do agente policial avaliar a situação para agir de acordo com a sua convicção: A casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial. Por isso, analisando a expressão "fundada suspeita", percebe-se que o legislador deixou uma considerável margem de avaliação subjetiva ao agente policial, ou seja, existe um vácuo legislativo. Essa interpretação subjetiva, muitas vezes preconceituosa, não é feita apenas pelo agente policial autorizado a realizar a busca pessoal, mas pela própria sociedade, que estigmatiza determinadas classes de pessoas, seja pela cor da pele 96 RAMOS; MUSUMECI, 2005. p.54 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 493. 97 60 (negros), aparência (tipo de vestimentas, corte de cabelo etc.) ou poder aquisitivo (classe social desprivilegiada). Como exemplo de casos preconceituosos, podemos citar o caso em que o cidadão está em local público usando suas vestimentas com base no “kit-peba” (casacão, bermudão, boné, tênis de marca, correntes e anéis). Abramovay em livro publicado sobre os jovens da periferia de Brasília, confirma essa subjetividade na busca pessoal: […] os policiais confirmam que as turmas de jovens paradas nas esquinas são imediatamente consideradas suspeitas e sujeitas a revistas: „Montinho assim na esquina, rodinha, a gente vai abordar pra ver o que eles estão fazendo ali. (…) A nossa função é abordar antes que eles venham cometer qualquer erro.‟ O „kit peba‟ – bermuda „ciclone‟, calça caindo, cabelo solto, boné, tênis de marca, correntes e anéis – a bicicleta, a forma de os jovens caminharem, falarem e olharem para os policiais são associados ao 98 malandro ou bandido. Podemos inferir, então, que uma pessoa vestida dessa forma, com certeza, será um suspeito em potencial para a polícia, que analisará (de forma preconceituosa) a “fundada suspeita” com base nas vestimentas do cidadão. O Supremo Tribunal Federal assim se manifestou sobre o assunto: A fundada suspeita, prevista no art. 244, do CPP, não pode fundar-se em parâmetros subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência, no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por configurados na alegação de que trajava o paciente, um „blusão‟ suscetível de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias, ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder (HC nº 81.305-4/GO, 1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 13.11.01, v.u., DJU 22.02.02, p. 35). Desse modo, essa margem de consideração subjetiva deve ser precedida de uma análise da existência de elementos concretos, autorizadores da real e efetiva necessidade da medida, pois há um grande risco de causarem constrangimentos ao cidadão – autor ou não de crimes, com ofensas a direitos e garantias fundamentais, tais como: a inviolabilidade à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, conforme previsto no inciso X, artigo 5º, da Carta Magna. A prática desses abusos, que além de englobar infração aos direitos constitucionais e aos direitos humanos, poderá acarretar ao policial autor de ato 98 ABRAMOVAY, M. et alii. Gangues, galeras, chegados e rappers. Juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. p.155 61 criminoso responsabilização nas esferas administrativa, civil e penal, em face do disposto na Lei nº 4.898 de 1965 – Lei do Abuso de Autoridade. Assim, o agente policial necessita de algo mais concreto como, por exemplo, a denúncia feita por terceiros de que a pessoa porta algum instrumento usado para o cometimento de crimes; informações de uma ocorrência policial repassada por Central de Operações da polícia por meio de sistema de comunicações; a visualização, pelo próprio policial, de uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de arma de proibida; a visualização, pelo próprio policial, de que a pessoa traz consigo qualquer elemento de convicção para elucidação de fatos; se a pessoa, ao avistar uma viatura policial militar, empreender fuga em desabalada carreira. Neste mesmo sentido se posiciona Assis a respeito da busca pessoal: É aquela efetuada especificamente na pessoa. Pode ser realizada por qualquer PM com ou sem o respectivo mandado. Isto não significa que seja lícito ao PM revistar indiscriminadamente todo cidadão, o que caracteriza uma atitude despropositada além de ilegal, considerando que cada cidadão tem o direito de ir e vir sem ser molestado. Postulamos que a fundada suspeita não pode encontrar morada apenas na presunção, mas exige algo além, como um comportamento suspeito (acelerar o veículo ao avistar o policial militar em serviço, desviar o olhar, 99 executar manobra de modo a não passar por bloqueio etc.). Podemos perceber, desse modo, que há inúmeras possibilidades de situações que podem caracterizar, na avaliação subjetiva do policial, a ocorrência da fundada suspeita. No entanto, esta avaliação deverá estar sempre dentro dos limites legais da discricionariedade, baseada em algo concreto e seguro, pois a simples suspeita, que é uma desconfiança, suposição ou algo intuitivo, é muito frágil. Então, o agente policial deverá observar as garantias de prescrição genérica, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos, respeitando a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, além da integridade física e moral do indivíduo, previstos na Carta Maior. 99 ASSIS, Jorge César. et alii. Lições de Direito para a atividade das policias militares e das forças armadas. Curitiba: Juruá, 2006, p. 50-51. 62 CONCLUSÃO O exercício da atividade policial é uma função Estatal que tem por objetivo a paz social. A segurança pública é dever do Estado, um direito do cidadão e responsabilidade de todos, conforme art. 144 da Carta Magna. Em um Estado Democrático de Direito, em que deve prevalecer o respeito às leis e aos direitos fundamentais, esse poder Estatal somente poderá existir e atuar se respeitados os direitos e as garantias individuais do cidadão. Esses direitos e garantias tem como ponto fundamental a necessidade de impedir os abusos de poder do Estado, neles incluem-se os abusos das autoridades policiais, tão comum nos dias atuais. Na atividade policial, a constante intervenção nos mais variados conflitos sociais atingem as liberdades públicas, por isso, faz-se necessário que a polícia tenha a real compreensão dos seus poderes e limites, para fins de não agredir os direitos assegurados aos cidadãos. Por isso, requer-se desse agente público, o pleno conhecimento das hipóteses em que ele poderá valer-se do poder de polícia, utilizando-se dos meios necessários e adequados a fim de vencer as resistências injustificadas. Essa faculdade conferida pelo Estado ao agente público, mesmo sendo um ato discricionário, deverá obedecer aos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da razoabilidade. Desse modo, o respeito aos Direitos Humanos, por parte da polícia, se faz necessário, pois, além de ser um imperativo ético e legal, constitui também uma exigência prática em termos de aplicação da lei. Assim, uma polícia que atua à margem da lei, não viola apenas a lei, mas atinge, também, a dignidade da pessoa humana, além de manchar a própria instituição policial. Portanto, os princípios constitucionais e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos são as referências que devem nortear a atuação da polícia. No entanto, todos esses direitos e garantias não estão protegendo o cidadão, pois, hoje, a atuação da polícia está distante do ideal, haja vista que ela atua desrespeitando os direitos do cidadão, principalmente na abordagem policial. Isso pode ser comprovado pelos fatos noticiados, diariamente, pela mídia, onde policiais, 63 baseados no seu poder de polícia e na discricionariedade, abusam da violência, atingindo principalmente jovens, negros e pobres. Por isso, hoje, podemos dizer que há uma inversão de valores em relação a segurança pública, pois é comum ouvir pessoas afirmando que sentem medo da polícia, medo de serem abordados por policiais. Contribuiu para essa situação o legado histórico deixado pelo Regime Militar, em especial na Polícia Militar, que é uma força auxiliar do Exército Brasileiro. Essa afirmação pode ser comprovada no relatório Políticas Sociais: Acompanhamento e Análise, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), fundação pública federal vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, apresentado em novembro de 2009, em que o instituto criticou o modo como as polícias (civil e militar) combatem o crime no país, e afirmou, ainda, que a estrutura da polícia é a mesma do regime militar, ou seja, não foi desconstituído o aparato repressor desenvolvido durante a ditadura. Logo, não poderia haver legado pior para a polícia, pois era um regime que operava baseado na supressão de direitos e no uso da força física. Além disso, também contribui para esse quadro, o descaso com que as autoridades governamentais tratam do problema da segurança pública, ou seja, os órgãos e as instituições de segurança foram abandonados, pois além faltar recursos materiais, falta o principal, policiais treinados e qualificados, conhecedores de seus direitos e deveres. Não podemos nos esquecer, ainda, que de alguma forma contribuímos para manter a truculência policial, haja vista que há uma espécie de clamor popular, onde parte da sociedade acredita na atuação violenta da polícia como uma forma de enfrentar e acabar com o problema da criminalidade. Há, ainda, aqueles que acreditam que o simples aumento do efetivo policial também teria o poder de acabar com a criminalidade. Pensar, assim, de forma simplista e em solução mágicas, é reconhecer a incompetência do Estado, ou mesmo a falência do próprio Estado. Os dispositivos legais para inibir as práticas de abusos da autoridade policial já existem, e são muitos: leis, direitos e garantias constitucionais, Pactos, Tratados e Declarações universais. No entanto, todos parecem ineficazes frente à truculência policial. 64 Podemos citar, como exemplo, a Lei nº 4.898 de 1965, que instituiu os crimes de abuso de autoridade, e que deveria servir como paradigma capaz de orientar a atuação da polícia, para que esta não venha cometer abusos contra o cidadão, porém, ela se mostra ineficiente. Assim, para que haja uma polícia cidadã, substituindo o modelo atual autoritário e antidemocrático com fundamento nas práticas violentadoras dos direitos humanos, é imperioso entender a polícia como um serviço público, e não como uma força pública. Deve-se, também, realizar uma reforma séria e profunda no setor da segurança pública, com as seguintes medidas: a desmilitarização de nossas polícias, pois está comprovado que sistema atual não funciona; a valorização da atividade policial, com remuneração digna; a criação do policiamento comunitário, pois deve haver uma atuação em parceria com a comunidade, discutindo as soluções para os problemas da criminalidade, facilitando a atuação preventiva da polícia; o rompimento da tradição da seletividade penal; a atuação articulada com outros órgãos públicos; a qualificação e profissionalização do policial, haja vista a carência de um preparo técnico, ético, emocional e jurídico; o uso da força como último recurso, de forma moderada e dentro dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade; e que haja respeito à liberdade de locomoção e à integridade física e moral do cidadão. Importante, também, faz-se a regulamentação mais específica do termo “fundada suspeita”, prevista no Código de Processo Penal (artigos 240, parágrafo 2º, e 244), para que o policial não tenha somente como parâmetro a sua subjetividade na hora de decidir quem realmente se enquadra no esteriótipo da “fundada suspeita”. Assim, impondo limites no poder discricionário do policial, ele terá que atuar com mais critério e precisão na hora de decidir quem será abordado e sofrerá a busca pessoal. Portanto, a população não quer uma polícia despreparada, que atua com base no poder de polícia exacerbado; na teoria da “rotulação” e do “etiquetamento”; com base no direito penal máximo; da tolerância zero; no subjetivismo preconceituoso da “fundada suspeita”, ou seja, a população não quer uma polícia que atua desrespeitando os direitos fundamentais e que vê o cidadão como inimigo do Estado. 65 Enfim, o país precisa de uma polícia que atue não apenas como instrumento de luta contra o crime, mas também que seja um instrumento de garantia da cidadania, e que a abordagem policial seja realmente um meio de prevenção ao crime. 66 REFERÊNCIAS 1. BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, M. et alii. Gangues, galeras, chegados e rappers. Juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Direito e segurança pública – a juricidade operacional da polícia. Brasília: Consulex, 2003. ARAGÃO, Selma Regina. 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