Pró-Reitoria de Graduação
Curso de Direito
Trabalho de Conclusão de Curso
O ABUSO DE AUTORIDADE NA ABORDAGEM POLICIAL
Autor: Paulo Sérgio Medeiros
Orientadora: Dra. Arinda Fernandes
Brasília - DF
2010
PAULO SÉRGIO MEDEIROS
O ABUSO DE AUTORIDADE NA ABORDAGEM POLICIAL
Monografia apresentada ao curso de graduação
em Direito da Universidade Católica de
Brasília, como requisito parcial para obtenção
do Título de Bacharel em Direito.
Orientadora: Dra. Arinda Fernandes
Brasília
2010
Monografia de autoria de Paulo Sérgio Medeiros, intitulada “O ABUSO DE AUTORIDADE
NA ABORDAGEM POLICIAL”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau
de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em ___/___/2010, defendida e
aprovada pela banca examinadora abaixo assinalada:
__________________________________________________
Orientadora: Dra. Arinda Fernandes
Curso de Direito – UCB
__________________________________________________
Prof. Dr. Arnaldo Sampaio Moraes Godoy
Membro
__________________________________________________
Prof. Dr. João Rezende Almeida Oliveira
Membro
Brasília
2010
RESUMO
MEDEIROS, Paulo Sérgio. O abuso de autoridade na abordagem policial. Defesa em
2010. 72 folhas. Monografia de curso de graduação em Direito - Universidade Católica de
Brasília, Brasília, 2010.
O abuso de autoridade na abordagem policial representa hoje um tema merecedor de especial
atenção. Esse tema é bastante complexo por envolver os direitos fundamentais do cidadão,
consagrados na Carta Maior, e a segurança pública, a qual tem suas bases no poder de polícia
do Estado. O abuso de autoridade na abordagem policial é uma agressão ao princípio da
dignidade da pessoa humana, aos direitos humanos fundamentais e a outros princípios
consagrados na Constituição. Por isso, este trabalho tem por objetivo apresentar um estudo
sobre os crimes de abuso de autoridade previstos na Lei nº 4.898/65. Também será alvo de
estudo do presente trabalho, a análise da abordagem policial com o fim de estabelecer uma
relação entre a necessidade de prevenção e repressão ao crime. A prevenção e a repressão ao
crime têm por finalidade a paz social, para isso o Estado deve buscar estabelecer o limite de
atuação do agente público para que este não incorra nos crimes previstos na referida lei. O
trabalho investigará, ainda, a origem do abuso de autoridade, bem como buscará esclarecer as
consequências jurídicas resultantes dessa prática. Será, ainda, explorada a expressão “fundada
suspeita”, prevista no Código de Processo Penal, haja vista a vaguidão do termo, o qual pode
ser interpretado subjetivamente de diferentes maneiras. Assim, este trabalho de conclusão de
curso busca identificar as origens das condutas abusivas na atividade policial a fim de
encontrar uma solução para transformar a polícia em uma instituição democrática e cidadã.
Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana, Direitos Humanos, Liberdade de Locomoção,
Incolumidade Física do Indivíduo, Segurança Pública, Abuso de Autoridade, Abordagem
Policial.
ABSTRACT
MEDEIROS, Paulo Sergio. The misuse of authority at police approach. Defense in 2010.
72 pages. Monograph of undergraduate course of law. Universidade Católica de Brasília –
UCB, Brasília, 2010.
The misuse of authority at police approach, represents nowadays, a deserving theme of special
attention. This theme is quite complex for involving fundamental citizen rights, consecrated in
the Federal Constitution, and the public security, whose base is in the power of state police.
The misuse of authority at police approach it is an aggression to the principle of human
person dignity, to the human fundamental rights and also to other principles consecrated in the
Constitution. Therefore, this work objective itself to present a study about misuse of authority
crimes provided in Law n.4.8898 65. Likewise it will be aim of study of the present job, the
analysis of police approach in order to establish a relation between prevention necessity and
crime repression. The prevention and crime repression have social peace as finality, and for
that, the state must look for establish an acting limit of the public agent so he would not incurs
in provided crimes, in the above mentioned law. This work still will investigate the origin of
misuse of authority, and it'll seek for clarify the juridical consequences resulting of this
practice. In addition, will be explored the expression, ''founded suspicion" provided in the
Code of Criminal Procedure, given the inaccuracy of the term, that can be subjectively
interpreted in different ways. Thus, this work of course conclusion, seeks identifying the
origins of abusive behavior in police activity in order to find a solution to transform the police
in a democratic and citizen institution.
Key- words: Human Dignity, Human Rights, Freedom of Locomotion, Physical Safety of the
Individual, Public Security, Misuse of Authority, Police Approach.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 6
1.
DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS ............................................................ 8
1.1. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ................................... 9
1.1.1. O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição
brasileira de 1988 ............................................................................................. 13
1.2. PROTEÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS ............................. 14
1.2.1. Os direitos humanos fundamentais nas Constituições
Brasileiras ......................................................................................................... 17
1.3. TUTELA CONSTITUCIONAL À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO............... 21
1.4. TUTELA CONSTITUCIONAL À INCOLUMIDADE FÍSICA DO INDIVÍDUO
222
1.5. RELATIVIDADE DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS ................ 24
2.
A LEI Nº 4.898 DE 1965 – O ABUSO DE AUTORIDADE ................................. 26
2.1. ASPECTOS GERAIS DA LEI Nº 4.898 DE 1965 ........................................ 26
2.2. SUJEITOS ATIVO E PASSIVO DO CRIME DE ABUSO DE
AUTORIDADE ....................................................................................................... 28
2.3. PENAS – CONSEQUÊNCIAS DO ABUSO DE AUTORIDADE .................. 31
2.4. OS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE OBJETOS DE ESTUDO ....... 34
2.4.1. Atentado à liberdade de Locomoção ............................................... 35
2.4.2. Atentado à Incolumidade Física do Indivíduo ................................. 37
2.5. VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA (ART. 322 DO CÓDIGO PENAL). .................... 40
3.
ASPECTOS GERAIS DA ATIVIDADE POLICIAL ............................................. 42
3.1. SEGURANÇA PÚBLICA ............................................................................. 42
3.1.1. As Forças Policiais no Brasil ............................................................ 44
3.2. A HERANÇA DOS REGIMES POLÍTICOS DITATORIAIS ......................... 46
3.3. ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL ........................................ 48
3.4. PODER DE POLÍCIA .................................................................................. 50
3.4.1. Características do Poder de Polícia ................................................. 52
3.5. ABORDAGEM POLICIAL ............................................................................ 53
3.5.1. Busca Pessoal.................................................................................... 56
3.5.2. Subjetividade na busca pessoal ....................................................... 57
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 62
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 66
6
INTRODUÇÃO
O art. 144 da Constituição Federal afirma que a segurança pública é dever do
Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo essencial para o desenvolvimento
da sociedade.
Sabemos que a função das forças policiais, civis ou militares, é a preservação
da ordem pública. Para garantir o cumprimento dessa função, o Estado concede
certo arbítrio aos agentes policiais para que estes possam atingir seus objetivos. Há
a possibilidade do emprego da força física legítima, por parte do agente policial,
limitando os direitos individuais que estão em confronto com a ordem, para que a
paz social seja restabelecida.
No entanto, o uso dessa força não autoriza a prática do abuso ou excesso,
pois esse arbítrio deverá ocorrer dentro dos limites da legalidade, sob pena de
constituir crime o excesso praticado.
O cidadão, por sua vez, tem a expectativa de encontrar na polícia o apoio
necessário para o exercício dos direitos e garantias que lhe são assegurados pela
Constituição Federal, ou seja, ele espera que o policial atue dentro da lei,
prevenindo e reprimindo a criminalidade, preservando a ordem pública.
Entretanto, há policiais que se afastam de sua missão constitucional e
praticam abusos. Constantemente nos deparamos com notícias, vinculadas pela
mídia, narrando fatos envolvendo policiais que praticam atos de violência no
exercício de suas funções públicas, principalmente envolvendo pobres e negros, o
que indica o seu caráter seletivo.
Portanto, trata-se de um assunto polêmico, que está em constante debate e
que interessa a toda sociedade. Por isso, a importância de se fazer um estudo desse
assunto: investigar as causas que levam um policial atuar acima da lei, praticando a
violência contra o cidadão; como também, informar quais as consequências da
atuação de uma polícia mal preparada no exercício de sua função pública.
Assim, com o objetivo de delimitar o tema e deixá-lo mais compreensível e
didático, este trabalho foi dividido em três capítulos.
No primeiro capítulo serão abordados os Direitos e Garantias Individuais, o
qual apresentará um estudo sobre o princípio da dignidade da pessoa humana,
7
considerado o princípio reitor de todos os outros direitos e garantias; a proteção
universal aos direitos humanos; a tutela constitucional à liberdade de locomoção e à
integridade física do indivíduo, todos eles passíveis de serem atingidos pelo agente
público no momento da abordagem policial. Será também abordada a relatividade
dos direitos e garantias individuais, haja vista que eles não têm caráter absoluto.
O segundo capítulo versa sobre a Lei nº 4.898/65 – Lei de Abuso de
Autoridade, que regula a responsabilidade civil, penal e administrativa nos casos de
abuso de autoridade. No entanto, para delimitar o assunto, serão analisados apenas
os aspectos mais importantes dessa lei. Primeiramente, haverá uma análise da
origem e finalidade dessa lei. Posteriormente, serão examinados os sujeitos ativo e
passivo dos crimes de abuso de autoridade, bem como, quais as consequências
para o infrator dessa lei, nas áreas civil, penal e administrativa. Abordaremos
também os crimes de atentado à liberdade de locomoção e à incolumidade física do
indivíduo, previstos, respectivamente, nas alíneas “a” e “i”, artigo 3º, da Lei de Abuso
de Autoridade. Merece, ainda, ser analisado, o art. 322 do Código Penal, que trata
da violência arbitrária, haja vista a semelhança desse dispositivo com o art. 3º,
alínea “i”, da Lei nº 4.898/65.
No terceiro capítulo será abordada a atividade policial, englobando a
segurança pública, que é assegurada pela Carta Magna em seu artigo 144, e as
características das forças policiais existentes no Brasil, principalmente a polícia
militar, tendo em vista seu maior contato com a população nas ruas. São temas do
terceiro capítulo: a influência dos regimes ditatoriais na formação e atuação da
policial brasileira; o estrito cumprimento do dever legal, previsto no inciso III, art. 23,
do Código Penal e no inciso III, art. 42 do Código Penal Militar; o poder de polícia do
Estado frente aos direitos do cidadão; a abordagem policial, a qual é uma forma de
intervenção que atinge as liberdades públicas; e a busca pessoal e sua
subjetividade, conceituada pela expressão “fundada suspeita”, prevista nos artigos
240, parágrafo 2º, e 244 do Código de Processo Penal.
8
1.
DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
A Constituição brasileira de 1988 constitui um marco jurídico na proteção dos
direitos do cidadão por ter inserido em seu texto temas como a dignidade da pessoa
humana, direitos humanos e direitos e garantias fundamentais.
A dignidade da pessoa humana, valor espiritual e moral inerente à pessoa, foi
elevado a princípio fundamental da Carta Magna, nos termos do seu art. 1º, inciso
III. A dignidade da pessoa humana constitui um direito individual protetivo que deve
ser respeitado tanto pelo Estado quanto pelos cidadãos em suas relações
interpessoais.
A prevalência dos direitos humanos, cuja previsão encontra-se no art. 4º,
inciso II da Constituição Federal, é um princípio orientador das relações
internacionais e tem por objetivo compor uma imagem positiva do Brasil no contexto
internacional como um país respeitador dos direitos humanos.
Previstos na Constituição brasileira de 1988, arts. 5º ao 17º, “os direitos e
garantias fundamentais” 1, estão subdivididos em cinco capítulos: direitos individuais
e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos; e partidos políticos.
Segundo Alexandre de Moraes2, os direitos individuais e coletivos
“correspondem aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de
sua própria personalidade, como por exemplo: vida, dignidade, honra e liberdade.”
Todos esses sistemas interagem e se completam a fim de proporcionar a
maior efetividade possível na proteção aos direitos fundamentais do cidadão.
Por isso, a relevância de se abordar, neste capítulo, temas referentes ao
princípio da dignidade da pessoa humana, os direitos humanos e os direitos
individuais (mais precisamente o direito à liberdade de locomoção e à incolumidade
física do indivíduo), haja vista que esses direitos podem sofrer violações no
momento da abordagem policial, o que configura o abuso de autoridade.
1
Segundo Chimenti: “Em direito constitucional, “Direitos” são dispositivos declaratórios que imprimem
existência ao direito reconhecido. Por sua vez, as “garantias” podem ser compreendidas como
elementos assecuratórios, ou seja, são os dispositivos que asseguram o exercício dos direitos e, ao
mesmo tempo, limitam os poderes do Estado”. CHIMENTI, Ricardo Cunha, et alii. Curso Direito
Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004. p.49
2
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 23
9
1.1.
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Constitui uma tarefa difícil indicar a origem da dignidade da pessoa humana
como um valor a ser reconhecido e respeitado por todos. Entretanto, analisando a
história, podemos assinalar quatro momentos fundamentais nesse percurso: o
Cristianismo, o Iluminismo, a obra de Immanuel Kant e a Segunda Guerra Mundial.3
O pensamento trazido pela ideologia cristã, ao reconhecer os princípios da
igualdade e fraternidade, e ao afirmar que todos os homens, independentemente da
origem, raça, sexo ou credo são iguais, representou uma sensível mudança na
estrutura da sociedade até então existente.
Encontramos tanto no Novo quanto no Velho Testamento diversas referências
de que o homem foi criado a imagem e semelhança de Deus, premissa da qual o
cristianismo extraiu a consciência de que o ser humano – e não apenas os cristãos –
é dotado de um valor próprio e que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado
em mero objeto ou instrumento.4
Esta postura igualitária, de valorização da pessoa humana, identifica-se com o
princípio da dignidade humana, no qual todos os homens são livres e responsáveis
por seus atos já que são possuidores da mesma dignidade.
Séculos depois (séc. XVII e XVIII), o movimento Iluminista5, com sua crença
na razão humana, foi o responsável por desalojar a religiosidade do centro do
sistema de pensamento, substituindo-a pelo próprio homem. O desenvolvimento
teórico do humanismo acabará por redundar em um conjunto de conseqüências
relevantes para o desenvolvimento da ideia de dignidade humana, como a
3
BARCELLOS, Ana Paula. Eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.104
4
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 5. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p.30.
5
O Iluminismo surgiu na França (século XVII). Este movimento defendia o domínio da razão sobre a
visão teocêntrica que dominava a Europa desde a Idade Média. Para os filósofos iluministas, esta
nova forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a
sociedade. Com este movimento o homem deveria ser o centro e passar a buscar respostas para as
questões que, até aquele momento, eram justificadas pela fé, ou seja, o pensamento racional deveria
substituir as crenças religiosas e o misticismo. Disponível em:
<http://www.suapesquisa.com/historia/iluminismo/>. Acesso em: 11 mar. 2010.
10
preocupação com os direitos individuais do homem e o exercício democrático do
poder.6
No entanto, com o pensamento de Immanuel Kant, talvez tenha surgido a
melhor expressão do conceito de dignidade humana, pois, até hoje, é justamente no
pensamento de Kant que a doutrina parece estar identificando as bases de uma
fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa
humana:
Verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa
humana parece continuar sendo reconduzido – e a doutrina majoritária
conforta esta conclusão – primordialmente à matriz Kantiana, centrando-se,
portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de
7
cada pessoa).
A filosofia kantiana concebia o homem como um ser racional, que existia
como um fim em si mesmo, e não como um meio para os outros. Em função dessa
condição de ser racional, comum a todos os seres humanos, é que o homem poderia
ser chamado de pessoa – pessoa humana.
Com base nessa premissa, Kant sustenta que:
O Homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em
si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou
daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se
dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele
tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim... Portanto, o
valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é
sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da
nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais,
apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao
passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza
os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não
pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita
8
nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).
Para Kant, essa pessoa seria dotada de um valor intrínseco, um valor próprio
da sua essência, e, por ser uma qualidade intrínseca da pessoa humana, seria algo
irrenunciável e inalienável. Na medida em que esse valor, irrenunciável e inalienável,
qualifica o ser humano, ele não pode ser destacado deste, já que, como dito, o ser
humano seria um fim e não um meio passível de utilização e manipulação. Esse
6
BARCELLOS, 2002. p.106
SARLET, 2007. p.45
8
KANT, Immanuel. Fundamento da metafísica dos costumes, in: os pensadores – Kant, trad.
Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 134.
7
11
valor intrínseco seria um valor absoluto, uma qualidade absoluta, ou seja, uma
dignidade absoluta.9
Portanto, como afirma Sarlet10: “o ser humano é dotado de um valor e que lhe
é intrínseco, não podendo ser transformado em um mero objeto ou instrumento”. Por
isso, a dignidade da pessoa humana é algo que se reconhece, respeita e protege.
O último marco importante na trajetória histórica da noção de dignidade da
pessoa humana é também o mais trágico. Os horrores da Segunda Guerra Mundial11
(1939 - 1945) abalaram completamente as convicções que até aquele momento se
tinham como pacíficas e universais.
Como a reação à barbárie do nazismo e do fascismo, consagrou-se, no pósguerra, a dignidade da pessoa humana no plano internacional e interno como valor
máximo dos ordenamentos jurídicos e princípio orientador da atuação estatal e dos
organismos internacionais.12
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, especialmente após a criação das
Organizações das Nações Unidas, a discussão a respeito dos direitos humanos e
fundamentais tomou uma nova dimensão: no âmbito internacional, Declarações e
Pactos sobre direitos foram firmados, bem como Organizações e Cortes foram
criadas13.
Devido a importância do princípio da dignidade humana, que é inerente a todo
ser humano e que deve ser respeitado por todos, podemos afirmar que este princípio
serve como princípio orientador de muitos outros. É possível afirmar que o princípio
da dignidade humana se relaciona com os chamados direitos fundamentais ou
humanos.
Pelo que foi exposto, sendo reconhecida a sua existência e sua importância, é
necessário conceituar a dignidade da pessoa humana.
9
BOLDRINI, Rodrigo Pires da Cunha. A proteção da dignidade da pessoa humana como
fundamentação constitucional do sistema penal. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4171>. Acesso em: 11 mar. 2010.
10
SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, 3. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p.106.
11
As violações de direitos humanos e a morte de milhões de seres humanos, das mais variadas
nacionalidades, ainda hoje causa revolta.
12
BARCELLOS, 2002. p.108
13
Foram criadas a Declaração dos Direitos do Homem (1948); Comissão Européia de Direitos
Humanos (1950); Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966); Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (1969).
12
Dentre os conceitos existentes, podemos adotar dois: um proposto por Ingo
Wolfgang Sarlet; outro, por Alexandre de Moraes. Eles procuraram condensar alguns
dos pensamentos mais utilizados para a definição do conceito de dignidade da
pessoa humana.
Ingo Wolfgang Sarlet14:
É a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos de deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e
da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Alexandre de Moraes15:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a
pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por
parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que
todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas
excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos
fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que
merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
Importante salientar, entretanto, que tendo em vista a diversidade históricocultural que reina entre os povos, em muitas situações somente poderemos afirmar
se houve ou não a violação da dignidade da pessoa humana por meio da análise do
caso concreto. Desse modo, aquilo que numa determinada cultura pode ser
considerada uma gritante violação dos direitos à dignidade humana, em outra pode
ser reconhecido como uma conduta legal.
Assim, são precisas as lições de Ingo Wolfgang Sarlet16 quando indaga:
Até que ponto a dignidade não está acima das especificidades culturais,
que, muitas vezes, justificam atos que, para a maior parte da humanidade
são considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, mas que, em
certos quadrantes, são tidos por legítimos, encontrando-se profundamente
enraizados na prática social e jurídica de determinados comunidades. Em
verdade, ainda que se pudesse ter o conceito de dignidade como universal,
isto é, comum a todas as pessoas em todos os lugares, não haveria como
evitar uma disparidade e até mesmo conflituoso sempre que se tivesse de
14
SARLET, 2007. p.62.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. São Paulo: Atlas, 2002. p.128-129.
16
SARLET, 2007. p.60.
15
13
avaliar se uma determinada conduta é, ou não, ofensiva à dignidade.
Então, respeitando as diversidades culturais existentes, podemos dizer, de
forma concisa, que o princípio da dignidade humana se relaciona com os direitos
humanos, ou melhor, inspira os direitos humanos.
1.1.1. O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição
brasileira de 1988
O princípio da dignidade da pessoa humana é a matriz de diversos outros
direitos e garantias fundamentais das Cartas Políticas de diversos povos e da
Constituição brasileira de 1988, dos quais decorre a liberdade de pensamento, a
liberdade de reunião, a inviolabilidade de domicílio, a liberdade de locomoção, o
direito à vida, o direito ao trabalho, o direito à saúde, o direito à educação e o direito
à segurança, dentre outros valores essenciais ao homem.
A sétima Constituição adotada no país, a Carta Cidadã17, foi promulgada no
dia 5 de outubro de 1988. Foi a que apresentou maior legitimidade popular e
também a que substituiu a Constituição imposta pelo regime militar. O princípio da
dignidade humana está inserido expressamente no art. 1º, Título I – Dos Princípios
Fundamentais, in verbis:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
Essa evolução constitucional propiciou o reconhecimento da importância da
dignidade humana, fazendo com que o legislador constituinte concedesse status
normativo ao princípio da dignidade humana, entendendo-o como um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito.
17
Em 1988, Ulysses Guimarães, na época deputado federal e também Presidente da Assembléia
Nacional Constituinte, fez um grande discurso na promulgação da Constituição e ali a chamou de
cidadã, referindo-se à intensa participação popular na elaboração da nova Carta Magna como
também pelo fato dela marcar um novo período político-jurídico, restaurando o Estado Democrático
de Direito, ampliando as liberdades civis e os direitos e garantias fundamentais e com isto instituindo
um verdadeiro Estado Social.
14
Com o reconhecimento expresso na Constituição Federal da dignidade da
pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático (e Social)
de Direito, o Constituinte de 1987/1988, além de ter tomado uma decisão a respeito
do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio
Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa
humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não
meio da atividade estatal.18
O princípio da dignidade humana é um princípio constitucional que ilumina
todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais.
Desse modo, reafirmamos que, como princípio constitucional, a dignidade da
pessoa humana deverá ser entendida como “viga mestre” destinada a orientar todo
o sistema no que diz respeito à criação, à sua interpretação e à aplicação de normas
jurídicas.
1.2.
PROTEÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
A ideia de direitos humanos é bastante antiga e seu surgimento pode ser
apontado no antigo Egito e Mesopotâmia, onde já havia alguns mecanismos para a
proteção do indivíduo em relação ao Estado. O Código de Hammurabi (1690 a.C.)
constitui um marco no que tange aos mecanismos protetores de direitos humanos
das civilizações. Tal código tutelava bens como a vida, a propriedade, a honra, a
dignidade e a família, prevendo, igualmente a supremacia das leis em relação aos
governantes.19 Embora de extremo rigor para aplicação nos tempos atuais,
representou um sensível avanço ao estabelecer proporcionalidade entre o delito
praticado e a pena cominada.
No direito romano, surge A Lei das XII Tábuas (451-433 a.C.), um complexo
mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais em relação aos
arbítrios estatais.20
18
SARLET, 2007. p.106.
MORAES, 2009. p. 6.
20
ARAGÃO, Selma Regina. Direitos Humanos: do mundo antigo ao Brasil de todos. 3. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2001. p.20
19
15
Assim, no decorrer da história, foram surgindo outros textos legais que
visaram amparar o indivíduo contra a tirania dos governantes.
Na Inglaterra surgiram a Magna Charta Libertatum (1215), a petition of Rights
(1628), o Hábeas Corpus Act (1679), o Bill of Rights (1689) e Act of Settlement
(1701).
A Magna Charta Libertatum, imposta pelo Rei João Sem Terra, previa, entre
outras garantias: a proporcionalidade entre o delito e a sanção; a previsão do devido
processo legal; o livre acesso à justiça; a liberdade de locomoção e a livre entrada e
saída do país.
A petition of Rights, reclamava o respeito ao princípio do consentimento na
tributação; o julgamento pelos pares para a privação da liberdade ou da propriedade;
e a proibição de detenções arbitrárias.
O Hábeas Corpus Act, criado para proteger a liberdade de locomoção (prisão
arbitrária e liberdade de ir e vir), tornou-se a matriz de outras garantias judiciais que
vieram a ser criadas posteriormente, para a proteção de outras liberdades
fundamentais.
O Bill of Rights significou enorme restrição ao poder estatal, pois previa,
dentre outras regulamentações: o fortalecimento do princípio da legalidade; a
criação do direito de petição; e a vedação à aplicação de penas cruéis.
O Act of Settlement configurou-se em um ato normativo que reafirmava o
princípio da legalidade e da responsabilização política dos agentes públicos.
Posteriormente, na evolução dos direitos humanos, encontramos nos Estados
Unidos da América os seguintes documentos históricos: Declaração de Direitos da
Virgínia (1776), Declaração de Independência dos Estados Unidos da América
(1776) e Constituição dos Estados Unidos da América (1787).
A Declaração de Direitos da Virgínia proclamava, dentre outros direitos: o
direito à vida; o direito à liberdade; o direito à propriedade; o princípio da legalidade;
o tribunal do júri; e o princípio do juiz natural e imparcial.
A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América representou
o ato inaugural da democracia moderna, a qual combinou a representação popular
com a limitação de poderes governamentais e o respeito aos direitos humanos.
A Constituição dos Estados Unidos da América, por sua vez, visando limitar o
poder estatal, estabeleceu a separação dos poderes estatais e proclamou diversos
16
direitos humanos fundamentais como, por exemplo, o devido processo legal, a
liberdade religiosa, a inviolabilidade de domicílio, a ampla defesa e a proibição de
aplicação de penas cruéis.
Na França, temos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)
e a Constituição Francesa (1791).
O
marco
basilar
na
consagração
normativa
dos
direitos
humanos
fundamentais coube à França, a qual promulgou, em 26 de agosto de 1789, por
meio da Assembleia Nacional, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
composta por 17 artigos. Dentre as importantes previsões destacam-se as
seguintes: o princípio da igualdade; o direito à liberdade; o direito à propriedade; o
direito à segurança; o direito de resistência à opressão; o princípio da presunção da
inocência; e o direito à livre manifestação de pensamento.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é a mais famosa das
declarações de direitos humanos. Sua importância decorre do fato de esta ter sido,
por um século e meio, um modelo, por excelência, das declarações; e ainda hoje
merecer o respeito e a reverência dos que se preocupam com liberdade e os direitos
do homem.21
No século XX destacaram-se, dentre outras, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, criada em Paris, em 1948, e a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, criada em San Jose, em 1969.
A convenção de San Jose reafirmou o propósito dos Estados Americanos em
consolidar no Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um
regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito aos direitos
humanos essenciais.22
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada em 10 de
dezembro de 1948. Ela constitui a mais importante conquista dos direitos humanos
fundamentais em nível internacional.23 Ela foi uma reação, uma manifestação
histórica, contra as atrocidades cometidas na II Guerra Mundial, e apontava o devido
e necessário respeito aos direitos humanos, entendidos como universais.
21
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Direitos Humanos Fundamentais. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2004. p.19.
22
MORAES, 2007. p.19
23
Ibidem. p.17
17
Alexandre de Moraes24 reafirma a importância dessa Declaração:
A Declaração Universal dos Direitos dos Homens adotada e proclamada
pela Resolução nº 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em
10-12-1948, reafirmou a crença dos povos das Nações Unidas nos direitos
humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na
igualdade de direitos do homem e da mulher, visando à promoção do
progresso social e à melhoria das condições de vida em uma ampla
liberdade.
O mesmo autor apresenta o conceito de direitos humanos:
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem
por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção
contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições
mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser
25
definido como direitos humanos fundamentais.
Pelo exposto, podemos afirmar que o sentido maior dessa Declaração foi o
resgate e a proteção da dignidade humana, uma vez que ela traz a previsão de que
basta ser um humano para ter dignidade e ser titular dos direitos nela inseridos.
1.2.1. Os direitos humanos fundamentais nas Constituições Brasileiras
Alexandre de Moraes26 sintetiza a importância do tema “direitos humanos” na
Constituição Brasileira:
A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significou
mera enunciação de princípios, mas a plena positivação de direitos, a partir
dos quais qualquer indivíduo poderá exigir sua tutela perante o Poder
Judiciário para concretização da democracia. Ressaltamos, ainda, que a
proteção judicial é absolutamente indispensável para tornar efetiva a
aplicabilidade e o respeito aos direitos humanos fundamentais previstos na
Constituição Federal e no ordenamento jurídico em geral.
Por isso, a grande relevância do tema direitos humanos nas Constituições do
Brasil, as quais, paralelamente às evoluções do Direito do Homem, também
evoluíram no tempo.
No Brasil, a Proclamação da Independência, em 1822, trouxe consigo
Constituição do Império de 1824, que, no seu Título VIII, previa um extenso rol de
24
MORAES, 2007. p.17
Ibidem. p.20
26
Ibidem. p.3.
25
18
direitos humanos fundamentais (garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos
brasileiros). O artigo 179 possuía 35 incisos, consagrando direitos e garantias
individuais, tais como: o princípio da igualdade; o princípio da legalidade; o direito à
liberdade de locomoção; o direito à inviolabilidade do domicílio; a possibilidade de
prisão somente em flagrante delito ou por ordem da autoridade competente; o
princípio da reserva legal; e a abolição da tortura e de todas as penas cruéis.
Importante lembrar que a Proclamação da República trouxe também o Código
Criminal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832.
Essas legislações, de acordo com José Frederico Marques, substituíram as
Ordenações Filipinas e sua tradição legislativa de crueldade e terror:
A fundação do Império, abre-se, para o processo penal, um período de
reação às leis opressoras e monstruosas da monarquia portuguesa, e do
qual o Código de Processo Criminal de 1832 constitui o diploma legal
culminante e mais expressivo, síntese que é dos anseios humanitários e
27
liberais que palpitavam no seio do povo e nação.
Os direitos humanos fundamentais foram novamente declarados pela 1ª
Constituição Republicana de 1891, a qual, em seu Título III, Seção II, previa a
Declaração de Direitos. Além dos tradicionais direitos e garantias individuais que já
haviam sido consagrados pela Constituição de 1824, podemos destacar as
seguintes previsões: a abolição da pena de morte (ressalvadas as disposições da
legislação militar em tempo de guerra), o habeas corpus e a instituição do tribunal do
júri.
A tradição de as Constituições brasileiras reservarem um capítulo para tratar
dos direitos e garantias fundamentais, foi mantida na Constituição de 1934, a qual
repetiu, em seu art. 113 e seus 38 incisos, um extenso rol de direitos humanos
fundamentais, destacando-se, dentre outros: a consagração do direito adquirido; a
assistência jurídica gratuita; a irretroatividade da lei penal; o mandado de segurança;
e a ação popular.
27
MARQUES, Jose Frederico, Tratado de direito Processual Penal, v. I. São Paulo: Millennium,
1980. p.117.
19
A Constituição de 1937, apesar das características políticas preponderantes à
28
época , também consagrou um grande número de direitos e garantias individuais,
inseridos nos 17 incisos de seu art. 122.
Visando dar fim aos instrumentos repressivos criados durante o Estado Novo,
a Constituição de 1946, que também previa um capítulo específico para os direitos e
garantias individuais (Título IV, Capítulo II), passou a utilizar-se de uma nova
redação em seu art. 141, caput, que assim proclamava, in verbis:
Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes [...]
Devido à sua importância, essa nova redação foi utilizada posteriormente
pelas demais Constituições brasileiras.
Anos mais tarde, com a chegada dos militares ao poder em 1964, houve uma
série de mudanças no cenário político brasileiro, era o início do Regime Militar 29. Os
novos governantes priorizavam a contenção das oposições políticas, por meio de
Atos Institucionais que ignoravam completamente as diretrizes estabelecidas pela
Constituição de 1946 – a defesa dos direitos humanos fundamentais.
Foi nesse período de exceção que a Constituição de 1967 foi outorgada, com
predominância do autoritarismo e do arbítrio político. Este documento autoritário foi
largamente emendado em 1969, absorvendo mais instrumentos ditatoriais como os
do Ato Institucional nº 5 (AI-5) de 1968. A sua promulgação foi aprovada por um
Congresso Nacional mutilado pelas cassações, baseada nas reflexões da conjuntura
de guerra fria e focada no combate aos inimigos internos tidos como subversivos
(opositores de esquerda), ou seja, o ideal era a teoria da segurança nacional.30
Rompendo com a ordem jurídica anterior, marcada pelo autoritarismo advindo
do regime ditatorial, que perdurou de 1964 a 1985, a Constituição brasileira de 1988,
no propósito de instaurar a democracia no país e de institucionalizar os direitos
humanos, fez com que ocorresse uma revolução na ordem jurídica nacional,
28
Em 1937, com um golpe de Estado, Getúlio Vargas decretou o fechamento do Congresso e
anunciou a nova Constituição, a Polaca, inspirada na Constituição fascista da Polônia. Era o início do
Estado Novo.
29
O Regime Militar vigorou entre 1964 a 1985, e foi o período da política brasileira em que os
militares governaram o Brasil. Tinha como características a falta de democracia, supressão de direitos
constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar.
30
CRETELLA JÚNIOR, José. Elementos do direito constitucional. São Paulo: RT, 2000. p. 21
20
passando a ser o marco fundamental da abertura do Estado brasileiro ao regime
democrático e à normatividade internacional de proteção dos direitos humanos.
Como marco fundamental do processo de institucionalização dos direitos
humanos no Brasil, a Carta de 1988, logo em seu primeiro artigo, erigiu a dignidade
da pessoa humana a princípio fundamental (art. 1º, inciso III), instituindo, com este
princípio, uma “pilastra mestre” a todo o sistema jurídico a qual deve ser sempre
levada em conta quando se trata de interpretar qualquer das normas constantes do
ordenamento nacional.
Flávia Piovisan31 assim expressa mesmo pensamento:
O valor da dignidade humana impõe-se como núcleo base e informador do
ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a
orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado
em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm constituir os
princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos
valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo sistema jurídico
brasileiro.
Essa
nova
Constituição,
além
disso,
seguindo
a
tendência
do
constitucionalismo contemporâneo, deu um grande passo rumo à abertura do
sistema jurídico brasileiro ao sistema internacional de proteção de direitos, quando,
no parágrafo 2º, do art. 5º, deixou expresso que, in verbis:
§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Essa inovação trazida pela Constituição de 1988, referente aos tratados
internacionais de que o Brasil seja parte, assim, além de ampliar os mecanismos de
proteção da dignidade da pessoa humana, vem também reforçar e engrandecer o
princípio da prevalência dos direitos humanos, consagrado pela Carta como um dos
princípios pelo qual a República Federativa do Brasil se rege nas suas relações
internacionais, in verbis:
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios:
[...]
II - prevalência dos direitos humanos;
Portanto,
a
Constituição
Federal
de
1988
passou
a
reconhecer
expressamente, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla
31
PIOVISAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos, São Paulo: Max Limonad, 2003. p.339.
21
fonte normativa: aquela advinda do direito interno (direitos expressos e implícitos na
Constituição), e aquela outra advinda do direito internacional (decorrente dos
tratados internacionais de que o Brasil faça parte), ou seja, o país assume que os
direitos humanos são um tema global.
Além
das
normas
constitucionais
e
da
incorporação
das
normas
internacionais, segundo o sistema dos parágrafos 2º e 3º do artigo 5º, da Carta
Maior, o ordenamento jurídico nacional dispõe de normas internas próprias, as quais,
em boa parte, reafirmam os direitos humanos. Podemos citar como exemplo, a Lei
nº 4.898 de 1965, que regula o direito de representação e o processo de
responsabilidade administrativa, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade; a
Lei nº 9.455 de 1997, que define os crimes de tortura e dá outras providências; e o
Decreto nº 7.037 de 2009, que instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos
(PNDH III). O governo também conta com a Secretaria Especial dos Direitos
Humanos da Presidência República (SEDH/da PR), criada pela Lei nº 10.683 de
2003, que atua no engajamento efetivo do Governo Federal em ações voltadas para
a proteção e promoção de direitos humanos.
1.3.
TUTELA CONSTITUCIONAL À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO
A Constituição Federal consagra o direito à livre locomoção no território
nacional em tempo de paz, autorizando diretamente a qualquer pessoa o ingresso, a
saída e a permanência.
A liberdade de locomoção é um direito fundamental do indivíduo. Esse direito
é de importância fundamental, visto que é requisito essencial para que se exerça o
direito das demais liberdades.
Com grande maestria, Ferreira Filho32 sintetiza o direito à livre locomoção:
A liberdade de locomoção, assim impropriamente chamada, pois é o direito
de ir, vir e também ficar, é a primeira de todas as liberdades, sendo
condição de quase todas as demais. Consiste em poder o individuo
deslocar-se de um lugar para outro, ou permanecer cá ou lá, segundo lhe
convenha ou bem lhe pareça. Claro que essa liberdade de ir ou ficar termina
onde atenta contra o bem geral.
32
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva,
2008. p.299.
22
A principal tutela legal do direito de locomoção está inserida no artigo 5º,
incisos XV e LXI da Constituição Federal de 1988, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo
qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair
com seus bens.
[...]
LXI - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão ou crime militar, definidos em lei.
A destinação constitucional do direito à livre locomoção abrange tanto os
brasileiros quanto os estrangeiros, residentes ou não no território nacional.
Entretanto, por não se tratar de um direito absoluto, poderá ocorrer,
excepcionalmente, a restrição legal do direito de ir e vir, visando preservar a
segurança nacional e integridade do território nacional.
Na vigência do estado de sítio, previsto no art. 137 da Carta Magna, poderá
ocorrer a suspensão temporária e localizada das garantias dos direitos
fundamentais.
O texto constitucional, em hipótese excepcional, limita o direito de locomoção
ao prever no inciso I, do art. 139, a obrigação de as pessoas permanecerem em
localidade determinada na vigência do estado de sítio.
Importante ressaltar que há a possibilidade da suspensão das garantias dos
direitos fundamentais, porém, nunca pode ocorrer a suspensão dos próprios direitos
fundamentais.
1.4.
INDIVÍDUO
TUTELA
CONSTITUCIONAL
À
INCOLUMIDADE
FÍSICA
DO
23
Proteger a integridade física do indivíduo é uma forma de proteger a vida,
como bem expressa José Afonso Silva33:
Agredir o corpo humano é um modo de agredir a vida, pois esta se realiza
naquele. A integridade física-corporal constitui por isso, um bem vital e
revela um direito fundamental do individuo daí por que as lesões corporais
são punidas pela legislação penal.
A proteção à integridade pessoal está fundamentada no princípio da
dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos. A vedação do delito de
tortura, presente na Carta Magna, faz parte dos direitos fundamentais de primeira
geração34 e constitui cláusula pétrea nos termos do art. 60, parágrafo 4º, IV, da
Carta Maior, compondo, assim, seu núcleo intocável.
O respeito à incolumidade física do indivíduo encontra-se prevista no bojo dos
direitos e garantias fundamentais, mais precisamente no inciso III, artigo 5º, da
Constituição de 1988, conforme segue, in verbis:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
III - ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou
degradante.
A condenação é tão incisiva que o inciso XLIII, art. 5º, determina que a lei
considere a prática de tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça, por
ele respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-la, se
omitirem.
Desse modo, a fim de preservar a integridade do cidadão, nem mesmo o
Estado, ente público supremo dotado do poder de punir, está legitimado a, por meio
de seus agentes, desrespeitar ou ofender a integridade física, psicológica e/ou moral
dos indivíduos.
33
SILVA, José Afonso. Curso direito constitucional positivo, 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
p.199.
34
São aqueles que se fundamentam na liberdade, civil e politicamente considerada. São as
liberdades públicas negativas que limitam o poder do Estado, impedindo-o de interferir na esfera
individual. O direito à integridade física e à liberdade são exemplos. A liberdade é a essência da
proteção dada ao indivíduo, de forma abstrata, que merece apenas por pertencer ao gênero humano
e estar socialmente integrado (CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Márcio F. Elias;
SANTOS, Maria F. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004. p.46).
24
1.5.
RELATIVIDADE DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
Com o advento da Constituição Federal, o princípio da dignidade humana
passou a ter importância ímpar, sendo considerado a força motriz de todo nosso
ordenamento jurídico. É por meio dele que irradiam todos os demais princípios.
No entanto, segundo a posição doutrinária majoritária, a dignidade da pessoa
humana não possui caráter absoluto. Com isso, queremos afirmar que em
determinadas situações devemos, obrigatoriamente, trabalhar com outros princípios
que servirão como ferramentas de interpretação, levando-se a efeito a chamada
ponderação de bens ou interesses, que resultará na prevalência de um sobre o
outro.35
Percebe-se, assim, que a dignidade, como valor individual de cada ser
humano, deverá ser avaliada e ponderada em cada caso concreto. Não devemos
nos esquecer, contudo, daquilo que deve ser entendido como núcleo essencial da
dignidade da pessoa humana e que jamais poderá ser abalado. Assim, uma coisa é
permitir que alguém, que praticou uma infração penal, seja privado da sua liberdade
pelo próprio Estado; outra coisa é permitir que esse mesmo condenado seja
torturado por agentes do governo, com a finalidade de arrancar-lhe uma confissão.
Nesse exemplo, a dignidade do indivíduo deverá ser preservada, pois ao Estado foi
permitido somente privar-lhe a liberdade, ficando resguardados, entretanto, os
demais direitos. Embora constitua inequívoca e grave restrição de liberdade da
pessoa, ela será justificada pela necessidade de coibir e prevenir violações da
dignidade e direitos fundamentais de terceiros.36
Nesse mesmo posicionamento, transcrevemos, parcialmente, a ementa do
seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal:
[...] OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER
ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou
garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de
relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de
convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a
35
GRECO, Rogério. Atividade Policial: Aspectos penais, processuais penais, administrativos e
constitucionais, 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p.12
36
Ibidem. p.12
25
adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das
prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos
estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das
liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas
– e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas
incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a
integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência
harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser
exercida em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e
garantias de terceiros. [...] (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de
Segurança. MS 23452/RJ. Tribunal Pleno, rel. min. Celso de Mello, j.
16.09.99, DJU 12.05.00, p. 20).
A própria Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, no seu artigo 4º, já previa que:
A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem:
assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem limites
senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos
mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados por lei.
A Declaração dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo XXIV, nº 2,
também já previa a relativização de direitos e liberdades ao preceituar que:
No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito
apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de
assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de
outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do
bem-estar de uma sociedade democrática.
Desse modo, considerando que também o princípio isonômico (no sentido de
tratar os desiguais de forma desigual) é corolário da dignidade da pessoa humana, é
possível admitir certa graduação e relativização dos diretos e garantias,
especialmente quando se tratar de resguardar direitos e garantias de todos os
integrantes de uma determinada comunidade. No entanto, não podemos nos
esquecer, mais uma vez, que o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana
será intangível.
26
2.
A LEI Nº 4.898 DE 1965 – O ABUSO DE AUTORIDADE
O delito de abuso de autoridade é previsto pela Lei 4.898, de 9 de dezembro
de 1965. Esse diploma legal tem por finalidade proteger os cidadãos dos abusos
praticados por autoridades públicas ou por seus agentes, que possam comprometer
direitos e garantias constitucionais como: liberdade de locomoção, inviolabilidade
domiciliar, incolumidade física etc. Dentre esses agentes públicos, um tem
importância fundamental para este estudo: os policiais (civis e militares), haja vista
os inúmeros casos de abusos cometidos por eles no desempenho da atividade
policial.
2.1.
ASPECTOS GERAIS DA LEI Nº 4.898 DE 1965
Dispõe o art. 1º da Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965:
O direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa,
civil e penal, contra as autoridades que, no exercício de suas funções,
cometerem abusos, são regulados pela presente Lei.
A Lei nº 4.898 de 1965, portanto, além de regular o direito de representação,
define os crimes de abuso de autoridade e estabelece a forma de apuração das
responsabilidades administrativa, civil e penal. Por isso, é conhecida como Lei de
Abuso de Autoridade. Trata-se de legislação que disciplina a responsabilização do
agente em três esferas distintas: a administrativa, a civil e a criminal.
Jorge César de Assis37, a respeito dessa lei, afirma: “é, inegavelmente, o
pesadelo da atividade policial, que, por suas características coercitivas, anda bem
próximo da margem da lei”.
Entretanto, antes de adentrarmos no tema específico, faz-se necessária,
desde logo, uma observação quanto ao nome pela qual esta lei é conhecida: Lei de
Abuso de Autoridade. Alguns doutrinadores afirmam haver uma incoerência na
terminologia empregada. Para eles, o mais correto seria a utilização da expressão
37
ASSIS, Jorge César de, etii. Lições de direito para a atividade das polícias militares e das
forças armadas. Curitiba: Juruá Editora, 2007. p.62
27
abuso de poder no lugar de abuso de autoridade. A terminologia hoje adotada veio a
ser consagrada pelo uso.
Assim se expressa Paulo Fernando dos Santos38:
Inicialmente, cumpre alertar que a doutrina, de um modo geral, reconhece
uma impropriedade nessa denominação, porque quando se tem por base
uma relação de direito público ou função pública na qual se cometem
abusos, correto seria falar-se não em abuso de autoridade, mas abuso de
poder. A expressão abuso de autoridade melhor guarida encontraria nos
casos de abusos, excessos ou desvios no campo das relações privadas,
intersubjetivas. Na realidade, a expressão correta seria “abuso de poder”,
pois nem todo funcionário público exerce uma função de autoridade. Não é
só que detém um cargo de autoridade que pode ser sujeito ativo desse
crime; basta ver o conceito legal de funcionário público. Também os
funcionários públicos que não são considerados autoridade pública podem
ser sujeito ativo.
Pela análise desta lei, podemos concluir que ela possui um caráter
subsidiário. Isto porque da prática de um abuso podem nascer consequências nas
esferas administrativa, civil e penal. Na área penal, inclusive, as sanções penais pela
conduta criminosa revestem-se de pequena carga retributiva ou intimidatória, posto
que, no mais das vezes, restringem-se à aplicação de pena pecuniária de pequeno
valor ou pena privativa de liberdade entre 10 dias e 6 meses. Por isso, não se pode
pretender que a lei de abuso de autoridade absorva, por exemplo, um caso de
sequestro praticado por quem que esteja no exercício de uma função pública, ou,
noutro exemplo, um policial militar que venha a praticar um cárcere privado ou um
crime de tortura. Não faz sentido, desse modo, pretender puni-lo nos termos da Lei
de Abuso de Autoridade, deixando de lado a figura extremamente mais severa
prevista no Código Penal. Diante disso, os crimes definidos na Lei nº 4.898 de 1965
serão absorvidos sempre que o comportamento possa ser tipificado sob a forma de
delitos mais graves.39
Faz-se necessário, ainda, dizer que a Lei de Abuso de Autoridade foi criada
para punir pequenos abusos, que não encontravam punição no Código Penal, e que
desta feita poderiam ficar impunes.
Não podemos nos esquecer também o contexto histórico no qual se insere o
diploma em comento, haja vista que ele entrou em vigor no ano 1965, em pleno
regime ditatorial.
38
SANTOS, Paulo Fernando dos. Crimes de Abuso de Autoridade – Aspectos Jurídicos da Lei
nº 4.898/65. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 2003. p.17.
39
Ibidem. p.18
28
Essa Lei ingressou em nosso ordenamento jurídico há mais de quatro
décadas, sendo publicada sob a égide do Regime Militar (1964-1985), e tinha como
inspiração ideológica a busca pela moralização da função pública e a punição aos
pequenos abusos, de modo que as primeiras providências nesse sentido foram, de
fato, tipificar os delitos outrora não tipificáveis.40
Foi nesse contexto histórico e sob essa inspiração que a Lei de Abuso de
Autoridade foi editada, destinada ao combate da violência exercida pelos órgãos
oficiais de controle social. No entanto, em termos práticos, de pouca ou de nenhuma
repercussão coercitiva resultaram tais medidas, como bem explana Fernando
Capez:
A Lei de Abuso de Autoridade foi criada em um período autoritário com
intuito meramente simbólico, promocional e demagógico. A despeito de
pretensamente incriminar os chamados abuso de poder e de ter previsto um
procedimento célere, na verdade, cominou penas insignificantes, passíveis
de substituição por multa e facilmente alcançáveis pela prescrição. De
qualquer modo, a finalidade da Lei nº 4.898 de 1965 é prevenir os abusos
praticados por autoridades, no exercício de suas funções, ao mesmo tempo
em que, por meio de sanções de natureza administrativa, civil e penal,
41
estabelece a necessária reprimenda.
Com isso, podemos concluir que a Lei de Abuso de Autoridade está
ultrapassada. Ela precisa ser repensada, em especial para melhor proteger os
direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Maior de 1988, bem como para
que se possam tornar realmente efetivas as sanções destinadas a coibir e punir o
abuso de autoridade.
2.2.
SUJEITOS ATIVO
E
PASSIVO
DO
CRIME
DE ABUSO
DE
AUTORIDADE
A lei fala em abuso de autoridade. Mas quem seria o sujeito ativo do crime de
abuso de autoridade?
Os delitos previstos na Lei nº 4.898 de 1965 são considerados crimes
próprios, haja vista que somente podem ser praticados por autoridade.
40
SANTOS, 2003. p.19.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal - legislação penal especial, vol. 4, 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 2008. p.7
41
29
O conceito de autoridade está descrito no art. 5º da referida lei, in verbis:
“Considera-se autoridade, para fins desta lei, quem exerce cargo, emprego ou
função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente.”
Desse modo, o sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade deve exercer
a função pública, de natureza civil ou militar, não importando a sua transitoriedade
ou que não perceba remuneração dos cofres públicos. Trata-se, portanto, de
conceito bastante amplo. Mas devemos considerar que o mais importante é a
natureza da função exercida pelo agente, e não a forma de investidura na
Administração.42
Fernando Capez43 apresenta uma relação de quem deve ser considerado
autoridade:
Autoridades são, assim: (a) os titulares de cargos públicos criados por lei,
regularmente investidos e nomeados, que exerçam função pública; (b) os
contratados sob regime diverso do direito público, para o exercício de
funções de natureza pública; (c) os mensalistas, diaristas, tarefeiros e
qualquer outro nomeado a título precário, desde que exerçam a função
pública; (d) qualquer pessoa que, ainda que transitória, precária e
gratuitamente, exerça a função pública; (e) o serventuário da Justiça; (f) o
comissário de menores; (g) o funcionário de autarquia; (h) o vereador; (i) o
advogado encarregado da dívida do Estado etc. (J) o guarda municipal.
Damásio de Jesus44 apresenta o conceito de autoridade policial baseado no
direito administrativo:
Conceito de autoridade policial é aquele com fulcro no direito administrativo,
sendo qualquer agente público com poder legal para influir na vida de
outrem, o qualificativo „policial‟ serve para designar os agentes públicos,
encarregados do policiamento, seja preventivo, seja repressivo. Assim,
podemos, lato sensu, conceituar autoridade como todo servidor público
dotado do poder legal de submeter pessoas ao exercício da atividade de
policiamento.
Então, dentro desse contexto, enquadram-se como autoridade policial, os
policiais civis ou militares, haja vista que eles são agentes públicos, ou seja, eles são
agentes do Poder Público na área da segurança, com capacidade para intervir em
ocorrências envolvendo membros de uma coletividade.
Um aspecto interessante que deve ser analisado é no que tange à
responsabilidade do autor quando ele incidir em uma das figuras descritas nos tipos
42
CAPEZ, 2008. p.31
Ibidem. p.31
44
JESUS, Damásio Evangelista de. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. 5. ed. São
Paulo: Saraiva, 2000. p. 36
43
30
penais previstos na referida lei, caso este não esteja no exercício de seu cargo ou
função. Estaria o agente cometendo o crime de abuso de autoridade? A solução,
porém, já está pacificada pelos tribunais:
Conforme decidiu a 1ª Câmara do TACrim:
Ressalta-se que, para o surgimento do crime de abuso de autoridade, é
preciso que o ilícito seja perpetrado no exercício da função (Lei 4.898, de
1965, art. 1º). Imprescindível a existência de íntima conexão entre a
violência e o desempenho da função, mesmo porque tal classe de delitos é
caracterizada pela violação do dever de exercer corretamente a autoridade
pública (RT 423/426).
No mesmo sentido a orientação do Colendo STJ:
Comete o delito o agente que mesmo não estando no exercício da função
age invocando a autoridade do cargo, com exibição da carteira funcional
(RT 665/359).
Pelo exposto, a autoridade, ainda que fora do exercício da sua função, que
invocar os poderes que lhe são conferidos, praticará crime de abuso. Como
exemplo, podemos citar a hipótese de um policial que, de folga, detenha ilegalmente
uma pessoa, invocando para tal o cargo que ocupa. Neste caso, o agente agiu
invocando a sua condição de autoridade e, por isso, deverá responder pelo crime
previsto na Lei nº 4.898 de 1965.
Portanto, em muitas ocasiões poderá haver a ocorrência do delito em
questão, principalmente nos casos em que o agente público se excede, confundindo
o poder legal que o cargo lhes atribui, praticando o abuso.
Após identificar o sujeito ativo do crime de abuso de autoridade, passemos à
análise do sujeito passivo. O sujeito passivo do crime de abuso de autoridade pode
ser qualquer cidadão, maior ou menor, capaz ou incapaz, brasileiro ou estrangeiro.
De acordo com o ensinamento de Damásio Evangelista de Jesus45, os crimes
de abuso de autoridade são de dupla subjetividade passiva:
Há dupla subjetividade passiva. Sujeito passivo mediato: é o Estado, titular
da Administração Pública. Sujeito passivo imediato: é o cidadão, titular da
garantia constitucional lesada ou molestada. É evidente que, à vezes, o
Estado, ou outra entidade de direito público, é o único sujeito passivo.
Exemplo: atentado ao sigilo de correspondência, em que seja o próprio
Estado o seu titular.
45
DAMÁSIO, Evangelista de Jesus, apud FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos
de. Abuso de autoridade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.22.
31
Importante salientar que, em sendo a vítima uma criança ou um adolescente,
o abuso de autoridade poderá configurar, também, alguns dos crimes previstos no
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069 de 13 de julho de 1990).
2.3.
PENAS – CONSEQUÊNCIAS DO ABUSO DE AUTORIDADE
O abuso de autoridade pode implicar responsabilidade administrativa, civil e
penal.
As sanções para os crimes de abuso de autoridade estão previstas no art. 6º
da Lei nº 4.898 de 1965. Para fins administrativos, temos o tratamento no parágrafo
1º, para fins civis temos o parágrafo 2º e para fins penais temos o parágrafo 3º.
As instâncias administrativa, civil e penal são autônomas, ou seja, uma
eventual punição na área penal não afeta o campo administrativo ou civil e assim
sucessivamente. Portanto, nada impede que um policial seja punido nas três esferas
por um mesmo fato.
No parágrafo 1º, art. 6º, da lei em estudo, temos elencadas as sanções
administrativas, as quais serão aplicadas de acordo com a gravidade do abuso. São
elas: advertência; repreensão; suspensão do cargo ou função ou posto por prazo de
5 a 180 dias, com perda de vencimentos e vantagens; destituição de função;
demissão; e demissão a bem do serviço público.
A responsabilidade administrativa resulta da infringência de alguma norma
funcional e interessa apenas aos limites internos da Administração Pública. Trata-se
de ilícito administrativo que pode gerar punição disciplinar a ser imposta pela
autoridade competente.46
No art. 6º, parágrafo 2º, da Lei nº 4.898 de 1965, há a previsão da sanção
civil: “a sanção civil, caso não seja possível fixar o valor do dano, consistirá no
pagamento de uma indenização de quinhentos a dez mil cruzeiros”. O valor fixado
neste dispositivo legal é inaplicável, pois a moeda que os representava
desapareceu, não se podendo empreender uma atualização senão por meio de lei.
46
FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de autoridade, 9. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p.98.
32
Do dispositivo em exame se conclui que tal sanção será aplicada pelo
magistrado, o qual arbitrará, de acordo com seu livre convencimento, o valor da
indenização, devendo levar em conta as pessoas do ofendido e do agente causador
do dano, bem como o alcance do dano.47
Portanto, o agente responsável pelo abuso fica obrigado à reparação civil do
dano. Não podemos esquecer que um dos efeitos da condenação definitiva é tornar
certa a obrigação de reparar o dano (Código Penal, art. 91, inciso I), e que a
sentença condenatória transitada em julgado é título executivo judicial no juízo cível
(Código de Processo Penal, art. 63).
No art. 6º, parágrafo 3º, da mesma lei, estão previstas as sanções penais:
Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa
civil e penal.
[...]
§ 3º. A sanção penal será aplicada de acordo com as regras dos arts. 42 a
56 do CP e consistirá em:
a) multa de cem a cinco mil cruzeiros;
b) detenção de 10 dias a 6 meses;
c) perda do cargo, com inabilitação para qualquer função pública pelo prazo
de até três anos.
Quanto à alínea “a”, parágrafo 3º, do art. 6º, onde se lê: “multa de cem a cinco
mil cruzeiros”, lê-se somente “multa”, pois o art. 2º da Lei nº 7.209/84 (reforma da
Parte Geral do Código Penal) estabeleceu que os valores de multas fixados no
Código Penal e nas leis especiais serão substituídos, apenas, pelo termo “multa”.
Desse modo, a lei em comento prevê a pena de multa, mas não terá como
referência os valores especificados na alínea “a”. O valor agora será obtido pelo
critério de dias-multa, de acordo com o art. 49 a 52 e 60 do Código Penal.48
Quanto à pena privativa de liberdade, prevista no art. 6º, parágrafo 3º, alínea
“b”: “detenção de 10 dias a 6 meses”, podemos perceber que ela foi fixada em
patamar muito baixo, sendo que a pena máxima cominada está prevista em seis
meses de detenção. Essa penalidade pode até servir como estímulo para o
cometimento de abusos, pois, além de ser irrisória, prescreverá49 em pouco tempo.
47
FREITAS, 2001. p.100
CAPEZ, 2008. p.36
49
A Lei nº 4.898/65 não estabeleceu normas prescricionais específicas, pelo que devem ser
aplicadas as regras previstas pelo Código Penal. Assim, para as penas pecuniária e privativa de
liberdade, previstas no § 3º, do art. 6º, aplica-se o art. 109, VI, do Código Penal, que estabelece o
48
33
Cumpre lembrar, ainda, que em caso de concurso de crimes, a pena de multa
é aplicada distinta e integralmente (Código Penal, art. 72), e que, de acordo com a
súmula 171 do Superior Tribunal de Justiça: “cominadas cumulativamente, em lei
especial, penas privativas de liberdade e pecuniária, é defeso a substituição da
prisão por multa”.
Temos, no art. 6º, parágrafo 3º, alínea “c” da lei em estudo, como sanção
penal, “a perda do cargo e a inabilitação para o exercício da função pública pelo
prazo de até três anos”. Trata-se de pena principal e autônoma a ser aplicada
isolada ou cumulativamente com a sanção pecuniária e com a pena privativa de
liberdade.
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a esse respeito. Para o
Colendo Tribunal, a referida pena é principal, não constituindo, portanto, efeito
secundário da condenação:
3.
A pena de perda do cargo e inabilitação para o exercício de função
pública, prevista no artigo 6º, parágrafo 3º, alínea „c‟, da Lei nº 4.898 de
1965, é de natureza principal, assim como as penas de multa e detenção,
previstas, respectivamente, nas alíneas „a‟ e „b‟ do mesmo dispositivo, em
nada se confundindo com a perda do cargo ou função pública, prevista no
artigo 92, inciso I, do Código Penal, como efeito da condenação. 4. Recurso
especiais prejudicados, em face da declaração da extinção da punibilidade
do crime. (STJ, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, Resp 279429/SP,
j. 21-10-2003, DJ, 15-12-2003).
Já no parágrafo 4º, do mesmo artigo, está a previsão de que as penas
previstas no parágrafo 3º poderão ser aplicadas autônoma ou cumulativamente: “As
penas previstas no parágrafo anterior poderão ser aplicadas autônoma ou
cumulativamente”.
Por fim, o parágrafo 5º prevê que “quando o abuso for cometido por agente
policial, civil ou militar, poderá ser cominada pena acessória de proibição do
exercício da função no local da culpa, pelo prazo de 1 a 5 anos”.
Pelo disposto no parágrafo 5º, existe a possibilidade de o policial, civil ou
militar, receber sanção diferenciada das demais autoridades.
Esta pena é de suma importância, pois, além de afastar o policial do local
onde praticou o abuso de autoridade, exercendo uma função preventiva, ela servirá
de advertência para os demais policiais do local onde ocorreu o abuso.
prazo prescricional em dois anos. (MORAES, Alexandre de. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação
especial, 10. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p.24)
34
2.4.
OS CRIMES DE ABUSO DE AUTORIDADE OBJETOS DE ESTUDO
A Lei nº 4.898 de 1965 elencou em seus artigos 3º e 4º o rol das hipóteses
fáticas para a ocorrência do crime de abuso de autoridade.
No entanto, com o objetivo de delimitar este trabalho, tornou-se necessário
escolher as situações que nos deparamos com mais frequência no dia a dia das
abordagens policiais e que se enquadram no crime de abuso de autoridade.
Elegemos, por isso, para análise, as figuras típicas previstas nas alíneas “a” e
“i”, do art. 3º:
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
a) à liberdade de locomoção;
b) à inviolabilidade do domicílio;
c) ao sigilo da correspondência;
d) à liberdade de consciência e de crença;
e) ao livre exercício do culto religioso;
f) à liberdade de associação;
g) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto;
h) ao direito de reunião;
i) à incolumidade física do indivíduo;
j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional.
(grifo nosso)
Sobre a relevância das hipóteses fáticas passíveis de serem violadas,
previstas nas alíneas do art. 3º, Baltazar Júnior50 se expressa:
As alíneas do art. 3º da Lei 4.989/65 fazem referência a vários direitos
fundamentais previstos no art. 5º da CF, o que demonstra,
significativamente, que os delitos em questão se situam no âmago da
tensão entre os direitos individuais e a atuação do Estado.
Essa escolha é importante, pois, nas abordagens policiais, esses direitos são
constantemente violados. Por isso, a importância de conhecer os limites de atuação
desses agentes públicos.
Então, podemos indagar: Qual o limite de atuação do policial na abordagem
policial sem que ocorra a restrição na liberdade de locomoção do cidadão? Ou, até
que ponto o policial pode utilizar-se da força sem agredir a integridade física do
indivíduo?
50
BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes federais. 4. ed., Porto Alegre: livraria do advogado,
2009, p.259
35
2.4.1. Atentado à liberdade de Locomoção
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, trata dos direitos e garantias
individuais. Dentre os muitos direitos consagrados na Carta Maior podemos destacar
a liberdade de locomoção do cidadão, prevista nos incisos XV e LXI:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo
qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair
com seus bens.
[...]
LXI - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão ou crime militar, definidos em lei.
De acordo com o inciso LXI, art. 5º, da Constituição Federal, a prisão somente
poderá ocorrer diante de mandado judicial ou em caso de flagrante delito, não
podendo o cidadão ser privado de sua liberdade fora das hipóteses legais. A prisão
para averiguações51, que já foi prática comum por parte da polícia, também é
vedada.
Consagrado na Constituição Federal, o atentado à liberdade de locomoção
constitui a primeira figura típica que caracteriza o abuso de autoridade na Lei nº
4.898 de 1965, art. 3º, alínea “a”:
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
a) à liberdade de locomoção;
[...]
51
Utilizada largamente na prática investigatória pela Polícia Judiciária nos tempos dos governos
militares, a "prisão para averiguação", que consistia em cercear a liberdade de locomoção de um
cidadão sem que houvesse nenhuma investigação a seu respeito, passou a ser vista como grave
violação ao texto constitucional, que não mais admite a prisão senão a decorrida do estado de
flagrância ou por ordem da autoridade judiciária competente. Disponível em
http://www.acrimesp.com.br/Especiais_024.htm. Acessado em 28 abr. 2010.
36
Configura-se atentado à liberdade de locomoção, qualquer forma de restrição,
mesmo que a privação da liberdade não se dê em uma cela, mas em uma sala,
corredor ou pátio.52
Entretanto, em situações específicas poderá ocorrer um conflito aparente de
direitos: de um lado o poder de polícia do Estado; do outro, a liberdade de
locomoção do cidadão. Qual interesse deve prevalecer? Nesse caso, o interesse
público prevalece ao interesse particular, o que justifica a restrição da liberdade de
locomoção dos indivíduos que, com sua conduta, possam oferecer perigo à paz
social.
Assim, por exemplo, um policial (atuando dentro legalidade) que aborda um
cidadão limitando “temporariamente” o seu direito de ir e vir, não estará cometendo
nenhum abuso, haja vista que neste caso deverá prevalecer um bem maior: a
segurança pública, ou seja, o interesse público.
Portanto, essa liberdade não é irrestrita, pois haverá situações em que ela
poderá ser restringida. Outro exemplo bastante claro é o caso da vigência do estado
de sítio (art. 139, Constituição Federal) onde as pessoas poderão ser obrigadas a
permanecer em locais determinados ou poderão ser detidas em edifício não
destinado a acusados ou condenados por crimes comuns.
Gilberto Passos de Freitas e Vladimir Passos de Freitas, na mesma esteira,
expressam:
Com efeito, todo cidadão tem o direito de locomover-se, transportando-se
para onde deseje, sem limitações, ressalvados os casos expressos em lei
ou por imperiosas necessidades ditadas pelo Estado. Tal liberdade não
pode ser total, pois necessárias são certas restrições, não só em face da
53
liberdade dos demais indivíduos, como à do Estado.
Assim, diante da supremacia do Estado, sempre será necessário observar os
casos concretos, a fim de poder distinguir a nem sempre clara faixa que separa os
atos discricionários dos arbitrários.
O cidadão, entretanto, não está desamparado caso ocorra qualquer situação
em que ele se sinta prejudicado em seu direito de locomoção. Neste caso, ele
poderá valer-se de um remédio constitucional: o Habeas Corpus, conforme assegura
a Carta Maior em seu art. 5º, LXVII: “conceder-se-á habeas-corpus sempre que
52
53
BALTAZAR JÚNIOR, 2009. p.261
FREITAS; FREITAS, 2001. p. 31.
37
alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade
de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
De forma concisa, Alexandre de Moraes54 conceitua este remédio
constitucional:
Portanto, o habeas corpus é uma garantia individual ao direito de
locomoção, consubstanciada em uma ordem dada pelo Juiz ou Tribunal ao
coator, fazendo cessar a ameaça ou coação à liberdade de locomoção em
sentido amplo – o direito do indivíduo de ir, vir e ficar.
Portanto, o Habeas Corpus constitui uma garantia da liberdade de locomoção
contra ilegalidade ou abuso de poder de autoridade pública.
Desse modo, qualquer conduta praticada por uma autoridade, que atente
contra a liberdade de locomoção (liberdade de ir, vir e permanecer), que não se
enquadre nas hipóteses legais autorizadoras da restrição, configura o crime de
abuso de autoridade.
Podemos concluir, então, que todo o cidadão tem o direito de se locomover
para onde bem entender, desde que respeite o direito dos demais cidadãos e as
normas legais vigentes.
2.4.2. Atentado à Incolumidade Física do Indivíduo
O direito à incolumidade física tem previsão constitucional no artigo 5°, inciso
III, que estabelece: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano
ou degradante”.
Essa proteção também está prevista na Lei de Abuso de Autoridade, alínea
“i”, do art. 3º:
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
[...]
i) à incolumidade física do indivíduo;
[...]
Esse crime, previsto na lei em comento, para que se enquadre no crime de
abuso de autoridade, deve ter como sujeito ativo o agente da administração pública
e como sujeito passivo o cidadão, de forma que venha atingir a integridade física
deste último, não importando se a violência deixou ou não vestígios ou casou lesões
54
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed., São Paulo:Atlas, 2008, p.124
38
corporais, conforme entendimento de Alexandre de Moraes e Gianpaolo Poggio
Smanio:
Consiste na ofensa praticada pelo agente da administração, no exercício de
um cargo, emprego ou função, contra o indivíduo, de modo a atingir sua
integridade física. Irrelevante, no caso, tenha a conduta deixado vestígios, à
medida que a violência se caracteriza pelo emprego de força física, maus55
tratos ou vias de fato.
Portanto, somente haverá crime se houver abuso ou mau uso da força.
Esse crime abrange toda ofensa praticada pela autoridade, que pode ir de
uma violência mais leve, como as vias de fato, à uma violência mais grave, como o
homicídio. Estão englobadas tanto a violência física como a violência moral (tortura
psicológica, emprego de gases, disparo de armas de fogo para o ar, etc.).56
Se, além do atentado praticado pela autoridade, resultarem do abuso de
autoridade lesões corporais ou a morte da pessoa, o agente responderá por ambos
os crimes em concurso material (duas condutas com dois resultados) conforme
entendimento dos tribunais57, segundo o qual o agente deverá responder pelas
infrações, somadas as penas previstas para cada tipo penal.
Convém lembrar, que nem todo atentado à incolumidade física do indivíduo
constituirá o delito em apreço, pois, em caso de necessidade, poderá ocorrer o uso
da força.
O Código de Processo Penal trata do uso força nos artigos 284 e 292:
Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no
caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso.
[...]
Art. 292 Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em
flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as
pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para
defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto
subscrito também por duas testemunhas.
O Código de Processo Penal Militar, em seu art. 234, também traz essa
previsão:
55
MORAES, Alexandre de. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Especial, 10. ed., São Paulo:
Atlas, 2007, p.13
56
CAPEZ, 2008. p.17
57
STF, RTJ, 101/595; STJ, 5ª T., Resp 12.614-0MT, Rel. Min. Flaquer Scartezzini, Ementário STJ,
6/696.
39
Art. 234. O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso
de desobediência, resistência ou tentativa de fuga.
Assim, quando configurada a necessidade, não haverá o crime em estudo,
uma vez que a violência empregada pela autoridade terá por finalidade a execução
da lei ou de ordem judicial, conforme lição de Gilberto Passos de Freitas e Vladimir
Passos de Freitas:
É de todo evidente que as autoridades policiais necessitam de certo arbítrio
para poder alcançar seus objetivos e realizar sua funções. Seria fechar os
olhos à realidade e torná-los ineficientes impedi-las de assim agir. Mas este
arbítrio deve ser exercido dentro dos limites da sua necessidade, sob pena
58
de, ocorrendo o excesso, constituir crime.
Outra lei que deve ser analisada é a Lei nº 9.455 de 1997 – Lei de Tortura,
tendo em vista a proximidade entre os crimes de tortura e o de abuso de autoridade,
o que pode levar a uma série de problemas de interpretação. Apesar de tais
institutos jurídicos serem bastante próximos, eles estão definidos em leis distintas.
No entanto, pelo posicionamento da doutrina, podemos dizer que se o
atentado à incolumidade física for crime de tortura, a tortura absorverá o crime de
abuso de autoridade.
Nesta mesma linha, se posicionam Gilberto Passos de Freitas e Vladimir
Passos de Freitas:
Se a violência praticada pela autoridade ou quem a exerça for cometida com
a finalidade de obter informação, declaração ou confissão, ou, ainda, para
provocar ação ou omissão de natureza criminosa, o delito a se configurar
será o da tortura, previsto na Lei 9.455/97, que regulamentou o inciso XLIII,
59
do art. 5º da CF.
Capez, na mesma esteira, traz um exemplo pertinente ao tema em comento:
Com efeito, se um policial, por exemplo, constranger um criminoso com
emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou
mental, com o fim de obter informação, declaração ou confissão, haverá a
60
configuração do crime previsto no art. 1º, I, a, da Lei 9.455/97.
Portanto, nas relações entre o Estado e os cidadãos, o uso da força é
permitido para garantir a paz social, desde que a polícia atue empregando a força
comedida, proporcional ao risco representado pela resistência alheia à autoridade
58
FREITAS; FREITAS, 2001. p. 57
Ibidem. p.59
60
CAPEZ, 2008. p.19
59
40
policial, ou seja, este agente público deve atuar dentro dos princípios da legalidade,
da proporcionalidade e, principalmente, respeitando a dignidade da pessoa humana.
2.5.
VIOLÊNCIA ARBITRÁRIA (ART. 322 DO CÓDIGO PENAL).
A violência arbitrária está prevista no art. 322 do Código Penal: “Praticar
violência, no exercício de função, ou a pretexto de exercê-la”.
No entanto, tendo em vista a semelhança desse dispositivo com o art. 3º,
alínea “i”, da Lei nº 4.898 de 1965, surgiu a dúvida se o art. 322 do Código Penal
havia sido revogado. Duas correntes doutrinárias e jurisprudenciais se formaram
com vistas a solucionar esse conflito de normas.
O entendimento majoritário da doutrina61 é que o art. 322 do Código Penal foi
revogado tacitamente pela mencionada lei especial, embora na jurisprudência exista
uma corrente em sentido contrário62.
O doutrinador Cezar Roberto Bitencourt63 ao comentar o art. 322 do Código
Penal também defende a revogação do referido artigo penal:
É objeto de discussão doutrinária e jurisprudencial a vigência do art. 322 do
CP após o advento da Lei nº 4.898/65, que dispõe sobre o abuso de
autoridade. Entendemos revogado o art. 322 em consonância com a
doutrina (Damásio de Jesus, Questões criminais, p.14; Gilberto e Vladimir
Passos de Freitas, Abuso de Autoridade, p. 120; Júlio Fabrini Mirabete,
Manual de Direito Penal. v.3, p.130). Reina grande divergência na
Jurisprudência: a) a favor: (JTAC, 11:152, 14:372, 31:340 e 46:371, TR
376:246, 382:206, 533:565 e 592:326); b) contra: (STF, RT, 449:504,
TACrim, RT, 609:344; TJRJ, RT 520:466).
Dentro da estrutura do Código Penal, o art. 322 está entre os crimes
funcionais, ou seja, é um crime que só pode ser praticado por funcionário público e
que ofende a administração pública em geral.
Embora a pena privativa de liberdade prevista na Lei de Abuso de Autoridade,
a qual prevê uma pena de 10 dias a 6 meses, seja menor que a pena prevista no
61
JESUS, Damásio E. De. Direito penal, parte especial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p.186;
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de direito penal, parte especial. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
p.342; FREITAS; FREITAS, 2001. p.171; BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado.
São Paulo: Saraiva, 2000, p.1095. Em sentido contrário: NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal.
19. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 272.
62
No sentido de que houve a revogação do art. 322 do CP: RT, 405/417, 512/343, 592/326. Em
sentido contrário: RT, 472/392, 511/322, 520/466.
63
BITENCOURT, 2000. p. 1095
41
Código Penal para o crime de violência arbitrária, o qual prevê uma pena de 6
meses a 3 anos, as outras sanções impostas pela lei de abuso, como a perda do
cargo e inabilitação para o exercício da função pública pelo prazo de até três anos
etc., tornam a punição mais eficiente.64
Pelo exposto, devemos entender que a corrente que deve vigorar é a que
prega a revogação do art. 322 do Código Penal, pois a violência praticada no
exercício da função pública foi abarcada pelo delito especial da Lei de Abuso de
Autoridade.
64
SANTOS, 2003. p.58
42
3.
ASPECTOS GERAIS DA ATIVIDADE POLICIAL
A atividade policial é de suma importância para a preservação da ordem
pública.
O Estado, por meio dos órgãos de segurança pública, faz o uso da força física
legítima para garantir a paz social, a qual é assegurada pela Carta Maior, no seu art.
144, que trata da segurança pública.
Na verdade, tratar do tema “polícia” é sempre problemático, pois estamos
tratando de uma atividade bastante complexa, onde se confrontam os direitos do
cidadão e a supremacia do Estado, neste ato representado pelo poder de polícia.
Não podemos nos esquecer que é tênue a linha que separa a legalidade da
arbitrariedade na atividade policial, principalmente no momento da abordagem
policial.
A abordagem policial é um momento de bastante crítico e tenso tanto para o
policial quanto para o cidadão abordado, e poderá, dependendo das pessoas
envolvidas e da situação, produzir reações agressivas.
Desse procedimento policial poderá resultar a prisão de pessoas em flagrante
delito, a troca de tiro com criminosos, a apreensão de drogas e munições, etc.
Poderá resultar, também, em abusos, pois há policiais que se afastam de sua
missão constitucional e aproveitam-se do poder concedido pelo Estado para praticar
excessos.
Assim, faz-se necessário conhecer quais os reais poderes e limites de
atuação desse agente público, para que ele não venha a cometer abusos e,
consequentemente, violar os direitos fundamentais do cidadão.
3.1.
SEGURANÇA PÚBLICA
Baseado na ideia dos contratualistas, por intermédio do pacto social, cada
indivíduo deveria abdicar parte de sua liberdade em prol de um contrato coletivo,
cuja finalidade maior era a de garantir a todos os pactuantes o direito à vida. Um
desses meios de garantir a vida seria por meio do direito à segurança. O Estado,
43
então, com o objetivo de fornecer a paz social, assumiu a tarefa de garantir ao
cidadão a segurança.
No entanto, hoje, no Brasil, essa paz social ainda não foi alcançada, pois é
notório o aumento da violência e da criminalidade no país. Talvez por isso, a
segurança pública seja um dos assuntos mais discutidos em nosso país. A situação
é tão grave que já se ouve o clamor da população pela presença das Forças
Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) nas ruas65, mesmo sabendo que a sua
formação não é direcionada ao confronto com criminosos.
Prevista no art. 144 da Constituição Federal, a segurança pública é dever do
Estado, direito e responsabilidade de todos, é será exercida para a preservação da
ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, in verbis:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade
de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares
Conforme ensina o constitucionalista José Afonso da Silva a “segurança
pública é a manutenção da ordem pública interna”
66
. Em nome desta segurança
pública se tem praticado as maiores arbitrariedades, e com a justificativa de garantir
a ordem pública, na verdade, muitas vezes, o que se faz é desrespeitar direitos
fundamentais da pessoa humana, quando apenas é autorizado o exercício regular
do poder de polícia.
Originariamente, o termo polícia origina-se do grego politeia e significava o
conjunto de funções necessárias ao funcionamento e à conservação da cidadeestado (polis).
65
No Rio de Janeiro, houve duas experiências: na ECO92 (2ª Conferência Mundial sobre Meio
Ambiente, em 1992) e na Operação Rio, em 1994. “Durante os dias em que foram realizadas as
atividades da “ECO92”, a cidade foi patrulhada pelas Forças Armadas. Este fato, com a adicional
manipulação dos meios de comunicação, criou no imaginário social – não apenas dos cariocas, mas
de todos os brasileiros - uma sensação irreal de paz e segurança que até hoje é lembrada quando os
segmentos mais conservadores e reacionários apresentam a intervenção das Forças Armadas nas
ruas como solução eficaz para o combate ao crime... Em 1994, houve a presença do Exército nas
favelas e subúrbios do Rio de Janeiro, a chamada Operação Rio, que se mostrou um fracasso no que
se refere aos objetivos anunciados. Levou pânico aos moradores de favela, apesar de a mídia tentar
vender uma imagem simpática dos soldados...” DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e
Segurança: Entre Pombos e Falcões. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. p.153
66
SILVA, 2007.
44
Entretanto, hoje, principalmente no Brasil, a expressão polícia está ligada
mais a violência e a repressão.
Nesse sentido, se manifesta Pereira67, nos seguintes termos: “A polícia é a
instituição estatal incumbida do controle social formal, mediante o uso da força física
permitida.”
68
Nessa mesma concepção, podemos dizer que a polícia é a instituição
do Estado que detém o monopólio da violência física legítima.
No Brasil, as polícias são órgãos do Estado, com a finalidade constitucional
de preservar a ordem pública, protegendo as pessoas e seus patrimônios contra os
atos ilegais, e, ainda, com a finalidade de realizar investigações e reprimir os crimes,
controlando, enfim, a violência.
O mais importante, contudo, sendo a polícia instrumento de um Estado
Democrático de Direito, é o seu dever de observar igualmente a democracia e o
Direito, vinculando-se aos seus princípios e regras. Essa vinculação decorre de sua
inserção como órgão na Administração Pública, e, como tal, deve se vincular aos
princípios fundamentais da Constituição Federal.
3.1.1. As Forças Policiais no Brasil
Com a finalidade de delimitar este trabalho, resolvemos enfatizar os trabalhos
das policias civil, federal e militar, principalmente esta última, pois, devido à sua
atividade ostensiva é ela que, no dia a dia, tem um maior contato com a população.
As instituições policiais – a Polícia Federal, a Polícia Civil e a Polícia Militar –
são órgãos tradicionais do Estado, dedicados à aplicação da lei e ao controle da
ordem pública.
As atribuições de cada uma dessas polícias estão previstas na Constituição
em seu art. 144, parágrafos 1º, 4º e 5º, respectivamente.
A
Polícia
Federal,
organizada
e
mantida
pela
União,
tem
como
responsabilidade, dentre outras: apurar infrações penais em detrimento de bens e
serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas
públicas; combater o crime organizado, principalmente aqueles ligados às fronteiras
67
68
PEREIRA, Eliomar da Silva. Revista Brasileira de Ciências Criminais 2009. n. 78.
Ibidem. p.230.
45
nacionais: tráfico de seres humanos, contrabando de armas, tráfico de drogas
ilícitas, trabalho escravo, bem como os crimes políticos. Ela atua em todo território
nacional, principalmente em portos, aeroportos e áreas alfandegárias.
A Polícia Civil e a Polícia Militar são órgãos da Administração Pública dos
Estados. Cada Estado mantém a sua própria polícia, seu efetivo e suas políticas. As
polícias do Distrito Federal e dos Territórios serão organizadas e mantidas pela
União, conforme art. 21, inciso XIV, da Carta Maior.
A Polícia Civil, dirigida por delegado de polícia de carreira, incumbem,
ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, exceto as militares. Assim, além de auxiliar o Poder Judiciário cabe
a essa polícia exercer uma função de natureza investigativa.
Na lição de Denílson Feitoza, ele destaca que:
a Constituição utilizou a expressão polícia judiciária no sentido original com
o qual ingressou em nosso idioma há mais de cem anos, ou seja, como
órgão que tem o dever de auxiliar o Poder Judiciário, cumprindo as ordens
judiciárias relativas à execução de mandado de prisão ou mandado de
busca e apreensão, à condução de presos para oitiva pelo juiz, à condução
69
coercitiva de testemunhas.
À Polícia Militar cabe o policiamento ostensivo e a preservação da ordem
pública. Ela realiza o policiamento de rua e as intervenções em desordens, tumultos
e manifestações públicas e coletivas. Ela também atua no policiamento de trânsito
de veículos.
A Constituição de 1988, art. 144, parágrafo 6º, colocou as polícias Militares
como força auxiliar e reserva do Exército.
Diferentemente da Polícia Civil, a Polícia Militar é marcada por uniformes,
símbolos, veículos caracterizados e pelo desenvolvimento de táticas que propiciem a
maior visibilidade possível e a demonstração de força.
Seus integrantes seguem um modelo de comando baseado na hierarquia e
disciplina e de formação semelhante ao modelo das Forças Armadas. De maneira
simplificada, o objetivo da dessa polícia consiste na atuação anterior à prática de um
crime, no sentido de evitá-lo.
Portanto, dentre essas instituições, podemos destacar que a Polícia Militar é a
que está em maior evidência, e isso pode ser explicado por dois motivos: primeiro,
69
FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal. Niterói: Impetus, 2009. p.171.
46
porque ela conta com efetivo70 policial bem maior que as outras duas forças policiais
– Federal e Civil; depois, porque sua atividade exige uma maior exposição nas ruas.
Por isso, ela tem um contato maior com a população, ou seja, essa relação polícia x
cidadão é mais constante com a Polícia Militar.
3.2.
A HERANÇA DOS REGIMES POLÍTICOS DITATORIAIS
De acordo com Souza71 “no Brasil, assim como na América Latina, as
organizações policiais sofreram forte influência dos regimes ditatoriais e somente
recentemente algumas passaram a ser remodeladas pelos governos democráticos.”
As políticas do Estado Novo, no período de 1937 a 1945, e a Ditadura Militar
no Brasil, que teve início em 1964 e perdurou por quase 20 anos, foram significativos
na formação da polícia brasileira e na sua natureza violenta de atuação. Esses
períodos de excepcionalidade política deixaram um legado triste para nossas
polícias, por isso, hoje, polícia e repressão são duas palavras que estão intimamente
interligadas.
A institucionalização de determinadas práticas não democráticas ou fora dos
padrões exigíveis ao profissionalismo policial, dificulta os processos de reforma. Isso
explica o fato de que, mesmo após a substituição do regime ditatorial pelo Estado
Democrático de Direito, não se observam alterações nos meios e nas formas de
atuação das nossas polícias.
Com efeito, muitos policiais ainda estão habituados com os procedimentos
estabelecidos no período da ditadura. Nesse contexto, ainda há muita resistência
interna que atrapalha o estabelecimento de novas estruturas que poderiam mudar as
organizações policiais e, consequentemente, seus modos de atuação.
Hélio Bicudo72 expressa o seu descontentamento com a polícia brasileira:
70
Por exemplo, no Distrito Federal, atualmente, a Polícia Militar possui um efetivo de 15 mil ativos e a
Polícia Civil um efetivo aproximado de seis mil. Disponível em:
<http://www.pmdf.df.gov.br/?pag=noticia&txtCodigo=4701>. Acesso em: 02 mai. 2010.
71
SOUZA, Luís Antônio Francisco de. Revista Brasileira de Ciência Criminais n. 51 – Segurança
pública, polícia e violência policial. Revista dos Tribunais, 2004. p.263
72
BICUDO, Hélio. A polícia e o uso da força letal. Revista de Direito Constitucional n. 3, 2004.
p.709
47
No sistema atual, em decorrência de uma organização instituída durante a
ditadura militar, voltada para a segurança do Estado, a polícia, dividida em
entre polícia civil e militar, não mais preenche as necessidades de
segurança reclamadas pela sociedade.
Vale lembrar, por exemplo, que a polícia militar, em nosso país, foi criada por
meio da união da Força Pública Estadual com a Guarda Civil, na oportunidade do
Golpe de 1964. Constitui-se, assim, em uma milícia auxiliar do Exército a fim de
conter as manifestações populares e os movimentos de guerrilha estimulados pelos
ideais comunistas.73
A polícia, na verdade, não consistia em um órgão de conservação e de
garantia da paz e da tranquilidade pública. Era, na verdade, um órgão de repressão
ao cidadão, o qual era visto como um inimigo do Estado, incluídas entre as suas
performances a prática da tortura e o desaparecimentos dos opositores do regime.
Desde o fim do regime militar ainda não se ousou mudar esse aparelho de
segurança estabelecido. A polícia militar é sua herdeira principal, tendo em vista que
seus treinamentos de formação se assemelham aos treinamentos de guerra. Eles
são mais militares do que policiais. Assim, com esse modelo, a polícia nas ruas não
servirá à prevenção dos crimes, mas sim à sua repressão.74
Este mesmo pensamento é expresso por Luiz Amaral:
A formação do militar, que é essencialmente profissional da guerra, não
deve ser confundida com a do policial, mesmo porque o mais cruel dos
bandidos não é o inimigo mortal a ser eliminado (senão a ser preso) como é
fato normal e decisivo nas guerras. A essência da guerra é a eliminação do
inimigo, a essência da missão policial é preservar a ordem pública e prender
o criminoso, nada mais que isso... Essa confusão na formação e na rotina
operacional do policial explica muitas de nossas crises no sistema de
75
segurança pública brasileiro.
Podemos afirmar que a violência policial é tolerada por grande parte da
sociedade. Essa tolerância acaba se transformando em apoio à violência policial
além de criar obstáculos para a reforma das polícias.
Essa prática nociva, aos olhos de algumas autoridades públicas e de certos
setores da sociedade, é encarada como um meio legítimo empregado na guerra
contra o crime.
73
BRUTTI, Roger Spode. Revista IOB de direito penal e processo penal. Ano X, nº 55, Abr-Maio
2009. p.9.
74
BICUDO, 2004. p.711
75
AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Direito e segurança pública – a juricidade operacional da
polícia. Brasília: Consulex, 2003. p.60.
48
Entretanto, esse tipo de pensamento acaba por criar um círculo vicioso, pois a
imagem de polícia autoritária, com autorização do Estado para usar da violência,
sobrevive no imaginário coletivo da população, o que será refletido na formação do
policial recém chegado na instituição, pois o policial é um ser oriundo da sociedade
em que vive e reflete o pensamento dessa sociedade.
Com grande maestria Jorge da Silva corrobora com essa tese:
A ideia de que a segurança pública é sinônimo de polícia, e de que polícia é
sinônimo de força, além de ser nutrida por boa parte da população, também
o é por um grande número de autoridades e operadores do setor. Tendo em
vista que os Estados são os principais responsáveis por lutar contra a
insegurança, é nesse âmbito que se percebe mais nitidamente como essa
idéia é prejudicial, e como a pretensão de enfrentar o crime e a violência
76
apenas com a policia resulta no aumento desses males.
Por isso, o despreparo de agentes policiais devido à formação deficitária
proporcionada pelo Estado, transforma aqueles que deveriam ser protetores da
população em vilões fardados, que se utilizam da força contra aqueles que não têm
como se defender, principalmente pobres e negros, o que indica o seu caráter
seletivo e classista:
A predominância de uma imagem negativa da polícia em todas as classes
sociais também indica que os pobres, negros, índios, populações carentes,
setores sociais “vulneráveis”, estão submetidos a maiores arbitrariedades e
maus tratos, enquanto as classes mais abastadas recebem um tratamento
77
melhor.
Desse modo, a polícia brasileira e a sua história de violência e arbitrariedade
contrastam negativamente com a consolidação de uma sociedade democrática, com
um Estado de Bem-Estar Social, com uma ordem baseada na cidadania e no
respeito aos direitos humanos.78
3.3.
ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL
De acordo com o art. 23, inciso III, do Código Penal não há crime quando o
agente pratica o fato em estrito cumprimento do dever legal.
76
SILVA, Jorge da. Criminologia Critica – Segurança e Polícia. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
p.194.
77
DORNELLES, 2003. p. 83.
78
Ibidem. p. 77.
49
Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:
[...]
III – em estrito cumprimento de dever legal.
O Código Penal Militar, no art. 42, inciso III, também traz a mesma previsão:
Art. 42. Não há crime quando o agente pratica o fato:
[...]
III - em estrito cumprimento do dever legal;
Trata-se de uma causa de excludente de ilicitude. Quem cumpre um dever
legal dentro dos limites impostos pela lei obviamente não pode estar praticando ao
mesmo tempo um ilícito penal, a não ser que aja fora daqueles limites.79
O Código Penal não definiu o conceito de estrito cumprimento do dever legal
e a sua conceituação coube à doutrina. Fernando Capez80 assim define o estrito
cumprimento do dever legal: “causa de exclusão da ilicitude que consiste na
realização de um fato típico, por força do desempenho de uma obrigação imposta
por lei.”
O dever legal é uma obrigação imposta por lei, significando que o agente, ao
atuar tipicamente, não faz nada mais do que cumprir uma obrigação. Entretanto,
para que esta conduta, embora típica, seja lícita, é necessário que esse dever seja
derivado direta ou indiretamente de lei. Pode, portanto, constar de regulamento,
decreto ou qualquer ato administrativo infralegal, desde que sejam originados da lei.
Esse dever também pode ser emanado de decisões judiciais, que são
determinações emanadas do Poder Judiciário em cumprimento da ordem legal.81
O cumprimento estrito, por sua vez, deve ocorrer nos exatos termos da lei,
não podendo em nada ultrapassá-los, ou seja, há limites para que tal obrigação seja
cumprida, e o agente obrigado só dever proceder até esse exato limite. Assim,
exige-se que o agente atue dentro dos rígidos limites que obriga a lei. Ultrapassando
esses limites, desaparece a excludente, e os excessos cometidos pelos agentes
poderão constituir crime de abuso de autoridade (Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de
1965), ou delitos previstos no Código Penal.
79
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal – parte geral. 10. ed. rev. e atual. vol. I. São Paulo:
Saraiva, 2006. p. 290.
80
Ibidem. p.290.
81
Ibidem. p.290
50
Portanto, para que a haja a excludente é necessário que o executor seja um
funcionário público ou agente público que age por ordem da lei, tais como os
policiais e oficiais de justiça. Não será excluído o particular quando ele estiver
exercendo a função pública, por exemplo: perito, jurado ou mesário da Justiça
Eleitoral.
Dessa forma, agem em estrito cumprimento do dever legal os policiais que
empregam força física para cumprir o dever (evitar fuga de presídio, impedir a ação
de pessoa armada que está praticando um ilícito ou prestes a fazê-lo, controlar a
perturbação da ordem pública etc.).82
Importante também salientar que se exige o elemento subjetivo nessa
excludente, ou seja, o agente deve ter conhecimento de que está praticando um fato
em face de um dever imposto pela lei. Caso contrário, o fato será considerado ilícito.
Portanto, o agente policial, que faz parte da Administração Pública, deve
exercer a sua missão de acordo com o que está previsto na legislação, a fim de
cumprir a missão constitucional atribuída aos órgãos de segurança pública.
Para a consecução deste objetivo, o agente policial que cumprir a
determinação legal somente poderá valer-se de meios autorizados pela ordem
jurídica e de modo que atinja, o menos possível, o interesse dos particulares, com
atenção especial à não violação dos direitos fundamentais, salvo na medida
expressamente permitida pela Constituição Federal. Então, desde que o policial aja
com proporcionalidade e razoabilidade e dentro do estrito cumprimento do dever
legal, fica excluída a ilicitude da conduta, conforme previsão do artigo 23, inciso III,
do Código Penal e artigo 42, inciso III, do Código Penal Militar.
3.4.
PODER DE POLÍCIA
Desde que o homem concebeu a ideia de Estado, nasceu também a ideia de
que deveria fazer parte de seu próprio conceito a existência de um poder superior
para fazer frente aos membros da coletividade.
82
MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal – parte geral. vol. I, 24
ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2007. p.185
51
Essa ideia se baseia no entendimento de que a vida em sociedade traz aos
particulares algumas limitações, pois, em muitas ocasiões, o interesse individual do
cidadão deve ceder lugar ao interesse coletivo.
Com fundamento no poder de polícia vigora o princípio da predominância do
interesse público sobre o particular, ou seja, é a supremacia da Administração sobre
os administrados.83
Pelo conceito moderno, adotado pelo direito brasileiro, Di Pietro84 conceitua o
poder de polícia como sendo “a atividade do Estado consistente em limitar o
exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”.
Esse interesse público compreende muitos setores da sociedade, tais como a
segurança, a moral, a saúde, o meio ambiente, o patrimônio cultural, a propriedade,
etc.
O conceito legal de poder de polícia encontra-se no artigo 78 do Código
Tributário Nacional, in verbis:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública
que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a
prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público
concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da
produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas
dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à
tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais
ou coletivos.
Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia
quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável,
com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei
tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.
O poder de polícia pode incidir em duas áreas de atuação do Estado: na área
administrativa e na área judiciária.
A diferença principal consiste que a polícia administrativa tem caráter
preventivo e a polícia judiciária tem caráter repressivo. A primeira tem por objetivo
impedir as ações anti-sociais, e é regida pelo Direito Administrativo, incidindo sobre
bens, direitos ou atividades; a segunda tem por objetivo punir os infratores da lei
penal, e é regida pelo Direito Processual Penal, incidindo sobre pessoas.85
Importante a explanação de Amaral sobre essa diferença de atuação das
polícias administrativa e judiciária:
83
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 126
Ibidem. p.129
85
Ibidem. p.129
84
52
A polícia administrativa (antítese da judiciária) tem por objeto a manutenção
habitual da ordem pública em cada lugar e em cada parte da administração
geral. Ela tende, no âmbito da segurança pública, principalmente a prevenir
os delitos e as desordens. A polícia judiciária investiga os delitos que a
polícia administrativa não pôde evitar que fossem cometidos, colige as
provas e entrega os autores aos tribunais incumbidos de puni-los. Na
verdade, a atividade de qualquer polícia é sempre administrativa e nunca
judiciária (daí por que vinculadas ao executivo, jamais ao Poder Judiciário)
embora proceda por normas de Direito Processual Penal, eis que seu
serviço é aviar a melhor atuação do jus puniendi cujo titular é o Estado e
que é exercido pelo Ministério Público, mas julgado e decidido pelo Poder
86
Judiciário.
O poder de polícia, mesmo que seja discricionário, esbarra em algumas
limitações impostas pela lei, pois não é concebível que o exercício do poder de
polícia desrespeite direitos e garantias individuais.
O poder de polícia possui limitações que, se ultrapassadas, levam ao
exercício anormal do poder administrativo, levam à arbitrariedade, ao abuso de
autoridade, e sujeita o agente público responsável às sanções legais, de natureza
administrativa, civil e criminal.87
Para Di Pietro, alguns autores indicam regras a serem observadas pela
polícia administrativa, para não eliminar os direitos individuais, são elas:
1. A da necessidade, em consonância com a qual a medida de polícia só
deve ser adotada para evitar ameaças reais ou prováveis de perturbações
ao interesse público;
2. A da proporcionalidade, já referida, que significa a exigência de uma
relação necessária entre a limitação ao direito individual e o prejuízo a ser
evitado;
3. A da eficácia, no sentido de que a medida deve se adequada para
88
impedir o dano ao interesse público.
Desse modo, o poder de polícia só deve ser exercido para atender ao
interesse público, não sendo válido quando desproporcional ou excessivo em
relação aos direitos do cidadão.
3.4.1. Características do Poder de Polícia
86
AMARAL, 2003. p.71.
MUKAI, Toshio. Direito administrativo sistematizado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 96.
88
DI PIETRO, 2006. p. 133
87
53
O poder de polícia possui certos atributos específicos: a discricionariedade, a
auto-executoriedade e a coercibilidade.
Às vezes, a lei deixa certa margem de liberdade de apreciação quanto a
determinados elementos, como o motivo ou o objeto, mesmo porque ao legislador
não é dado prever todas as hipóteses possíveis a exigir a atuação da polícia. Desse
modo, em grande parte dos casos concretos, a Administração terá que decidir qual o
melhor momento de agir, qual o meio de ação mais adequado, qual a sanção cabível
diante das previstas na norma legal. Nessas circunstâncias, o poder de polícia será
discricionário.89
A auto-executoriedade é a possibilidade que a Administração tem de, com os
próprios meios, pôr em execuções as suas decisões, ou seja, a Administração não
precisa recorrer previamente ao Poder Judiciário para tomar suas decisões.
Importante frisar que a auto-executoriedade não existe em todas as medidas de
polícia. Para que a administração possa se utilizar dessa faculdade, é necessário
que a lei a autorize expressamente, ou que se trate de medida urgente, sem a qual
poderá ser ocasionado prejuízo maior para o interesse público.90
Quanto à coercibilidade, esta é indissociável da auto-executoriedade. O ato
de polícia só é auto-executório porque dotado de força coercitiva. A coercibilidade é
imposição imediata ao administrado da obrigação de atender fielmente à
determinação contida no ato, sob pena de cumprimento forçado. Desse modo, as
medidas de polícia, de natureza imperativa, justificam até mesmo o uso de força
policial para executá-las.91
3.5.
ABORDAGEM POLICIAL
No dia a dia da atividade policial a abordagem policial é uma constante na
relação entre a polícia e o cidadão. Trata-se de uma forma de intervenção que
atinge as liberdades públicas.
Márcio Luiz Boni, assim define a técnica da abordagem policial:
89
DI PIETRO, 2006. p. 130.
Ibidem. p. 131.
91
MUKAI, Toshio, 2000. p.97
90
54
A abordagem policial pode ser compreendida como atividade material
desempenhada pelas autoridades legalmente investidas nas funções
públicas e dotadas de competência para a ação preventiva e repressiva,
com fundamento no poder de polícia, visando à preservação da ordem
92
pública.
Embora haja previsão legal, não podemos dizer que se trata de uma situação
agradável. Por isso, é compreensível entender que um cidadão honesto se sinta
ofendido ao ser abordado por um policial. Assim, a abordagem policial nos leva a
uma discussão sobre tal procedimento policial.
De acordo com o Manual Básico de Técnicas Operacionais Policiais da
Academia Nacional de Polícia a abordagem é utilizada para averiguações, para
efetuar prisões em flagrante, para cumprir mandados de busca, bem como, destinase à apreensão e à prisão. A abordagem é também conhecida como técnica de
aproximação e domínio de pessoas, veículos e edificações.93
A abordagem pessoal é realizada a partir do surgimento de fundadas
suspeitas, flagrante delito ou cumprimento de mandado de prisão, sendo a ação
policial direcionada a uma ou mais pessoas. Ela tem por objetivo levantar subsídios
para uma investigação policial em curso ou atender às circunstâncias de momento.
Durante a sua realização poderá resultar em prisão em flagrante, caso seja
encontrado com a pessoa abordada material de origem ilícita, ou em termo
circunstanciado em decorrência de desacato, desobediência e resistência.
Interessante é o termo “fundada suspeita”, pois não há normas específicas
definindo o que pode ser a fundada suspeita, um dos requisitos para que possa
ocorrer a abordagem policial. Assim, os critérios para “selecionarem” locais e
pessoas que serão alvos de revistas policiais estão resguardados no poder
discricionário dos policiais.
A abordagem também poderá ocorrer em veículos com a finalidade de
interceptá-los e vistoriá-los. Esse tipo de abordagem também é realizado com o
intuito de averiguar práticas delituosas e efetuar prisões. Essas operações policiais
também são conhecidas como “blitz”, “batida” ou “barreira”.
92
BONI, Márcio Luiz. Revista da faculdade de direito de campos, Ano VII, N° 9 - Dez. 2006. p. 639.
Manual básico de técnicas operacionais policiais da academia nacional de polícia - polícia
federal, 2006. p. 7.
93
55
Portanto, a abordagem policial, em pessoas ou veículos, não constitui abuso,
desde que o policial não restrinja o direito de ir e vir do indivíduo por espaço de
tempo exagerado ou use a força sem necessidade:
Os agentes policiais devem compenetrar-se de que se usam a força na
estrita medida da necessidade, pena de descambar para a arbitrariedade
violenta e agressão, que não se confunde com discricionariedade. Assim,
responde por abuso de autoridade o policial que, a pretexto injustificado,
detém alguém mediante emprego de força física e agressões, máxime
porque, embora possa o agente da lei, nas hipóteses legais, suprimir a
liberdade do cidadão, impõe-se o respeito à incolumidade física e às
condições primárias de vida do detido. (TACRIM-SP- AC - Rel. Geraldo
Gomes- JUTACRIM 44/425).
Dessa forma, a autoridade policial não pode deter uma pessoa por prazo
superior aos trâmites normais e burocráticos que visam identificar o suspeito, nem
pode atingir sua integridade física fora das hipóteses legais. Da mesma forma, não
poderá haver abordagem ou prisão baseada em mera suspeita.
Por isso, nas abordagens de rotina, as autoridades policiais não podem agir
suprimindo direitos dos cidadãos, tomando medidas abusivas e ilegais sob a simples
justificativa de interesse social de segurança pública.
A realização da abordagem policial deve ter como base a regra geral da
liberdade individual do cidadão, que se encontra amparada nos princípios
constitucionais da dignidade da pessoa humana, da integridade física, da liberdade
de locomoção e da presunção de inocência, consagrados, respectivamente, nos
artigos 1° e 5°, incisos III, XV e LVII da Carta Magna.
No entanto, haverá momentos em que outros direitos apresentem-se mais
explícitos, por se revestir do interesse público, nestes casos, um princípio pode
ceder passagem ao outro, permitindo a relativização aos direitos fundamentais
enunciados, por intermédio da atuação preventiva ou repressiva, devidamente
sujeita aos limites legais e razoáveis.
Desse modo, visando resguardar os princípios que regem o ordenamento
jurídico, nas abordagens policiais são impostos limites à discricionariedade da
administração, para que, assim, o ato de polícia não se converta em abuso ou
excesso.
Assim, todo e qualquer agente público, principalmente o agente policial, só
pode agir submetido aos princípios jurídicos e éticos que norteiam a atividade
pública. Essa atuação só se dará, legitimamente, ao abrigo dos princípios da
56
razoabilidade, da proporcionalidade e, principalmente, da legalidade, pois na
atividade pública não há liberdade de atuação, mas sim vinculação à lei.
3.5.1. Busca Pessoal
A busca em pessoas, em veículos e em domicílios é uma constante na
atividade policial. No entanto, não se admitirá que ela seja arbitrária ou
desnecessária.
O Código de Processo Penal brasileiro especifica duas modalidades de
busca: a domiciliar e a pessoal, in verbis:
Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.
§ 1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a
autorizarem, para:
a) prender criminosos;
b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;
c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos
falsificados ou contrafeitos;
d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime
ou destinados a fim delituoso;
e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;
f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu
poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa
ser útil à elucidação do fato;
g) apreender pessoas vítimas de crimes;
h) colher qualquer elemento de convicção.
§ 2o Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de
que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas
letras b a f e letra h do parágrafo anterior. (grifo nosso)
Como vimos, a busca poderá ser domiciliar ou pessoal. No entanto, para fins
de delimitar este tema, vamos nos ater mais à busca pessoal, pois, nas abordagens
policiais realizada nas ruas, é a mais usual.
Trata-se de ação que impõe restrição aos direitos individuais, por isso, a
busca somente poderá ser realizada nas condições estabelecidas na lei processual
e nos direitos e garantias constitucionais. No entanto, na prática, essa vedação legal
tem sido desrespeitada.
A busca pessoal, que também pode ser denominada revista ou, vulgarmente,
“baculejo”, é procedida quando há fundada suspeita de que alguém oculte consigo
arma proibida ou objetos mencionados nos termos do parágrafo 2º, art. 240, do
Código de Processo Penal. Isso quer dizer, algum fato ou situação deve ocorrer para
57
que se desperte o interesse do policial para a necessidade de se realizar a busca
pessoal.
A busca pessoal é feita diretamente no corpo, por meio de investigações
oculares ou manuais; poderá também ser feita nos objetos que a pessoa traga
consigo, como, por exemplo, bolsas e sacolas.
Em mulheres, de acordo o art. 249 do Código de Processo Penal, a busca
será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência.
Assim, em situação de emergência, o policial executará a busca, com discrição e o
devido respeito.
A busca realizada em veículos particulares, realizadas nas “blitz” policiais, tão
comum nos dias de hoje, também deverá ter como fundamento alguma suspeita, e
constitui parte da atividade de prevenção aos delitos.
No entanto, seja na busca pessoal ou veicular, os excessos não podem ser
tolerados, devendo ser punido o abuso praticado pela autoridade investida de poder
pelo Estado:
Caso a busca tenha sido feita sem que haja fundada suspeita, a conduta do
agente policial poderá se caracterizar como crime de abuso de autoridade
(art. 3º, a, da lei nº 4.898/65), por exemplo, se o fizer tão somente para
94
demonstrar seu poder.
Conforme afirmado anteriormente, a busca pessoal não poderá ser arbitrária,
ou seja, não pode ser feita desnecessariamente. Além disso, não pode implicar em
humilhação às pessoas, pois o policial como representante oficial do Estado, deve
velar pela prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito, conforme previsto no inciso III, art.
1º, da Carta Maior.
3.5.2. Subjetividade na busca pessoal
A busca pessoal também está prevista no art. 244 do Código de Processo
Penal. Este artigo prescreve que se houver fundada suspeita de que a pessoa esteja
94
RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Lumin Júris, 2009. p.151.
58
na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituem o corpo de delito,
o agente policial poderá revistá-la, sem a necessidade de mandado, in verbis:
Art. 244 A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou
quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma
proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando
a medida for determinada no curso de busca domiciliar.
A vaga e subjetiva expressão “fundada suspeita”, carece de objetividade e
precisão, e abre um leque enorme de conflitos sobre o seu alcance. Vislumbra-se,
desse modo, um terreno fértil para interpretações subjetivas, preconceituosas e
racistas, pelo agente público autorizado a realizar a busca pessoal.
De acordo com pesquisa realizada com policiais, na cidade do Rio de Janeiro,
em 2003, sobre pessoa suspeita, ficou demonstrada a falta de critérios nas
respostas:
As entrevistas revelaram que, para um policial, talvez não haja pergunta
mais difícil de responder do que esta: “O que leva um policial a considerar
uma pessoa suspeita”? Algumas falas ilustram bem a dificuldade:
...nós não temos um detector de bandido...
Vai depender muito da área. São tantos os fatores, que não vale a pena
enumerar, porque um fator entra dentro do outro...
Olha só: a abordagem é uma situação muito discutível porque a abordagem
é muito subjetiva. Às vezes uma coisa pode ser suspeita para mim, mas
pode não ser suspeita para outra pessoa, vai depender do ponto de vista.
Não está escrito na testa.
O policial não tem bola de cristal.
95
Tem policial que tem estrela para farejar.
Segundo as autoras Silvia Ramos e Leonarda Musumeci:
É um tema onde não existe literatura policial, e, por existir uma lacuna, os
policiais da ponta da linha se sentem à vontade para usar a
discricionariedade em suas abordagens ou mesmo definir quem é o
suspeito. Outro aspecto que chama a atenção na pesquisa junto à PM é a
pobreza do discurso sobre a suspeita. Não só não conseguimos localizar
um único documento que definisse parâmetros para a constituição da
“fundada suspeita” (expressão usada reiteradamente por policiais, mas sem
qualquer sentido preciso), como encontramos nas falas de oficiais, antigos
ou jovens, de alta ou baixa patente, uma articulação tão precária a respeita
desse tema quanto a observada na “cultura policial de rua” expressa pelas
praças de polícia. É surpreendente, para não dizer espantoso, que a
instituição não elabore de modo explicito o que os próprios agentes definem
como uma das principais ferramentas do trabalho policial (a suspeita); que
não focalize detidamente esse conceito nos cursos de formação, nas
documentações e nos processos de qualificação, nem o defina de modo
95
RAMOS, Silvia e; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e
discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.37-38.
59
claro e objetivo, deixando a mercê do senso comum, da “intuição”, da
96
cultura informal e dos preconceitos correntes.
Desse modo, devido à complexidade do assunto, podemos perguntar: quando
ocorre a fundada suspeita?
De acordo com o ensinamento de Guilherme de Souza Nucci a respeito do
termo “fundada suspeita”:
É requisito essencial e indispensável para a realização da busca pessoal,
consistente na revista do indivíduo. Suspeita é uma desconfiança ou
suposição, algo intuitivo e frágil, por natureza, razão pela qual a norma
exige fundada suspeita, que é mais concreto e seguro. Assim, quando um
policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua
experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável,
como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento
usado para o cometimento do delito, bem como pode ele mesmo visualizar
uma saliência sob a blusa do sujeito, dando nítida impressão de se tratar de
um revólver. Enfim, torna-se impossível e impróprio enumerar todas as
possibilidades autorizadoras de uma busca, mas continua sendo curial
destacar que a autoridade encarregada da investigação ou seus agentes
podem – e devem – revistar pessoas em busca de armas, instrumentos do
crime, objetos necessários à prova do fato delituoso, elementos de
97
convicção, entre outros, agindo escrupulosa e fundamentadamente.
Nota-se também que, diferentemente da busca domiciliar, que é limitada por
critérios objetivos, conforme inciso XI, artigo 5º, da Constituição Federal, abaixo
transcrito, a busca pessoal não possui um rol taxativo de situações do que seria a
fundada suspeita, deixando ao arbítrio do agente policial avaliar a situação para agir
de acordo com a sua convicção:
A casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar
sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou
desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação
judicial.
Por isso, analisando a expressão "fundada suspeita", percebe-se que o
legislador deixou uma considerável margem de avaliação subjetiva ao agente
policial, ou seja, existe um vácuo legislativo.
Essa interpretação subjetiva, muitas vezes preconceituosa, não é feita apenas
pelo agente policial autorizado a realizar a busca pessoal, mas pela própria
sociedade, que estigmatiza determinadas classes de pessoas, seja pela cor da pele
96
RAMOS; MUSUMECI, 2005. p.54
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2009.
p. 493.
97
60
(negros), aparência (tipo de vestimentas, corte de cabelo etc.) ou poder aquisitivo
(classe social desprivilegiada).
Como exemplo de casos preconceituosos, podemos citar o caso em que o
cidadão está em local público usando suas vestimentas com base no “kit-peba”
(casacão, bermudão, boné, tênis de marca, correntes e anéis).
Abramovay em livro publicado sobre os jovens da periferia de Brasília,
confirma essa subjetividade na busca pessoal:
[…] os policiais confirmam que as turmas de jovens paradas nas esquinas
são imediatamente consideradas suspeitas e sujeitas a revistas: „Montinho
assim na esquina, rodinha, a gente vai abordar pra ver o que eles estão
fazendo ali. (…) A nossa função é abordar antes que eles venham cometer
qualquer erro.‟ O „kit peba‟ – bermuda „ciclone‟, calça caindo, cabelo solto,
boné, tênis de marca, correntes e anéis – a bicicleta, a forma de os jovens
caminharem, falarem e olharem para os policiais são associados ao
98
malandro ou bandido.
Podemos inferir, então, que uma pessoa vestida dessa forma, com certeza,
será um suspeito em potencial para a polícia, que analisará (de forma
preconceituosa) a “fundada suspeita” com base nas vestimentas do cidadão.
O Supremo Tribunal Federal assim se manifestou sobre o assunto:
A fundada suspeita, prevista no art. 244, do CPP, não pode fundar-se em
parâmetros subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a
necessidade da revista, em face do constrangimento que causa. Ausência,
no caso, de elementos dessa natureza, que não se pode ter por
configurados na alegação de que trajava o paciente, um „blusão‟ suscetível
de esconder uma arma, sob risco de referendo a condutas arbitrárias,
ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de
poder (HC nº 81.305-4/GO, 1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 13.11.01,
v.u., DJU 22.02.02, p. 35).
Desse modo, essa margem de consideração subjetiva deve ser precedida de
uma análise da existência de elementos concretos, autorizadores da real e efetiva
necessidade da medida, pois há um grande risco de causarem constrangimentos ao
cidadão – autor ou não de crimes, com ofensas a direitos e garantias fundamentais,
tais como: a inviolabilidade à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das
pessoas, conforme previsto no inciso X, artigo 5º, da Carta Magna.
A prática desses abusos, que além de englobar infração aos direitos
constitucionais e aos direitos humanos, poderá acarretar ao policial autor de ato
98
ABRAMOVAY, M. et alii. Gangues, galeras, chegados e rappers. Juventude, violência e
cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. p.155
61
criminoso responsabilização nas esferas administrativa, civil e penal, em face do
disposto na Lei nº 4.898 de 1965 – Lei do Abuso de Autoridade.
Assim, o agente policial necessita de algo mais concreto como, por exemplo,
a denúncia feita por terceiros de que a pessoa porta algum instrumento usado para o
cometimento de crimes; informações de uma ocorrência policial repassada por
Central de Operações da polícia por meio de sistema de comunicações; a
visualização, pelo próprio policial, de uma saliência sob a blusa do sujeito, dando
nítida impressão de se tratar de arma de proibida; a visualização, pelo próprio
policial, de que a pessoa traz consigo qualquer elemento de convicção para
elucidação de fatos; se a pessoa, ao avistar uma viatura policial militar, empreender
fuga em desabalada carreira.
Neste mesmo sentido se posiciona Assis a respeito da busca pessoal:
É aquela efetuada especificamente na pessoa. Pode ser realizada por
qualquer PM com ou sem o respectivo mandado. Isto não significa que seja
lícito ao PM revistar indiscriminadamente todo cidadão, o que caracteriza
uma atitude despropositada além de ilegal, considerando que cada cidadão
tem o direito de ir e vir sem ser molestado.
Postulamos que a fundada suspeita não pode encontrar morada apenas na
presunção, mas exige algo além, como um comportamento suspeito
(acelerar o veículo ao avistar o policial militar em serviço, desviar o olhar,
99
executar manobra de modo a não passar por bloqueio etc.).
Podemos perceber, desse modo, que há inúmeras possibilidades de
situações que podem caracterizar, na avaliação subjetiva do policial, a ocorrência da
fundada suspeita.
No entanto, esta avaliação deverá estar sempre dentro dos limites legais da
discricionariedade, baseada em algo concreto e seguro, pois a simples suspeita, que
é uma desconfiança, suposição ou algo intuitivo, é muito frágil.
Então, o agente policial deverá observar as garantias de prescrição genérica,
baseado no princípio da dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos,
respeitando a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, além da
integridade física e moral do indivíduo, previstos na Carta Maior.
99
ASSIS, Jorge César. et alii. Lições de Direito para a atividade das policias militares e das
forças armadas. Curitiba: Juruá, 2006, p. 50-51.
62
CONCLUSÃO
O exercício da atividade policial é uma função Estatal que tem por objetivo a
paz social. A segurança pública é dever do Estado, um direito do cidadão e
responsabilidade de todos, conforme art. 144 da Carta Magna. Em um Estado
Democrático de Direito, em que deve prevalecer o respeito às leis e aos direitos
fundamentais, esse poder Estatal somente poderá existir e atuar se respeitados os
direitos e as garantias individuais do cidadão. Esses direitos e garantias tem como
ponto fundamental a necessidade de impedir os abusos de poder do Estado, neles
incluem-se os abusos das autoridades policiais, tão comum nos dias atuais.
Na atividade policial, a constante intervenção nos mais variados conflitos
sociais atingem as liberdades públicas, por isso, faz-se necessário que a polícia
tenha a real compreensão dos seus poderes e limites, para fins de não agredir os
direitos assegurados aos cidadãos. Por isso, requer-se desse agente público, o
pleno conhecimento das hipóteses em que ele poderá valer-se do poder de polícia,
utilizando-se dos meios necessários e adequados a fim de vencer as resistências
injustificadas. Essa faculdade conferida pelo Estado ao agente público, mesmo
sendo um ato discricionário, deverá obedecer aos princípios da legalidade, da
proporcionalidade e da razoabilidade.
Desse modo, o respeito aos Direitos Humanos, por parte da polícia, se faz
necessário, pois, além de ser um imperativo ético e legal, constitui também uma
exigência prática em termos de aplicação da lei. Assim, uma polícia que atua à
margem da lei, não viola apenas a lei, mas atinge, também, a dignidade da pessoa
humana, além de manchar a própria instituição policial. Portanto, os princípios
constitucionais e os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos são as
referências que devem nortear a atuação da polícia.
No entanto, todos esses direitos e garantias não estão protegendo o cidadão,
pois, hoje, a atuação da polícia está distante do ideal, haja vista que ela atua
desrespeitando os direitos do cidadão, principalmente na abordagem policial. Isso
pode ser comprovado pelos fatos noticiados, diariamente, pela mídia, onde policiais,
63
baseados no seu poder de polícia e na discricionariedade, abusam da violência,
atingindo principalmente jovens, negros e pobres.
Por isso, hoje, podemos dizer que há uma inversão de valores em relação a
segurança pública, pois é comum ouvir pessoas afirmando que sentem medo da
polícia, medo de serem abordados por policiais.
Contribuiu para essa situação o legado histórico deixado pelo Regime Militar,
em especial na Polícia Militar, que é uma força auxiliar do Exército Brasileiro. Essa
afirmação pode ser comprovada no relatório Políticas Sociais: Acompanhamento e
Análise, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), fundação
pública federal vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da
República, apresentado em novembro de 2009, em que o instituto criticou o modo
como as polícias (civil e militar) combatem o crime no país, e afirmou, ainda, que a
estrutura da polícia é a mesma do regime militar, ou seja, não foi desconstituído o
aparato repressor desenvolvido durante a ditadura. Logo, não poderia haver legado
pior para a polícia, pois era um regime que operava baseado na supressão de
direitos e no uso da força física.
Além disso, também contribui para esse quadro, o descaso com que as
autoridades governamentais tratam do problema da segurança pública, ou seja, os
órgãos e as instituições de segurança foram abandonados, pois além faltar recursos
materiais, falta o principal, policiais treinados e qualificados, conhecedores de seus
direitos e deveres.
Não podemos nos esquecer, ainda, que de alguma forma contribuímos para
manter a truculência policial, haja vista que há uma espécie de clamor popular, onde
parte da sociedade acredita na atuação violenta da polícia como uma forma de
enfrentar e acabar com o problema da criminalidade. Há, ainda, aqueles que
acreditam que o simples aumento do efetivo policial também teria o poder de acabar
com a criminalidade. Pensar, assim, de forma simplista e em solução mágicas, é
reconhecer a incompetência do Estado, ou mesmo a falência do próprio Estado.
Os dispositivos legais para inibir as práticas de abusos da autoridade policial
já existem, e são muitos: leis, direitos e garantias constitucionais, Pactos, Tratados e
Declarações universais. No entanto, todos parecem ineficazes frente à truculência
policial.
64
Podemos citar, como exemplo, a Lei nº 4.898 de 1965, que instituiu os crimes
de abuso de autoridade, e que deveria servir como paradigma capaz de orientar a
atuação da polícia, para que esta não venha cometer abusos contra o cidadão,
porém, ela se mostra ineficiente.
Assim, para que haja uma polícia cidadã, substituindo o modelo atual
autoritário e antidemocrático com fundamento nas práticas violentadoras dos direitos
humanos, é imperioso entender a polícia como um serviço público, e não como uma
força pública.
Deve-se, também, realizar uma reforma séria e profunda no setor da
segurança pública, com as seguintes medidas: a desmilitarização de nossas
polícias, pois está comprovado que sistema atual não funciona; a valorização da
atividade policial, com remuneração digna; a criação do policiamento comunitário,
pois deve haver uma atuação em parceria com a comunidade, discutindo as
soluções para os problemas da criminalidade, facilitando a atuação preventiva da
polícia; o rompimento da tradição da seletividade penal; a atuação articulada com
outros órgãos públicos; a qualificação e profissionalização do policial, haja vista a
carência de um preparo técnico, ético, emocional e jurídico; o uso da força como
último recurso, de forma moderada e dentro dos princípios da proporcionalidade e da
razoabilidade; e que haja respeito à liberdade de locomoção e à integridade física e
moral do cidadão.
Importante, também, faz-se a regulamentação mais específica do termo
“fundada suspeita”, prevista no Código de Processo Penal (artigos 240, parágrafo 2º,
e 244), para que o policial não tenha somente como parâmetro a sua subjetividade
na hora de decidir quem realmente se enquadra no esteriótipo da “fundada
suspeita”. Assim, impondo limites no poder discricionário do policial, ele terá que
atuar com mais critério e precisão na hora de decidir quem será abordado e sofrerá
a busca pessoal.
Portanto, a população não quer uma polícia despreparada, que atua com
base no poder de polícia exacerbado; na teoria da “rotulação” e do “etiquetamento”;
com base no direito penal máximo; da tolerância zero; no subjetivismo
preconceituoso da “fundada suspeita”, ou seja, a população não quer uma polícia
que atua desrespeitando os direitos fundamentais e que vê o cidadão como inimigo
do Estado.
65
Enfim, o país precisa de uma polícia que atue não apenas como instrumento
de luta contra o crime, mas também que seja um instrumento de garantia da
cidadania, e que a abordagem policial seja realmente um meio de prevenção ao
crime.
66
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Paulo Sergio Medeiros - Universidade Católica de Brasília