A questão da Liberdade na obra: Existencialismo é um Humanismo de Jean-Paul Sartre. Amarildo Fernando de Almeida1 I. INTRODUÇÃO No presente artigo, nosso objetivo maior foi tecer considerações acerca dos conceitos que consideramos fundamentais na questão da liberdade no pensamento de Jean-Paul Sartre (1905-1980) em sua obra: Existencialismo é um Humanismo.2* Consideramos necessário antes de penetrarmos a nossa questão propriamente dita trabalharmos em questões preliminares, que são: contexto histórico e o encontro de Sartre com a fenomenologia de Husserl. Estas questões nos ajudarão a compreender melhor o pensamento de Sartre, pois estas revelam as exigências e preocupações de sua época e o método que ele utilizou para fazer a sua análise, para dar a sua resposta. É preciso levar em conta no presente artigo, “nossa limitação”. Evidentemente que a limitação é quase um desafio de nos superarmos no entendimento, na reflexão e na análise, não só do pensamento sartreano, mas do existencialismo, que representa uma atitude filosófica impregnada do desejo, da busca do homem do nosso século, o pensar acerca do sentido da própria existência. 1 Professor de Filosofia e Cultura Religiosa – Pontifícia Universidade Católica de Minas / Serro e Guanhães Conferência, livro-síntese das idéias fundamentais de Sartre e do Existencialismo em geral. Sartre proferiu esta conferência pela primeira vez em 1946 no Club Mainternart, Paris. O interesse desta conferência foi mostrar que o existencialismo não é uma bela teoria de vida, mas é uma filosofia de ação. 2 1 II. Contexto histórico e o encontro de Sartre com a Fenomenologia de Husserl. Sabemos pelos relatos (livros, documentos...) da história mundial, que sempre existiram lutas, guerras entre os homens, mas essas lutas, guerras, no século XX tornaram-se mais sofisticadas (gases asfixiantes, metralhadoras, balas explosivas, canhões, tanques, navios, bomba atômica...). As guerras tornaram-se mais eficazes. Nunca tivemos tantos mortos, tanta destruição em tão pouco tempo. O que o homem levou anos para construir em poucos segundos era destruído. Foi também no século XX que o homem pôde constatar, efetivamente, que existia uma outra possibilidade no modo de viver, um novo tipo de sociedade, uma sociedade diferente da sociedade capitalista. Esta nova sociedade foi possível de ser implantada graças a milhões de mortos. Esta nova sociedade deu-se efetivamente na Revolução Russa (1917). A quebra da Bolsa de Nova York (1929) também contribuiu para agravar os problemas do século: fome, desemprego, mortos, países ricos pressionando os países pobres, os países pobres querendo vender as suas mercadorias, por exemplo, o Brasil precisava vender o seu café – base de toda nossa economia da época; mas vender para quem se ninguém tinha dinheiro. Foi uma “quebradeira geral”. Não podemos negar que existiram avanços neste século, pois a ciência e a tecnologia estão aí e são notórias as contribuições que elas alcançaram, tiveram. No entanto, a exaltação do saber científico, tecnológico, deve ser, é questionado, criticado, pois aquilo que foi prometido não foi cumprido: melhoria de vida da condição humana. Neste clima de crise (econômica, política, moral, social, religiosa...) surgem várias questões: o que está acontecendo? Onde está a verdade? Muitos jovens que viveram neste contexto histórico, mais precisamente, entre as duas grandes guerras mundiais, procuraram respostas. Eles buscaram a verdade, pois perceberam 2 que a verdade não estava naquilo que eles tinham aprendido (o bem e o mal eram distintos, separados; a ciência responde tudo, a ciência é uma deusa), mas que a vida era cheia de ambigüidades, que a ciência não responde tudo, ela esta presa a interesse de uma determinada sociedade.3¹ A Filosofia surge como uma nova paixão, como uma resposta para esses angustiados e atraídos pelo sentido da existência humana. Desvendar o sentido da existência humana para esses jovens passou a ser uma questão de sobrevivência. “É por isso que os existencialistas, filósofos por excelência dos anos 50, que se definiram como aqueles que têm o gosto pela evidência.”4² Dentre esses jovens estava Jean-Paul Sartre, que como ele próprio nos relata na sua obra O Testamento de Sartre: Entre 1939 e 1945 não fazia política. Me ocupava de literatura, vivia com meus amigos, era feliz... Subitamente estourou a guerra e, aos poucos, sobretudo depois da derrota e da ocupação alemã, eu me senti completamente privado do mundo que eu acreditava ter diante de mim. Encontrei-me diante de um mundo de miséria, de malefícios e desespero. Mas recusei esta possibilidade de desespero que tão frequente à minha volta e aliei-me a amigos que não se desesperaram, que pensavam no que era possível fazer, lutar por um futuro feliz, embora no momento parecesse não existir absolutamente qualquer possibilidade de existência para este futuro.5³ Resta-nos uma questão: não existiram antes do século XX homens que preocuparam com a que tão da existência humana, pois fica parecendo que somente no século XX o homem foi preocupar com esta questão? Podemos afirmar que não, nos séculos anteriores os homens já estavam preocupados em fazer uma análise da existência humana, por exemplo: A lembrança do conselho socrático, expresso pelo lema ‘conhece-te a ti mesmo’, já assegura a improcedência da hipótese, também desmentida pela afirmação de 3 ALMEIDA, Fernando José de. Sartre: é proibido proibir. p.7-11. Ibid, p.11. 5 in: Ibid, p.19. 4 3 Aristóteles de que a filosofia é a existência do existente enquanto existente. No Discurso do Método, de René Descartes (1596-1650) também se pode encontrar passagens de cunho acentuadamente existencialistas, resolveu estudar a si próprio, dedicando-se, a partir de então, com todo empenho, a escolher os caminhos a seguir. Outro exemplo que merece citação é o de Voltaire (1694-1778), que aconselhava que não perdêssemos a mediada humana das coisas. Os autores acima referidos criaram, sem dúvida, doutrinas com vida própria distinta entre si. Mas, nem por isso podem elas ser desvinculadas de certos elementos comuns que terminaram por desaguar no que modernamente é designado existencialismo.6 Todavia, a maioria dos pensadores do existencialismo moderno possui temas, um núcleo de preocupações comuns que norteiam seu pensamento e posicionamento: A razão humana é impotente para resolver todos os problemas da existência; o homem está sempre se fazendo e refazendo; o ser humano é frágil; a realidade não aliena, nos torna estranhos a nós mesmos; a morte é uma presença constante na vida; não se pode fugir da solidão; a existência é um mistério; o Nada provoca o ser humano a avançar.7 Na história da Filosofia não encontramos estas preocupação tão avançadas, isto é, norteadoras, pertinentes. Os pensadores que apontamos acima a título de exemplo, pensaram sim a existência humana, mas não foi esta a preocupação central, ao contrário do existencialismo moderno. Portanto, quando ouvirmos falar do existencialismo, saibamos que: “Não é preciso, contudo, recuar as datas tão longínquas, pois quando alguém se refere ao existencialismo está querendo indicar, de forma precisa, um movimento filosófico historicamente bem recente.”8 Um movimento que teve um contexto histórico que possibilitou o homem perguntar, de uma maneira mais séria e vigorosa pela sua existência, visto que esta estava sendo abalada por tantos questionamentos, problemas, crises. Por isso: 6 PENHA, João da. O que é Existencialismo. p. 15. ALMEIDA, Fernando José de. Sartre: é proibido proibir. p.7-11. 8 PENHA, João da. O que é Existencialismo. p. 15. 7 4 A análise da existência não será então o simples esclarecimento ou interpretação dos modos como o homem se relaciona com o mundo, nas suas possibilidades cognoscitivas, emotivas e práticas, mas também e, simultaneamente, o esclarecimento e a interpretação dos modos como o mundo se manifesta ou homem e determina ou condiciona as suas possibilidades.9 “Os precedentes históricos próximos do existencialismo são a fenomenologia de Husserl e a filosofia de Kierkegaard.”10 Husserl (1859-1938); Kierkegaard (1813.1855). É com a fenomenologia de Husserl que Sartre vai se interessar, pois Husserl tinha a grande ambição de falar das coisas em seu estado puro, (...) tais como as via e as tocava, sem serem ‘infeccionadas’ pela cultura ou pelas interpretações dos outros. Isso era para ele a Filosofia. A Fenomenologia buscava realizar a proeza de ultrapassar as dificuldades encontradas por outras filosofias, como o idealismo e o materialismo, na sua tentativa de explicar totalmente o mundo.11 “A fenomenologia surge no processo de revisão de verdades tidas como cientificamente inabaláveis, no momento em que as ciências ao nível da investigação, assumem um significado humano.”12 Todavia, Sartre interpreta o pensamento de Husserl de uma maneira bastante pessoal, livre, utilizando principalmente a teoria da intencionalidade. A teoria da intencionalidade veio finalmente mostrar qual é a verdadeira relação entre sujeito e objeto, entre consciência e mundo: eles nascem e emergem juntos, estando envolvidos numa relação na qual um termo não pode ser sem o outro, embora permanecendo sempre autônomo do outro.13 Agora nós podemos compreender o porquê da rejeição de Sartre à psicologia tradicional (reduzia os eventos psíquicos a um fato físico – deformava os fenômenos da consciência humana, não os dava autonomia) e o seu interesse pela psicologia fenomenológica. (...) a imagem nasce no interior do sujeito, estando relacionada com a própria capacidade intencional da consciência. Ela é, ainda, como Sartre sublinha, ‘uma 9 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia - vol. XIV. p. 127. Ibid, p. 128. 11 ALMEIDA, Fernando José de. Sartre: é proibido proibir. p. 19. 12 PENHA, João da. O que é Existencialismo. p. 15. 13 MORAIVA, Sérgio. Sartre. p. 15. 10 5 forma de consciência organizada! Uma das possíveis modalidades de classificar o ser real’. Tudo isto revela a existência, no sujeito, de uma curta capacidade.14 Uma capacidade que só é possível ser dada à consciência livre. Uma liberdade que é “ser-no-mundo”, mas que ao mesmo tempo pode aniquilar o mundo, afirmando um novo ser, uma nova situação que ainda não é, mas será. Liberdade a qual Sartre vai fazer uma das bases de seu sistema filosófico, pois: “o homem é um ser supremamente livre, criador do seu próprio mundo, medida dos seus valores.”15 2.1 A questão da liberdade na obra: Existencialismo é um Humanismo, de Jean-Paul Sartre. 14 15 MORAIVA, Sérgio. Sartre. p. 23. Ibid, p. 11. 6 Sartre em sua conferência (Existencialismo é um Humanismo) responde a uma série de críticas que os católicos e marxistas fazem ao existencialismo. Os marxistas criticam o existencialismo de incentivar os homens a permanecerem acomodados, num quietismo, presos a subjetividade. Os católicos constroem suas críticas ao existencialismo alegando que os existencialistas acentuam o lado feio, sombrio, ruim da vida humana, esquecendo o lado bonito, por exemplo, o sorriso de uma criança. Sartre respondendo a essas críticas afirma que o existencialismo não é uma doutrina pessimista, mas que o existencialismo que ele está incluído deixa a possibilidade de escolha de viver ao homem, porque entende que o homem é livre, isto assusta muitas pessoas. Há duas espécies de existencialistas: existencialistas cristãos e os existencialistas ateus. As duas espécies de existencialistas admitem que a existência precede a essência. No entanto, existencialismo ateu (no qual Sartre está incluído), como o próprio nome quer dizer, nega que Deus existe. Mas o que significa essência, existência, qual é a diferença? Na história da filosofia tivemos vários pensadores que tentaram fazer a distinção entre a essência e existência, por exemplo: “Aristóteles, filósofo grego que viveu no século 4 a.C., ensinou que a essência é aquilo que define ou forma as características fundamentais de um ser. (...) essência é o que faz com que uma coisa seja o que é e não outra coisa qualquer.”16 Santo Tomás de Aquino: (...) a essência é potência com relação à existência; a existência é o ato da essência. Somente em Deus, porém, a essência é a própria existência, porque Deus ‘não só é a essência mas também o próprio ser’; senão, ele existiria por participação, como as coisas finitas, e não seria o ser primeiro e causa primeira.17 Já os existencialistas afirmam que a essência humana não existe nas idéias nem é dada gratuitamente ao homem. A essência humana é construída por cada um de nós no próprio existir. Quando penso em minha vida, vejo que há mil direções para seguir. À medida que vou existindo, decido-me por um caminho. Ando nele, com meu caminhar, abro a trilha. Sou como um trator, que faz seu caminho enquanto avanço, mais do que o automóvel, que só anda por estradas que foram feitas por outros. 16 17 ALMEIDA, Fernando José de. Sartre: é proibido proibir. p. 33. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. p. 343-4. 7 O homem é um ser apenas possível. Existe à medida que transforma esse possível em real. Esta passagem do possível para o real é a vida. E mais que a passagem e o modo como o faço.18 “O homem, tal como concebe o existencialismo, se não é definível, é porque primeiramente não é nada só depois será alguma coisa e tal coisa a si próprio se fizer.”19 Não existem idéias inatas, anteriores ao surgimento do homem e destinadas a orientar sua vida, indicando que caminho ele deve seguir. As idéias do homem extraem-se de sua experiência pessoal. O indivíduo primeiramente existe, com o tempo, torna-se isto ou aquilo, quer dizer, adquire sua essência. Está é que irá caracterizá-lo, mostrando-o em que se tornou bom ou mau, agradável ou antipático, destemido ou covarde, etc. A essência humana, portanto, só aparece com decorrência da existência do homem. São seus atos que definem sua essência. Logo, inicialmente o homem existe – e só depois é possível defini-lo, conceituá-lo.20 “Não há mais a dependência de um sujeito com relação a um plano divino. Deus não existe para Sartre.”21 Deus não existe para os existencialistas! Os existencialistas ateus afirmam que Deus não existe e isto leva a crer que não existe um bem “a priori”, um determinismo. Quando se diz que o homem está sujeito ao determinismo, significa que se acredita que qualquer força, seja econômica, social, ou biológica, obriga-o de tal forma que ele nada pode escolher por si mesmo e com a liberdade. No fundo, os defensores do determinismo afirmam que o homem é um prisioneiro de sua herança genética e um robô das pressões econômicas, que o levam a escolher a profissão, o amor, e amizade, o partido, ou uma viagem, sem nenhuma autonomia. Homens, em suas reações, seriam pouco diferentes de cobaias de laboratório. Sartre propõe e defendeu a soberania da subjetividade humana que permite ao homem escolher a cada passo o seu caminho. O indivíduo é livre. Ele não apenas tem liberdade, mas é liberdade (sublinhado meu). A inexistência de um Deus que vive a nos indicar caminhos e valores faz com que nada fora de nós legitime nosso comportamento. Nós construímos tudo: até mesmo os nossos valores, regras e imposições (...)22 Contudo: Afirmar que o homem é livre não significa conferir-lhe o poder ou o destino de agir caprichosamente e ao acaso. O homem é livre no sentido em que pode livremente decidir do seu próprio comportamento, escolhendo os seus próprios valores, assumindo uma determinada atitude em relação ao seu próprio futuro, presente e 18 ALMEIDA, Fernando José de. Sartre: é proibido proibir. p. 34. SARTRE, Jean-Paul. Existencialismo é um Humanismo. p. 12. 20 PENHA, João da. O que é Existencialismo. p. 63. 21 ALMEIDA, Fernando José de. Sartre: é proibido proibir. p. 43. 22 ALMEIDA, Fernando José de. Sartre: é proibido proibir. p. 45. 19 8 passado. No plano ontológico, a liberdade é a possibilidade do para-si existente de negar a sua própria facticidade em-si, transcendendo-a em direção a uma ‘outra’ situação.23 Vejamos como, por que isto acontece: O ‘em-si’ corresponde ao mundo das coisas materiais (pedras, plantas, etc.), aquilo que se encontra fora do sujeito, que tem existência em si mesmo, atemporal. O ‘para-si’ é o mundo da consciência, aquilo que tem a existência por si mesmo, a realidade humana. A consciência é um ‘ser-para-si’ porque é auto-reflexiva, porque pensa sobre si mesma.24 “O para-si faz com que o nada apareça, desabroche.”25 “Quando me interrogo sobre as coisas, lanço sobre elas a negatividade”26 A capacidade do ‘para-si’ de modificar as coisas, de imaginar o nada, é a prova de sua liberdade. Mas o que leva Sartre a estabelecer o nexo entre nadificação e liberdade? Lembremos aqui que Sartre adota como método de análise filosófica os princípios básicos da fenomenologia. A exemplo de Husserl, ele não concebe a consciência como uma espécie de recipiente onde estariam depositadas as imagens e representação dos objetos. A consciência, ao mesmo tempo, não está contida no mundo das coisas – ele está no mundo. Tampouco está como que afunda na realidade. A característica fundamental da consciência, sabemos, é a intencionalidade, é a tendência de estar sempre voltada para fora. Nesse sentido, a consciência é o nada, o que lhe propicia a capacidade de imaginar, de transcender, de ir além da situação presente, dos fatos imediatos. É a imaginação que possibilita à consciência criar mentalmente as coisas e reconstruí-las quando elas não se encontram presentes fisicamente. Daí, a afirmação sartreana de que é o ‘para-si’ que faz com que exista o mundo. É através da consciência que o mundo adquire significado. Sem o ‘para-si’, toda a realidade se reduziria ao ‘em-si’. É o nada, portanto, que fundamenta a liberdade.27 Necessário se faz lembrar a relação entre dois ‘para-si’, porque não estou sozinho no mundo, existem relações humanas, relações concretas do ‘para-si’ com outro ‘para-si’. Como ficam estas relações? Ao relacionar-se com os demais indivíduos, o homem vê sua liberdade condicionada pela liberdade alheia. De sujeito, torna-se objeto, coisa, para as outras consciências alvo da liberdade do próximo. Mas, de que maneira se verifica esse processo de coisificação? Através do olhar do outro, olhar, diz Sartre, que me desloca para além de meu ser neste mundo, lança-me no meio do mundo, que é, simultaneamente, este 23 MORAIVA, Sérgio. Sartre. p. 65. PENHA, João da. O que é Existencialismo. p. 76. 25 Ibid, p. 78. 26 Ibid, p. 79. 27 Ibid, p. 89. 24 9 mundo e mais além. A consciência, o ‘para-si’, experimente a sensação incômoda de existir como objeto para os outros, como parte de seu mundo exterior. Existe através do olhar alheio, que assim a fixou. Existe porque é percebida – é um ‘ser-paraoutro’. Por isso, o ‘ser-com’ é uma relação de conflito.28 É como um duelo, por que: As relações entre o Eu e o Outro são em si mesma antagônicas: o outro limita-me e nega-me, enquanto, por outro lado, existe apenas como um ‘eu rejeitado”. É verdade que o Eu se esforça por compreender o Outro, mas, por definição, não o pode atingir: o Outro, o homem, não é, em última análise, passível de ser conhecido pelo outro homem. Aliás, sentir e ao mesmo tempo conhecer o homem é a priori impossível: se o sinto com clareza, não o consigo conhecer; se o conheço, se ajo sobre ele , alcanço apenas o seu ser-objeto e a sua existência provável no mundo; nenhuma síntese destas duas formas é possível. O que não é permitido é a compreensão totalizante do homem como sujeito e como objeto, como para-se e como em-si. O sujeito e o Outro permanecem divididos pelo Nada que em ambos habita e que se revela através de uma série infinda de antagonismos e negações recíproca.29 Apesar do relacionamento entre dois ‘para-si’ ser como um duelo de dois olhares, Sartre não estimula os indivíduos a ficarem presos ao ‘subjetivismo’, fazendo uma escolha estritamente pessoal, por si próprio, enclausurado no Eu, com medo de perder sua ‘liberdade’, mesmo porque existem fatos sociais, históricos... que muitas vezes balançam o meu ser (como um olhar de um “outro-para-si”), mas nem por isto chega a condicionar, a acabar com projeto fruto da liberdade humana. Diz Sartre: (...) Os piores inconvenientes ou as piores ameaças que possam atingir a minha pessoa não têm sentido senão tendo em vista o meu projeto; surgem tendo como posso de fundo o meu projeto de empenhamento. É, pois, insensato pensar em queixar, porque nada de exterior decidiu aquilo porque passamos, aquilo que vivemos ou aquilo que somos (...). Cada pessoa é uma escolha absoluta de si (sublinhado meu) a partir de um mundo de conhecimentos e técnicos que esta escolha assume e esclarece ao mesmo tempo.30 Por conseguinte, “cada pessoa é uma escolha absoluta de si” não significa: “escolha do individual por si próprio.” Quando dizemos que o homem se escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens. Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve 28 PENHA, João da. O que é Existencialismo. p. 79-80. MORAIVA, Sérgio. Sartre. p. 73. 30 MORAIVA, Sérgio. Sartre. p. 57-8. 29 10 toda a humanidade. Se sou operário e se prefiro aderir a um sindicato cristão a ser comunista, se por esta adesão quero eu indicar a resignação é no fundo a solução que convém ao homem, que o reino do homem não é na terra, não abranjo somente o meu caso: pretendo ser o representante de todos, e por conseguinte a minha decisão ligou a humanidade inteira. E se quero, fato mais individual, casar-me, ter filhos, ainda que este casamento dependa unicamente da minha situação, ou da minha paixão, ou do meu desejo, tal ato implica-me não semente, mas a toda a humanidade na escolha: a monogonia. Assim sou responsável por mim e por todos.31 “E, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros e que a liberdade dos outros depende da nossa.”32 Que a liberdade apesar de ser uma grande paixão humana, ela é angustiante, porque está “(...) o homem por um compromisso e que dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar de ao sentimento de sua total responsabilidade.33 Isto é angustiante, é angustia sentirmos que “estamos condenados a ser livres”. A angústia da liberdade é a angústia de optar, de fazer escolhas. Contra a sua liberdade, para fugir dela, tentando assim escapar da angústia que provoca a consciência de ser livre, o homem se refugia na má-fé. Forçado pelas circunstâncias a agir, a escolher, o que significa assumir pela decisão que tomar, o indivíduo busca disfarçar essa exigência adorando uma atitude de má-fé – finge escolher, sem na verdade escolher.34 “A má-fé não é para enganar os outros, mas para enganar-me a mim mesmo, ainda que para isto – o que comumente acontece – eu tenha que enganar os outros.”35 Agora fica a pergunta: o indivíduo não é livre para adorar, assumir uma atitude de máfé? Sartre responde: Podemos julgar, antes de mais (e isto não é talvez um juízo de valor, mas sim juízo lógico), que certas escolhas são fundadas no erro e outras na verdade. A má-fé é evidentemente uma mentira, porque dissimula a total liberdade do compromisso. No mesmo plano, direi que há também má-fé, escolho declarar que certos valores existem antes de mim; estou na contradição comigo mesmo, se ao mesmo tempo os quero que se me impõem, se me dizem: ‘e se eu quiser estar de má-fé?, responderei: não há razão alguma para que você o não esteja, mas declaro que você o está e que a atitude de uma estrita coerência é a atitude de boa-fé.36 31 PENHA, João da. O que é Existencialismo. p. 80. SARTRE, Jean-Paul. Existencialismo é um Humanismo. p. 27. 33 Ibid. p. 25. 34 TROGO, Sebastião. O Impasse de má-fé na moral de Jean-Paul Sartre. p. 110. 35 Ibid, p. 16. 36 Ibid, p. 18. 32 11 Na mesma linha de angústia estão o desamparo e desespero, isto é, partindo da afirmação de que “a existência precede a essência”, que não há força a priori a nos controlar, comandar, um criador, o homem se sente desamparado, tem sempre que buscar seu futuro, “(...) sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, o homem está condenado a cada instante a inventar o homem”37 O desamparo implica sermos a nós escolher o nosso ser. O desamparo é paralelo da angústia. Quanto ao desespero, esta expressão tem um sentido extremamente simples. Quer ela dizer que nós nos limitamos a contar o que depende da nossa ação possível. Quando se deseja uma coisa há sempre uma série de elementos prováveis.38 Mas esta série de elementos prováveis não traz transtornos ao indivíduo e nem o deixa acomodado, quieto sem vontade de agir, de realizar o seu projeto (essencial para o indivíduo se fixar no mundo), pois, o homem é o seu projeto e só existe na medida em que esta realidade se torna concreta através da sua ação, dos seus atos, de sua vida de inserção no tempo e no espaço. E embora os projetos possam ser diversos, individuais, eles têm o valor de universalidade, eles podem ser compreendidos por todos os homens: brasileiro, inglês, angolano, chinês... criança, adulto, velho, ... em qualquer contexto cultural, em qualquer época o projeto do homem pode ser reconhecido, porque ele tem o caráter de universalidade. Acreditamos que quando Sartre demonstra que o existencialismo não é uma doutrina que estimula os indivíduos a ficarem acomodados, quietos, mas que ele é uma doutrina de ação: que o existencialismo não é uma doutrina pessimista (mostra somente o lado ruim da vida humana), porque acredita no homem, acredita na sua possibilidade de encontrar a si próprio e ao outro, por isso ele é uma doutrina otimista, fundada na crença da liberdade. Ao longo do nosso artigo, tentamos compreender os passos que Sartre dá para chegar à liberdade. Uma questão que tanto buscamos mas que ao mesmo tempo temos medo 37 38 Ibid, p. 18. Ibid, p. 18. 12 de encontrá-la, pois, encontrá-la significa ter que assumi-la com sinceridade e responsabilidade. No fundo não é isto que os marxistas e católicos temiam e conseqüentemente criticavam no existencialismo, no pensamento de Sartre, obrigando Sartre a mostrar que o existencialismo é um Humanismo. 13 III. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao chegarmos ao final deste artigo podemos dizer: Com Sartre nós estamos realmente no ápice da filosofia existencialista atéia. Uma filosofia que tem a sua preocupação central voltada para o homem, não o homem que simplesmente é, mas o homem que existe, que se autodetermina. Através do pensamento sartreano fica definitivamente superada a metafísica tradicional. Uma metafísica que está voltada para a essência, para a busca daquilo que é. Para Sartre, a existência precede a essência, isto é, primeiro existimos depois constituiremos a nossa essência. Seremos nós mesmos os nossos construtores, inventores, não temos um Deus para dar normas, para direcionar a nossa vida. Somos livres. Somos livres para criar nossos valores. Se somos livres, somos também responsáveis por tudo aquilo que escolhemos. A nossa liberdade só possui significado se estiver ligada a fatos concretos. Através de nossa ação somos capazes de modificar o real. O homem que não assume esta sua liberdade, engana a si mesmo, aninha-se na má-fé (finge escolher no exercício da sua mais plena liberdade, mas não escolhe). Um outro ponto importante anotado por Sartre em relação ao exercício da liberdade de um indivíduo (escolha, ação, responsabilidade...) é o fato dela nunca estar centralizada, nunca estar voltada para o individual, ela tem sempre o caráter, o valor universal. Necessário agora apontarmos para um impasse que encontramos no pensamento de Sartre. Pois, como pode o homem ser totalmente livre, ou melhor, o homem ser a própria liberdade, mas ao mesmo tempo ter que se preocupar, ser responsável por toda humanidade? Como esta se dá, se de um lado Sartre acredita que as relações entre Eu e o Outro são sempre antagônicas (o Outro sempre limita, nega o Eu); por outro lado, o homem no exercício da sua 14 liberdade tem que se dar conta das relações com os outros, ser responsável por todos os homens. Não parece contraditório? Ambíguo? Acreditamos que aqui Sartre chega a um impasse e não deixa nenhum caminho concreto que possibilite ao homem ser realmente livre, mas um livre dentro de uma coletividade, de um tempo, de um espaço. Necessário se faz também à guisa de conclusão afirmar: Quão gratificante foi termos trabalhado o texto: Existencialismo é um Humanismo, de Jean-Paul Sartre, pensador de grande genialidade, romancista, jornalista, dramaturgo, militante político que não dissociou a sua reflexão filosófica nem a sua produção literária da situação em que vivia, permanecendo solidário nos acontecimentos sociais e políticos de seu tempo. 15 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2ª ed., São Paulo: Editora Mestre Jou, 1982. _____________. História da Filosofia. 3ª ed. (Coleção História da Filosofia – vol. XIV). Lisboa: Editora Presença, 1984. ALMEIDA, Fernando José de. Sartre: é proibido proibir. São Paulo: Editora FTD, 1988. JOLIVET, R. Sartre ou – Teologia do Absurdo. São Paulo: Editora Herder, 1968. MORAIVA, Sérgio. Sartre. Coleção Biblioteca Básica de Filosofia. Lisboa: Edições 70, 1985. PENHA, João da. O que é Existencialismo. 10ª ed. (Coleção Primeiros Passos – vol. 61). São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. SARTRE, J. Existencialismo é um Humanismo. (Coleção Os Pensadores – vol. XLV). São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973. TROGO, Sebastião. O Impasse de má-fé na moral de Jean-Paul Sartre. Tese a ser apresentada e defendida tendo em vista o cargo de Professor Titular no Departamento de Filosofia – FAFICH-UFMG-BH-1984. Inédita em livro.