EXISTÊNCIA E LIBERDADE1 A teoria Sartreana, conhecida como fenomenologia, deu uma guinada no que se refere à teoria do conhecimento: em oposição à metafísica, acredita que a verdade das coisas que nos aparecem consiste exatamente em seu aparecer, não havendo, portanto, qualquer realidade por trás desta aparência; o que sustenta o fenômeno é o seu próprio aparecer. De tal forma, contrariou a teoria platônica de que o mundo, tal qual o captamos, pelos nossos sentidos, seria um mundo de ilusões e que, assim, não estabeleceria qualquer correspondência com a verdade última das coisas. Sartre, a partir de Husserl, coloca as aparições como a melhor expressão da realidade, e se alguma investigação sobre o Ser deve ser feita, esta deverá partir do próprio fenômeno. Seu pensamento marcou profundamente o século 20 e culminou nas teorias conhecidas como existencialistas. Para iniciarmos um estudo sobre virtudes em Jean-Paul Sartre partiremos da compreensão de sua afirmação que diz: “a existência precede a essência”. Com ela irá contrariar toda uma tradição filosófica, e até mesmo religiosa, que defendia a existência de uma natureza humana, ou seja, de uma essência que determinaria a finalidade de nossas vidas. Os existencialistas se opõem a esta ideia de essência humana a partir do momento que afirmam a inexistência de Deus. Para eles, pouco importa a sua existência ou não, visto que jamais interfere na vida humana. Se Deus não existe não poderá ter criado um projeto de homem ao qual devemos seguir, assim como fez um marceneiro ao idealizar, esboçar e criar uma cadeira que foi fabricada tendo por finalidade servir de assento. O homem, ao contrário, existe, encontra a si mesmo e ao mundo e só posteriormente se define. Ele não nasce definido, pré-determinado, com um projeto de vida a ser seguido. Somente no decorrer de sua existência irá construir-se enquanto tal. Deverá fazer escolhas, seguir caminhos e poderá a qualquer momento tomar novos rumos. A responsabilidade da existência humana é exclusivamente do ser humano, ele está jogado no mundo e não há um Deus capaz de julgá-lo nem orientá-lo em suas escolhas e em seus atos. O homem será aquilo que ele mesmo fizer de si, deverá escolher seus caminhos e a cada escolha viverá a angústia da incerteza de seu resultado. Será por estas escolhas que irá se construir no mundo. Portanto não há uma essência humana, mas antes, uma condição humana. Podemos ser levados a pensar: Se não há uma Deus capaz de orientar nossas ações, se não há valores absolutos que nos permitam distinguir o certo do errado, o bom do mau, o justo do injusto, como ficarão nossas relações com os outros seres humanos? 1 Baseado em: SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 4.ed. Lisboa: Editorial Presença, 1978. 307p. Para Sartre, o ser humano ao mesmo tempo em que é indivíduo, torna-se humano e realiza-se como tal a partir da sua relação com outros homens e, portanto as consequências das escolhas que faz devem ser pensadas como relevantes a toda a humanidade. O princípio norteador dessas ações deve vir do questionamento: O que aconteceria se todas as pessoas agissem como eu ajo? Eis o fundamento da ética sartreana: a responsabilidade. Quando escolho algum valor, entre tantos, estou assumindo para mim e para o mundo que aquele é o melhor valor a ser escolhido. O homem quando percebe que não há valores absolutos para determinar sua vida, se vê obrigado a criar seus próprios valores, porém deve ter consciência de que é o único responsável pelas suas escolhas. Para Sartre o homem é liberdade: não há modelos nem certezas que possam servir de referência e somente a ele caberá inventar-se no mundo sem jamais esquecer que o resultado é de sua única e total responsabilidade. O homem deve engajar-se no mundo e ser aquilo que desejar ser, sem esquecer que ao escolher-se escolhe todo o mundo. Não se nasce covarde, nem corajoso, nem sábio, e somente o homem poderá fazer-se covarde, ou corajoso, ou sábio, dependendo das escolhas que fizer para si. Essa liberdade atrelada à responsabilidade fará com que o homem seja também angustia, visto não ter nenhuma segurança da eficiência de seus atos. Além disso, o fato de saber-se só no mundo, sem certezas e sem seguranças, sendo o único responsável pelo seu sucesso ou pelo seu fracasso lhe dará também o sentimento de desamparo e por isso Sartre irá dizer que o homem está condenado à liberdade. Com a não existência de Deus desaparece também toda e qualquer possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; não pode mais existir nenhum bem a priori, já que não há nenhuma consciência infinita e perfeita capaz de pensálo; não está escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos ser honestos, que não devemos mentir, já que nos colocamos precisamente num plano em que só existem homens. Portanto o valor máximo da existência humana é a liberdade. Por não haver valores estabelecidos, o homem pode inventá-los, e, ao fazêlo, atribui sentido à própria vida. Justamente por isso não cabe a nenhum homem, julgar outro homem. Não devemos acreditar que existe uma humanidade à qual devemos devotar. O culto da humanidade conduz a um humanismo fechado sobre si mesmo. Tal humanismo é recusado pelos existencialistas. O homem pelo fato de ser livre e tornar-se homem, já que a existência precede a essência, percebe que não há um sentido anteriormente dado. O sentido da vida será traçado no desenrolar de sua existência. Mas em sua liberdade e na sua formação enquanto homem, ela é que fundamenta todos os outros valores, que são por nós que inventados. Isso quer dizer que a vida antes de ser vivida não tem nenhum sentido em si mesma, quem a vive é que deve lhe dar sentido. Cada um escolhe o sentido para a sua vida.