Jean-Paul Sartre
Orestes entra, uma espada ensangüentada à mão. Ela corre até ele.
Cena 8
Electra, Orestes
Electra: Orestes!
Ela se lança em seus braços.
Orestes: De que tens medo?
Electra: Não tenho medo, estou ébria. Ébria de alegria. O que
ela disse? Ela implorou muito por perdão?
Orestes: Electra, não me arrependerei do que fiz, mas não
acho bom falar disso: há lembranças que não se partilham. Saiba apenas que ela morreu.
Electra: Amaldiçoando-nos? Diz-me apenas isso: amaldiçoan-
do-nos?
Orestes: Sim. Amaldiçoando-nos.
Electra: Toma-me em teus braços, meu bem-amado, e aperta-
me com todas as tuas forças. Como a noite é espessa e
como as luzes desses archotes a penetram com dificuldade! Amas-me?
Orestes: Não é noite: é a aurora de um novo dia. Somos livres,
Electra. Sinto que te fiz nascer e que acabo de nascer
contigo; eu te amo e tu me pertences. Ainda ontem eu
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As moscas
estava sozinho e hoje tu me pertences. O sangue nos une
duas vezes, pois de um mesmo sangue somos, e sangue
derramamos.
Electra: Larga tua espada. Dá-me esta mão. (ela lhe toma a mão
e a beija) Teus dedos são curtos e grossos. Feitos para pe-
gar e segurar. Querida mão! É mais branca que a minha.
Como ela se tornou pesada para golpear os assassinos de
nosso pai! Espera. (ela vai procurar um archote e se aproxima de Orestes) Tenho que iluminar teu rosto, pois a noite
fica mais e mais espessa e já não te vejo bem. Preciso te
ver: quando não te vejo mais, tenho medo de ti; não posso tirar os olhos de ti. Eu te amo. Tenho que pensar que
te amo. Como estás estranho!
Orestes: Sou livre, Electra; a liberdade desabou sobre mim
como um raio.
Electra: Livre? Eu não me sinto livre. Podes fazer com que
tudo isto não tenha sido? Algo aconteceu que não somos
livres para desfazer. Podes impedir que sejamos para
sempre os assassinos de nossa mãe?
Orestes: Acreditas que eu gostaria de impedi-lo? Eu fiz meu
ato, Electra, e este ato era bom. Eu o carregarei sobre
meus ombros como um barqueiro leva os viajantes, eu o
farei passar para a outra margem e prestarei contas por
ele. E quanto mais pesado para carregar ele for, mais me
alegrarei, pois minha liberdade é ele. Ainda ontem, eu
andava ao acaso sobre a terra, e milhares de caminhos
fugiam sob meus passos, pois pertenciam a outrem. Eu
os tomei emprestados, o caminho dos rebocadores, que
corre ao longo do rio, e o atalho do almocreve e a estrada
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Jean-Paul Sartre
pavimentada dos condutores de carros; mas nenhum era
meu. Hoje, não há mais que um, e sabe lá Deus aonde
ele conduz: mas é o meu caminho. Que tens?
Electra: Não posso mais te ver! Essas lâmpadas não iluminam
mais. Ouço tua voz, mas ela me faz mal, ela me corta
como uma faca. Será sempre escuro assim, daqui por
diante, mesmo de dia? Orestes! Aí estão elas!
Orestes: Quem?
Electra: Aí estão elas! De onde elas vêm? Estão suspensas no
teto como cachos de uva pretos, e são elas que escurecem
as paredes; elas se intrometem entre as luzes e os meus
olhos, são suas sombras que me escondem teu rosto.
Orestes: As moscas...
Electra: Escuta!... Escuta o ruído de suas asas, parecido ao
ronco de uma forja. Elas nos cercam, Orestes. Elas nos
vigiam: não demora e cairão sobre nós, e sentirei mil patas viscosas sobre meu corpo. Fugir para onde, Orestes?
Elas incham, elas incham, estão gordas como abelhas,
elas nos perseguirão por toda parte em grossos turbilhões. Horror! Vejo seus olhos, seus milhões de olhos a
nos espreitar.
Orestes: Que nos importam as moscas?
Electra: São as Erínias, Orestes, as deusas do remorso.
Vozes, atrás da porta: Abri! Abri! Se eles não abrirem, temos de
arrombar a porta.
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As moscas
Pancadas surdas na porta.
Orestes: Os gritos de Clitemnestra atraíram os guardas. Vem!
Leva-me ao santuário de Apolo; nós passaremos ali a noite, ao abrigo dos homens e das moscas. Amanhã falarei
a meu povo.
Cai o pano
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