IFIGÉNIA
AGAMÉMNON
ELECTRA
Dossier
Pedagógico
Há séculos que se fala dos mitos gregos
como se fossem algo a reencontrar, a
despertar. Na realidade, são essas fábulas
que continuam à espera de nos despertar e
de serem vistas, como uma árvore diante
dos olhos que se reabrem.
Os mitos são constituídos por ações que
incluem em si o seu contrário. O herói mata
o monstro, mas nesse gesto percebe-se que
o contrário também é verdadeiro: o
monstro mata o herói. O herói rapta a
princesa, mas nesse gesto percebe-se que o
contrário também é verdadeiro: o herói
abandona a princesa. Como podemos ter a
certeza? Dizem-no-lo as variantes, que são
a circulação do sangue mítico. Admitamos,
porém, que de um certo mito desaparecem
todas as variantes, apagadas por uma mão
invisível. O mito permanecerá igual? É essa
a diferença subtilíssima entre o mito e
todas as outras histórias. Mesmo sem
variantes, o mito manterá a inclusão do
contrário.
Roberto Calasso, As Núpcias de Cadmo e Harmonia, tradução
de Maria Jorge Vilar de Figueiredo
Índice
1
Sinopses e ficha técnica
2
O autor fala de si mesmo:
Uma cerejeira num café, autobiografia de Tiago Rodrigues
3
O exercício da memória: Conversa com Tiago Rodrigues
4
Fotografias de ensaio
5
A que textos chamamos clássicos e porquê
Porquê ler os clássicos, Ítalo Calvino
6
A história que está na base das três tragédias
O mito
Ciclos lendários gregos
7
As relações de parentesco das personagens das três tragédias
Árvore genealógica
Relações familiares e destinos
8
O que é a tragédia
Excertos de vários autores
9
Comparação de excertos de Eurípedes e Ésquilo e de Tiago Rodrigues
As versões lado a lado
10
Pistas de reflexão e trabalho
11
Informações e reservas - Escolas
12
Quem somos – Teatro Nacional D. Maria I
2
Ifigénia, Agamémnon, Electra De Tiago Rodrigues
A tragédia é de confiança, acaba sempre mal.
A temporada da Sala Garrett abre não apenas com uma mas com três novas peças de Tiago
Rodrigues, com as quais o atual diretor artístico do D. Maria II embarca no desafio de reescrever três
tragédias gregas, a partir da leitura de Eurípedes, Sófocles e Ésquilo. São três espetáculos diferentes que
acompanham uma família ao longo de várias épocas, levando ao confronto com a perpétua mudança dos
valores que servem de base a uma sociedade e à sua governação. Três espetáculos criados com a urgência
do nosso tempo, em diálogo com o repertório da tragédia grega, já tão distante mas infalivelmente atual.
O elenco destes espetáculos junta os atores residentes do D. Maria II, com os quais Tiago Rodrigues
trabalha pela primeira vez, com outros que têm sido cúmplices do seu percurso artístico nos últimos
anos. Participam ainda seis jovens atores recém-formados pela Escola Superior de Teatro e Cinema, que
assim iniciam a sua colaboração em diversas produções e coproduções do D. Maria II, na temporada de
2015-2016.
Ifigénia
Estacionados na cidade de Áulis, à espera que o vento favorável lhes permita navegar para Troia e
resgatar Helena, os gregos são surpreendidos por um terrível oráculo: Agamémnon, rei de Argos, teria
que sacrificar a sua filha Ifigénia para que se voltasse a sentir o sopro capaz de mover as velas. Na
reescrita de Tiago Rodrigues do texto de Eurípedes, é pelas ondas da sua própria memória que vogam as
personagens na tentativa de contar a história. Alguém se lembra do que estava a acontecer em Áulis
quando tudo começa?
Agamémnon
Dez anos foi o tempo que durou a longa ausência de Agamémnon, rei de Argos, na Guerra de Troia.
Neste período, Clitemnestra comandou os destinos da cidade ao lado de Egisto, seu amante, e velho rival
de Agamémnon. Apenas o regresso do antigo rei prometia limpar o nevoeiro cerrado que se abatia sobre
os cidadãos de Argos. Porém, Clitemnestra não esqueceu o sacrifício da filha Ifigénia. Em dez anos, foi
alimentando a sua ira contra Agamémnon, que finalmente regressa. Esta é a história da sua
desventurada festa de boas-vindas.
Electra
Electra nunca perdoou a mãe, a rainha Clitemnestra, pelo assassínio do pai, Agamémnon. Reduzida à
escravatura e a viver nos arrabaldes que circundavam Argos, Electra via na chegada de seu irmão
Orestes, do qual havia sido separada na infância, a última esperança para finalmente saciar a sua sede de
justiça. Mas o que acontece quando, para honrar a morte do pai, um filho é levado a tirar a vida à própria
mãe? No reino de todas as questões, só a vingança trará algumas respostas.
Ficha artística
texto e encenação
interpretação
Ifigénia
Agamémnon
Electra
Tiago Rodrigues
Ana Tang, Ana Valente, Flávia Gusmão, Isabel Abreu, João Grosso, José Neves, Lúcia
Maria, Marco Mendonça, Maria Amélia Matta, Miguel Borges, Sandra Pereira
Ana Água, Ana Tang, Ana Valente, Isabel Abreu, João Grosso, José Neves, Manuel
Coelho, Maria Amélia Matta, Paula Mora, Victor Yovani
Ana Água, Flávia Gusmão, Lúcia Maria, Manuel Coelho, Marco Mendonça, Maria
Amélia Matta, Miguel Borges, Paula Mora, Sandra Pereira, Victor Yovani
interpretação musical ao vivo
em Agamémnon
Gabriel Ferrandini (bateria e percussão), Pedro Sousa (saxofones)
música original
cenografia
figurinos
desenho de luz
desenho de som
assistência de encenação
Gabriel Ferrandini
Ângela Rocha
Magda Bizarro, Ângela Rocha
Nuno Meira
Sérgio Henriques
Filipa Matta
direção de cena
ponto
operação de luz
operação de som
maquinaria
auxiliar de camarim
reforço de guarda-roupa
produção executiva TNDM II
Manuel Guicho
Cristina Vidal
Feliciano Branco
Sérgio Henriques
Rui Carvalheira
Paula Miranda
Manuela Pires, Maria José Baptista
Rita Forjaz
produção
coprodução
agradecimentos
TNDM II
Teatro Viriato
Álvaro Correia, Miguel Lima, Miosótis
M/12
duração
Ifigénia 1h30 | Agamémnon 1h05 | Electra 1h20
nota à cenografia
na peça Agamémnon é usada uma fotografia da fachada do Teatro D. Maria II (fev.
1979), da autoria de José Marques (Biblioteca|Arquivo do TNDM II).
2
O autor fala de si mesmo
«Uma cerejeira num café»
AUTOBIOGRAFIA DE TIAGO RODRIGUES
O primeiro ser humano que me tocou foi a enfermeira Manuela, do Hospital de Santa Maria.
Terá sido ela a cortar o cordão umbilical, a limpar-me, a colocar-me no colo da minha mãe. Eram
cinco e meia da tarde de 16 de Fevereiro de 1977. A enfermeira Manuela já conhecia a minha mãe
que, naquela época, estava a terminar o curso de Medicina em Santa Maria. Curiosamente, tanto os
meus pais como a enfermeira Manuela viviam e vivem ainda hoje na Amadora.
O mais antigo desenho que fiz em criança e que ainda tenho guardado foi feito na redação do
O Jornal, onde o meu pai trabalhava. Foi numa cozinha convertida em parte da redação, onde o
Fernando Assis Pacheco tinha a sua mesa. O Assis era meu padrinho. O meu batizado foi no 1º de
Maio. Assim agradaram-se tanto os católicos como os esquerdistas da família (incluindo os católicos
esquerdistas). O Assis aparece na foto do meu batizado de cravo ao peito. As canetas que usei para
fazer esse desenho de que falava eram oferecidas pelo Assis e a tela usada era papel timbrado que
dizia “O Jornal”. Talvez fosse Páscoa e daí as canetas de presente. Rodeado por jornalistas uma boa
parte do dia, é natural que as personagens que imaginava não fossem índios e cowboys, mas antes
sindicalistas e ministros. O mais antigo desenho feito pelo meu punho é um retrato do Mário Soares,
imitado da primeira página dum jornal.
A minha árvore preferida é a cerejeira porque os meus avós tinham uma cerejeira. Era no alto
dessa cerejeira que passava os verões na Guarda, a cidade mais alta de Portugal. Comia sempre as
cerejas que já tinham sido bicadas pelos pássaros porque o meu avô me ensinou que essas são as
melhores. O primeiro poema que escrevi era sobre uma cerejeira. Felizmente, perdeu-se para
sempre. Usei o papel em que o escrevi para embrulhar umas quantas cerejas que ofereci a uma
rapariga. Ela fez brincos de princesa com as cerejas mas nunca me deu um beijo. Perdi a rapariga e o
poema. A cerejeira ainda lá está.
A melhor prenda que já recebi, recebi-a duas vezes. É um quadro do pintor português Artur
Bual. O Bual vivia na Amadora e, quando quis fazer a minha primeira peça de teatro, em 1998, ele
ofereceu-me um quadro para que eu o pudesse vender e pagar os ordenados dos atores da peça. Dez
anos depois, a minha mãe descobriu esse quadro, comprou-o e ofereceu-mo. É uma pintura de um
Cristo a fazer lembrar um fuzilado do Goya. Eu chamo-lhe O Mecenas. Está pendurado no corredor,
mesmo à entrada da cozinha.
Os únicos lugares de que gosto ainda mais do que de teatros são os cafés. Os meus avós da
Guarda tinham um café e os meus avós de Moncorvo tinham uma tasca. Apaixonei-me na esplanada
dum café. Comecei a fazer teatro no liceu da Amadora porque os amigos que iam ao mesmo café que
eu faziam teatro na escola. Decoro texto nos cafés. Escrevo nos cafés. Tenho reuniões nos cafés.
Tenho ideias nos cafés. Estou a escrever esta autobiografia num café. Em casa, gosto de passar o
máximo de tempo na cozinha, porque me faz lembrar um café. Quando criei uma companhia de
teatro com a Magda Bizarro, o Mundo Perfeito, o nosso escritório foi uma cozinha durante vários
anos, mas onde se trabalhava mais era no café. Acho que o café é a sede da democracia. Enquanto
houver cafés, há esperança para a espécie humana.
Nunca comi tanto como daquela vez na aldeia de Acteal, na selva Lacandona, no Sudeste
Mexicano. Foi em 1999. Tinha participado num encontro da guerrilha zapatista com a sociedade civil
e fui visitar a aldeia onde milícias paramilitares tinham massacrado metade dos habitantes. Os
cinquenta sobreviventes que restavam disseram que não tinham galinhas suficientes para organizar
um banquete em que todos pudessem comer carne. Então decidiram que só a meia dúzia de
estrangeiros de visita é que comeriam as galinhas e eles, os anfitriões, contentar-se-iam com frijoles
refritos. O problema é que, apesar de tudo, eram galinhas a mais para apenas seis visitantes. Eram
para aí 15 galinhas. A menos para todos, a mais para apenas alguns. Resolvi comer, comer, comer até
não sobrar uma coxa de galinha. Pareceu-me a melhor homenagem que podia fazer a Acteal.
Tornei-me ator quando comecei a trabalhar com a companhia tg STAN. Foi com esses belgas
libertários que percebi que, embora eu não fosse a melhor coisa que tinha acontecido ao teatro, o
teatro era a melhor coisa que me podia acontecer a mim. Ainda hoje não sei se o teatro é feliz
comigo, mas eu sou feliz com ele. Há casamentos que funcionam com amor só de um dos lados. Foi a
fazer um Platonov, de Tchékhov, que percebi que não é preciso ser muito bom para se escolher o
teatro como profissão. Basta que ele nos faça felizes. O resto é trabalho.
O animal de estimação mais invulgar que tive foi um ouriço cacheiro. Chamei-lhe Picasso. Viveu
comigo uns meses. Tinha-o encontrado ferido numa estrada da Arrábida. Quando ficou bom, disse-me que queria voltar a casa. Libertei-o onde o tinha encontrado. Sei que não há cerejeiras na
Arrábida e que os ouriços cacheiros não conseguem subir às árvores, mas consola-me imaginá-lo a
viver no alto duma cerejeira com vista para o castelo de Palmela.
Gosto de atores e produtores e técnicos e cenógrafos e figurinistas e desenhadores de luz e
dramaturgos. A minha autobiografia podia ser uma lista de centenas de nomes de pessoas do teatro.
É um povo que vive na fronteira, na margem de erro. São nómadas exploradores. É a minha tribo.
A minha palavra preferida é: vulnerável. A minha pessoa preferida chama-se: Beatriz. A minha
atividade preferida é: aprender de cor. A minha frase preferida está sempre a mudar. Normalmente é
uma frase do dramaturgo Noel Coward: work is more fun than fun. Mas, de momento, é uma frase
de Plutarco: a alma do amante vive sempre num corpo alheio. É uma frase que Plutarco escreve nas
Vidas Paralelas sobre o romance entre António e Cleópatra, que é a peça em que estou agora a
trabalhar. Será uma adaptação muitíssimo livre a partir de Shakespeare, escrita para a dupla de
artistas Sofia Dias e o Vítor Roriz, que estreia daqui a uns dias no Centro Cultural de Belém. É uma
frase que diz do amor mas também do trabalho do ator, do escritor, do encenador. É uma tese
teatral. É uma autobiografia.
Daqui a umas semanas, vou passar a dirigir o Teatro Nacional D. Maria II. Vou entrar com o pé
esquerdo. Sem superstições e com esperança. Tentarei ser a alma do amante no corpo dum teatro
alheio porque é um teatro de todos.
Ontem, estava na Amadora e passei pela enfermeira Manuela. Usa uma longa trança grisalha.
Está, certamente, reformada. Vejo-a muitas vezes a passear pelas ruas da Reboleira. Ontem, quando
passava por mim, disse-lhe: boa tarde. Ela parou e olhou para mim. Ela, o primeiro ser humano que
me tocou. A enfermeira Manuela olhou para mim e não me reconheceu. Seguiu o seu caminho.
Texto originalmente publicado no Jornal de Letras (2014)
3
O exercício de memória
CONVERSA COM TIAGO RODRIGUES
Os clássicos agora, a reescrita e a reconstituição, a memória, o coro e o coletivo, a violência e
as mortes, os deuses e o inevitável
No Entrelinhas, que escreveste para o
Tónan Quito, ele diz a certa altura que é
estúpido perguntar se os clássicos ainda
fazem sentido hoje. É estúpido perguntar?
A vontade de pegar nestas peças e de as
reescrever não tem absolutamente nada a ver
com tentar atualizá-las para fazerem sentido
no nosso tempo, nem com dizer que há um
grande fundo intemporal nestes textos
clássicos, porque às vezes a questão não é essa,
há grandes textos que são mesmo muito
datados, e isso não quer dizer que não
consigam ser urgentes e presentes em qualquer
época.
O que nós queremos aqui, acima de tudo, é
dialogar com estes textos, ou seja mais do que
montá-los, era lê-los e discutir sobre eles — e
reescrever é um pouco a consequência de
estarmos a discuti-los. Eu reescrevo este
Ifigénia, Agamémnon e Electra a partir de um
debate coletivo com a equipa toda, à volta da
leitura. São textos que nascem como uma
espécie de memória ou retrato de uma leitura
que se faz hoje e que não é necessariamente a
leitura de 2015 — é a leitura de um grupo
específico de pessoas. Há uma vontade de falar
sobre o que nós pensamos quando lemos estas
tragédias, mais do que apenas montá-las, o que
já seria riquíssimo. Acho que isto é mais pobre,
que a matéria textual é mais rarefeita, mais um
resíduo do Eurípedes, do Sófocles e do Ésquilo.
E nesse retrato há o nosso esquecimento, a
nossa ignorância.
Interessava-nos tentar perceber como é que
nós, que somos o ingrediente contemporâneo
desta peça, nos relacionamos com as ideias de
sacrifício pelo país, de vingança, de livre
arbítrio, de confronto entre o bem comum e o
bem filial, familiar, pessoal. Acreditando que
modernos somos nós, a missão não é dizer ao
público que existem Ifigénias na cidade de
Lisboa em 2015, provavelmente não existem. É
dizer que as ideias que estão por trás desta
peça são ideias que nos podem falar da forma
como vivemos hoje e como vamos continuar a
viver.
Se modernizar não era a razão de
reescrever, então não fazia sentido ter
telemóveis ou televisões ou autoestradas. Mas
também não eliminamos essa hipótese,
dizemos que estamos em Argos mas não
dizemos que alguém chegou de carroça e é
preciso alimentar os cavalos. Tentamos manter
o espetáculo na esfera do teatro, do palco.
Nenhuma das coisas que são vistas, contadas
ou evocadas nos remete para um tempo
específico que não seja o do palco.
Mas há uma vontade de pôr no aqui e
agora.
Mas no aqui e agora desta noite. E com o
cenário quisemos tornar completamente clara
essa vontade de estar no tempo e no espaço do
teatro, em vez de tentar ilustrar um outro
tempo e um outro espaço. Mesmo quando
temos um objeto cenográfico que esconde
mais o palco, esconde-o mostrando a fachada
do próprio edifício, do teatro. Há uma
referência constante à transparência. No
Ifigénia é mais translucidez, no Agamémnon
são as fitas e no Ifigénia é a absoluta
transparência, porque é só uma armação de
ferro e vê-se o palco todo aberto. Tentámos
mostrar muito aberto um palco que está
habituado a estar muito vestido e camuflado.
Interessou-nos explorar isso com a Ângela
Rocha, a cenógrafa, e é isso que estamos agora
a trabalhar com o Nuno Meira, que faz o
desenho de luzes: por um lado a austeridade —
no verdadeiro sentido do termo — da tragédia,
e por outro lado mostrar o teatro: o cenário
destas peças é um teatro, muito mais do que
um verdadeiro cenário.
No início da Ifigénia, o coro diz que a
Helena não é mais do que uma ideia. O que é
essa Helena agora?
A Helena é uma ideia do passado, que
aconteceu, que agora já não está presente, e
que se pode sempre mencionar como raiz dos
problemas, mas muitas vezes não o é. É o que
cada um quiser que Helena seja, foi a
conclusão a que chegámos. Ao mesmo tempo
que é uma pessoa real, é só uma ideia. É um
bocadinho como o 25 de Abril. O 25 de Abril é
um acontecimento real, mas também uma
ideia, e o que cada um quiser que seja
conforme as suas convicções e também as suas
conveniências, serve a muitas coisas. O rapto
da Helena — se é que foi um rapto — serve. Há
uma promessa relacionada com ele, exigida
pelo Tíndaro, pai da Helena, a todos os
pretendentes, um pacto antigo que causa todos
os problemas, ou é usado como álibi. A Helena
está para a Guerra de Troia como as armas de
destruição maciça estão para a invasão do
Iraque. Terá um fundo de verdade, há uma
relação real com a ideia de ameaça, mas no
fundo nós sabemos que o que move os
humanos é outra coisa. São precisas as ideias
para justificar a ação.
Há muita coisa nas reescritas que tem a ver
com a forma como estas tragédias foram
entendidas ao longo dos tempos. A Helena é o
ideal de beleza e uma ideia ausente. Mas há
outras ideias, como a de que a tragédia é de
confiança, acaba sempre mal — que é uma
consideração do Jean Anouilh quando
reescreve a Antígona em 44. Há um diálogo
não só com o Eurípedes, mas também com o
que outros dramaturgos foram fazendo ao
longo do tempo. Um recordar de como é que
nós, no teatro, vamos lidando com a ideia de
tragédia. Que tem qualquer coisa muito do
nosso tempo: a evocação, o não ilustrar, não
mostrar o que se pode dizer e não dizer o que
se pode mostrar. Esse jogo está muito presente
com todos aqueles mensageiros, o sangue e as
mortes nunca são representados em palco, são
sempre fora do palco. E sim, este é um teatro
que me interessa fazer hoje, um teatro que não
mostra o artifício da morte, ou essa mentira.
Mais do que uma reescrita do mito, tu fazes
uma reescrita das próprias peças. Da mesma
maneira que hoje em dia já não se pinta um
São Mateus como o Caravaggio, mas pode-se
fazer uma pintura sobre a pintura. Estes
espetáculos também são muito sobre o teatro
e os problemas do teatro.
O problema do Eurípedes com a Ifigénia era
o de escrever a sua Ifigénia, não o de escrever a
Ifigénia. A Ifigénia já toda a gente conhecia, é
o mito. Portanto o problema do Eurípedes é
tão formal como o problema que se nos coloca
a nós, e a qualquer pessoa que queira pegar
num mito. Como é que eu vou resolvê-lo? Vou
colocá-los a dialogar mais? Quantas vezes é
que mencionam os deuses? Quantos
protagonistas tenho, fora do coro? Uso corifeu
ou não?
A única maneira de aceder a estes temas, a
essas histórias — porque não são só temas nem
personagens, há uma sequência linear de
acontecimentos que está estabelecida — é
através da forma. Então como é que te
relacionas com esse cânone? Eu julgo que é por
um lado pelos detalhes, pelo novo modo como
a mesma coisa é dita, mas também pelo nível
de consciência disso, formalmente. É verdade
que acaba por ser uma coisa muito sobre o
teatro, mas porque adaptar as grandes
histórias do teatro acabará sempre por ser um
exercício do próprio teatro. Não é tanto o
querermos fazer um espetáculo exclusivamente
assente na meta-teatralidade, mas é a única
forma de aceder. Quando a Sarah Kane escreve
O Amor de Fedra, ou o Cocteau faz também a
sua Antígona, fazem um exercício que também
é sobre o teatro. Depois pode ser mais ou
menos consciente. Aqui a certa altura é muito
explícito, sobre o que é que nós enquanto
artistas, enquanto espectadores, enquanto
sociedade, nos lembramos disto tudo. O ponto
de partida do Ifigénia é esse: de quanto é nos
lembramos destas histórias.
Parece que estão mais a reconstituir uma
peça do que a fazer uma peça.
Há esse exercício de uma arqueologia da
memória, mas também tem a ver com assumir
que existe uma tremenda distância em relação
a esta cultura teatral, helénica, europeia, estes
mitos e estas histórias que se presume que os
gregos conheciam de trás para a frente quando
entravam no teatro. Dizemos com imenso àvontade que é uma das matrizes culturais, mas
quando começamos a discutir como é que se
chamava o pai da Helena, ou se a Helena e a
Clitemnestra eram mesmo irmãs… É óbvio que
já não sabemos isso, mesmo nós próprios que
lemos estas peças antes, obrigatoriamente, na
escola.
A premissa de que o espectador conhece, e
quando vem ao teatro vem ver a nova forma de
contar a história, quisemos tratá-la também.
“Bom, antes temos de nos tentar recordar...” E
tentar recordar é dizer que nós hoje, com todo
o acesso ao gigantesco arquivo de informação,
estamos mais longe de uma ideia de
transmissão, menos informativa, que era a dos
gregos: a repetição constante das mesmas
histórias de outros modos, e que gera mais
civilização do que muita informação nova
todos os dias.
A memória também aparece dentro do
próprio texto, em relação às personagens, e
àquilo de que se lembram ou não.
Sim, há também o exercício de memória nas
próprias tragédias, sobretudo sendo uma
trilogia. A partir do momento em que morre a
Ifigénia, a grande questão é quem se lembra do
quê. Há um processo histórico, de uma
sociedade com guerra, revoluções, tomadas de
poder, e o que conduz as ações dos
protagonistas é sempre o modo como eles se
lembram de determinada coisa. Esse é talvez o
elo de ligação mais forte com o nosso tempo, o
modo como nós deixamos, em sociedade, que
os valores sejam moldados à conveniência das
ocasiões. Nem é preciso passar gerações, a
passagem de dois ou três anos transforma
completamente a nossa relação com um
acontecimento. Em quarenta anos de
democracia, a nossa ideia de solidariedade, de
justiça, de sacrifício é outra. Há uma
personagem no Agamémnon, o Egisto, que diz
que em nome do bem comum, as amizades e os
ódios entre os homens devem mudar como a
árvore caduca, todas as estações.
Quando li as tragédias seguidas, foi umas
das coisas que me tocou muito. A violência da
Electra é justificada por um facto histórico que
é visto de forma completamente parcial,
porque é visto sem o seu antecedente. É como
olhar para a Segunda Guerra Mundial sem a
Primeira. Falar da Guerra Fria sem saber o que
foi a Segunda Guerra Mundial, Hiroxima e
Nagasaki. Continuamos a ver o mundo e os
países e as relações políticas, bélicas, assim,
tentando tratar seletivamente o passado. E o
facto de serem três peças permite, num espaço
de tempo muito reduzido, colocar isso em
evidência. A forma como a passagem do tempo
nos pode trair.
Fala-nos um bocadinho do papel do coro:
tanto serve como uma espécie de ponto, como
é testemunha, como duplo das personagens,
dá as didascálias…
Uma das decisões que eu tomei muito cedo
foi não dar só uma única função ao coro. O
coro tem o papel inicial de recordar, faz
avançar a ação, narra o que não se quer ou não
se pode mostrar, questiona ou interpela
personagens (a Clitemnestra, a Electra) cuja
conduta pode ser duvidosa — e portanto
representa de alguma forma o senso comum. E
fui-me apercebendo de que tinha também o
papel de ser os outros — a certa altura diz-se
que há os que têm nome e os que não têm
nome. Não no sentido de uma estratificação
entre ricos e pobres, ou entre poderosos e nãopoderosos (embora isso seja sugerido
também), mas entre os que são recordados e os
que não são recordados. Eles são os que não
têm nome, e portanto os que não podem agir,
porque um gesto deles ou é um gesto coletivo,
ou então não tem valor. Um gesto individual de
alguém que não tem nome é como se não
acontecesse. Quando falamos de história, há
uma história de hemeroteca, quotidiana, que
depois é filtrada pelo tempo e ganha um ponto
de vista a partir do poder, dos que têm nome.
O coro no início seduziu-me muito: vou
conseguir tratá-lo individualmente, cada
pessoa é mesmo uma pessoa e tem uma
história individual. Mas a grande violência do
coro é que é um coletivo, não vale
individualmente. Então comecei a escrever a
partir dessa frustração. É um coro que está
relativamente insatisfeito com a ideia de ser só
um coro, mas que ao mesmo tem medo quando
precisa de ter medo, quando tenta fazer
alguma coisa não consegue… Muito mais do
que conseguir libertá-los, acho que acabei por
sublinhar a impotência do coletivo.
Eu tive um bocado a impressão oposta
quando a Cassandra diz: tendo eu nome, o
que me acontece é inevitável. Enquanto a
vossa sorte, dos que não têm nome, não está
escrita — estão condenados a ser livres, como
diz o Sartre.
A Cassandra tem nome e isso dá-lhe um
destino trágico. E os que não têm nome, são
mais personagens dramáticas, como nós. Mas
a questão que o Velho coloca é: tu vais morrer
porque tens um nome, mas quando tu
morreres, vão dizer “a Cassandra morreu”, e
quando eu morrer não vão dizer nada, porque
não vai sequer poder ser nomeada a minha
ausência. Há de haver outros velhos. Então se a
minha ausência não for nomeada, terei alguma
vez vivido?
E a evolução do coro ao longo das três
peças?
Outro problema que eu tive foi: como é que
os atores saem do coro? Isso é o início do
Ifigénia. Eles são todos coro e depois
lentamente começam a sair. Tentei que se
fizesse nas três peças um pouco a evolução do
coro ao longo dos trágicos. No início é muito
mais coral, e de repente o Miguel Borges sai do
coro e começa a dizer texto do Agamémnon —
como terá feito Téspis, que é o primeiro ator.
Um tipo que supostamente se destacou do coro
em pleno espetáculo e começou a dizer o texto
sozinho, por vaidade, ou por coragem, e de
repente temos o primeiro ator, que já não dizia
“Agamémnon diz não-sei-o-quê”, dizia só
mesmo a coisa, em vez de citar. Esse caminho
começou a conduzir atores para personagens.
E no final da Ifigénia sobram quatro atrizes
que não têm personagem, que são só coro,
numa espécie de frustração perante os
acontecimentos. E isso foi o que me conduziu
para o Agamémnon. No Agamémnon são os
que falam baixo, os que estão ali há dez anos a
viver a essa frustração. No Electra já são as
jovens de Argos que querem ir mais longe,
querem tomar mais conta dos acontecimentos,
mas lidam com um outro problema: elas olham
para a Electra, que pode ser a fonte de toda a
mudança, e dizem: não será ela também um
deles? Já é um coro mais cínico, ou pelo menos
com menos ingenuidade em relação àquela
família amaldiçoada. É um coro que está muito
mais próximo, fala tu cá tu lá com as
personagens, entra na casa da Electra e explica
o que se está a passar. Há uma progressão. Se
houvesse uma quarta peça, acho que não havia
coro.
A trilogia abre pondo o público a falar, e
fecha com uma exortação ao silêncio. Queres
falar sobre esse final?
Aquilo que é dito em palco nunca são coisas
que eu queira dizer ao mundo, nem que a
equipa queira dizer. “E se ficássemos em
silêncio?” é uma expressão de derrota. Mas
uma expressão de derrota em palco não é um
apelo à apatia. Pode ser uma provocação. Há
uma reflexão que está a ser feita. Quando o
Velho diz “E se ficássemos em silêncio?” no
final da trilogia está a colocar essa hipótese: e
se não nos puséssemos a questionar todas
estas coisas? E se deixássemos andar? Se
aceitássemos o nosso lugar? Muda realmente
alguma coisa, compensa? Não é uma reação
catártica ao final trágico, é a reação de alguém
que está de longe a observar os
acontecimentos, mas que também passou as
três peças a influenciá-los. Ele é um agente,
não é só um instrumento, é alguém que tem
uma vontade própria a certa altura (tenta
salvar a Ifigénia, no final cumpre aquilo que a
Electra quer), mas que vai azedando – por
alguma razão também é o Velho. Deixa de
conseguir ter confiança nos outros, em termos
políticos e amorosos. É ainda um grande
debate, se deveremos terminar com essa
pergunta ou não. Mas não sou eu a falar. Aliás,
nunca sou eu a falar.
Sobre a violência, quando li o Electra – e
porque tu costumas usar poucas didascálias –
fiquei a pensar: como é que eles vão resolver o
problema da música com a cabeça do Egisto?
Esta peça não tem mesmo nenhuma. Há
coisas que eu não escrevo porque não preciso,
porque há um jogo que já foi discutido, ou que
eu já imagino e sei que vou pôr em prática
daquela maneira. Mas também tento não
explicar demais com a didascália para que
surja a alternativa – que normalmente é
melhor – que os próprios atores começam a
encontrar. E às vezes escrevo sem didascálias
coisas que deveriam ter uma didascália para
criar o problema, como o da cabeça. É um
problema que eu quis criar à Flávia Gusmão,
que eu já sabia que ia fazer a Electra. Vamos
ver o que é que sai daqui. Para mim o processo
mesmo, mesmo interessante é não é pôr no
papel aquilo que foi discutido, é reagir
criativamente a essa conversa à volta da mesa,
com aos atores. Eu não faço a mínima ideia de
como é que vamos conseguir tratar o nível de
grotesco e de explícito que essa cena tem. Mas
sabemos que é uma pesquisa saborosa e que
funciona com a Flávia Gusmão e o Miguel
Borges a contracenar e a fazer aqueles irmãos
perversos, os dois entre o incestuoso e o
infantil…
Mesmo a partir do Eurípedes, percebemos
que havia possibilidades para que estes dois
irmãos, que foram separados, ao encontraremse se relacionassem da forma como se
relacionavam quando foram separados, que é a
do jogo infantil, e pode ser tremendamente
cruel. Uma criança com uma faca e com
vontade de vingança… Essa relação que se
estabelece entre eles tem qualquer coisa de
muito apelativo, que faz com que nos
entusiasmemos com o horror do que está a ser
cometido, com o lado sanguinário, um
bocadinho como achamos tão engraçado o
Ricardo III fazer aquelas coisas todas àquela
gente toda. Também porque sabemos que
estamos no teatro. Mas há um entusiasmo
genuíno pela selvajaria, que as crianças têm,
um lado Deus das Moscas – porque é uma
crueldade atlética, desportiva. E de repente
aquele ambiente incestuoso e cruel torna-se
muito sedutor e lúdico.
A relação do espectador com as várias
mortes é diferente. Na Ifigénia é muito triste.
Já no Agamémnon, a morte da Cassandra é
mais terrível que a do próprio Agamémnon…
Sim, porque nós temos a mesma memória
que a Clitemnestra. Não achamos o
Agamémnon uma vítima inocente. Nem o
Ésquilo achava. O Agamémnon era um tipo
com pecados suficientes se calhar não para
merecer uma morte tão horrível, mas apesar de
tudo… O próprio coro diz isso, no final do
Ésquilo, à Clitemnestra: sim senhora, ele
deveria ser castigado, mas outra coisa é o
pecado de matar o marido, e do adultério, por
esse também tens de ser castigada. O castigo é
justo, mas o ato é imperdoável.
A Cassandra é a vítima inocente naquilo, e
esta Cassandra só sabe um bocadinho para a
frente, vai descobrindo. Só sabe o próximo
episódio, não sabe a série toda. O Agamémnon
é todo sobre timing, mais até do que sobre a
memória. Quando é que sabes o que vai
acontecer, quando é que acontece
efetivamente, quando é que tentas fazer
alguma coisa em relação a isso, será que ainda
vais a tempo. É o problema da Cassandra, do
coro, da Clitemnestra que tem a festa daqui a
pouco e portanto tem de conduzir o
Agamémnon, é o problema do Agamémnon
que quer atrasar a festa o mais possível porque
sente que qualquer coisa não está bem, do
Egisto que aparece cedo demais, da Electra que
aparece antes do seu tempo, ainda não é a
história dela, é só na próxima peça…
O Agamémnon vai para um universo mais
do thriller, é muito cinematográfico. Tem mais
a ver com o problema da montagem e do
montador do que com o problema do
encenador. Uma peça com muitas entradas e
saídas, de ritmo. O final se calhar é mais
Funny Games, essa crueza, frieza da
montagem, é uma peça mais esquemática
também, com menos liberdade de jogo. Para os
atores também é mais rigorosa, têm de
obedecer a tempos. Tem um metrónomo
ligado. E o Electra deixa de ter outra vez o
metrónomo ligado porque há uma personagem
principal que precisa de espaço para explodir.
É talvez a peça que exige mais imperfeição,
aspereza, mais liberdade e margem de erro.
E as referências aos deuses?
Foi uma das questões que nós discutimos
nas leituras, o nível de convicção. O Eurípedes
já é muito irónico em relação aos deuses. O que
eu ponho a Clitemnestra a dizer no final do
Ifigénia é só um sublinhado do que o
Eurípedes já tem: “como acreditar nisto, como
não ver nisto apenas uma história para nos
consolar?” A questão dos deuses e a da figura
da mulher foram questões que eu… não foi
tanto atualizar, mas que para mim seria
insuportável abordar do mesmo modo.
Conceptualmente, mas também politicamente.
Acho que já ultrapassámos a fase em que
escrever uma Electra ou uma Ifigénia é
escrever sobre a emancipação da mulher. É
escrever já pós-emancipação, dando-a como
dado adquirido. Estamos a escrever para um
tempo em que já não temos de fazer o esforço
de emancipar a figura feminina. A questão dos
deuses, achei que não era possível omiti-la,
também porque os deuses se podiam tornar
metáfora de alguma coisa que não se pode
tratar explicitamente. São uma ferramenta de
propaganda, e toda a gente assume isso.
O Ulisses diz: pouco importa que lhe
chamem destino, memória, deuses.
Sim, chamem-lhe o que quiserem, é o
inevitável. O Ulisses é mais explícito no
discurso político, ele é um estratega, bastante
mais do nosso tempo, então aí senti-me à
vontade para entrar num território em que
vemos muitos ricochetes políticos com o nosso
tempo em termos linguísticos. Voltando ao
início da conversa, acho importante inverter a
ordem: não nos perguntarmos se estas
histórias ainda fazem sentido hoje, mas antes
que sentido é que nós fazemos face a estas
peças. Não as três que eu escrevi, mas a
Ifigénia, o Agamémnon e a Electra são mais a
humanidade e estão mais próximas das
grandes questões da nossa vida do que a maior
parte das coisas que estão a acontecer hoje. Pai
que sacrifica a filha para ter vento para ir para
a guerra. Mulher que mata o marido após dez
anos porque não se esquece que ele matou a
filha. Filha que espera que o irmão venha para
matar a mãe e o padrasto: são histórias
completamente impossíveis, mesmo que isto
saísse agora no jornal, continuarias a achar
distante do que somos hoje. Mas às vezes, o
nosso tempo faz menos sentido. E olhar para o
nosso tempo através destes textos é olhá-lo
com a memória da civilização, em vez de ser
como uma coisa inevitável. Porque desse ponto
de vista da cultura, dos grandes textos, há
muita coisa que não faz sentido, que é absurda
e que devia ser transformada.
Encenas o inevitável para dar a ver que
não é inevitável o que existe?
Óbvio. Como os gregos. A maior parte deles
conheciam estas histórias, mas a razão por que
o Sófocles escolhe, no ano X, fazer a Antígona,
estava muitas vezes ligada ao que tinha
acontecido no ano político anterior. Porquê
fazer as três tragédias hoje? Porque acho que
estamos muito concentrados – não só em
Portugal, na Europa – no inevitável, no agora,
e perdemos a perspetiva histórica. E a criação
artística, a arte, a civilização cultural tem essa
noção de posteridade, que a política e a
economia perderam – a economia talvez
menos, enquanto ciência social, mas a política
enquanto prática perdeu essa ideia de futuro,
de vindouros, de legado também. Estamos
completamente reféns dos próximos três
meses, do próximo rating. E perdemos a ideia
de passado, porque a de futuro implica
também que o calendário para o passado seja
alargado.
Fazer três tragédias que, ainda por cima,
elas próprias falam de um calendário de
algumas gerações – entre a primeira e a última
passam dezassete anos – é falar também da
importância desta perspetiva. Basta olhar da
perspetiva de três tragédias gregas, ou do
Shakespeare, ou do Molière, e de repente
iluminam-se as coisas que não fazem sentido
no nosso quotidiano, e que deveríamos
combater, alterar, repensar.
É proibido esquecer, como diz a
Clitemnestra?
É proibido esquecer tudo. Alguma coisa se
esquece sempre, mas é proibido esquecer como
projeto político.
CONVERSA COM ANA ELISEU E JOANA FRAZÃO
A 17 DE AGOSTO DE 2015.
4
FOTOGRAFIAS DE ENSAIO © Filipe Ferreira
5
A que textos chamamos clássicos e porquês
«Porquê ler os clássicos»
ITALO CALVINO, 1981
Comecemos com umas propostas de definição.
1.
Os clássicos são os livros de que se
costuma ouvir dizer: «Estou a
reler...» e nunca «Estou a ler...»
É isto que se verifica pelo menos entre as pessoas que se pressupõe
serem de “vastas leituras”; não se aplica à juventude, idade em que o
encontro com o mundo, e com os clássicos como parte do mundo, é
válido precisamente como primeiro encontro com o mundo.
O prefixo iterativo antes do verbo “ler” pode ser uma pequena
hipocrisia por parte de quem tiver vergonha de admitir que não leu um
livro famoso. Para o descansar bastará observar que por mais vastas
que possam ser as leituras “de formação” de um indivíduo, fica sempre
um número enorme de obras fundamentais que não se leu.
Quem leu todo o Heródoto e todo o Tucídides levante o dedo. E SaintSimon? E o cardeal de Retz? Mas até os grandes ciclos de romances do
século XIX são mais nomeados que lidos. Balzac, em França começa a
ler-se na escola e pelo número de edições em circulação dir-se-ia que
também se continua a lê-lo depois. Mas em Itália se se fizesse uma
sondagem Marktest receio que Balzac ficaria nos últimos lugares. Os
apaixonados de Dickens em Itália são uma restrita elite de gente que
quando se encontra se põe logo a recordar personagens e episódios
como se fossem pessoas suas conhecidas. Há anos Michel Butor, ao
lecionar na América, farto de ouvir perguntarem-lhe por Émile Zola
que nunca tinha lido, decidiu-se a ler todo o ciclo dos RougonMacquart. Descobriu que era completamente diferente do que julgava:
uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogónica, que descreveu
num belíssimo ensaio.
Isto vem a propósito de dizer que ler pela primeira vez um grande livro
em idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se
pode dizer que é maior ou menor) do que se tem ao lê-lo na juventude.
A juventude comunica à leitura, tal como a qualquer outra experiência,
um sabor e uma importância muito especiais; enquanto na maturidade
se apreciam (deveriam apreciar-se) muitos mais pormenores, níveis e
significados.
Assim, podemos tentar outra fórmula de definição:
2.
Chamam-se clássicos os livros que
constituem uma riqueza para quem
os leu e amou; mas constituem
uma riqueza nada menor para
quem se reserva a sorte de lê-los
pela primeira vez nas condições
melhores para os saborear.
De facto as leituras da juventude podem ser pouco profícuas por impaciência,
distração, e inexperiência das instruções para o uso e inexperiência da vida.
Podem ser (se calhar ao mesmo tempo) formativas no sentido de darem uma
forma às experiências futuras, fornecendo modelos, conteúdos, termos de
comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de
beleza: tudo coisas que continuam a agir mesmo que do livro lido na
juventude se recorde pouquíssimo ou mesmo nada. Ao reler o livro em idade
madura, acontece reencontrar-se estas constantes que agora já fazem parte
dos nossos mecanismos internos e de que tínhamos esquecido a origem. Há
uma força especial da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas
que deixa sementes.
Então a definição que dela poderemos dar será:
3.
Os clássicos são livros que exercem
uma influência especial, tanto
quando se impõem como
inesquecíveis, como quando se
ocultam nas pregas da memória
mimetizando-se de inconsciente
coletivo ou individual.
Por isso deveria haver uma época na vida adulta destinada a revisitar as
leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os
mesmos (mas eles também mudam, sob a luz de uma perspetiva histórica que
se alterou) nós certamente mudámos, e o encontro é um acontecimento
totalmente novo.
Assim, o facto de se usar o verbo “ler” ou “reler” não tem muita importância.
Com efeito poderíamos dizer:
4.
De um clássico toda a releitura é
uma leitura de descoberta igual à
primeira.
5.
De um clássico toda a primeira
leitura é na realidade uma
releitura.
A definição 4. pode considerar-se um corolário desta:
6.
Um clássico é um livro que nunca
acabou de dizer o que tem a dizer.
Enquanto a definição 5. remete para uma formulação mais explicativa, como:
7.
Os clássicos são os livros que nos
chegam trazendo em si a marca
das leituras que antecederam a
nossa e atrás de si a marca que
deixaram na cultura ou nas
culturas que atravessaram (ou
mais simplesmente na linguagem
ou nos costumes).
Isto tanto se aplica aos clássicos antigos como aos clássicos modernos.
Se ler a Odisseia leio o texto de Homero mas não posso esquecer tudo o que as
aventuras de Ulisses vieram a significar durante os séculos, e não posso
interrogar-me se estes significados estavam implícitos no texto ou se eram
incrustações ou deformações ou dilatações. Ao ler Kafka não posso deixar de
comprovar ou de recusar a legitimidade do adjetivo “kafkiano” que nos calha
ouvir de quarto em quarto de hora, aplicado a torto e a direito. Se ler Pais e
filhos de Turgueniev ou Os Demónios de Dostoievsky não posso deixar de
pensar que estas personagens continuaram a reencarnar-se até aos nossos
dias. A leitura de um clássico deve dar-nos qualquer surpresa em relação à
imagem que tínhamos dele. Por isso nunca será suficiente recomendar a
leitura direta de textos originais evitando o mais possível bibliografia crítica,
comentários e interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para
fazer compreender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais que este;
aliás, fazem tudo para fazer crer o contrário. Há uma inversão de valores
muito difundida pela qual a introdução, o aparato crítico e a bibliografia são
usados como uma cortina de fumo para ocultar o que tem a dizer o texto e que
só pode dizê-lo se o deixarem falar sem intermediários que pretendam saber
mais que ele.
Podemos concluir que:
8.
Um clássico é uma obra que
provoca incessantemente uma
vaga de discursos críticos sobre si,
mas que continuamente se livra
deles.
O clássico não tem necessariamente de nos ensinar alguma coisa que não
sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que tínhamos desde sempre sabido
(ou julgado saber) mas não sabíamos que ele já o tinha dito antes (ou que pelo
menos se liga a isso de modo particular). E esta é também uma surpresa que
dá muita satisfação, como sempre a dá a descoberta de uma origem, de uma
relação, ou de um vínculo.
De tudo isto poderíamos fazer derivar uma definição do tipo.
9.
Os clássicos são livros que quanto
mais se julga conhecê-los por ouvir
falar, mais se descobrem como
novos, inesperados e inéditos ao lêlos de facto.
Naturalmente isto verifica-se quando um clássico “funciona” como tal, ou seja,
quando estabelece uma relação pessoal com quem o ler. Se não der faísca, não
há nada a fazer: não se leem os clássicos por dever ou por respeito, mas só por
amor. Salvo na escola: a escola deve dar-nos a conhecer bem ou mal um certo
número de clássicos entre os quais poderemos depois reconhecer os “nossos”
clássicos. A escola destina-se a dar-nos instrumentos para exercermos uma
opção; mas as opções que contam são as que se verificam fora e depois de
todas as escolas.
É só nas leituras desinteressadas que pode suceder esbarrarmos num livro
que se torna o “nosso” livro. Conheço um ótimo historiador de arte, homem de
vastíssimas leituras, que entre todos os livros concentrou a sua predileção
mais profunda no Círculo Pickwick, e a propósito de tudo e de nada cita
piadas do livro de Dickens, e associa cada facto da sua vida a episódios
pickwickianos. Pouco a pouco ele próprio, o universo e a verdadeira filosofia
foram tomando a forma do Círculo Pickwick numa identificação absoluta.
Chegamos por esta via a uma ideia de clássico muito elevada e exigente:
10.
Chama-se clássico um livro que se
configura como equivalente do
universo, tal como os antigos
talismãs.
Com esta ideia aproximamo-nos da ideia de livro total, como o sonhava
Mallarmé. Mas um clássico pode estabelecer uma relação igualmente forte de
oposição, de antítese. Interessa-me muito tudo o que Jean-Jacques Rousseau
pensa e faz, mas tudo me inspira um irreprimível desejo de contradizê-lo, de
criticá-lo, de brigar com ele. Tem a ver com a sua antipatia pessoal no plano
do temperamento, mas por isso bastava-me não o ler, e afinal não posso
deixar de considerá-lo um dos meus autores.
Direi portanto:
11.
O nosso clássico é o que não pode
ser-nos indiferente e que nos serve
para nos definirmos a nós mesmos
em relação e se calhar até em
contraste com ele.
12.
Um clássico é um livro que vem
antes de outros clássicos; mas
quem leu primeiro os outros e
depois lê esse, reconhece logo o seu
lugar na genealogia.
Creio que não preciso de me justificar se uso o termo “clássico” sem fazer
distinções de antiguidade, de estilo ou de autoridade. (Para a história de todas
estas aceções do termo, ver a exaustiva entrada “Clássico” de Franco Fortini
na Enciclopédia Einaudi, vol. III). O que distingue o clássico no discurso que
estou a fazer talvez seja apenas um efeito de ressonância que tanto vale para
uma obra antiga como para uma moderna mas já com o seu lugar numa
continuidade cultural.
Poderíamos dizer:
Neste ponto já não posso adiar mais o problema decisivo de como relacionar a
leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não são clássicos.
Problema que tem a ver com perguntas como: “Porquê ler os clássicos em vez
de nos concentrarmos em leituras que nos façam compreender mais a fundo o
nosso tempo?” e “Como arranjar o tempo e a disponibilidade mental para ler
os clássicos, assoberbados como estamos por esta avalancha de papel
impresso que caracteriza a atualidade?”
É claro que se pode imaginar uma pessoa afortunada que dedique o “tempoleitura” dos seus dias exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne,
Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Discours de la Méthode, o Wilhelm Meister,
Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry, com uma ou outra divagação para
Murasaki ou as sagas islandesas. Tudo isto sem ter de fazer recensões da
última reedição, nem publicações para o doutoramento, nem trabalhos
editoriais no fim do prazo. Esta pessoa afortunada para manter a sua dieta
sem nenhuma contaminação teria de se abster de ler os jornais, de nunca se
deixar tentar pelo último romance ou pela última investigação sociológica.
Fica por ver até que ponto um rigorismo destes seria justo e profícuo. A
atualidade pode ser banal e mortificante, mas não deixa de ser um ponto em
que devemos situar-nos para olhar em frente ou para trás. Para se poder ler os
clássicos, deve-se também determinar “donde” estamos a lê-los, senão tanto o
livro como o leitor perdem-se numa nuvem sem tempo. É por isso que tira o
máximo rendimento da leitura dos clássicos quem souber alternar com ela a
sapiente dosagem da leitura de atualidades. E isto não presume
necessariamente uma equilibrada calma interior: pode ser até o fruto de um
nervosismo impaciente, de uma insatisfação exasperante.
O ideal talvez seja sentir a atualidade como o rumor que entra pela janela, que
nos avisa dos engarrafamentos do trânsito e dos saltos meteorológicos,
enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos que soa claro e articulado
no nosso gabinete. Mas também já é muito se para a maioria a presença dos
clássicos se sentir como um ribombar longínquo, fora do gabinete invadido
pela atualidade como se fosse uma televisão a todo o volume.
Acrescentemos portanto:
13.
É clássico o que tiver tendência
para relegar a atualidade para a
categoria de ruído de fundo, mas
ao mesmo tempo não puder passar
sem esse ruído de fundo.
14.
É clássico o que persistir como
ruído de fundo mesmo onde
dominar a atualidade mais
incompatível
Resta o facto de que ler os clássicos parece estar em contradição com o
nosso ritmo de vida, que não conhece tempos longos, nem a respiração
do otium humanista; e também parece estar em contradição com o
ecletismo nossa cultura que não saberia redigir um catálogo da c1assicidade que sirva para o nosso caso.
Eram as condições que se realizavam em pleno para Leopardi, dada a
sua vida sob a égide paterna, o culto da antiguidade grega e latina e a
formidável biblioteca que lhe foi transmitida pelo pai Monaldo, tendo
anexa a literatura italiana completa, mais a francesa, excluindo os
romances e em geral as novidades editoriais, relegadas quando muito
para a margem, para conforto da irmã (“o teu Stendhal” escrevia ele a
Paolina). Até as suas vivíssimas curiosidades científicas e históricas,
Giacomo satisfazia-as em textos que nunca eram demasiado up to
date: os hábitos das aves em Buffon, as múmias de Frederico Ruysch
em Fontenelle, a viagem de Colombo em Robertson.
Hoje é impensável uma educação clássica como a do jovem Leopardi, e
sobretudo a biblioteca do conde Monaldo ardeu. Os velhos títulos
foram dizimados mas os novos multiplicaram-se proliferando em
todas as literaturas e culturas modernas. Só resta inventar cada um
uma biblioteca ideal dos nossos clássicos; e diria que ela teria de ser
constituída metade por livros que já lemos e que foram importantes
para nós, e metade por livros que nos propomos ler e pressupomos que
sejam importantes. E deixando uma secção de lugares vazios para as
surpresas, para as descobertas ocasionais.
Reparo que Leopardi é o único nome da literatura italiana que citei.
Efeitos do incêndio da biblioteca. Agora deveria reescrever todo o
artigo tornando bem claro que os clássicos servem para compreender
quem somos e aonde chegámos e por isso os italianos são
indispensáveis precisamente para os compararmos com os
estrangeiros, e os estrangeiros são indispensáveis precisamente para
os compararmos com os italianos.
Depois deveria reescrevê-lo mais uma vez para não se pensar que os
clássicos devem ser lidos porque “servem” para alguma coisa. A única
razão que se pode aduzir é que ler os clássicos é melhor que não ler os
clássicos.
E se alguém objetar que não vale a pena ter tanto trabalho, citarei
Cioran (não é um clássico, pelo menos por agora, mas sim um
pensador contemporâneo que só neste momento se começa a traduzir
em Itália): “Enquanto lhe preparavam a cicuta, Sócrates pôs-se a
aprender uma ária na flauta. “Para que te servirá?” perguntaram-lhe.
“Para saber esta ária antes de morrer””.
6
A história que está na base
das três tragédias
(DUAS VERSÕES)
O mito
ROBERTO CALASSO
AS NÚPCIAS DE CADMO E
HARMONIA
1988
TRADUÇÃO DE MARIA JORGE
VILAR DE FIGUEIREDO
A tensão que existe em Pélops, desmembrado e desmembrador, cinge-se
em dois polos, em dois filhos: Atreu e Tiestes. São os irmãos inimigos,
como muitos outros que encontramos no mito, na história, na rua. Mas,
comparada com qualquer outra, a sua vida é um pouco mais cruel, e
também mais cósmica e abstrata, se o cósmico e o abstrato abrem caminho
à exaltação algébrica do horror. Qualquer história de dois é sempre uma
história de três: há duas mãos que agarram ao mesmo tempo a mesma
coisa e a arrebatam para direções opostas. Aqui, essa coisa é o cordeiro de
ouro, o talismã da soberania. Com o mudar dos tempos, a omoplata de
Pélops deixa de ser algo cravado num corpo, e doado por um deus, para
passar a ser um corpo exterior, que uma mão tem de agarrar e oferecer a
um deus, neste caso a Artemisa. A mão de Atreu agarra o cordeiro para o
estrangular, depois esconde-o nos recantos de sua casa, quer transformar o
talismã em tesouro. Até Tiestes conseguir roubá-lo, graças à mulher de
Atreu, a cretense Érope, que entretanto seduzira.
Deveria ser este o primeiro anel da cadeia de culpas.
Mas depressa percebemos que assim não é: antes da cilada concebida por
Tiestes, há a cilada armada por Atreu a Artemisa, a quem quer roubar o
animal prometido em sacrifício. Até esse momento, os irmãos eram
perfeitamente iguais no crime. Ambos tinham ajudado a mãe a eliminar o
irmão bastardo, Crisipo. E ambos tinham sido atingidos pela maldição de
Pélops, em que se repercutem e reverdecem a de Mirtilo contra Pélops, de
Enomau contra Mirtilo e, na origem de tudo, a de Zeus contra Tântalo, o
fundador da família. O conflito entre os dois irmãos é admiravelmente
equilibrado, porque seria inútil determinar qual dos dois é menos injusto.
Ambos procuram o pior. A diferença está no estilo, e no arbítrio divino, que
inicialmente favorece Atreu. Sem hesitação, para enganar Tiestes, como
Tiestes enganara Atreu, e para que Atreu vença na ordália pela soberania
sobre Micenas, Zeus inverte o curso do sol e dos astros. Essa intervenção
equivale à mesa virada por Zeus, indignado com o canibal Licáon: é uma
alusão ao desequilíbrio do eixo terrestre, ao novo mundo que nasce com a
obliquidade da elíptica. Mas a intervenção de Zeus é apenas um episódio
no desafio inebriante entre os dois irmãos, que já descobriram a autonomia
do homem e experimentam sem pudor os seus mecanismos.
Com o regresso do talismã, e do poder, às mãos de Atreu, e com a expulsão
de Tiestes de Micenas, poder-se-ia pensar que o conflito terminaria, ou
quando muito que renasceria com a vingança de Tiestes. O que ocorre,
porém, é um recrudescimento: o vencedor quer vingar-se do vencidos e
quer que a sua vingança supere todas as outras. Tiestes regressou a
Micenas a convite de Atreu, que mostrava vontade de se reconciliar com
ele. Foi recebido com um sumptuoso banquete. Numa grande panela de
bronze ferviam pedaços de carne branca. Atreu escolheu alguns e ofereceuos ao irmão, com um olhar imóvel que ficou exemplar: desde então, fala-se
de “olhos de Atreu”. No fim do banquete Atreu mandou entrar um escravo.
O escravo apareceu com um prato cheio de pés e mãos humanos. Tiestes
compreendeu que comera a carne de seus filhos. Com um pontapé
derrubou a mesa. Amaldiçoou a estirpe de Atreu.
A partir de então, a luta entre os dois irmãos perde todos os sinais
psicológicos, entra no puro virtuosismo, traça arabescos. Tiestes
desaparece de novo, horrorizado, fugitivo. Tem uma única ideia: conceber
uma vingança que supere a do irmão, que já tinha concebido a sua com a
intenção de ela ser insuperável. Agora, o olhar de Tiestes fixa-se nas
gerações. Seria demasiado simples matar Atreu. É necessário atingir
também seu filho, e o filho de seu filho. Para isso, precisa da ajuda divina.
Peregrino em Delfos, Tiestes pediu conselho a Apolo. O deus respondeu
com perfeita sobriedade: “Viola a tua filha”. Dessa violação nasceria
vingador. Pelópia, a filha de Tiestes, refugiara-se na Siolia, junto do rei
Tesproto. Era sacerdotisa de Atena. Uma noite, na companhia de outras
donzelas, oferecia sacrifícios à deusa. Tiestes espiava-a atrás de uma sebe.
As sacerdotisas dançavam em redor de uma ovelha degolada. Pelópia caiu
numa poça de sangue, sujando o peplo. Tiestes viu-a afastar-se das
companheiras em direção a um riacho. Pela primeira vez, Tiestes
contemplou a beleza de sua filha nua. Caiu sobre aquele corpo branco
cobrindo a cabeça com manto (ou teria uma máscara? e porque teria uma
máscara?) Pelópia defendeu-se com fúria do desconhecido. Rolaram por
terra. Tiestes conseguiu penetrá-la e lançar nela o sémen. No fim, Pelópia
viu-se só. Na mão tinha a espada do desconhecido, que conseguira roubar.
Nessa noite foi concebido Egisto, “o impecável”, como lhe chama Homero.
Entretanto, depois de Atreu ter massacrado os filhos de Tiestes, uma
enorme seca atingira Micenas. Um oráculo afirmava que só terminaria se o
fugitivo Tiestes fosse de novo chamado. Atreu sabia que Tiestes estava com
Tesproto. Foi a Sícion, mas Tiestes fugira de novo, depois de ter violado a
filha. Na corte de Tesproto, Atreu conheceu uma sacerdotisa de Atena por
quem imediatamente se apaixonou. Pediu a sua mão ao rei, julgando que
Pelópia fosse sua filha. Tesproto não o desiludiu e concedeu-lhe Pelópia.
Atreu regressou a Micenas sem o irmão mas com uma nova esposa, que
escondia na bagagem a espada do desconhecido. Depois de ter sido traído e
ridicularizado por Érope, Atreu queria uma nova família, impecável. Nove
meses mais tarde, Pelópia deu à luz Egisto. Entregou-o a uns pastores, para
que o criassem nas montanhas, alimentado por uma cabra. Atreu pensou
que Pelópia tinha sido atacada por um momentâneo, e desculpável, ataque
de loucura. Mandou os seus homens em busca da criança. Encontraram-na.
Aquela criança era o seu único filho não contaminado, pensava; era o seu
herdeiro.
Em Micenas, a Natureza continuava imóvel. Recusava-se a dar frutos,
porque Tiestes ainda não regressara. Por fim, capturaram-no e
encerraram-no numa prisão. Atreu chamou o pequeno Egisto e confiou-lhe
a sua primeira tarefa de homem: devia pegar na espada devia pegar que a
mãe tinha sempre com ela e matar o prisioneiro durante o sono. Tiestes
conseguiu esquivar-se ao filho e tirou-lhe a espada. Olhava-a. Depois,
reconheceu-a: perdera-a naquela noite, em Sícion. Disse a Egisto para
chamar a mãe. Diante da espada, e de Tiestes, Pelópia compreendeu tudo.
Empunhou a espada e enterrou-a no seu corpo. Tiestes tirou-a da carne de
Pelópia e deu-a ao pequeno Egisto, ainda ensopada no sangue de sua mãe.
Disse-lhe para ir ter com Atreu e para lha mostrar, como prova de que
cumprira as ordens. Eufórico, convencido de que se tinha visto livre do
irmão, e da sua obsessão, Atreu pensou que devia agradecer sobretudo aos
deuses.
Mandou preparar um sacrifício solene à beira-mar. Enquanto celebrava, o
pequeno Egisto aproximou-se dele e enterrou a espada de Tiestes no corpo
de Atreu. Tiestes tornou-se rei de Micenas. Um novo cordeiro de ouro
surgiu no seu rebanho. Assim, provisoriamente, se concluía o conflito entre
os dois irmãos, pelo menos no sentido em que um morria antes do outro.
Mas a mó que com eles acelerara o seu movimento continuaria a triturar
ossos, por mais uma, duas, três gerações. O conflito entre os irmãos
inimigos convertera-se numa guerra entre formas, num duelo entre
fanáticos da forma. Se Tiestes acabou por obter uma momentânea vitória,
foi porque a sua inventiva formal superou a de seu irmão, que no fundo se
ficara pelo banquete canibalesco. O verdadeiro moderno é Tiestes, aquele
que prepara a vertigem equívoco e com ela se satisfaz. O triunfo de Tiestes
foi mencionado por Eurípedes nas Cretenses (e confirmado por Séneca em
Tiestes). A cretense Érope, a traidora, que nas versões prevalecentes trai
Atreu com Tiestes em Micenas, já conheceria Tiestes em Creta. Era um
fugitivo maltrapilho, exilado pelo irmão, mas que depressa conquistou a
princesa, como acontecera com Teseu e Ariadna. O rei Catreu surpreendeuos no leito. Pegou então em Érope e em sua irmã Climene e entregou-as a
outro rei, Náuplio, para que as afogasse ou vendesse como escravas.
Náuplio, porém, decidiu desposar Climene e levou-a para Argos. Aí,
Plistenes filho de Atreu, débil filho por vingança de Artemisa, escolheu
Érope para esposa. Mas Érope já então concebera Agamémnon e Menelau,
de Tiestes.
Quando, no regresso de Troia, Agamémnon, preso numa rede e com um pé
ainda metido na água do banho, foi abatido pelo vingador Egisto e por
Clitemnestra, o sangue correu entre Tiestes e Tiestes, entre quem é filho de
Tiestes e quem é filho de Tiestes e da sua meia-irmã. Na casa dos Atridas já
não existe nada de Atreu. Só lá habita a maldição de Tiestes, que Cassandra
sente no ar. É uma maldição que agora se curva sobre si própria, separada
de tudo, mera forma, autista glória.
Enquanto Agamémnon, filho de Atreu, combatia sob as muralhas de Troia,
todos esperavam que Egisto, filho de Tiestes, ocupasse o seu lugar no leito
de Clitemnestra e no trono de Micenas. No entanto, os atores
permaneceram imóveis por muito tempo. Queriam antegozar o inevitável.
Como um caixeiro-viajante, Náuplio navegava ao longo da Ática e do
Peloponeso. Atracava aos portos principais e visitava os palácios onde
havia um trono vazio. À noite, falava de Troia, da sangrenta e interminável
guerra. Ficava até muito tarde com as rainhas solitárias. E então
convidava-as ao adultério. Não com ele, claro, mas com algum ambicioso
de boa família que houvesse por perto. Era o seu modo de recordar àqueles
tronos vazios que tinham assassinado seu filho Palamedes, lá longe, em
Troia.
Em Micenas, quando repetiu a sua cena com Clitemnestra, reparou que a
rainha não conseguia dissimular um sorriso sardónico e distraído. Seria
por acaso necessário que alguém viesse sugerir-lhe o que há muito tempo
sabia que faria? E também Agamémnon o sabia. Deixara-lhe o aedo da
corte, com o encargo de a vigiar e de lhe dar notícias. Foi o primeiro
intelectual de Estado. Mas um dia Egisto agarrou nele e meteu-o num
navio. Abandonaram-no numa ilha deserta onde só cresciam cardos, para
que as aves de rapina se saciassem com as suas carnes.
Assim Egisto entrou finalmente no palácio de Micenas, calçou as sandálias
de Agamémnon, banhou de suor o seu leito, sentou-se no seu trono, e, mais
com fúria do que com prazer, possuiu Clitemnestra. Mas era isso que
agradava a Clitemnestra. Havia um acordo profundo entre eles, e
começaram a parecer-se fisicamente, como acontece com certos cônjuges já
idosos. Por vezes, à noitinha, diante do fogo, falavam de como matariam
Agamémnon, aperfeiçoavam os pormenores, pensavam em variantes,
saboreando a espera. E mesmo depois, quando as fogueiras, do cimo do
Atos até ao da Aracne, anunciaram o regresso do chefe, quando
Agamémnon pisou com terror a púrpura, quando Egisto o trespassou por
duas vezes, quando Clitemnestra o decapitou com o machado, mesmo
então, à noitinha, se detiveram a pensar em Orestes, em como o matariam,
em como ele tentaria matá-los. E por fim chegou o momento em que
Orestes se introduziu ardilosamente no palácio de Micenas e matou a mãe
e o amante: o crime foi fácil, como uma cena ensaiada durante anos e anos,
que os atores querem concluir depressa para regressarem a suas casas.
O mecanismo cruel dos Pelópides parece bloquear-se perante a nobre
discussão do Aerópago quanto a Orestes. E quando o voto de Atena
provoca a sua absolvição, todos erguem a cabeça, como libertos de um
pesadelo. Mas o processo de Orestes foi mais útil para os Atenienses do que
para Orestes. Deu-lhes a altivez de se colocarem para além do crime, de
compreenderem o crime, e isso até então ninguém tinha ousado. Quanto a
Orestes, continuou infeliz como dantes. No dia em que apareceu em
Atenas, e todos fugiram dele, mas lhe deram de beber, embora bebesse
sozinho, e todos os outros, incluindo as crianças, começaram a beber
sozinhos, de pequenas canecas, nesse dia, Orestes compreendeu que para
toda a vida ficaria naquela mesa a beber sozinho, embora absolvido,
embora soberano, embora tivesse a seu lado uma mulher.
E que mulheres seriam? As suas irmãs, Electra e Ifigénia, que se sentia
condenado a procurar, a encontrar.
E as irmãs eram a família. A pena mais cruel de Orestes era esta: fosse
onde fosse, as suas únicas histórias eram histórias de família. Mesmo
Pílades, de quem era amigo, no fundo era um parente. E fê-lo desposar
uma das suas irmãs. Quanto ao resto, o mundo até podia não existir. Que
outras mulheres, ainda? Orestes procurou Hermione, também ela uma
parente, uma dupla prima. Mas depois apercebeu-se de que o motivo por
que a procurara era ainda pior, e paralisava-o. Hermione estava noiva de
Neoptólemo, filho de Aquiles. Quando Neoptólemo foi morto em Delfos
por Apolo, no seu templo, assim como por Apolo fora morto seu pai,
Aquiles, então Orestes ocupou o seu lugar junto de Hermione. Sabia muito
bem que naquele momento não era Orestes: era Agamémnon que de novo
roubava a Aquiles a sua amada, Briseide.
Orestes nunca era Orestes, a não ser na loucura exacerbada pelas Erínias.
Ou nos breves momentos de trégua da loucura, como quando apoiou a
cabeça no rochedo de uma ilhota, perto de Gythion. Depois sobressaltou-se
quando disseram que Helena e Páris tinham passado aí a sua primeira
noite de amor, e decidiu logo meter-se de novo a caminho. Ou naquele
sufocante lugar da Arcádia, onde se apercebeu de que já não conseguia
deter as Erínias, e não tanto elas, de quem sabia não poder libertar-se, mas
sua cor, aquele negro denso na claridade do sul, e exasperado
Ciclos lendários gregos
O ciclo lendário grego que nos interessa é o de Argos ou Micenas, e tem
como figura capital o rei Agamémnon, que desempenha um papel muito
importante na Ilíada (o outro ciclo lendário é o de Tebas, que tem como
centro Édipo). Agamémnon tinha matado Tântalo, marido de Clitemnestra,
obrigando-a a casar-se com ele, crime que condicionou a maldição da
linhagem. Clitemnestra era irmã de Helena, mulher de Menelau, aquela que
ao fugir com Páris – ou ser raptada por ele – desencadeou a guerra de
Troia; Menelau, por sua vez, era irmão de Agamémnon. Agamémnon e
Clitemnestra tiveram duas filhas, Electra e Ifigénia, e um filho, Orestes.
Quando Agamémnon organizou uma expedição a Troia para vingar o seu
irmão Menelau pelo rapto de Helena, os seus navios ficam inativos em Áulis
pela falta de vento. O adivinho Calcante assinalou que isto ocorreu por
causa de uma maldição da Deusa Artemisa, ofendida com Agamémnon
porque este lhe havia prometido sacrificar o melhor fruto de certo ano e não
tinha cumprido. Agamémnon convenceu-se de que esse foi o ano de
nascimento da sua filha Ifigénia e decidiu sacrificá-la para aplacar a deusa,
pondo assim em marcha o seu plano e mandando vir para Áulis a mulher
Clitemnestra e a filha Ifigénia. Quando Clitemnestra ficou a saber dos
propósitos do marido, abandonou a cidade e guardou-lhe um rancor eterno.
No último momento, quando a donzela ia ser sacrificada, a deus Artemisa
substituiu-a por uma cerva e levou Ifigénia para Táuride, na qualidade de
sacerdotisa de um templo.
Resolvido o problema e já com bom vento, os navios partiram de Áulis, mas
ao chegar a Lemnos, Agamémnon abandonou na ilha o guerreiro Filoctetes,
de cuja ferida se desprendia um odor insuportável e cujos gritos
perturbavam os sacrifícios. Diversos episódios tornam patente a hostilidade
entre Agamémnon e Aquiles, ponto de arranque para a Ilíada.
Acabada a guerra de Troia, Agamémnon voltou à sua pátria. Na sua
ausência, Clitemnestra tinha-se entregado a Egisto, e os amantes
assassinaram Agamémnon no seu regresso. Orestes, filho de Agamémnon e
Clitemnestra, tinha-se refugiado na corte do rei da Fócida, Estrófio, com
cujo filho, Pílades, travou uma amizade que se tornou exemplar. Assim que
se fez homem, Orestes recebeu de Apolo a ordem de vingar a morte do seu
pai. Acompanhado pelo amigo Pílades, foi a Argos e ofereceu uma mecha de
cabelo na tumba de Agamémnon, detalhe porque a sua irmã o reconheceu.
Com a ajuda de Electra, Orestes matou Egisto e a mãe, Clitemnestra.
Orestes foi tomado pela loucura e perseguido pelas Euménides, fúrias
violentas, que tinham como uma das missões o castigo dos crimes, e
Orestes não se livrou delas até que um tribunal de Atenas debateu sobre o
seu delito e a deusa Atenas o perdoou.
Apolo encomenda-lhe que vá a Táuris em busca da sua irmã Ifigénia, e ele
fá-lo acompanhado do seu inseparável Pílades; são bem-sucedidos na
empresa e fogem para Ática com a estátua de Artemisa. Orestes casa-se
depois com a sua prima Hermíone, filha de Menelau e Helena.
7
As relações de parentesco das personagens
das três tragédias
Árvore genealógica
Relações familiares e destinos
MENELAU
Faz cumprir promessa antiga feita pelos antigos pretendentes de
Helena, entre os quais Ulisses, de a recuperar caso fosse raptada.
HELENA
Foge ou é levada para Troia por Páris.
CASSANDRA
Profetisa, é feita escrava em Troia por Agamémnon que a leva para
Argos, onde é morta por Egisto.
AGAMÉMNON
Sacrifica Ifigénia; é morto por Egisto e Clitemnestra quando
regressa vitorioso da Guerra de Troia.
CLITEMESTRA
Mata Agamémnon como vingança por Ifigénia; é morta pelos
filhos.
EGISTO
Os seus irmãos foram servidos como jantar ao seu pai, Tiestes, pelo
pai de Agamémnon, Atreu. Mata Agamémnon e é morto por
Orestes.
IFIGÉNIA
A pretexto de um casamento com Aquiles, é atraída para Áulis,
onde é sacrificada.
ELECTRA
Expulsa do palácio por Clitemnestra e Egisto, casada com um
lavrador, mata Clitemnestra com o irmão.
ORESTES
Ao regressar a Argos com Pílades, mata Egisto e Clitemnestra.
8
O que é a tragédia
[EXCERTOS DE VÁRIOS AUTORES]
ARISTÓTELES
A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa
linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que se
serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do terror, provoca a
purificação de tais paixões
F. SCHELLING
A tragédia grega honrava a liberdade humana fazendo lutar o seu herói contra o
poder superior do destino: para não ultrapassar os limites da arte, era obrigada a
fazer do seu herói o vencido, mas para compensar esta humilhação arrancada pela
arte à liberdade humana, devia fazê-lo expiar – ainda que por um crime cometido
pelo destino. […] Era uma grande ideia aceitar livremente ser castigado por um crime
inevitável, a fim de manifestar a sua liberdade pela própria perda dessa liberdade, e
proclamar a vontade livre no momento de se lançar na morte.
J. W. GOETHE
Todo o trágico repousa numa oposição irreconciliável. Assim que uma conciliação se
intromete, ou se torna possível, o trágico desaparece.
A. SCHOPENHAUER
Aquilo que confere a todo o trágico, seja qual for a figura com que apareça, o seu
impulso natural em direção ao sublime, é quando irrompe esta constatação de que o
mundo, a vida, não pode oferecer qualquer verdadeiro prazer, e não merece portanto
o nosso apego: o espírito trágico consiste nisso: desemboca por consequência na
resignação.
JEAN ANOUILH
Além disso, a tragédia é sobretudo descansativa porque sabemos que já não há
esperança, o raio da esperança; estamos apanhados na ratoeira, com o céu todo às
costas, e só nos resta gritar – não gemer, não queixarmo-nos – berrar em plenos
pulmões o que tínhamos a dizer, que nunca tínhamos dito e que se calhar ainda nem
sabíamos. E para nada: para o dizermos a nós próprios, para nós próprios
aprendermos.
GEORGE STEINER
As tragédias acabam mal. A personagem trágica é quebrada por forças que não podem
ser completamente entendidas nem superadas pela prudência racional. Isto, mais
uma vez, é crucial. Onde as causas do desastre são temporais, onde o conflito pode ser
resolvido por meios técnicos ou sociais, podemos ter um drama sério, mas não
tragédia. Leis de divórcio mais flexíveis não poderiam alterar o destino de
Agamémnon; a psiquiatria social não é resposta a Édipo. Mas relações económicas
mais sãs ou uma melhor canalização podem resolver algumas das graves crises nos
drama de Ibsen. A distinção deve ser tida claramente em mente. A tragédia é
irreparável. Não pode conduzir a uma compensação justa e material pelo sofrimento
passado.
STANLEY CAVELL
Estas figuras [no Rei Lear] são radicalmente e continuamente livres […], a cada
momento escolhendo a sua destruição. Kant diz-nos que o homem vive em dois
mundos, sendo num deles livre e no outro determinado. É como se no teatro esses
mundos fossem confrontados um com um outro, na sua intimidade e na sua mútua
inacessibilidade. O público é livre – das circunstâncias e da paixão das personagens,
mas essa liberdade não pode alcançar a arena em que se tornaria eficaz. Os atores são
determinados – não porque as suas palavras estejam ditadas e o seu futuro selado,
mas porque, se o dramaturgo povoou realmente um mundo, as personagens exercem
toda a liberdade à sua disposição e falham especificamente em fazê-lo.
9
Comparação de excertos
de Eurípedes e Ésquilo e de Tiago Rodrigues
[AS VERSÕES LADO A LADO]
IFIGÉNIA EM ÁULIS DE EURÍPEDES,
TRADUÇÃO DE NATÁLIA CORREIA
[…] Contra mim está lavrada uma
sentença de morte. Pois bem, essa morte
convertê-la-ei na minha glória, despojando-me de
uma cobardia que não convém às almas bemnascidas. Examina comigo, mãe, a razão que me
assiste. Toda a grande pátria helénica tem os
olhos postos em mim. De mim depende a largada
das naves, a ruína dos Frígios, a segurança das
futuras esposas, o preservá-las dos bárbaros e a
garantia para a florescente Grécia de não mais ver
essa gente arrancar as mulheres dos seus lares. Se
eles expiarem o rapto de Helena que um Páris
qualquer se atreveu a roubar. Morrendo, liberto a
Grécia destas ameaças e, por havê-la libertado, o
meu nome será glorioso e abençoado. Achas que
seria razoável da minha parte apegar-me
desesperadamente à vida? Foi para todos os
gregos que me deste a vida e não só para ti. Pois
quê?! Quando milhares de homens, arvorando os
escudos e empunhando os remos, não hesitam em
nome da pátria ultrajada em dar a vida pela
Grécia, lançando-se contra o execrável inimigo,
há-de a minha simples existência constituir um
obstáculo a tantos milhares de heroísmos? Poderá
opor-se a estes argumentos uma legítima réplica?
E depois, consideremos ainda isto: não é justo
que, por causa de uma mulher, este jovem
guerreiro se envolva numa luta contra todos os
Gregos e nela morra. É mais preciosa debaixo do
sol a vida de um único homem do que a existência
de milhares de mulheres. E se é verdade que
Artemis me escolheu para vítima, irei eu, simples
mortal, entravar os desígnios de uma deusa?!
Vamos! É impossível! Dou o meu corpo à Grécia!
Sacrificai Ifigénia e ide destruir Troia! Eis o
monumento que lego à longa memória dos
séculos! Eis os meus filhos! As minhas bodas! A
minha glória! O Grego deve impor-se ao bárbaro,
oh minha mãe!, e nunca o bárbaro ao Grego.
Àquele cabe a escravatura, ao Grego, a liberdade!
IFIGÉNIA
IFIGÉNIA DE TIAGO RODRIGUES
Não. Já chega de memórias. Não quero
as vossas memórias. Eu morro. Mas sou eu que
morro. Não são vocês que se lembram da minha
morte. Eu é que morro. E não porque alguém se
lembra disso. Morro apenas porque sim. Escolho
morrer. Não pertenço à vossa memória. Pertenço
a mim. Morro para ser esquecida. A minha morte
é só minha.
CLITEMNESTRA Não.
IFIGÉNIA Sim, mãe. Vou morrer. E vais esquecerme.
CLITEMNESTRA Não.
IFIGÉNIA Sim, tens de esquecer-me. Se tudo é
mentira, para quê lembrá-lo? Promete que me
esqueces. Exijo que me esqueçam. Tu também,
Aquiles. Quero que me esqueças. Esqueçam que
vivi e esqueçam que morri. E não quero que me
toquem. Nenhum grego me pode tocar. Nas mãos
que me tocassem ficaria a lembrança da minha
pele e do meu suor. Que nada me toque. Só os
raios do sol. Adeus, sol. Nada senão a lâmina.
Quando me cortarem o pescoço, façam-no com o
cuidado de não me tocarem nem sequer num
cabelo. E depois de morrer, não me toquem. Não
me lavem. Entrem nos vossos barcos. Partam,
empurrados pelo vento. Deixem-me exatamente
onde tiver caído. Não me toquem. Nem agora,
nem depois. Este corpo é só meu. Já nada nem
ninguém me pode tocar. Já morri. Já fui
esquecida. Nunca mais contem a minha história.
Adeus.
IFIGÉNIA
AGAMÉMNON DE ÉSQUILO,
TRADUÇÃO DE MANUEL DE OLIVEIRA PULQUÉRIO
Primeiramente, é um mal terrível
estar uma mulher sentada em casa, sozinha, sem
marido, ouvindo muitas notícias que só servem
para provocar a ira. E entretanto vêm
mensageiros com notícias sempre piores do que
as anteriores e a casa enche-se de gritos. E se este
homem tivesse recebido tantas feridas como
rumores chegavam ao palácio, semelhantes a água
por condutas, teria mais furos no seu corpo do
que uma rede. E, se tivesse morrido com a
frequência das histórias, poderia jactar-se de, qual
outro Gérion de três corpos, ter recebido um
triplo manto de terra, depois de morrer uma vez
em cada forma. Com tais notícias desesperadoras
muitas vezes suspendi de um laço o meu pescoço
e foram outras mãos, que não as minhas, que à
força me soltaram.
CLITEMNESTRA
AGAMÉMNON
DE TIAGO RODRIGUES
[…] Há dez anos que ele merecia a
morte. Podia tê-la encontrado no mar ou podia ter
sido trespassado por flechas troianas. Podia ter
adoecido. Podia ter escorregado e quebrado as
costas. Podia uma águia ter deixado cair uma
tartaruga na sua cabeça. Durante dez anos,
imaginei dez mil mortes diferentes para ele. Mas
veio morrer às minhas mãos. Se existisse algum
deus – e eu sei que eles não existem, são todos
mentira – mas se existisse algum deus, eu estaria
a entoar as minhas preces de gratidão por ter
mantido Agamémnon vivo todos estes anos. Se ele
tivesse morrido de algumas das inúmeras mortes
que imaginei, tê-lo-ia merecido, mas teria sido
obra do acaso. Um acidente. Morrendo às minhas
mãos, morreu por um motivo. Por Ifigénia. […]
CLITEMNESTRA
ELECTRA DE EURÍPEDES,
TRADUÇÃO DE NATÁLIA CORREIA
[…] É para isso que trago o cadáver. Se
te apraz, oferece-o em pasto às feras ou amarra-o
a uma estaca e expõe-no às aves de rapina, filhas
do éter. O que ontem era o teu senhor, é, hoje, teu
escravo.
ELECTRA Há uma coisa que me preocupa. Tenho
vergonha de o confessar. Contudo, devo abrir-me
contigo.
ORESTES Fala! Nada tens a recear.
ELECTRA Receio que me acusem de ultrajar os
mortos.
ORESTES Quem te pode censurar?
ELECTRA A cidade que se compraz na
maledicência.
ORESTES Insulta-o à tua vontade, irmã. Não há
tréguas legítimas para o ódio que ambos votamos
a esse homem.
ELECTRA Pois bem, seja. Antes de mais, por que
injúrias devo começar? Quais escolher para
terminar o meu discurso? Quais delas colocar no
meio? […]
ORESTES
ELECTRA
DE TIAGO RODRIGUES
Aqui a tens. Um presente para ti.
Choras? Choras a morte do assassino do nosso
pai?
ELECTRA Não é isso. Estou feliz. Tenho vergonha
de o dizer.
ORESTES Vergonha, porquê?
ELECTRA Segurar esta cabeça morta é o momento
mais feliz da minha vida. A tua irmã é alguém
cujo momento mais feliz de toda a sua vida é
segurar um saco onde está uma cabeça humana.
[…]
ORESTES Diz-me. O que te faria feliz?
ELECTRA Tenho medo que me acusem de insultar
os mortos.
ORESTES Não tenhas medo. Faz o que te deixar
feliz.
ELECTRA Acreditas que Egisto me pode ouvir, se
eu lhe falar?
ORESTES Não. Mas isso não importa. Queres
falar-lhe? Fala com ele.
ELECTRA Quero dizer-lhe tanta coisa.
ORESTES Diz.
ELECTRA Com que insulto devo começar? Com
que insulto devo terminar? Que insultos devo
colocar no meio? […]
ORESTES
10
Pistas de reflexão e trabalho
- O que é um mito? Qual é a diferença entre um
mito e uma história? Qual é o poder dos mitos
para continuarem a ser lidos, rescritos e
reinterpretados ao longo dos tempos? Resumir
pelas próprias palavras o enredo as três peças.
- Que papel desempenha a memória nas peças?
De que se lembram as várias personagens e como
é que isso condiciona o seu comportamento? De
que modo é que a encenação de Tiago Rodrigues
integra a memória como tema?
- Quais escolhas desta versão que Tiago Rodrigues
faz das peças de Ésquilo e Eurípides, em termos
de cenário, figurinos e linguagem? Investigar o
modo de representação das tragédias na Grécia
clássica (edifício, máscaras e vestuário, máquina
teatral, estilo de representação, o público).
Comparar os textos de Tiago Rodrigues com os
originais de Ésquilo e Eurípides. Onde é que
podemos considerar que há modernização, onde é
que se mantém uma certa intemporalidade, o que
é que nos remete para uma época antiga?
Pesquisar imagens de outras versões teatrais
destas peças ao longo do século XX e XXI e
perceber o que mudou.
- Quais são as diferenças do papel desempenhado
pelo coro nas três peças Tiago Rodrigues?
Pesquisar como atuava o coro na Grécia clássica e
de que maneira evoluíram as suas funções ao
longo dos grandes autores gregos clássicos.
Refletir sobre a diferença entre uma personagem
coletiva e uma personagem individual.
- Analisar o comportamento das personagens.
Qual é o dilema que se coloca a Agamémnon? Por
que motivo se sacrifica Ifigénia? Será que se
justificam as ações de Clitemnestra e, mais tarde,
as de Electra e Orestes? Analisar como se
articulam – e entram em contradição – os
conceitos de livre arbítrio, inevitável, castigo,
justiça, vingança, dever, bem comum.
- Iniciar uma reflexão sobre o teatro e a
representação: qual é o papel da imaginação, que
pacto é que se estabelece com o espetador sobre a
história que está a ser contada. Um exemplo: a
bola que representa a cabeça de Egisto é aceite
como cabeça, mas não deixa de ser uma bola. Que
diferença faria se fosse antes utilizada uma
representação realista de uma cabeça decapitada?
- Como são representadas a violência e a morte na
encenação de Tiago Rodrigues? Investigar de que
modo isso acontecia na tragédia clássica.
Investigar o conceito de “fora de cena” e a
etimologia da palavra “obsceno”.
11
Informações e reservas
Escolas
Informações e reservas para Escolas
Deolinda Mendes
+ 351 213 250 828
[email protected]
www.teatro-dmaria.pt/pt/escolas
Apresentações
11 set – 4 out 2015
Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa
22 out - 1 nov 2015
Teatro Nacional São João, Porto
26 mai – 28 mai 2016
Teatro Viriato, Viseu
12
Quem somos
Teatro Nacional D. Maria II, E.P.E.
Direção Artística
Tiago Rodrigues
Conselho de Administração
Miguel Honrado, Cláudia Belchior, Sofia Campos
Fiscal Único
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Assessoria Artística
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Consultor Jurídico
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Advogada
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Secretariado
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Motorista
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Atores
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Mendonça, Sandra Pereira, Victor Yovani (estagiários ESTC 2015-16)
Direção de Produção
Carla Ruiz, Manuela Sá Pereira, Pedro Pires*, Rita Forjaz
Direção de Cena
André Pato, Carlos Freitas, Catarina Mendes, Isabel Inácio, Manuel Guicho, Paula Martins, Pedro Leite
Auxiliar de Camarim Paula Miranda
Pontos Cristina Vidal, João Coelho
Guarda-roupa Aldina Jesus, Graça Cunha, Lurdes Antunes
Direção Técnica
José Carlos Nascimento, Eric da Costa, Vera Azevedo
Maquinaria e Mecânica de Cena Vítor Gameiro, Jorge Aguiar, Marco Ribeiro, Paulo Brito, Nuno Costa, Rui Carvalheira
Iluminação João de Almeida, Daniel Varela, Feliciano Branco, Luís Lopes, Pedro Alves
Som/Audiovisual Rui Dâmaso, Pedro Costa, Sérgio Henriques
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Assessoria em Sistemas Elétricos
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Informática
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Técnicas de Limpeza
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Bilheteira Rui Jorge, Carla Cerejo, Sandra Madeira
Receção Delfina Pinto, Isabel Campos, Lurdes Fonseca, Paula Leal
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Direção de Documentação e Património
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1100-201 Lisboa
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