Análise
da
Sentença
do
Caso
Araguaia
frente
aos
critérios
da
Justiça
de
Transição
no
Brasil**
Lorenzo Brunelli Casagrande*1
RESUMO: Entre os anos de 1972 e 1974, foi empreendido no Brasil um dos eventos
mais cruéis de sua história. Em pleno período de maior repressão no país um grupo de
jovens, integrantes do partido comunista do Brasil organiza um movimento de oposição
armada ao regime militar, que se concentra no interior do país em uma áreas rural,
próxima ao rio Araguaia. Este grupo foi eliminado pelo governo militar que realizou
operções militares na região. Até hoje as informações sobre o ocorrido são
desencontradas e não se sabe ao certo o que de fato ocorreu e qual é o paradeiro das
vítimas, ou de seus restos mortais. O governo brasileiro reconheceu sua
responsabilidade sobre o acontecido, porém em relação a informação e obtenção dos
corpos destas vítimas nada mudou, e o sofrimento para suas famílias continua o mesmo.
Devido a interpretação que se dá a Lei de anistia, aprovada durante o regime militar,
ainda hoje o Brasil é o único país da região que não responsabilizou criminalmente os
responsáveis por este extermínio e por outros atos considerados crimes de lesahumanidade ocorridos neste período. Estes atos são compreendidos entre os critérios da
Justiça de transição que se dedica a analisar a construção de um Estados de direito em
Estados que sofreram com regimes autoritários. Com isto a atuação de cortes regionais
que visam garantir o cumprimento de normas internacionais de direitos humanos, tem
atuado de maneira significante. É o caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
que em novembro de 2010 condenou o Estado brasileiro, pela violação de
responsabilidades assumidas ao firmar a Convenção Interamericana de Direitos
Humanos. O objetivo deste trabalho é traçar um paralelo entre, os principais conceitos
da justiça de transição e a sentença da Corte Interamericana, a fim de se observar se os
princípios da justiça de transição foram respeitados por este Tribunal ao proferir a
sentença.
Palavras Chave: Justiça de Transição; Direitos Humanos; Sistema interamericano de
Proteção aos Direitos Humanos; Lei de Anistía; Ditadura Militar
RESUMEN: Entre los años 1972 y 1974, se llevó a cabo en Brasil uno de los más
crueles acontecimientos de su historia. En el período en que la represión atingió sus
niveles más grandes en el país un grupo de jóvenes, miembros del Partido Comunista de
Brasil organizo un movimiento de oposición armada contra el régimen militar, que se
centró en el campo en un área rural cerca del río Araguaia. Este grupo fue eliminado por
el gobierno militar que realizó varias operaciones militares en la región. Hasta ahora, las
informaciones sobre el incidente son incompatibles y no hay certeza sobre lo que
sucedió realmente y cuál fue el destino de las víctimas o sus restos mortales. El
*
Graduando
do
Curso
de
Relações
Internacionais
da
UNIVALI.
**
Artigo
utilizado
como
Trabalho
de
Conclusão
de
Curso
de
Relações
Internacionais
gobierno brasileño ha reconocido su responsabilidad por lo sucedido, pero en relación a
la información y al recogimiento de los cuerpos de las víctimas no ha cambiado, y el
sufrimiento a sus familias sigue siendo el mismo. Debido a la interpretación que se ha
hecho sobre la ley de amnistía, aprobada durante el régimen militar, hoy en día Brasil es
el único país de la región a no culpar penalmente responsables de este asesinato y otros
actos considerados crímenes de lesa humanidad ocurridos durante este período. Estos
actos se incluyen entre los criterios de la justicia transicional que se dedica a analizar la
construcción de un imperio de la ley en los estados que han sufrido los regímenes
autoritarios. Con esto, la acción de los tribunales regionales para garantizar el
cumplimiento de normas internacionales de derechos humanos, se ha vuelto una
importante herramienta de protección actuado de una manera significativa por la
protección de estos derechos. Esto se aplica a la Corte Interamericana de Derechos
Humanos, que en noviembre de 2010 condenó al gobierno brasileño, por la violación de
las responsabilidades asumidas en la firma de la Convención Interamericana de
Derechos Humanos. El objetivo de este proyecto es trazar un paralelo entre los
principales conceptos de la justicia transicional y la decisión de la Corte Interamericana,
con el fin de observar el respeto a los principios de la justicia de transición al elaborar la
sentencia.
Palabras Clave: Justicia de Transición; Derechos Humanos; Sistema interamericano de
Protección a los Derechos humanos; Ley de Amnistía; Dictadura Militar
1.
INTRODUÇÃO
Entre os anos de 1972 e 1974, foi empreendido no Brasil um dos atos mais
cruéis da história recente do país. Em pleno período mais duro da repressão brasileira,
os chamados “anos de chumbo”, fugindo da grande violência encontrada nas cidades
promovidas pelos aparelhos repressivos do Estado, um grupo de jovens integrantes do
PC do B composto por 70 pessoas, se instalou as margens do Rio Araguaia, onde hoje é
a divisa entre os Estados do Tocantins e Pará. O objetivo deste grupo era instalar um
foco de luta armada contra o regime. Esses jovens conviveram durante anos com os
camponeses da região, em um convívio pacífico onde ensinavam a estes métodos de
agricultura e de proteção a saúde. Em 1972 as atividades deste grupo, denominado de
Guerrilha do Araguaia foram descobertas pelo Estado, que iniciou pesadas investidas
armadas contra o grupo a fim de exterminá-lo. Essas ações foram realizadas ao longo de
dois anos, sendo que a final de 1974 já não existia nenhum membro da Guerrilha na
região.
O Brasil é o único país da região sul que não realizou medidas de investigação,
julgamento e punição dos responsáveis pelo cometimento destes, e de outros crimes
graves, considerados crimes de lesa-humanidade. Considerados itens fundamentais para
o estabelecimento de uma justiça de transição completa, de um Estado autoritário, a um
Estado democrático de Direito. Tendo em vista esta realidade, em que o país mesmo
depois de seu retorno a democracia, não garante as famílias das vítimas seus direitos
básicos como informação e justiça, Organizações Civis e a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, entraram com uma demanda contra o Estado brasileiro frente a Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
Em novembro de 2010, a Corte condenou o Brasil pela violação de obrigações
assumidas pelo Estado, quando da assinatura da Convenção Americana sobre direitos
humanos. A Corte, ao pronunciar as suas sentenças leva em consideração os princípios
contidos nos tratados de direitos humanos assinados pelo Estado no âmbito da
Organização dos Estados Americanos. Ao se fazer a vigília quanto o cumprimento
destes princípios, que geram no Estado signatário, obrigações para com seus cidadãos a
Corte Interamericana cumpre grande papel na promoção dos direitos humanos no
continente.
O presente artigo tem por objetivo analisar a sentença proferida pela Corte frente
aos princípios da Justiça de Transição. A fim de identificar, caso sejam cumpridas as
disposições proferidas pela Corte, se Brasil conseguirá satisfazer as demandas de
respeito aos direitos humanos das vítimas do regime militar, se adequando assim a uma
realidade democrática e justa.
2.
O QUE É A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
2.1. A Justiça de Transição e a Evolução dos Direitos Humanos
Um dos objetivos centrais da Organização das Nações Unidas (ONU) desde a
sua criação sempre foi o estabelecimento de um sistema internacional de proteção aos
direitos humanos. Este sistema, conforme proposto no artigo 1.3 da Carta de São
Francisco2, deveria promover e estimular o respeito aos direitos humanos e liberdades
fundamentais de todos, sem distinção por motivos de raça, sexo, idioma ou religião. O
primeiro órgão encarregado do tema no âmbito das Nações Unidas foi a Comissão de
direitos humanos, fundada em 1946 com o intuito de estabelecer a estrutura jurídica
internacional que protege os direitos e liberdades fundamentais abrigados pelos tratados
internacionais. Inicialmente o mandato da Comissão não lhe conferia autoridade para a
2
Carta
da
Organização
das
Nações
Unidas,
ou
Carta
de
San
Francisco,
assinada
em
26
de
junho
de
1945.
emissão de qualquer opinião sobre denúncias de violações de direitos humanos que
viesse a tomar conhecimento. Nesse período, porém, foram assinados importantes
tratados internacionais que definiriam os direitos humanos e passariam a ser a base
normativa internacional sobre o tema. Dentre estes tratados está a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, assinada em 1948. Segundo José Augusto Lindgren Alves, estes
direitos passaram a ter características de conteúdo jurídico e caráter obrigatório através
da elaboração do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos3 (PDCP) e do Pacto
Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais4 (PDESC).
Desde a criação dos Organismos acima mencionados, vários países já
coincidiam quanto a necessidade do estabelecimento de mecanismos de controle, para
garantir a implementação destes instrumentos. Isto ocorre em dois âmbitos distintos, um
deles referente ao PIDCP, com a criação do Comitê dos Direitos Humanos. Por sua vez
a Comissão recebeu do ECOSOC5 a recomendação para tratar de violações dos direitos
humanos, especialmente sobre o caso do Apartheid na África do Sul, e em territórios de
ocupação estrangeira. (ALVES, 1994)
O conceito de Justiça de transição é difícil de definir uma vez que não há como
estabelecer uma norma geral para ser cumprida pelos países, pois trata-se um conceito
amplo e plural que adequa-se ao contexto histórico dos países que passam por esta
situação. (DE BRITTO, 2009; MEZAROBA, 2009). Tampouco este é o objetivo deste
estudo. O que se pretende é estabelecer alguns pontos em que estudiosos e
pesquisadores coincidem e defendem, com base nas decisões da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, como objetivos básicos a serem atingidos, entretanto, o método
que os Estados devem adotar para a execução de tais fins cabem a cada um, de acordo
com o tipo de regime que cada Estado sofreu. A justiça de transição tem como objeto de
estudo justamente os métodos adotados pelos Estados e pela sociedade civil no intuito
de agir em relação às violações de direitos humanos cometidas durante um regime de
exceção, para que se possa construir um Estado democrático e reduzir ao mínimo a
possibilidade de repetição deste tipo de regime e das atrocidades cometidas nele, com a
finalidade de que este país possa viver em paz e com justiça.
3
Adotado
pela
XXI
Sessão
da
Assembléia‐Geral
das
Nações
Unidas,
em
16
de
dezembro
de
1966.
Adotado
pela
XXI
Sessão
da
Assembléia‐Geral
das
Nações
Unidas,
em
19
de
dezembro
de
1966.
5
Conselho
Econômico
e
Social,
órgão
sob
a
qual
a
Comissão
de
Direitos
Humanos
está
subordinada.
4
2.2. Contexto Histórico da Justiça de Transição
Ao traçar um levantamento sobre a justiça de transição, ou justiça transicional,
no mundo se pode observar suas primeiras atuações na Europa, no período pós II Guerra
Mundial com o tribunal ad hoc de Nuremberg, que julgou integrantes do regime nazista
responsáveis por cometer crimes contra a humanidade. Além de Nuremberg, ocorreram
julgamentos na própria Alemanha e em outros países afetados pelo conflito. Logo, em
uma segunda iniciativa ocorreu em países como Grécia, Portugal e Espanha, que
tiveram de lidar com problemas internos como golpes de Estado e ditaduras militares.
Ainda na Europa, na década de 90, houve um movimento nos países do Leste, como
Hungria, Bulgária e Romênia, com o intuito de alterar algumas das medidas adotadas
pelos regimes comunistas que ocuparam a região. (DE BRITO, 2009).
Na África, onde houve, e ainda há muitos focos de guerras civis, sendo que
muitos destes envolvendo conflitos étnicos. A atuação de organismos internacionais foi
fundamental para implementação de políticas transicionais. Em alguns casos esta
situação ocorreu com o próprio objetivo de “construção do Estado”, uma vez que a
crença em instituições políticas e a própria noção de Estado eram muito fracas. (DE
BRITO, 2009)
Na América Latina estes movimentos se iniciaram em meados dos anos 80 início
dos 90, com o fim dos regimes ditatoriais do continente. Porém a política adotada para a
transição foi diferente em muitos destes países. Em se tratando de Justiça, houve
julgamentos que partiram por iniciativa dos próprios governos, como caso da Argentina
e da Bolívia. Ainda na Argentina e em outros países como Chile, Equador e Paraguai as
iniciativas para execução dos julgamentos partiram de organizações de defesa dos
direitos humanos ou por queixas de indivíduos. Ainda houve outro tipo de tratamento
como o adotado por Brasil e Uruguai que estabeleceram anistias, tanto seletivas como
gerais. (DE BRITO, 2009). Pode-se atestar desta maneira que a Declaração Universal
dos Direitos Humanos e o fim da guerra fria foram um marco no contexto da justiça de
transição. Pois a partir do final da década de 80 as políticas de transição para a
democracia passaram a se pautar pelas violações de direitos humanos e não mais por
violações de justiça, desta maneira passando a ser foco de atenção do direito
internacional dos direitos humanos e de seus tratados. (BASTOS JUNIOR e GUENKA
CAMPOS,2009.)
A concepção de justiça de transição pode ser compreendida, portanto, a partir de
quatro pilares: o primeiro é a Justiça, que tem por escopo identificar, processar e punir
os agressores; o segundo é a busca da verdade dos fatos ocorridos durante o regime
autoritário; o terceiro consiste na reparação, entendida tanto como no sentido de
indenização das vítimas, como no de criação de monumentos e museus registrando os
fatos ocorridos, assim como em pedidos oficiais de perdão; e, por derradeiro, o quarto
diz respeito a reformas institucionais e à criação de instituições comprometidas com o
ideal democrático. ( BASTOS JUNIOR; GUENKA CAMPOS, 2010. Pg.297)
2.3. Conceito
Paul Van Zyl, define a justiça de transição como o “esforço para construção da
paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação
sistemática dos direitos humanos”. (VAN ZYL, 2009 p.32.) Agregadas a esta definição
os objetivos das políticas transicionais de buscarem a justiça, materializam-se da
seguinte forma: 1) no fornecimento de reparações as vítimas dos regimes; 2) na
revelação de crimes passados; 3) no processamento de perpetradores do regime, assim
como, se necessário, 4) na reforma ou extinção de instituições que sirvam aos fins dos
governos ditatoriais, visando promover a reconciliação dentro do Estado. Pode-se
afirmar, portanto, que os objetivos da política de transição são na verdade deveres do
Estado em garantir o respeito aos direitos de seus cidadãos. (VAN ZYL, 2009). Estes
deveres podem ser qualificados como quatro princípios, ou quatro direitos que devem
ser preservados em qualquer processo que envolva a justiça de transição, que são: a
reforma das instituições para a democracia; o direito à memória e à verdade; o direito à
reparação e por fim o direito ao igual tratamento legal e à justiça. (ABRÃO e
BELLATTO, 2009) Flávia Piovesan afirma que:
Ao direito a não ser submetido à tortura somam-se o direito à proteção
judicial, o direito à verdade e o direito à prestação jurisdicional efetiva, na
hipótese de violação de direitos humanos. Vale dizer, é dever do Estado
investigar, processar, punir e reparar a prática da tortura, assegurando à
vítima o direito à proteção judicial e a remédios efetivos. Também é dever do
Estado assegurar o direito à verdade, em sua dupla dimensão -- individual e
coletiva – em prol do direito da vítima e de seus familiares (o que
compreende o direito ao luto) e em prol do direito da sociedade de construção
da memória e identidade coletivas.(PIOVESAN, 2009. Pg.180)
Na última década se observa um amplo crescimento do debate sobre políticas de
transição, fato este corroborado pela ação de organismos como o Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Comitê dos
Direitos Humanos que acabaram por formular padrões sobre as obrigações dos Estados,
principalmente no que diz respeito ao enfrentamento de violações dos direitos humanos.
Em 23 de agosto de 2004 a ONU apresentou um relatório sobre “o Estado de Direito e a
Justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito”6 onde atenta para a
necessidade do fortalecimento do Estado democrático de direito, articulando uma
linguagem comum de justiça a todos. Ainda neste relatório as nações unidas definem a
justiça de transição como:
conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade
em chegar a um acordo quanto ao grande legado de abusos cometidos no
passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem conta de seus atos,
que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. (ONU, 2004)7
Somado a estas obrigações legais vinculantes como fator impulsionador para a
justiça de transição, percebe-se o fortalecimento da democracia e dos direitos civis e
políticos em sociedades antes não acostumadas a defesa destes valores. Estes valores,
acima mencionados, formam os elementos-chave da justiça de transição. Como atentam
Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling:
o julgamento de violações de direitos humanos pode também contribuir para
reforçar o Estado de Direito, como ocorreu na Argentina. (...) os cidadãos
comuns passam a perceber o sistema legal como mais viável e legítimo se a
lei é capaz de alcançar os mais poderosos antigos líderes do país,
responsabilizando-os pelas violações de direitos humanos do passado. O mais
relevante componente do Estado de Direito é a ideia de que ninguém está
acima da lei. Desse modo, é difícil construir um Estado de Direito ignorando
graves violações a direitos civis e políticos e fracassando ao responsabilizar
agentes governamentais do passado e do presente. (...) Os mecanismos de
justiça de transição não são apenas produto de idealistas que não
compreendem a realidade política, mas instrumentos capazes de transformar
a dinâmica de poder dos atores sociais. (SIKKINK, K.; WALLING, C.B.
apud PIOVESAN, 2009. Pg. 185)
6
ONU.
Relatório
sobre
o
Estado
de
Direito
e
a
Justiça
de
transição
em
sociedades
em
conflito
ou
pós‐
conflito,
2004.
7
Idem
6.
Este estudo nos permite observar que o estabelecimento de uma política fundada
na justiça de transição deve agir em vários âmbitos. Tanto no julgamento dos
responsáveis por crimes contra os direitos humanos, como no estabelecimento de
comissões de verdade, dando voz as vítimas do regime em programas de reparação que
atuem no sentido de amparar quem sofreu e conscientizar aqueles que não viveram o
período de terror. Estas são políticas complementares e devem coexistir para garantir
uma maior abrangência em relação ao cumprimento de seus objetivos. Papel vital
exerce a sociedade civil neste aspecto, como vigilantes para que estas políticas tenham
metas concretas e não sejam meramente decorativas. (VAN ZYL, 2009).
Mais uma vez parafraseando Sikkink e Booth a Justiça de transição está
compreendida como, o direito à verdade, o direito à justiça, o direito à reparação e
reformas institucionais (WALLING; BOOTH apud PIOVESAN, 2009) A seguir, se
utiliza esta definição para esclarecer cada um dos pontos considerados fundamentais
para a realização de uma Justiça de Transição completa.
3.4. Direito à Memória e à Verdade
Para muitos estudiosos do tema da justiça de transição, a busca pelo
esclarecimento dos fatos, e a apuração das circunstâncias envolvidas nas violações dos
direitos humanos é vital. Para autores como Vannuchi, o esquecimento, designado por
pactos de silêncio, é parte da estratégia de regimes autoritários, que através da
manipulação de concessões mútuas buscam creditar certa parcela de benefícios aos
perseguidos políticos (a ponto) de manter uma distância segura do passado brutal e
afastar assim qualquer possibilidade de busca da verdade, garantindo inclusive que esta
não se torne conhecida entre as próximas gerações. (VANNUCHI, 2009) Segundo
Flávia Piovesan:
O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história
e da memória coletiva. Traduz o anseio civilizatório do conhecimento de
graves fatos históricos atentatórios aos direitos humanos. Tal resgate
histórico serve a um duplo propósito: assegurar o direito à memória das
vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a
repetição de tais práticas. (PIOVESAN, 2009. Pg. 184-185)
Evidencia-se neste sentido que a ação do Estado tem como propósito atingir
dois âmbitos. O primeiro deles individual, dirigido a família das vítimas, pois tem como
principal objetivo o esclarecimento dos fatos e circunstâncias em que seus entes
queridos foram subtraídos, ou mesmo mortos. A busca por este tipo de informação é da
maior importância para a família das vítimas, muitas delas ainda identificadas como
desaparecidas, pois somente assim as famílias poderão encerrar um ciclo, e proceder
com o seu devido direito ao luto e encerrar uma história que gera dor até os dias de hoje.
A segunda dimensão de atuação do Estado na busca pela verdade é coletiva. No sentido
de construção de uma identidade nacional. (PIOVESAN, 2009)
Para Paul van Zyl, a conscientização a respeito da verdade sobre as violações de
direitos humanos ocorridas e a formação de uma consciência coletiva nacional quanto a
não justificação e ilegitimidade destes atos mostram-se imprescindíveis para a
prevenção de sua repetição. Pois segundo ele ao se atestar uma versão oficial,
reconhecida tanto pelas vítimas, quanto pelos responsáveis pelas violações, contribui-se
para que as gerações vindouras estejam cientes da crueldade do passado e possam desta
maneira evitar qualquer tentativa de retomada de tais práticas. (VAN ZYL, 2009)
Porém, este processo não é simples. Não basta que se tenha acesso a verdade individual
de pessoas ligadas aos regimes de exceção. É necessário que Estado elabore políticas
voltadas ao conhecimento, e ao reconhecimento, do passado, para que através de um
processo cultural se busque e se estabeleça uma verdade que contribua para a formação
sólida de uma identidade nacional. (CIURLIZZA, 2009)
Portanto para a construção de uma estabilidade democrática é imprescindível
que se conheça a verdade sobre o passado de um país, para que seus erros sirvam como
aprendizado, a fim de que se possa atuar no presente para estruturação de um futuro de
paz. (BARBOSA; VANNUCHI, 2009) Neste sentido, afirma Paulo Sérgio Pinheiro:
É extremamente difícil consolidar uma democracia política sem que se
constitua um sistema sólido de responsabilidade, de responsabilização
pública como política do Estado no presente, sem que também valha em
relação ao passado. ( PINHEIRO, 2009. Pg. 15)
Portanto, a fim de que se promovam a paz e a justiça, como direitos inerentes a
todo o ser humano e resguardados nos tratados de direitos humanos, o resgate a
memória e a verdade devem ser conjugadas com outras medidas também descritas no
tema da justiça de transição. (BARBOSA; VANNUCHI, 2009)
2.5. Direito a Reparação
O direito a reparação é parte da normativa internacional de proteção aos direitos
humanos. Uma vez que os direitos fundamentais de um ser humano são desrespeitados,
é premissa que esta pessoa receba uma indenização em relação a esta violação. No
contexto da justiça transicional, onde a negligência é cometida pelo próprio estado,
durante um regime excepcional, faz-se necessário que ao se reconstruir o Estado de
Direito, sejam restabelecidos também, os direitos das vítimas deste regime. O direito a
reparação nestes casos tem o propósito de corrigir erros do passado.
Saliente-se que esse direito à reparação é consagrado no direito internacional,
sendo indispensável à restauração da justiça e da confiança das vítimas no
Estado e em suas instituições, bem como à superação das máculas deixadas
pelos abusos aos direitos humanos. Assim sendo, “independentemente do
sistema de justiça de transição que se adote e dos programas de reparação
complementares, as demandas por justiça e paz requerem algum tipo de
indenização às vítimas”.(ONU apud BASTOS JUNOR; GUENKA
CAMPOS, 2009)
Como bem ressaltado pelos autores anteriormente, a grande finalidade das
políticas de reparação é garantir a reinserção das pessoas que foram marginalizadas a
época do Estado autoritário, fazendo com que estas possam acreditar que o país, agora
democrático, atribui ao Estado o papel de garantidor de seus direitos e não mais uma
ferramenta de exclusão e ameaça. Para tanto é necessário, assim como observado em
relação ao direito à memória e à verdade, que se adotem ações de cunho individual e
coletivo, além de reparações de aspectos materiais e simbólicos. Como intera Paulo
Abraão:
As reparações simbólicas “representam uma série de ações orientadas a
reconstruir a memória coletiva, o patrimônio histórico e cultural, a fim de
restabelecer a dignidade da vítima e da comunidade afetada, recuperando os
laços de confiança e solidariedade”21. São medidas adotadas que visam obter
do Estado um gesto de arrependimento e de reconhecimento da ilicitude de
seu ato e, ainda mais, da legitimidade do ato de resistência contra ele
interposto quando passou a agir contrariamente às disposições legais
ilegítimas. (ABRAÃO; CARLET; FRANTZ; FERREIRA; OLIVEIRA,
2009. Pg.120)
Portanto parte-se da premissa que tão importante, ou mais ainda que a
distribuição de compensações financeiras, é vital que o sentido de reparação seja com o
intuito de se fazer justiça. Justiça com aqueles que resistiram a um regime opressor, e
portanto, o reconhecimento destes atos por si só empregam-se como reparação para as
famílias das vítimas, reintegrando-as de maneira honrosa em uma sociedade a que
permaneceram
excluídas
por
muito
tempo.(ABRAÃO;
CARLET;
FRANTZ;
FERREIRA; OLIVEIRA, 2009)
Cabe, porém, a ressalva que as reparações financeiras devem atuar para sanar as
perdas conseqüentes de abusos por parte do regime opressor, e agir como fator que
possibilite as famílias das vítimas, ou as próprias vítimas, se posicionem com dignidade
frente a sociedade. A reparação, portanto, deve ser realista de modo que não passe a ser
outro motivo de exclusão ou de marginalização daqueles que a receberam como meio de
enriquecimento. (VAN ZYL, 2009)
2.6. Direito ao Igual Tratamento Legal (Justiça)
Como se vem reiterando ao longo deste estudo, a Justiça de transição se
estabelece através de um conjunto de mecanismos. Estes são complementares uns aos
outros e, portanto um país que realize um destes princípios sem prestar atenção aos
outros estará descumprindo obrigações internacionais e não estará sanando por
completo sua dívida com o seu passado nem com sua população. Este esclarecimento é
necessário, pois o direito ao igual tratamento legal, classificado por alguns como direito
a justiça, tem a mesma finalidade de reinserção a sociedade, e confiança no Estado
como protetor e não como ameaça, por parte das vítimas de um regime opressor. Isto de
deve porque o igual tratamento legal é um direito concebido no direito internacional dos
direitos humanos, onde se especifica que todo ser humanos tem direito a garantias
judiciais. Muito embora Mauro Capelletti tenha antecipado que o acesso à justiça deva
ser entendido como “requisito fundamental – o mais básico dos direitos– de um sistema
jurídico moderno e igualitário e que pretenda garantir e não apenas proclamar direitos”,
ainda são recorrentes as abordagens que identificam no Poder Judiciário a centralização
da garantia do acesso à justiça. (CAPELLETTI, apud ABRÃO; CARLET; FRANTZ;
FERREIRA; OLIVEIRA, 2009)
O igual tratamento no contexto da justiça de transição, significa que toda pessoa,
tendo sido vítima de uma violação de direitos humanos, tem direito a buscar por meios
jurídicos a responsabilização dos responsáveis e o reparo de seus danos, ainda mais
tendo estes sido cometidos em um cenário de perseguição política e utilização do
aparelho estatal para fins obscuros. Portanto quando se trata da transição de períodos de
exceção para regimes democráticos, os julgamentos, muito mais do que garantias
individuais, quanto a própria vítima ou família da vítima, pode atuar como um
instrumento cultural e educacional no sentido de demonstrar a população a prioridade
do Estado em proteger os direitos humanos como princípio básico deste.(FRISO, 2009)
2.7. Reformas Institucionais
A transição de um regime autoritário, a um Estado de Direito, passa
impreterivelmente pela adequação da estrutura institucional do país. É essencial que a
organização do Estado democrático esteja de acordo com normas e princípios
internacionais, principalmente no que diz respeito a proteção dos direitos humanos.
Uma vez que o Estado autoritário tenha feito modificações no ordenamento interno a
fim de manipular o sistema a sua mera vontade, para que este pudesse atuar em
benefício de seus governantes, é forçoso que o país, para deixar pra trás este passado,
expurgue de sua estrutura quaisquer práticas que possam vir a macular a nova proposta
do Estado. Segundo Bastos Jr.:
o mecanismo de reforma institucional, que, por sua vez, consiste em uma
reforma legal, judicial, policial, penal e militar para impedir a repetição de
violações dos direitos humanos e fomentar o Estado de direito.(BASTOS
JUNIOR; GUENKA CAMPOS, 2009.Pg. 307)
Desta maneira o que se pretende é o Estado perca completamente o seu caráter
repressor, que ainda possa estar presente em seu ordenamento. (REMÍGIO, 2009) Sendo
assim, para que se consolide o acesso à justiça é necessário que as instituições sejam
apares com as premissas democráticas, inserindo toda a sociedade civil sob o manto dos
direitos civis e da justiça. (ABRÃO; CARLET; FRANTZ; FERREIRA; OLIVEIRA,
2009)
Após a análise dos critérios norteadores da justiça de transição, caberá neste
momento apresentar a construção histórica dos direitos humanos no sistema
interamericano de proteção, para demonstrara forte relação existente entre a
consolidação da justiça de transição e a efetiva promoção dos Direitos humanos.
3. A OEA E A EVOLUÇÃO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS
HUMANOS
A OEA é uma organização internacional criada pelos Estados do continente
americano. Foi criada em 1948, durante a Nona Conferência Internacional Americana,
onde foi adotada a Carta da Organização dos Estados Americanos8. Na mesma data foi
a provada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem9. A Organização
entrou em vigor no ano de 195110. Dentre os propósitos da Organização estão a busca e
manutenção da ordem de paz e justiça, bem como a promoção da solidariedade a defesa
das soberanias dos Estados, de sua integridade territorial e sua independência11. Além
disso, a Carta ainda proclama os direitos fundamentais da pessoa humana como
princípio básico sob o qual se funda a Organização12. Desde que foi criada a OEA
adotou um conjunto de instrumentos internacionais que acabaram por se converter na
base normativa de um sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos.
Para tal, ao serem reconhecidos estes direitos foram estabelecidas obrigações aos
Estados para a promoção, bem como para a proteção dos mesmos. Como instrumentos
regionais de promoção e proteção aos direitos humanos pode-se citar a Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem e a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos.
3.1. Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Durante a Quinta Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores
realizado em Santiago do Chile em 1959, tendo em vista o fato de que “diversos
instrumentos da OEA consagraram e reafirmaram que a liberdade a justiça e a paz têm
como base o reconhecimento da dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis
da pessoa humana”,13 decidiram por criar um projeto de convenção sobre direitos
humanos e sobre a criação de uma Corte Interamericana de proteção dos Direitos
Humanos e de outros organismos adequados para a tutela e a observância dos mesmos.14
Para tanto estabeleceu-se na Declaração de Santiago, de 1959 a criação de uma
Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
8
Subscrita
em
Bogotá,
1948
e
reformada
pelo
Protocolo
de
Buenos
Aires
em
1967,
pelo
Protocolo
de
Cartagena
de
Índias
em
1985,
pelo
Protocolo
de
Washington
em
1992
e
pelo
Protocolo
de
Manágua
em
1993.
9
A
Declaração
é
o
primeiro
instrumento
internacional
de
direitos
humanos
de
natureza
geral.
10
Art.
140
da
Carta
dispõe:
A
presente
Carta
entrará
em
vigor
entre
os
Estados
que
a
ratificarem,
quando
dois
terços
dos
Estados
signatários
tiverem
depositado
suas
ratificações.[...]
11
Art.1
da
Carta
12
Art.
3,
“letra
L”
da
Carta.
13
Documentos
básicos
em
matéria
de
derechos
humanos
em
el
sistema
interamericano.
Actualizado
a
junio
de
2010.
OEA
14
Declaração
de
Santiago
do
Chile
de
12
de
agosto
de
1959.
Ata
Final,
pg.
4‐6
apud
Documentos
básicos
em
matéria
de
derechos
humanos
em
el
sistema
interamericano.
Actualizado
a
junio
de
2010.
OEA
A CIDH tem como principal função promover a observância e a defesa dos
direitos humanos nas Américas. Dentre as atribuições da Comissão está o recebimento,
análise e investigação de denúncias ou petições de pessoas, grupos de pessoas ou
organizações em que se alegam violações de direitos humanos, tanto de Estados
membros que já ratificaram a Convenção. Além disso, cabe a Comissão elaborar
recomendações aos Estados membros da OEA para que estes adotem medidas que
contribuam para a proteção dos direitos humanos nos países do hemisfério. Ao longo da
tramitação de um caso, a Comissão procura facilitar um acordo entre as partes para que
cheguem a uma solução amigável. Caso este acordo não seja aceito por uma das partes e
a Comissão entender que houve uma violação dos direitos humanos esta pode levar o
caso a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Se o caso não puder ser levado a
Corte por algum Estado não ter aceitado a cláusula facultativa de jurisdição obrigatória,
instrumento pelo qual os Estados reconhecem a jurisdição da Corte, a Comissão poderá
publicar recomendações e conclusões no seu relatório anual.
3.2. Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi criada em 1969, junto com a
assinatura da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, porém só pôde ser
estabelecida e organizada depois da entrada em vigor do tratado. Os primeiros juízes
foram eleitos pelos Estados parte em maio de 1979. Os juízes da Corte são indicados
pelos seus Estados dentre juristas da mais alta respeitabilidade e competência em
matéria de direitos humanos. Dentre os indicados elegem-se sete para um mandato de
seis anos, com possibilidade de reeleição uma única vez. A Corte é uma instituição
autônoma cujo objetivo é a interpretação e aplicação da Convenção. Para isso a Corte
acumula duas funções, uma delas consultiva e outra jurisdicional. Quanto a função
jurisdicional, somente os Estados que reconheceram a competência da Corte15 estão
autorizados a submeter à sua decisão casos relativos à interpretação ou à aplicação da
Convenção. Este pré-requisito também se faz necessário para apresentar um caso contra
um Estado membro. Quanto a função consultiva qualquer Estado membro pode
consultar a Corte sobre a interpretação da Convenção ou de algum dos tratados relativos
à proteção dos direitos humanos. A Corte também expressar-se sobre a compatibilidade
15
A
30
de
junho
de
2010,
21
Estados
haviam
reconhecido
a
competência
contenciosa
da
Corte,
dentre
eles
o
Brasil.
de normas internas destes Estados frente a normativa americana sobre os direitos
humanos.
3.3. A Justiça de transição na Convenção Americana de Direitos Humanos
Já em seus artigos iniciais, a Convenção Americana16 estipula que os Estados
signatários devem adequar seus ordenamentos jurídicos internos, de modo que estes
venham a garantir o cumprimento dos Direitos Humanos a todas as pessoas que estejam
dentro de seus territórios.
Em relação ao que especifica o art. 2º da Convenção17, bem como estipula o
Direito Internacional Consuetudinário, é dever do Estado signatário ajustar seu
ordenamento interno de modo que as disposições deste estejam de acordo com seus
compromissos internacionais. O art. 2º ainda estabelece que o Estado não deve somente
criar leis que estejam de acordo com os tratados internacionais firmados pelo mesmo,
bem como derrogar quaisquer leis que sejam contrárias a este. Se tratando da
Convenção Americana, o Estado deve garantir o respeito aos direitos humanos. Com
estes dois artigos a Convenção, bem como a Corte IDH18 deixam especificado o seu
repúdio a impunidade contra violadores dos direitos humanos.
A Corte IDH define impunidade como “a falta em seu conjunto de investigação,
persecução, captura, julgamento e condenação dos responsáveis das violações dos
direitos protegidos pela Convenção Americana [...]”.19 A impunidade tratada pela Corte
refere-se aquela em que o Estado atua como protetor dos agentes violadores dos direitos
humanos através da cobertura pelo poder público, garantindo que estes não sejam
levados a julgamento, muito menos investigados ou castigados. Esta atuação atenta
gravemente contra os direitos humanos e contra a Convenção Americana, e é uma
16
Convenção
Americana
sobre
Direitos
Humanos,
ou
Pacto
de
San
Jose
da
Costa
Rica,
assinado
em
22
de
novembro
de
1969.
Entrou
em
vigor
em
1978.
17
O artigo
2.
Da
Convenção
Americana
dispõe:Se
o
exercício
dos
direitos
e
liberdades
mencionados
no
artigo
1
ainda
não
estiver
garantido
por
disposições
legislativas
ou
de
outra
natureza,
os
Estados
Partes
comprometem‐se
a
adotar,
de
acordo
com
as
suas
normas
constitucionais
e
com
as
disposições
desta
Convenção,
as
medidas
legislativas
ou
de
outra
natureza
que
forem
necessárias
para
tornar
efetivos
tais
direitos
e
liberdades. 18
A
Corte
Interamericana
de
Direitos
Humanos
foi
criada
em
1978
com
a
entrada
em
vigor
do
Pacto
de
San
José
da
Costa
Rica.
A
jurisdição
da
Corte
é
válida
somente
para
Estados
que
reconhecem
sua
competência.
19
OEA.
Corte
IDH.
Caso
da
“Panel
Blanca”
(Paniagua
Morales
e
outros)
versus
Guatemala.
Mérito.
Sentença
de
08
de
março
de
1998.
CIDH
pratica freqüente se tratando dos resquícios das ditaduras na América Latina. Além de
atentado contra as normas este tipo de comportamento do Estado torna-se um risco para
toda a sociedade, pois envolve os violadores em uma espécie de redoma onde a lei não
os alcança, o que acaba gerando a consciência da impunidade, e com isso possíveis
repetições de tais crimes.
3.4. As violações e a questão da impunidade
A questão da impunidade assume outras proporções quando se tratam de crimes
considerados de lesa-humanidade, que são os considerados de maior gravidade contra os
direitos humanos. Segundo Nikken, “trata-se de atentados que se contrapõem a uma
proibição absoluta e que ofendem em tal grau a consciência universal que sua punição é
obrigatória.” (NIKKEN, 2009. Pg.262). A corte estabelece como crimes deste caráter a
tortura e o desaparecimento forçado, bem como reafirma o dever do Estado, no caso da
existência destas violações, de investigar e punir os responsáveis.
No mesmo sentido de combate a impunidade surge no Sistema Interamericano à
questão do direito a verdade, ainda que não esteja presente no texto da Convenção, a
Corte afirma que, “o direito à verdade está incluído no direito da vítima ou seus
familiares a obter dos órgãos competentes do Estado o esclarecimento dos fatos
violadores e as responsabilidades correspondentes, através da investigação e o
julgamento previstos nos artigos 820 e 2521 da Convenção.”22. Já o Escritório do Alto
Comissariado de Direitos Humanos23 no ano de 2007 preparou um relatório sobre o
direito a verdade onde afirma que, “o direito à verdade é um direito individual que
presta assistência tanto às vítimas como a seus familiares, porém também tem uma
dimensão coletiva e social” (ONU, parágrafo 83, 2004). Esta dimensão coletiva e social
ocorre no sentido de reencontro do Estado com a sociedade civil, através de uma relação
20
O
artigo
8.
1
da
Convenção
Americana
dispõe:
Toda
pessoa
tem
direito
a
ser
ouvida,
com
as
devidas
garantias
e
dentro
de
um
prazo
razoável,
por
um
juiz
ou
tribunal
competente,
independente
e
imparcial,
estabelecido
anteriormente
por
lei,
na
apuração
de
qualquer
acusação
penal
formulada
contra
ela,
ou
para
que
se
determinem
seus
direitos
ou
obrigações
de
natureza
civil,
trabalhista,
fiscal
ou
de
qualquer
outra
natureza.
21
O
artigo
25.1
da
convenção
Americana
dispõe:Toda
pessoa
tem
direito
a
um
recurso
simples
e
rápido
ou
a
qualquer
outro
recurso
efetivo,
perante
os
juízes
ou
tribunais
competentes,
que
a
proteja
contra
atos
que
violem
seus
direitos
fundamentais
reconhecidos
pela
constituição,
pela
lei
ou
pela
presente
Convenção,
mesmo
quando
tal
violação
seja
cometida
por
pessoas
que
estejam
atuando
no
exercício
de
suas
funções
oficiais.
22
Caso
Barrios
Altos
versus
Peru.
Mérito.
Sentença
de
14
de
março
de
2001.
CIDH
23
Principal
órgão
encarregado
do
tema
no
âmbito
das
nações
unidas.
de confiança. A partir do momento que o próprio Estado julga seus agentes, demonstra
as prioridades de suas políticas, sendo neste caso o cidadão que tem seus direitos
violados, parte essencial na reaproximação e reunião nacional.
Porém o que ocorre muitas vezes é a busca pelo não enfrentamento com o passado, sob
as mais variadas alegações, muitas delas de caráter jurídico, que tentam desclassificar a
responsabilização destes criminosos alegando que ao fazê-lo, o Estado estaria
infringindo normas jurídicas internas. Nesse sentido, é motivo de grande atenção do
sistema interamericano a prática das anistias. Na região da América do Sul, marcada por
ditaduras durante a década de 70, essa prática se tornou comum, porém sob a
manipulação dos governos autoritários que faziam desta uma maneira de proteção
quanto a possíveis punições futuras. A seguir se apresentará o conceito de anistia e a
maneira que esta prática vem sendo tratada na sistema interamericano.
3.5.
Conceito de Anistia
O conceito de anistia não é unanimidade entre os pesquisadores e estudiosos do
tema, se adotará o conceito utilizado por Swensson Junior, que define anistia como:
atos legislativos do Poder Público que extinguem as conseqüências punitivas
de uma condenação penal total ou parcialmente; que declaram a
impossibilidade de se aplicar no futuro ou de continuar sendo aplicada a
sanção penal para determinados casos ou então são atos que diminuem a
intensidade da sanção. (SWENSSON, 2010)
Ainda segundo Swensson, este dispositivo legal é encontrado hoje em quase
todas as Convenções do mundo. A anistia não é uma ação benevolente do Estado, mas
sim um acordo que serve a uma finalidade, este acordo é, portanto, o desfecho de uma
negociação entre o Estado e parte da sociedade civil interessada nesta prática, que
estabelece a renúncia à imposição de sanções ou nulifica as que já tenham sido
declaradas. Além disso, impede a própria investigação dos crimes que tenham sido
anistiados. O problema encontrado na questão da anistia é quando esta é manipulada por
governos autoritários, a fim de eximirem da culpa pelo cometimento de crimes contra a
humanidade. Tendo em conta este fato, a Corte Interamericana, tem atentado em sua
jurisprudência estes fatos, a fim de demonstrar os casos em que as anistia atua como
uma continuação dos crimes, ao menos no sentido da injustiça cometida com a família
das vítimas dos desaparecidos políticos. Neste sentido se explica o que é chamado pela
Corte de autoanistias, que é descrito a seguir.
3.6. A questão das Autoanistias
Algumas destas tentativas de fuga de atribuição de responsabilidade se dão
através de anistias e alegação de prescrição dos crimes cometidos. Quanto a estes
trâmites legais a Corte ressalta muito bem em sua jurisprudência que os crimes
considerados de lesa-humanidade são considerados normas de ius cogens24 e que
portanto “estas instituições jurídicas não são aplicáveis às violações mais graves dos
direitos humanos”.(NIKKEN,Pedro. 2009. Pg.267). Justamente pelo fato de muitos
crimes cometidos na época das ditaduras latino-americanas assumirem o caráter de
crimes de lesa-humanidade, pois foram cometidos em um contexto em que se fazia o
uso do aparelho estatal para perseguir membros da sociedade civil considerados uma
ameaça ao governo vigente, as alegações levantadas como impedimento a
responsabilização dos atores destes delitos não é aplicável. Neste mesmo sentido a Corte faz referência ao modelo de anistias que foi
praticado na América Latina nos anos 80, quando muitos países do continente
transigiram de um governo ditatorial para a democracia, onde os governantes da época
fizeram uso de seu poder para deturpar o instrumento da anistia, e para usá-la de
maneira a se eximirem contra possíveis acusações pelos crimes cometidos por membros
de seus governos, ou até mesmo pelos próprios governantes. A este modelo a Corte dá o
nome de autoanistias. Porém contra este tipo de prática a Corte estabeleceu, no caso
Barrios Altos que: São inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o
estabelecimento de excludentes de responsabilidade que pretendam impedir a
investigação e a punição dos responsáveis das violações graves dos direitos
humanos tais como a tortura, as execuções sumárias, extralegais ou
arbitrárias e os desaparecimentos forçados, todas proibidas por violar direitos
inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos
Humanos”.25 (OEA. Corte IDH.Caso Barrios Altos versus Peru. Mérito.
Sentença 14 de março de2001. ) 24
Segundo
a
Convenção
de
Viena,
art.
53
[...]uma
norma
aceita
e
reconhecida
pela
comunidade
internacional
dos
Estados
como
um
todo,
como
norma
da
qual
nenhuma
derrogação
é
permitida
e
que
só
pode
ser
modificada
por
norma
ulterior
de
Direito
Internacional
geral
da
mesma
natureza
25
OEA.
Corte
IDH.
Caso
Barrios
Altos
versus
Peru.
Mérito.
Sentença
de
14
de
março
de
2001.
Ainda na mesma sentença a Corte estabeleceu que as autoanistias “deixam as
vítimas indefesas e conduzem à perpetuação da impunidade, o que as torna
manifestamente incompatíveis com a letra e o espírito da Convenção Americana”. E
como dever do Estado contra este tipo de dispositivo a Corte reiterou no caso
Almonacid Arellano que é dever do Estado: assegurar que não sigam representando um obstáculo para a
investigação da execução extrajudicial [a vítima] e para a
identificação e, neste caso, punição dos responsáveis, e II) assegurar
que o decreto Lei nº2.191 [anistia] não siga representando um
obstáculo para a investigação, julgamento e, neste caso, punição dos
responsáveis de outras violações similares 26
Uma vez elaboradas as sentenças da Corte em que caracterizavam as autoanistias
como incompatíveis com a Convenção Americana, aqueles Estados que sofriam com o
problema e tinham intuito de prestar contas para com seus cidadãos e suas obrigações
internacionais, possuíam respaldo jurídico para fazê-lo. Foi o caso da Argentina, que
através de sua Suprema Corte derrogou as leis de Obediência Debida27 e de Punto
Final28 baseando-se na jurisprudência da Corte IDH. Quanto a alegação de
prescritibilidade alegada por alguns em sua defesa a Corte volta a afirmar, que se
tratando de crimes de lesa-humanidade, os obstáculos jurídicos internos para a não
investigação e possível punição não são aplicáveis. (NIKKEN, 2009).
3.7. O princípio da irretroatividade da Lei e o caso brasileiro Outro argumento que merece destaque, no que diz respeito à aplicação das
normas da Convenção para crimes cometidos na época das ditaduras militares latinoamericanas é quanto a aplicação das normas em relação ao período de tempo em que
estas foram assinadas e ratificadas pelos Estados membros. Trata-se do princípio da
26
OEA.
Corte
IDH.
Caso
Almonacid
Arellano
e
outros
versus
Chile.
Exceções
Preliminares,
Reparações
e
Custas.
Sentença
de
26
de
setembro
de
2006.
CIDH
27
Lei
de
anistia
Argentina
promulgada
em
1987,
durante
o
governo
de
Raúl
Alfonsín
que
classificava
os
militares
como
ininputáveis
perante
a
Justiça.
28
Lei
de
anistia
Argentina
promulgada
em
1986,
durante
a
presidência
de
Raúl
Alfonsín,
que
impedia
o
julgamento
de
militares
acusados
de
crimes
contra
os
direitos
humanos
durante
a
ditadura
militar
argentina.
irretroatividade, vigente no art. 28 da Convenção de Viena29 sobre o direito dos tratados,
que estabelece que uma norma de direito internacional só passa a ter validade para fatos
ocorridos após a ratificação de um tratado. É dizer, o alcance das normas estabelecidas
em um tratado internacional, como é o caso da Convenção Americana de Direitos
Humanos, só passa a ter validade para o Brasil após 1992, quando foi ratificada pelo
mesmo. Sendo assim, os crimes cometidos na época da ditadura militar brasileira, que
durou de 1964 até 1985, não poderiam ser julgados sob estes parâmetros. Porém, de
acordo com a jurisprudência da Corte, este fato não exime os autores de alguns crimes
cometidos a época do regime militar de assumir suas responsabilidades é o caso, por
exemplo, dos crimes de desaparecimento forçado, onde até os dias de hoje as famílias
das vítimas não sabem a sorte nem mesmo o paradeiro de seus familiares. Outro crime
que não escapa a jurisdição da Corte é o de ocultação de cadáver, para os casos em que
a vítima tenha sido executada por membros de regime e tenha tido seus restos mortais
escondidos e que estejam até hoje desaparecidos. Estes crimes são passíveis de
interpretação sob os termos da Convenção, pois produzem efeito que vai além da data
de cometimento dos crimes, e portanto ultrapassam a data de entrada em vigor da
Convenção, e com isso pode ser julgado de acordo com a mesma. (NIKKEN, 2009)
A Corte Interamericana vem reiterando em sua jurisprudência que é uma
obrigação dos Estados, a partir do momento de ratificação da Convenção, promover e
proteger os direitos humanos dentro de seus territórios. No entanto segundo o princípio
de irretroatividade o Estado não pode ser responsabilizado pela violação de uma norma
contida na Convenção que tenha sido cometida antes da ratificação. Todavia o Estado
não está eximido de suas responsabilidades quanto a garantia do devido processo legal
as vítimas destas violações, mesmo que estas tenham sido cometidas antes da vigência
do tratado internacional. Portanto cabe ao Estado investigar, e quando for necessário,
punir os responsáveis e reparar as vítimas, mesmo em casos que não estejam
temporalmente regidos pela Convenção. (NIKKEN, 2009)
29
O
art.28
da
Convenção
de
Viena
dispõe:
A
não
ser
que
uma
intenção
diferente
se
evidencie
do
tratado,
ou
seja
estabelecida
de
outra
forma,
suas
disposições
não
obrigam
uma
parte
em
relação
a
um
ato
ou
fato
anterior
ou
a
uma
situação
que
deixou
de
existir
antes
da
entrada
em
vigor
do
tratado,
em
relação
a
essa
parte.
4. A DITADURA MILITAR NO BRASIL
4.1. Contexto Histórico
A América Latina dos anos 60 foi marcada por uma grande conturbação política.
Neste período todos os países do Cone Sul conviveram com regimes ditatoriais
repressivos. No Brasil, a situação não era diferente. Em 1º de abril de 1964 os militares
tomam o poder através de um golpe de Estado, motivado principalmente por um
conturbado contexto político internacional, que envolvia forte pressão por parte dos
EUA, no auge de sua luta contra o comunismo. (FAUSTO, 1999)
Esta influência americana começa a se mostrar, na própria doutrinação
ideológica militar, a partir do final da II Guerra Mundial quando o país entrou no
conflito ao lado dos aliados. Como exemplo desta influência doutrinária pode-se citar a
criação, em 1949, da Escola Superior de Guerra (ESG). Essa instituição, fortemente
vinculada a uma doutrina anticomunista e pela Doutrina de Segurança Nacional30
estabeleceu um método de análise e interpretação de fatores políticos, econômicos e
militares que condicionariam o conceito estratégico. (FAUSTO, 1999)
O grupo de militares responsáveis por arquitetar o golpe de 64 se identificava
com essa linha de pensamento. Liderados por Humberto de Alencar Castello Branco,
tomaram o poder sob o pretexto de livrar o país da corrupção e do comunismo para
restaurar a democracia.
4.2. O Regime militar e as violações aos Direitos Humanos
O regime militar que se instaurou no Brasil nunca assumiu explicitamente seu
caráter autoritário. Através dos chamados Atos Institucionais promoveram, durante todo
o período, o que se pode chamar de “manipulação da legalidade”. (FAUSTO, 1999)
O primeiro destes “AIs” entrou em vigor no dia 9 de abril de 1964, com o
objetivo de concentrar o Poder do Executivo e conseqüentemente diminuir o campo de
influência do Congresso. O AI-1 suspendeu imunidades parlamentares e autorizou o
comando supremo da revolução a cassar mandatos em qualquer nível e a suspender
direitos políticos pelo prazo de dez anos. Também estabeleceu as bases para a criação
dos Inquéritos Policiais Militares (IPM’s), instrumentos a que estavam sujeitos aqueles
acusados de “crimes contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou
30
Doutrina
desenvolvida
na
ESG,
que
afirmava
que
o
país
tinha
que
se
preparar
para
se
defender
de
um
inimigo
interno.
por atos de guerra revolucionária.” (FAUSTO, 1999. Pg. 467) Percebe-se a utilização de
uma normativa própria do regime autoritário, que servia a salvaguardar as forças
repressivas, “impondo remodelações profundas na estrutura do sistema de segurança do
Estado através de uma continua proliferação de órgãos e regulamentos de segurança.”
(Direito à Memória e à Verdade, 2007)
Um dos mais importantes órgãos de controle da população, o Sistema Nacional
de Informações (SNI), foi instalado ainda em junho de 64. Sob comando de Golbery do
Couto e Silva, militar de extrema ligação com os ensinamentos da ESG e apontado
como um dos principais idealizadores do golpe, tinha por objetivo a coleta de
informações pertinentes à segurança nacional.(FAUSTO, 1999)
Com a “eleição”31 de Castelo Branco as divergências entre os militares
pertencentes a ESG, e aos chamados “linha-dura” ficou mais evidente. Esse segundo
grupo, que pregava um maior controle do sistema de decisões por parte do Estado,
visava também o prolongamento do governo militar. (GASPARI, 2002)
Com a vitória de candidatos opositores do regime em estados importantes nas
eleições estaduais de 1965, os chamados “linha-dura” intensificaram as pressões frente
ao governo de Castelo Branco alegando condescendência com seus adversários
políticos. Neste contexto, o governo decreta o AI-2 que acaba com todos partidos
políticos e permite ao Executivo fechar o Congresso nacional quando conveniente. O
mesmo ato institucional também tornava indireta a eleição para presidente da República,
além de estender á civis a jurisdição da Justiça Militar.( GASPARI, 2002)
Posteriormente o AI-3, decretado em fevereiro de 1966, estabelece eleições
indiretas também para os Estados, através de suas Assembléias Estaduais. Entre as
mudanças impostas pelos dois atos mencionados destaca-se aqui a proibição dos
partidos políticos, que foram remanejados sob a ótica do regime. Formaram-se então o
partido dos representantes do governo - ARENA (sigla de Aliança Renovadora
Nacional) e o MDB, Movimento Democrático Brasileiro, que reunia a oposição. Esta
oposição tinha um papel definido dentro do regime. Uma vez que o aparato militar
buscava sempre aparentar legitimidade, a existência do MDB era imprescindível, ainda
que estivesse totalmente amordaçada pelo regime. (FAUSTO, 1999)
Desta maneira, em março de 67 toma posse como presidente do Brasil o general
Arthur da Costa e Silva. Este, militar representante da “linha-dura”, não pertencia a
31
Por
votação
Indireta
do
Congresso
Nacional.
mesma corrente ideológica de Castelo Branco. Sua eleição acontece devido ao
descontentamento por parte destes membros das Forças Armadas com a política
castelista de aproximação com os Estados Unidos e de facilidades concedidas a
empresas estrangeiras para instalação no país. Inclusive esta orientação política dos
“linhas-dura” pode ser definida como uma forte orientação nacionalista. (FAUSTO,
476) Outro importante fator de descontentamento por parte dos militares com relação a
política de Castelo Branco foi a ascensão da oposição que denunciava os abusos do
regime no congresso, articulava manifestações nas ruas e em alguns casos organizou
grupos de resistência armada.
Neste período surgiram movimentos que partilhavam da premissa da luta armada
como a ALP liderada por Carlos Marighella, outros movimentos surgiram neste período
como o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8).
Além destes, outros
movimentos contavam com grande participação de militares de esquerda dissidentes das
forças armadas, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Estes grupos
começaram a realizar ações no ano de 1968, abrindo caminho para a criação de novos
instrumentos que visavam controlar os movimentos subversivos pelos militares que
acreditavam que existia uma ameaça interna perigosa. Nesse contexto, em 13 de
dezembro de 1968, decretou-se o AI-5, iniciando o período de maior repressão do
governo militar, conhecido como os anos de chumbo.(FAUSTO, 1999)
4.3. O AI-5
Desde o primeiro Ato institucional, instalou-se no país uma grande onde de
violência e repressão. Baseado na Doutrina de Segurança Nacional, a ditadura teve de
estruturar um poderoso aparato repressivo. Porém com o AI-5 a repressão assumiu
outros níveis, e a “linha-dura” assumiu o total controle interno do regime.
Diferentemente do outros atos institucionais, o AI-5 não tinha prazo determinado de
vigência. Este decreto voltou a conceder ao presidente o poder de clausura do
Congresso, de livre intervenção em Estados e municípios, de cassação de mandatos e
suspensão de direitos políticos. Ficou suspensa a garantia de habeas-corpus a acusados
de crimes contra a segurança nacional. (FAUSTO, 1999) Com o AI-5, a comunidade de
informações do aparelho estatal ganhou grande força, e passou a representar um
importante instrumento no comando de órgãos de vigilância e repressão, foi neste
período que a tortura instalou-se de vez como método de ação do governo. O aparato
repressivo podia ser representado pela figura de uma pirâmide, sendo a base dessa
figura as câmaras de interrogatório, e no seu ponto mais alto o SNI. Ainda que a
institucionalização
da
repressão
estivesse
arquitetada,
ainda
não
serviam
satisfatoriamente as pretensões do governo de eliminação da oposição esquerdista. Com
o intuito de melhorar a eficiência de controle e repressão dos movimentos
oposicionistas foi criada em 1969, em São Paulo, a OBAN (Operação Bandeirantes)
integrada por membros do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Política Estadual,
departamento de Polícia Federal, Polícia Civil, Força Pública, Guarda Civil e civis
paramilitares. (Direito à Memória e à Verdade, 2007) Este grupo agia sem especificação
legal o que lhe garantia uma extrema mobilidade, e naturalmente impunidade. A
experiência da OBAN foi bem sucedida em seu objetivo de combater a subversão, o que
levou o governo militar a estender este projeto para o país inteiro, formalizando uma
força composta pelas três armas que comandava todos os organismos de segurança nas
áreas em que estivesse localizado, concentrando o poder das ações repressivas. Este
órgão foi denominado Destacamento de Operações de Informações/ Centro de
Operações de Defesa Interna, DOI-CODI. Em conjunto com o DOPS (Departamento de
Ordem Política e Social), as delegacias regionais da Polícia Federal, o CISA (Centro de
Informações de Segurança da Aeronáutica) e o CENIMAR (Centro de informações da
Marinha) compuseram os centros de repressão que agiam de maneira independente, na
tortura e eliminação de opositores do regime. (Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Direito a Memória e à Verdade, 2007; ARNS, 1985) Ainda
segundo ARNS:
O resultado de todo este arsenal de Atos, decretos, cassações e proibições foi
a paralisação quase completa do movimento popular de denúncia, resistência
e reivindicação, restando praticamente uma única forma de oposição: a
clandestina. (ARNS, 1985. Pg. 62)
Em junho de 69, o presidente Costa e Silva é obrigado a afastar-se do poder por
motivos médicos e mais uma vez as forças armadas intervém na aparente legalidade
existente, pois segundo esta quem deveria assumir o poder era o vice-presidente Pedro
Aleixo, um civil contrário ao AI-5. Através do decreto de mais um Ato institucional,
assume o poder temporariamente uma junta militar composta por integrantes das três
forças militares. De acordo com Dom Paulo Evaristo Arns:
Constata-se um círculo vicioso: a resistência armada intensifica suas ações e
parte para os seqüestros, exigindo em troca a libertação de presos políticos; a
Junta Militar, por sua vez, adota as penas de morte e banimento, tornando
mais duras as punições previstas na Lei de Segurança Nacional (Decreto-Lei
nº 898)[...] (ARNS, 1985. Pg. 63)
Em 30 de outubro de 1969 assume o poder Emílio Garrastazu Médici para o
governo que representará o período de maior repressão e violência da história
republicana do país. A própria CEMDP32, no ano de 2009, no livro Direito à Memória e
à Verdade, classificou a atuação da ditadura neste período como “terror de Estado”.
Ainda segundo o documento histórico:
Num computo final, a violência repressiva não poupou as organizações
clandestinas que não tinham aderido a luta armada, e nem mesmo religiosos
que se opuseram ao regime sem filiação a qualquer organização. Os presídios
ficaram superlotados e as listas totalizando mortes sob torturas pularam de
algumas dezenas de opositores, em 1968, para várias centenas, em 1979, ano
da anistia. (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Direito à Memória e à Verdade, pg. 27)
Contrapondo esse período obscuro no cenário das liberdades e direitos civis, no
campo da economia o país se encontrava em êxtase. Baseando o modelo econômico
brasileiro em empréstimos internacionais, e no baixo preço do petróleo, desenvolveu-se
uma indústria extremamente dependente de bens externos e de investimentos de capital
estrangeiro. Esse período que registrou anos consecutivos de aumento do PIB – de 1969
a 1973 - foi chamado de “milagre brasileiro”. Este crescimento, porém, agravou
problemas já existentes, como a concentração de renda e acentuou o abandono por parte
do Estado de políticas sociais. Isso se deu graças a uma política representada pelo
slogan do ministro da fazendo do período, Delfim Netto, que afirmava que era
necessário “fazer crescer o bolo, para depois distribuí-lo.” (FAUSTO, 1999. Pg. 487)
Com a crise do petróleo dos anos 70, o modelo do milagre começa a demonstrar
sua debilidade, devido a grande dependência de agentes externos. Este pilar econômico
muitas vezes acabava por justificar as ações repressivas do governo. Porém com o seu
enfraquecimento e o aumento das denúncias internacionais sobre violações dos direitos
humanos geravam uma pressão internacional sobre o Brasil e acabaram refletindo
internamente na perda de poder do setor da “linha-dura”. Com isso ressurgem os
32
Comissão
Especial
sobre
Mortos
e
Desaparcidos
Políticos,
criada
em
pela
lei
9.140,
em
1995.
militares da corrente castelista, que voltam ao poder com a incumbência de conduzir a
distensão, ou seja, uma transição para a democracia.
4.4. Distensão
Geisel toma posse em março de 1974, com o objetivo de conduzir uma transição
lenta, gradual e segura. De acordo com os planos de Geisel, a reabertura política deveria
ser feita de um modo lento para que pudesse ser mantido o controle do Estado pelo
grupo político aliado a ditadura, a fim de evitar que a oposição conseguisse atingir o
poder rapidamente, estabelecendo o que seria uma “democracia conservadora” nas
palavras de Geisel. Entretanto, como afirma Fausto para a manutenção deste controle
por parte dos castelistas, o governo tinha que se preocupar além da subversão dos
grupos opositores, com o grupo dos “linha-dura” que permaneciam com influência
dentro das Forças Armadas e representavam um perigo aos planos de transição. Portanto
observa Fausto: “Para restaurar a hierarquia, tornava-se necessário neutralizar a “linhadura”, abrandar a repressão e, ordenadamente, promover a “volta dos militares aos
quartéis”. (FAUSTO, 1999. Pg. 490)
O cenário político seguia conturbado e ao mesmo tempo em que, às escuras, os
opositores continuavam a ser torturados e mortos, nas ruas a esquerda ganhava força. O
crescimento do MDB frente aos candidatos da Arena se tornou notorio nas eleições
municipais de 1976. No ano seguinte, em 1977, o governo não consegue apoio para
aprovar no Congresso estabelecimento de reformas no judiciário, o que leva Geisel a
fechar a casa e decretar o “Pacote de Abril”. Esse conjunto de medidas criadas pelo
pacote estabelece a figura do senador biônico, que seria eleito por um colégio eleitoral,
visando manter a maioria do Congresso nas mãos dos aliados. Uma emenda
constitucional, que entra em vigor em janeiro de 1979, proíbe o fechamento do
Congresso, assim como a cassação de mandatos e demissão de funcionários públicos
sem justificativa. Da mesma maneira nenhum cidadão poderia ser privado de seus
direitos políticos. No entanto, o Estado ainda mantinha algumas garantias legais para
que não houvesse uma inversão de poderes como o poder de
adotar medidas de
emergência, a fim de restabelecer a ordem em locais específicos
considerados instáveis, ou sob ameaça.
que fossem
Para a continuação a abertura, foi “eleito”33 o general João Batista Figueiredo,
figura contraditória para a condução da transição, uma vez que este havia sido chefe do
SNI durante o governo Geisel.
Em agosto de 1979 foi aprovada pelo Congresso a Lei de Anistia, que em um
sentido possibilita o retorno de exilados políticos, marca um importante passo na
ampliação de liberdades públicas, em outro concede um grande benefício aos militares
da ditadura. Pois anistia responsáveis pela realização de torturas, relacionando esta
prática abominável a crimes de motivação política. Neste mesmo ano foi aprovada a Lei
Orgânica dos partidos, que extingue a Arena e o MDB e permite a criação de novos
partidos.
Em 1982, pela primeira vez em 17 anos, aconteceram eleições diretas a nível
municipal e estadual. Como estratégia política o governo estabeleceu o voto vinculado,
que determinava que o eleitor deveria votar em candidatos do mesmo partido em todas
as esferas. Com o afrouxamento da repressão e a liberalização política formou-se no
país um grande movimento social chamado “Diretas Já”, que clamava por uma eleição
direta para a presidência da República.
Esse movimento teve início dentro de partidos políticos, como o PT e o PMDB e
depois contou com a o apoio de outros partidos como o PDT, além de organizações de
trabalhadores, caso da CUT e da Conclat. Rapidamente o movimento tornou-se uma
unanimidade nacional, movimentando e unindo milhões de brasileiros. Infelizmente o
Congresso, essa época ainda composto por uma maioria vinculada ao governo, vetou a
emenda constitucional que visava realizar o desejo de eleições diretas da nação.
(FAUSTO, 1999)
A eleição foi então realizada pelo Colégio Eleitoral dando vitória a Chapa de
Tancredo Neves e José Sarney formada por um acordo entre o PMDB, que havia
lançado Tancredo como candidato, e o Partido da Frente Liberal, formada por exintegrantes do PDS, outrora Arena. Tancredo porém não chegaria a assumir o poder.
Assume Sarney, que por ter sido durante muitos anos membro do partido
político que representava a ditadura, não encontrava apoio político dentro do PMDB.
Seu governo enfrentou desafios como a tarefa de convocar uma Assembléia
Constituinte e de remover os resquícios de ditadura que ainda podiam ser encontrados
33
Eleição
Indireta,
feita
por
um
colégio
eleitoral
composto
por
membros
do
Congresso
e
de
Assembléias
Legislativas
dos
Estados.
Estabelecida
pela
emenda
nº
1
da
Constituição
de
1967.
no ordenamento interno brasileiro. Como exemplo destes resquícios pode-se citar o fato
de o SNI continuar a funcionar e a receber importantes verbas. (FAUSTO, 1999)
Finalmente, no mesmo ano, foram restabelecidas as eleições diretas para a
Presidência da República, assim como o direito a voto dos analfabetos, e a legalização
de todos os partidos políticos. Com isso saem da clandestinidade o PCB e o PC do B.
Em novembro de 1986 ocorreria a eleição para a Assembléia Constituinte. Os
trabalhos da constituinte se iniciaram em 1º de fevereiro de 1987, e só forma encerrados
em 5 de outubro de 1988. Nesta mesma data foi promulgada a Constituição de 1988,
também conhecida como a Constituição Cidadã34. A carta representa um garnde avanço
do país no rumo da democracia, porém ainda encontra vestígios de uma transição
incompleta que foi marcada pela manutenção de forças políticas pertencentes ao antigo
regime, que tentavam garantir no texto constitucional a continuação de seus interesses.
4.5. A Anistia Brasileira
Para se tratar do contexto em que a Lei de anistia brasileira foi aprovada se fará
o que Heloísa Amélia Grecco chama de “dimensões fundacionais da luta pela anistia”35
onde refletirá sobre a luta dos movimentos sociais, encabeçados pelos Comitês
Brasileiros de Anistia (CBA’s), em conjunto com o Movimento Feminino pela Anistia
(MFPA), os presos políticos e os exilados brasileiros. Este movimento ganhou força em
1975, através do movimento organizado pela advogada Terezinha Zerbini, chamado
Movimento Feminino pela Anistia, que conseguiu reunir 20 mil assinaturas em todo o
país, a fim de manifestar em carta entregue a primeira dama dos EUA, Rosalynn Carter,
em que saudava a concessão de anistia dada a resistentes de guerra em seu país.
No período em que surgem os movimentos de demanda da Anistia, o contexto
em que o país se encontrava era de total controle de manifestações políticas, em que o
congresso e os partidos existentes se encontram completamente compelidos pela
ditadura, que durava já quase 20 anos. Este período final do regime é chamado, por
alguns autores de “normalização defeituosa” em que a abertura política é concebida para
impedir a reconstituição e recuperação do poder político. (CARDOSO. I. 1990, pg. 39
apud GRECCO, 2009.)
Aproveitando-se de brechas da abertura política os movimentos começam a dar
sinais de organização, em que passou de resistência a uma iniciativa política. E é neste
34
Assim
batizada
por
Ulysses
Guimarães,
por
garantir
direitos
civis
e
políticos
a
população.
Tese
de
Doutorado
defendida
em
2003
na
UFMG.
35
clima de despertar da sociedade civil que o combate ao projeto de institucionalização da
ditadura militar que os CBA’s vão atuar. A criação oficial se dá em fevereiro de 78
assumindo o papel de protagonista na oposição ao regime, superando o campo político
e atraindo grandes públicos para discussão do tema da Anistia Ampla Geral e Irrestrita.
Ampla: por abrigar todas as manifestações de oposição ao regime – Geral: para todas as
vítimas da repressão e – Irrestrita: sem discriminações e restrições. (GRECCO, 2009)
Antes mesmo de assumir o poder, João Batista Figueiredo em entrevista a VEJA em
1978, afirma que:
[É] um prejuízo para o próprio andamento das reformas políticas nos termos
em que [a anistia] vem sendo colocada. Tenta-se avançar demais, o que é um
erro. ( VEJA, 1978 apud GRECCO. Pg. 208)
Quando assume o poder em Março de 1979, Figueiredo assume a missão de
conduzir o projeto de abertura política. Em agosto deste mesmo ano é promulgada a Lei
nº 6.683, a Lei de Anistia. Essa Lei não cumpriu as expectativas dos movimentos de
anistia, sendo considerada por estes, uma Anistia Parcial, por seu caráter de alegada
reciprocidade, onde incluía os crimes conexos, excluía os guerrilheiros, aqueles que
praticaram crime de sangue, e estabeleciam a declaração de ausência36 aos familiares de
desaparecidos políticos. Desaparecidos políticos, na concepção do Estado, é a
designação que se dá aqueles que foram assassinados por este e cujas mortes não
tenham sido esclarecidas. (GRECCO, 2010.) Por estas características os CBA’s rejeitam
esta anistia, e convocam a população para seguirem na luta pela anistia Ampla Geral e
Irrestrita.
4.6. A Guerrilha do Araguaia
O movimento que ficou conhecido como a Guerrilha do Araguaia, foi um
movimento composto por integrantes do PC do B que se instalaram as margens do Rio
Araguaia, próximos a Marabá, no Pará, para oferecer ações de resistência armada ao
regime. Entre os anos de 1972-1974 aproximadamente 70 pessoas ligadas ao Partido,
especialmente jovens, estabelecem ligações com os camponeses locais, lhes ensinando
práticas de cultivo agrícolas e cuidados com a saúde. Em 1972 esse grupo foi
descoberto pelo Exército, que iniciou a primeira campanha das várias ações que seriam
36
Em
caso
de
comprovação
do
desaparecimento,
feita
por
parte
da
família
da
vítima,
o
Estado
atestava
a
presunção
de
suas
mortes,
sem
dar
explicações
ou
justificativas.
empreendidas pelo Estado a fim de eliminar a guerrilha. As ações do Exército
consistiam em aterrorizar a população das localidades próximas, com o intuito de
conseguir alguma informação que pudesse levá-los aos guerrilheiros. Essas ações
reuniam um grande número de militares especialmente treinadas em táticas de combate
anti-guerrilha. A finais de 1974 já não havia guerrilheiros no Araguaia, e não foram
deixados vestígios das operações por parte dos militares. Até hoje as famílias da vítimas
buscam a localização dos corpos de seus entes queridos. (Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade, 2007)
3.7. A sentença do Caso Araguaia
Em 26 de março de 2009 a Comissão Interamericana de Direitos humanos
submete a Corte uma demanda contra o Estado brasileiro, originada na petição
apresentada em 7 de agosto de 1995 pelo Centro pela Justiça e o Direito internacional
(CEJIL) e pela Human Rights Watch/ Americas em nome de pessoas desaparecidas
envolvidas na Guerrilhe do Araguaia. A demanda se refere a alegada responsabilidade
do Estado pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas,
entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região, como
conseqüência das operações do Exército brasileiro realizadas entre 1972 e 1975 no
contexto da ditadura militar brasileira. Outro objeto de demanda da Comissão é o fato
do Estado não ter realizado nenhuma investigação com intuito de julgar e punir os
responsáveis por estes crimes, baseando-se na Lei 6.683/79.
A comissão solicitou a Corte que declare o Estado brasileiro responsável pela
violação dos artigos 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à
vida), 5 ( direito à integridade pessoal), 7 (direito a liberdade pessoal), 8 (garantias
judiciais), 13 (liberdade de pensamento e expressão) e 25 (proteção judicial) da
Convenção Americana de direitos humanos, em conexão com as obrigações previstas
nos artigos 1.1 ( obrigação geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever
de adotar disposição de direito interno), da mesma convenção.
5. ANÁLISE DA SENTENÇA DO CASO ARAGUAIA
O método de análise utilizado para este trabalho consiste na comparação entre os
princípios adotados no item 1, considerados como os principais objetivos para a
construção de uma transição adequada, em relação as disposições estabelecidas pela
Corte interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia para o Brasil. A ponto de
se avaliar se o cumprimento destas disposições adequará o país aos princípios
considerados fundamentais da Justiça de Transição.
5.1. Direito à Memória e à Verdade
Atualmente no Brasil, o direito de acesso à informação está previsto no artigo 5º
da Constituição Federal de 1988. Além deste, há ainda no ordenamento interno a lei
8.159, de 1991, que regulamenta a política nacional de arquivos públicos e privados, o
acesso e o sigilo de documentos públicos, entre outras providências; Decreto nº 2.134,
de 1997, que regulamenta o artigo 23 da lei 8.159/91 sobre a categoria dos documentos
públicos secretos; Decreto nº 4.553, de 2002, que regulamenta a proteção de dados,
informações, documentos e materiais reservados, de interesse da segurança do Estado e
da sociedade no âmbito da administração pública Federal; Decreto nº 5.301, de 2004,
que criou a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas; Lei 11.111,
de 2005, que introduz a possibilidade de sigilo permanente de arquivos oficiais
classificados como ultrassecretos, e Decreto nº 5.584 de 2005, que regulamenta a
entrega ao Arquivo Nacional de todos os documentos que estavam sob custódia da
Agência Brasileira de Inteligência e prevê a aplicação de restrições previstas no decreto
nº 4.453. ( Caso Gomes Lund e outros VS. Brasil, Pg. 74)
O Estado ainda alega que em honra e memória as vítimas do referente caso o
Estado já adotou medidas que considera satisfatórias. Uma delas é a elaboração da Lei
9.140/95. Esta lei reconhece a responsabilidade do Estado pelo assassinato de opositores
políticos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de
1979, e confere a 136 vítimas o status de perseguidos políticos. Dentre as quais 60 das
pessoas desaparecidas na Guerrilha do Araguaia, além de Maria Lúcia Petit da Silva,
que foi privada de sua vida durante as operações de combate a Guerrilha. A referida lei
também criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos que tem por
objetivo reconhecer outros perseguidos que ainda não se encontrem abrigados pela lei.
(Caso Gomes Lund e outros VS. Brasil, Pg. 75)
Quanto a busca pelos restos mortais já foram empreendidas inúmeras expedições
a região do Araguaia a fim de se esclarecer a realidade dos fatos, bem como a
localização dos possíveis restos mortais das pessoas desaparecidas. Em nenhuma delas
se obteve resultados. Outra atuação do Estado, através da Comissão Especial é a
montagem de um bando de dados genéticos, ou banco de DNA, que tem por objetivo
recolher amostras de DNA dos familiares das vítimas, para o caso de serem encontrados
restos mortais se possa realizar o reconhecimento o mais rápido possível.( Caso Gomes
Lund e outros VS. Brasil. Pg. 37)
A Corte estabelece que o direito a liberdade de expressão não se aplica apenas
ao direito de se expressar livremente, mas também ao direito de buscar, receber e
divulgar informações, corroborada pelo art. 13 da Convenção. Este mesmo artigo
também o protege o direito de toda pessoa a buscar e solicitar informações com seu
Estado, bem como a obrigação positiva do Estado em fornecê-la. (Caso Gomes Lund e
outros VS. Brasil. Pg.75)
Caso contrário, que o Estado justifique a restrição alegando motivo previsto na
Convenção. Este direito é, portanto, estendido a familiares de vítimas de graves
violações dos direitos humanos. Também é determinado na sentença da Corte, que a
motivação a restrição a informação por parte do Estado, se tratando de casos
envolvendo violações dos direitos humanos, não pode ser baseada em argumentos como
a Segurança nacional, ou interesse público. Da mesma maneira estabelece que não deve
depender unicamente do Estado que tenha agentes envolvidos em demandas judiciais, o
poder de decisão quanto a entrega ou não de informações pertinentes a este. (Caso
Gomes Lund e outros VS. Brasil. Pg. 77)
A Corte reconhece os esforços empreendidos pelo Estado em relação a memória
e as famílias das vítimas, porém recorda que o Estado continua sem definir o paradeiro
de 60 das vítimas desaparecidas, e não ofereceu uma resposta definitiva sobre seus
destinos. Tendo em vista esta situação a Corte reitera que “o desaparecimento forçado
tem caráter permanente e persiste enquanto não se conheça o paradeiro da vítima ou se
encontrem seus restos, de modo que se determine com certeza sua identidade”. (Caso
Gomes Lund e outros VS. Brasil. Pg.45)
Por fim conclui a Corte, que o Estado deve realizar todos os esforços para
determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar
os restos mortais a seus familiares, o que também constitui uma forma de reparação. O
Estado deve realizar a publicação desta sentença no Diário oficial, o resumo da sentença
em diário de circulação nacional, bem como a íntegra da sentença em meio eletrônico e
a publicação desta em forma de livro. Condena o Estado a realizar um ato público de
reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos relacionados
nesta sentença. Também deve seguir desenvolvendo iniciativas de busca, sistematização
e publicação de toda informação sobre a guerrilha do Araguaia, assim como toda
informação relativa a violações dos direitos humanos ocorridas durante o regime militar.
(Caso Gomes Lund e outros VS. Brasil. Pg. 115)
5.2. Direito a Reparação
O direito a reparação é regido no ordenamento interno pela Lei 9.140 que além
de determinar o já exposto anteriormente ainda rege a questão da reparação pecuniária
aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos. O órgão responsável pela
identificação dos perseguidos e o pagamento de indenizações a seus familiares é a
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, também criada pela Lei de
95. (Caso Gomes Lund e outros VS. Brasil. Pg. 34)
Com base no disposto no artigo 63.137 da Convenção Americana, a corte indicou
que toda violação de uma obrigação internacional que tenha provocado dano
compreende o dever de repará-lo adequadamente. (Caso Gomes Lund e outros VS.
Brasil. Pg. 93)
Tendo como base esta argumentação, a corte determina o pagamento da quantia
de U$ 3.000,00 a favor de cada um dos familiares que sejam considerados vítimas.
Porém com relação ao dano imaterial a sentença per se caracteriza uma forma de
reparação e a Corte julga pertinente fixar uma quantia a título de compensação em
relação a danos imateriais, como o sofrimento ocasionado em virtude das violações
cometidas e a negação de informações e conseqüentemente de justiça. Essa quantia
ficou estabelecida em U$ 45.000 para cada familiar direto e U$ 15.000 a familiares
indiretos.
5.3. Direito ao Igual Tratamento Legal (Justiça)
Segundo a comissão especial sobre mortos e desaparecidos políticos, cerca de 50
mil pessoas teriam sido detidas somente nos primeiros meses da ditadura; cerca de 20
mil presos foram submetidos a torturas; há 354 mortos e desaparecidos políticos; 130
pessoas foram expulsas do país; 4.862 pessoas tiveram seus mandatos e direitos
políticos suspensos, e centenas de camponeses foram assassinados. A Comissão
Especial destacou ainda que o Brasil é o único país da região que não trilhou
procedimentos penais para examinar violações de direitos humanos ocorridas em seu
37
É
dever
do
Estado
reparar
um
direito
violado,
uma
vez
que
seja
comprovada
esta
violação.
período ditatorial, mesmo tendo oficializado o reconhecimento da responsabilidade do
Estado pelas mortes e desaparecimentos denunciados. Isso tudo devido a edição da Lei
de anistia de 1979. (Caso Gomes Lund e outros VS. Brasil. Pg 32-33)
Como bem especificado pela Corte, o objetivo do crime de desaparecimento
forçado é impedir que esta pessoa tenha acesso às suas garantias judiciais. Se a própria
vítima não pode ter acesso, é fundamental que seus familiares tenham esse direito
preservado, com recursos judiciais rápidos e eficazes para que se possa encontrar e
vítima e se possível a condição de saúde, ou mesmo para responsabilizar de maneira
individual o responsável pela prática deste crime. É, portanto, obrigação do Estado
investigar de maneira séria as denúncias de desaparecimento forçado. (Caso Gomes
Lund e outros VS. Brasil. Pg. 40) “Portanto o desaparecimento implica a
vulnerabilidade do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, estabelecido no
art. 3 da Convenção Americana.” (Caso Gomes Lund e outros VS. Brasil. Pg. 45-46)
Em 29 de abril de 2010, a OAB entro com uma ADPF junto ao STF brasileiro
onde questionava a constitucionalidade da interpretação dada a Lei de anistia no país. O
judiciário brasileiro destacou que a lei foi produto de um consenso político que
possibilitou a transição para o Estado de direito, portanto, por se tratar de uma lei,
caberia somente ao Legislativo proceder uma alteração em seu texto. Quanto a sua
origem, o STF afirmou que se tratava de uma norma inserida a nova ordem
constitucional e, portanto, aplicável. A corte afirma que ao se fazer parte de um tratado
internacional, todos seus órgãos estão submetidos a este. De modo que o poder
judiciário está obrigado a exercer um “controle de convencionalidade”. (Caso Gomes
Lund e outros VS. Brasil. Pg.65)
A Corte declara que as disposições da anistia brasileira que impedem a
investigação e sanção de graves violações dos direitos humanos são incompatíveis com
a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando
um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, e tampouco podem ter
igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos
humanos consagrados na Convenção Americana, ocorridos no Brasil. (Caso Gomes
Lund e outros VS. Brasil Pg. 114)
Declarou o Estado também responsável pelo desaparecimento forçado e,
portanto, pela violação dos direitos de reconhecimento de personalidade jurídica, à vida,
à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3,4,5 e 7 da
Convenção, em relação com o art. 1.1 da mesma. (Caso Gomes Lund e outros VS.
Brasil. Pg. 114)
Além disso, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar o ordenamento
interno à convenção Americana sobre Direitos humanos, contida no art. 2, em relação
ao art. 8.1, 25 e 1.1, como conseqüência da interpretação que foi dada à Lei de Anistia.
Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias
judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 em conjunto com os
artigos 1.1 e 2 pela falta de investigações dos fatos do presente caso, bem como pela
falta de sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas
e da pessoa executada (Caso Gomes Lund e outros VS. Brasil. Pg. 114) O Estado
também foi considerado responsável pela violação do direito à integridade pessoal
consagrado no artigo 5.1 da Convenção em relação com o artigo 1.1. (Caso Gomes
Lund e outros VS. Brasil. Pg. 114)
Portanto a Corte determina que o Brasil deve conduzir investigações penais a
fim de esclarecer os fatos, determinar os responsáveis e aplicar as sanções
correspondentes, determinadas em lei. Também deve realizar todos os esforços a fim de
determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas, e, se for o caso identificar e entregar
os restos mortais a seus familiares. Também deve tipificar o delito do desaparecimento
forçado de pessoas. Enquanto cumpre esta medida, o Estado deve adotar todas ações
que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos de
desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno.( Caso
Gomes Lund e outros VS. Brasil. Pg. 115)
5.4. Reformas Institucionais
A Corte não inclui dentre as suas deliberações qualquer decreto relativo ao tema
das Reformas Institucionais. A característica brasileira é especial, pois como
demonstrado no Item 3, houve uma pretensa legalidade durante o regime, que fez com
que as instituições democráticas fossem mantidas, ainda que sob a forte influência das
arbitrariedades militares. Outro fator que contribui para manutenção desta realidade foi
a distensão negociada, que fez com que não houvesse rupturas com o antigo regime e
marcasse a abertura pela manutenção de antigas forças políticas que tentavam garantir a
continuação de seus interesses. Prova disso é que alguns órgãos de repressão não foram
extintos logo após a transição, como o caso do SNI, que só teve suas atividades
encerradas no ano de 1988. Dessa maneira a sentença da Corte deixa de observar um
importante critério, e permite que o Estado brasileiro siga sem atender as expectativas
da sociedade em relação a idoneidade de suas instituições.
5.5. Comparação
Ao se traçar um paralelo entre a sentença da Corte frente aos critérios da Justiça
de Transição, se percebe que este tribunal não observa os princípios elencados como
fundamentais para a transição a um Estado democrático de direito. Ainda que o trabalho
na observância dos direitos humanos, previstos na Convenção, faça com que a sentença
aborde temas e direitos previstos nos princípios transicionais, estes não são
completamente atendidos. Este trabalho se dedica a observação destes princípios em
relação às disposições da decisão da Corte, assim como a avaliar se o Brasil, adotando
estas medidas, quitará o débito com as vítimas violadas e com a sociedade de um modo
geral.
Pode-se dizer que os direitos à memória e à verdade foram considerados pela
Corte e se encontrem adequados aos princípios da justiça de transição. Também se pode
afirmar que os âmbitos individuais e coletivos foram alcançados uma vez que o país
deverá reconhecer internacionalmente sua responsabilidade nos crimes, tornar publica a
sentença, além de qualquer informação relacionada a guerrilha do Araguaia.
O empenho do Estado na busca aos restos mortais das vitimas é outro ponto
fundamental na decisão da Corte. Com essas medidas, o esclarecimento das
circunstâncias do desaparecimento dos opositores vira juntamente com o sentimento de
reconhecimento do sofrimento dos familiares pelo Estado. Sendo assim, cabe tanto à
Corte quanto à sociedade o monitoramento do cumprimento real das disposições da
sentença. Para tal se faz necessário que representantes da sociedade civil tenham
autonomia para regular estas questões e dirigir os trabalhos, tendo em vista que os
projetos sob a responsabilidade do governo não obtiveram sucesso.
A realização do ato público também é positiva em vários níveis. Além de ganhar
o reconhecimento da população como protetor dos direitos humanos, o Estado ao aceitar
sua responsabilidade e manter a sociedade informada a respeito dos avanços nas buscas
do Araguaia, atrairá maior atenção da sociedade ao tema, o que servira á estimular o
debate sobre o período, contribuindo dessa forma para que o povo conheça seu passado
e valorize o seu presente democrático.
Em relação ao critério da reparação, a Corte considerou positivas as atitudes do
Estado, previstas na Lei 9.140/95. Porém, ao não propor medidas de sentido coletivo,
como se espera segundo os critérios da Justiça de Transição, o Estado fica obrigado a
assumir o reconhecimento internacional, mas não se vê obrigado a estabelecer
internamente medidas de cunho educativo para as futuras gerações.
Quanto ao princípio do igual tratamento legal, as expectativas da Justiça de
Transição vão ao encontro das decisões da sentença. Afinal a Corte é muito precisa
quando afirma que a Lei de Anistia não deve seguir sendo empecilho para a
investigação dos fatos relacionados ao caso.
Esta decisão terá reflexos não somente nos casos relativos à Guerrilha do
Araguaia, mas a todos aqueles que foram praticados no contexto da ditadura militar.
Portanto, segundo estabelecido na Corte o Estado deverá proceder a investigação,
julgamento e punição dos crimes contra os direitos humanos cometidos por agentes
estatais a época da ditadura, bem como seguir o estabelecido no ordenamento interno
quanto a qualquer demanda feita em relação a violações cometidas por estes agentes
estatais no período em questão. Outra disposição satisfatória neste sentido se refere a
adequação do ordenamento interno ao se declarar que o Estado deve tipificar o crime de
desaparecimento forçado dentro de seu ordenamento.
Quanto às reformas políticas, estas não foram observadas pela sentença da Corte.
A única atenção que houve ocorreu quanto à instrução dos membros das Forças
Armadas na área dos direitos humanos, através de cursos de capacitação. Porém,
segundo os critérios analisados da Justiça de Transição, o Estado deveria fazer o
expurgo de qualquer uma das normas que provém do regime autoritário. Um grande
passo será dado ao se declarar a falta de efeito jurídico da Lei de Anistia, porém ainda
hoje leis estabelecidas naquele período seguem sendo utilizadas para a regulação das
atividades da sociedade civil, sendo utilizadas por alguns membros do judiciário como
cláusulas legais e aceitáveis.
Portanto se conclui ao analisar a sentença do Caso Araguaia proferida pela Corte
Interamericana, se observa que não foram cumpridas todas as normas dispostas nos
princípios considerados fundamentais para o estabelecimento de uma justiça
transicional completa. Porém se reconhece nesta uma grande oportunidade para o país
avançar em rumos democráticos e reconhecer a todos os seus cidadãos os direitos
fundamentais estabelecidos nos tratados internacionais firmados pelo país.
Cabe ressaltar que os critérios da Justiça de Transição são meios utilizados para
que uma sociedade que tenha passado por um período de exceção, onde houve uma
reiterada prática de desrespeito aos direitos humanos, passem a ser Estados
respeitadores e garantidores dos Direitos fundamentais. A observância e cumprimento
de seus critérios servem a um propósito de garantia democrática à medida que a
população possa a reconhecer em seu Estado um garantidor e provedor de direitos
fundamentais. Dessa maneira, ao proporcionar a população o conhecimento de seu
passado, e reconhecer seus direitos civis, políticos e fundamentais se aprofunda a
democracia, e se garante a não repetição destas atrocidades contra o povo brasileiro. Ao
cumprir o estabelecido na sentença da Corte, o Brasil avançará muito no que diz
respeito à construção de um Estado democrático e defensor dos direitos humanos e sairá
da incomoda condição de único país da região a não ter lidado com seu passado
ditatorial em defesa dos princípios universais dos direitos humanos.
6. Considerações Finais
Este trabalho se dedicou a analisar a sentença da corte interamericana, referente
ao caso Araguaia, em que o Brasil foi réu pela violação de inúmeros direitos de
opositores do regime militar brasileiro e de camponeses que habitavam a região, frente
aos princípios estabelecidos da Justiça de Transição. Desta forma se procurou
demonstrar que a sentença, é um importante marco para o país no sentido de suas
políticas em relação ao seu passado ditatorial, pois determina mudanças relevantes em
relação ao tratamento que é dado hoje no país as famílias daqueles que lutaram contra
um período obscuro e cruel de nossa história.
No item 1. procurou-se demonstrar o surgimento do debate a cerca do tema da
Justiça de transição no cenário internacional, com o crescimento do reconhecimento dos
direitos humanos. Esta atenção se deu devido ao grande numero de governos
autoritários que surgiram no período pós-segunda guerra. Com a transição destes países
a democracia, o contencioso sobre as graves violações de direitos humanos cometidas
neste período ganhou volume e a sociedade internacional teve de preocupar-se em como
lidar com esta transição. Para tanto, determinou-se princípios que deveriam ser seguidos
a fim de satisfazer as demandas de direitos humanos nestes países. Estes princípios
estabelecem metas a serem atingidas que devem respeitar a realidade de cada Estado.
Tendo em vista a atuação positiva da Corte Interamericana neste sentido em
países vizinhos e a demanda sobre o Caso Araguaia respectivo ao Brasil, se procurou
apresentar no item 2. O funcionamento do Sistema Interamericano de proteção aos
direitos humanos, demonstrando o papel da Comissão e da Corte. Em seguida se faz a
abordagem sobre como o tema dos direitos humanos em períodos de exceção vem sendo
tratados por este tribunal.
Com isso, aprofundou-se sobre o contexto da ditadura militar brasileira.
Demonstrando em que contexto se deu o golpe que levou os militares ao poder e a dura
realidade que as pessoas que se opunham ao regime enfrentaram. Em um conturbado
contexto político milhares de brasileiros forma mortos ao lutar por um país livre e justo.
Um dos casos mais emblemáticos deste período foi o que ficou conhecido como a
Guerrilha do Araguaia. Justamente sobre este episódio que trata a sentença da Corte
estudada neste trabalho.
A corte interamericana de direitos humanos, ao elaborar suas sentenças,
considera as responsabilidades assumidas pelos Estados signatários dos tratados de
direitos humanos vigentes no continente. O principal destes é a Convenção
Interamericana sobre direitos humanos. O Brasil é membro deste acordo, como também
reconhece a Corte e sua jurisdição. Portanto cabe a Corte julgar o Estado em relação as
violações cometidas em relação aos seus compromissos internacionais.
A Justiça de transição é uma vertente dos direitos humanos, uma vez que seus
critérios visam o melhor estabelecimento de uma sociedade democrática em países que
tenham passado por períodos de violência, ou terror de Estado, como o caso do Brasil
durante a ditadura. Tendo em vista a matéria em que atua a Corte é natural que se
atendam alguns dos princípios da Justiça transicional ao se avaliar as condições de
respeito aos direitos humanos dentro do país.
Contudo, se observa que a sentença da Corte não abrange todos os níveis
pretendidos pelos critérios da Justiça de Transição. Como por exemplo, as reparações
simbólicas a nível de conhecimento e educação em relação a história recente do país e
sobre o real significado das lutas sociais por liberdade e justiça, para as futuras
gerações. Outro ponto esquecido pela Corte é o referente às reformas institucionais, que
nunca foram realizadas no país. Se abordou o contexto em que eram decididas as leis na
época da ditadura, e como ocorreu a transição para a democracia no Brasil. Não se
pretende com a atual situação se estabelecer uma política revanchista, no sentido de
realizar uma caça as bruxas, condenando indiscriminadamente todos aqueles que
participaram de alguma maneira do regime militar brasileiro. Reconhece-se o valor da
Anistia, e seus pontos positivos, como o retorno dos exilados para sua pátria natal. O
que não se admite é que responsáveis por graves crimes contra a humanidade estejam
livres e se valham de um benefício do qual não são dignos. Isso se afirma dado o caráter
de crimes imprescritíveis e inanistiáveis que é atribuído as graves violações de direitos
humanos.
Muitas das reivindicações daqueles que trabalham e lutam pela afirmação dos
direitos humanos no Brasil, especialmente no tocantes as vítimas da ditadura, são
atendidas com a sentença da Corte. Porém cabe atentar, que a decisão, ainda que tenha
caráter vinculante e se atribua a esta obrigatoriedade, ainda não foi cumprida pelo país.
Cabe agora que seja feito o monitoramento das ações do Estado, para que este cumpra
com suas obrigações e caminhe para a construção de um real Estado democrático de
direito, onde todas as pessoas possam reconhecer neste um garantidor do direitos
humanos.
Dessa maneira, conhecendo o passado, a sociedade pode se reconhecer nos
princípios que nos trouxeram até aqui. E somente com o respeito aos direitos
fundamentais de todo ser humanos é que se caminhará para a construção de um Estado
que prime pelos direitos de todos que se encontram sob sua proteção.
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Análise da Sentença do Caso Araguaia frente aos critérios da