A Escola Cultural e os Valores Ramiro Marques Foi finalmente editado, pela Porto Editora, na Colecção Mundo de Saberes, o volume “A Escola Cultural e os Valores”, organizado por Manuel Ferreira Patrício. O livro inclui as comunicações e conferências feitas no II Congresso da AEPEC, realizado, em Évora, nos dias 10, 11 e 12 de Abril de 1992 (1). O livro, com 725 páginas, agrupadas em 78 capítulos, reúne contributos científicos de cerca de 7 dezenas de especialistas de Educação, constituindo, por isso, uma referência bibliográfica básica na literatura científica portuguesa sobre educação e valores. Não sendo possível a referência a todos os autores, lembro apenas os nomes das personalidades mais conhecidas: Joaquim Cerqueira Gonçalves, Ricardo Ibanez, Kevin Ryan, José Barata-Moura, Maria Rita Mendes Leal, Leandro Almeida, José Ribeiro Dias, Isabel Alarcão e Manuel Patrício. Esta obra reflecte, fielmente, o tema do congresso e, valha a verdade, surge num momento oportuno, tendo em consideração a grave crise de identidade que as escolas portuguesas atravessam, após duas décadas e meia marcadas pela alternância de períodos de normalização e sensatez com períodos de turbulência, indefinição e experimentalismo, que deixaram os vários níveis da administração educacional impotentes face a sucessivas experiências pedagógicas mal conduzidas e raramente avaliadas e aos efeitos nefastos de decisões de política educativa de sinal contraditório e inconsequente. Resulta desses períodos de turbulência e experimentalismo uma grande indefinição sobre a missão das escolas, uma grave crise de liderança educativa em todos os níveis da administração educacional, uma enorme confusão e dispersão curricular e um elevado laxismo no sistema de avaliação escolar. Não admira, portanto, que o fosso entre os melhores e os piores alunos tenha vindo a acentuar-se em vez de diminuir, como seria de esperar, tendo em conta o crescimento ininterrupto das despesas públicas com a Educação, as quais atingiram, em 1998, 5.5% do produto interno bruto, uma percentagem que coloca Portugal a par dos restante países europeus. Se analisarmos os resultados que os alunos portugueses do ensino básico têm tido na Matemática e nas Ciências, comparados com os resultados dos outros países desenvolvidos, veremos que o aumento da despesa pública com a Educação não tem sido acompanhado de quaisquer vantagens comparativas no domínio dos resultados escolares nessas duas áreas curriculares fundamentais (2). Ou seja, apesar de reconhecermos que os últimos 25 anos foram marcados positivamente pela universalização do ensino básico, pela enorme expansão da rede escolar e por grandes melhorias nos recursos materiais, é forçoso reconhecer que o enorme aumento dos investimentos públicos no sistema educativo deveria ter produzido resultados mais satisfatórios na qualidade das aprendizagens dos alunos. Esta constatação leva-nos a concluir que existe uma enorme ineficácia na forma como os vários níveis da administração educacional fazem a gestão do sistema público de educação. A manutenção do sistema de autogestão das escolas, pese embora algumas alterações de pormenor introduzidas nos últimos anos, é bem a prova de que nunca houve capacidade ou vontade política para criar uma gestão verdadeiramente profissional e eficaz das escolas públicas portuguesas. Como a qualidade das organizações educativas depende sobretudo da qualidade das suas lideranças educativas, a continuidade do sistema de autogestão escolar nas escolas portuguesas constitui um dos principais obstáculos à melhoria das aprendizagens. O desperdício de recursos financeiros e o conservadorismo corporativo, que resultam da continuação do sistema de autogestão, só não saltam mais à vista porque os alunos e as famílias portuguesas não dispõem de reais alternativas, nem poder de escolha, atendendo à reduzida dimensão do sistema escolar privado. Como é evidente, o sistema autogestionário, que tem vindo a alimentar uma cultura avessa à inovação sustentada, à qualidade e à excelência, só pode manter-se enquanto existir um quase monopólio estatal sobre o ensino básico e o ensino secundário. Portugal continua a ser, passados 25 anos após a destruição de uma, ainda, incipiente rede privada de educação básica e secundária, o país da Europa com menor percentagem de alunos dos ensinos básico e secundário a frequentarem escolas privadas. Esse facto resulta do peso que as forças ideológico-culturais, interessadas em alimentar e reforçar o monopólio estatal sobre o ensino, sempre tiveram nas várias estruturas do Ministério da Educação durante as últimas duas décadas e meia. A manutenção e recente agravamento desta situação é tanto mais grave, quanto mais se sabe e reconhece que a qualidade da instrução e da educação constituirá o principal factor de riqueza das nações no próximo século. As tentativas sérias para travar a turbulência provocada pelo excesso do experimentalismo pedagógico não foram suficientemente fortes para resistir ao apelo demagógico dos inúmeros grupos de pressão que têm controlado, directa ou indirectamente, o Ministério da Educação, nomeadamente durante os períodos de maior pendor reformador. O resultado está à vista: a confusão curricular é a imagem de marca das escolas portuguesas, continua a imperar o laxismo e a facilidade no sistema de avaliação e as tarefas burocráticas dos professores aumentaram cada vez mais, com manifesto prejuízo das actividades lectivas e de preparação das aulas. As alterações aprovadas à avaliação do desempenho dos professores, nos últimos anos, vieram agravar o peso da burocracia na vida dos professores e reduzir o tempo que eles podem dedicar à preparação científica e didáctica das aulas, ao estudo dos assuntos que é suposto ensinarem e à actualização científica e pedagógica. As mudanças introduzidas com as experiências pedagógicas do tipo territórios educativos de educação prioritária e o novo quadro de autonomia e gestão das escolas básicas e secundárias fizeram aumentar o número de professores que se limitam a controlar o trabalho lectivo e de docência daqueles que continuam a estar directamente em contacto com os alunos na sala de aula. Com essas e outras mudanças do mesmo tipo, estamos a assistir a um aumento brutal da burocracia educacional, expressa no número crescente de professores que desempenham funções que não estão directamente ligadas à docência (3), com evidentes aumentos da despesa pública, sem que haja quaisquer melhorias na qualidade das aprendizagens. As escolas portuguesas, em particular as escolas públicas que servem as populações desfavorecidas, residentes nas grandes cidades, não só não conseguiram, ainda, encontrar um espírito de missão e lideranças educativas fortes, como não puderam conceber projectos educativos centrados num conjunto de valores básicos que reforcem o apreço pelos valores básicos que, como é sabido, têm estado no cerne da grandeza da Cultura Ocidental: a liberdade, o respeito, a prudência, a moderação, a tolerância, a perseverança, a honestidade e a humildade. Estes valores não só passaram a estar fora de moda, como aqueles que as defendem passaram a ser rotulados de tradicionalistas, conservadores e, por vezes, reaccionários. Perante esta anomia moral e face à ausência de referenciais éticos explícitos, as nossas escolas têm vindo a cair nas malhas do discurso relativista, em nome da recusa das tradições, acusadas, falsamente, de promoverem a opressão das minorias. Os que promovem estas acusações deveriam ter presente que os grandes génios da Humanidade, em todas as áreas do saber e das artes, são produto de uma tradição e de uma escola que teima em centrar o currículo em padrões culturais suficientemente testados pelo tempo e que, só por isso, podemos, hoje, de chamar de clássicos. O livro “A Escola Cultural e os Valores” constitui um importante contributo para a discussão destas questão e coloca em relevo vários enquadramentos conceptuais capazes de evitarem que se caia na armadilha relativista. Embora quase todos os capítulos evidenciem a compreensão e o apreço pela filosofia humanista e personalista, que constitui a matriz do movimento da escola cultural, a diversidade das contribuições permite-nos o contacto com diferentes perspectivas e modelos de ensino. Este volume é feito de muitas contribuições. Embora diversas nas perspectivas e conclusões, une-as a qualidade do discurso e a solidez das referências bibliográficas e do enquadramento conceptual. Alguns destes capítulos centram a discussão no papel da escola na promoção dos valores morais, outros capítulos acentuam os valores estéticos e, ainda outros, os valores espirituais. A riqueza multifacetada deste importante volume reside, precisamente, no facto de se abordar o papel da escola na promoção de um conjunto abrangente de valores, ao contrário do que acontece com grande parte da restante bibliografia que se limita a privilegiar um determinado tipo de valores em prejuízo dos outros. 1) Manuel Ferreira Patrício (1997) (Org.). A Escola Cultural e os Valores. Porto. Porto Editora 2) Veja-se a este propósito os resultados do TIMMS (Third International Math and Science Study) 3) Veja-se, como exemplo, a recente introdução da figura do “professor-acompanhante”, no ensino secundário, com a finalidade de controlar o trabalho desenvolvido pelos professores.