1 O Papa Francisco e os rostos do “Povo de Deus”, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium Jaldemir Vitório SJ1 O Concílio Vaticano II recuperou um elemento importante da eclesiologia neotestamentária que fala da Igreja como Povo de Deus. O capítulo II da Lumen Gentium detém-se nessa imagem evocadora da longa tradição do Povo de Israel, com sua história de fidelidade e infidelidade, e do ministério de Jesus, em seu esforço de voltar às raízes da fé de seu povo, num movimento de continuidade, ruptura e superação. “Foi Cristo quem instituiu esta nova aliança, isto é, o novo testamento em seu sangue (cf. 1 Cor 11,25), chamando de entre judeus e gentios um povo, que junto crescesse para a unidade, não segundo a carne, mas no Espírito, e fosse o novo Povo de Deus” (LG 9), declaram os padres conciliares. A vocação à universalidade é uma marca desse Povo. “Todos os homens são chamados a pertencer ao novo Povo de Deus. Por isso este povo, permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os tempos, para que se cumpra o desígnio da vontade Deus” (LG 13). A catolicidade do Povo de Deus traz a marca da comunhão e da unidade, garantidas pela ação do Espírito de Cristo que, de muitos, gera um só povo. A novidade do Vaticano II consistiu em superar a concepção da Igreja societas perfecta, com ênfase maior na dimensão sócio-política mais que na teológicoespiritual. Nem sempre a Igreja, assim pensada, conseguiu ser o contraponto evangélico da sociedade civil. E foi contaminada com o espírito do autoritarismo, da mundanidade e da grandeza! Caiu na tentação de se impor às culturas, privilegiando uma cultura particular, a ponto de gerar a falsa identificação da Igreja Católica com a cultura europeia. Evangelizar significava catolicizar, europeizando, mesmo ao custo da destruição de ricas culturas seculares, como aconteceu com as culturas do Continente Latino-americano. Deixar de lado a eclesiologia da societas perfecta constituiu-se num passo importante para a construção de uma visão de igreja condizente com o querer do Mestre Jesus. Entretanto, a maioria dos padres conciliares tinha sido formada na eclesiologia, até então, em voga e seu horizonte teológico era demasiado curto para compreender a real dimensão da definição da Igreja como Povo de Deus e tirar dela todas as consequências ministeriais, sacramentais e jurídico-institucionais. Uma minoria deve ter feito passar uma novidade revolucionária, abraçada pela maioria sem a devida disposição para colher os melhores frutos desse sopro do Espírito. 1 Professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia-FAJE, em Belo Horizonte-MG. E-mail: [email protected] 2 Resultou que o próprio documento conciliar, Lumen Gentium, padece de terrível incongruência ao dedicar o capítulo III ao tema da constituição hierárquica da Igreja, com especial atenção ao episcopado. Ou seja, pensou a Igreja a partir das cúpulas, ao invés de partir das bases, constituída pelo Povo. O esquema vertical permaneceu e foi reforçado. A eclesiologia piramidal ficou intocada, incapaz de encarnar a novidade representada pela imagem de Povo de Deus. Donde a afirmação incompatível com o conteúdo do capítulo II: “Os Apóstolos cuidaram de instituir sucessores nesta sociedade hierarquicamente ordenada” (LG 20). O termo hierarquia carece de fundamento evangélico, pois Jesus desarticulou os esquemas mundanos ao introduzir uma concepção totalmente nova de autoridade e seu exercício, no âmbito da comunidade dos discípulos do Reino. O maior dever ser o que serve; o primeiro deve ser o servo, seguindo o exemplo do Mestre, que “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em favor de muitos” (Mt 20,26-28). A fraternidade seria o fundamento das relações na comunidade. “Todos vós sois irmãos” (Mt 23,8) descreve a relação na Igreja, novo Povo de Deus. Aí não tem lugar para hierarquia. A grandeza é a do amor misericordioso. A mentalidade hierárquica, infelizmente, impera em nossa Igreja, sem sinais de que será banida. Este espírito antievangélico, materializado no carreirismo, na busca de grandeza, na pouca solidariedade com os pobres, nas liturgias pomposas e na mundanidade está bem vivo e atuante, mesmo na América Latina, onde as teologias mais fecundas do Vaticano II foram recebidas e inculturadas, em importantes assembleias gerais do episcopado latino-americano. Nas últimas décadas, toma corpo, de forma acintosa, uma mentalidade contrária às inspirações melhores do Vaticano II, não faltando quem chegue a considerá-lo como maléfico à Igreja, por ter aberto as portas para a divisão, a desobediência, enfim, para o desmonte da unidade – confundida como uniformidade – da Igreja pré-conciliar, com suas normas e ritos iguais em todo mundo. As suspeitas levantadas contra o Vaticano II minam pelas bases suas intuições eclesiológicas mais ricas, entre elas, a visão de Igreja Povo de Deus, com tudo quanto decorre do pensá-la para além da hierarquia e do esquema piramidal, característico da societas perfecta. A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, sem dúvida o principal documento do Papa Francisco, contém elementos importantes para repensarmos a Igreja como Povo de Deus, em sintonia com o Vaticano II. As pistas oferecidas por Francisco permitem-nos atualizar a semântica do tema conciliar, numa quadra histórica decisiva da Igreja, onde está em jogo sua credibilidade evangélica e, mais radicalmente, sua razão de ser. Uma Igreja que deixou de ser “sal da terra” e “luz do mundo”, como diz o evangelho, não serve para nada, senão para ser jogada fora e ser pisada pelos homens 3 (cf. Mt 5,13). É perceptível o esforço de Francisco no sentido de ajudar a Igreja a retomar o bom caminho do Evangelho, nos passos do Mestre Jesus. Sem a pretensão de ser exaustivos, explicitaremos alguns elementos da categoria Povo de Deus, presentes no documento papal. 1. Povo de Deus alegre e irradiador de alegria. Alegria é a característica do Povo de Deus em contínua vivência da missão. Trata-se da alegria do testemunho da fé, do anúncio da salvação, do saber-se amado e salvo por Deus. Portanto, a alegria resulta de um estilo de vida e não algo buscado em si mesmo. O Povo de Deus é alegre porque evangeliza. E evangeliza na alegria! É como se fosse um círculo que vai da evangelização à alegria e da alegria à evangelização. “Um evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral” (EG 10). E, menos ainda, cultivar a tristeza, a rigidez, o moralismo, a intransigência e outras atitudes que matam a alegria no coração do Povo de Deus. Antes, somos convidados “à revolução da ternura” (EG 88). 2. Povo de Deus à escuta da Palavra de seu Senhor e pronto a se deixar guiar por ela, que o torna Povo de discípulos missionários. Um sério risco do Povo de Deus, em seu longo percurso histórico, consistiu em deixar de lado a Palavra de seu Deus e Senhor, trocada por elementos secundários, alçados à esfera de temas fundamentais por seus líderes. Francisco chama a atenção de quem “fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus” (EG 38). A homilia, no contexto da liturgia eucarística, é um momento oportuno de “diálogo de Deus com o seu povo” (EG 137), na esperança de a Palavra produzir os frutos esperados. Daí ser preciso cuidar para que “a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para que o Senhor brilhe mais que o ministro” (EG 138). 3. Povo de Deus missionário, capaz de anunciar a salvação até os confins da terra. Francisco criou um neologismo “premeireiar”, no sentido de “tomar iniciativa”, “ir à frente, tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos” (EG 24). Denuncia-se, assim, a acomodação à espera de que as pessoas venham, sem o esforço de ir-lhes ao encontro. Na Igreja “em saída”, comunidade de discípulos missionários, “os evangelizadores contraem o ‘cheiro de ovelha' e estas escutam a sua voz” (EG 24). É a Igreja que sabe “envolver-se”, por se deixar afetar pelos pobres e sofredores desse mundo (EG 24). A comunidade acomodada torna-se indigna do Mestre Jesus, cujo testemunho de vida foi todo tecido de busca da ovelha perdida, para trazê-la de volta ao rebanho. Para Francisco, “hoje mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que conheçam, a partir da sua experiência de acompanhamento, o modo de proceder onde reine a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de esperar, a docilidade ao Espírito, para, no meio de todos, defender as ovelhas a 4 nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho” (EG 171). Portanto, o templo não é o lugar onde vive o Povo de Deus. E, sim, as estradas empoeiradas do mundo, por onde segue os passos do Mestre Jesus. Referindose à Conferência de Aparecida, Francisco recorda que “‘não podemos ficar tranquilos, em espera passiva, em nossos templos’, sendo necessário passar ‘de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária’” (EG 15). 4. Povo de Deus em contínua conversão para não cair no risco da idolatria e do fechar-se em si mesmo. Converter-se significa voltar-se continuamente para Deus e redescobrir o sentido da fidelidade ao Senhor do Povo. Este movimento se faz necessário pelas tentações de se desviar do caminho do Senhor e seguir na contramão de seu projeto, com o risco de deixar de ser Povo de Deus. Francisco fala em “conversão pastoral e missionária” (EG 25), pois um sinal de infidelidade pode consistir na acomodação e na repetição de esquemas ultrapassados, que “deixa as coisas como estão” (EG 25) sem se perguntar pela sua relevância num mundo complicado aonde a evangelização acontece. A conversão pastoral consiste em fazer com que todas as estruturas da Igreja “se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de ‘saída’ e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade” (EG 27). Este processo de conversão é “inadiável” (EG 27). Eis porque cada Igreja particular é convidada “a entrar decididamente num processo de discernimento, purificação e reforma” (EG 30). 5. Povo de Deus não engessado por estruturas monolíticas imutáveis, indiferentes à ação do Espírito Santo, que renova a face da terra. Um grande risco de qualquer instituição consiste em se enrijecer, a ponto de se fechar a qualquer questionamento, no sentido de colocá-la em dia com o mundo. Uma palavra chave do Vaticano II foi aggiornamento. Durante certo tempo, esta palavra funcionou como consigna da recepção do Concílio. A Igreja era desafiada a se reconciliar com a história, para não andar a reboque dos fatos. Depois de uma primavera conciliar, assistimos a volta de tendências conservadoras, encarnadas por grupos e movimentos e abraçadas por largas faixas de jovens católicos, inclusive seminaristas. Francisco reconhece que pode haver “estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo evangelizador” e, portanto, devem ser repensadas como sinal de “fidelidade da Igreja à própria vocação” (EG 26). Tudo quanto favoreça a vocação missionária do Povo de Deus deverá se valorizado. Pelo contrário, tudo quanto bloqueie ou dificulte seu dinamismo missionário deverá ser repensado. As estruturas histórico-conjunturais da Igreja não podem ser absolutizadas e defendidas a 5 todo custo. Elas estão ao serviço da ação evangelizadora do Povo de Deus e como tal devem ser pensadas. 6. Povo de Deus liderado por pastores-servos, prontos a dar a vida por suas ovelhas, superando a tentação do carreirismo e das mundanidades. O tema da Igreja-Povo de Deus levanta necessariamente a questão de sua liderança. Sem pessoas que o guiem, com toda certeza, se dispersará e se descaracterizará enquanto povo. O grande desafio consiste em encontrar líderes que sejam verdadeiros pastores, inteiramente dedicados ao serviço do Povo, no desejo de ajudá-lo no processo de crescimento como Povo missionário, continuador da missão do Mestre Jesus. Uma tarefa fundamental dos pastores será a de animar o Povo de Deus “em todo lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres” (EG 191), ou seja, motivá-lo ao compromisso social para a transformação do mundo, na caridade. Trata-se, pois, da liderança para o serviço da caridade. A guia dos pastores, “num discernimento pastoral sábio e realista”, permite ao Povo de Deus “não caminhar sozinho, mas ter sempre em conta os irmãos” (EG 33). Francisco desafia os pastores, juntamente com os teólogos, a pensarem no “possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja” (EG 104). Discretamente, ele reconhece a anomalia de as mulheres serem postas de lado quando se trata de pensar e decidir o que diz respeito ao Povo de Deus. Em outras palavras, o machismo não combina com a concepção de Igreja Povo de Deus, onde todos os membros têm igual dignidade e responsabilidade, por força do compromisso batismal. 7. Povo de Deus de coração aberto para acolher a todos e a todas sem distinção. Francisco define a Igreja com uma metáfora muito sugestiva, a da “mãe de coração aberto”, “com as portas abertas” para chegar “às periferias humanas”, para acolher e acompanhar “quem ficou caído à beira do caminho”, “como o pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade” (EG 46). De certo modo, o Papa denuncia um modelo de Igreja discriminadora, legalista e implacável com quem não se enquadra em seus esquemas inquestionáveis. Uma Igreja desumanizada, desumana e desumanizadora, exatamente o contrário do que Jesus desejou. Numa entrevista dada às revistas jesuítas europeias, Francisco serve-se de uma imagem magistral para falar da Igreja. “Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... E é necessário começar de baixo”. Falando numa missa, na Casa Santa Marta, à qual assistiam funcionários do Banco do Vaticano, o Papa afirmou: “Quando a Igreja quer se vangloriar da 6 sua quantidade e cria organizações, escritórios e se torna um pouco burocrática, a Igreja perde a sua principal substância, e corre o perigo de se transformar numa organização não-governamental, numa ong. E a Igreja não é uma ong. É uma história de amor... Os escritórios são necessários, mas até um certo ponto: o importante é como ajudo esta história de amor. Mas quando a organização fica em primeiro lugar, o amor desaparece e a Igreja, coitada, se torna uma ong. E este não é o caminho”. Outra imagem sugestiva, presente na Exortação Apostólica: “A Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa” (EG 47). E os pobres devem ocupar um lugar especial na preocupação do Povo de Deus. “Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!” (EG 48). 8. Povo de Deus que vive as contradições da história, pondo sempre a confiança no Senhor – Uma afirmação de Francisco chama a atenção na Exortação Apostólica: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos” (EG 49). As palavras do Papa denunciam uma tendência forte em nossa Igreja, negação de sua vocação a ser Povo de Deus. “Nalguns, há um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa possessão de poucos. Noutros, o próprio mundanismo espiritual esconde-se por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas sociais e políticas, ou numa vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, ou numa atração pelas dinâmicas de autoestima e de realização autoreferencial. Também se pode traduzir em várias formas de se apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida social cheia de viagens, reuniões, jantares, recepções. Ou então se desdobra num funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde o principal beneficiário não é o povo de Deus, mas a Igreja como organização. Em qualquer um dos casos, não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma autocomplacência egocêntrica” (EG 95). São palavras fortes a exigirem discernimento e que não podem se perder no emaranhado de apelos provindos de uma cultura, muitas vezes, avessa aos apelos do Evangelho. 9. Povo de Deus que enfrenta os desafios da missão evangelizadora, sem se deixar bloquear pela grandiosidade dos problemas da Igreja e da Humanidade a 7 serem discernidos, por ser um Povo inculturado. O Papa se detém a enumerar as muitas tentações do Povo de Deus, na pessoa dos “agentes pastorais”, no contexto da “cultura globalizada atual” (cf. EG 76-109). “Filhos desta época, todos estamos de algum modo sob o influxo da cultura globalizada atual, que, sem deixar de apresentar valores e novas possibilidades, pode também limitarnos, condicionar-nos e até mesmo combalir-nos” (EG 77). Entre os muitos desafios – tentações – a serem enfrentados, o Papa destaca o risco de se perder o entusiasmo missionário e a capacidade de testemunhar o Evangelho com alegria. Daí o apelo: “Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização” (EG 83). Outro desafio é o de se deixar levar pelo “pessimismo estéril”, que destrói a esperança e limita os horizontes do evangelizador. Outro, ainda, é o isolamento, pelo qual se perde o sentido da comunidade e da eclesialidade. Fugir da comunidade e dos outros, em última instância, consiste em fugir de Deus. Por isso, “a solução nunca consistirá em escapar de uma relação pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo tempo nos comprometa com os outros” (EG 91). Francisco alerta, também, contra o “mundanismo espiritual”, presente no gnosticismo, no subjetivismo, no neopelagianismo, no elitismo narcísico e autoritário, no imanentismo antropocêntrico (cf. EG 93-94). A sede de poder é, igualmente, um sério risco para a missão evangelizadora do Povo de Deus. Existem aqueles que “se contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados antes que simples soldados de um batalhão que continua a lutar” (EG 96). São pessoas que se contentam com dar ordem, consideram-se iluminados, cultivam uma “imaginação sem limites”, porém, perdem “o contato com a dolorosa realidade do nosso povo fiel” (EG 96). Outro grande desafio são as “guerras” interpessoais. “Dói-me muito comprovar como em algumas comunidades cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas, se dá espaço a várias formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme, a desejos de impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes comportamentos?” é a questão que Francisco coloca para o Povo de Deus (EG 100). O “ideal do amor fraterno” deve ser cultivado a todo custo. 10. Povo de Deus pobre e para os pobres, seguindo os passos do Mestre Jesus e seu testemunho de solidariedade com os empobrecidos e marginalizados. Jesus “se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados”; seu exemplo deve gerar “a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais abandonados da sociedade” (EG 186). “Toda a vida de Jesus, sua forma de tratar os pobres, seus gestos, sua coerência, sua generosidade simples e cotidiana e, finalmente, sua total dedicação, tudo é precioso e fala à nossa vida pessoal” (EG 265). Não se pode fechar os ouvidos ao “clamor dos pobres”; isto é um “imperativo” (EG 193; cf. 187; 191). Daí “o lugar privilegiado dos pobres 8 no povo de Deus” (EG 197). Donde o anseio do Papa Francisco: “Desejo uma Igreja para os pobres” (EG 198). No início do pontificado, falando numa audiência geral para jornalistas, o Papa declarou: “Como eu gostaria de ter uma Igreja pobre para os pobres”. Este anseio profundo é reafirmado na EG 198. A escolha de seu nome como Papa tem aí sua origem, ao ouvir de um cardeal franciscano brasileiro, presente no conclave para a eleição do novo papa, uma espécie de advertência: “Não se esqueça dos pobres!” Em última análise, o Papa se vê diante de um desafio profético de fazer a misericórdia brilhar no rosto do Povo de Deus. 11. Povo de Deus construtor da paz, que rejeita as guerras e todo tipo de violência que avilta a humanidade e penaliza os mais pobres. O Povo de Deus caminha na contramão da violência. “Enquanto no mundo, especialmente, em alguns países, reacendem-se várias formas de guerras e conflitos, nós, cristãos, insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar as feridas, de construir pontes, de estreitar lações e de nos ajudarmos ‘a carregar as cargas uns dos outros’ (Gl 6,2)” (EG 67). Cabe-nos dar “um testemunho de comunhão fraterna, que se torne fascinante e resplandecente” (EG 99). Porém, “uma paz que não surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não terá futuro e será sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência” (EG 219). Portanto, a construção da paz começa com o empenho de colaborar com o desenvolvimento de todas as pessoas, sem exclusão nem privilégios. Assim, a paz não se define, apenas, como ausência de guerra. É muito mais! O diálogo abre caminho para a construção da paz. 12. Povo de Deus aberto para as culturas, as quais devem compreender, como condição para realizar sua missão evangelizadora. As culturas são sempre um desafio para o Povo de Deus, de modo especial, a “cultura globalizada atual” (EG 76; 77). Cultura é “o estilo de vida que uma determinada sociedade possui, de forma peculiar que têm os seus membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus” (EG 115). Assim, existem culturas onde o diálogo e a inserção acontecerão com mais dificuldade, como é o caso de lugares onde acontecem “verdadeiros ataques à liberdade religiosa ou em novas situações de perseguição aos cristãos, que, em algum países, atingiram níveis alarmantes de ódio e violência” (EG 61). Entretanto, muitos elementos da cultura moderna dificultam o processo de inserção do Povo do Deus nas diferentes realidades. Entre eles, se destacam: “o individualismo pós-moderno e globalizado” (EG 67), o “secularismo” (EG 68), o “relativismo” (EG 64), a “cultura do bem-estar” (EG 54), a “cultura do descartável” (EG 53), a “cultura midiática” (EG 79), “culturas profissionais, científicas e acadêmicas” (EG 132) etc. A isto se deve contrapor a “cultura dos simples” (EG 124) e a “cultura do encontro” (EG 220), promotoras de humanidade e construtoras da dignidade humana. Porém, o Povo de Deus não pode “pensar num cristianismo monocultural e monocórdico” (EG 117), 9 incompatível com a lógica da encarnação, que engloba a totalidade do humano, sem qualquer tipo de exclusão. “É indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da redenção de Cristo” (EG 118). Conclusão A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium oferece-nos indicações preciosas para a compreensão da categoria eclesiológica Povo de Deus, presente na Lumen Gentium. O Povo de Deus assume variados rostos, dependendo do tempo e do lugar onde a Igreja se concretiza. Não basta defini-lo e caracterizá-lo teoricamente, por se tratar de uma categoria dinâmica, em contínua mutação e recriação histórica. O documento do Papa Francisco ajuda-nos a pensar o Povo de Deus como Povo missionário, inserido nas tramas da história, com suas contradições e desafios. Um Povo sempre em saída, que “primeireia” no serviço à humanidade sofredora, à qual anuncia a alegria do Evangelho da libertação e se empenha para que o Reino de Deus aconteça como “germe firmíssimo de unidade, esperança e salvação” (LG 9).