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O Papa Francisco e os rostos do “Povo de Deus”,
na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium
Jaldemir Vitório SJ1
O Concílio Vaticano II recuperou um elemento importante da eclesiologia
neotestamentária que fala da Igreja como Povo de Deus. O capítulo II da Lumen
Gentium detém-se nessa imagem evocadora da longa tradição do Povo de Israel, com
sua história de fidelidade e infidelidade, e do ministério de Jesus, em seu esforço de
voltar às raízes da fé de seu povo, num movimento de continuidade, ruptura e
superação. “Foi Cristo quem instituiu esta nova aliança, isto é, o novo testamento em
seu sangue (cf. 1 Cor 11,25), chamando de entre judeus e gentios um povo, que junto
crescesse para a unidade, não segundo a carne, mas no Espírito, e fosse o novo Povo
de Deus” (LG 9), declaram os padres conciliares.
A vocação à universalidade é uma marca desse Povo. “Todos os homens são
chamados a pertencer ao novo Povo de Deus. Por isso este povo, permanecendo uno e
único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os tempos, para que se cumpra o
desígnio da vontade Deus” (LG 13). A catolicidade do Povo de Deus traz a marca da
comunhão e da unidade, garantidas pela ação do Espírito de Cristo que, de muitos,
gera um só povo.
A novidade do Vaticano II consistiu em superar a concepção da Igreja societas
perfecta, com ênfase maior na dimensão sócio-política mais que na teológicoespiritual. Nem sempre a Igreja, assim pensada, conseguiu ser o contraponto
evangélico da sociedade civil. E foi contaminada com o espírito do autoritarismo, da
mundanidade e da grandeza! Caiu na tentação de se impor às culturas, privilegiando
uma cultura particular, a ponto de gerar a falsa identificação da Igreja Católica com a
cultura europeia. Evangelizar significava catolicizar, europeizando, mesmo ao custo da
destruição de ricas culturas seculares, como aconteceu com as culturas do Continente
Latino-americano. Deixar de lado a eclesiologia da societas perfecta constituiu-se num
passo importante para a construção de uma visão de igreja condizente com o querer
do Mestre Jesus.
Entretanto, a maioria dos padres conciliares tinha sido formada na eclesiologia,
até então, em voga e seu horizonte teológico era demasiado curto para compreender
a real dimensão da definição da Igreja como Povo de Deus e tirar dela todas as
consequências ministeriais, sacramentais e jurídico-institucionais. Uma minoria deve
ter feito passar uma novidade revolucionária, abraçada pela maioria sem a devida
disposição para colher os melhores frutos desse sopro do Espírito.
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Professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia-FAJE, em Belo Horizonte-MG. E-mail:
[email protected]
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Resultou que o próprio documento conciliar, Lumen Gentium, padece de
terrível incongruência ao dedicar o capítulo III ao tema da constituição hierárquica da
Igreja, com especial atenção ao episcopado. Ou seja, pensou a Igreja a partir das
cúpulas, ao invés de partir das bases, constituída pelo Povo. O esquema vertical
permaneceu e foi reforçado. A eclesiologia piramidal ficou intocada, incapaz de
encarnar a novidade representada pela imagem de Povo de Deus. Donde a afirmação
incompatível com o conteúdo do capítulo II: “Os Apóstolos cuidaram de instituir
sucessores nesta sociedade hierarquicamente ordenada” (LG 20). O termo hierarquia
carece de fundamento evangélico, pois Jesus desarticulou os esquemas mundanos ao
introduzir uma concepção totalmente nova de autoridade e seu exercício, no âmbito
da comunidade dos discípulos do Reino. O maior dever ser o que serve; o primeiro
deve ser o servo, seguindo o exemplo do Mestre, que “não veio para ser servido, mas
para servir e dar a vida em favor de muitos” (Mt 20,26-28). A fraternidade seria o
fundamento das relações na comunidade. “Todos vós sois irmãos” (Mt 23,8) descreve
a relação na Igreja, novo Povo de Deus. Aí não tem lugar para hierarquia. A grandeza é
a do amor misericordioso.
A mentalidade hierárquica, infelizmente, impera em nossa Igreja, sem sinais de
que será banida. Este espírito antievangélico, materializado no carreirismo, na busca
de grandeza, na pouca solidariedade com os pobres, nas liturgias pomposas e na
mundanidade está bem vivo e atuante, mesmo na América Latina, onde as teologias
mais fecundas do Vaticano II foram recebidas e inculturadas, em importantes
assembleias gerais do episcopado latino-americano. Nas últimas décadas, toma corpo,
de forma acintosa, uma mentalidade contrária às inspirações melhores do Vaticano II,
não faltando quem chegue a considerá-lo como maléfico à Igreja, por ter aberto as
portas para a divisão, a desobediência, enfim, para o desmonte da unidade –
confundida como uniformidade – da Igreja pré-conciliar, com suas normas e ritos
iguais em todo mundo.
As suspeitas levantadas contra o Vaticano II minam pelas bases suas intuições
eclesiológicas mais ricas, entre elas, a visão de Igreja Povo de Deus, com tudo quanto
decorre do pensá-la para além da hierarquia e do esquema piramidal, característico da
societas perfecta.
A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, sem dúvida o principal documento
do Papa Francisco, contém elementos importantes para repensarmos a Igreja como
Povo de Deus, em sintonia com o Vaticano II. As pistas oferecidas por Francisco
permitem-nos atualizar a semântica do tema conciliar, numa quadra histórica decisiva
da Igreja, onde está em jogo sua credibilidade evangélica e, mais radicalmente, sua
razão de ser. Uma Igreja que deixou de ser “sal da terra” e “luz do mundo”, como diz o
evangelho, não serve para nada, senão para ser jogada fora e ser pisada pelos homens
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(cf. Mt 5,13). É perceptível o esforço de Francisco no sentido de ajudar a Igreja a
retomar o bom caminho do Evangelho, nos passos do Mestre Jesus.
Sem a pretensão de ser exaustivos, explicitaremos alguns elementos da
categoria Povo de Deus, presentes no documento papal.
1. Povo de Deus alegre e irradiador de alegria. Alegria é a característica do Povo
de Deus em contínua vivência da missão. Trata-se da alegria do testemunho da
fé, do anúncio da salvação, do saber-se amado e salvo por Deus. Portanto, a
alegria resulta de um estilo de vida e não algo buscado em si mesmo. O Povo
de Deus é alegre porque evangeliza. E evangeliza na alegria! É como se fosse
um círculo que vai da evangelização à alegria e da alegria à evangelização. “Um
evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral” (EG 10). E,
menos ainda, cultivar a tristeza, a rigidez, o moralismo, a intransigência e
outras atitudes que matam a alegria no coração do Povo de Deus. Antes, somos
convidados “à revolução da ternura” (EG 88).
2. Povo de Deus à escuta da Palavra de seu Senhor e pronto a se deixar guiar por
ela, que o torna Povo de discípulos missionários. Um sério risco do Povo de
Deus, em seu longo percurso histórico, consistiu em deixar de lado a Palavra de
seu Deus e Senhor, trocada por elementos secundários, alçados à esfera de
temas fundamentais por seus líderes. Francisco chama a atenção de quem “fala
mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que
da Palavra de Deus” (EG 38). A homilia, no contexto da liturgia eucarística, é um
momento oportuno de “diálogo de Deus com o seu povo” (EG 137), na
esperança de a Palavra produzir os frutos esperados. Daí ser preciso cuidar
para que “a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para que o
Senhor brilhe mais que o ministro” (EG 138).
3. Povo de Deus missionário, capaz de anunciar a salvação até os confins da terra.
Francisco criou um neologismo “premeireiar”, no sentido de “tomar iniciativa”,
“ir à frente, tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados
e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos” (EG 24).
Denuncia-se, assim, a acomodação à espera de que as pessoas venham, sem o
esforço de ir-lhes ao encontro. Na Igreja “em saída”, comunidade de discípulos
missionários, “os evangelizadores contraem o ‘cheiro de ovelha' e estas
escutam a sua voz” (EG 24). É a Igreja que sabe “envolver-se”, por se deixar
afetar pelos pobres e sofredores desse mundo (EG 24). A comunidade
acomodada torna-se indigna do Mestre Jesus, cujo testemunho de vida foi todo
tecido de busca da ovelha perdida, para trazê-la de volta ao rebanho. Para
Francisco, “hoje mais do que nunca precisamos de homens e mulheres que
conheçam, a partir da sua experiência de acompanhamento, o modo de
proceder onde reine a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de
esperar, a docilidade ao Espírito, para, no meio de todos, defender as ovelhas a
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nós confiadas dos lobos que tentam desgarrar o rebanho” (EG 171). Portanto, o
templo não é o lugar onde vive o Povo de Deus. E, sim, as estradas
empoeiradas do mundo, por onde segue os passos do Mestre Jesus. Referindose à Conferência de Aparecida, Francisco recorda que “‘não podemos ficar
tranquilos, em espera passiva, em nossos templos’, sendo necessário passar ‘de
uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente
missionária’” (EG 15).
4. Povo de Deus em contínua conversão para não cair no risco da idolatria e do
fechar-se em si mesmo. Converter-se significa voltar-se continuamente para
Deus e redescobrir o sentido da fidelidade ao Senhor do Povo. Este movimento
se faz necessário pelas tentações de se desviar do caminho do Senhor e seguir
na contramão de seu projeto, com o risco de deixar de ser Povo de Deus.
Francisco fala em “conversão pastoral e missionária” (EG 25), pois um sinal de
infidelidade pode consistir na acomodação e na repetição de esquemas
ultrapassados, que “deixa as coisas como estão” (EG 25) sem se perguntar pela
sua relevância num mundo complicado aonde a evangelização acontece. A
conversão pastoral consiste em fazer com que todas as estruturas da Igreja “se
tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias
seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude
constante de ‘saída’ e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a
quem Jesus oferece a sua amizade” (EG 27). Este processo de conversão é
“inadiável” (EG 27). Eis porque cada Igreja particular é convidada “a entrar
decididamente num processo de discernimento, purificação e reforma” (EG
30).
5. Povo de Deus não engessado por estruturas monolíticas imutáveis,
indiferentes à ação do Espírito Santo, que renova a face da terra. Um grande
risco de qualquer instituição consiste em se enrijecer, a ponto de se fechar a
qualquer questionamento, no sentido de colocá-la em dia com o mundo. Uma
palavra chave do Vaticano II foi aggiornamento. Durante certo tempo, esta
palavra funcionou como consigna da recepção do Concílio. A Igreja era
desafiada a se reconciliar com a história, para não andar a reboque dos fatos.
Depois de uma primavera conciliar, assistimos a volta de tendências
conservadoras, encarnadas por grupos e movimentos e abraçadas por largas
faixas de jovens católicos, inclusive seminaristas. Francisco reconhece que pode
haver “estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo
evangelizador” e, portanto, devem ser repensadas como sinal de “fidelidade da
Igreja à própria vocação” (EG 26). Tudo quanto favoreça a vocação missionária
do Povo de Deus deverá se valorizado. Pelo contrário, tudo quanto bloqueie ou
dificulte seu dinamismo missionário deverá ser repensado. As estruturas
histórico-conjunturais da Igreja não podem ser absolutizadas e defendidas a
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todo custo. Elas estão ao serviço da ação evangelizadora do Povo de Deus e
como tal devem ser pensadas.
6. Povo de Deus liderado por pastores-servos, prontos a dar a vida por suas
ovelhas, superando a tentação do carreirismo e das mundanidades. O tema da
Igreja-Povo de Deus levanta necessariamente a questão de sua liderança. Sem
pessoas que o guiem, com toda certeza, se dispersará e se descaracterizará
enquanto povo. O grande desafio consiste em encontrar líderes que sejam
verdadeiros pastores, inteiramente dedicados ao serviço do Povo, no desejo de
ajudá-lo no processo de crescimento como Povo missionário, continuador da
missão do Mestre Jesus. Uma tarefa fundamental dos pastores será a de
animar o Povo de Deus “em todo lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos
pobres” (EG 191), ou seja, motivá-lo ao compromisso social para a
transformação do mundo, na caridade. Trata-se, pois, da liderança para o
serviço da caridade. A guia dos pastores, “num discernimento pastoral sábio e
realista”, permite ao Povo de Deus “não caminhar sozinho, mas ter sempre em
conta os irmãos” (EG 33). Francisco desafia os pastores, juntamente com os
teólogos, a pensarem no “possível lugar das mulheres onde se tomam decisões
importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja” (EG 104). Discretamente, ele
reconhece a anomalia de as mulheres serem postas de lado quando se trata de
pensar e decidir o que diz respeito ao Povo de Deus. Em outras palavras, o
machismo não combina com a concepção de Igreja Povo de Deus, onde todos
os membros têm igual dignidade e responsabilidade, por força do compromisso
batismal.
7. Povo de Deus de coração aberto para acolher a todos e a todas sem distinção.
Francisco define a Igreja com uma metáfora muito sugestiva, a da “mãe de
coração aberto”, “com as portas abertas” para chegar “às periferias humanas”,
para acolher e acompanhar “quem ficou caído à beira do caminho”, “como o
pai do filho pródigo, que continua com as portas abertas para, quando este
voltar, poder entrar sem dificuldade” (EG 46). De certo modo, o Papa denuncia
um modelo de Igreja discriminadora, legalista e implacável com quem não se
enquadra em seus esquemas inquestionáveis. Uma Igreja desumanizada,
desumana e desumanizadora, exatamente o contrário do que Jesus desejou.
Numa entrevista dada às revistas jesuítas europeias, Francisco serve-se de uma
imagem magistral para falar da Igreja. “Vejo com clareza que aquilo de que a
Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o
coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha
depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol
ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de
todo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... E é necessário começar de
baixo”. Falando numa missa, na Casa Santa Marta, à qual assistiam funcionários
do Banco do Vaticano, o Papa afirmou: “Quando a Igreja quer se vangloriar da
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sua quantidade e cria organizações, escritórios e se torna um pouco
burocrática, a Igreja perde a sua principal substância, e corre o perigo de se
transformar numa organização não-governamental, numa ong. E a Igreja não é
uma ong. É uma história de amor... Os escritórios são necessários, mas até um
certo ponto: o importante é como ajudo esta história de amor. Mas quando a
organização fica em primeiro lugar, o amor desaparece e a Igreja, coitada, se
torna uma ong. E este não é o caminho”. Outra imagem sugestiva, presente na
Exortação Apostólica: “A Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há
lugar para todos com a sua vida fadigosa” (EG 47). E os pobres devem ocupar
um lugar especial na preocupação do Povo de Deus. “Há que afirmar sem
rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os
deixemos jamais sozinhos!” (EG 48).
8. Povo de Deus que vive as contradições da história, pondo sempre a confiança
no Senhor – Uma afirmação de Francisco chama a atenção na Exortação
Apostólica: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído
pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se
agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o
centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos”
(EG 49). As palavras do Papa denunciam uma tendência forte em nossa Igreja,
negação de sua vocação a ser Povo de Deus. “Nalguns, há um cuidado
exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se
preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e
nas necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja transforma-se
numa peça de museu ou numa possessão de poucos. Noutros, o próprio
mundanismo espiritual esconde-se por detrás do fascínio de poder mostrar
conquistas sociais e políticas, ou numa vanglória ligada à gestão de assuntos
práticos, ou numa atração pelas dinâmicas de autoestima e de realização
autoreferencial. Também se pode traduzir em várias formas de se apresentar a
si mesmo envolvido numa densa vida social cheia de viagens, reuniões,
jantares, recepções. Ou então se desdobra num funcionalismo empresarial,
carregado de estatísticas, planificações e avaliações, onde o principal
beneficiário não é o povo de Deus, mas a Igreja como organização. Em
qualquer um dos casos, não traz o selo de Cristo encarnado, crucificado e
ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos
que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há
ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma autocomplacência egocêntrica” (EG
95). São palavras fortes a exigirem discernimento e que não podem se perder
no emaranhado de apelos provindos de uma cultura, muitas vezes, avessa aos
apelos do Evangelho.
9. Povo de Deus que enfrenta os desafios da missão evangelizadora, sem se
deixar bloquear pela grandiosidade dos problemas da Igreja e da Humanidade a
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serem discernidos, por ser um Povo inculturado. O Papa se detém a enumerar
as muitas tentações do Povo de Deus, na pessoa dos “agentes pastorais”, no
contexto da “cultura globalizada atual” (cf. EG 76-109). “Filhos desta época,
todos estamos de algum modo sob o influxo da cultura globalizada atual, que,
sem deixar de apresentar valores e novas possibilidades, pode também limitarnos, condicionar-nos e até mesmo combalir-nos” (EG 77). Entre os muitos
desafios – tentações – a serem enfrentados, o Papa destaca o risco de se
perder o entusiasmo missionário e a capacidade de testemunhar o Evangelho
com alegria. Daí o apelo: “Não deixemos que nos roubem a alegria da
evangelização” (EG 83). Outro desafio é o de se deixar levar pelo “pessimismo
estéril”, que destrói a esperança e limita os horizontes do evangelizador. Outro,
ainda, é o isolamento, pelo qual se perde o sentido da comunidade e da
eclesialidade. Fugir da comunidade e dos outros, em última instância, consiste
em fugir de Deus. Por isso, “a solução nunca consistirá em escapar de uma
relação pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo tempo nos
comprometa com os outros” (EG 91). Francisco alerta, também, contra o
“mundanismo espiritual”, presente no gnosticismo, no subjetivismo, no
neopelagianismo, no elitismo narcísico e autoritário, no imanentismo
antropocêntrico (cf. EG 93-94). A sede de poder é, igualmente, um sério risco
para a missão evangelizadora do Povo de Deus. Existem aqueles que “se
contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos
derrotados antes que simples soldados de um batalhão que continua a lutar”
(EG 96). São pessoas que se contentam com dar ordem, consideram-se
iluminados, cultivam uma “imaginação sem limites”, porém, perdem “o contato
com a dolorosa realidade do nosso povo fiel” (EG 96). Outro grande desafio são
as “guerras” interpessoais. “Dói-me muito comprovar como em algumas
comunidades cristãs, e mesmo entre pessoas consagradas, se dá espaço a
várias formas de ódio, divisão, calúnia, difamação, vingança, ciúme, a desejos
de impor as próprias ideias a todo o custo, e até perseguições que parecem
uma implacável caça às bruxas. Quem queremos evangelizar com estes
comportamentos?” é a questão que Francisco coloca para o Povo de Deus (EG
100). O “ideal do amor fraterno” deve ser cultivado a todo custo.
10. Povo de Deus pobre e para os pobres, seguindo os passos do Mestre Jesus e
seu testemunho de solidariedade com os empobrecidos e marginalizados. Jesus
“se fez pobre e sempre se aproximou dos pobres e marginalizados”; seu
exemplo deve gerar “a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais
abandonados da sociedade” (EG 186). “Toda a vida de Jesus, sua forma de
tratar os pobres, seus gestos, sua coerência, sua generosidade simples e
cotidiana e, finalmente, sua total dedicação, tudo é precioso e fala à nossa vida
pessoal” (EG 265). Não se pode fechar os ouvidos ao “clamor dos pobres”; isto
é um “imperativo” (EG 193; cf. 187; 191). Daí “o lugar privilegiado dos pobres
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no povo de Deus” (EG 197). Donde o anseio do Papa Francisco: “Desejo uma
Igreja para os pobres” (EG 198). No início do pontificado, falando numa
audiência geral para jornalistas, o Papa declarou: “Como eu gostaria de ter uma
Igreja pobre para os pobres”. Este anseio profundo é reafirmado na EG 198. A
escolha de seu nome como Papa tem aí sua origem, ao ouvir de um cardeal
franciscano brasileiro, presente no conclave para a eleição do novo papa, uma
espécie de advertência: “Não se esqueça dos pobres!” Em última análise, o
Papa se vê diante de um desafio profético de fazer a misericórdia brilhar no
rosto do Povo de Deus.
11. Povo de Deus construtor da paz, que rejeita as guerras e todo tipo de violência
que avilta a humanidade e penaliza os mais pobres. O Povo de Deus caminha
na contramão da violência. “Enquanto no mundo, especialmente, em alguns
países, reacendem-se várias formas de guerras e conflitos, nós, cristãos,
insistimos na proposta de reconhecer o outro, de curar as feridas, de construir
pontes, de estreitar lações e de nos ajudarmos ‘a carregar as cargas uns dos
outros’ (Gl 6,2)” (EG 67). Cabe-nos dar “um testemunho de comunhão fraterna,
que se torne fascinante e resplandecente” (EG 99). Porém, “uma paz que não
surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não terá futuro e será
sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência” (EG 219).
Portanto, a construção da paz começa com o empenho de colaborar com o
desenvolvimento de todas as pessoas, sem exclusão nem privilégios. Assim, a
paz não se define, apenas, como ausência de guerra. É muito mais! O diálogo
abre caminho para a construção da paz.
12. Povo de Deus aberto para as culturas, as quais devem compreender, como
condição para realizar sua missão evangelizadora. As culturas são sempre um
desafio para o Povo de Deus, de modo especial, a “cultura globalizada atual”
(EG 76; 77). Cultura é “o estilo de vida que uma determinada sociedade possui,
de forma peculiar que têm os seus membros de se relacionar entre si, com as
outras criaturas e com Deus” (EG 115). Assim, existem culturas onde o diálogo
e a inserção acontecerão com mais dificuldade, como é o caso de lugares onde
acontecem “verdadeiros ataques à liberdade religiosa ou em novas situações
de perseguição aos cristãos, que, em algum países, atingiram níveis alarmantes
de ódio e violência” (EG 61). Entretanto, muitos elementos da cultura moderna
dificultam o processo de inserção do Povo do Deus nas diferentes realidades.
Entre eles, se destacam: “o individualismo pós-moderno e globalizado” (EG 67),
o “secularismo” (EG 68), o “relativismo” (EG 64), a “cultura do bem-estar” (EG
54), a “cultura do descartável” (EG 53), a “cultura midiática” (EG 79), “culturas
profissionais, científicas e acadêmicas” (EG 132) etc. A isto se deve contrapor a
“cultura dos simples” (EG 124) e a “cultura do encontro” (EG 220), promotoras
de humanidade e construtoras da dignidade humana. Porém, o Povo de Deus
não pode “pensar num cristianismo monocultural e monocórdico” (EG 117),
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incompatível com a lógica da encarnação, que engloba a totalidade do humano,
sem qualquer tipo de exclusão. “É indiscutível que uma única cultura não
esgota o mistério da redenção de Cristo” (EG 118).
Conclusão
A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium oferece-nos indicações preciosas
para a compreensão da categoria eclesiológica Povo de Deus, presente na Lumen
Gentium. O Povo de Deus assume variados rostos, dependendo do tempo e do lugar
onde a Igreja se concretiza. Não basta defini-lo e caracterizá-lo teoricamente, por se
tratar de uma categoria dinâmica, em contínua mutação e recriação histórica.
O documento do Papa Francisco ajuda-nos a pensar o Povo de Deus como Povo
missionário, inserido nas tramas da história, com suas contradições e desafios. Um
Povo sempre em saída, que “primeireia” no serviço à humanidade sofredora, à qual
anuncia a alegria do Evangelho da libertação e se empenha para que o Reino de Deus
aconteça como “germe firmíssimo de unidade, esperança e salvação” (LG 9).
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Os rostos do Povo de Deus