Do Transporte à Prestação de Serviços Estratégias Deliberadas e Emergentes via Abordagem Sistêmica Carlos Albert Amadeo Swaelen Sidnei Sousa Louro Rio de Janeiro 2006 1. Introdução Qualquer passageiro de ponte aérea sabe muito bem que a literatura sobre estratégia é farta nas bancas de revistas dos aeroportos. Os livros sobre casos de sucesso e de relatos prescritivos de executivos ousados tomam várias prateleiras. A impressão que se tem é que qualquer um pode se transformar num expert, principalmente se o texto tiver sido produzido por um “guru” da área. Não é bem assim. Segundo Whittington (2001:1), “algo é basicamente implausível nestes livros. Se os segredos da estratégia corporativa pudessem ser adquiridos por US$ 50,00, não precisaríamos pagar um salário tão alto aos gerentes executivos”. Por outro lado, não é preciso ser um profundo estudioso, ou um pós-graduado em administração, para ser capaz de praticar estratégia. Em termos práticos, “estratégia” é um conceito inerente à vida sendo, portanto, utilizada e vivenciada nas mais diversas dimensões de nossa existência, e não só no âmbito profissional. No entanto, tanto o leitor pragmático de aeroporto quanto o estudioso em estratégia podem entender as metanarrativas atuais e obter melhores resultados em seus objetivos se conhecerem a origem e a evolução da área ao longo dos últimos anos. A história da estratégia, desde de que foi apresentada ao mundo dos negócios na década de 60, até os dias de hoje, teve uma evolução dramática e suas dimensões atuais são infinitamente mais abrangentes e complexas. Portanto, a fim de facilitar o entendimento da evolução do conceito de estratégia, dividimos este artigo em 4 partes: 1. Análise da área de estratégia em termos de histórico, fundamentos e relevância; 2. Tipificação do padrão de formação das estratégias, tomando por base os conceitos de estratégias deliberadas e emergentes, propostos por Henry Mintzberg; 3. Análise da área de estratégia sob a perspectiva da abordagem sistêmica, conforme modelo de análise proposto por Richard Whittington; 4. Uma pesquisa empírica, baseada no estudo de caso de uma empresa do setor de transporte, que se auto-define como sendo “uma empresa de serviços”, analisando sob a ótica sistêmica, o padrão de formação das estratégias adotadas. Ao final, concluiremos com uma síntese do quadro atual da área, sugerindo linhas diretrizes para ações de pesquisa e prática na área. 2. Estratégia: uma área em construção 2.1. Histórico Segundo Dias (2005), “as dificuldades sobre o entendimento e a aplicação da estratégia no âmbito da administração são conhecidas já há muito tempo”. Michael Porter, um dos autores mais conhecidos da área, em um artigo publicado na Haward Business Review em 1996, sinaliza esta dificuldade ao, já no título (What`s strategy?), deixar claro a sua visão de que seria necessário se discutir mais profundamente o conceito de estratégia. No dicionário da língua portuguesa, encontramos inicialmente duas situações para a definição do termo estratégia: uma que registra um sentido particular – “arte militar de planejar e executar movimento e operações de tropas, navios e/ou aviões para alcançar ou manter posições relativas e potenciais bélicos favoráveis a futuras ações táticas”; e outra mais genérica – “arte de aplicar os meios disponíveis ou explorar condições favoráveis com vistas a objetivos específicos”. Apesar de serem simples definições, logo de início já temos dois aspectos muito 1 importantes a serem considerados no entendimento do conceito de estratégia: a origem do termo, que é militar, e o aproveitamento do conhecimento para outras finalidades, ou seja, a conquista de objetivos específicos. Estratégia é uma palavra de origem grega. Strategus, para os gregos antigos, significava o general superior, ou generalíssimo e strategia significava a arte deste general. Na obra A Arte da Guerra, de Sun Tzu (1988:149), é explicitado que as “manobras estratégicas significam escolher os caminhos mais vantajosos”. Na medida em que os objetivos e a necessidade de sua aplicação foram evoluindo, o uso deste conceito pode ser identificado em inúmeras atividades que envolvem pessoas e organizações, desde as competições esportivas ao mundo dos negócios. No campo dos negócios, foco de nosso interesse, Bertero (1995:21) afirma que “a Estratégia Empresarial é um aspecto da administração ou uma abordagem ao gerenciamento integrado da empresa que já passou por diversas fases e também teve vários nomes. As expressões com as quais o espaço já foi designado incluem Diretrizes de Negócios, Planejamento Estratégico, Diretrizes Administrativas e Gestão ou Administração Estratégica”. Neste sentido, Zaccarelli (1995:22) propõe uma análise da área através do que chamou de “marcos históricos da estratégia nas empresas”, conforme o quadro 2.1.1 abaixo. Ano Marco Histórico 1965 Editado o primeiro livro sobre estratégia, por Igor Ansoff (Estratégia Empresarial, Editora Atlas) 1973 Realizado o I Seminário Internacional de Administração Estratégica na Universidade de Vanderbilt (os trabalhos apresentados constam do livro Do planejamento estratégico à administração estratégica, organizado por Ansoff, Declerck e Hayes, Editora Atlas) 1980 Editado o primeiro livro notável com desenvolvimento de conceitos próprios de estratégias, escrito por Michael Portes (Estratégia competitiva, Editora Campus). Os livros de estratégia passaram a ser os mais vendidos na área de Administração. 1990 Editado o livro de Portes, Vantagem competitiva das nações (Editora Campus), que ampliou os conceitos de estratégia para problemas macroeconômicos. 1993 A revista Business Week mostrou que o planejamento estratégico deixou de ser o serviço de maior faturamento das empresas de consultoria européias. Editado o livro de Mintzberg, The rise and fall of strategic planning, que mostrou a precariedade dos conceitos de planejamento estratégico. 1994 Editado o livro de Hamel e Prahalad, Competindo pelo futuro (Editora Campus), que consagrou os novos conceitos de estratégia empresarial, como arquitetura estratégica, intento, competências essenciais, etc. 1995 Hoje existem vários livros recentes no mercado, todos eles sem adotar no título a palavra planejamento, enfatizando termos como pensamento estratégico, estratégia operacional, estratégia em tempo real, etc. Quadro 2.1.1 – Marcos Históricos da Estratégia Empresarial - Fonte: Zaccarelli (1995:22) Sob um prisma diferenciado, Boaventura & Fischiman (2003) agrupam os estudiosos da área através do aspecto central de suas proposições, ou seja, o conteúdo e a substância de suas definições acerca do conteúdo da estratégia, estudando-as e agrupando-as em quatro grupos de afinidade: 1. Estratégia pelos objetivos: empregar os meios existentes para atingir determinados objetivos; 2. Estratégia pela Vantagem Competitiva: alcançar e manter uma vantagem competitiva; 3. Estratégia pela Competência Essencial: competências essenciais da organização; 4. Estratégia pela Interação com Competidores: a empresa afeta seus oponentes e é por eles afetada. 2 Vantagem Competitiva Autor Ano Competência Essencial Autor Ano Porter 1980 Hofer & Schendel 1987 Andrews Autor Ano Andrews Chandler 1977 Henderson 1989 Quinn Learned et al 1978 Hax & Majluf 1991 Werther & Kerr Ackoff 1978 Pfeffer 1998 Hamel & Prahalad Andrews 1978 Fahey & Randall 1998 Rhenman 1984 Interação com Competidores Rumelt 1998 Autor Ano Autor Von Neumann & 1944 Allison Drucker 1977 Johnson & Scholes 1999 Morgenstern Lorange & Vancil 1977 Bethlem 2001 Simon 1947 Quinn Newman 1950 Dixit & Nalebuff Schelling 1960 Zaccarelli Quadro 2.1.2 – Grupos de Pensadores em Estratégia - Fonte: Boaventura & Fischiman (2003) Objetivos Ano Autor 1962 Steiner & Miner 1965 Miles & Snow 1970 Christensen et al 1971 Hofer & Schendel 1973 Ansoff 1974 Fahey & Randall 1978 1987 1992 1995 1995 Ano 1971 1992 1991 2000 Dentro da linha de entendimento adotada neste artigo, Whittington (2001) apresenta quatro abordagens genéricas de estratégia. Parte da abordagem clássica, que surgiu nos anos 60, tendo tem como autores-chave Chandler, Ansoff e Porter, passando pela processual dos anos 70, com autores como Cyert & March, Mintzberg e Pettigrew, pela evolucionária dos anos 80, com Hannan & Freeman e Williamson e, finalmente, chegando à abordagem sistêmica dos anos 90, representada por Granovetter e Whitley. Neste período, as visões sobre estratégia como disciplina de apoio à tomada de decisões no meio empresarial foram se diversificando, à medida que o mundo se tornou mais complexo. 2.2. O Problema da relevância Na medida em que adentrou ao espaço de organizações que interagem continuamente em um mundo globalizado e extremamente dinâmico, guardando-se as devidas proporções, a evolução do conceito de estratégia passou de um aspecto restrito como a movimentação de tropas (porém não menos complexo), ganhando muito em termos de abrangência e profundidade. Hoje, já com seus 40 anos de idade, Estratégia é a maior divisão e a mais ativa disciplina da academia de administração, sendo tratada por diversas outras disciplinas, e é reconhecidamente um sucesso. No entanto, diversos autores já apresentam exemplos de deturpações conceituais, tal como Whittington et al (2003) fazem com o caso Enron, mostrando o quanto o campo da estratégia é propenso a manipulações, onde cada ator pode ser facilmente enganado, com graves conseqüências para a área e a sociedade como um todo. Não restam mais dúvidas quanto à relevância da área de estratégia. Porém, conforme Zaccarelli (1995), esta relevância será ampliada ainda mais na medida em que a nova prática resultante de todas estas mudanças conceituais seja: desmistificada, não exclusiva de gênios, ficando mais fácil e eficaz colocar mais pessoas participando da formação da estratégia; mais facilmente administrável, pela maior motivação e identificação clara dos níveis da estratégia; mais ágil, com possibilidade de mudar rapidamente; mais fácil de descrever. 3 Portanto, é necessário prevenir e proteger a área de legitimar e promover excessivamente histórias de sucesso. É chegada a hora de levarmos a estratégia a sério (WHITTINGTON et al, 2003). 2.3. Agendas de pesquisa Para que isto possa de fato ocorrer, é necessário que a pesquisa e a prática em estratégia se aproximem, que aquilo que Whittington (2001) chamou de perspectivas genéricas em estratégia e o que Mintzberg et al (2000) chamou de escolas de estratégia, possam ser combinados de forma a fazer sentido para os praticantes de estratégia. As pesquisas da área não podem explorar somente um grupo de ferramentas úteis e necessárias ao bom desempenho do cotidiano, mas também fundamentos que lhes permitam saber escolher melhor quais delas utilizar a cada situaçãoproblema específica a que forem submetidas. Neste sentido, Faria (2003), afirma que: Os pesquisadores em estratégia no Brasil devem, em nome do resgate da relevância social da área, reconhecer as estruturas, os mecanismos, os agentes e as estratégias do chamado capitalismo global que vêm ‘fazendo a diferença’. Para isso esses pesquisadores devem desafiar o conhecimento produzido no mundo anglo-saxão, seja do tipo mainstream ou crítico. Apresenta ainda em sua proposta os seguintes argumentos: ... esse tipo de abordagem pode ajudar a retomar a relevância social da área de estratégia no Brasil, apesar de correr o risco de se tornar mais parte do problema do que da solução. ... a pesquisa em estratégia deve valorizar a descoberta da realidade e daquilo que é realmente mais importante em termos de causalidade. Esse tipo de abordagem de pesquisa requer que o pesquisador, eventualmente apoiado pela ontologia de realismo crítico (ver Mir & Watson, 2001), transcenda os modelos em estratégia construídos no mundo anglo-saxão. ... o mais importante é repensar a ‘cultura’ que vem sendo construída pelas escolas de administração nos mais diversos cantos do mundo, uma vez que estas são ‘gerenteschave’ dentro das supra-redes que podem estimular ou permitir a produção de conhecimento em estratégia que seja relevante para gerentes e para a sociedade. Complementarmente a isto, Whittington (2004) afirma que ao se preocupar em recuperar a prática da estratégia, a pesquisa em estratégia estará se afinando a um movimento que atinge as ciências sociais como um todo e também crescente nas pesquisas em administração: trabalhar nos problemas reais do ser humano e, mais especificamente, dos administradores. Conclui afirmando que estudar a prática pode ser prático e propõe uma agenda dupla para a estratégia após o modernismo: uma sociológica, que aborde a estratégia como uma prática social como qualquer outra, e uma gerencial, envolvendo-se com as pessoas e com o que elas fazem. Neste sentido, o presente artigo adota um conceito de estratégia que incorpora as alternativas descritas por Mintzberg: como plano, trama, padrão, posição e perspectiva, ou como em síntese pode ser definida: “estratégia é um padrão num fluxo de decisões ou ações” (MINTZBERG & MCHUGH, 1985). Observa, também, como meio de análise os conceitos de estratégias deliberadas (pretendidas, intencionais) ou emergentes (padrões realizados na ausência de intenções). 3. Estratégias Deliberadas e Emergentes Segundo Mariotto (2003), o termo “estratégia emergente” foi introduzido na década de 1970 por Henry Mintzberg e pode ser entendido como uma “estratégia não planejada”. No extremo oposto está a estratégia planejada, vinculada à idéia de antecipação de cenários e planos 4 de ação. Embora mais amplamente difundido a partir das publicações de Henry Mintzberg, o conceito de estratégia emergente não é novo. Segundo Zanni (2003), em 1959, Charles Lindblom foi pioneiro ao reconhecer que a definição dos objetivos acontece praticamente ao mesmo tempo em que a definição das ações. Foi apoiado nas idéias de Lindblom que Mintzberg (1978) cunhou o termo estratégia emergente. 3.1. Histórico e fundamentos Alguns autores concebem a estratégia como um meio de configurar uma relação futura entre a empresa e o meio. Neste sentido, estratégia é a determinação dos objetivos básicos de longo prazo (CHANDLER, 1962). Alternativamente, estratégia pode ser entendida como a relação existente entre a empresa e o meio, isto é a posição adquirida pela empresa que resulta de ações passadas e que Katz (1970) designa por “posição estratégica”. Neste sentido, as estratégias são “um padrão numa corrente de decisões”, isto é, um padrão de comportamento, deduzido das decisões tomadas, que exprime a atual relação entre a empresa e o meio (MINTZBERG & WATERS, 1985; MINTZBERG, 1988). Estas estratégias só se revelam quando são efetivamente executadas. Mintzberg também propôs o termo “formação de estratégia”, referindo-se ao processo pelo qual as estratégias são criadas, seja consciente e explícito seja um processo de emersão. Embora não tenha sido o pioneiro, Mintzberg é certamente o escritor que mais contribuiu para o tema. Um outro autor importante, e que precedeu Mintzberg, foi Joseph L. Bower, que a partir de um estudo feito em uma grande empresa diversificada, analisou que o processo de decisão possuía um momento de definição e um segundo de ímpeto e que a formação estratégica não ocorre só da alta gestão para a base operacional, mas que existem outros elementos no processo. Segundo Mintzberg et al apud Zanin (2003), foi o livro de Brian Quinn de 1980, Strategies for Change: Logical Incrementalism, que assinalou a decolagem daquela que hoje chamamos de Escola do Aprendizado. O conceito de incrementalismo, apresentado por Quinn apud Zanin (2003), considera que o processo de formação estratégica é “contínuo, pulsante e dinâmico”. O conceito difundido por Minztberg se inicia quando as turbulências do mercado geradas pelo fenômeno da globalização tornam evidente para as organizações que as estratégias deliberadas não eram a única opção. Neste sentido, Mintzberg et al (2000) apontam três falácias do planejamento: predeterminação, desligamento e formalização. Sua crítica se fundamenta na impossibilidade que o planejamento teria de antecipar os eventos, de separar pensamento de ação e de que todo processo pode ser formalizado. Através da abordagem proposta por Mintzberg e seus associados na McGill University, o significado do termo estratégia é ampliado, oferecendo-se uma nova leitura. Estratégia é apresentada como “um padrão em uma sucessão de decisões” (Mintzberg, 1978), incorporando a proposta de dinamismo oferecido por Quinn. Esta definição é reformulada mais tarde como “um padrão em uma corrente de ações” (MINTZBERG & WATERS, 1985). Em 1976, Mintzberg, Raisinghani & Théorêt escrevem o artigo The Structure of “Unstructured” Decision Process, mostrando o dinamismo e a complexidade do processo de decisão e abrem discussão sobre como se dá a relação entre o processo de decisão e a estrutura, especialmente aquelas decisões encontradas entre as decisões operacionais da base da hierarquia e aquelas estratégicas do topo. Em 1978, publica o artigo Patterns in Strategic Formation propondo uma nova descrição do processo de formação estratégica nas organizações. Ele afirma 5 que a dicotomia entre formulação e implementação da estratégia não considera o aprendizado que ocorre antes da conceituação da estratégia. São estratégias realizadas, que se formaram no decurso da ação, mas não intencionadas originalmente. A partir de uma pesquisa de campo, Mintzberg identifica oito tipologias para estratégia como padrão de comportamento e, em 1985, com James Waters, da York University, publica o artigo Of Strategies, Deliberate and Emergent, onde argumentam que o processo de formação estratégica poderia estar em qualquer ponto num contínuo entre deliberada e emergente, embora admitam que estratégias puramente deliberadas ou emergentes sejam difíceis de ocorrer. O artigo conclui que a formação da estratégia pode ter mais ênfase na estratégia deliberada ou emergente, mas que as duas coexistem nas organizações. Outro ator que desenvolveu visão alternativa a partir da década de 80 foi Pettigrew. Enquanto Mintzberg representa o modelo no qual estratégia é uma questão de adaptação, Pettigrew seria um representante do modelo onde a estratégia é o produto de um processo socialmente construído. Segundo Pettigrew apud Carrieri (2000), a organização seria um conjunto de inter-relações entre indivíduos, em que os jogos de poder estariam sempre evidenciados na formulação da estratégia. Esta visão propõe que as atitudes dos indivíduos precisam ser modificadas para que a organização possa também mudar; estaria assim, interligada a compreensão da cultura, dos símbolos, dos relacionamentos existentes em cada organização. Desta maneira não existiria uma estratégica única a ser seguida por várias organizações, mas as estratégias seriam situacionais e variariam de acordo com cada organização. Embora tenham visões distintas quanto ao processo de formação estratégica, tanto Mintzberg quanto Pettigrew concordam que o modelo racional dominante não interpreta concretamente o ambiente. A idéia de estratégia emergente converge com a proposta de aprendizado organizacional e os autores percebem a sinergia entre elas. A globalização forçou o movimento das organizações em direção ao mercado, arriscando em novas market-windows e naturalmente aprendendo com seus próprios erros. Isso fez com que as organizações adotassem novas estratégias sem, no entanto, abandonar aquelas planejadas, revelando varias estratégias emergentes. Essa possibilidade de se fazer ajustes é uma característica de organizações com foco no aprendizado. Portanto, uma perspectiva histórica é útil quando se trata de entender os caminhos efetivamente percorridos, independentemente da existência ou não de intenções e planos previamente estabelecidos. Muitas estratégias planejadas não chegam a ser totalmente implementadas ou jamais serão. Além disso, certas decisões não são resultado de planos estabelecidos e ocorrem a despeito de existirem formalmente. Estratégias planejadas e estratégias realizadas são duas formas diferentes de abordagem que não são incompatíveis, mas antes complementares. Na verdade, a prática tem mostrado que elas não se anulam e o desafio é conseguir o equilíbrio entre as duas formas. Uma organização não pode ser administrada dependendo exclusivamente da formação de estratégias emergentes, sem pró-atividade e à mercê dos acontecimentos. Por outro lado, a adoção exclusiva de estratégias formuladas pode tornar a organização inflexível. 3.2. Pesquisas na área e críticas Seja qual for a abordagem utilizada em estratégia, certamente estará baseada nas ações das pessoas. Afinal, são as várias combinações entre as pessoas e o ambiente que criam o diferencial. Em um mundo onde o mercado é comum, o diferencial pode estar relacionado à 6 cultura ou a tecnologia de gestão disponível, fazendo dos tomadores de decisões peças cruciais na batalha da estratégia. Para Mintzberg, não há nenhum processo nas organizações que exija mais da cognição humana que a formação de estratégia, na medida que os tomadores de decisão enfrentam uma sobrecarga de informações (MINTZBERG, 1978). O processo de decisão não possui um caminho ótimo e a formação da estratégia emerge da própria dificuldade. As velhas prescrições não funcionam nesse tipo de ambiente complexo, de constante interação entre as organizações, seus agentes e o mercado. No entanto, o que se observa é que a pesquisa sobre estratégia tem concentrado-se na visão economicista, principalmente baseada nos estudos de Porter sobre a competição. Segundo Carrieri (2001), uma alternativa é abordá-la como um processo da dinâmica organizacional, desenvolvido num contexto histórico, ideológico, econômico e social específicos. Esta abordagem possibilita um maior conhecimento das organizações por não privilegiar somente os gerentes, sejam eles administradores ou não, mas à organização como um todo. Neste sentido, a prática da estratégia é analisada por toda a organização contribuindo para seu processo de aprendizado. Baseado neste cenário, Whittington (2003) propõe uma agenda de estudos que, fazendo uso do repertório adquirido até agora, passe a avaliar as práticas de estratégia com uma abordagem sociológica de forma a investigar aspectos sociais envolvidos na estratégia. O sucesso da estratégia como prática social e suas vulnerabilidades indica uma agenda tríplice de iniciativas, envolvendo pesquisadores, elaboradores de políticas e praticantes. Whittington acredita que a falta da proximidade do estudo de estratégia com questões mais práticas, tem decepcionado os praticantes e gerado espaço e oportunidade para inserir no campo de estudo da administração estratégica uma nova possibilidade de investigação até então negligenciada. Para ele, a sociologia proporcionaria uma nova agenda investigativa que teria como objetivo melhorar a prática da administração estratégica. Esta nova agenda estaria dividida em dois caminhos: a agenda sociológica, com foco no social, e a agenda gerencial, com foco na organização. A agenda sociológica aborda a estratégia como uma prática social, de interesse da sociedade e com grande influência nela. As linhas de pesquisa seriam: A sociologia das elites, que trataria de investigar como as elites alcançam e mantêm o poder, como influenciam a sociedade e em que medida o poder varia com o tempo e o local. As elites aqui não são formadas apenas por gerentes e planejadores, mas também por gurus e acadêmicos de destaque que influenciam a prática, mesmo estando de fora da organização. Outra abordagem possível seria a investigação da divisão do trabalho e o lugar que as habilidades nele ocupam. Estas questões são pertinentes neste momento de transformação de um modelo centralizado e profissionalizado dos anos 60 para um modelo contemporâneo, disperso entre a gerência média e periferia organizacional. Ainda pode ser objeto de estudo a sociologia das ciências e tecnologia, buscando entender a maneira como são desenvolvidos, testados, e colocados no mercado os novos conceitos e ferramentas estratégicas. Além disso, é necessário perceber como estas ferramentas são utilizadas na prática. A agenda gerencial incluiria pesquisas para elaboração das habilidades para exercer estratégia e as maneiras formais e informais por meio das quais essas habilidades podem mais eficientemente ser adquiridas. As linhas de pesquisa seriam a: Sociologia das elites, estudando a formação educacional e da trajetória da carreira do indivíduo, traduzida em orientações práticas que fornecessem suporte aos gestores 7 para desenvolverem-se como estrategistas. Sociologia do trabalho, determinando quais as habilidades os estrategistas necessitariam e como poderiam ser adquiridas. Sociologia das ciências e tecnologia, avaliando como as ferramentas estratégicas podem ser utilizadas mais efetivamente na prática e como desenhar e disseminar novas tecnologias em estratégia. Whittington acredita que este é o momento de se rever os caminhos do estudo de estratégia com uma abordagem mais comprometida com a prática, em um caminho cada vez mais além da economia e em direção à sociologia. Faz ainda uma critica a atual situação do estudo da estratégia, referenciando Mintzberg como estando em um estágio de pós-modernismo, ao que ele próprio pretende superar, posicionando-se um passo além, no que chamou de após o modernismo. Este novo momento do estudo ampliaria e reabilitaria questões que Mintzberg ignorou, sobretudo no estudo da estratégia formal, abordando ramificações até então não reconhecidas. 4. A Abordagem Sistêmica 4.1 Antecedentes e fundamentos Emergentes Deliberados Processos Para ordenar as diversas abordagens teóricas à Estratégia Empresarial foi utilizado, neste artigo, o modelo de classificação proposto por Richard Whittington (2001) em seu livro O que é estratégia?. Lidando com a estratégia como uma “prática contestável e imperfeita”, como vimos anteriormente que de fato ela é, Whittington (2001), ao iniciar o primeiro capítulo de sua obra, afirma que “não existe muita concordância a respeito de estratégia” e, ao dizer que não é possível entender estratégia por um único ponto de vista, propõe uma análise do conteúdo da área sob o enfoque de quatro conceitos básicos sobre como “realizar estratégia”, ou seja, de forma racional, fatalista, pragmática ou relativista. R esultados O modelo baseia-se em uma matriz de M axim ização dos lucros classificação bidimensional, na qual os eixos são referentes à orientação da Estratégia Empresarial – que pode ser focada no lucro ou em objetivos mais diversos, pluralistas –, e ao C lássica Evolucionária processo de decisão – que pode ser deliberado e intencional ou emergente. A combinação dessas duas dimensões forma a matriz representada abaixo, com quatro grandes perspectivas no pensamento estratégico: a clássica, a Sistêm ica Processual evolucionária, a sistêmica e a processual (BERTERO, 2003). Com suas diferentes perspectivas, tanto sobre a ação humana quanto sobre os Plural ambientes, cada abordagem oferece Figura 4.1.1 – Perspectivas Genéricas recomendações radicalmente opostas para sobre Estratégia – Whittington (2001:3) gerentes e para o governo. Propõe a aplicação destas quatro abordagens básicas a uma série de questões fundamentais sobre estratégia, oferecendo receitas razoáveis e plausíveis, porém fundamentalmente opostas, uma vez que cada abordagem tem a própria visão sobre a estratégia e o quanto ela importa para as práticas de gerenciamento. 8 O agrupamento teórico proposto para cada uma das abordagens lhes atribui as seguintes principais características: Abordagem Clássica: é a mais antiga e mais influente delas e seus teóricos vêem a estratégia como um processo racional de planejamento a longo prazo, vital para garantir o futuro; Abordagem Evolucionária: considera o futuro algo muito volátil e imprevisível para ser planejado, entendendo que a melhor estratégia é concentrar-se na maximização das chances de sobrevivência hoje; Abordagem Processualista: também questiona o valor do planejamento racional no longo prazo, enxergando a estratégia como um processo emergente de aprendizado e adaptação. Tanto para os evolucionistas quanto para os processualistas, a estratégia no sentido clássico de planejamento racional não importa realmente, uma vez que planejamentos tendem a ser subjugados por acontecimentos ou prejudicados por erros; Abordagem Sistêmica: formas e metas do desenvolvimento de estratégias dependem particularmente do contexto social e que, portanto, a estratégia deve ser empreendida com sensibilidade sociológica. Itens/Perspectiva Estratégia Justificativa Foco Processos Influências-chave Autores-chave Surgimento Clássica Processual Formal Elaborada Maximização do Lucro Vaga Interna (política/cognições) Interna (planos) Analítica Negociação/aprendizagem Economia/militarismo Psicologia Cyert & Chandler; Ansoff; Porter March;Mintzberg; Anos 1960 Anos 1970 Evolucionária Eficiente Sobrevivência Externa (mercados) Darwiniana Economia/Biologia Hannan & Freeman; Williamson Anos 1980 Sistêmica Inserida Local Externa (sociedades) Social Sociologia Granovetter; Whitley Anos 1990 Quadro 4.1.1 – As Quatro Perspectivas sobre Estratégia – Whittington (2001:46) Conforme Whittington ressalta, estas abordagens não são totalmente estanques na sua aplicação. Há casos extremos que podem ser discutidos mas, na sua maioria, as estratégias pendem para alguma direção, sem, no entanto, estarem completamente conectadas a um só modelo ou abordagem específica. Como o foco de análise do presente trabalho está na abordagem sistêmica, apresentaremos mais detalhadamente seus fundamentos, tratando de como deverá ser corretamente entendida e utilizada à luz da realidade brasileira. Segundo Whittington (2001), os teóricos sistêmicos são menos pessimistas que os processualistas quanto à capacidade das pessoas em conceber e implementar planejamentos racionais de ação e bem mais otimistas que os partidários da abordagem evolucionária no que diz respeito à habilidade das pessoas em definir as estratégias ante às forças de mercado. “Seguindo a ênfase de Granovetter (1985) no ‘encaixe’ social da atividade econômica, a abordagem sistêmica propõe que os objetivos e as práticas da estratégia dependem do sistema social específico no qual o processo de desenvolvimento de estratégia está inserido. Os estrategistas com freqüência desviam-se da norma de maximização do lucro deliberadamente. Seu ambiente social pode despertá-los para outros interesses além do lucro – orgulho profissional, poder de gerenciamento ou patriotismo, por exemplo. A busca por esses diferentes objetivos, ainda que sacrificando a maximização dos lucros, é, portanto, perfeitamente racional, embora a razão esteja freqüentemente escondida. Alternativamente, os estrategistas podem desviar-se das regras de cálculo racional apresentadas nos livros: não porque elas sejam idiotas, mas porque, dentro da cultura em que eles trabalham, essas regras fazem pouco sentido. Essas estratégias de desvio são 9 importantes porque podem ser implementadas com eficácia. As pressões da competição não garantem que os maximizadores de lucro da abordagem evolucionária serão os únicos a sobreviver: os mercados podem ser manipulados ou iludidos e as sociedades têm outros critérios, além do desempenho financeiro, para dar apoio às empresas. A abordagem sistêmica, portanto, acredita que a estratégia reflete os sistemas sociais específicos dos quais ela participa, definindo os interesses segundo os quais ela age e as regras de sobrevivência. A classe social e o país fazem diferença no que toca à estratégia”. Ainda segundo Whittington (2001), a combinação de sistemas internos com ambientes externos distintos poderia levar as empresas a resultados diferentes, mesmo quando submetidas a estratégias similares. Como exemplo disto, Whittington (2001), citando o influente trabalho Capitalisme contre Capitalisme, de Michel Albert (1991), banqueiro e intelectual francês, descreve uma competição internacional entre duas formas básicas de capitalismo avançado – o da Alemanha, Europa central e Japão e o do mundo anglo-saxão, liderado pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido – conclui que, “ao que parece, as técnicas de estratégia das economias anglo-saxãs – rápidas, flexíveis e, às vezes, impiedosas – são mais apropriadas às condições econômicas emergentes do século XXI que a cuidadosa abordagem da Alemanha e do Japão” e conclui dizendo que: O desafio da perspectiva sistêmica, entretanto, é sublinhar as dificuldades em transferir filosofias e técnicas estratégicas de um contexto a outro. ... Os estrategistas de negócios e os criadores da política nacional devem ser sensíveis aos tipos de estratégia desejados e viáveis em determinado período de tempo e lugar. Para os criadores da política nacional, portanto, mudar as estratégias significa mudar também o sistema social no qual elas estão implantadas. Do ponto de vista sistêmico, não há caminho fácil para alcançar a estratégia ótima, e receitas para o sucesso não são tão universais nem eternas. Diante destas oposições, o processo de elaboração de estratégia começa com uma escolha estratégica fundamental para o gerente: a descrição teórica da atividade e do ambiente humanos que se encaixam melhor com a sua própria visão do mundo, sua “teoria da ação” pessoal. Finalmente, a elaboração e a aplicação da estratégia não se restringem a contemplar os objetivos técnico-econômicos enfatizados pela escola clássica. Definem-se a partir do contexto sócio-político, e não apenas das forças de mercado. Observa-se um esforço por parte da organização em se inserir adequadamente no sistema (que não é unilateral), de “jogar” pelas regras institucionalizadas a fim de produzir e conservar uma legitimidade social que a permita evoluir e se manter viva no “jogo”. 4.2. Foco no Brasil Em uma pesquisa empírica composta por quatro estudos de caso em dois setores industriais distintos, a Refinaria de Petróleo Ipiranga (RPI) e a Companhia Petroquímica do Sul (Copesul) representando a indústria do petróleo, e a unidade da Klabin de Otacílio Costa e a Cambará Produtos Florestais representando a indústria de papel e celulose, Souza (2004) conclui que a orientação das estratégias é totalmente dependente do contexto de cada empresa, ou seja, as estratégias são essencialmente contextuais. Isto não significa que elas só são adequadas àquele contexto, mas que elas são formadas em função dele. Nos casos estudados, observou-se a influência de fatores contextuais ligados ao ambiente regulativo, ao ambiente social, ao ambiente de mercado e ao ambiente de suporte e recursos, além de fatores ligados à organização em si, como aspectos relativos às lideranças e gerências, à estrutura organizacional e a eventos históricos da empresa. Identificou-se que este contexto geral relevante para as estratégias de cada empresa é determinado por uma conjunção de seis contextos específicos, os quais apresentam influências diferenciadas sobre suas estratégias. São eles: 10 contexto regulativo; contexto locacional; contexto de mercado; contexto de recursos; contexto setorial; e contexto organizacional. Tal proposição confirma a formulação teórica da abordagem sistêmica, na qual o contexto social das empresas torna a estratégia dependente dos sistemas sociais particulares nos quais ela surge e está inserida. Assim, o processo é concebido como racional, mas guiado por diversos objetivos e não somente maximização de lucros. Normas individuais e culturais podem impor outros objetivos, conflitantes com a maximização de lucros. Segundo Ribeiro e Campos (2004), para desenvolver melhor seus produtos e serviços, as organizações brasileiras precisam posicionar-se no mercado através da observação ativa da dinâmica do ambiente competitivo. Por essa razão a estratégia competitiva escolhida precisa espelhar essas mudanças e munir a direção de informações indispensáveis para o gerenciamento do negócio. Prosseguindo, afirmam que o ambiente interno, caracterizado pela estrutura formal e informal da organização, é representado pelos grupos sociais, valores, cultura, interesses pessoais e organizacionais, entre outros. O ambiente externo é composto por uma série de variáveis como tecnologia, política, economia que formam o contexto em que ela está inserida. Os dois ambientes formam um campo de força que interagem entre si de forma tão dinâmica que os resultados são difíceis de prever devido à complexidade dessas relações. A relação entre estratégia e ambiente começa com a necessidade de se pensar na empresa de forma holística, visualizando-a como elemento de unificação das suas áreas funcionais com o ambiente externo. No entanto, pouco se tem pesquisado, ou pelo menos escrito, no Brasil em termos de abordagem sistêmica, quadro este que reflete a dominância da abordagem clássica e que entendemos ser fruto predominância desta última no meio acadêmico e editorial dos Estados Unidos, “berço” de nossa “cultura” de gestão e, extensivamente, da área de estratégia. Conforme Bertero (2003), na produção acadêmica brasileira na área de Estratégia, no período de 1991 a 2002, como pode se ver no quadro 4.2.1 abaixo, a perspectiva sistêmica representou somente 13,7% do total, sendo responsável por apenas 25 de um total de 182 artigos enquadrados pelos autores. Perspectiva Whittington Clássica Processual Sistêmica Evolucionária Total de Artigos Enquadrados Artigos Não Enquadrados Total Artigos % Artigos Enquadrados 92 30,4% 50,5% 50 16,5% 27,5% 25 8,3% 13,7% 15 5,0% 8,2% 182 60,1% 100,0% 121 39,9% 0,0% 303 100,0% Quadro 4.2.1 – Publicação por perspectiva – Fonte: Whittington (2003:54) Este quadro demonstra claramente a necessidade de pesquisas que aprofundem o tema, com o foco na realidade brasileira, sem que se proceda somente a uma “importação” de teorias, conceitos e instrumentos gerados sob um contexto sócio-econômico-cultural diferente do nosso, ou seja, inclusive no que diz respeito à produção científica devemos aplicar a abordagem sistêmica. 5. Uma Aplicação: Estratégias Deliberadas e Emergentes O caso apresentado a seguir foi feito com base no relato de três ex-gerentes de uma 11 empresa do setor de transporte, adquirida em 1984 por um grupo econômico da área de turismo. Transporte e turismo podem parecer áreas afins, mas envolvem ativos bem diferentes. Enquanto no turismo o que conta é a capacidade de relacionamento, portanto um bom time de funcionários, no transporte o que conta é a quantidade e a apresentação dos veículos. Os gerentes, todos vindos da área de turismo, trabalharam na empresa desde a sua aquisição até recentemente quando foi novamente vendida a empresários do setor de transporte. O caso mostra uma situação em que alguns padrões de comportamento levaram a empresa a adota-los em seu planejamento em detrimento daquilo que obedecia a lógica do mercado. 5.1. Histórico e descrição da empresa A empresa do caso aqui descrito é a Transportadora Triauto Ltda, empresa de ônibus de turismo de médio porte, fundada no Rio de Janeiro em 1962. Naquela época, embalado pelo sucesso no futebol, o Brasil estava em evidência e se tornara destino obrigatório para os turistas que pudessem pagar o preço da passagem aérea. A viagem entre os Estados Unidos e o Rio de Janeiro levava um dia inteiro e só os mais abastados ou viajando a serviço se davam o luxo de viajar de avião. O Rio de Janeiro, como principal portão de entrada do país, recebia vôos de todo o mundo, principalmente do sul dos Estados Unidos e dos países do oeste europeu. A indústria de aviação crescia não só com o aumento do trafego internacionais, mas domésticos também. Apesar de luxuosos, os aviões eram pequenos e suas tripulações eram compostas geralmente por seis ou sete integrantes transportados em limusines importadas dos Estados Unidos. A origem da empresa se deveu a esse crescente mercado de tripulações que pernoitavam por dois ou três dias na cidade antes de retornarem aos seus países de origem. O serviço da empresa consistia basicamente em levar as tripulações do antigo aeroporto do Galeão para os hotéis e vice-versa. A esse tipo de serviço dá-se o nome de traslado ou transfer, em inglês. A empresa dominou durante anos o mercado de transporte de tripulação e, em 1984, foi vendida a um grupo de investidores do segmento de turismo. 5.2. Padrões não percebidos A empresa que adquiriu a Triauto em 1984 operava no mercado de turismo receptivo de estrangeiros vindos principalmente do Canadá. Sua experiência na área de transporte era meramente como consumidora e na sua visão o que importava era a aparência dos veículos. A nova gerência era formada por profissionais da área de turismo e o primeiro ano foi de aprendizado, mesmo porque toda a frota estava comprometida naquele momento com os contratos com empresas aéreas. A estratégia da administração era adquirir alguns novos veículos e oferecer os serviços da transportadora a setores inexplorados como agências, operadoras de turismo e hotéis, diversificando a carteira de clientes. Todo o planejamento foi desenvolvido no sentido de ampliar a frota e oferecer veículos novos a essa demanda. Nos dois anos subseqüentes a empresa tentou, sem muito sucesso, entrar no mercado de turismo, diminuindo os riscos de concentração do comércio nas empresas aéreas; nove dos doze veículos da frota estavam comprometidos com o transporte de tripulações e dois novos haviam sido encomendados. Desde o início o mercado estava reticente em utilizar os serviços da empresa, pois toda a sua experiência estava em fazer traslados para tripulações cujas características são bem diferentes do serviço de turismo. Enquanto uma tripulação possui hoje no máximo quinze tripulantes, pouca bagagem e são disciplinados no momento do embarque e desembarque, os grupos de turismo possuem em torno de quarenta pessoas, muita bagagem e um 12 embarque pode levar mais de uma hora. Durante meses a gerência se empenhou em levar a cabo seu plano de conseguir novos clientes que justificassem a compra da empresa e os investimentos em novos veículos, mas o mercado via seus serviços com desconfiança. Aspectos operacionais Quando a empresa foi fundada os serviços eram executados com limusines e os próprios sócios da empresa faziam o papel do motorista. O ganho de cada sócio era proporcional a quantidade de serviços que cada um fazia e todos se esmeravam em aumentar o numero de clientes. O controle sobre o ganho de sócio era feito através do bloco de notas fiscais que cada um emitia a cada serviço. A imagem da empresa se consolidava perante o mercado de empresas aéreas e era construída a partir dos padrões que os sócios estabeleciam com sua própria experiência no serviço. Na medida que a empresa crescia, motoristas passaram a fazer o serviço e mantiveram as práticas adotadas pelos sócios. O objetivo naquele momento era crescer, mas os sócios faziam questão de manter o mesmo padrão e sabiam muito bem o que estava envolvido naquele tipo de operação. O Quadro abaixo mostra alguns aspectos das estratégias da primeira administração composta pelos sócios, e da segunda administração - composta por profissionais da área de turismo. Planejamento Estratégico Mercado Crescimento Veículos 1a Administração (de 1962 a 1984) 2a Administração (de 1984 a 2005) Feito a partir das percepções dos sócios que Feito a partir da percepção de transporte cuidavam pessoalmente de toda a operação pela ótica do usuário. A aparência dos da empresa. veículos seria determinante para conquista de novos mercados. Focado nas empresas aéreas. Focado no turismo. A estratégia era crescer a partir do A estratégia era crescer dois veículos ao ano crescimento do setor aéreo. Isso significava e melhorar a idade média da frota. um novo veículo ao ano. O tipo de veículo foi sendo adaptado à Os veículos para transporte de tripulação e medida que as tripulações cresciam. No de turismo são os mesmos. Os veículos início havia forte compromisso com a idade adquiridos obedeciam ao mesmo padrão. média e com a adaptação da frota. A partir de 1968 as tripulações passaram a ter mais de dez elementos e a empresa passou a adquirir micro-ônibus de fabricação nacional. Em 1984 as tripulações eram compostas por até vinte e três integrantes e a frota composta por ônibus e micro-ônibus com idade média de oito anos. Clientes antigos, nova administração. Os contratos de tripulação são anuais e sua renovação é sempre um momento importante. No final de 1986, durante a renovação do contrato com uma empresa aérea norte-americana, o gerente ouviu de seu cliente que o serviço da transportadora mantinha uma rotina exemplar a muitos anos e que isso pesava na renovação. Essa rotina era o resultado das crescentes demandas dos contratos de transporte de tripulação e a capacidade da Triauto de cumpri-las regularmente. Essa capacidade havia se desenvolvido desde que os motoristas eram os próprios sócios e se mantinha ao longo do tempo. A gerência entendeu naquele momento que a adaptabilidade operacional era uma característica que poderia ser perfeitamente aplicável ao transporte de 13 turismo. Se a lógica no mercado de transporte é investir na frota e não no serviço e o que importa é a quantidade e a apresentação desses ativos, aqueles padrões eram percebidos como serviço e traziam vantagens competitivas ante o mercado. Nos anos seguintes a Triauto manteve a taxa de crescimento planejada e em 1998 a sua frota era composta por 19 veículos, com idade média de seis anos. Os contratos com empresas aéreas continuavam a representar grande parte de sua receita, mas as agências de turismo e hotéis já eram responsáveis por trinta e cinco por cento dos serviços. Em 2001, com a queda do World Trade Center, a empresa teve um grande revés, pois, apesar de ter diversificado sua carteira, o impacto foi no trade por inteiro, reduzindo o movimento de vôos e turistas em mais de cinqüenta por cento. Durante anos a Triauto adotou a estratégia de crescer e adaptar sua frota ao tamanho das tripulações. Isso resultou no seu domínio no transporte de tripulações no Rio de Janeiro. A partir do reconhecimento de determinados padrões, estabeleceu sua estratégia incorporando o serviço como fator preponderante no seu crescimento. A Triauto se considera uma empresa de serviço de transporte. 6. Conclusão e sugestão para pesquisa e prática Como observado pelo estudo de diversos autores, existem vários entendimentos possíveis sobre o que é estratégia, sendo que alguns autores dão destaque a diferentes elementos. Cada uma destas visões é valiosa e útil, e a combinação criteriosa delas com o sistema social, com a situação do ambiente e com as características da organização é um ponto importante para a sua sobrevivência e crescimento. A estratégia corporativa de uma empresa deve contemplar um horizonte de longo prazo, deve ser estável, refletindo os propósitos e objetivos organizacionais. Como o ambiente é dinâmico e novas situações surgem a cada momento, ações estratégicas são tomadas pela empresa com a finalidade de retomar o rumo traçado, independente das novas dificuldades que possam surgir no percurso. As ações estratégicas são adaptativas, respondendo às contingências ambientais a medida em que elas ocorram, visando, com isso, o alcance dos objetivos estratégicos da organização (BEPPLER, 2003). É nesse contexto que muitas vezes a estratégia surge das práticas da organização , sejam elas resultado de demandas sociais, políticas, econômicas ou da própria evolução do mercado. Essa resposta resulta na alteração das forças combinadas do mercado que, por sua vez, provocam nova reação, seja de competidores, de entidades reguladoras, de fornecedores, de clientes ou da própria organização. Tais reações podem ser concebidas de forma planejada, ou podem emergir como resultado de práticas que se apresentam consistentes no tempo. A reação de cada organização tem relação com sua estrutura organizacional e o ambiente em que atua. Empresas Muitas vezes é a combinação de estratégias que resulta na eficiência de longo prazo da organização. De fato, o grande ponto a ser buscado é o equilíbrio, é a busca da manutenção da estabilidade com o reconhecimento da necessidade de mudanças, quando necessário (MINTZBERG, 1998). Assim, a empresa modelo em nosso caso percebeu que determinadas práticas operacionais poderiam ser adotadas formalmente em seus planos estratégicos, enfatizando o padrão de serviço como diferencial competitivo. Neste sentido, ainda segundo Mintzberg apud Beppler (2003), a organização pode adotar estratégias como plano, padrão, trama, perspectiva e posição, mas em essência, a estratégia e a organização são entidades intrinsecamente ligadas e, portanto, devem estar em equilíbrio. 14 No contexto desse contínuo que há entre estratégias deliberadas e emergentes, as alternativas se multiplicam em função da combinação de fatores como mercado, tecnologia, e cultura. A arena de competição atingiu um tamanho e dinamismo tão inimaginável, que na tentativa de se re-equilibrar cria oportunidades para organizações de todo o mundo gerando uma enorme quantidade de novos competidores. Assim, pode-se concluir que não é tão fácil determinar qual a estratégia seguir, como preconiza a literatura das bancas de aeroportos, porém não tão difícil que não possa ser praticada por aqueles que dedicam algum tempo a estudar sua história e como ela influencia as organizações. 15 Referências Bibliográficas BEPPLER, Luciane N. E afinal, o que é estratégia? Revista Bate Byte, 129, 2003. Disponível em http://www.pr. gov.br/batebyte/edicoes/2003/bb129/afina l.shtml. BERTERO, Carlos O. Rumos da estratégia empresarial. RAE-Light: 20-25, 1995. BERTERO, Carlos O. Estratégia empresarial: a produção científica brasileira entre 1991 e 2002. RAE, 43 (4): 48-62, 2003. BOAVENTURA, João M. G. e FISCHMANN, Adalberto A. Estudo dos conceitos sobre o conteúdo da estratégia. São Paulo: FGV-EAESP, 2003. Disponível em http://www. fgvsp.br/iberoamerican/Papers/0373_ Paper Iberoamerican - Final version.pdf. CARRIERI, Alexandre de P. Pesquisa sobre estratégia: do discurso dominante a uma nova narrativa. D@ablium Administração em Revista, 2 (4), 2000. Disponível em http://members/ lycos.co.uk/dablium/artigo19.htm. DIAS, José A. C. S. Estratégias em cadeias de suprimento: uma análise de sua aplicação. Bauru: XII SIMPEP, 2005. FARIA, Alexandre. Crítica e relevância em estratégia: entendendo fronteiras, redes e gerentes. Rio de Janeiro: PUC, 2003. Disponível em http://www.fgvsp.br/ iberoamerican/Papers/0375_Faria-IAM2003.pdf. MARIOTTO, Fábio L. Mobilizando estratégias emergentes. RAE, 43 (2): 7893, 2003. MINTZBERG, Henry. Patterns in strategy formation. Management Science, 29 (9), 934-948, 1978. MINTZBERG, Henry; WATERS, James A. Of strategies, deliberate and emergent. Strategic Management Journal, 6, 257272, 1985. MINTZBERG, Henry, AHLSTRAND, Bruce, LAMPEL, Joseph. Safári de estratégia. Porto Alegre: Bookman, 2000. MINTZBERG, Henry e McHUGH A. Strategy formation in an adhocracy. Administrative Science Quarterly, V.340, n.1, p.160-197, 1985. PETTIGREW, Andrew M. Context and Action in the Transformation of the Firm. Journal of Management Studies. 24 (6), 1987. RIBEIRO, Fernanda S. e CAMPOS, Maria C. A Importância da estratégia dos serviços oferecidos pela Diebold Procomp Indústria Eletrônica no seu negócio. Salvador: UFBA, 2004. SOUZA, Renato S. Fatores de formação e desenvolvimento das estratégias Ambientais nas Empresas. Porto Alegre: UFRGS, 2004. TZU, Sun. A arte da guerra. 10ª. ed. São Paulo: Editora Pensamento: 1988. WHITTINGON, Richard. O que é estratégia? São Paulo: Thomson, 2001. WHITTINGON, Richard. Estratégia após o modernismo: recuperando a prática. RAE, 44 (4): 44-53, 2004. ZACCARELLI, Sérgio B. A moderna estratégia nas empresas e o velho planejamento estratégico. RAE-Light: 21-26, 1995. ZANNI, Pedro P. Uma perspectiva histórica do conceito de estratégia emergente. 2003. Disponível em http://www. fgvsp.br/iberoamerican/Papers/0210_ Paper_Pedro_Pinto_Zanni.pdf 16