UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA – PROPPEC
CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS – CEJURPS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – PPCJ
CURSO DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – CMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
O GARANTISMO JURÍDICO E A RESPONSABILIZAÇÃO
CRIMINAL DE MILITARES POR CRIMES COMETIDOS
DURANTE A DITADURA MILITAR BRASILEIRA
WLADIMIR WRUBLEVSKI AUED
Itajaí-SC
2013
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA – PROPPEC
CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS – CEJURPS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – PPCJ
CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA – CMCJ
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
O GARANTISMO JURÍDICO E A RESPONSABILIZAÇÃO
CRIMINAL DE MILITARES POR CRIMES COMETIDOS
DURANTE A DITADURA MILITAR BRASILEIRA
WLADIMIR WRUBLEVSKI AUED
Dissertação submetida ao Curso de Mestrado
Acadêmico em Ciência Jurídica da Universidade do
Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Ciência Jurídica.
Orientador: Professor Doutor Marcos Leite Garcia
Itajaí-SC
2013
AGRADECIMENTOS
Agradeço, especialmente, ao Professor Doutor Marcos Leite Garcia,
orientador desta Dissertação, por prestar imprescindível auxílio no desenvolvimento
do trabalho. Sem seus ensinamentos, a presente pesquisa não atingiria os
resultados obtidos. Atribuo à motivação do Prof. Marcos grande responsabilidade por
me despertar a paixão pelo estudo dos Direitos Fundamentais.
Estendo meus agradecimentos a todos os professores do Curso de
Mestrado em Ciência Jurídica da Univali, mestres de conhecimentos que levarei por
toda a minha vida profissional.
DEDICATÓRIA
Dedico a presente Dissertação à minha esposa, Gisele, que com amor,
paciência e companheirismo, prestou imenso apoio durante todo o curso. Sua
dedicação aos estudos, ao seu curso de mestrado e ao seu trabalho foi precioso
incentivo para o término dessa etapa de minha vida acadêmica. Tenho certeza de
que todas as horas que passamos estudando, nos finais de semana e durante as
noites nos demais dias, valeram a pena, quando se chega ao final do curso.
Este trabalho é dedicado também aos meus pais, Idaleto e Bernardete,
grandes incentivadores de estudos para toda a família, que ofereceram importantes
sugestões ao longo desta pesquisa.
À Anaide e à Maria Helena, minhas irmãs, dedico este trabalho pelo amor
e alegria.
Por fim, e não menos importante, dedico este trabalho a todos que foram
vítimas, de qualquer forma, da Ditadura Militar brasileira, na luta por um país mais
justo e livre.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do
Itajaí, a Coordenação do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica, a Banca
Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí-SC, 24 de setembro de 2013.
Wladimir Wrublevski Aued
Mestrando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
“O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado. O torturador é aquele
que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso dos
sofrimentos alheios, perpetrados por ele próprio. É uma espécie de cascavel de
ferocidade tal que morde até o som dos próprios chocalhos. Não se pode ter
condescendência com ele.” (Carlos Ayres Britto).
ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADPF
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
ADPF nº 153
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153
AI-1
Ato Institucional nº 1, de 1964
AI-2
Ato Institucional nº 2, de 1965
AI-3
Ato Institucional nº 3, de 1966
AI-4
Ato Institucional nº 4, de 1966
AI-5
Ato Institucional nº 5, de 1967
AP
Ação Popular
Arena
Aliança Renovadora Nacional
ALN
Aliança de Libertação Nacional
CIDH
Corte Interamericana de Direito Humanos
CNV
Comissão Nacional da Verdade
DSN
Doutrina da Segurança Nacional
DOI-CODI
Destacamento de Operações de Informações - Centro de
Operações de Defesa Interna
EC nº 26/85
Emenda Constitucional nº 26, de 1985
EUA
Estados Unidos da América
IBOPE
Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
MDB
Movimento Democrático Brasileiro
MFPA
Movimento Feminino pela Anistia
MR-8
Movimento Revolucionário 8 de Outubro
OAB
Ordem dos Advogados do Brasil
OEA
Organização dos Estados Americanos
ONU
Organização das Nações Unidas
PCB
Partido Comunista Brasileiro
PC do B
Partido Comunista do Brasil
PNDH-3
Plano Nacional de Direitos Humanos
POLOP
Organização Revolucionária Marxista – Política Operária
PORT
Partido Operário Revolucionário-Trotskista
STF
Supremo Tribunal Federal
TIP
Tribunal Penal Internacional
URSS
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
VPR
Vanguarda Revolucionária
ROL DE CATEGORIAS1
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental: instrumento jurídico que tem
sido usado, na forma principal, quando as demais ações forem incabíveis ou não se
revelarem idôneas para afastar ou impedir a lesão a preceito fundamental da
Constituição de 1988 e que na forma incidental, destina-se a provocar a apreciação
do Supremo Tribunal Federal sobre controvérsia constitucional relevante, objeto de
julgamento por qualquer juízo ou tribunal, se inexistir outro meio idôneo de sanar a
lesividade do preceito fundamental.2
AI-5: ato legislativo pelo o qual o presidente passou a ter poderes para fechar o
Congresso, para cassar mandatos, suspender direitos civis e demitir ou aposentar
servidores públicos. Ficou suspenso o direito de habeas corpus de acusados de
crimes contra a ordem econômica e social e a economia popular. Estabeleceu-se a
censura nos meios de comunicação e a tortura passou a fazer parte integrante dos
métodos do Governo Militar.3
Anistia: é uma medida legal, adotada em circunstâncias excepcionais, cuja função
primária é remover, condicionada ou incondicionalmente, a possibilidade e, às
vezes, mesmo as consequências de um procedimento legal contra determinados
indivíduos ou classe de pessoas, em relação a também designados tipos de
ofensas.4
Autoanistia: busca, unicamente, suprimir a responsabilidade dos agentes do
Estado.5
1
“[...] denominamos Categoria a palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de
uma idéia”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: Teoria e Prática. 12 ed.
São Paulo: Conceito Editorial, 2011.
2
SARMENTO, Daniel. 21 Anos da Constituição de 1988: a Assembleia Constituinte de 1987/1988 e
a Experiência Constitucional Brasileira sob a Carta de 1988. Instituto Brasiliense de Direito
Público. Revista Direito Público. Vol 1 – (30), Brasília, 2009: 157-158. Disponível em:
http://www.direitopublico.idp.edu.br/index.php/direitopublico/article/viewArticle/788. Acesso em: 24
jun. 2013.
3
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p.
480.
4
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito: perspectivas
teórica-comparativa e análise do caso brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 84.
5
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Voto do Ministro Melo Filho. Lei de Anistia. Princípio
Constituição: pode ser compreendida como em um sistema de regras, substanciais
e formais, que têm como destinatários próprios os titulares do poder.6
Crime Conexo: situa-se no plano secundário do principal (Crime Político), ambos
pressupõem a motivação política.7
Crime Político: pressupõe um combate ilegal à estrutura jurídica do Estado, à
ordem social, à estrutura política do Estado, sendo crimes de feição político-social.8
Crimes de Lesa-Humanidade (Crime contra Humanidade): artigo 7º: 1. “Para os
efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade", qualquer
um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou
sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:
a) Homicídio; b) Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada
de uma população; e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave,
em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura; g)
Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada,
esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de
gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser
identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou
de gênero, tal como definido no parágrafo 3º, ou em função de outros critérios
universalmente
reconhecidos
como
inaceitáveis
no
direito
internacional,
relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da
competência do Tribunal; i) Desaparecimento forçado de pessoas; j) Crime de
apartheid; k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem
intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a
6
7
8
Democrático. Integração da Lei de 1979 na Nova Ordem Constitucional. Acórdão da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, DF, 29 de
abril
de
2010.
p.
184.
Disponível
em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960. Acesso em 19 jul.
2012.
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional. In: _________. Democracia y garantismo.
Tradução de: Perfecto A. Ibáñes et all. Madrid: Trotta, 2008. p. 32. s/d.
BRASIL Voto do Ministro Britto. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 141-142.
BRASIL. Voto do Ministro Britto. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 140.
saúde física ou mental.”9
Contrato Social: A categoria Contrato Social pode ser entendida, para a corrente do
contratualismo moderno, como o pacto firmado entre os homens para superar os
inconvenientes do estado de natureza, que funciona como instrumento de passagem
do momento negativo de natureza para o estágio político (social), servido como
fundamento de legitimação do Estado de Sociedade.10
Democracia: “[...] é o de considera-la caracterizada por um conjunto de regras
(primárias e fundamentais) que preveem quem está autorizado a tomar as decisões
coletivas e com quais procedimentos.” 11
Democracia Constitucional: reside em um conjunto de limites impostos pelas
constituições a todo o poder, que postula a Democracia como um sistema frágil e
completo de separação e de equilíbrio entre os poderes, de limites de forma e de
substancia a seu exercício, de garantia de Direitos Fundamentais, de técnicas de
controle e de reparação de suas violações.12
Democracia Majoritária (plebiscitária): significa essencialmente a onipotência do
poder da maioria, da soberania popular.13
Dignidade da Pessoa Humana: “assim sendo, temos por dignidade da pessoa
humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho
degradante e desumano, como venha a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação
9
BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal
Penal Internacional. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 26 set. 2002
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm. Acesso em: 17 set.
2013.
10
MORAIS, José Luiz B. de. Contrato Social. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de
Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2006, p. 163-168.
11
BOBBIO, Norberto.O Futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de: M. A.
Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 1986. p. 18. Título original: Il futuro della democrazia. Una
difesa delle regole del gioco. Destaques no original.
12
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 27.
13
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 25.
ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos.”14
Direito à Justiça: equivale ao Princípio da Inafastabilidade do Poder Judiciário,
principalmente ao acesso à justiça criminal.15
Direito à Modificação das Instituições Estatais: consiste na modificação radical,
em muitos casos atinge à dissolução, das instituições responsáveis pelas violações
de Direitos Fundamentais. A modificação de instituições estatais pode ser feita por
medidas legais, administrativas e institucionais e visam evitar que o aparato estatal
seja utilizado novamente no futuro para provocar violações aos cidadãos.16
Direito à Reparação: advém do dever garantido pelo direito internacional do Estado
de reparar as vítimas pelas graves violações aos Direitos Humanos que sofreram. A
reparação pode assumir várias formas, que incluem a ajuda material (pagamentos
compensatórios, a concessão de pensões e de bolsas de estudos), a assistência
psicológica (aconselhamento para lidar com o trauma) e medidas simbólicas
(construção de monumentos e memoriais).17
Direito à Verdade e à Memória: o Direito à Verdade consiste em dar amplo
conhecimento aos atos violadores de Direitos Fundamentais e também para que o
Estado, os cidadãos e os opressores reconheçam as injustiças dos abusos,18 está
relacionado ao Direito à Memória, no sentido de que o aprendizado e a vivência
viabilizam a construção de referencias, da identidade e da elaboração dos projetos
para o futuro.19
14
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado. 2006, p. 60, destaques no original.
15
Conceito Operacional proposto pelo Autor.
16
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos. In: REÁTEGUI,
Félix (Coord.). Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília: Ministério da Justiça,
2011.
p.
53.
Disponível
em:
http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf/manual_justica_transicao_america_latina.pdf.
Acesso em: 10 mai. 2013.
17
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 52.
18
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 51.
19
RODRIGUES, Natália Centeno e VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Justiça de Transição: um
breve relato sobre a experiência brasileira. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da (Org.).
Justiça de transição no Brasil: violência, justiça e segurança. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. p.
260. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Pdf/978-85-397-0225-1.pdf. Acesso
em: 15 mai. 2013.
Direitos Fundamentais: “[...] compreendidos como todos os direitos subjetivos que
correspondam universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do
status de pessoa, de cidadão ou de pessoa com capacidade de agir civilmente”.20
Direito Positivo: pode ser entendido conforme a definição de Hans Kelsen de
Direito, compreendido como um sistema de normas postas por ato de poder
dispostas de um modo hierárquico.21
Ditadura Militar brasileira: ocorreu entre os anos 1964 e 1985 e atravessou três
fases distintas. A primeira ocorre com o Golpe Militar de 1964 e a consolidação do
regime. A segunda fase é iniciada em dezembro de 1968, com a declaração do Ato
Institucional nº 5 (AI-5). A terceira fase tem seu termo inicial com a posse na
Presidência do general Ernesto Geisel, em 1974, e término, em 1985, com a eleição
de Tancredo de Almeida Neves.22
Doutrina da Segurança Nacional: linha de atuação ideológica que pautou os
projetos políticos Norte-Americanos para a América Latina após o término da Guerra
Fria, tinha como fim a contenção e do comunismo no Continente, por meio da
formação de blocos militares com os países aliados, assegurando novos e
tradicionais mercados.23
Eficácia: “[...] uma norma é ‘eficaz’ quando é de fato observada pelos destinatários
(e/ou aplicada pelos órgãos de aplicação)”.24
Estado de Direito: designa, além de um Estado regulado por leis, um Estado
nascido das modernas constituições, caracterizado: a) no plano formal, pelo
20
21
22
23
24
“[...] todos aquellos derechos subjetivos que correspondem unviveralmente a `todos` los seres
humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad de
obrar [...]”. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Tradução de: Perfecto
A. Ibáñez e Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 2004. Título original: Il diritto come sistema de garanzie.
p. 37. Todas as traduções deste trabalho são realizadas de forma livre pelo autor.
BERZOTTO, Luis Fernando. Positivismo Jurídico. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de
Filosofia do Direito. p. 644.
BRASIL. Secretaria dos Direitos Humanos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria dos Direitos Humanos, 2007. p. 19.
FERNANDES, Amanda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva. UEL. Revista
Antitéses.
Vol
2
–
(4),
Londrina,
2009:831-834.
Disponível
em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/2668. Acesso em 10 jun. 2013.
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 79-80.
princípio da legalidade, que disciplina o poder público (legislativo, judiciário e
administrativo) vinculado às leis gerais e abstratas, as formas de exercício do poder
são previstas legalmente e sua observância é submetida ao controle de legitimidade
por parte dos juízes autônomos e independentes; b) no plano substancial, todos os
poderes do Estado funcionam para garantir Direitos Fundamentais dos cidadãos, por
meio
da
incorporação
limitadora
na
Constituição
dos
deveres
públicos
correspondentes (vedações legais de lesão aos direitos de liberdade, obrigações de
satisfação dos direitos sociais e poder do cidadão de buscar a tutela desses direitos
no judiciário).25
Estado de Exceção: ocorre quando há a interrupção da ordem estatal, afastando
sua normalidade, sem suspender o Estado enquanto unidade política, destruindo-o,
para preservá-lo. Por meio do exercido da soberania do Estado, o direito se perpetua
por meio de sua auto-supressão, abandonando os seus sujeitos de direito, lançandoos no vazio sem proteção.26
Garantias: como técnicas de tutela dos Direitos Fundamentais, são obrigações
correspondentes aos direitos subjetivos, estes entendidos como toda expectativa
jurídica positiva (de prestação) ou negativa (de lesões).27
Garantismo Jurídico: pode ser compreendido como um modelo de direito, baseado
no respeito à Dignidade da Pessoa Humana e nos Direitos Fundamentais, com
sujeição formal e material aos conteúdos constitucionais.28
Guerra Fria: um conflito não armado permanente entre as superpotências (EUA e
URSS), que atuava no plano militar, político, econômico e psicológico.29
Guerrilha do Araguaia: ocorrida de 1972 a 1974, consistem em um movimento
25
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria dos garantismo penal. Tradução de: SICA, Ana Paula
Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 789. Título original: Diritto e ragione: teoria
del Garantismo penale.
26
GHETTI, Pablo. Estado de Exceção. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do
Direito. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2006. p. 292-295.
27
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 61-63.
28
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, Florianópolis: Habitatus, 2003, p. 20.
29
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina.
Tradução de: A Veiga Fialho. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978. p. 39-44. Título original:
L’Idéologie de la Securité National: le Pouvoir Militaire en Amérique Latine.
composto por alguns membros do PC do B, que se propuseram a lutar contra os
militares, por meio da construção de um exército popular de libertação.30
Golpe Militar de 64: O general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região
Militar iniciou o Golpe Militar em 31 de março de 1964, com a movimentação de suas
tropas, em Juiz de Fora (MG). Os militares avançaram em direção à cidade do Rio
de Janeiro e acabaram por receber a adesão gradual de forças favoráveis ao
movimento, culminando na saída de João Goulart da Presidência da República.31
Interpretação
conforme
a
Constituição:
um
método
de
controle
de
constitucionalidade, pelo o qual se busca interpretar o dispositivo normativo no
contexto da norma (decreto, lei), no conjunto jurídico que pertence (direito civil,
penal, administrativo, entre outros) e, especialmente, levando em consideração a
ordem constitucional vigente. Dentre diversos significados possíveis de um
dispositivo legal, busca-se o que for compatível com as normas constitucionais,
evitando a declaração de inconstitucionalidade da norma.32
Justiça de Transição: “denominou-se de “Justiça de Transição” a uma série de
iniciativas empreendidas por via dos planos internacional, regional ou interno, nos
países em processos de liberalização ou democratização, englobando suas políticas
públicas, suas reformas legislativas e o funcionamento de seu sistema de justiça,
para garantir que a mudança política seja bem sucedida e que, ao final dela, exista
não
apenas
uma
democracia
eleitoral
(caracterizada
por
eleições
procedimentalmente eqüitativas), mas sim um Estado de Direito na acepção
substancial do tema”.33
30
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Guerrilha do Araguaia. Lei de Anistia.
Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. San José, Costa Rica, 24 de novembro de 2010. p. 32-33.
Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/. Acesso em: 17 jul. 2012.
31
FICO, Carlos. Além do golpe: a tomada do poder em 31 de março de 1964 e a ditadura militar. Rio
de Janeiro: Record, 2004. p. 15-18
32
CARDOSO, Oscar Valente. A interpretação constitucional como método de controle de
constitucionalidade. Instituto Brasiliense de Direito Público. Revista Direito Público. Vol. 1 –
(25),
Brasília,
2009:
60-61.
Disponível
em:
http://www.direitopublico.idp.edu.br/index.php/direitopublico/article/viewArticle/549. Acesso em 08
jul. 2013.
33
ALMEIDA, Eneá de Stutz e TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição, Estado de Direito e
Democracia Constitucional: Estudo preliminar sobre o papel dos direitos decorrentes da
transição política para a efetivação do estado democrático de direito. PUCRS. Sistema Penal &
Violência – Revista eletrônica da Faculdade de Direito. Vol. 2 – (20), Porto Alegre, 2010:38.
Juspositivismo Dogmático: “[...] cada orientação teórica que ignora o conceito de
vigor das normas como categoria independente da validade e da efetividade: sejam
os ordenamentos normativos, que assumem como vigentes somente as normas
válidas, sejam ordenamentos realistas, que assumem como vigentes apenas as
normas efetivas”.34
Legalidade Autoritária: transformação do ordenamento jurídico de maneira
antidemocrática, por alterações constitucionais e atos infraconstitucionais, para
atender aos interesses do Regime Militar, utilizando-se do Poder Judiciário para
investigar e punir os opositores.35
Lei-Medida: entende-se por Lei-Medida, quando o legislador passa à ação para
disciplinar diretamente determinados interesses, por meio de um comando concreto,
revestido de forma de norma geral, e não edita mais regras abstratas e gerais,
configurando ato administrativo. São leis em sentido formal, mas não em sentido
material.36
Limites ao Exercício do Poder: valores axiológicos positivados, de forma e de
conteúdo, constituem os vínculos e limites jurídicos à produção jurídica.37
Norma Formal: representa o que o direito é, não deriva da moral nem da natureza,
vêm daquilo que o homem deseja.38
Norma Substancial: dever ser do Direito Positivo, representa suas condições de
validade, são os valores ético-políticos previstos no ordenamento jurídico.39
Regime Militar: é caracterizado quando a cúpula das forças armadas assumiu
diretamente o poder e outras funções de governo. A instância mais alta na indicação
da sucessão dos presidentes passou a ser composta somente por militares.40
Disponível
em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/
article/viewArticle/8111. Acesso 11 mai. 2013.
34
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 803.
35
Conceito Operacional proposto pelo Autor.
36
GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 250.
37
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias, p. 19.
38
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías, p. 19.
39
FERRAJOLI, Luigi.Derechos y garantias, p. 19.
40
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 512-513.
Responsabilidade Penal dos Militares: participação pessoal de integrantes das
forças armadas por delitos cometidos durante a Ditadura Militar brasileira, na exata
medida das ações de cada agente. Mede-se suas motivações e eventuais excessos,
além de estabelecer as devidas punições mediante a culpabilidade específica de
cada indivíduo.41
Segurança Nacional: “é a capacidade que o Estado dá à Nação para impor seus
objetivos a todas as forças oponentes. Essa capacidade é, naturalmente, uma força.
Trata-se, portanto, da força do Estado, capaz de derrotar todas as forças adversas e
de fazer triunfar os Objetivos Nacionais”.42
Sociedade: “constitui-se a sociedade no e pelo fluxo das necessidades e
potencialidades da vida humana; o que implica a experiência tanto da solidariedade,
do cuidado, quanto da oposição, da conflitividade.”43
Validade: “[...] uma norma é ‘válida’ quando está imunizada contra vícios materiais;
ou seja, não está em contradição com nenhuma norma hierarquicamente superior”.44
Validade Formal: conformidade da norma jurídica com o devido procedimento de
sua edição e a competência do órgão que a emana.45
Validade Substancial: conformidade da norma jurídica com as condições que
regulam o conteúdo da norma, ou melhor, seu significado.46
Vigência: “[...] uma norma é ‘vigente’ quando é despida de vícios formais, ou seja,
foi emanada ou promulgada pelo sujeito ou órgão competente, de acordo com o
procedimento prescrito”.47
41
LINHARES, Alebe e TEIXEIRA, Zaneir Gonçalves. As medidas de responsabilização do estado e
de seus agentes por crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). In: XIX
ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI.
Fortaleza:
Fundação
Boiteux,
2010.
p.
4888.
Disponível
em:
http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/3316.pdf. Acesso em: 26 abr. 2013.
42
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 54.
43
SANTOS DIAS, Maria da Graça dos. Sociedade. In: BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.).
Dicionário de filosofia política. São Leopoldo: UNISINOS, 2010. p. 487.
44
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 79-80.
45
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 806.
46
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 806.
47
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 79-80.
SUMÁRIO
RESUMO
p.20
ABSTRACT
p.22
INTRODUÇÃO
p.24
1 DA DITADURA MILITAR AO PROCESSO DE ANISTIA
p.30
1.1 A DITADURA MILITAR NO BRASIL, DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL E
LEGALIDADE AUTORITÁRIA
p.30
1.1.1 Autoritarismo e a Ditadura Militar
p.30
1.1.2 O Golpe de 1964 e a Ditadura Militar no Brasil
p.34
1.1.3 A Doutrina da Segurança Nacional
p.43
1.1.4 A Legalidade Autoritária
p.47
1.2 A ANISTIA BRASILEIRA
p.52
1.2.1 O surgimento da Anistia brasileira
p.52
1.2.2 A Anistia como instrumento de Justiça de Transição
p.62
2 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL E A POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS SOBRE
A RESPONSABILIDADE PENAL DOS MILITARES
p.67
2.1 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
p.68
2.1.1 Direito à Verdade e à Memória
p.73
2.1.2 Direito à Reparação
p.75
2.1.3 Direito à Modificação das Instituições Estatais
p.77
2.1.4 Direito à Justiça
p.78
2.2 A RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DOS MILITARES PARA O SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL E PARA A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS
p.80
2.2.1. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153
p.81
2.2.1.1 A questão da prescrição
p.83
2.2.1.2 Crimes políticos e crimes a eles conexos
p.87
2.2.1.3 Revisão da Lei de Anistia
p.91
2.2.2. O caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil
p.94
2.2.2.1 Os fatos julgados: a Guerrilha do Araguaia
p.94
2.2.2.2 A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Caso Gomes Lund e outros
versus Brasil
p.97
2.2.2.3 Desaparecimentos forçados
p.98
2.2.2.4 A Lei de Anistia
p.99
2.2.2.5 A violação ao direito à verdade
p.100
2.2.2.6 O Dispositivo da Decisão
p.101
3 A TEORIA GARANTISTA E OS LIMITES AO EXERCÍCIO DO PODER
p.104
3.1 OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO GARANTISMO JURÍDICO
p.104
3.1.1 A primeira concepção: um modelo normativo de direito
p.109
3.1.1.1 Democracia e Estado de Direito
p. 111
3.1.1.2 Garantismo e Democracia
p. 113
3.1.2 A segunda concepção: uma teoria da validade, da efetividade e da vigência
normativa
p. 116
3.1.3 A terceira concepção: uma filosofia da política
p. 121
3.2 A CONCEPÇÃO GARANTISTA DE DIRETOS FUNDAMENTAIS
p. 124
3.3 LIMITES AO EXERCÍCIO DO PODER
p. 131
CONSIDERAÇÕES FINAIS
p. 136
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS
p. 142
20
RESUMO
Na presente Dissertação, com apoio teórico do Garantismo Jurídico, faz-se uma
análise se os Limites ao Exercício do Poder trazidos pelo Estado Democrático de
Direito, instituído pela Constituição promulgada em 1988, permitem (ou não
permitem) a concessão de Anistia de responsabilidade criminal aos militares
envolvidos em delitos praticados durante a Ditadura, ocorrida no país de 1964 a
1985. O Regime Militar, sob a influência da Doutrina da Segurança Nacional e pela
construção de uma Legalidade Autoritária, cometeu graves violações aos Direitos
Fundamentais de seus opositores políticos ao reprimi-los violentamente com
assassinatos, torturas, sequestros e pela prática de desaparecimentos forçados. A
promulgação da atual Constituição da República Federativa do Brasil instituiu o
Estado Democrático de Direito, pondo término ao regime jurídico autoritário vigente
durante o período ditatorial. Atualmente, embora tenha se passado quase vinte e
cinco anos da instituição formal da democracia no Brasil, ainda há forte resistência
sobre o reconhecimento da invalidade da Lei n° 6.683/79 (mais conhecida como a
Lei da Anistia), prevalecendo o entendimento nos tribunais nacionais de que a
mesma possui Eficácia para impedir que os militares sejam investigados e
responsabilizados penalmente por delitos cometidos durante os anos de 1961 e
1979. O tema foi o objeto de dois importantes julgamentos, o acórdão da Ação de
Preceito Fundamental (ADPF) n° 153, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e a
decisão do caso Gomes Lund e outros versus Brasil, pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH), com entendimentos divergentes sobre o tema. O primeiro
concluiu que não há violação a preceitos fundamentais pela Lei nº 6.683/79,
conquanto o segundo tenha condenado o Brasil a fazer a investigação criminal dos
militares. Entende-se que, antes da definição se o julgamento adotado por um
tribunal brasileiro está (ou não) subordinado à conclusão contrária adotada pela
CIDH, existe a necessidade de verificar se a decisão nacional está em conformidade
com a Constituição vigente. A fim de realizar está análise, busca-se aporte teórico no
Garantismo Jurídico, elaborada pelo professor italiano Luigi Ferrajoli, para verificar a
validade da Lei n° 6.683/79 frente ao Estado Democrático de Direito, haja vista que
oferece uma redefinição do conceito de Validade da norma jurídica e por trazer
limites formais e substanciais ao exercício do poder. Nas considerações finais,
21
defende-se que a Autoanistia concedida aos militares desrespeita os limites
impostos pela Constituição de 1988, o Brasil deve alterar o entendimento majoritário
de seus tribunais e responsabilizar criminalmente os militares.
Palavras-chave:
Ditadura
Militar
Brasileira, Anistia,
Garantismo Jurídico, Limites ao Exercício do Poder.
Justiça
de
Transição,
22
ABSTRACT
Drawing on the theoretical support of Guaranteeism, this paper analyzes whether the
limits on the exercise of political power brought by the democratic state, established
by the 1988 Brazilian Constitution, allow for the granting of amnesty from criminal
responsibility for military personnel involved in crimes committed during the military
dictatorship in Brazil, from 1964 to 1985. The military regime, under the influence of
National Security Doctrine and the construction of an “Authoritarian Legality”
committed serious violations of fundamental rights against its political opponents,
repressing them with extreme violence: murder, torture and kidnapping, and the
practice of forced disappearances. The promulgation of the current Constitution of
the Federative Republic of Brazil established the democratic rule of law, putting end
to the legal authoritative regime that was in place during the military dictatorship.
Nowadays, twenty-five years after the formal establishment of democracy in the
country, there is still strong resistance towards the recognition of the invalidity of the
Brazilian Law of Amnesty, and there is a prevalent understanding, in in the Brazilian
courts, that the above-mentioned law has effectiveness in preventing military
personnel from being investigated and held criminally responsible for the crimes
committing during 1961 and 1979. This topic was the subject of two important
judgments with divergent conclusions; the case Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental n°153, in the Brazilian Supreme Court, and the case Gomes
Lund and others versus Brazil, in the Inter-American Court of Human Rights. The first
concluded that there is no violation of the Constitution by Law nº 6.683/79, while the
second ordered Brazil to carry out a criminal investigation of its military personnel. It
is argued that before defining whether the decision adopted by a Brazilian court is
subordinate to a contrary conclusion adopted by the Inter-American Court on Human
Rights, it is necessary to determine whether the national decision is in accordance
with the current Constitution. This work uses theoretical support of Theory of
Guaranteeism developed by Luigi Ferrajoli, in order to analyze the validity of the
Brazilian Law of Amnesty in light of democratic rule of law, given that it this theory
offers a redefinition of the concept of validity of the legal norm, and imposes
procedural and substantive limits on the exercise of power. In the final
considerations, it defends the view that the self-amnesty granted to the military
23
violates the limits imposed by the 1988 Constitution. Brazil should therefore change
the majority understanding of its courts, and hold military personnel responsible.
Keywords:
Brazilian
Military
Dictatorship,
Amnesty,
Guaranteeism, Legal Limits to the Exercise of Power.
Transitional
Justice,
24
INTRODUÇÃO
O objetivo institucional da presente Dissertação é a obtenção do título de
Mestre em Ciência Jurídica pelo Curso de Mestrado em Ciência Jurídica da
Universidade do Vale do Itajaí – Univali, na linha de pesquisa direito e jurisdição.
No período entre 1964 e 1985, a Ditadura Militar ocorrida no Brasil foi
marcada pela forte repressão e cerceamento de direitos civis e políticos da
população. Sob a influência da Doutrina da Segurança Nacional e pela construção
de uma Legalidade Autoritária, utilizou-se o discurso de evitar o crescimento do
comunismo no país, para violar os Direitos Fundamentais dos opositores políticos e
de qualquer pessoa que não concordava com os interesses do Regime Militar.
Assassinatos, torturas e desaparecimentos forçados foram alguns dos meios
violentos utilizados para impor o regime ditatorial à população.
O principal evento do processo de transição para a consolidação do
regime democrático ocorreu em 05 de outubro de 1988, com a promulgação da atual
Constituição da República Federativa do Brasil. Esse fato da história política do país
instituiu o Estado Democrático de Direito, pondo término ao regime jurídico
autoritário vigente durante o período da Ditadura Militar. Atualmente, embora tenham
se passado quase vinte e cinco anos da instituição formal da democracia no Brasil,
ainda persiste um grande debate jurídico sobre o reconhecimento da invalidade da
Lei n° 6.683/79 (mais conhecida como a Lei da Anistia). Da indefinição jurídica sobre
o tema, surge a necessidade da realização da presente pesquisa para, com o
aprofundamento do conhecimento da questão, propor uma solução que reforce os
alicerces do Estado Democrático de Direito brasileiro e evite futuras violações a
Direitos Fundamentais.
A Lei nº 6.683/79 foi produzida durante o período de exceção,
anteriormente à promulgação da Carta de 1988, porém, até os dias de hoje,
prevalece o entendimento nos tribunais de que a mesma possui Eficácia para
impedir que militares sejam investigados e responsabilizados penalmente por crimes
cometidos durante os anos de 1961 e 1979. Ante a isenção de responsabilização
penal dos militares, recentemente o tema foi o objeto de dois importantes
25
julgamentos, o acórdão da Ação de Preceito Fundamental (ADPF) n° 153, pelo
Supremo Tribunal Federal, e a decisão do caso Gomes Lund e outros versus Brasil,
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em tais julgamentos, houve
entendimentos divergentes sobre a Validade da Lei de Anistia. O primeiro concluiu
que não há violação de preceitos fundamentais pela Lei nº 6.683/79,48 conquanto o
segundo tenha condenado o Brasil a fazer a investigação criminal dos militares.49
Embora exista contradição entre os mencionados julgamentos acerca da
Validade da Anistia brasileira, a questão não consiste unicamente em uma
divergência de entendimentos entre um tribunal nacional e outro internacional. Antes
de definir se o julgamento adotado por um tribunal brasileiro está (ou não)
subordinado à conclusão contrária adotada pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, verifica-se a necessidade de investigar se a decisão nacional está em
conformidade com o Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição
vigente. Se na época do regime ditatorial o exercício do poder era ilimitado, após o
ano de 1988, passou-se a exigir dos detentores do poder o cumprimento dos limites
previstos constitucionalmente, o que pode não ter ocorrido na concessão da Anistia
aos militares.
No desenvolvimento da análise, se os limites constitucionais são
respeitados com a concessão da Anistia, busca-se apoio na Teoria do Garantismo
Jurídico, elaborada pelo professor italiano Luigi Ferrajoli, na medida em que redefine
o conceito de Validade da norma jurídica, e por trazer limites formais e substanciais
ao exercício do poder. Por consequência, oferece importante contribuição acerca da
compreensão da Validade da Lei n° 6.683/79, frente ao Estado Democrático de
Direito.
O objetivo geral, na realização do presente trabalho, é demonstrado por
seu Referente:50 investigar, com apoio teórico do Garantismo Jurídico, se os Limites
48
BRASIL. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, p. 01-04.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outos vs. Brasil, p.
115.
50
“[...] vamos denominar REFERENTE a explicação prévia dos(s) dos motivo(s), do(s) objetivo(s)
e do produto desejado, delimitando o alcance temático e de abordagem para uma atividade
intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da
Pesquisa Jurídica, p. 54, destaque no original.
49
26
ao Exercício do Poder trazidos pelo Estado Democrático de Direito, instituído pela
Constituição promulgada em 1988, permitem (ou não permitem) a concessão de
Anistia de responsabilidade criminal aos militares envolvidos em delitos praticados
durante a Ditadura Militar, ocorrida no país de 1964 a 1985?
Para o desenvolvimento da pesquisa, foram levantadas a(s) seguinte(s)
hipótese(s):
a) O Estado Democrático de Direito, instituído no Brasil pela Constituição
de 1988, trouxe Limites ao Exercício do Poder Político, consistindo os Direitos
Fundamentais como limites substanciais.
b) Os Limites ao Exercício do Poder trazidos pelo Estado Democrático de
Direito não permitem a Anistia de responsabilidade criminal aos militares envolvidos
em crimes durante a Ditadura Militar, ocorrida no Brasil de 1964 a 1985.
c) Frente ao Estado Democrático de Direito, uma das duas decisões sobre
a violação (ou não) de Direitos Fundamentais pela Lei nº 6.683/79 deve prevalecer,
seja o Acórdão da ADPF nº 153 ou o julgamento do caso Gomes Lund e outros
versus Brasil.
Os resultados do trabalho de exame das hipóteses estão expostos na
presente dissertação, segundo a cronologia dos fatos; primeiro, o período da
Ditadura Militar, depois, a transição política, para, ao final, versar sobre o Estado
Democrático de Direito, suscintamente, como segue:
No Capítulo 1, analisa-se os fatos mais marcantes da Ditadura Militar,
ocorrida no Brasil entre os anos de 1964 e 1985, e o processo de construção da
Anistia. Inicia-se com a relação entre acontecimentos marcados pelo autoritarismo
na história do país, e os principais eventos que resultaram no Golpe Militar de 1964,
que marca o início do período ditatorial. Sistematiza-se os governos dos integrantes
das forças armadas, Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo,
suas modificações mais destacadas produzidas no ordenamento jurídico, bem como
os atos de violações a Direitos Fundamentais promovidos pelo Regime Militar. Situase o período ditatorial como um acontecimento histórico ocorrido por forte influência
27
da Doutrina da Segurança Nacional, que produziu uma Legalidade Autoritária para
reprimir os opositores políticos. Após, analisa-se surgimento da Anistia brasileira,
que marca o início da transição do regime ditatorial para a Democracia, sendo um
instituto político e jurídico relacionado a interesses antagônicos por parte da
Sociedade e do governo da época. Expõem-se, ainda, como uma intepretação da
Lei nº 6.683/79, fomentada pelo governo militar, pretende garantir a impunidade dos
agentes da repressão mesmo na vigência da Constituição da República Federativa
do Brasil, promulgada em 1988.
O Capítulo 2 versa acerca da implementação da Justiça de Transição no
Brasil e sua importância para a consolidação da Democracia instituída pela
Constituição de 1988. Discorre-se sobre os Direitos à Verdade e à Memória, à
Reparação, às Modificações das Instituições Estatais e de acesso à Justiça,
situando este último como a medida transicional de maior dificuldade de
implementação no país. A Responsabilização Criminal de Militares por crimes
cometidos durante o regime ditatorial enfrenta relevante oposição no Brasil. Por essa
razão, expõem-se os argumentos e conclusões dos julgamentos da Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental n° 153 e do caso Gomes Lund e outros
versus Brasil, que demonstram as principais posições jurídicas adotadas sobre o
tema no âmbito interno no país e na esfera internacional da Organização dos
Estados Americanos. Demonstra-se que o Supremo Tribunal Federal reconheceu,
injustificadamente, a Validade da Lei nº 6.683/79 frente à Carta Magna de 1988, ao
utilizar uma intepretação dessa Lei, disseminada pelos militares, para esconder a
Autoanistia concedida à época. Em sentido contrário, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos condenou o Brasil por adotar um entendimento interno de não
respeito de obrigações assumidas internacionalmente de tutela dos Direitos
Humanos.
No Capítulo 3, dedica-se à análise dos limites democráticos ao exercício
do poder propostos pela teoria do Garantismo Jurídico, desenvolvida por Luigi
Ferrajoli. A fim de compreender o aporte teórico do professor italiano, sistematiza-se
os três significados do termo Garantismo como: um modelo normativo de direito,
uma teoria de Validade, efetividade e Vigência normativa e uma filosofia do direito. O
28
primeiro dos três significados designa um modelo de ordenamento dotado de meios
para invalidar o exercício do poder; o segundo versa sobre a deslegitimação interna
das normas jurídicas consideradas vigentes e inválidas, e o terceiro propõe uma
análise acerca da perda de legitimação externa das intuições jurídicas positivas.
Analisa-se a formulação de Direitos Fundamentais defendido por Ferrajoli para, ao
final, verificar os Limites ao Exercício do Poder previstos no Estado Democrático de
Direito e sua relação com a Autoanistia concedida aos militares por meio da Lei nº
6.683/79.
O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as Considerações
Finais, nas quais são sintetizadas as contribuições sobre a invalidade da Autoanistia
de responsabilidade criminal concedida aos militares pela Lei nº 6.683/79.
O Método51 utilizado tanto na fase de Investigação quanto no Tratamento
dos Dados, foi o Indutivo, com a utilização da Técnica52 de investigação de análise
bibliográfica.
Nesta Dissertação, as Categorias principais estão grafadas com a letra
inicial em maiúscula, e os seus conceitos operacionais são apresentados em
glossário inicial ou através de referências no rodapé.
Acredita-se que a presente proposta de estudo poderá oferecer uma
definição jurídica acerca do imbróglio existente desde 1979 sobre a extensão dos
efeitos da Anistia aos militares, que cometeram crimes durante a Ditadura Militar. O
aprofundamento no conhecimento sobre os Limites ao Exercício do Poder auxilia a
análise de outros casos em que haja o enfraquecimento de Direitos Fundamentais
pelos detentores do poder político. Além disso, possibilita uma melhor compressão
da relação existente entre os tribunais nacionais e a Corte Interamericana de
51
52
“[...] Método: é a base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica, ou seja, Método é a forma
lógico-comportamental na qual se baseia o Pesquisador para investigar, tratar os dados
colhidos e relatar os resultados.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica, p.
85, destaques no original.
“Técnica é um conjunto diferenciado de informações, reunidas e acionadas em forma
instrumental, para realizar operações intelectuais ou físicas, sob comando de uma ou mais
bases lógicas de pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica, p. 8889, destaque no original.
29
Direitos Humanos em casos que envolvem violações a Direitos Humanos.
30
CAPÍTULO 1
DA DITADURA MILITAR AO PROCESSO DE ANISTIA
Neste capítulo, examina-se o período ditatorial sucedido no Brasil, entre
os anos de 1964 e 1985, e o processo da Anistia brasileira. Em sua primeira parte,
são analisados os principais acontecimentos da Ditadura Militar, a influência da
Doutrina da Segurança Nacional nos acontecimento políticos da época e a utilização
da Legalidade Autoritária na repressão da oposição. Na segunda metade do
capítulo, situa-se o processo de construção da Anistia brasileira, os antagônicos
interesses envolvidos e a discussão sobre a natureza deste instituto, não como um
acordo político, mas como uma Autoanistia concedida pelo Governo aos militares.
1.1 A DITADURA MILITAR NO BRASIL, DOUTRINA DA SEGURANÇA
NACIONAL E LEGALIDADE AUTORITÁRIA
1.1.1 Autoritarismo e a Ditadura Militar
Em termos gerais, a presença do pensamento autoritário no Brasil pode
ser verificada anteriormente ao desenvolvimento da Doutrina da Segurança Nacional
na América do Sul, na segunda metade do século XX, pelas ditaduras militares. O
controle e a obediência à autoridade, com o fim na manutenção da “ordem”,
consistem em uma marca característica da formação dos Estados Nacionais em
todo o Continente. 53
São recentes, no Brasil, as defesas em prol do exercício do poder político
53
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução
de instituições políticas brasileiras e a justiça de transição. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira
da (Org.). Justiça de transição no Brasil: violência, justiça e segurança. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2012. P. 313. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Pdf/978-85-3970225-1.pdf. Acesso em 15 mai. 2013.
31
por um regime democrático, governado pela soberania popular, com respeito e
promoção dos Direitos Fundamentais. Em termos históricos, este foi afirmado
somente com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, de
1988.54 As características autoritárias da organização do poder no país estão
presentes desde as primeiras cartas magnas. As constituições de 1824, 1891, 1937
e 1946 previam a possibilidade de suspensão parcial da ordem ou das garantias
constitucionais para certas ocasiões.55
Quando os militares destituíram da presidência João Goulart, em 1964, e
ocuparam o poder, estavam dando sequência a uma longa história intervencionista
que remonta aos séculos anteriores da história brasileira. De fato, desde o período
da monarquia, registram-se levantes populares contra opressões políticas, tais
como: Confederação do Equador (1824), Cabanagem (1835-1840), Guerra dos
Farrapos (1835-1845), Sabinada (1837-1838), Balaiada (1838-1841), Revolta Liberal
(1842) e a Revolução Praieira (1848). No período republicano ocorreram Canudos
(1897), Contestado (1912), Levante Tenentista (1922 e 1924) e a Coluna Prestes
(1924-1927). 56
Por meio do acontecimento desencadeado pelo Partido Comunista
Brasileiro (PCB),57 em novembro de 1935, a chamada Intentona Comunista, as elites
representadas no governo de Getúlio Vargas aproveitam a ocorrência para golpear
contra algumas conquistas democráticas legitimadas pela Revolução de 1930. Em
1937, as forças armadas agrupam-se em torno de Vargas para instaurar uma
ditadura, sob o nome de Estado Novo, que durou até outubro de 1945, quando o
general Góis Monteiro depôs o presidente Getúlio Vargas do poder. 58
Após o término da Segunda Guerra Mundial e deflagrada a Guerra Fria,
os países se viram envolvidos na disputa entre capitalismo e comunismo. Essa nova
54
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p 314.
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 177.
56
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais: um relato para a história. 22 ed. Petrópolis:
Vozes, 1989. p. 53-54.
57
O PCB foi fundando em 1922 sob o impacto da Revolução Russa de 1922. Até o período da
democratização vivenciou somente três períodos de legalidade: duas brevíssimas no final da
década de vinte e outra, de dois anos, com o termino do Estado Novo. Com o Golpe Militar de
1964 continuou na vida clandestina. BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 463-465.
58
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 55-56.
55
32
conjuntura mundial modificou as estratégias de relações internacionais norteamericanas para a América Latina, que passaram a ser pautadas pelo discurso da
necessidade de contenção do avanço do comunismo no Continente.59 Ainda mais
com o advento da Revolução Cubana, em 1959, a diplomacia norte-americana apoia
e patrocina golpes militares de exacerbado conteúdo anticomunista, a fim de garantir
o apoio de aliados na Região.60 Como resultado desse processo, passou a ser
difundido para a população o discurso de que as forças armadas eram qualificadas
para defender os “interesses nacionais”, na medida em que poderiam educar a
Sociedade,61 conforme os valores militares da hierarquia, do acatamento da
disciplina e da coesão interna. Formou-se, por conseguinte, uma base civil crente de
que os militares estavam salvaguardando a Nação para “manter a ordem”.62
Em março de 1964, ocorreu, na cidade de São Paulo, a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade, organizada por associações de senhoras
católicas ligadas à Igreja conservadora. Aproximadamente 500 mil pessoas
desfilaram pelas ruas da capital paulista, demonstrando que os partidários de um
golpe militar poderiam ter apoio de uma significativa base social.63
Os inimigos de toda essa força política e social de direita eram os partidos
e movimentos de esquerda, que atuavam expressivamente no cenário político
brasileiro no início dos anos 1960. Nestes predominavam as forças do PCB, que
tinha como bandeira política a defesa de um programa de transformações
democrático-burguesas, tendentes a desenvolver um capitalismo nacional, visto
como pressuposto para a implementação do socialismo. Portanto, no início dos anos
1960, o PCB defende uma estratégia de transição política pacífica.64 A Resolução
Política do PCB, de 1962, auxilia a elucidar o que almejam os partidários da foice e
martelo: conclama o povo a lutar pelo rompimento com o Fundo Monetário
59
FERNANDES, Amanda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil, p. 832.
60
BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 19.
61
“Constitui-se a sociedade no e pelo fluxo das necessidades e potencialidades da vida humana; o
que implica a experiência tanto da solidariedade, do cuidado, quanto da oposição, da
conflitividade.” SANTOS DIAS, Maria da Graça dos. Sociedade, p. 487.
62
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p. 323-324.
63
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 460.
64
RIDENTI, Marcelo Siqueira. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1993. p. 25-26.
33
Internacional, pela limitação de envio de lucro ao exterior, pela nacionalização das
empresas estrangeiras de serviços públicos, pela reforma agrária, dentre outros.65
Além do PCB, existiam a Ação Popular (AP)66 e a Organização Revolucionária
Marxista – Política Operária (POLOP),67 as Ligas Camponesas68, o Partido Operário
Revolucionário-Trotskista (PORT)69 e o Partido Comunista do Brasil (PC do B)70. No
final dos anos 1960 e início da década seguinte, surgiram outros grupos trotskistas,
mas somente a partir do final dos anos 1970 ganhariam maior projeção dentro da
esquerda.71
Um pouco antes, em 25 de agosto de 1961, o então presidente Jânio
Quadros renuncia ao mandato e torna o vice-presidente João Goulart seu sucessor
constitucional. Parte das forças armadas não apoiava a posse de Goulart, na medida
em que era visto como um político com vínculos excessivamente estreitos ao legado
do governo Vargas, ao movimento sindical e ao PCB. O impasse criou uma crise
política no país, haja vista que as forças armadas se dividiram sobre o apoio ao
Manifesto de seu alto-comando, de 30 de agosto de 1961, avesso à posse do VicePresidente. Além disso, no Rio Grande do Sul, o Governado Leonel Brizola liderou
uma forte campanha civil-militar a favor da sucessão constitucional. A possibilidade
de uma guerra civil era concreta. Como resultado desse impasse, em 7 de setembro
de
1961,
Goulart
assumiu
a
presidência
com
poderes
reduzidos
pela
implementação de um regime parlamentarista aprovado em 2 de setembro de 1961.
65
O que queriam os homens da foice-e-martelo. Coleções Caros Amigos. A ditadura militar no
Brasil: a história em cima dos fatos. São Paulo: Casa Amarela, fascículo 3. 2007. p. 91.
66
A AP surgiu em 1962 e era composta por cristãos progressistas ligados à Juventude Universitária
Católica (JUC). Com base em ideias humanistas, defendia uma sociedade justa, condenando o
capitalismo e o socialismo. ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 100.
67
A POLOP teve inicio em 1961 por pequenas tendências alternativas ao PCB oriundas, sobretudo,
do meio universitário. Teve uma atuação voltada para o debate teórico e doutrinário crítico sobre a
esquerda do país. BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 467.
68
As Ligas Camponesas eram compostas por lavradores, estudantes e trabalhadores intelectuais que
lutavam pela realização da reforma agrária, atuantes, sobretudo, na Região Nordeste do País.
RIDENTI, Marcelo Siqueira. O fantasma da revolução brasileira, p. 26-27.
69
O PORT era um agrupamento pequeno de trotskista-posadista com certa penetração entre
estudantes, militares de baixa patente e alguns trabalhadores urbanos e rurais. RINDENTI,
Marcelo Siqueira. O fantasma da revolução brasileira, p. 27.
70
É comum apontar o início do PC do B em fevereiro de 1962, em São Paulo, por um grupo de
dissidentes do PCB. Defendia uma linha de atuação política mais a esquerda do que a do PCB.
Após o Golpe Militar de 1964 adota a formula maoística de cerco das grandes cidades pelo
campo. Um grupo de seus membros formou a maior parcela dos integrantes da denominada
Guerrilha do Araguaia. BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 465-466.
71
RIDENTI, Marcelo Siqueira. O fantasma da revolução brasileira, p. 25-27.
34
Em janeiro de 1963, Goulart convocou e ganhou um plebiscito para extinguir o
regime parlamentarista, para descontentamento dos militares, porém seu governo
teve curta duração.72
1.1.2 O Golpe de 1964 e a Ditadura Militar no Brasil
O general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, iniciou
o Golpe Militar, em 31 de março de 1964, com a movimentação de suas tropas, em
Juiz de Fora (MG). Os militares avançaram em direção à cidade do Rio de Janeiro e
acabaram por receber a adesão gradual de forças favoráveis ao movimento. Ante a
ofensiva, Goulart caiu sem resistência, sem acionar um eventual apoio militar que
resistiria à tentativa de golpe da direita. O presidente preferiu evitar uma guerra civil;
avaliou que seria inútil resistir.73
O Golpe Militar de 1964,74 perfectibilizado em 1º de abril de 1964, foi
desencadeado sob uma inverídica justificativa de evitar o propósito do então
presidente João Goulart de por fim ao governo constitucional no Brasil para
estabelecer algum tipo de ditadura pessoal.75 Em seguida, inicia-se a Ditadura Militar
brasileira, que ocorreu entre os anos 1964 e 1985 e atravessou três fases distintas. A
primeira ocorre com o Golpe Militar de 1964 e a consolidação do regime. A segunda
fase é iniciada em dezembro de 1968 com a declaração do Ato Institucional nº 5 (AI5). Neste momento, conhecido como os “anos de chumbo”, a repressão atinge seu
mais alto grau. A terceira e última fase tem seu termo inicial com a posse na
Presidência do general Ernesto Geisel, em 1974 e término, em 1985, com a eleição
de Tancredo de Almeida Neves. Conquanto nessa fase tenha sido iniciada uma lenta
72
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritatismo e o estado de direito no Brasil, no
Chile e na Argentina. Tradução de: Patricia de Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Paz e Terra,
2010. Título original: Political (in) justice: authoritarianism and the rule of law in Brazil, Chile, and
Argentine. p. 88-90.
73
FICO, Carlos. Além do golpe, p. 15-18
74
Utiliza-se a expressão Golpe Militar, tendo em vista que a força fundamental que resultou na queda
do poder do presidente Jango foi militar. O forte apoio civil oriundo de setores da classe média
recebido pelos militares trouxe ao evento de 196 características também de um movimento de
massas. GORENDER, Jacob. O ciclo do PCB: 1922-1980. In: FORTES, Alexandre (Org.). História
e perspectivas da esquerda. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abreu, 2005. p. 171-172.
75
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 115.
35
abertura política, verifica-se o maior número de desaparecidos de opositores ao
regime.76
Segundo Silva, os militares derrubaram João Goulart por sua luta por
questões sociais, em especial, pela tentativa de realizar a reforma agrária. Naquela
época, o Brasil possuía uma população de 70 milhões de habitantes, com apenas
3,350 milhões de proprietários de terra, sendo que 2,2% ocupavam 58% da área
total de hectares. Além disso, o presidente Jango estendeu aos trabalhadores do
campo os benefícios da previdência social e assinou um decreto obrigando as
empresas, com mais de cem empregados, a proporcionar-lhes ensino elementar
gratuito, bem como, enviou ao Congresso mensagem que concedia ao
funcionalismo
público
o
13º
salário.77
Substituir
o
Presidente,
eleito
democraticamente, por outro meio diverso do uso da força, não aparentava ser um
tarefa fácil para os seus opositores, já que uma pesquisa realizada pelo Instituto
Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) aponta que a aprovação de
Goulart era de 76% da população consultada, no momento em que foi retirado da
Presidência da República. Oito meses antes do Golpe, somente 19% dos
consultados achavam seu governo mau ou péssimo.78
Caracteriza-se o Regime Militar quando a cúpula das forças armadas
assumiu diretamente o poder e outras funções de governo. A instância mais alta na
indicação da sucessão dos presidentes passou a ser composta somente por
militares.79 Todavia, as forças armadas não exerciam o poder de maneira isolada,
contavam com o auxílio de civis em uma espécie de condomínio do poder, em que
os militares atuavam como grupo decisório final, ao lado da burocracia estatal
técnica. Como exemplo, o Regime pôs em destaque os formuladores da política
econômica, Antônio Delfim Neto e Mário Henrique Simonsen. Embora o governo
militar tenha contado com a participação de lideranças civis e com o importante
apoio de setores civis da Sociedade, especialmente de parte da classe média
76
BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 19.
SILVA, Juremir Machado da. Jango: a vida e a morte no exílio. Porto Alegre: L&PM, 2013. p. 27-31.
78
SILVA, Juremir Machado da. Jango, p. 28.
79
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 512-513.
77
36
urbana, o movimento foi indubitavelmente militar.80
Provisoriamente, o presidente da Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri
Mazzilli, assumiu a Presidência da República, em 2 de abril de 1964, após o
presidente João Goulart ter se deslocado para o Estado do Rio Grande do Sul para
evitar ser preso. Todavia, a Constituição de 1946 permitia ao presidente da Câmara
a proceder dessa forma, unicamente, no caso do ocupante do cargo de presidente
da República abandonar o cargo.81
Entretanto, o poder de fato estava situado na cidade do Rio de Janeiro. O
General Arthur da Costa e Silva autonomeou-se, no dia 1º de Abril de 1964,
comandante do Exército Nacional e assumiu o controle do Comando Supremo da
Revolução, órgão transitório, que teve uma decisiva reunião com os governadores
que apoiaram o Golpe de 1964, para escolher o nome do novo ocupante do cargo de
presidente da República, que seria o general Humberto de Alencar Castelo Branco,
contrariamente ao que almejava Costa e Silva, com sua própria indicação.82
Em 9 de abril de 1964, o Comando Supremo da Revolução baixou o Ato
Institucional nº 1 (AI-1), iniciando a Operação Limpeza. Com esse ato, foram
suspensas as imunidades parlamentares e foi autorizado o Comando da Revolução
a cassar mandatos em qualquer nível e suspender direitos políticos. Além disso,
suprimiu a vitaliciedade de magistrados e a estabilidade de servidores públicos.83
Por meio destes atos, os militares outorgaram poderes a si próprios, recusando a se
submeterem às restrições impostas pelo Congresso Nacional. Em 11 de abril de
1964, o Congresso elegeu o general Castelo Branco para a presidência. A
transferência de poder ocorreu quatro dias depois.84
As eleições estaduais de 1965 demonstraram o triunfo da oposição em
estados importantes, como na Guanabara e em Minas Gerais, e criaram condições
para o grupo “linha-dura” de militares defender a implantação de um regime mais
autoritário, menos complacente com seus inimigos. Diante dessa pressão, Castelo
80
FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 20.
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 115.
82
FICO, Carlos. Além do golpe, p. 19-20.
83
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 465-467.
84
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 115-117.
81
37
Branco instituiu um Regime Militar ainda mais restrito, com maior rigidez nas
tomadas de decisões. Foi publicado o Ato Institucional nº 2 (AI-2), de 17 de outubro
de 1965, que estabeleceu a possibilidade do governo legislar sobre a Segurança
Nacional por meio de decretos-leis e permitiu ao presidente decretar o recesso do
Congresso Nacional, bem como extinguiu o sistema multipartidário. Na prática, foi
permitida a organização de apenas dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional
(ARENA), que agrupa os partidários do governo militar, e o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB), composto pelos oposicionistas.85 Genericamente, foi o AI-2 o
responsável por legalizar as regras de repressão da Ditadura Militar.86
O advento do AI nº 2 não acalmou os ânimos da “linha dura” dos militares,
pois eles continuaram a reclamar da posse dos governadores oposicionistas eleitos
nas eleições de 1965. Além disso, houve a punição a alguns membros radicais do
Governo Castelo Branco, o que, por sua vez, permitiu emergir uma parcela de
militares dispostos a agir por conta própria, tendentes a fazer prevalecer seus pontos
de vistas por meio da força, sem levar em consideração as normas legais. Por
conseguinte, criava-se o embrião do modo de agir dos futuros membros dos órgãos
de repressão.87 Neste contexto, foi baixado o Ato Institucional nº 3 (AI-3), de 5 de
fevereiro de 1966, que impôs eleições indiretas para o governo dos estados e para
prefeitos das capitais e cidades consideradas de Segurança Nacional, que passaram
a ser indicados pelos governadores estaduais.88
Por meio do Ato Institucional nº 4 (AI-4), de 7 de dezembro de 1966, os
militares convocaram o Congresso, fechado um mês antes. Com este ato, no
período de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, o Congresso aprecia o
projeto de Constituição enviado pelo Executivo, que buscava legitimar a legislação
arbitrária e justificar os atos discricionários do Regime Militar.89 No início do processo
constituinte, o Executivo reuniu suas lideranças do parlamento para dar-lhes
conhecimentos dos dispositivos “não-emendáveis”. O intuito do envio da matéria ao
85
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 473-474.
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p. 329.
87
FICO, Carlos. Como eles agiam, p. 53-55.
88
Ditadura, na língua da ditadura, é apenas “estado de exceção”. Coleções Caros Amigos. A
ditadura militar no Brasil: a história em cima dos fatos. São Paulo: Casa Amarela, fascículo 4.
2007. p. 100.
89
VILLA, Marco Antonio. A história das constituições brasileiras. São Paulo: Leya, 2011.
86
38
Congresso foi de criar a ilusão de que o Legislativo interviera na elaboração da nova
Constituição para reforçar o inverídico argumento de legitimidade do processo
constituinte. Entretanto, os membros do Legislativo quase não tiveram oportunidade
de modificar o texto original, posto que as votações ocorriam em blocos com
discussões bastante precárias e apressadas.90
Aprovada em 24 de janeiro de 1967, a Constituição de 1967 somente
entrou em vigor em 15 de março do mesmo ano. A Carta Magna manteve a eleição
indireta para presidente, que seria eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral,
transformou a Segurança Nacional em uma responsabilidade de todos os cidadãos,
constitucionalizou parte da legislação arbitrária que o Regime Militar havia produzido
e centralizou na União o poder estatal. Além disso, reconheceu a legalidade de todos
os atos praticados desde 31 de março de 1964 ao aprová-los e excluí-los de
apreciação judicial.91
O marechal Arthur da Costa e Silva tomou posse como presidente no
mesmo dia do início da vigência da Constituição de 1967 (31 de março de 1964). No
ano seguinte, há evidências de movimentos de reorganização da oposição. Com a
participação de estudantes, de setores representativos da Igreja e da classe média,
ocorreu a passeata dos 100 mil, na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Ao mesmo tempo,
ocorreram duas significativas greves operárias: a de Contagem, perto de Belo
Horizonte (MG), e a de Osasco (SP), na Grande São Paulo. Além disso, surgiram
diversos grupos de opositores que iniciaram a luta armada contra o Regime Militar,
como a Aliança de Libertação Nacional (ALN), o Movimento Revolucionário 8 de
outubro (MR-8) e a Vanguarda Revolucionária (VPR).92 A ALN surgiu da cisão do
Partido Comunista Brasileiro (PCB) entre 1967 e 1968, sendo considerada a
organização de maior expressão e contingente entre os grupos que deflagraram
guerrilha urbana no período de 1968 a 1973. Defendia o fim do pacifismo do PCB e
consequente início da luta armada. A sigla MR-8 foi utilizada por dois grupos
90
BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Mudança constitucional, autoritarismo e
democracia no Brasil pós-64. 409f. Tese (Doutorado em Direito)-Universidade de Brasília,
Brasília,
2009.
p.
95-99.
Disponível
em:
http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/4075/1/2009_LeonardoAugustodeAndradeBarbosa.pdf.
Acesso em: 16 jul. 2013.
91
VILLA, Marco Antonio. A história das constituições brasileiras, p. 97-100.
92
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 475-479.
39
diversos. O primeiro, formado por estudantes de Niterói, que almejou deflagrar uma
guerrilha no Estado do Paraná, quando, em 1969, foi descoberto e reprimido pelos
integrantes do Governo. Posteriormente, outra organização de dissidentes da
Guanabara passou a utilizar a mesma sigla. Igualmente criticava o imobilismo do
PCB e sustentava a radicalização da luta contra o militares. A VPR surgiu da fusão
de uma ala esquerda da Política Operária (POLOP) e de setores remanescentes do
projeto de criação do MNR (Movimento Nacional Revolucionário). Utilizava uma
tática de enfrentamento aberto ao aparelho militar do regime, com assaltos e
sequestros de autoridades.93 Neste ínterim, a Guerrilha do Araguaia ganha destaque
por ser considerada o maior movimento armado contra a Ditadura Militar (1969 e
1975).94
A luta das esquerdas em armas, após o Golpe Militar de 1964, tinha como
projeto, em geral, derrubar o poder dos militares, bem como promover o fim da
exploração de classes. O estreitamento dos canais de expressão política
institucional em 1964, e depois com mais força em 1968, levou grupos de resistência
à luta armada como meio de atuação política e social. Além disso, buscaram resistir
contra as classes dominantes de tradição autoritária secular no país, que impunham
uma ordem restritiva à expressão libertária aos movimentos sociais. Estas lutas
eram formas de resistência não necessariamente cabíveis nos mecanismos
tradicionais de contestação da ordem vigente.95
Em 13 de dezembro de 1968, os militares baixam o Ato Institucional nº 5
(AI-5), visto como o “golpe dentro do golpe”,96 que inaugura a segunda fase da
Ditadura Militar. Ao contrário dos atos anteriores, não tinha prazo de vigência, não foi
utilizado como uma medida excepcional. Com o AI-5, o então presidente Costa e
Silva passou a ter poderes para fechar o Congresso, para cassar mandatos,
suspender direitos civis e demitir ou aposentar servidores públicos. Ficou suspenso
93
BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 469-474.
HISSA, Carolina Soares e ARAÚJO, Vanessa Louisie Silva. Controvérsia entre o Supremo Tribunal
Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos: caso “Guerrilha do Araguaia” e Lei
6.683/1979 (Lei da Anistia). In: XXI CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI. Anais do XXI
Congresso Nacional do CONPEDI. Niterói: FUNJAB, 2012. p. 367. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/publicacao/ficha/39/136.pdf. Acesso em: 26 jun. 2013.
95
RIDENTI, Marcelo Siqueira. O fantasma da revolução brasileira, p. 61-64.
96
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 178.
94
40
o direito de habeas corpus de acusados de crimes contra a ordem econômica e
social e a economia popular. Estabeleceu-se a censura nos meios de comunicação e
a tortura passou a fazer parte integrante dos métodos do Governo.97 O Regime
Militar deixou de ser somente autoritário para adquirir características de um Estado
de Exceção.98
O Estado de Exceção caracteriza-se pela interrupção da ordem estatal,
afastando sua normalidade, sem suspender o Estado, enquanto unidade política,
destruindo-o, para preservá-lo. Por meio do exercício da soberania do Estado, o
direito se perpetua por meio de sua auto-supressão, abandonando os seus sujeitos
de direito e lançando-os no vazio sem proteção. Os direitos são suspensos, porque
representam a possibilidade de divisão do poder. Por consequência, a característica
essencial do Estado de Exceção é a supressão dos Direitos Fundamentais em nome
da preservação do próprio Estado.99
Segundo Fico, o AI-5 surgiu em decorrência do crescimento da “linha
dura”, motivada por um grande anseio punitivo contra os opositores. Os episódios de
radicalização política da esquerda foram utilizados como “prova” da necessidade de
um sistema de segurança rigoroso. Além disso, Costa e Silva estava decidido a
completar a Operação Limpeza, interrompida por Castelo Branco para erradicar as
potenciais ameaças à Segurança Nacional.100
O AI-5 foi a medida mais radical tomada pelo Regime Militar. A Segurança
Nacional passou a ter precedência sobre os direitos individuais. Os golpistas agiam
como se houvesse uma guerra e todos os esforços do país deveriam ser
direcionados para a vitória contra os inimigos.101
Em Agosto de 1969, Costa e Silva foi acometido de um grave problema de
saúde e foi sucedido por uma Junta Militar. O Vice-Presidente do Brasil, Pedro
97
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 480.
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p. 329.
99
GHETTI, Pablo. Estado de Exceção. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do
Direito. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2006. p. 292-295.
100
FICO, Carlos. Como eles agiam, p. 64-65.
101
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 123.
98
41
Aleixo, não foi empossado no cargo por ser civil e por ter se oposto ao AI-5.102 A
Junta Militar editou, em 17 de outubro de 1969, a Emenda Constitucional nº 1, que é
considerada uma nova Constituição, tendo em vista o grande número de alterações
que promoveu na Constituição de 1967. O legislativo teve sua autonomia ainda mais
reduzida, pois não podia mais se autoconvocar, e os pronunciamentos dos
parlamentares estavam censurados se envolvessem ofensas às instituições
nacionais, propaganda de guerra e de subversão da ordem pública ou social. Em
contrapartida, o Executivo teve seus poderes ampliados. O AI nº 5 passou a ter
status de norma constitucional, assim como os demais Atos posteriormente
baixados.103
Em 30 de outubro de 1969, o cargo de presidente foi ocupado pelo
general Emílio Garrastazu Médici. Durante o governo deste general, os grupos
armados urbanos praticamente desapareceram, e a oposição perdeu força.104 O
enfraquecimento dos grupos oposicionistas ocorreu na medida em que, no final de
1969, estava caracterizada a instalação de um forte aparelho de repressão,
comandado pela “linha dura”. Os agentes do regime podiam utilizar métodos
desumanos que contavam, em tese, com o respaldo jurídico do Ato Institucional nº 5
e pela autoridade absoluta dos mandatários militares.105 A tortura e o assassinato
passaram a ser rotineiros,106 embora já praticados desde o Golpe Militar de 1964.
Ao institucionalizar a tortura em organizações hierarquizadas e fortemente
disciplinadas, o Regime Militar produz uma burocracia violenta.107 O Relatório Brasil
Nunca Mais expõe os principais modos e instrumentos de tortura adotados pela
repressão no país, extraído de depoimentos de presos:
O “pau-de-arara” [...] era constituído de dois triângulos de tubo
galvanizado em que um dos vértices possuía duas meias-luas em que
eram apoiados e que, por sua vez, era introduzido debaixo de seus
joelhos e entre as suas mãos que eram amarradas e levadas até os
102
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 481.
VILLA, Marco Antonio. A história das constituições brasileiras, p. 104-106.
104
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 482-483.
105
BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 22.
106
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 63.
107
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das letras, 2002. p. 24.
103
42
joelhos;108
O choque elétrico [...]. O eletrochoque é dado por um telefone de
campanha do Exército que possuía dois fios longos que são ligados ao
corpo, normalmente nas partes sexuais, além dos ouvidos, dentes, língua
e dedos;109
O “afogamento”. [...] e teve introduzido em suas narinas, na boca, uma
mangueira de água corrente, a qual era obrigado a respirar cada vez que
recebia uma descarga de choques elétricos;110
Insetos e animais. [...]. Ao retornar à sala de torturas, foi colocada no chão
com um jacaré sobre seu corpo nu;111
Lesões físicas. [...]. Amarraram-no numa forquilha com as mãos para trás
e começaram a bater em todo corpo e colocaram-no, durante duas horas,
em pé com os pés em cima de duas latas de leite condensado e dois
tições de fogo debaixo dos pés.112
De 1969 a 1973, o país vivenciou o “milagre brasileiro”, que combinou o
extraordinário crescimento econômico com baixas taxas de inflação.113 Foi um
período de projetos de impacto e de obras faraônicas, como a ponte Rio-Niterói e a
rodovia Transamazônica. Além da existência de um sentimento ufanista, criado pela
propaganda oficial, com a impressa limitada pela censura.114
O escolhido pelas forças armadas para suceder o presidente Médici foi o
general Ernesto Geisel, que tomou posse em 15 de março de 1973,115 dando início à
terceira fase da Ditadura Militar no Brasil. O governo Geisel foi um período em que
os órgãos de repressão passaram a ocultar, com maior intensidade, as prisões
seguidas de mortes e utilizaram argumentos de atropelamentos, suicídios e
tentativas de fuga para justificar as mortes perante a imprensa.116 O termo
“desaparecido” deixou de ser utilizado para designar algo que se perde de vista,
para qualificar os cidadãos assassinados em guarnições e valhacoutos militares,
108
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 34.
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 35.
110
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 36.
111
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 39.
112
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 40.
113
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 485.
114
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 63.
115
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 488-489.
116
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil nunca mais, p. 64.
109
43
cujos corpos sumiam.117
Nesse período, são identificados os primeiros passos para abertura
política lenta, gradual e segura. O último presidente militar foi o general João Batista
Figueiredo, que tomou posse em março de 1979. Figueiredo prosseguiu com o
processo de abertura política iniciado no governo Geisel. Em agosto de seu primeiro
ano no poder, o presidente sancionou a Lei nº 6.683/79.118
Em 1983, ocorreu o movimento “diretas já”, que reivindicava a realização
de eleições diretas para presidente da República. Entretanto, foi rejeitada a Emenda
Dante de Oliveira, que pretendia alterar essa forma de eleições, para o povo ter o
direito de eleger diretamente o presidente. Em 15 de janeiro de 1985, ainda por
eleições indiretas, foi eleita a chapa composta pelos civis Tancredo de Almeida
Neves e José Sarney de Araújo Costa.119
1.1.3 A Doutrina da Segurança Nacional
A Ditadura Militar vivenciada no país, está diretamente relacionada com a
Doutrina da Segurança Nacional (DSN). Em obra lançada em 1977, Comblin analisa
essa ideologia, que era lecionada, na época, durante a formação de militares em
diversos países.120
A geopolítica e a guerra total são dois fatores chaves de sustentação da
Doutrina da Segurança Nacional. Tem-se a geopolítica como a justificativa da
adesão do Brasil à luta anticomunista na bipolaridade mundial existente121 entre a
potência capitalista (Estados Unidos da América) e a potência comunista (União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas).122
Diante da geopolítica da época, propagava-se o discurso de guerra total,
117
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada, p. 103.
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 489-504.
119
FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 509-512.
120
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 21.
121
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 30.
122
FERNANDES, Amanda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil, p. 840.
118
44
da existência de um permanente conflito contra a ideologia comunista.123 A
polarização da Guerra Fria e o discurso anticomunista foram criados pela
democracia burguesa norte-americana. Trumam e Kenedy foram eleitos por
defenderem a bandeira da contenção das ditaduras do proletariado no mundo. Esse
discurso
populista
arregimentava
simpatizantes,
gerava
votos
e
garantia
candidaturas individuais.124
Compunham o conceito de guerra total a guerra generalizada, a Guerra
Fria e a guerra revolucionária. Generalizada, pois era compreendida como a guerra
entre as grandes potências, Estados Unidos e União Soviética.125 A guerra atômica
era a sua última consequência.126 Por Guerra Fria, entendia-se um conflito não
armado permanente entre as superpotências, que atuava no plano militar, político,
econômico e psicológico. Compreende-se por guerra revolucionária uma estratégia
do comunismo internacional de atuação, principalmente, no Terceiro Mundo.127
Fundamentava-se
a Doutrina da Segurança
Nacional (DSN) na
necessidade do Estado promover a segurança da Nação para a defesa dos valores
cristãos e democráticos do mundo ocidental, em resposta ao “comunismo ateu”.128
Assim, negava-se a constituição da Sociedade dividida em classes e incutia-se nos
cidadãos os valores de fidelidade, docilidade, obediência e disciplina. Qualquer
posicionamento crítico à política oficial estatal era considerado subversivo.129
No âmbito econômico, a aplicação da DSN foi um instrumento utilizado
por setores dominantes, ligados ao capital estrangeiro, para justificar e legitimar a
utilização de meios não democráticos de um modelo altamente explorador de
123
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 32-33.
MAIA, Fábio Fernandes. A dimensão epistémologica do discurso da Doutrina da Segurança
Nacional no contexto das ditaduras da América Latina. In: XIX ENCONTRO NACIONAL DO
CONPEDI. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Fortaleza: Fundação Boiteux, 2010.
p. 5638. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/4134.pdf
Acesso em: 15 jul. 2013.
125
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 32-33.
126
FERNANDES, Amanda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil, p. 840.
127
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 39-44.
128
FERNANDES, Amanda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil, p. 837.
129
MAIA, Fábio Fernandes. A dimensão epistémologica do discurso da Doutrina da Segurança
Nacional no contexto das ditaduras da América Latina, p. 5639.
124
45
desenvolvimento dependente.130
Os objetivos da Nação, para a DSN, confundem-se com os interesses
militares. O objetivo de guerra é considerado o de maior relevância para o país,
embora seja acompanhado de outros, tais como integridade territorial, integridade
nacional, progresso, paz social, democracia e soberania.131 O conceito de
Segurança Nacional é relacionado à capacidade do Estado de impor os objetivos da
Nação contra as força oponentes, conforme Comblin:
A Segurança Nacional é a capacidade que o Estado dá à Nação para
impor seus objetivos a todas as forças oponentes. Essa capacidade é,
naturalmente, uma força. Trata-se portanto da força do Estado, capaz de
derrotar todas as forças adversas e de fazer triunfar os Objetivos
Nacionais.132
Na definição de inimigo, utilizava-se uma definição de “inimigo interno”,
criada na Guerra da Indochina pelas tropas francesas, que não conseguiam
reconhecer o comunista, o adversário disseminado no meio da população.133 O
inimigo não era externo porque não estava em outra Nação. A tática consistia em
alimentar e reforçar os piores preconceitos para identificar o inimigo a ser combatido
internamente no país.134 Dessa forma, eram considerados inimigos os grupos
armados de esquerda e qualquer cidadão que simplesmente discordasse do regime,
em
especial,
membros
de
partidos
democrático-burgueses
de
oposição,
trabalhadores, estudantes, integrantes de setores progressistas da Igreja e militantes
de Direitos Fundamentais.135
Dissidentes e intelectuais foram reprimidos como procedimento de
estritamente ideológico do Regime Militar. Contra esses grupos, houve a prática de
aposentadorias forçada de professores, de censura, de limitação de liberdades e de
130
FERNANDES, Amanda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil, p. 837.
131
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 50-52.
132
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 54.
133
Brasil adota conceito da Guerra Fria. Coleções Caros Amigos. A ditadura militar no Brasil: a
história em cima dos fatos. São Paulo: Casa Amarela, fascículo 3. 2007. p. 87.
134
MAIA, Fábio Fernandes. A dimensão epistémologica do discurso da Doutrina da Segurança
Nacional no contexto das ditaduras da América Latina, p. 5639.
135
FERNANDES, Amanda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil, p. 838.
46
proibição de tradução de certos livros. 136
O sentido de poder, utilizado pela DSN, relaciona-se com os meios de
ação dos quais o Estado pode dispor para impor a sua vontade. O fim faz intervir e
não o meio.137 Contra a Pátria não há direitos, pois os interesses do país estavam
acima de todos e tudo era possível ser feito contra aqueles que o ameaçam.138
Dessa forma, compreende-se a Doutrina da Segurança Nacional como a
linha de atuação ideológica que pautou os projetos políticos Norte-Americanos para
a América Latina após o término da Guerra Fria, tinha como fim a contenção do
comunismo no Continente, por meio da formação de blocos militares com os países
aliados, assegurando novos e tradicionais mercados.139
Diante do cenário mundial do pós Segunda Guerra Mundial, na década de
1950, iniciou-se a constituição de elementos concretos que possibilitariam a
utilização Doutrina da Segurança Nacional (DSN) na América Latina, difundindo-a
por meio das escolas militares.140
A DSN foi significativamente utilizada no Brasil. Comblin atribui ao país o
status de eminente representante desta Ideologia.141 Supunha-se que o país
integrava-se ao contexto internacional da Guerra Fria em razão: a) da sua grande
população e extensão territorial; b) seu posicionamento geopolítico de importância
estratégica no âmbito das relações políticas internacionais e c) sua sustentada
vulnerabilidade ao comunismo, haja vista suas supostas fragilidades internas
(população despreparada e políticos corruptíveis).142
Com o advento do Golpe Militar de 1964, os militares passaram a exercer
136
BITTAR, Eduardo C.B. Os direitos humanos e a liberdade de expressão na América Latina: ensaio
sobre a destruição da memória e a intolerância cultural nas ditaduras latino-americanas. In:
______. Democracia, justiça e direitos humanos: estudo de teoria crítica e filosófica do direito.
São Paulo: Saraiva, 2011. p. 177.
137
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 58.
138
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada, p. 17.
139
FERNANDES, Amanda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil, p. 831-834.
140
FERNANDES, Amanda Simões. A reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela
Escola Superior de Guerra no Brasil, p. 834.
141
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 151.
142
RINDENTI, Marcelo Siqueira. O fantasma da revolução brasileira, p. 41.
47
o poder no país com base em duas premissas. A primeira delas foi a resistência do
Estado e da Nação contra o comunismo. O discurso de defesa do país ganhou
credibilidade de setores moderados da Sociedade que acreditavam que o golpe
militar era imprescindível para proteger a Democracia contra o comunismo. Por essa
razão, as instituições democráticas provenientes da tradição liberal não foram
extintas e o desejo da continuidade democrática jamais desapareceu totalmente do
Estado. 143
A segunda premissa de controle do poder deu-se pela “linha-dura”
inserida como “ortodoxia” nas forças armadas e no Estado, com o significado de
intransigência na luta anticomunista e na busca de um modelo de desenvolvimento
para o país.144 Com base nessa Doutrina, foram decretadas sucessivas Leis de
Segurança Nacional no Brasil sob a forma de Decretos-Leis. Em 1967, foi editado o
Decreto-Lei 314 e, nos anos seguintes, foram implementados os Decretos-Leis nº
510 e nº 898 (coloquialmente chamados de Lei de Segurança Nacional). Esse último
diploma legal introduziu a prisão perpétua e até mesmo a pena de morte para os
opositores envolvidos em ações armadas resultantes em mortes.145
Percebe-se, portanto, que a Doutrina da Segurança Nacional impôs ao
Brasil uma estratégia falsa para o país, fundamentada em uma falsa guerra. Em
nome da ordem e da tranquilidade, a utilização dessa Ideologia entregou o país à
dominação de uma minoria,146 que cometeu diversas violações a Direitos
Fundamentais, em nome da suposta segurança da Nação.
1.1.4 A Legalidade Autoritária
Uma vez adquirido o poder por meio da força, os proponentes do Regime
Militar passaram a dar uma aparência de legalidade aos seus atos. O auxílio do
direito era necessário para os instrumentos normativos criados pelo regime serem
143
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 158-159.
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 160.
145
BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 19-22.
146
COMBLIN, Joseph. A ideologia da segurança nacional, p. 246.
144
48
obedecidos.147 Dessa forma, em razão das modificações do direito para resguardar
os interesses do regime, Pereira sustenta que houve Legalidade Autoritária pelo uso
do direito durante a Ditadura Militar brasileira,148 que não rompeu totalmente com a
ordem autoritária vigente até então no país.149
Seguindo a prática de outras ditaduras militares, a tentativa de legalizar a
repressão praticada pelo Regime Militar, no Brasil, aconteceu por meio de decretos,
de alterações na Constituição, expurgos, reorganização e manipulação do Judiciário,
bem como pela criação de novas leis.150
A Legalidade Autoritária brasileira ocorreu pela implementação de um
sistema híbrido, pelo qual a Constituição continuava em vigor junto com os Atos
Institucionais.151 Para atingir a aparência de legalidade desejada pelos militares, era
imprescindível a colaboração institucional do Poder Judiciário. A judicialização da
repressão foi utilizada para garantir a exteriorização da legalidade.152 Nesse sentido,
os processos por crimes políticos foram importantes para ganhar apoio ao regime de
setores da Sociedade e, ao mesmo tempo, para fragilizar a imagem dos grupos de
oposição:
Em suma, os processos por crimes políticos são tentadores para
governantes autoritários, por terem a capacidade de desmobilizar os
movimentos populares de oposição, de angariar legitimidade para o
regime ao convencer setores importantes do público de que os oponentes
são tratados com justiça, de criar imagens políticas positivas para o
regime e negativas para a oposição, de auxiliar uma facção do regime a
ganhar ascendência sobre as demais, e de estabilizar a repressão, ao
fornecer não apenas informações como, também, um conjunto de regras
previsíveis, em torno do qual as expectativas tanto dos opositores quanto
das autoridades podem se aglutinar.153
Vislumbram-se duas motivações que justificam o interesse do Regime
147
LISBÔA, Natália de Souza. Anistia (in)completa e (in)justiça plena – reflexos da legalidade
autoritária na justiça de transição brasileira. In: XXI CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI.
Anais do XXI Congresso Nacional do CONPEDI. Niterói: FUNJAB, 2012. p. 143 Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/publicacao/livro.php?gt=131. Acesso em: 16 mai. 2013. .
148
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 36.
149
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p. 327-328.
150
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 54.
151
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p. 329.
152
LISBÔA, Natália de Souza. Anistia (in)completa e (in)justiça plena, p. 142.
153
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 73.
49
Militar, que detinha o poder de fato, em viabilizar a legalidade de direito. O primeiro
desses motivos consiste em atribuir legitimidade ao poder por meio do direito. Esse
fator criou a submissão dos opositores ao sistema de justiça, por meio de um
aparente processo legal, para processá-los como “terroristas”. O segundo motivo foi
a busca do regime por “legalizar-se”, o que foi possível por encontrar guarida no
Judiciário.154
O expoente do disciplinamento imposto à Sociedade brasileira pode ser
depreendido dos julgamentos políticos feitos pelos tribunais militares, que decidiam
quem eram dignos de cidadania e quem eram os “inimigos” do país.155 Esses
julgamentos não eram meras encenações para atribuir uma suposta legalidade à
repressão praticada pelos militares. Os operadores do direito, que atuaram nesses
julgamentos, acreditavam na legitimidade e na coerência das leis. Os juízes e
promotores interpretavam as leis de Segurança Nacional para aplicá-las a situações
concretas e decidir o que era subversivo ou não.156
A utilização dos tribunais militares como instrumentos de ação judicial,
contra os opositores e dissidentes, garantiu uma trajetória de legalidade à Ditadura
Militar, conquanto não tenha sido constitucional.157 Descarta-se que a legalidade do
regime tenha ocorrido sobre um viés constitucional, haja vista a inexistência de
Normas Substanciais. A falta dessas normas impede a caracterização da ordem
jurídica utilizada pelos militares, segundo a Categoria Constituição de Luigi Ferrajoli.
Para esse autor, Constituição consiste em um sistema de regras, substanciais e
formais, que têm como destinatários próprios os titulares do poder.158 Normas
constitucionais
substanciais
são
aquelas
que
versam
sobre
Direitos
Fundamentais.159
154
TORELLY, Marcelo D. Decifrando padrões de legalidade autoritária na América do Sul.
PUCRS. Sistema Penal & Violência – Revista eletrônica da Faculdade de Direito. Vol. 4 – (1),
Porto
Alegre,
2012:148.
Disponível
em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/viewArticle/11807.
Acesso em: 10 jun. 2013.
155
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p. 327-328.
156
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 45.
157
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 142.
158
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 32.
159
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 33.
50
Em sentido oposto ao conceito de Constituição, nos tribunais militares, os
Direitos Fundamentais não eram respeitados:
Nesses tribunais, faltava aos juízes independência, imparcialidade e
inamovibilidade; as leis eram vagas, a ponto de permitir a punição de,
praticamente, qualquer tipo de comportamento; leis eram aprovadas e,
então, aplicadas de maneira retroativa aos acusados; pessoas eram
processadas mais de uma vez pelo mesmo crime; réus eram condenados
com base apenas em confissões extraídas sob tortura ou em suas
próprias declarações sobre suas convicções políticas; os juízes,
repetidamente, faziam vista grossa aos sistemáticos descumprimentos da
lei pelas forças de segurança. 160
Segundo Dallari, por conveniência política, visando a objetivos internos e
internacionais, no século XX, o termo Constituição foi utilizado com absoluta
impropriedade, por regime políticos resultantes de acordo de interesses, sem existir
compromisso com as liberdades e com os Direitos Fundamentais da pessoa
humana, bem com opor regimes sustentados apenas pelo uso da força. Esses
regimes costumavam editar documentos escritos com o nome e a forma de
Constituição, porém sem a legitimidade, o conteúdo e a autoridade de uma
Constituição autêntica, tentando, com isso, criar a aparência de um Estado
democrático.161
No processo ditatorial brasileiro, chama atenção a elevada participação de
juízes civis em tribunais militares que, por consequência, aderiram à “legalidade” do
regime. Esse apoio civil ao Judiciário e também de outras carreiras jurídicas ganha
destaque na legitimação do poder pelos militares. O meio jurídico, por suas
caraterísticas singulares, poderia ser o último espaço de resistência da Sociedade
contra a opressão e de defesa da legalidade (democrática), contudo foram poucos
os magistrados que enfrentaram o Regime Militar.162
Entende-se, portanto, pelo termo Legalidade Autoritária a transformação
do ordenamento jurídico de maneira antidemocrática, por alterações constitucionais
160
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 54.
DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição da vida dos povos: da Idade Média ao Século XXI.
São Paulo: Saraiva, 2013. p. 162.
162
ABRÃO, Paulo. Direito à verdade e à justiça na transição política brasileira. ABRÃO, Paulo;
GENRO, Tarso. In: Os direitos da transição e a democracia no Brasil: estudo sobre a Justiça
de Transição e teoria democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 70.
161
51
e atos infraconstitucionais, para atender aos interesses do Regime Militar, utilizandose do Poder Judiciário para investigar e punir os opositores. O exemplo, a seguir,
demonstra a presença da Legalidade Autoritária no país:
Em 5 de abril de 1971, Vinicius Oliveira Brandt compareceu a um tribunal
militar em São Paulo para depor a favor de si mesmo. Oliveira Brandt, um
jovem estudante de Sociologia, havia sido acusado de ser filiado a uma
organização clandestina, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores
(PRT) [...].Oliveira Brandt declarou ao tribunal que havia sido preso em
São Paulo, em 30 de setembro de 1970, e imediatamente levado à sede
do serviço de informações da polícia militar (Departamento de Operações
Internas (DOI)). [...]. A primeira sessão de tortura durou das 19h30 às dez
horas da manha seguinte. Após uma pausa de uma hora, uma segunda
sessão de tortura começou, estendendo-se por toda a tarde [...].
Em 30 de setembro de 1971, o tribunal militar declarou Oliveira Brandt
culpado e o sentenciou a cinco anos de prisão. O tribunal, formado por um
juiz civil com formação em Direito e por quatro oficiais militares da ativa
sem formação jurídica [...]. Na sentença de 26 páginas (assinada por
todos os juízes), o juiz civil declarou que Oliveira Brandt era “altamente
periculoso” e um “delinquente político”, que “o julgamento transcorreu com
todas as garantias das leis humanitárias e democráticas”, e que o réu
havia feito “uma profissão de fé de verdadeiro delinquente político a
serviço do comunismo internacional”.163
Pereira atribui à colaboração explícita do Poder Judiciário, no caso
brasileiro, como um fator de diferenciação do regime ditatorial implementado na
Argentina. Naquele país, ao não contar com apoio do Judiciário, o Regime Militar
adotou medidas de execução extrajudicial e de desaparecimentos forçados em um
grau muito superior ao dos países vizinhos.164
Caracteriza-se como resultado imediato da ditatura “judicializada”, tal
como ocorrido no Brasil, um menor número de mortos e desaparecidos do que nas
ditaduras “não judicializadas” ou, pelo menos, “pouco judicializadas”, como ocorreu
na Argentina e no Chile.165
Se, por um lado, a Legalidade Autoritária brasileira refletiu em um menor
número de vítimas fatais, de outro lado, no longo prazo, refletiu em uma maior
163
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão, p. 31-32.
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p. 328.
165
TORELLY, Marcelo D. Decifrando padrões de legalidade autoritária na América do Sul, p. 148.
164
52
institucionalização da violência arbitrária no sistema de justiça utilizado na vigência
do regime democrático. Seus reflexos são observados na existência de uma polícia
violenta e um Poder Judiciário pouco transparente e democrático.166
1.2 A ANISTIA BRASILEIRA
1.2.1 O surgimento da Anistia brasileira
Ao final da década de setenta do século XX foi publicada a Lei nº
6.683/79 que instituía a Anistia brasileira. Embora tenha ganhado maior força neste
período, a luta pela Anistia não se restringiu ao final da década de setenta. No ano
do Golpe Militar, ocorrido em 1964, já houve as primeiras manifestações em prol das
liberdades políticas e de expressão, bem como em favor da Anistia.167
Em entrevista concedida a uma emissora de rádio em 1964, o escritor
Alceu Amoroso Lima, solicitou a Anistia ao presidente Castelo Branco, sendo
considerado o primeiro a reclamá-la. Logo depois, o Ministro do Superior Tribunal
Militar, general Pery Constant Bevilacqua, expôs a sua opinião favorável à Anistia.168
No entanto, até que a Lei nº 6.683/79 fosse publicada muitos incidentes ocorreram.
Em 1967, surgiu o manifesto da Frente Ampla. Organizado por líderes
oposicionistas ao Governo Militar como Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João
Goulart, reivindicava a Anistia geral para por término ao contexto histórico
semelhante ao de uma guerra civil no Brasil. Com o Ato Institucional nº 01 (AI-1),
parte da esquerda revolucionária se lançou à luta armada; em dezembro de 1968, o
166
TORELLY, Marcelo D. Decifrando padrões de legalidade autoritária na América do Sul, p. 148.
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia. Ministério da Justiça. Revista
Anistia Política e Justiça de Transição. Vol. 1, Brasília, 2009:275. Disponível em:
http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team={67064208-D044-437B-9F24-96E0B26CB372}. Acesso em:
20 mai. 2013.
168
MEZAROBBA. Glenda. Um acerto de contas com o futuro a anistia e suas consequências –
Um estudo do caso brasileiro. 206f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política)-Universidade de
São
Paulo,
São
Paulo,
2003.p.
13.
Disponível
em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-06112006-162534/pt-br.php. Acesso em: 20
mar. 2013.
167
53
Governo contra-atacou com a edição do Ato Institucional nº 05 (AI-5), fechando o
Congresso Nacional.169
De uma forma peculiar, atribui-se a um grupo de mulheres a reivindicação
da Anistia, desde os primeiros anos da Ditadura Militar brasileira. A partir de 1968,
esse grupo já dispunha de um espaço localizado em um colégio na cidade de São
Paulo destinado a receber donativos a serem enviados aos presos políticos.170 De
fato, já em 1975, a advogada Terezinha Zerbini liderava o Movimento Feminino pela
Anistia (MFPA), que conseguiu reunir cerca de 16 mil assinaturas de mulheres de
todo o país. Além de ter sido pioneiro na luta sistemática pela Anistia, o MFPA foi
também o primeiro movimento legalmente constituído para o enfrentamento aos
militares.171
O assassinato do jornalista Vladimir Herzog, no Destacamento de
Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI),
em São Paulo, ocorrido em 24 de outubro de 1975, converte-se em um significativo
marco na oposição à Ditadura. Esse acontecimento explicitou para a Sociedade que
a repressão não discriminava classes e foi importante para setores da classe média
aderirem a forças de oposição ao regime.172
Os debates acerca da Anistia se intensificam em 1977. Nesse período,
circulam diferentes visões sobre Anistia, sobretudo a quem ela seria destinada e se
havia necessidade de sua implantação.173 Esse ano foi marcado por manifestações
estudantis contra a prisão e a tortura de presos políticos que, em seguida, se
tornariam em atos a favor da Anistia com os “Dias Nacionais de Protesto e Luta pela
Anistia” e o surgimento dos “Comitês Primeiro de Maio pela Anistia”. Aderiram à luta
pela Anistia, organizações relacionadas aos grupos progressistas da Igreja Católica,
tal como a Comissão de Justiça e Paz, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e
169
MEZAROBBA. Glenda. Um acerto de contas com o futuro a anistia e suas consequências, p.
13.
170
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 275.
171
DEL PORTO, Fabíola Brigante. A luta pela anistia no regime militar brasileiro e a construção dos
direitos de cidadania. In: SILVA, Haike R. Kleber da (Org.). A luta pela anistia. São Paulo: Editora
da Unesp, 2009. p. 61.
172
DEL PORTO, Fabíola Brigante. A luta pela anistia no regime militar brasileiro e a construção
dos direitos de cidadania, p. 60-61.
173
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 277.
54
o Colégio Episcopal da Igreja Metodista.174 O movimento sindical, em ascensão, se
posicionou favoravelmente às reivindicações pela Anistia e, a partir dos metalúrgicos
de São Bernardo do Campo (SP), iniciaram uma importante greve, que atingiu 235
mil trabalhadores no Estado de São Paulo.175
No ano de 1978, surgia o Movimento Brasileiro de Anistia, que em pouco
tempo aglutina outras demandas como a volta à democracia, à transição política, à
liberação dos presos políticos e ao restabelecimento de direitos. Neste momento,
defendia-se a necessidade de uma Anistia ampla, geral e irrestrita.176
Na Carta de Salvador, elaborada durante o Encontro Nacional de
Movimentos pela Anistia, realizado na capital baiana, em setembro do ano de 1978,
defendia-se a Anistia ampla (para abranger todos os atos de manifestação de
oposição ao regime), geral (para incluir todas as vítimas dos atos de exceção) e
irrestrita (sem discriminações ou restrições de opositores).177 Ainda no mesmo ano
de 1978, a reinvindicação pela Anistia estava disseminada por toda a Sociedade:
A essa altura dos acontecimentos a movimentação era tanta, que a luta
por anistia disseminava-se por toda a sociedade. Cartazes e faixas
invadiram ruas e campos de futebol, carros exibiam adesivos plásticos
nos vidros, panfletos sobre o assunto eram distribuídos nas esquinas e
comícios buscavam sensibilizar a opinião pública sobre o assunto. A
orientação dos movimentos de anistia era que a bandeira fosse estendida
à práticas dos sindicatos, das associações de bairro, das entidades
profissionais e nos meios estudantis.178
A revogação dos atos institucionais, principalmente do AI-5, realizada pela
Emenda Constitucional nº 11, aprovada em 13 de outubro de 1978, e com vigência a
partir de 1º de janeiro de 1979, foi uma importante vitória dos movimentos de
Anistia.179
174
MEZAROBBA. Glenda. Um acerto de contas com o futuro a anistia e suas consequências, p.
18-19.
175
DEL PORTO, Fabíola Brigante. A luta pela anistia no regime militar brasileiro e a construção
dos direitos de cidadania, p. 62.
176
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 275.
177
MEZAROBBA. Glenda. Um acerto de contas com o futuro a anistia e suas consequências, p.
21.
178
MEZAROBBA. Glenda. Um acerto de contas com o futuro a anistia e suas consequências, p.
22.
179
DEL PORTO, Fabíola Brigante. A luta pela anistia no regime militar brasileiro e a construção
55
Diante da pressão popular, no dia 27 de junho de 1979, o General João
Batista Figueiredo manifestou-se favoravelmente à Anistia no Congresso Nacional. A
concepção defendida era no sentido de ser um ato que poderia “pacificar” e unificar
o Brasil. O projeto de lei do Governo não alcançava a prática de crimes não
considerados como de motivação política, o que excluía da Anistia crimes como
assalto, sequestro e atentados pessoais.180
Um levantamento elaborado pela União dos Estudantes do Estado de São
Paulo, em julho de 1979, estimava que, no total, mais de um milhão de pessoas
foram presas, banidas, exiladas, cassadas, aposentadas, processadas, indiciadas ou
mesmo assassinadas durante o Regime Militar.181
Nesta época, os principais focos de resistência armada ao Regime
estavam desmantelados e a pressão social por esclarecimentos a respeito dos
mortos e desaparecidos era um incômodo desnecessário. Para os militares, era mais
interessante uma Anistia controlada do que um alto grau de tensão com a
Sociedade, na medida em que o problema podia ser encerrado sem a necessidade
de fornecer maiores explicações.182
A tramitação do projeto da lei de Anistia, no Congresso Nacional, envolveu
questões polêmicas, debatidas especialmente na Comissão Mista criada para emitir
parecer sobre a matéria e que contava com representantes da Aliança Renovadora
Nacional (ARENA) e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB).183 Todavia, o
deputado Tidei de Lima (MDB) denunciava que a presença da Ditadura Militar ainda
era muito forte, impedindo que os parlamentares discutissem a matéria livremente e
impondo severos limites à Anistia enquanto uma aspiração popular.184
O quadro da Fundação Perseu Abreu oferece relevante auxílio para a
compressão dos principais temas objetos de divergência, no período de discussão e
dos direitos de cidadania, p. 63.
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 227-278.
181
MEZAROBBA. Glenda. Um acerto de contas com o futuro a anistia e suas consequências, p.
23.
182
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 194.
183
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 278.
184
DEL PORTO, Fabíola Brigante. A luta pela anistia no regime militar brasileiro e a construção
dos direitos de cidadania, p. 64.
180
56
votação do projeto de lei da Anistia:
Anistia do Governo
Não libertará todos os presos políticos
nem trará de volta os exilados, pois
exclui os que foram condenados pelos
Tribunais Militares pelo o que o
governo acusa de “terrorismo, assalto,
sequestro e atentado pessoal”.
Não devolve os direitos retirados
arbitrariamente: a volta dos punidos
ao serviço público (civil e militar)
dependerá do juízo de uma comissão
nomeada pelo próprio governo.
Sugere anistia aos torturadores.
Não devolve integralmente os direitos
de nenhum dos anistiados, pois
continuam em vigor todas as leis da
ditadura, como a Lei de Segurança
Nacional, a lei de greve e a
constituição feita pelos militares.
Anistia do Povo
Anistia deve alcançar a todos, porque
muitos brasileiros pegaram em armas para
lutar contra as torturas e os assassinatos
praticados pelo governo, contra a miséria e
o analfabetismo. Contra o TERRORISMO
DA DITADURA
Anistia devolve automaticamente os
direitos que foram retirados arbitrariamente
tanto para os civis quanto para os
militares. São bem conhecidas no passado
essas “Comissões” que tem o poder de
“desanistiar” os anistiados.
Pede contas, ao governo, dos presos
políticos, mortos e desaparecidos e
punição para os torturadores.
Anistia significa LIBERDADE, o fim da
ditadura, o desmantelamento dos órgãos
de repressão política. A liberdade de dizer,
reunir, organizar, reivindicar e participar
sem ser reprimido.
Quadro 1
185
Fonte: Fundação Perseu Abramo
Neste quadro, chama atenção a divergência existente na época sobre o
alcance da Anistia recíproca: se envolveria somente torturados ou também
torturadores, quem não poderia ser responsabilizado por seus atos.186 A indefinição
jurídica sobre a abrangência da Anistia aos perpetradores se estende até os dias
atuais, mesmo que tenham se passado mais de trinta anos da publicação da Lei nº
6.683/79.
As
votações
relacionadas
à
Anistia
brasileira
demonstram
que
formalmente não houve acordo. Ao todo foram apresentadas 306 emendas ao
projeto de lei da Anistia do Executivo, sendo apenas uma aceita integralmente; 67
foram aceitas parcialmente e 283 foram integralmente rejeitadas. Antes, no dia 22 de
agosto de 1979, o projeto de lei de Anistia, que havia sido apresentado pelo MDB, foi
185
186
Apud GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 280.
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 281.
57
rejeitado com uma votação apertada; foram 194 votos a favor e 209 contrários. Em
seguida, aconteceu a votação da emenda apresentada pelo Deputado arenista
Djalma Marinho, que previa a Anistia a todos os perseguidos políticos e, por isso,
ganhou apoio dos deputados oposicionistas. Contudo, a emenda foi rejeitada por
206 votos contrários e 201 votos a favor. No término das votações, foi aprovado o
projeto enviado pelo Governo. O resultado da votação demonstra as disputas
existentes na época, no Congresso, e quão polêmico o texto do projeto se
mostrava.187
O projeto de lei enviado pelo Governo Figueiredo, que contrariava os
interesses defendidos pelos parentes dos perseguidos políticos e pelos comitês de
Anistia188 foi aprovado pelo Congresso Nacional, no dia 28 de agosto de 1979, e
ganhou o número 6.683, mais conhecida como Lei de Anistia. Seu artigo 1º prevê o
núcleo central deste diploma legal:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido
entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes
políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus
direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e
Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e
representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais
e Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados
pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado
pessoal.
§ 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar
demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do
respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas
as exigências do art. 3º.
Apesar dos militares negarem a ocorrência de tortura, homicídios e atos
violentos e de se posicionar contrariamente à concessão de Anistia a atos praticados
pela resistência, fizeram constar no parágrafo primeiro, do artigo primeiro, um texto
genérico sobre a prática de crimes conexos aos crimes políticos ou daqueles
187
188
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 281.
BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 31.
58
ocorridos com motivação política. O intuito com a inserção desse parágrafo primeiro
era garantir que os agentes da repressão, que tivessem cometido crimes, também
estariam anistiados por conexão.189
As divergências mais relevantes existentes na época sobre os termos da
Lei de Anistia foram objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento
da Ação de Descumprimento Fundamental nº 153 (ADPF nº 153). O Voto do Ministro
Relator do Acórdão, Eros Roberto Grau, deixando de levar em consideração as
significantes disputas existentes sobre o teor da Anistia, expressamente afirma a
existência de um “acordo político” e que dele resultou o texto da Lei nº 6.683/79:
A inicial ignora o momento talvez mais importante da luta pela
redemocratização do país, o da batalha da anistia, autêntica batalha. Toda
gente que conhece nossa história sabe que esse acordo existiu,
resultando no texto da Lei n. 6.683/79.190
O acórdão da ADPF nº 153 menciona o denominado “acordo político”
conferindo grande importância ao mesmo, de maneira que é possível concluir que
para a maioria dos ministros do STF seria o fundamento legitimador da Lei de
Anistia:
43. Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a
democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de
certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos, uns
absolvendo-se a si mesmos.
Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa
amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em
angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). Quando se deseja negar o
acordo político que efetivamente existiu resultam fustigados os que se
manifestaram politicamente em nome dos subversivos. Inclusive a OAB,
de modo que nestes autos encontramos a OAB de hoje contra a OAB de
ontem. É inadmissível desprezarmos os que lutaram pela anistia como se
tivessem feito, todos, de modo ilegítimo.
Como se tivessem sido cúmplices dos outros.
Para como que menosprezá-la, diz que o acordo que resultou na anistia
foi encetado pela elite política. Mas quem haveria de compor esse acordo,
em nome dos subversivos? O que deseja agora, em uma tentativa, mais
do que de reescrever, de reconstruir a História? Que a transição tivesse
sido feita, um dia, posteriormente ao momento daquele acordo, com
189
190
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 192.
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 21.
59
sangue e lágrimas, com violência? Todos desejavam que fosse sem
violência, estávamos fartos de violência.191
A decisão da ADPF nº 153 não se restringe a mencionar o “acordo
político” apenas nestes trechos: sua referência consta em várias outras partes do
voto do Ministro Relator, que foi acompanhado pela maioria dos ministros do STF.192
Dessa forma, os ministros da Corte Suprema brasileira, acompanhando o voto do
Ministro Relator, consideraram a existência de “acordo político” como um importante
argumento para considerar a Lei nº 6.683/79 em conformidade com a Constituição
de 1988.
Todavia, a Corte deixa de considerar que havia diversos fatores que
afastam a possibilidade de um “acordo político”, seja de ordem formal ou material.
Se houve o mencionado “acordo político”, a definição das partes que teriam
participado de sua elaboração inicia o debate sobre a legitimidade política desse
entendimento. Não é possível sustentar sua ocorrência a não ser que, de uma parte
estivesse a Sociedade e, de outra, o Estado. Porém, não foi o que aconteceu. Não
existia oposição política efetiva por parte da luta armada e da esquerda brasileira:
estes haviam sido massacrados pelos governos Costa e Silva, Médici e Geisel.
Ainda que a Sociedade tivesse participado, ela não estava em condições de
negociação.193
A Sociedade se manifestou contrariamente à proposta do governo pelo
Dia Nacional de Repúdio à Anistia (pretendida pelo Executivo), marcado por
manifestações e atos públicos.194
A composição do Congresso Nacional da época afasta a legitimidade para
a ocorrência do mencionado “pacto político”. Cerca de um terço dos congressistas
era composto por “senadores biônicos”, que eram parlamentares indicados pelo
191
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 37-38.
192
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização: elementos para uma justiça de
transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012, p. 93-96.
193
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 108.
194
PIOVESAN, Flávia. A Lei de Anistia, Sistema Interamericano e o caso brasileiro. In: GOMES, Luiz
Flávioe MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Org.). Crimes de ditadura militar: uma análise à luz da
jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile,
Uruguai. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2011. p. 82.
60
Poder Executivo.195
Após analisar as diferentes ideias sobre o processo de Anistia, Gonçalves
conclui que “Anistia nunca foi consensual por mobilizar diferentes expectativas e por
tratar de diferentes grupos envolvidos”.196
Embora para a história oficial o processo de Anistia seja considerado algo
positivo por sua luta e pelos resultados obtidos, vislumbra-se a existência de grupos
que contrariam esse ponto de vista. Uma corrente atribui à Anistia um sentido de
convite ao esquecimento e de tentar conciliar algo “inconciliável”. Outra corrente
manifesta sentimento de frustação mediante a aprovação do projeto de lei enviado
pelo Governo, uma vez que este foi aprovado com certos limites e gerou a
impunidade dos torturadores.197 Segundo Torelly, a aprovação da Lei nº 6.683/79
expõe o “paradoxo da vitória de todos”. Foi considerada um avanço para os
movimentos democráticos, sem, entretanto, representar uma derrota para os
militares, haja vista que foi mediada e controlada por estes. 198
A ideia da “anistia bilateral”, oriunda de um “acordo político”, adveio de
maneira controlada pelo Regime, em razão da pressão social para a investigação
dos delitos. O lema da Anistia “ampla, geral e irrestrita” para os perseguidos
políticos, que era reivindicado por setores da Sociedade, passou a ser incorporado e
disseminado pelo Regime Militar como aplicável para “os dois lados” (bilateral). Em
demonstração de força, os militares apropriaram-se do bordão social para se
transformar no fiador público de um suposto “pacto político” entre os subversivos e o
regime autoritário com o suposto intuito de iniciar a abertura para o regime
democrático.199
No julgamento da ADPF nº 153, o Ministro Relator Eros Grau reconheceu
o caráter bilateral da Anistia, como resultado da existência do “pacto político, sendo
válida tanto para os opositores ao regime quanto para aqueles que atuaram em
195
ABRÃO, Paulo. Direito à verdade e à justiça na transição política brasileira, p. 67-68.
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 283.
197
GONÇALVES, Danyelle Nilin. Os múltiplos sentidos da anistia, p. 288.
198
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 194-195.
199
ABRÃO, Paulo. Direito à verdade e à justiça na transição política brasileira, p. 68.
196
61
nome do Estado:200
Daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral. Anistia que somente não
foi irrestrita porque não abrangia os já condenados [...] pela prática de
crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. 201
Considerar a Anistia bilateral faz parecer simétricos dois lados que não
são e nunca o foram. De um lado, havia agentes de um golpe de Estado que
derrubaram um governo democraticamente eleito e praticaram crimes contra a
população. De outro lado, estavam cidadãos insurgentes que foram vítimas de
graves violações a Direitos Fundamentais, ao sofrerem torturas, desaparecimentos
forçados e assassinatos.202 Dessa forma, vislumbra-se que a Lei de Anistia brasileira
não resultou de um “acordo político”. Havia significantes divergências sobre o tema
entre os grupos envolvidos que inviabilizavam um entendimento. Além disso, houve
uma parcela de oposicionistas ao Regime Militar que não dispunha de representação
alguma no Congresso Nacional.
Não há como deixar de levar em consideração que, no Congresso
Nacional controlado pelo Poder Executivo, a aprovação do projeto de lei do Governo
deu-se por uma pequena margem, bem como que também houve a rejeição por
pequena margem de outras proposições legislativas significativamente divergentes
do projeto que resultou na Lei 6.683/79.
Embora tenha sido imposta fora de um cenário de Democracia, a Anistia
brasileira, até a presente data, foi exitosa na pretensão dos militares de gerar efeitos
futuros. Configura-se em uma espécie de “limitação apriorística” do Regime Militar
ao Estado de Direito futuro, uma vez que limita a Constituição de 1988 e também
sua intepretação, mesmo na vigência do regime democrático.203
200
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 317.
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153. p. 26-27.
202
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 350.
203
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 306.
201
62
1.2.2 A Anistia como instrumento de Justiça de Transição
Tradicionalmente a doutrina do direito penal contém uma visão da Anistia
com o sentido de esquecimento:204
Conceitua-se a anistia como a exclusão, por motivo de utilidade pública,
de um ou mais fatos criminosos do campo de incidência do Direito Penal,
pelo Poder Público mediante lei ordinária com efeitos retroativos.
Promovendo, assim, esquecimento jurídico de determinados crimes, pela
renuncia ao jus puniendi estatal.205
A categoria jus puniendi pode ser definida como “poder que o Estado
detém de reprimir condutas desviadas, criando e aplicando normas penais”.206
Trata-se de um instituto de extinção da punibilidade, esta compreendida
como a possibilidade jurídica de imposição pelo Estado de uma sanção penal ao
responsável de um ato ilícito criminal. Dessa forma, a Anistia impossibilita
juridicamente a aplicação de uma sanção penal ao indivíduo, na medida em que o
Estado renuncia a seu direito de punir.207
Ao contrário da ideia de simples esquecimento, há a possibilidade de
utilização da Anistia relacionada em um paradoxo existente entre memória e
esquecimento, conforme Ribeiro:
Com efeito, não é um esquecer para nunca mais ser lembrado. Ao
contrário, é um esquecer para ser lembrado; ou um esquecer, para nunca
ser esquecido, para que o horror que motivou a anistia nunca mais volte a
acontecer.208
Meyer critica a corrente que defende o conceito de Anistia como
204
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 200.
LINHARES, Alebe e TEIXEIRA, Zaneir Gonçalves. As medidas de responsabilização do estado
e de seus agentes por crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), p.
4888.
206
PEREIRA, Gabriela Xavier. Princípios limitadores do ius puniendi: a crise da intervenção
mínima. UEPG. Revista PUBLICATIO UEPG - Ciências Humanas, Lingüística, Letras e Artes
da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Vol 17 – (1), Ponta Grossa, 2009:40. Disponível
em: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/humanas/article/view/1658. Acesso em: 13 ago. 2013.
207
LINHARES, Alebe; TEIXEIRA, Zaneir Gonçalves. As medidas de responsabilização do estado e
de seus agentes por crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), p.
4888.
208
RIBEIRO, Maria do Carmo Freitas. O regime jurídico da Lei de Anistia: breves anotações. SJRJ.
Revista da Seção Judiciária Rio de Janeiro. Vol. 17 – (27), Rio de Janeiro, 2010:96. Disponível
em: http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/124. Acesso em: 05 jun. 2013.
205
63
“esquecimento obrigado”, imposto por uma lei, tendo em vista que sempre haverá a
possibilidade de um retorno.209 O esquecimento de fatos determinado pela lei
sempre ficará como algo mal resolvido pela população e de retorno possível no
futuro, haja vista que a população não terá conhecimento para enfrentá-lo.
Segundo Abrão, no Brasil ocorreu uma “transição sob controle”, na
medida em que os militares apenas aceitaram que a transição fosse “lenta, gradual e
segura”. Buscou-se impor burocraticamente um conceito de Anistia relacionado com
esquecimento e perdão, pelo o qual os ofensores perdoariam os ofendidos.210
O controle do exercido pelo Regime Militar na transição brasileira adquiriu
tamanha grandeza que fica virtualmente impossível dizer em que ponto, no Brasil,
cessou a ditadura e sobreveio o regime democrático. Esse forte controle nasceu com
o movimento de abertura política, passou pela aprovação da Lei nº 6.683/79 e se
estendeu, pelo menos, até o ano de 1985, quando as forças políticas apoiadoras do
Regime Militar impediram a aprovação da emenda constitucional que pretendida
instituir a eleição direita para presidente do país.211
Superada a vinculação entre Anistia, esquecimento e perdão, o Conceito
Operacional212 de Anistia pode ser utilizado como um mecanismo de Justiça de
Transição:
A anistia é uma medida legal, adotada em circunstâncias excepcionais,
cuja função primária é remover, condicionada ou incondicionalmente, a
possibilidade e as vezes mesmo as consequências de um procedimento
legal contra determinados indivíduos ou classe de pessoas em relação a
também designados tipos de ofensas.213
A introdução das anistias em processos transicionais ocorre por quatro
diferentes procedimentos: a) por ato discricionário do Poder Executivo; b) por
negociações em processos de paz; c) por promulgação pelo Poder Executivo; e, d)
por referendo popular. Tal como ocorre com outros mecanismos de justiça
transicional, nessas quatro opções, a utilização de uma lei de Anistia incorre na
209
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 201.
ABRÃO, Paulo. Direito à verdade e à justiça na transição política brasileira, p. 66.
211
ABRÃO, Paulo. Direito à verdade e à justiça na transição política brasileira, p. 66.
212
PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica, p. 37
213
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 84.
210
64
problemática de que raramente existe simetria de poder ou mesmo equilíbrio
democrático entre as partes envolvidas. Esse desequilíbrio esteve presente nos
casos latino-americanos, tendo em vista que os regimes autoritários anistiaram a
seus próprios agentes, ou melhor, concederam anistia a si próprios214, configurando
autoanistias.
O Ministro Celso de Melo Filho, em seu voto no julgamento da ADPF
nº153, traz seu entendimento sobre as diferenças entre leis de Anistia e de
Autoanistia. Para o Magistrado, as Anistias assumem essa característica ao
possuírem caráter bilateral, estendendo seus efeitos tanto aos opositores quanto aos
agentes da repressão. Por sua vez, a Autoanistia ou anistias em branco busca,
unicamente, suprimir a responsabilidade dos agentes do Estado. A Lei nº 6.683/79
estaria inserida dentro da primeira classificação e as demais leis de Anistia da
América latina figurariam dentro da segunda.215
Em sentido contrário, a Corte Interamericana de Direito Humanos (CIDH)
possui entendimento em desfavor das leis de Autoanistia desde 1998, quando julgou
o caso Loayza Tamayo.216 O processo que sedimentou esse entendimento na
jurisprudência na CIDH foi o caso conhecido como Barrios Altos, decidido em 2001;
nele o Estado do Peru foi condenado e foram consideradas nulas as leis de Anistias
do país por serem consideradas incompatíveis com a Convenção Americana de
Direitos Humanos (Convenção).217 A CIDH adotou o mesmo posicionamento para
considerar incompatíveis com a Convenção as leis de Anistias da Argentina, Chile, El
Salvador, Haiti, Peru e Uruguai.218
No julgamento do caso Gomes Lund e outros versus Brasil, a CIDH
manifestou-se acerca da Lei de Anistia brasileira, decidindo ser irrelevante se possui
características de Anistia, de Autoanistia ou de acordo político, afastando a
214
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 84-87.
BRASIL. Voto do Ministro Melo Filho. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 184.
216
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 185.
217
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Leis de Autoanistia. Caso Barrios Altos vs.
Perú. San José, Costa Rica, 14 de março de 2001. p. 15-16. Disponível em:
http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_75_esp.pdf. Acesso em 01 mai. 2013.
218
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outos vs. Brasil,
p. 55.
215
65
importância dada para essa diferenciação formal feita no julgamento da ADPF nº 153
pelo STF. O critério utilizado pelo CIDH não foi simplesmente formal (se configura ou
não uma Autoanistia), mas sim material. Concluiu que a Lei de Anistia brasileira
afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de
Direitos Humanos, resultando em impunidade sobre graves violações ao direito
internacional cometidas durante o Regime Militar, em desrespeito à Convenção
Interamericana de Direitos Humanos.219 Percebe-se, portanto, que para a CIDH, a
incompatibilidade da Lei nº 6.683/79 com a Convenção está relacionada com os
seus resultados e não a um problema de legitimidade de origem da norma.220
Evitar que a Anistia brasileira resulte em impunidade de violações a
Direitos Humanos consiste a denominada terceira fase do processo de Anistia. A
primeira fase ocorreu quando a Sociedade conclamou a redemocratização da
política do país, na década de 1970. A segunda fase foi marcada pela conquista de
reparações para as vítimas do regime. A terceira fase do processo de Anistia, no
país, atualmente em formação, consiste na busca de que sua aplicação seja única e
exclusivamente aos crimes políticos praticados por grupos de oposição.221
Dessa feita, a fim de evitar que a Anistia brasileira implique em
impunidade de violações a Direitos Fundamentais, defende-se que não seja
caracterizada com o sentido de perdão ou esquecimento, para ser utilizada como um
instrumento de Justiça de Transição, compreendida como sinônimo de “verdade e
justiça”.222 Por esse entendimento, delimita-se dois momentos distintos: o período da
Ditadura Militar e o início da implementação do regime democrático. A Anistia não
significa ignorar os fatos ocorridos no período anterior e as responsabilidades de
quem os cometeu, mas consiste numa importante condição para a transição política,
219
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outos vs. Brasil,
p. 64-65.
220
KRSTICEVIC, Viviana e AFFONSO, Beatriz. A importância de se fazer justiça: reflexões sobre os
desafios para o cumprimento da obrigação de investigar e punir os responsáveis em observância à
sentença da Corte Interamericana no caso Guerrilha do Araguaia. In: GOMES, Luiz Flávio e
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Org.). Crimes de ditadura militar: uma análise à luz da
jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile,
Uruguai. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2011. p. 264-265.
221
ABRÃO, Paulo. Fazer justiça no Brasil: a terceira fase da justiça da luta pela anistia. In: ABRÃO,
Paulo e GENRO, Tarso. Os direitos da transição e a democracia no Brasil: estudo sobre a
Justiça de Transição e teoria democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 109.
222
ABRÃO, Paulo. Fazer justiça no Brasil: a terceira fase da justiça da luta pela anistia, p. 119.
66
isentando de responsabilidades as vítimas de opressão e responsabilizando
pessoalmente os responsáveis por violações a Direitos Fundamentais.
67
CAPÍTULO 2
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL E A POSIÇÃO DOS
TRIBUNAIS SOBRE A RESPONSABILIDADE PENAL DOS
MILITARES
O capítulo 2 versa sobre a mudança do regime ditatorial para o
democrático e a importância da implementação da Justiça de Transição para a
consolidação da Democracia no Brasil. Analisam-se as medidas de justiça
transicional: Direito à Verdade e à Memória, Direito à Reparação, Direitos à
Modificação das Instituições Estatais e Direito de acesso à Justiça, situando este
último como a medida de maior dificuldade de implementação no país. A fim de
demonstrar as posições jurídicas adotadas sobre o tema, pelo Supremo Tribunal
Federal, e, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, expõem-se os
argumentos e conclusões dos julgamentos da Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental n° 153 e do caso Gomes Lund e outros versus Brasil.
Sustenta-se, que não há diferença, quanto ao conteúdo, entre Direitos
Humanos e Direitos Fundamentais. A distinção na denominação está relacionada
com o âmbito de sua proteção, se internacional ou nacional. São chamados de
Direitos Humanos, quando são previstos em instrumentos jurídicos, no âmbito
internacional, e Direitos Fundamentais, após serem positivados no sistema jurídico
interno dos países.223 Desta feita, será utilizado, preferencialmente, o termo Direitos
Fundamentais, quando a análise possuir maior concentração na legislação brasileira,
e a denominação de Direitos Humanos, para discussões relacionadas, em sua maior
parte, ao âmbito internacional.
223
GARCIA, Marcos Leite. Efetividade dos Direitos Fundamentais: notas a partir da visão integral do
conceito segundo Gregorio Peces-Barba. In: VALLE, Juliano Keller do e MARCELINO JR., Julio
Cesar. (Org). Reflexões da Pós-Modernidade: Estado, Direito e Constituição. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2008. p. 206.
68
2.1 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
A passagem da Ditadura Militar, a estabilidade e a consolidação do regime
democrático esbarram, em um primeiro momento, na tese da reconciliação nacional,
segundo a qual a “abertura de feridas do passado” provocaria novo conflito entre os
grupos que se enfrentaram durante anos. Assim como ocorreu em outros países da
América Latina, no Brasil, o instrumento legal utilizado para implantar essa tese foi a
criação da Lei de Anistia.224.
A promulgação da Lei nº 6.683/79 é considerada o marco inicial do
processo de transição do regime autoritário à Democracia que vem se redefinido até
os dias atuais.225 Com o passar dos anos, o discurso da reconciliação nacional foi
contestada pela Sociedade civil. Familiares de assassinados e desaparecidos,
acadêmicos, grupos internacionais de defesa de Direitos Humanos e até
componentes da organização das Nações Unidas passaram a criticar a dicotomia
estabelecida entre estabilidade e justiça. O argumento era de que o enfrentamento
dos fatos ocorridos durante o regime de exceção solidifica as bases da nova ordem
constitucional e política, não desestabilizando o regime democrático.226
A pesquisa, realizada por Sikkink e Walling, demonstra que, na Argentina
e no Chile, países que tiveram regimes ditatoriais militares, mas que permitiram a
investigações de fatos ocorridos nestes períodos, apresentam diferentes níveis de
respeito aos valores básicos relativos ao regime democrático, quando comparados
ao Brasil. No caso brasileiro, foram encontradas evidências de que uma transição
sem tratamento valorativo do passado violento possui resultados de relevância (de
forma negativa) na prática dos Direitos Fundamentais. Verificou-se, por exemplo, a
224
225
226
LENTZ, Rodrigo. A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos humanos e a
cultura política, p 149-150.
RODRIGUES, Natália Centeno e VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Justiça de Transição: um
breve relato sobre a experiência brasileira. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da (Org.).
Justiça de transição no Brasil: violência, justiça e segurança. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. p.
258. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Pdf/978-85-397-0225-1.pdf. Acesso
em: 15 mai. 2013.
LENTZ, Rodrigo. A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos humanos e a
cultura política, p. 150.
69
aceitação dos cidadãos sobre um governo militar antes e depois da aplicação dos
mecanismos que caracterizam a justiça transacional, como forma de verificar seus
efeitos, por sua presença ou por sua ausência. 227
Ano
País
Argentina
Brasil
Chile
1995-1999
2006
26,00%
45,00%
27,00%
11,00%
35,00%
18,00%
Quadro 2: Percentual de entrevistados que acham um governo militar muito ou bastante bom.
228
Fonte: Pesquisa Mundial de Valores.
Esta variável demonstra que, após a implementação dos mecanismos de
Justiça de Transição, houve uma significativa queda de aceitação pela população de
um regime militar. Especificamente no Brasil, os índices expõem uma queda, porém
permanecem elevados, uma vez que há a indicação de que mais de um terço da
população ainda é favorável à possibilidade de um governo comandado por
militares.229
A passagem de um regime ditatorial para a Democracia é o período de
atuação da Justiça de Transição, que pode ser entendida como “o esforço para a
construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou
violação sistemática dos direitos humanos”.230
O Relatório S/2004/616 do Conselho de Segurança da Organização das
Nações Unidas (ONU) traz o seguinte conceito de Justiça de Transição:
8. A noção de “justiça de transição” discutida no presente relatório
compreende o conjunto de processos e mecanismos associados às
tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado
de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os
responsáveis prestem contas de seus atos, que seja feita a justiça e se
conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais e
extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou
nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações,
227
Apud LENTZ, Rodrigo. A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos humanos e
a cultura política, p. 160.
228
LENTZ, Rodrigo. A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos humanos e a
cultura política, p. 160.
229
LENTZ, Rodrigo. A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos humanos e a
cultura política, p. 160-161.
230
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 47.
70
busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a
destituição de um cargo ou a combinação de todos esses
procedimentos.231
Mas conforme Almeida e Torrelly, ao conceito de Justiça Transição se faz
necessário agregar um novo elemento, o Estado de Direito, na sua concepção
substancial:
Denominou-se de “Justiça de Transição” a uma série de iniciativas
empreendidas por via dos planos internacional, regional ou interno, nos
países em processos de liberalização ou democratização, englobando
suas políticas públicas, suas reformas legislativas e o funcionamento de
seu sistema de justiça, para garantir que a mudança política seja bem
sucedida e que, ao final dela, exista não apenas uma democracia eleitoral
(caracterizada por eleições procedimentalmente eqüitativas), mas sim um
Estado de Direito na acepção substancial do tema.232
Não se trata de um conceito uniforme com conteúdo limitado, tendo em
vista que é composto de um conjunto de mecanismos que devem ser
implementados, levando em consideração, determinadas minúcias do passado
autoritário vivenciado em um país, com o objetivo de eliminar fatos não esclarecidos
e, assim, constituir meios de fortalecer a Democracia.233
Almeida e Torrelly ensinam que os mecanismos da Justiça de Transição
são entendidos como uma forma de dar extensão retroativa e prospectiva ao Estado
de Direito e de evitar a existência de um “espólio autoritário”:
Desta forma, estes mecanismos são entendidos como uma forma de, a
um só tempo, dar extensão retroativa e prospectiva ao Estado de Direito,
compensando e reparando as violações do passado restabelecendo os
efeitos típicos do Estado de Direito, especialmente a igualdade perante a
lei e a previsibilidade do sistema jurídico, de modo a garantir a não
repetição da violência e evitar a existência, na sociedade que entende
fundar uma democracia constitucional, de um “espólio autoritário”,
composto por atos que não podem ser submetidos ao controle de
231
232
233
NAÇÕES UNIDAS. Conselho de Segurança. Relatório do Secretário Geral nº S/2004/616. O
Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito. Ministério da
Justiça. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Vol. 1, Brasília, 2009:325. Disponível
em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team={67064208-D044-437B-9F24-96E0B26CB372}. Acesso
em: 20 mai. 2013.
ALMEIDA, Eneá de Stutz e TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição, Estado de Direito e
Democracia Constitucional, p. 38.
RODRIGUES, Natália Centeno e VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Justiça de Transição, p.
257.
71
legalidade do judiciário e pessoas que não podem ser processadas.234
Para os autores acima mencionados, há três fases da justiça transicional.
A primeira, ocorrida entre 1945 até meados de 1970, possui caráter internacionalista
e punitivo, por ter sido necessário afastar a jurisdição nacional para obter a
responsabilização daqueles que perpetraram atrocidades durante a Segunda Guerra
Mundial.235 Nessa fase, são mapeados dois dos elementos-chave das políticas
transicionais: a) a reforma das instituições perpetradores dos crimes com vistas a
não repetição; e, b) responsabilização criminal individual por delitos praticados em
nome do regime.236
A segunda fase ocorre no período entre 1970 e 1989, com uma ordem
mundial em mutação devido ao declínio da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas e o advento do mundo multipolar. Se durante a Guerra Fria eram comuns
intervenções externas de ordem ideológica,237 passou-se a repudiar as intervenções
de outros países nas justiças internas dos países.238 Diante da existência de tensão
entre a punição dos responsáveis e a utilização de Anistias,239 restou aos Estados
buscar novas formas de equacionar seus débitos autoritários. Em decorrência,
outras duas medidas transicionais de grande relevância foram criadas: a) as
reparações em escala às vítimas; e, b) a implementação de comissões da verdade
como maneira de prestação de contas a partir de uma perspectiva histórica.240
Dessa forma, a segunda fase inclui o projeto de verdade e reconciliação à Justiça de
Transição pelo propósito não apenas de justiça, mas também de paz para a
234
ALMEIDA, Eneá de Stutz e TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição, Estado de Direito e
Democracia Constitucional, p. 37.
235
ALMEIDA, Eneá de Stutz e TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição, Estado de Direito e
Democracia Constitucional, p. 39.
236
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 109.
237
ALMEIDA, Eneá de Stutz e TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição, Estado de Direito e
Democracia Constitucional, p. 40.
238
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 109.
239
TEITEL, Ruti G. Transitional justice genealogy. Harvard Law School. Havard Human Rights
Journal.
Vol.
16,
Cambridge
(EUA),
2003:76.
Disponível
em:
https://coursewebs.law.columbia.edu/coursewebs/cw_12F_L9165_001.nsf/0f66a77852c3921f8525
71c100169cb9/1AF45358A7C0251E85257A6A00011C0F/$FILE/Teitel++TJ+Genealogy.pdf?OpenElement. Aceso em: 01 jun. 2013. .
240
ALMEIDA, Eneá de Stutz e TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição, Estado de Direito e
Democracia Constitucional, p. 41.
72
Sociedade.241
Designada como “consolidação”, a terceira fase é iniciada em 1989 e se
estende até a presente data. Tem-se como sua característica mais marcante o
acionamento de tribunais internacionais com o intuito de devolver à esfera jurídica as
questões tratadas no plano político durante as transições.242
Atribui-se,
portanto,
à
Justiça
de
Transição
quatro
dimensões
fundamentais, cada uma delas relacionadas a deveres estatais: a) a reparação
(Direito à Reparação); b) o fortalecimento da verdade e a construção da memória
(Direito à Verdade e à Memória); c) a regularização da justiça e o reestabelecimento
da igualdade perante a lei (Direito à Justiça); c) a reforma das instituições
perpetradoras de violações contra os direitos humanos (Direito à Modificação das
Instituições Estatais).243
A utilização das dimensões da justiça transicional na busca pela paz exige
o conhecimento seguro das particularidades que envolvem a saída do regime
ditatorial e o início da Democracia em cada país. Na implementação da Justiça de
Transição, tem-se como salutar levar em consideração que pode haver tensões
entre justiça e paz no curto prazo. Nesses casos, pode ser prudente e recomendável
adiar as demandas da justiça transicional até o término das hostilidades ou a efetiva
consolidação do regime democrático. Entretanto, inexistem fundamentos para a
prudência durar por período indeterminado, em casos de reais hostilidades. Um
alongamento injustificável da utilização dos mecanismos de transição poderia ter
efeito corrosivo sobre os esforços para construir uma paz sustentável e significaria
aumentar a injustiça que as vítimas já suportaram.244 Dessa forma, defende-se que a
longo e médio prazos, as medidas de Justiça de Transição sejam implementadas em
sua totalidade. Em curto prazo, em casos de hostilidade real e importante, deve-se
utilizar grande parte da agenda de justiça transicional, com alguma prudência, sem
configurar impunidade pelos atos realizados no passado.
241
TEITEL, Ruti G. Transitional justice genealogy, p. 81-82.
ALMEIDA, Eneá de Stutz e TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição, Estado de Direito e
Democracia Constitucional, p. 41.
243
RODRIGUES, Natália Centeno e VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Justiça de Transição, p.
260.
244
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 55-56.
242
73
2.1.1 Direito à Verdade e à Memória
O Direito à Verdade consiste em dar amplo conhecimento aos atos
violadores de Direitos Fundamentais e também para que o Estado, os cidadãos e os
opressores reconheçam as injustiças dos abusos.245 Está relacionado ao Direito à
Memória, no sentido de que o aprendizado e a vivência viabilizam a construção de
referências, da identidade e da elaboração dos projetos para o futuro. Por
consequência, o amplo acesso aos documentos públicos possui grande relevância
na efetivação dos Direitos à Verdade e à Memória.246
A consolidação da Democracia não acontece sem o aproveitamento
crítico das experiências passadas, e isso somente é possível com o acesso à
informação sobre os acontecimentos pretéritos. A questão do acervo cultural, do
resgate à memória e do desenvolvimento da cultura passa pela revisão dos desvios
históricos e também por saber quem são os verdadeiros heróis, seus ícones e sua
mitologia local.247
Os países, que atravessam momentos de justiça transicional, instituem as
comissões da verdade como o mecanismo para efetivar o Direito à Verdade. A
implementação deste mecanismo almeja proporcionar a reconciliação nacional e a
superação de um passado indesejado. Podem, ainda, serem utilizadas para uma
ulterior responsabilização dos envolvidos e delimitar a distância entre o novo e o
antigo governo.248 Conquanto se faça uma diferenciação entre Direito à Verdade e à
Justiça, não há exclusão recíproca entre ambos. A instalação de uma comissão de
verdade não inviabiliza a existência de processos judiciais para verificar as
responsabilidades dos envolvidos. A apuração dos fatos, feita pela comissão da
verdade, pode trazer benefícios para os processos conduzidos pelo Poder Judiciário,
principalmente se esse ainda se encontra eivado de entendimentos originários do
245
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 51.
RODRIGUES, Natália Centeno e VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Justiça de Transição, p.
260.
247
BITTAR, Ediardo C.B. Os direitos humanos e a liberdade de expressão na América Latina, p.
175-179.
248
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 254.
246
74
regime ditatorial.249
A comissão da verdade é importante meio para dar voz no espaço público
às vítimas do regime ditatorial. Os seus testemunhos podem contribuir para
contestar as versões oficiais e mitos relacionados às violações dos Direitos
Fundamentais. Na África do Sul, por exemplo, os depoimentos prestados pelas
vítimas não permitiram mais negar que a tortura daquele país era tolerada
oficialmente.250
No Brasil, a afirmação do Direito à Verdade e à Memória acerca do
período da Ditadura Militar teve início de forma mais incidente somente no ano de
1995, com a publicação da Lei nº 9.9140. Por meio desse diploma legal, houve o
reconhecimento oficial como mortos políticos, para todos os efeitos legais, dos
desaparecidos políticos no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de
1979. Além disso, foi criada a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos no
âmbito do Ministério da Justiça. Posteriormente, a Lei nº 10.536/02 estendeu o
período de reconhecimento dos falecidos até 05 de outubro de 1988.251
Em 21 de dezembro de 2009, o Decreto nº 7.037 aprova o Plano Nacional
de Direitos Humanos (PNDH-3). Seu artigo 2º, inciso VI,252 prevê no documento um
item (“Eixo orientador nº VI”) dedicado ao Direito à Memória e à Verdade. Ao tratar
sobre a questão, o Plano Nacional de Direitos Humanos, reconhece a memória e a
verdade como fatores de fortalecimento da Democracia:
A história que não é transmitida de geração a geração torna-se esquecida
e silenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves
lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional.
Resgatando a memória e a verdade, o País adquire consciência superior
sobre sua própria identidade, a democracia se fortalece. As tentações
249
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 254-255.
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 51.
251
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 256.
252
“Art. 2º O PNDH-3 será implementado de acordo com os seguintes eixos orientadores e suas
respectivas diretrizes: [...].
VI - Eixo Orientador VI: Direito à Memória e à Verdade:
a) Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e
dever do Estado;
b) Diretriz 24: Preservação da memória histórica e construção pública da verdade; e
c) Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com promoção do direito à memória e à
verdade, fortalecendo a democracia.”
250
75
totalitárias são neutralizadas e crescem as possibilidades de erradicação
definitiva de alguns resquícios daquele período sombrio, como a tortura,
por exemplo, ainda persistente no cotidiano brasileiro.253
Em 18 de novembro de 2011, a Lei nº 12.528 instituiu, no âmbito da Casa
Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade (CNV). A
finalidade de sua criação é de examinar e esclarecer as graves violações de Direitos
Humanos praticadas no período entre 18 de setembro de 1946 e 05 de outubro de
1988, com o objetivo de efetivar o Direito à Memória e à Verdade e promover a
reconciliação nacional, conforme previsto em seu artigo 1º.254
O artigo 4º, da Lei nº 12.528/11, em seu parágrafo 4º,255 deixa claro que
os atos da CNV não têm natureza jurisdicional ou persecutórios. Desta maneira, no
caso brasileiro, não há confusão entre a atuação da Comissão da Verdade e a do
Poder Judiciário, pois somente este poderia atribuir responsabilidade criminal aos
envolvidos. Segundo Meyer, o advento da Lei nº 12.527/11 passou a prever o sigilo
como exceção e a ampla publicidade como regra. Por isso, o autor sustenta que
referido diploma legal fez surgir a denominada “cultura da transparência”. 256
2.1.2 Direito à Reparação
O Direito à Reparação advém do dever garantido pelo direito internacional
do Estado de reparar as vítimas pelas graves violações aos Direitos Humanos que
sofreram. A reparação pode assumir várias formas, que incluem a ajuda material
(pagamentos compensatórios, a concessão de pensões e de bolsas de estudos), a
assistência psicológica (aconselhamento para lidar com o trauma) e medidas
253
BRASIL. Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009. Aprova o Programa Nacional de Direitos
Humanos - PNDH-3 e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 22 dez. 2009. p 170. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Decreto/D7037.htm. Acesso em: 07 abr. 2013.
254
“Art. 1º É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da
Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos
praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim
de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.”
255
“Art. 4º. [...]. § 4º As atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional
ou persecutório.”
256
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 261-262.
76
simbólicas (construção de monumentos e memoriais).257.
Os responsáveis por implementar a política de reparação justa e
equitativa deverão enfrentar a questão da necessidade (ou da desnecessidade) de
utilizar um sistema de distinção entre as vítimas. Como, por exemplo, se as
reparações serão destinadas somente às vítimas de graves violações a Direitos
Fundamentais (torturas, assinados, desaparições, dentre outros) ou se igualmente
deverão ser concedidas a uma classe mais ampla de vítimas (que sofreram
discriminação racial sistemática). Essa análise sugere cautela, uma vez que uma
política de reparação justa e sustentável não deve gerar nem perpetuar divisões
entre as diferentes categorias de vítimas.258
Segundo Meyer, a reparação relacionada à justiça transicional dispõe de
um rol de atuação mais abrangente: a) restituição, que assume um sentido de
recuperar a situação anterior da vítima, para alcançar um retorno de direitos políticos
e de propriedade; b) de compensação, por meio da quantificação de danos
econômicos, morais ou físicos; c) de reabilitação, que envolve a concessão de
assistência médica, psicológica e jurídica; e, d) satisfação e garantias de não
repetição, que estão relacionadas à investigação dos fatos e desculpas oficiais. 259
O Direito à Reparação é a dimensão da Justiça de Transição que,
provavelmente, foi mais desenvolvida no Brasil. Como advento da Lei nº 10.559, de
14 de novembro de 2002, institui-se, no âmbito do Ministério da Justiça, a Comissão
de Anistia, que concede, a quem tenha a condição de anistiado político reconhecida
pela Comissão, uma reparação econômica de natureza reparatória. A “Caravana da
Anistia” passou a realizar trabalhos em diversos locais onde ocorreram violações a
Direitos Fundamentais, trazendo uma maior exposição do trabalho realizado pela
Comissão de Anistia.260 Essa iniciativa amplia o debate sobre a questão, permite o
conhecimento dos fatos e evita o esquecimento de que o Brasil, há pouco tempo,
teve um regime político violador de condições mínimas de existência do ser humano.
257
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 52.
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 52-53.
259
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 265-266.
260
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 266.
258
77
2.1.3 Direito à Modificação das Instituições Estatais
A ação do governo, ocorrida no período da Ditadura Militar, deixou rastros
permanentes nas instituições do Estado brasileiro, pois administrou as condições
para a sua saída por uma transição lenta, gradual e segura, iniciada durante o
Governo Geisel.261 Por isso, durante o período transicional, há a necessidade de
mudar radicalmente e, em muitos casos, dissolver as instituições responsáveis pelas
violações de Direitos Fundamentais. A modificação de instituições estatais pode ser
feita por medidas legais, administrativas e institucionais e visam evitar que o aparato
estatal seja utilizado novamente no futuro, para provocar violações aos cidadãos.262
O Brasil vem buscando adequar suas instituições de acordo com
parâmetros democráticos. Órgãos ligados à espionagem e à informação foram
extintos e outros relacionados ao regime democrático foram criados como o
Ministério Público e a Defensoria Pública. Todavia, é imperioso que seja realizada
uma profunda reforma nas forças armadas e nos sistemas de segurança pública
para o país avançar na consolidação da Democracia. 263
Para Oliveira, a Justiça de Transição não visa somente alterar as
instituições diretamente envolvidas com a segurança pública, mas buscam
igualmente modificar outros órgãos que colaboraram para dar “legalidade” à
repressão. A autora afirma que, por continuar fortemente ligado à Legalidade
Autoritária da Ditatura Militar, existe a necessidade de reforma do Poder Judiciário
para torná-lo um poder democrático.264
Boaventura de Sousa Santos propõe uma revolução democrática da
justiça, para que, em conjunto com outras instituições, o Poder Judiciário passe a ser
mais democrático. O autor português sustenta, como ponto de partida, para uma
nova concepção de acesso ao direito e à justiça, os seguintes vetores: a) profundas
261
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p. 327.
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 53.
263
RODRIGUES, Natália Centeno e VERAS NETO, Francisco Quintanilha. Justiça de Transição, p.
263.
264
OLIVEIRA, Roberta Cunha de. Entre a permanência e a ruptura, p. 330-332.
262
78
transformações processuais; b) novos mecanismos e protagonismos no acesso ao
Direito à Justiça; c) o velho e novo pluralismo jurídico; d) novas organizações e
gestões judiciárias; e) revolução nas formações dos profissionais; f) novas
concepções de independência judicial; g) uma relação do poder judicial mais
transparente com o poder político e com a mídia, e mais densa com os movimentos
e organizações sociais; h) cultura jurídica democrática e não corporativa.265 Dessa
forma, a democratização das instituições jurídicas depende de outro tipo de
relacionamento com os demais componentes do sistema judicial (legislativo e
executivo) e, igualmente, com a Sociedade em geral e com suas organizações, por
exemplo, com grupos de cidadãos, com movimentos sociais e com entidades não
governamentais dedicados a temas relacionados.266
As alterações institucionais não devem ficar alheias à retirada de
perpetradores de cargos públicos e da aplicação de medidas que impeçam que
voltem a ocupar seus antigos cargos. A remoção das pessoas reesposáveis por
violações
a
Direitos
Fundamentais
de
seus
cargos
exigem
confiança
e
responsabilidade, constitui uma importante etapa do processo para estabelecer ou
restaurar a integridade das instituições estatais. 267
2.1.4 Direito à Justiça
O Direito à Justiça equivale ao Princípio da Inafastabilidade do Poder
Judiciário, previsto na Constituição de 1988, no seu artigo 5º, inciso XXXV,268
principalmente ao acesso à justiça criminal.
O uso do direito penal configura a mais significativa reprimenda ética e
social de que dispõem os estados modernos contra práticas dos indivíduos, estando
esses a serviço do Estado ou não. O exercício desse direito guarda especial
265
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo:
Cortez, 2011. p. 39.
266
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça, p. 72.
267
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 53.
268
“Art. 5º: [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito;”
79
relevância por ser, atualmente, a obrigação estatal que encontra maior resistência
para a sua implementação em toda a América Latina.269
Entende-se por Responsabilidade Penal dos Militares as participações
pessoais de integrantes das forças armadas por delitos cometidos durante a
Ditadura Militar brasileira, na exata medida das ações de cada agente. Mede-se
suas motivações e eventuais excessos, além de estabelecer as devidas punições
mediante a culpabilidade específica de cada indivíduo.270
O julgamento criminal de agentes estatais por atos criminosos encontra
forte precedente no julgamento de nazistas pós II Guerra, especialmente nos
julgamento ocorrido no Tribunal de Nuremberg.271 Essa medida almeja evitar futuros
crimes, proporcionar um consolo às vítimas, desenvolver um novo grupo de normas
e impulsionar as transformações das instituições estatais para que se tornem mais
confiáveis. Não consiste apenas na expressão do anseio social de redistribuição,
posto que exerce um papel de relevante importância de reafirmação pública de
normas e valores essenciais e que suas violações implicam na aplicação de
sanções.272
Lentz destaca que a responsabilização criminal dos responsáveis pela
repressão inclui o respeito de garantias democráticas vigentes no novo regime,
como o contraditório e a ampla defesa.273 O julgamento dos responsáveis pode
auxiliar na diminuição do desejo de vingança das vítimas, uma vez que a ideia de
impunidade pode contribuir para o reinício das hostilidades,274 ameaçando os
objetivos da Justiça de Transição de consolidação da paz e do regime democrático.
Ocorre que, no âmbito nacional brasileiro, passados quase trinta anos do
269
LENTZ, Rodrigo. A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos humanos e a
cultura política, p. 153.
270
LINHARES, Alebe e TEIXEIRA, Zaneir Gonçalves. As medidas de responsabilização do estado
e de seus agentes por crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), p.
4888.
271
LINHARES, Alebe e TEIXEIRA, Zaneir Gonçalves. As medidas de responsabilização do estado
e de seus agentes por crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), p.
4888.
272
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 50-51.
273
LENTZ, Rodrigo. A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos humanos e a
cultura política, p. 153.
274
VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflitos, p. 58-62.
80
término da Ditadura Militar, prevalece o entendimento nos tribunais de não ser
possível haver a responsabilização criminal dos militares que praticaram violações a
Direitos Fundamentais, durante o período da Ditadura Militar. A interpretação da Lei
de Anistia, feita pelo Judiciário, à época da Ditadura, e reafirmada recentemente pelo
Supremo Tribunal brasileiro veda ocorrência de processos nesse sentido.275 Mesmo
na vigência da Constituição, promulgada em 1988, em abril de 2010, o Supremo
Tribunal Federal (STF) julgou improcedente o pedido feito pela Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) de interpretação conforme a Constituição e “revisão” da
Lei nº 6.683/79 feitos na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
n° 153276, reconhecendo como legítima a interpretação dada à mencionada Lei no
período de sua elaboração.277 No âmbito internacional, em sentido contrário ao
julgamento do STF, em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos sentenciou o caso Gomes Lund e outros versus Brasil e concluiu que as
disposições da Lei de Anistia brasileira impedem a investigação e a sanção de
graves violações de Direitos Humanos, carecendo de efeitos por ser incompatível
com a Convenção Americana de Direitos Humanos.278 Ante a existência de
julgamentos distintos, há insegurança jurídica para as partes e para os operadores
do direito envolvidos em casos relacionados à Validade da Lei n° 6.683/79 e à
Responsabilização Penal dos Militares envolvidos em violações a Direitos
Fundamentais, durante o período de exceção de 1964 a 1985, pois não existe
certeza se os tribunais admitem a investigação e a punição dos agentes estatais
militares.
2.2 A RESPONSABILIZAÇÃO PENAL DOS MILITARES PARA O
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E PARA A CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS
275
ABRÃO, Paulo. Direito à verdade e à justiça na transição política brasileira, p. 75.
BRASIL. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, p. 04.
277
ABRÃO, Paulo. Direito à verdade e à justiça na transição política brasileira, p. 75.
278
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outos vs. Brasil,
p. 114.
276
81
2.2.1. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) tem sido
manejada mediante duas modalidades: a principal/autônoma e a incidental.279 A
primeira consiste em uma hipótese de controle abstrato de constitucionalidade, junto
com a Ação Declaratória de Constitucionalidade, a Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão.
Esse instrumento jurídico tem sido usado, quando as demais ações forem incabíveis
ou não se revelarem idôneas para afastar ou impedir a lesão a preceito fundamental
da Constituição de 1988. Por sua vez, a hipótese de ADPF incidental destina-se a
provocar
a
apreciação
do
Supremo
Tribunal
Federal
sobre
controvérsia
constitucional relevante, objeto de julgamento por qualquer juízo ou tribunal, se
inexistir outro meio idôneo de sanar a lesividade do preceito fundamental.280 A ADPF
nº 153 foi considerada na modalidade autônoma.281
Por fazer parte do modelo jurisdicional concentrado de controle de
constitucionalidade, a ADPF nº 153 é dotada de efeito vinculante, logo a decisão do
STF sobre esse tipo de ação tem força de obrigar decisões no controle difuso de
constitucionalidade de leis e atos normativos, bem como todos os órgãos da
Administração Pública Direta e Indireta.282 Dessa feita, a decisão do STF que
transitar em julgado sobre esse caso será considerada a última palavra do Sistema
Jurídico do país acerca da aplicação ou não da Anistia, prevista na Lei nº 6.683/79,
aos crimes praticados por agentes do Estado contra os opositores do Regime Militar.
A petição inicial da Ação de Descumprimento Fundamental n º 153,
279
FREIRE, Alexandre Reis Siqueira. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental:
origem e perspectivas. UFPR. Revista da Faculdade de Direito da UFPR. Vol. 35, Curitiba,
2001:207-208. Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/direito/article/viewArticle/1818.
Acesso em 11 jun. 2013.
280
SARMENTO, Daniel, 2001 apud LEAL, Mônia Clarissa Henning e STEIN, Leandro Konzen. A
polêmica em torno da arguição de descumprimento de preceito fundamental incidental
UNIVALI. Novos Estudos Jurídicos. Vol. 14 – (2), Itajaí, 2009:157-158. Disponível em:
http://siaiweb06.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/1772/1412. Acesso em: 15 jul. 2013.
281
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 12.
282
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 16.
82
ajuizado, em 2008, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), pretende que a norma contida no parágrafo primeiro, do artigo primeiro, da
Lei nº 6.683/79283 tenha por objeto exclusivamente crimes comuns cometidos por
autores de crimes políticos, sem abranger os agentes públicos que praticaram
crimes comuns contra opositores ao regime.284 Sustentou a violação dos seguintes
preceitos fundamentais previstos na Carta Magna de 1988: isonomia (caput do artigo
5º),285 não ocultação da verdade pelo poder público (inciso XXXIII do art. 5º),286 aos
princípios democrático e republicano (parágrafo único do artigo 1º287,) e a Dignidade
da Pessoa Humana (inciso III do artigo 1º).288
289
No pedido de mérito, o Conselho
Federal da OAB requereu que fosse dado à Lei nº 6.683/79 Interpretação conforme
a Constituição de 1988, para ser declarado que a Anistia concedida aos Crimes
Políticos e Conexos não se estende aos Crimes Comuns praticados pelos agentes
do Estado contra os opositores políticos durante a Ditadura Militar do país.290 O
núcleo central da causa de pedir consiste no argumento de que a redação do
parágrafo primeiro, do artigo primeiro, da Lei nº 6.683/79, foi feita, propositadamente,
de forma obscura, para tentar estender os efeitos da Anistia aos encarregados da
repressão.291
Entende-se por Interpretação conforme a Constituição um método de
controle de constitucionalidade pelo o qual se busca interpretar o dispositivo
283
“§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza
relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.”
284
CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Petição Inicial na Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Brasília. 2008. p. 10. Disponível em:
http://www.oab.org.br/arquivos/pdf/Geral/ADPF_anistia.pdf. Acesso em: 08 jun. 2013.
285
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
286
“XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular,
ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de
responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e
do Estado;”
287
“Art. 1º. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
288
“Art. 1º III - a dignidade da pessoa humana;”
289
CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Petição Inicial na Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, p. 10-17.
290
CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Petição Inicial na Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, p. 17.
291
CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Petição Inicial na Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, p. 09-10.
83
normativo no contexto da norma (decreto, lei), no conjunto jurídico que pertence
(direito civil, penal, administrativo, entre outros) e, especialmente, levando em
consideração a ordem constitucional vigente. Dentre diversos significados possíveis
de um dispositivo legal, busca-se o que for compatível com as normas
constitucionais, evitando a declaração de inconstitucionalidade da norma.292
Verifica-se, portanto, que o Conselho Federal da OAB não questionou a
constitucionalidade da Anistia prevista na Lei nº 6.683/79, mas sim, a Autoanistia
concedida aos agentes do Regime Militar. Pleiteou ao STF a realização de filtragem
na interpretação da Lei lesiva aos Direitos Fundamentais e não o reconhecimento da
anulação da Lei de Anistia.293
Não obstante, o pedido de mérito da Ação de Descumprimento
Fundamental n º 153 requerer somente a Interpretação conforme a Constituição da
Lei da Anistia, o voto do Ministro Relator Eros Grau, que foi acompanhado pela
maioria dos ministros do STF, decidiu também sobre a “revisão” da referida Lei.294
Os
julgamentos
do
STF
são
compostos
por
votos
proferidos
individualmente por cada ministro. Embora haja um voto que acaba prevalecendo, o
voto do Ministro Relator desempenhou esse papel no julgamento da ADPF nº 153, a
maioria criada no julgamento converge sobre o resultado final, mas os magistrados
podem justificar, independentemente uns dos outros, sobre os motivos que levaram
ao resultado final.295 Por essa razão, depreende-se do Acórdão que foram utilizados
diversos argumentos pelos ministros na decisão sobre a Lei de Anistia brasileira.
2.2.1.1 A questão da prescrição
O voto do Ministro Relator Eros Grau não enfrenta o mérito da discussão
acerca da ocorrência ou não da prescrição dos delitos praticados durante a Ditadura
292
CARDOSO, Oscar Valente. A interpretação constitucional como método de controle de
constitucionalidade, p. 60-61.
293
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 312.
294
BRASIL. Voto do Ministro Eros Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 14-15.
295
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 314.
84
Militar. No entendimento vencedor do Relator, a matéria da prescrição não é objeto
do julgamento da ADPF nº 153, a definição sobre o tema somente ocorria em
momento posterior, se ultrapassada a controvérsia sobre a previsão abstrata da
Anistia.296
O Ministro Marco Aurélio Mendes de Faria Mello, em voto sobre as
preliminares da lide, concluiu pela inexistência de utilidade e de necessidade para o
manejo de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, votando pelo
não conhecimento da ADPF nº 153. Por uma análise infraconstitucional da questão,
sustentou que o transcurso de mais de trinta anos entre a data dos fatos e o
julgamento ocorrido em 2010 resultou no término de todos os prazos prescricionais,
seja para persecução criminal, seja para ações de eventuais indenizações na esfera
cível.297 O Ministro Antônio Cezar Peluso igualmente foi categórico em afirmar que
todos os prazos estão cobertos pela prescrição.298 A posição adotada pelos
mencionados ministros não prevaleceu no julgamento. O tema da prescrição não foi
considerado um obstáculo para o julgamento do mérito da ADPF nº 153. Todavia, a
questão adquire significante relevância na medida em que a imprescritibilidade dos
crimes graves de direito internacional (incluindo os crimes de Lesa-Humanidade)
consiste em um princípio de direito internacional. A obrigatoriedade desse princípio
foi reconhecida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em diversas resoluções,
aprovadas entre 1966 e 1967, além da que aprovou os Princípios de Nüremberg em
1950, na medida em que foi considerado um jus congens.299 300
296
297
298
299
300
BRASIL. Voto do Ministro Eros Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 14.
BRASIL. Voto do Ministro Mello. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 55.
BRASIL. Voto do Ministro Peluso. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 211.
O jus congens é direito cogente, de validade universal, composto por normas imperativas de
direito internacional geral (universal) pelas quais nenhum tratado ou norma de direito interno se
sobrepõe. GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes contra a humanidade e a
jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. In: ________. (Org.). Crimes de
ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos
humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2011. p. 88.
MÉNDEZ, Juan e COVELL, Tatiana Rincón. Internacional Center for Transitional Justice (ICTJ).
Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de lesa-humanidade, a imprescritibilidade de
alguns delitos e a proibição de anistias. Ministério da Justiça. Revista Anistia Política e
Justiça
de
Transição.
Vol.
1,
Brasília,
2009:381.
Disponível
em:
http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team={67064208-D044-437B-9F24-96E0B26CB372}. Acesso em:
85
Utiliza-se o Conceito Operacional de Crimes de Lesa-Humanidade,
previsto no artigo 7º, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TIP):
Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a
humanidade", qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no
quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer
população civil, havendo conhecimento desse ataque: a) Homicídio; b)
Extermínio; c) Escravidão; d) Deportação ou transferência forçada de uma
população; e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave,
em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez
forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no
campo sexual de gravidade comparável; h) Perseguição de um grupo ou
coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais,
nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no
parágrafo 3º, ou em função de outros critérios universalmente
reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com
qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da
competência do Tribunal; i) Desaparecimento forçado de pessoas; j)
Crime de apartheid; k) Outros atos desumanos de caráter semelhante,
que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a
integridade física ou a saúde física ou mental.301
Destaca-se que, em parecer realizado a pedido do Ministério Público
Federal do Brasil, a Internacional Center for Transitional Justice considerou que os
atos de sequestro, homicídio, falsidade ideológica e ocultação de cadáveres
cometidos pelos agentes do Estado, no período em que perdurou a Ditadura Militar
no país, configuram-se atos inumanos, caracterizando crimes de Lesa-Humanidade,
por estar presente caráter generalizado e sistemático, articulados a uma política de
Estado e dirigidos em face de setores da Sociedade civil.302
O princípio da imprescritibilidade igualmente está presente no Estatuto de
Roma, que versa sobre o Tribunal Penal Internacional (TIP), tratado este que foi
ratificado pelo Brasil por meio do Decreto nº 4.399, de 25 de setembro de 2002. Pelo
artigo 5º303 do Estatuto, o TIP possui competência para julgar, dentre outros, Crimes
20 mai. 2013.
BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002.
302
MÉNDEZ, Juan e COVELL, Tatiana Rincón. Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de
lesa-humanidade, a imprescritibilidade de alguns delitos e a proibição de anistias, p. 373.
303
“Artigo 5º: 1. A competência do Tribunal restringir-se-á aos crimes mais graves, que afetam a
301
86
contra a Humanidade. O artigo 29º304 prevê expressamente a imprescritibilidade dos
crimes de competência do Tribunal.305
Além disso, a análise da Constituição de 1988 demonstra que, de forma
explícita, em seu texto são previstas duas hipóteses de crimes imprescritíveis: o
racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem
constitucional e o Estado de Direito, conforme a previsão respectivamente do artigo
5º incisos XLII e XLIV.306
307
Todavia, Gomes e Mazzuoli identificam mais uma
hipótese de imprescritibilidade de crimes no Brasil, presente no plano internacional e
universal, que versa sobre os Crimes de Lesa-Humanidade. Dessa forma, o Brasil
possui três hipóteses de delitos imprescritíveis, duas no plano interno e uma no
contexto internacional (universal).308
Percebe-se, portanto, que, em cumprimento aos princípios de direito
internacional geral, o país está obrigado a investigar e punir os Crimes de LesaHumanidade ocorridos em seu território e/ou cometidos por seus agentes. O
desrespeito a esses princípios pode ser considerado uma infração à proibição de
não cometer Crimes de Lesa-Humanidade.309 Essa obrigação advém desde 1950,
portanto, anteriormente ao período da Ditadura Militar, com a aprovação dos
Princípios de Nüremberg. A conclusão de parte do STF pela ocorrência da
prescrição nos crimes praticados durante a Ditadura Militar mitiga o princípio de
direito internacional geral.
comunidade internacional no seu conjunto. Nos termos do presente Estatuto, o Tribunal terá
competência para julgar os seguintes crimes: a) O crime de genocídio; b) Crimes contra a
humanidade; c) Crimes de guerra; d) O crime de agressão.”
304
“Artigo 29º: Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem.”
305
HISSA, Carolina Soares e ARAÚJO, Vanessa Louisie Silva. Controvérsia entre o Supremo
Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, p. 369.
306
“Art. 5º:
[...] XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei;
[...] XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou
militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;”
307
HISSA, Carolina Soares e ARAÚJO, Vanessa Louisie Silva. Controvérsia entre o Supremo
Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, p. 369.
308
GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes contra a humanidade e a
jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, p. 95.
309
MÉNDEZ, Juan e COVELL, Tatiana Rincón. Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de
lesa-humanidade, a imprescritibilidade de alguns delitos e a proibição de anistias, p. 382.
87
Ao concluir que o princípio da imprescritibilidade dos Crimes contra a
Humanidade está condicionado à incorporação de uma convenção internacional
sobre o tema, parte da Corte Suprema brasileira adota uma posição de que a tutela
do direito internacional somente ocorreria se, de forma improvável, uma junta militar
aprovasse esse procedimento legal, conquanto tenha instituído a pena de morte, a
prisão perpétua e o banimento.310 O êxito do entendimento sobre a ocorrência da
prescrição dos crimes cometido pelos repressores do Regime Militar resulta na
negação da defesa dos Direitos Humanos.
2.2.1.2 Crimes políticos e crimes a eles conexos.
O Relator, Ministro Grau, não fundamentou em seu voto uma
diferenciação conceitual de Crimes Políticos e Conexos, mas entendeu que a própria
Lei nº 6.683/79, em seu parágrafo primeiro do artigo primeiro, prevê a definição dos
Crimes Conexos aos Crimes Políticos. Da mesma forma, concluiu que os Crimes
Conexos podem ser de qualquer natureza se estiverem relacionados com Crimes
Políticos ou se forem praticados por motivação política. Segundo o Ministro Grau,
essa definição de conexão deve ser feita de acordo com o sentido utilizado na época
da sanção da Lei, pela qual houve a intenção do legislador de estendê-la aos crimes
praticados pelos agentes do Estado contra os opositores, concedendo caráter
bilateral à Anistia.311
A fim de justificar seu entendimento pela interpretação da norma de
Anistia, conforme o momento histórico da criação do texto legal, Grau utiliza-se de
trabalho acadêmico de sua autoria para classificar a Lei de Anistia como uma LeiMedida312,
310
311
312
313
que somente pode ser interpretada em conjunto com seu texto, com a
CASTRO, Ricardo Silveira. Entre o princípio da legalidade e a imprescritibilidade dos crimes da
ditadura militar, a ADPF 153 em foco. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da (Org.). Justiça de
transição no Brasil: violência, justiça e segurança. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. p. 286.
Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/Ebooks/Pdf/978-85-397-0225-1.pdf. Acesso em 15
mai. 2013.
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 25-26.
Entende-se por Lei-Medida quando o legislador passa à ação para disciplinar diretamente
determinados interesses por meio de um comando concreto revestido de forma de norma geral e
88
realidade histórica na qual ela foi editada.314 Segundo Grau, as Leis-Medida se
contrapõem às leis dotadas de generalidade e abstração, que são a regra para a
criação do direito. A interpretação do direito oriundo das leis gerais e abstratas
consiste em um processo de adaptação de seus textos à realidade, ou seja, é
contemporânea a sua realidade.315
Ao definir a Lei de Anistia, na classificação de Lei-Medida, Grau sustentou
que esse diploma legal dispõe de efeitos imediatos circunscritos em um determinado
período, afastando que a Anistia tenha resultados prolongados no tempo.316 Ocorre
que os resultados da Lei da Anistia não estão limitados ao período em que perdurou
a Ditadura Militar, atualmente esse diploma legal ainda tem efeitos de inviabilizar a
investigação e a punição de agentes do Estado. Além disso, seus efeitos prorrogamse no tempo ao afetar possíveis investigações de crimes continuados, como
sequestro e desaparecimento forçado.317
O autor de um dos dois votos vencidos do julgamento, o Ministro Enrique
Ricardo Lewandowski entendeu ser adequado para o caso fazer uma interpretação
da vontade do que está previsto na Lei e não da vontade do legislador da época do
mencionado diploma legal. De acordo com a vontade da Lei, o magistrado conclui
não haver conexão entre Crimes Políticos praticados pelos opositores ao regime e
os delitos comuns cometidos pelos agentes do Estado. O voto de Lewandowski está
fundamentado na diferenciação entre os crimes políticos típicos e os crimes políticos
relativos. Os primeiros são entendidos como aqueles praticados contra: a
integridade territorial do país, a pessoa de seus governantes, a soberania nacional, o
regime representativo e democrático ou o Estado de Direito. Já os crimes políticos
relativos seriam os Crimes Conexos aos delitos políticos. Para caracterizá-los como
não edita mais regras abstratas e gerais, configurando ato administrativo. São leis em sentido
formal, mas não em sentido material. GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto, p.
250.
313
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 33.
314
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 31.
315
GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5 ed. São Paulo:
Malheiros, 2009. p. 59.
316
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 341.
317
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 351.
89
tal, há que ser feita uma análise caso a caso por constituírem casos de difícil solução
jurídica. O Ministro indica que a análise desses crimes utilize os critérios definidos
em julgamento precedentes do Supremo Tribunal Federal da preponderância e da
atrocidade.318
Um desses casos, indicados por Lewandowski, consiste o processo de
Extradição nº 1.085, conhecido como o Caso Cesare Battisti. Em seu voto nesse
processo, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes sustenta que a utilização dos critérios
de predominância e de atrocidade dos meios afasta a caraterização como Crimes
Políticos os delitos cometidos contra o direito à vida e à liberdade. Aduz, ainda, que
se a finalidade for política ou se forem políticos os motivos, especialmente os
chamados “crimes de sangue”, as condutas delitivas são tratadas, pelos precedentes
do STF, como crimes comuns e não políticos, por ultrapassarem os limites éticos das
lutas pela liberdade e pela Democracia.319 Dessa forma, os delitos de homicídios e
de tortura não são considerados Crimes Políticos para fins de extradição, segundo a
jurisprudência da Corte, mas o foram no julgamento da ADPF nº 153.
Lewandowski afasta a existência de conexão material entre Crimes
Políticos e delitos comuns, haja vista não vislumbrar ligação entre os crimes
praticados pelos opositores do regime e os delitos comuns realizados por quem
estava a serviço do Estado. No entendimento do julgador, não há nexo teleológico,
consequencial ou ocasional exigido pela doutrina jurídica para a caracterização de
conexão.320
O voto do Ministro Carlos Ayres Britto, que foi o outro voto vencido no
julgamento da ADPF nº 153, argumenta que a utilização do método histórico
somente é feito se permanecer dúvidas sobre a intepretação do texto legal após o
uso dos métodos de interpretação literal, lógico, teleológico e sistemático, porque,
318
319
320
BRASIL. Voto do Ministro Lewandowski. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 113-126.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradição Passiva. Refugio ao Extraditando. Crime Político.
Acórdão da Extradição nº 1.085. Relator: Ministro Cezar Peluso. Brasília, DF, 16 de dezembro de
2009.
p.
464-467.
Disponível
em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960. Acesso em 10 jun.
2013.
BRASIL. Voto do Ministro Lewandowski. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 113.
90
em rigor, não é um método, mas um parâmetro de interpretação jurídica. Para Britto,
não há dúvidas de que os crimes hediondos e equiparados não são abrangidos pela
Lei de Anistia, afastando a incidência da Lei nº 6.683/79 sobre a prática desses
delitos. Britto entende por Crime Político aquele que pressupõe um combate ilegal à
estrutura jurídica do Estado, à ordem social, à estrutura política do Estado, sendo
crimes de feição político-social. Quem pratica o crime de tortura não comete Crime
Político ou de opinião, por não haver essas intenções. O Crime Conexo está no
plano secundário do principal, que é o político, pois ambos pressupõem a motivação
política. Dessa forma, em princípio, diz o magistrado, todos os crimes de sangue
com resultado morte estão excluídos de propósito político.321
Para o Ministro Britto, as características dos delitos cometidos pelos
militares demonstram a natureza não política dos crimes cometidos contra os
opositores do Regime Militar. Segundo o Magistrado, opressores atuavam à margem
de qualquer ideia de lei, seja a legalidade democrática de 1946 ou a Legalidade
Autoritária imposta pelos militares, de forma selvagem, sem levar em consideração
qualquer teoria ou filosofia política. Foram pessoas que não se contentaram com a
própria dureza do regime de exceção; acrescentaram horrores à repressão por conta
própria. Jogaram pessoas de um avião em pleno voo, ligaram fios a tomadas
elétricas e os prendiam as genitálias femininas, estupravam mulheres na presença
dos pais, dos namorados e maridos. A natureza de tais crimes são consideradas
pelo Ministro absolutamente incompatíveis com qualquer ideia de criminalidade
política pura ou por conexão. Conclui Brito que não há clareza alguma no texto da
Lei nº 6.683/79, no sentido de anistiar estupradores, assassinos ou torturadores.322
A variedade de argumentos utilizados pelos ministros do Supremo
Tribunal Federal no julgamento da ADPF nº 153, sobre a interpretação dos termos
Crimes Político e Crimes Conexos, previsto no parágrafo primeiro, do artigo primeiro,
da Lei nº 6.683/79, demonstra que não é o texto legal que explicitamente concede
Anistia aos delitos praticados pelos agentes de Estado contra os opositores do
321
322
BRASIL. Voto do Ministro Britto. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 137-142.
BRASIL. Voto do Ministro Britto. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 137-140.
91
regime. A intepretação da extensão da Anistia àqueles que atuaram na repressão
advém de uma alegada, mas não expressa, bilateralidade da Lei, fruto de uma
leitura do período histórico que considerou a ocorrência de um acordo político.
Mesmo que efetivamente ocorresse a bilateralidade defendida maioria do STF, não
pode o Estado, sob qualquer pretexto, desvincular-se do direito e realizar um banho
de sangue em nome do que quer que seja. Até mesmo em situações de guerra o
direito exige e regula parâmetros mínimos de disputa leal.323 Sob a égide da
Constituição de 1988, o único sentido possível de se utilizar para o termo “conexão”
é aquele que busca unir crimes comuns praticados por resistentes a crimes
políticos.324 A utilização de termos dúbios, no texto da Lei nº 6.683/79, a ponto de
implicar em tamanha disparidade de argumentos na sua intepretação, conforme visto
no julgamento da ADPF nº 153, serviu como um artifício para maquiar a Autoanistia
concedida pelo Regime Militar.325
2.2.1.3 Revisão da Lei de Anistia
O voto do Relator da ADPF nº 153 usa como fundamento de seu
julgamento o Estado Democrático de Direito para decidir sobre a impossibilidade do
Poder Judiciário de rever a Lei de Anistia para dar outra redação, diversa da nela
contemplada. Em decorrência, somente o Poder Legislativo poderia fazer a revisão
da Anistia brasileira:326
O acompanhamento das mudanças do tempo e da sociedade, se implicar
necessária revisão da lei de anistia, deverá ser feito pela lei, vale dizer,
pelo Poder Legislativo, não por nós. Como ocorreu e deve ocorrer nos
Estados de direito. Ao Supremo Tribunal Federal --- repito-o --- não
incumbe legislar.327
A sustentada tese da impossibilidade de controle jurisdicional da Lei nº
6.683/79 advém do entendimento de que o alegado “pacto” feito pela Sociedade na
323
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 317-319.
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 131.
325
MEYER. Emilio Peluso Neder. Ditadura e responsabilização, p. 136.
326
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 39.
327
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 41-42.
324
92
época de sua elaboração conferiu à Anistia bilateral status de ato político, que por
assumir essa natureza, não é passível de revisão pelo Poder Judiciário.328
Celso de Mello é o Ministro que utiliza o argumento mais contundente
contrariamente à revisão da Lei da Anistia. Aduz que os efeitos jurídicos que
emanam da Lei 6.683/79 não podem ser suprimidos por legislação superveniente,
sob pena de violação à proibição constitucional de irretroatividade de leis penais
gravosas ao réu.329 Na sua ótica, portanto, nem mesmo uma atual lei revogando a
Lei 6.683/79 poderia suprimir a Anistia concedida em 1979.
Todavia, a responsabilização criminal dos militares por delitos cometidos
durante a Ditadura Militar não configura retroatividade da lei penal em prejuízo do
réu, haja vista a não previsão expressa na Lei nº 6.683/70 da Anistia para esses
crimes. A extensão da abrangência desta Lei a esses delitos somente ocorre por
uma intepretação política do texto legal.330
Outro tema presente no voto do Ministro Grau, sobre a revisão da Anistia,
consiste no entendimento de que a Anistia da Lei nº 6.683/79 foi reafirmada pela
Emenda Constitucional nº 26 de 1985 (EC nº 26/85).331 Grau entendeu que, por
constar na emenda constitucional que convocou a Assembleia Nacional Constituinte
para elaborar a Carta Magna de 1988, a Anistia somente seria incompatível com a
nova Constituição se o poder constituinte originário tivesse expressamente assim se
manifestado.332 Da tese defendida pelo Relator Grau, é possível compreender que,
se a Anistia possui status de norma constitucional dada pela EC nº 26/84, nem
mesmo uma lei ordinária poderia alterá-la pela hierarquia de normas, mas uma
328
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 317.
BRASIL. Voto do Ministro Mello Filho. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 186.
330
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 340-341.
331
A Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, foi o resultado da aprovação pelo
Congresso Nacional do Projeto de Emenda Constitucional nº 43, enviado pelo então presidente
José Sarney, prevendo atribuição de poderes constituintes ao Congresso para instituir a
Assembleia Nacional Constituinte, com composição, na sua maioria, de parlamentares eleitos no
pleito de 1986. Em seu texto foi previsto que a Assembleia Nacional Constituinte se reunia por
parlamentares unicameralmente, de forma livre e soberana, a partir do dia 1º de fevereiro de 1987,
conforme seu artigo 1º. A nova Constituição seria promulgada após a provação em dois turnos de
discussão e votação, pela maioria absoluta dos membros, nos termo do artigo 3º da EC 26/85.
SARMENTO, Daniel. 21 Anos da Constituição de 1988, p. 09-11.
332
BRASIL. Voto do Ministro Grau. Acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 153, p. 43-44.
329
93
eventual alteração dessa norma somente poderia ocorrer por outra emenda
constitucional.
Ao concluir que a EC nº 26/1985 constitucionalizou a Anistia, parte dos
integrantes da Corte Suprema não leva em consideração que, em uma perspectiva
democrática, não há como o regime autoritário possuir poderes a limitar
politicamente a tomada de decisão soberana do povo. Aceitar a tese defendida por
parte da Corte implica no reconhecimento de que a Assembleia Nacional
Constituinte foi uma concessão limitada do Regime Militar ao povo, hipótese que
afronta qualquer ideário democrático e os termos da Constituição promulgada em
1988.333
A análise do julgamento da ADPF nº 153 explicita que o STF, ao concluir
pela impossibilidade de investigar e punir os agentes estatais, optou por conferir
legitimidade a uma ordem jurídica que foi incapaz de garantir aos cidadãos
brasileiros seus Direitos Fundamentais.334 Essa opção se explica pela tradicional
convivência de setores do Poder Judiciário do Brasil com a Legalidade Autoritária.335
A compreensão dos argumentos que fundamentam a conclusão do Acórdão da
ADPF nº 153 sugere que, se no passado a impunidade era produto do arbítrio dos
militares, atualmente encontra-se legitimado por uma corte constitucional livre, na
vigência de um Estado de Direito. Essa decisão afasta o Brasil do modelo
internacional de responsabilização pós-regime de exceção. Torna, por conseguinte,
a justiça, praticamente, impossível para graves violações praticadas contra Direitos
Fundamentais e Humanos no país.336
O Supremo Tribunal Federal deixou de utilizar a oportunidade do
julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 para
fortalecer uma posição do Estado brasileiro de repúdio a graves violações de Direito
333
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 335.
CASTRO, Ricardo Silveira. Entre o princípio da legalidade e a imprescritibilidade dos crimes
da ditadura militar, p. 288.
335
GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes da ditadura militar e o “Caso
Araguaia”: aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais
brasileiros. In: ________. (Org.). Crimes de ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência
atual da Corte Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo:
Revistas dos Tribunais, 2011. p. 52.
336
TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição e Estado Democrático de Direito, p. 353-354.
334
94
Fundamentais ao adotar uma corrente doutrinária que atribui valor constitucional aos
tratados que versam sobre Direitos Humanos, mas não o fizeram.337
Não obstante, a análise e os efeitos da decisão do Supremo Tribunal
Federal se restringirem ao âmbito do direito interno, tribunais internacionais tendem
a julgar essa posição adotada pelo Estado brasileiro, haja vista que obrigações
internacionais foram assumidas pelo país de respeito aos Direitos Humanos.
2.2.2. O caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs.
Brasil
O caso conhecido como Gomes Lund e outros versus Brasil é um
exemplo de julgamento sobre a posição adotada pela República Federativa do Brasil
sobre a não punição dos agentes de estado por crimes cometidos durante a Ditadura
Militar. A existência desse processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos
não afasta a possibilidade de outros julgamentos do país, no âmbito internacional,
sobre o tema.
2.2.2.1 Os fatos julgados: a Guerrilha do Araguaia
Durante o Regime Militar, os anos de 1969 a 1975 foram marcados por
uma ofensiva contra os grupos armados de oposição. Neste contexto, de 1972 a
1974, ocorreu a denominada Guerrilha do Araguaia, que foi um movimento
composto por alguns membros do Partido Comunista do Brasil (PC do B), que se
propuseram a lutar contra os militares, por meio da construção de um exército
popular de libertação,338 ocorrido em localidades próximas ao Rio Araguaia, na divisa
dos Estados do Pará, Maranhão e Tocantins, que pertencia ao Estado de Goiás
quando sucederam os fatos. Consta que a Guerrilha foi composta por cerca de 98
337
GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes da ditadura militar e o “Caso
Araguaia”, p. 64-65.
338
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
do Araguaia”) vs. Brasil, p. 32-33.
95
guerrilheiros, sendo 78 oriundos das metrópoles do país, em sua maioria jovens, e
20 camponeses na Região Araguaia.339 A maior parte dessas pessoas era oriunda
de lideranças estudantis, com históricos de participação em manifestações contra a
Ditadura Militar. Algumas haviam sido presas e outras foram enviadas à Região pelo
PC do B porque tinham contra si inquéritos policiais, processos judicias e mandados
de prisões.340 Entre abril de 1972 e janeiro de 1975, um contingente de militares, que
variou entre três mil e dez mil, empreendeu repressão contra os membros da
Guerrilha. Se num primeiro momento os guerrilheiros detidos não eram privados da
vida, nem desapareciam, porém em momento posterior (durante o governo do
General Médici), a ordem oficial passou a ser de eliminar os capturados.341 A
desproporção entre o número de combatentes das forças repressivas e a Guerrilha
causou a morte da maior parte dos opositores ao regime, representando cerca da
metade dos desaparecidos políticos no Brasil no período da Ditadura Militar. 342
As operações militares contavam com logística e estratégia de guerra,
mobilizando agentes do exército, da aeronáutica e da marinha. Ocorreram inúmeras
detenções arbitrárias, torturas, execuções e desaparecimentos forçados, realizados
contra os militantes do PCdoB e, também, contra a população local que era acusada
de apoiar o movimento. Os camponeses, moradores da Região, eram intimados por
ações violentas, massivas e ilegais por parte dos militares.343 Uma das operações
realizadas pelas forças do governo na Região do Araguaia, denominada de
Marajoara, e ocorrida em setembro de 1974, é considerada como um dos episódios
mais violentos da história do Brasil:
[...] que deixou um rastro de torturas e execuções, cabeças cortadas a
facão por jagunços atrás de prêmio em dinheiro, corpos insepultos. [...].
contam que as forças repressoras do governo Médici ocuparam fazendas,
castanhais, estradas e grotas.
Queimaram casas. Deixaram nas roças apenas mulheres e crianças:
prenderam quase todos os homens.
Espancaram centenas de pessoas e as levaram para prisões em Marabá,
339
HISSA, Carolina Soares e ARAÚJO, Vanessa Louisie Silva. Controvérsia entre o Supremo
Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, p. 366-367.
340
BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 195.
341
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
do Araguaia”) vs. Brasil, p. 33.
342
BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 195.
343
KRSTICEVIC, Viviana; AFFONSO, Beatriz. A importância de se fazer justiça, p. 255-256.
96
Xambioá e Belém. Em três dias de ações, os colaboradores dos
comunistas estavam “neutralizados”.344
No final do ano de 1974, não havia mais guerrilheiros no Araguaia. Os
últimos foram vistos por camponeses sendo detidos nas bases militares antes de
desaparecerem. Na ocasião, eles se encontravam com fome, doentes e fragilizados,
sem medicamentos ou munições. Alguns teriam sido capturados e entregues aos
policiais ou ao exército, quando procuravam por alimentos nas casas dos moradores
locais conhecidos.345 A ordem nas forças armadas foi de não deixar vestígios dos
fatos. Por essa razão, os corpos dos guerrilheiros sepultados na selva teriam sido
desenterrados e queimados, em uma operação de limpeza das ocorrências. A
imprensa foi proibida pelo Governo de relatar os acontecimentos, e os militares
passaram a negar o ocorrido.346
No período da Ditadura Militar, a apresentação formal de qualquer
reclamação, relacionada a pessoas implicadas na resistência ao governo autoritário,
significava colocar em risco o denunciante e o individuo objeto do pedido. Por essa
razão, em 1982, familiares dos desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia
realizaram buscas na Região, na tentativa de conhecer o paradeiro das vítimas. Sem
respostas oficiais, esse grupo ajuizou, na Justiça Federal, a ação ordinária de nº
475-06.1982.4.01.3400 (número antigo: 82.00.24682-5), com o objetivo de obter
informações sobre os paradeiros e circunstâncias dos desaparecimentos, solicitando
a identificação e entrega dos eventuais despojos.347 Tal demanda tramitou por 25
anos, entre o ajuizamento da petição inicial (fevereiro de 1982) e o trânsito em
julgado (julho de 2007). Antes do término do processo, 13 anos após sua
proposição, em agosto de 1995, entidades representativas das vítimas e seus
familiares apresentaram uma denúncia internacional contra o Estado brasileiro,
perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em razão da injustificada
344
DURÁN, Cristina. Na Operação Marajoara, a ordem é não deixar ninguém vivo: censura e pacto
de silêncio encobriram por anos um dos episódios mais sanguinolentos da história do Brasil.
Coleções Caros Amigos: a ditadura militar no Brasil. São Paulo: Casa Amarela, fascículo 8.
2007. p. 251.
345
KRSTICEVIC, Viviana e AFFONSO, Beatriz. A importância de se fazer justiça, p. 256.
346
BRASIL. Direito à verdade e à memória, p. 199.
347
KRSTICEVIC, Viviana; AFFONSO, Beatriz. A importância de se fazer justiça, p. 257.
97
morosidade no término do processo. O processo tramitou na Convenção por 13
anos, sendo enviado, em março de 2009, para julgamento da Corte Interamericana
de Direitos Humanos.348
2.2.2.2 A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Caso Gomes
Lund e outros versus Brasil
A criação da Corte Interamericana de Direito Humanos (CIDH) ocorreu
dentro da sistemática regional de proteção dos Direitos Humanos no âmbito
americano em 22 de novembro de 1969, quando foi assinada a Convenção
Americana de Direitos Humanos (Convenção Americana), hoje conhecida como
Pacto de São José da Costa Rica, e entrou em vigor em 1978. Apenas os Estadosmembros da Organização dos Estados Americanos (OEA) têm o direito de aderir a
essa Convenção. A criação da CIDH, tal como a da Comissão Interamericana de
Direitos do Homem (Comissão), foi projetada como mecanismo para propiciar a
implementação dos direitos previstos na Convenção Americana.349 A CIDH possui
competência consultiva (sobre a interpretação dos dispositivos da Convenção
Americana de Direitos do Homem, tratados e convenções relativos aos Direitos
Humanos nos Estados Americanos) e competência contenciosa, de caráter
jurisdicional, para casos concreto que envolvem violações dos preceitos da
Convenção Americana por Estados-partes.350 O Brasil aderiu à competência
contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998, por meio do
Decreto Legislativo n°. 89, de 03 de dezembro de 1998. Anteriormente, havia
aderido à Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969, pelo Decreto n°.
678, de 06 de Novembro de 1992, aceitando, assim, a competência consultiva da
CIDH. Ao aderir à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil se obrigou, no
348
KRSTICEVIC, Viviana; AFFONSO, Beatriz. A importância de se fazer justiça, p. 257-258.
SOUZA. Denise Silva de. Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: BARRAL. Welber (Org).
Tribunais internacionais: mecanismos contemporâneos de solução de controvérsias.
Florianópolis: Boiteux, 2004. p. 295.
350
MORAES, Ana Luisa Zago de. O “Caso Araguaia” na Corte Interamericana de Direitos
Humanos. IBCCRIM. Revista Liberdades. Vol 8, São Paulo, 2011:88-110. Disponível em:
http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=95.
Acesso em: 05 jul. 2013. p. 94.
349
98
plano internacional, junto com os demais Estados-partes, a respeitar e cumprir às
suas decisões acerca de eventuais violações a Direitos Humanos previstos da
Convenção Americana.
No julgamento do caso Guerrilha do Araguaia, os integrantes da CIDH
esclareceram que não compete a ela realizar um exame da Lei de Anistia brasileira
com relação à Constituição do país, essa análise de direito interno foi objeto de
apreciação pelo STF no julgamento da ADPF nº 153. Compete ao mencionado
Tribunal Internacional realizar um controle de “convencionalidade” da Lei nº
6.683/79, ou seja, a análise da incompatibilidade da Lei nº 6.683/79 frente às
obrigações internacionais assumidas pelo Brasil contidas na Convenção Americana
de Direitos Humanos.351
Em sua defesa, na peça de contestação, o Brasil apresentou três
exceções preliminares: a) a incompetência temporal da CIDH; b) a falta de interesse
processual; c) o não esgotamento dos recursos internos.352 A CIDH considerou,
ainda, que foi arguida uma quarta preliminar, sobre a regra da quarta instância.353 A
preliminar de incompetência temporal foi reconhecida em parte, a CIDH levou em
consideração que o Brasil reconheceu a competência contenciosa do Tribunal
Internacional em 10/12/1998. Dessa forma, concluiu que o julgamento somente
poderia analisar os fatos ocorridos após essa data. As demais preliminares foram
rejeitadas, sendo o mérito julgado. 354
2.2.2.3 Desaparecimentos forçados
A CIDH reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pelo
351
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
do Araguaia”) vs. Brasil, p. 20.
352
BRASIL. Contestação do Estado brasileiro junto à Corte Interamericana de Direitos
Humanos: Caso n. 11.522 (Guerrilha do Araguaia). Ministério da Justiça. Revista Anistia Política
e Justiça de Transição. Vol. 3, Brasília, 2010:474-529.
353
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
do Araguaia”) vs. Brasil, p. 18.
354
RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar: a ADPF 153 e a Corte Interamericana de
Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Org.). Crimes de
ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos
humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2011. p. 174-225.
99
desaparecimento forçado dos opositores ao regime envolvidos na Guerrilha do
Araguaia. Essa conclusão foi resultado do entendimento de que, entre 1972 e 1974,
agentes estatais foram os responsáveis pelo desaparecimento forçado de 62
pessoas identificadas como vítimas. Embora tenha transcorrido décadas dos fatos, o
Tribunal Internacional considerou que a responsabilidade do Brasil permanece atual,
na medida em que o desaparecimento forçado tem caráter permanente e persiste
enquanto não se conhecer o paradeiro das vítimas ou, ainda, serem localizados os
seus restos mortais.355 O desaparecimento forçado de pessoas é compreendido
como um fenômeno de detenção ilegal por agentes do Estado e de falta de
informações sobre o destino das vítimas. Permanecem seus efeitos enquanto não se
conheça o paradeiro das pessoas desaparecidas e se determinem, com certeza, as
suas identidades.356
Tendo em vista a omissão do Brasil acerca das pessoas desaparecidas na
Região do Araguaia, mesmo após a redemocratização e o reconhecimento da
jurisdição da Corte em 1998, o país foi condenado por violar direitos à integridade
pessoal, à vida, ao reconhecimento da personalidade e à liberdade, todos previstos
na Convenção Americana de Direitos Humanos.357
2.2.2.4 A Lei de Anistia
A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou que a Lei nº
6.683/79 carece de efeitos jurídicos por resultar em violação aos termos da
Convenção Americana. Tal conclusão não se restringe somente aos fatos
relacionados à Guerrilha do Araguaia. No julgamento do caso Gomes Lund e outros
vs. Brasil, o Tribunal Internacional considerou que a Lei de Anistia não pode ter
efeitos igualmente sobre outros casos de graves violações de Direitos Humanos
consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.358 Os membros da CIDH
355
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
do Araguaia”) vs. Brasil, p. 45-46.
356
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
do Araguaia”) vs. Brasil, p. 38.
357
RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar, p. 200-201.
358
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
100
entenderam que muitos dos direitos assegurados pela Convenção Americana foram
violados pelo Estado brasileiro, sobretudo, ao interpretar a Lei de Anistia de modo a
impedir a investigação criminal de graves violações de Direitos Humanos. Esta
interpretação conduz à falta de proteção das vítimas, à perpetuação da impunidade,
impede que as vítimas e seus familiares conheçam a verdade dos fatos359 e viola
direitos e garantias judiciais.360
Países da América do Sul como a Argentina, o Chile, o Uruguai e o Peru,
que também enfrentaram períodos ditatoriais militares, assim como o Brasil, foram
julgados e condenados pela CIDH em razão de suas leis de anistias. Entretanto,
estes outros países cumpriram há tempos as decisões da CIDH, o que não correu
com o Brasil,361 que mantém sua lei de Anistia em Validade.
2.2.2.5 A violação ao direito à verdade
O Estado brasileiro foi condenado pela CIDH por violação do direito à
liberdade e de expressão, na medida em que não foram garantidos os direitos de
buscar e receber informação e de conhecer a verdade sobre os fatos relacionados
ao episódio da Guerrilha do Araguaia. O acesso a tais direitos poderia resultar no
conhecimento de como foram assassinadas as vítimas e a localização dos seus
restos mortais.362 Esse direito dos familiares de conhecer a verdade está
compreendido no Direito de acesso à Justiça.363
A instituição e o funcionamento da Comissão da Verdade no país foi
considerada como uma das medidas de promoção e revelação da verdade, contudo
não substitui a obrigação estatal de estabelecer a verdade. Entende a CIDH que
somente haverá a ciência dos fatos se averiguados também pelo Poder Judiciário,
do Araguaia”) vs. Brasil, p. 65-67.
HISSA, Carolina Soares e ARAÚJO, Vanessa Louisie Silva. Controvérsia entre o Supremo
Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, p. 367.
360
KRSTICEVIC, Viviana e AFFONSO, Beatriz. A importância de se fazer justiça, p. 264.
361
HISSA, Carolina Soares e ARAÚJO, Vanessa Louisie Silva. Controvérsia entre o Supremo
Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, p. 381.
362
RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar, p. 202.
363
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
do Araguaia”) vs. Brasil, p. 77.
359
101
para obter a verdade judicial, definir as circunstâncias dos ilícitos e apontar as
responsabilidades pessoais.364
2.2.2.6 O Dispositivo da Decisão
De forma unânime, a decisão da Corte Interamericana de Direitos
Humanos determinou que o Estado brasileiro, dentre outras, deve: a) conduzir
eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do
presente
caso
a
fim
de
esclarecê-los,
determinar
as
correspondentes
responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a
lei prevê; b) realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas
desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus
familiares; c) oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as
vítimas requeiram; d) realizar publicações da sentença; e) fazer um ato público de
reconhecimento de responsabilidade internacional sobre os fatos; f) continuar e
implementar cursos ou programas de sobre Direitos Humanos nas forças armadas;
g) tipificar no direito interno o delito de desaparecimento forçado de pessoas; h)
fortalecimento do marco normativo de acesso à informação; i) pagar indenizações; j)
considerar um mecanismo importante a criação da Comissão da Verdade.365
Chama a atenção nestas conclusões da decisão que a CIDH declarou que
o Brasil não pode aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores de graves
violações de Direitos Humanos, bem como nenhuma outra disposição análoga,
prescrição, irretroatividade penal, coisa julgada, ne bis idem ou qualquer excludente
similar de responsabilidade para eximir-se da obrigação de investigar e punir
penalmente esses indivíduos. 366
364
WEICHERT, Marlon Alberto. A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a
obrigação de instituir uma Comissão da Verdade. In: GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valerio de
Oliveira (Org.) Crimes de ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte
Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 2011. p. 232-233.
365
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
do Araguaia”) vs. Brasil, p. 115-116.
366
MORAES, Ana Luisa Zago de. O “Caso Araguaia” na Corte Interamericana de Direitos
102
Verifica-se, portanto que há entendimentos divergentes sobre a Lei de
Anistia brasileira entre o Supremo Tribunal Federal brasileiro e a Corte
Interamericana dos Direitos Humanos. A decisão do Caso Gomes Lund e outros vs.
Brasil, de âmbito internacional, não revoga o acórdão do julgamento da Ação de
Descumprimento Fundamental nº153, de âmbito interno, por não ser essa uma
função da CIDH. Ela julgou e condenou República Federativa do Brasil, Estado parte
da OEA, acerca do descumprimento da Convenção Americana de Direitos
Humanos.367 As decisões judiciais internas no país, incluídas as STF, as normas
constitucionais e as demais normas e atos internos são entendidos pelo Tribunal
Internacional como fatos praticados pelo Estado parte, por isso são também
analisados pela CIDH.368
Se o STF não modificar seu entendimento da Validade da Lei de Anistia
para os torturadores e assassinos da Ditadura Militar, descumprindo a decisão do
Tribunal Internacional, uma nova condenação do Brasil pode ocorrer, com reflexo
nas relações internacionais, podendo o país ser excluído como Estado membro da
OEA.369 Além disso, a CIDH pode manter o Brasil no rol daqueles que desrespeitam
os Direitos Humanos internacionais. 370
A resposta para este imbróglio jurídico, criado pelas duas decisões acima
mencionadas remete à análise da posição adotada pelo Estado brasileiro, por meio
do Supremo Tribunal Federal, frente ao Estado Democrático de Direito, pelo qual é
constituída a República Federativa do Brasil, conforme previsto na atual Constituição
em seu artigo 1º.371 A questão versa se os representantes do poder político do país
detêm poderes para dispor sobre Direitos Fundamentais no Estado Democrático de
Direito. Nesta analise, o aporte teórico do Garantimos Jurídico oferece relevante
subsídios na definição dos limites ao exercício do poder, uma característica
Humanos, p. 106.
GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes da ditadura militar e o “Caso
Araguaia”, p. 52-53.
368
RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar, p. 210.
369
GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Crimes da ditadura militar e o “Caso
Araguaia”, p. 53.
370
RAMOS, André de Carvalho. Crimes da ditadura militar, p. 223.
371
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:”
367
103
marcante no mencionado modelo de Estado.
104
CAPÍTULO 3
A TEORIA GARANTISTA E OS LIMITES AO EXERCÍCIO DO PODER
No capítulo 3, investiga-se os limites democráticos ao exercício do poder,
propostos pela teoria do Garantismo Jurídico, desenvolvida por Luigi Ferrajoli,372
com o objetivo de verificar se a concessão de Anistia aos militares, por crimes
cometidos durante a Ditadura Militar, respeita (ou não respeita) a limitação ao poder
trazida pela atual Carta Magana brasileira. Com o intuito de compreender o aporte
teórico do professor italiano, sistematizam-se os três significados do termo
Garantismo como: um modelo normativo de direito, uma teoria de Validade,
efetividade e vigência normativa e uma filosofia do direito. A partir da formulação do
conceito de Direitos Fundamentais, defendido por Ferrajoli, analisa-se a relação do
Estado Democrático de Direito com a Autoanistia concedida aos militares, por meio
da Lei nº 6.683/79.
3.1 OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DO GARANTISMO JURÍDICO
A definição jurídica e política sobre a possibilidade de responsabilização
criminal dos militares por crimes cometidos durante a Ditadura Militar brasileira
passa pela relação da Lei de Anistia com o regime democrático instituído pela
Constituição de 1988. Se na época de elaboração da mencionada Lei conseguiu-se
difundir a interpretação de que os efeitos da Anistia possuíam natureza bilateral, o
advento do Estado Democrático de Direito, instituído pela nova Carta Magna, torna
questionável juridicamente a sustentada recepção, pela ordem constitucional, da
extinção da punibilidade concedida para agentes estatais da repressão que
372
O jurista Luigi Ferrajoli é professor da Universidade Camerino (Itália) e integrou a magistratura
italiana, na década de 1970 foi considerado um dos expoentes da denominada “jurisprudência
alternativa”, que defendia a interpretação da lei conforme a constituição e criticava o dogma da
sujeição cega do juiz à lei. CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 72.
105
cometeram graves violações a Direitos Fundamentais. O exercício do poder deixou
de ser ilimitado para ficar subordinado aos limites impostos pela Constituição.
A teoria do Garantismo Jurídico,
373
de Ferrajoli, revela utilidade para a
definição da relação existente entre a Lei de Anistia, produzida em um período
autoritário da história do país, e o novo regime democrático, na medida em que esta
teoria propõe uma redefinição do conceito de Democracia Constitucional,
consolidada por limites formais e substanciais ao exercício do poder.
A teoria desenvolvida pelo jurista italiano apresenta uma estrutura
hierarquizada de normas que se sobrepõem por conteúdos limitativos do exercício
do poder político. Propõe um modelo de Estado de Direito baseado em valores como
a Dignidade da Pessoa Humana, a paz, a liberdade plena e a igualdade substancial,
que, se não atingidos, resultam em deslegitimação dos detentores do poder.
Conquanto desenvolvido inicialmente para o direito penal, o Garantismo desdobra-se
em uma teoria geral de direito com relevante potencial explicativo e propositivo.374
Segundo Sérgio Cademartori, a base filosófico-política do Garantismo é
constituída, na sua essência, pela doutrina liberal da separação entre direito e moral,
incluindo, dentre outras, duas teses. Na primeira tese, considera-se que a separação
entre direito e moral comporta a distinção que pode ser feita entre pontos de vistas
perante uma norma. De um lado, ocorre a análise da Validade da norma por critérios
próprios dos sistemas jurídicos dado (ponto de vista interno); de outro lado, analisase a justiça da norma jurídica pela utilização de critérios de avaliação extrajurídicos
(ponto de vista externo). Na segunda tese, entende-se que a diferenciação entre
direito e moral comporta a denominada Lei de Hume, que preconiza ser ilógico inferir
conclusões prescritivas de premissas descritivas e vice-versa. Não é logicamente
permitido deduzir o Direito Positivo375 (como ele é) do direito justo (como ele deve
373
Alguns teóricos do direito adotam a epígrafe garantismo para defender a utilização do conceito de
Constituição tradicional dotada de nova eficácia, especialmente para a garantia dos Direitos
Fundamentais da pessoa humana. São adeptos dessa linha, por exemplo, Luigi Ferrajoli, na Itália
e Andrés Gil Dominguez, no Chile. DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição da vida dos
povos, p. 291.
374
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 72.
375
A Categoria Direito Positivo pode ser entendida conforme a definição de Hans Kelsen de Direito,
compreendido como um sistema de normas postas por ato de poder, dispostas de um modo
hierárquico. BERZOTTO, Luis Fernando. Positivismo Jurídico, p. 644.
106
ser), posto que uma norma moral não é em si mesma jurídica. Além disso, a Lei de
Hume exclui que seja logicamente consentido deduzir o direito justo do Direito
Positivo, ou seja, o direito válido não é em si mesmo direito justo.376 Conclui-se,
portanto, que ao fazer a análise da Validade da norma frente ao Direito Positivo, o
intérprete não busca compreender se a mesma é justa (ponto de vista externo), mas
verifica internamente no direito positivado se há elementos para concluir pela
Validade da norma (ponto de vista interno).
Ferrajoli ensina que a separação entre direito e moral forma o
pressuposto do constitucionalismo garantista, por representar a garantia da
submissão dos juízes à lei. Somente assim ocorrerá a análise da norma pelo ponto
de vista interno do direito. Os juízes devem interpretar as leis, à luz dos valores
previstos na Constituição, que, no caso de cartas democráticas, esses valores
consistem, sobretudo, em Direitos Fundamentais. A tarefa interpretativa do
magistrado consiste em ampliar ou restringir o alcance normativo conforme os
princípios constitucionais, derivando normas e direitos implícitos do ordenamento
jurídico, além de excluir as intepretações incompatíveis com as normas
constitucionais e aplicar o teor da constituição diretamente em todos os casos que
não exijam leis de regulamentação. Objetiva-se, portanto, com a separação entre
direito e moral, evitar que os casos não sejam decididos somente pelo Direito
Positivo, mas levando em consideração princípios morais (ponto de vista externo),
que não oferecem uma solução juridicamente válida.377
A fundamentação do Garantismo Jurídico parte do pressuposto de que,
atualmente, o direito vivencia uma crise caracterizada por três aspectos. O primeiro
deles (crise da legalidade) se expressa pela ausência ou pela ineficácia dos
instrumentos de controle dos titulares do poder público, resultando, de forma
imediata, na ilegalidade do exercício do poder. Em muitos países, foram criados
poderes paralelos ao poder estatal, que funcionam, sobretudo, com base na
376
377
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 74-75.
FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In:
FERRAJOLI, Luigi et al. (Org.) Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um
debate com Luigi Ferrjoli. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2012. p. 27-34.
107
corrupção.378
O segundo aspecto se revela na inadequação das estruturas do Estado
de Direito para executar todas as novas funções de atuação positiva a ele atribuídas
no Estado de Direito Social. A transformação do Estado de Direito Liberal, que
somente atribuía ao Estado a simples imposição de limites e proibições, para o
Estado Social de Direito resulta em inflação legislativa, provocada pela pressão de
interesses setoriais e corporativistas.379
O terceiro e derradeiro aspecto está relacionado à crise do Estado
nacional, que passa a ser obrigado a tratar de questões externas ao seu território,
relativizando a sua soberania. Há falta de constitucionalismo do direito internacional,
alterando a tradicional hierarquia das fontes de direito.380
Esses três aspectos da crise do direito podem levar ao colapso da
Democracia, posto que representam, no cerne da questão, uma crise do princípio da
legalidade, ou seja, uma crise da vinculação dos detentores do poder às normas
legais. O desrespeito a esse princípio, presente em todos os regimes democráticos,
produz a ilegalidade do poder e cria formas neoabsolutistas de exercício do poder
público carente de limites e controles. A teoria do Garantismo Jurídico, por se
desenvolver no Estado Constitucional de Direito e ser própria dele, é incompatível
com a falta de Limites para o Exercício do Poder, caso contrário, seria permitido sua
convivência com políticas autoritárias.381
A função de garantia de direitos é possível em razão da rigidez
constitucional, que se caracteriza por uma “dupla artificialidade” existente na
produção normativa entre as normas positivadas no ordenamento - positivismo
378
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização: o garantismo e a estrita legalidade como resposta ao ativismo judicial não
autorizado pela constituição federal. 268p. Tese (Doutorado em Direito). Programa de PósGraduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011. p. 114.
Disponível
em:
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/94761/292617.pdf?sequence=1.
Acesso
em: 29 jul. 2013.
379
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias, p. 16.
380
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização, p. 114-115.
381
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização, p. 115.
108
jurídico – e a sujeição ao Direito – Estado Constitucional de Direito. Ferrajoli defende
ser um grande avanço do direito contemporâneo a produção da norma jurídica que
se encontra disciplinada por Normas Formais (direito posto) e Substanciais
(conteúdo trazido pelo Estado Constitucional de Direito) do Direito Positivo. Normas
Formais representam o que o direito é, não derivam da moral nem da natureza, vêm
daquilo que o homem deseja. As Normas Substanciais são o dever ser do Direito
Positivo, representam suas condições de Validade, são os valores ético-políticos
previstos no ordenamento jurídico, sendo exemplo, a Dignidade da Pessoa Humana,
a igualdade e os Direitos Fundamentais. Dessa forma, a regulação do Direito
Positivo ocorre tanto pelas formas de produção quanto pelos conteúdos resultantes
desse processo de produção normativa. Esses valores axiológicos positivados, de
forma e de conteúdo, demonstram os vínculos e limites jurídicos à produção
jurídica.382
Para viabilizar essa visão crítica do direito, a teoria garantista atua em
quatro frentes. Na primeira, ocupa-se em diferenciar Validade (Validade Substancial)
e Vigência (Validade Formal) e contrapô-las com a concepção de validade,
sustentada por teóricos positivistas do direito, em especial, por Hans Kelsen,383 que
defende a caracterização desse status se houver o simples respeito às normas que
regulamentam a produção normativa do ordenamento, sem levar em consideração
seu conteúdo. A segunda, almeja garantir a Democracia Substancial, que diz o que a
maioria pode, não pode ou ao o que deveria decidir. Na terceira, pretende que, para
existir legitimação democrática, somente deve haver a sujeição do juiz à lei quando
estiverem conjugados a forma e o conteúdo da norma jurídica. Com essa
formulação, supera-se o paradigma positivista de sujeição do magistrado à letra da
lei, independentemente de seu significado. Dessa feita, ocorre a sujeição à lei
somente se for Válida, coerente com a Constituição. Por derradeiro, na última frente
382
383
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias, p. 19.
O jurista e professor Hans Kelsen (1881-1973), nascido em Praga (República Checa), atuou
profissionalmente na Áustria, Suíça e Estado Unidos da América. A vasta e ampla obra do autor
abrange desde a lógica das normas, o direito internacional, a crítica ideológica, a jurisprudência
analítica, informática jurídica, além de ensaios sobre a teoria política, literatura, sociologia e
política. No entanto, o referencial central de sua produção teórica é representada pela obra de
1943 Reine Rechtlehre (Teoria Pura do Direito). ALBUQUERQUE, Paulo A. de Menezes. Kelsen,
Hans. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do Direito. Editora da Unisinos,
2006. p. 504-508.
109
do Garantismo, vislumbra-se a necessidade de afastar o atributo meramente
descritivo da ciência jurídica, para que esta ganhe um papel crítico frente ao direito
vigente e de projeção do futuro pela elaboração e desenvolvimento de novas
técnicas de garantias e condições de validez das normas vinculantes.384
A relevância do conteúdo da norma jurídica está presente na formulação
teórica do Garantismo, que pode ser entendido como um modelo de direito, baseado
no respeito à Dignidade da Pessoa Humana e nos Direitos Fundamentais, com
sujeição formal e material aos conteúdos constitucionais.385
Ao termo Garantismo são conferidos três significados conexos: a) um
modelo normativo de direito; b) uma teoria de Validade, de efetividade e de Vigência
normativa; e c) uma filosofia do direito e crítica política.
3.1.1 A primeira concepção: um modelo normativo de direito
Elaborado para o direito penal, o primeiro significado designa um modelo
normativo de direito, baseado na estrita legalidade, próprio do Estado de Direito. Sob
o plano epistemológico, caracteriza-se como um sistema cognitivo ou de poder
mínimo. No âmbito político, assume características de uma técnica de tutela idônea
a minimizar a violência e a maximizar a liberdade. No âmbito jurídico, adquire a
função de um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado na garantia
dos direitos dos cidadãos.386
Ferrajoli sustenta que o Estado de Direito designa o governo sub lege
(submetido às leis) ou governo per leges (mediante leis gerais e abstratas). No
campo do direito criminal, o poder judicial de investigar os fatos e sancionar os
responsáveis por delitos consiste poder sub lege; o poder do legislativo de definir
condutas criminosas é exercido per leges e está igualmente sob leges, ou seja, está
prescrito por lei constitucional à reserva da lei geral e abstrata acerca de matéria
384
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias, p. 20-29.
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 20.
386
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 785-786.
385
110
penal. 387
Ao poder sub lege são atribuídos dois sentidos diversos. De um lado, pelo
sentido débil, ou lato, ou formal, no qual qualquer poder deve ser conferido pela lei e
exercido nas formas e procedimentos legalmente instituídos. Por esse sentido, são
considerados Estados de Direito todos os ordenamentos jurídicos, até mesmo os
autoritários e os totalitários. Representa uma noção de legalidade em sentido lato ou
de validade formal, que exige unicamente a previsão em lei dos sujeitos titulares e
das formas de exercício de todo o poder. De outro lado, no sentido forte, estrito ou
substancial, qualquer poder deve ser limitado pela lei, que condiciona não só as
formas,
mas
igualmente
os
conteúdos.
Este
último
sentido
(substancial)
necessariamente resulta no primeiro sentido (formal), principalmente nos Estados
que possuem constituições rígidas, com níveis normativos superiores que
incorporam limites formais e substanciais ao exercício de qualquer poder.388
O termo Estado de Direito empregado com o sentido substancial do poder
sub lege é utilizado no Garantismo Jurídico, sendo considerados sinônimos. Ele
designa, além de um Estado regulado por leis, um Estado nascido das modernas
constituições, caracterizado: a) no plano formal, pelo princípio da legalidade, que
disciplina o poder público (legislativo, judiciário e administrativo) vinculado às leis
gerais e abstratas. As formas de exercício do poder são previstas legalmente e sua
observância é submetida ao controle de legitimidade por parte dos juízes autônomos
e independentes; b) no plano substancial, todos os poderes do Estado funcionam
para garantir Direitos Fundamentais dos cidadãos. Essa característica ocorre por
meio
da
incorporação
limitadora
na
Constituição
dos
deveres
públicos
correspondentes (vedações legais de lesão aos direitos de liberdade, obrigações de
satisfação dos direitos sociais e poder do cidadão de buscar a tutela desses direitos
no judiciário).389
Tendo em vista que os dois aspectos do Estado de Direito (formal e
387
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 789.
BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, estado constitucional de direito e administração. In:
CADEMARTORI, Daniela Mesquita e GARCIA, Marcos Leite (Org.) Reflexões sobre estado e
direito: homenagem aos professores Osvaldo Ferreira de Melo e Cesar Luiz Pasold. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2008. p. 31.
389
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 790.
388
111
substancial) representam a fonte de legitimação do poder, para a teoria garantista,
as fontes de legitimidade de todos os poderes do Estado são duas: a legitimação
formal, fundamentada pelo princípio da legalidade e na sujeição do juiz à lei; e a
legitimação substancial, garantida pela função judicial de tutelar os direitos
fundamentais. A segunda pressupõe a existência da primeira.390 Em razão dessas
duas fontes, não existem, no Estado de Direito, poderes sem regulação ou ato de
poder incontroláveis. Nele, todos os poderes se encontram limitados por deveres
jurídicos, relacionados à forma e, também, ao conteúdo de seu exercício. A violação
desses limites é causa de invalidade dos atos judicialmente e, ao menos em teoria,
de responsabilidade de seus autores.391
3.1.1.1 Democracia e Estado de Direito
A distinção entre legitimidade formal e material, ou condições formais e
materiais de Validade da norma, é utilizada na compreensão da relação existente
entre democracia política e Estado de Direito.392 Ferrajoli faz uso nessa situação da
categoria Democracia proposta por Norberto Bobbio,393 como um “conjunto de
regras (primárias e fundamentais) que preveem quem está autorizado a tomar as
decisões coletivas e com quais procedimentos.”394 Para Bobbio, uma decisão é
considerada coletiva, quando é tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos)
com base em regras, que estabeleçam quais são as pessoas autorizados a tomar as
decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, bem como os
procedimentos para essa deliberação.395
Segundo Ferrajoli, a legitimidade formal diz respeito à forma de governo
390
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 157.
BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, estado constitucional de direito e administração,
p. 32.
392
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 158.
393
Norberto Bobbio nasceu em Torino (Itália). Foi professor de Filosofia do Direito na Universidade de
Padova (1939-1948) e de Torino (1948-1979). Possui trabalhos em diversas áreas, com maior
destaque para suas obras acerca da Teoria Geral do Direito, tais como a Teoria da Norma Jurídica
e a Teoria do Ordenamento Jurídico. OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Bobbio, Norberto.
In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora da
Unisinos. p. 109-113.
394
BOBBIO, Norberto. O Futuro da democracia, p. 18.
395
BOBBIO, Norberto. O Futuro da democracia, p. 18-19.
391
112
(democrático, monárquico, oligárquico, burocrático) e indica regras sobre quem pode
e como se deve decidir. A legitimidade substancial refere-se à estrutura de poder, diz
sobre o quê se pode ou não decidir. Da natureza das condições de Validade
Substancial depende o caráter de direito (absoluto, totalitário, autoritário, ou mais ou
menos de direito) do sistema jurídico.396
As condições formais determinam competências e procedimentos
(sufrágio universal, quórum da maioria para votações, dentre outros) para a tomada
de decisões. Já as condições substanciais são as que garantem os Direitos
Fundamentais, ao estabelecerem proibições de supressão ou limitação de
liberdades de fora dos casos que tenham expressa previsão legal, bem como ao
estabelecer obrigações de remoção de obstáculos que impeçam desigualdades
sociais (viabilizar condições de concretização dos direitos sociais de educação,
saúde, dentre outros).397
A violação das regras formais da norma causa a sua inexistência ou nãovigor, enquanto o desrespeito das regras substanciais enseja a invalidade das
normas produzidas. Para o Garantismo, a divergência entre vigor e Validade é a
caraterística estrutural do Estado de Direito, que o diferencia do mero Estado legal.
Em outros termos, para visão garantista, no Estado de Direito pode ocorrer a
existência de normas vigentes, porém inválidas, porque podem estar em
conformidade com as condições formais ao exercício do poder e, contudo, em
desconformidade com as condições substanciais.398
Os direitos de liberdade (direitos de) correspondem a garantias negativas
(proibições fazer) ou a limites ao poder normativo infraconstitucional. Os direitos
sociais (direitos a) dizem respeito às garantias positivas, de prestações individuais
ou sociais. A teoria garantista baseia-se na tutela de todos esses Direitos
Fundamentais, posto que caracterizam os fundamentos da existência do Estado e do
396
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 158, destaques no original.
CADEMARTORI, Daniela M. Leutchuk de e CADEMARTORI, Sérgio. A relação entre Estado de
direito e democracia no pensamento de Bobbio e Ferrajoli. UFSC. Revista Seqüência. Vol. 27
–
(53),
Florianópolis,
2006:151.
Disponível
em:
http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/rela%C3%A7%C3%A3o-entre-estado-de-direito-edemocracia-no-pensamento-de-bobbio-e-ferrajoli-0. Acesso em 31 jul. 2013.
398
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 792.
397
113
direito, justificando-os e constituindo os alicerces da Democracia Substancial.399
Vislumbra-se, portanto, que não se deve decidir (ou não decidir) tudo por
maioria, nenhuma maioria pode decidir a supressão (e não decidir a proteção) de
uma minoria ou de um só cidadão. Neste aspecto, o Estado de Direito,
compreendido como um sistema de limites substanciais impostos pela lei ao poder
público para a garantia dos Direitos Fundamentais opõe-se ao Estado absoluto, seja
ele autocrático ou democrático. Nem mesmo por unanimidade, o povo possui
poderes para decidir (ou consentir que se decida) o cerceamento do direito de um
homem, da vida, da liberdade, de pensar e de associar-se a outros homens.400
A compreensão deste conceito passa, ainda, pela diferenciação entre
estado de direito liberal e estado de direito social. Enquanto o primeiro é
caracterizado unicamente pela incorporação de proibições em suas normas
constitucionais (prestações negativas), o segundo, pelo contrário, tem como sua
principal característica a incorporação de obrigações que requerem prestações
positivas de garantia de direitos sociais. A base de legitimação do Estado igualmente
é alterada: o Estado de Direito liberal deve somente não piorar as condições de vida
dos cidadãos e o Estado de Direito social almeja melhorá-las.401
3.1.1.2 Garantismo e Democracia
A regra do estado de direito liberal é de que nem sobre tudo se pode
decidir, embora seja a vontade da maioria. Os Direitos Fundamentais de liberdade
são inalteráveis por força de dispositivos inseridos em textos constitucionais. A regra
básica para o estado de direito social diz que nem sobre tudo se pode deixar de
decidir, nem mesmo em maioria. Normas constitucionais impedem que os direitos
sociais sejam atingidos pelo legislador e, também, impõem a obrigação de promovêlos. Dessa diferenciação, a teoria garantista propõe a reformulação do conceito de
399
CADEMARTORI, Daniela M. Leutchuk de e CADEMARTORI, Sérgio. A relação entre Estado de
direito e democracia no pensamento de Bobbio e Ferrajoli, p. 151-152.
400
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 792-793.
401
BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, estado constitucional de direito e administração,
p. 34.
114
Democracia, compreendida levando em consideração dois aspectos: a) Democracia
Substancial ou social, que é o Estado de Direito munido de garantias específicas,
tanto liberais quanto sociais; b) Democracia Formal ou política, pelo qual o Estado é
baseado no princípio da maioria como fonte de legalidade.402 Dessa forma, Ferrajoli
entende que o Estado de Direito somente equivale à Democracia no seu sentido
substancial, para refletir, além da vontade da maioria, os interesses e necessidades
vitais de todos. O Garantismo, como teoria de limitação e disciplina dos poderes
públicos, utiliza o significado do termo Democracia na sua acepção Substancial.
Para essa teoria, as garantias liberais ou sociais exprimem os Direitos Fundamentais
dos
cidadãos
contra
os
poderes
do
Estado,
os
interesses
dos
fracos
respectivamente aos fortes. 403
A dimensão Substancial é considerada, por Oliveira Neto, como o aspecto
destacado do modelo garantista com relação à Democracia, tendo em vista que
representa um campo encoberto ou desconhecido dos regimes democráticos. De um
entendimento de Democracia como sinônimo de procedimentos de coleta da
vontade popular, passa-se a perceber outro referente à garantia, não apenas dos
direitos da maioria, mas também da minoria. O reconhecimento do aspecto
substancial da Democracia impede que a vontade majoritária anule ou aniquile os
direitos da expressão de vontade da inferioridade dos votantes.404
Ferrajoli propõe, ainda, duas concepções para o tema: a Democracia
Majoritária (ou plebiscitária) e a Democracia Constitucional. A primeira significa
essencialmente a onipotência do poder da maioria, da soberania popular. Essa
concepção, de conotação absolutista, possui como resultado a desqualificação das
regras e dos limites do poder executivo, enfraquecendo a divisão dos poderes e as
funções de controle e de garantia do judiciário e do legislativo. Em contrapartida, a
essência do Garantismo e do constitucionalismo está relacionada com a concepção
de Democracia Constitucional, que reside em um conjunto de limites impostos pelas
constituições a todo o poder, que postula a Democracia como um sistema frágil e
402
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 161.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 792-793.
404
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização, p. 128.
403
115
completo de separação e de equilíbrio entre os poderes, de limites de forma e de
substância a seu exercício, de garantia de Direitos Fundamentais, de técnicas de
controle e de reparação de suas violações.405
No modelo Garantista, o controle dos poderes estatais é possível em
razão da rigidez constitucional, elemento que se apresenta com a concepção
hierarquizada do sistema jurídico e que dá origem à supremacia constitucional.406 A
rigidez das normas constitucionais são entendidas como o reconhecimento dessas
que se sobrepõem as normas ordinárias, por meio de procedimentos especiais de
alterações normativas e da instituição de controle de constitucionalidade das leis por
meio de tribunais criados para esse fim.407
A garantia da rigidez constitucional altera a natureza da legalidade: deixa
de ser um fator condicionante e disciplinante para passar a ser, ela mesmo,
condicionada e disciplinada por vínculos jurídicos formais e substanciais. Ela deixa
de ser compreendida como um mero produto do legislador para atuar como limite e
vínculo do direito ao legislador. O direito positivado não é apenas o seu “ser”, mas
também seu “dever ser”. Melhor dizendo, fazem parte das condições de Validade do
direito quem e como (condições formais) das decisões juntamente com o que
(condições substanciais) não se deve decidir (lesões de direitos de liberdade) ou que
se deve decidir (a satisfações dos direitos sociais).408 Na teoria garantista, os
Direitos Fundamentais são o exemplo mais conspícuo sobre o que não se pode
decidir.409
O modelo garantista não se limita a prever somente as Normas Formais
de produção do direito mediante normas procedimentais acerca da formação das
leis. Além dessas, estipula Normas Substanciais, vinculadas aos princípios de justiça
(igualdade, paz, tutela dos Direitos Fundamentais) inscritos nas constituições. Esse
direito acima do direito, composto por sistema de norma metalegais destinadas aos
405
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 25-27.
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização, p. 129.
407
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 29.
408
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 30-31, destaques no original.
409
CADEMARTORI, Daniela M. Leutchuk de; CADEMARTORI, Sérgio. A relação entre Estado de
direito e democracia no pensamento de Bobbio e Ferrajoli, p. 160.
406
116
poderes públicos ao legislador conforme a Constituição.410
Vislumbra-se, dessa forma, que, para o Garantismo, o Estado de Direito,
está relacionado com as concepções formais e substanciais da Democracia,
previstas em uma Constituição, para que garantias dos cidadãos sejam
resguardadas pela legalidade. Nesse entendimento, o Estado de Direito é
Democrático ao garantir que a Validade da lei ocorre se forem respeitados os
procedimentos e os conteúdos previstos constitucionalmente, respeitando a esfera
do decidível ou do não-decidível, por uma maioria ou mesmo pela unanimidade.411
A interpretação garantista sobre a Democracia reflete que na legitimação
dos poderes pertencentes ao Estado, as instituições políticas e jurídicas só se
legitimam se houver a satisfação dos interesses primários de todos. A necessidade
de satisfação das normas primárias resulta na aporia412 da irredutível ilegitimidade
jurídica dos poderes públicos do Estado de Direito, apontada por Ferrajoli.413
3.1.2 A segunda concepção: uma teoria da Validade, da efetividade e
da Vigência normativa.
O Garantismo propõe a análise da Validade da norma mediante a
redefinição dos conceitos de Validade, de Vigência e de Eficácia, entendidos como
conceitos diversos, a partir do Estado Constitucional de Direito.414 A análise da
Validade da norma proposta por Ferrajoli diverge das teorias tradicionais do direito,
que vislumbram a validade da norma nos termos da Teoria Pura do Direito,
410
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 31.
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 22.
412
Ferrajoli explica a dificuldade enfrentada mesmo nos Estados de Direitos mais perfeitos: “Mas
também nos ordenamentos mais perfeitos existe sempre uma margem talvez estreita, mas
irredutível, de ilegitimidade do poder baseado na vontade, sobre direitos e sobre interesses
populares, dado que aquela vontade, aqueles direitos e aqueles interesses não são nunca
realizados e garantidos inteiramente. É uma aporia insuprimível de todo o Estado de direito,
desconhecida do Estado absoluto, onde não há promessas ou deveres que vinculam juridicamente
os poderes públicos, e onde validade e vigor coincidem”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p.
799-800.
413
BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, estado constitucional de direito e administração,
p. 36.
414
BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, estado constitucional de direito e administração,
p. 27.
411
117
elaborada por Kelsen. Esse autor austríaco se propôs a explicar o direito, tendo em
vista o caráter meramente descritivo, elegendo normas jurídicas como seu objeto de
estudo para construir uma teoria formal, desvinculada do mundo da vida. A proposta
abstrai do direito aspectos morais, sociológicos, religiosos, de justiça, dentre outros,
para preponderar uma análise vinculada ao Estado. Exclui da análise jurídica
aspectos do mundo da vida e aspectos valorativos, restringindo a análise ao mundo
lógico da norma jurídica. A validade da norma é auferida desde que esta esteja
subordinada formalmente às suas normas superiores, dentro de um sistema
representado por uma pirâmide normativa, composto no vértice pela norma
fundamental. A norma é considerada válida se respeita a norma fundamental. A
verificação se as normas são produzidas como deveriam ser não é considerada
dentre as atribuições da ciência jurídica, mas da política jurídica. Assim, Kelsen,
distingue o ser, próprio das ciências naturais, do dever ser, no qual o direito está
situado.415.
Para o Juspositivismo Dogmático,416 a validade da norma era auferida
pela sua formalidade, pois, para Kelsen:
[...] a forma prepondera sobre o conteúdo e o ordenamento jurídico seria
estruturado de modo lógico, com inferências formais, colmatadoras da
validade das normas jurídicas, emanadas, de qualquer sorte, do
Estado.417.
O princípio da legalidade assume grande importância para a Dogmática
Juspositivista, haja vista que figura como fonte de legitimação das normas jurídicas
tanto as vigentes quanto as válidas. Configura como o princípio constitutivo dos
modernos Direito Positivo e Estado de Direito, ao reconhecer as normas como
empiricamente dadas ou positivadas e impedir o arbítrio característico dos regimes
absolutistas.418
415
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 42-47.
Ferrajoli entende o significado da categoria Juspositivismo Dogmático como “[...] cada orientação
teórica que ignora o conceito de vigor das normas como categoria independente da validade e da
efetividade: sejam os ordenamentos normativos, que assumem como vigentes somente as normas
válidas, sejam ordenamentos realistas, que assumem como vigentes apenas as normas efetivas”.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 803.
417
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 47.
418
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 802.
416
118
Na visão kelsiana, uma lei ordinária que se encontre em contradição com
normas constitucionais permanece válida até sejam derrogadas pelas formas
previstas no ordenamento. Ferrajoli critica essa maneira de resolver a questão da
Validade da norma, haja vista que reduz a importância do conteúdo dessa norma
(deve ser) por um tipo de presunção geral de legitimidade de todas normas vigentes
como válidas.419
Contrapondo o positivismo kelseniano, contudo sem situar sua teoria à
margem do Positivismo Jurídico,420 Ferrajoli sustenta haver dois modelos de
legalidade: em um lado, há a (mera) legalidade, como fonte formal de vigor das
normas jurídicas, que assume a função de garantia de certeza e de liberdade contra
os poderes. De outro lado, no sentido de (estrita) legalidade, como fonte substancial
da Validade das normas jurídicas, representa uma técnica de positivação e de
estabilização dos Direitos Fundamentais dos cidadãos.421 Diante desses dois
sentidos de legalidade, a teoria garantista propõe a redefinição de categorias
tradicionais das normas jurídicas de justiça, de Vigência, de Validade e de Eficácia
(efetividade), como conceitos diversos, a fim de viabilizar a análise da Validade
Substancial da norma jurídica:
a) uma norma é ‘justa’ quando responde positivamente a determinado
critério de valoração ético-político (logo, extrajurídico);
b) uma norma é ‘vigente’ quando é despida de vícios formais, ou seja, foi
emanada ou promulgada pelo sujeito ou órgão competente, de acordo
com o procedimento prescrito;
c) uma norma é ‘válida’ quando está imunizada contra vícios materiais; ou
seja, não está em contradição com nenhuma norma hierarquicamente
superior;
d) uma norma é ‘eficaz’ quando é de fato observada pelos destinatários
(e/ou aplicada pelos órgãos de aplicação).422
A definição dessas categorias, sobre a norma jurídica, permite
compreender que, conforme o referencial do Garantismo, as normas vigentes (ou
Validade meramente Formal) são as editadas de acordo com o processo legislativo.
419
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias, p. 21.
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização, p. 122.
421
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 802.
422
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 79-80.
420
119
Validade é o atributo da norma relativo à sua pertinência subjetiva material com as
normas situadas em nível superior. A Eficácia da norma é vinculada à sua
observância a quem é destinada. Portanto, estabelece-se a diferença entre as três
categorias atribuídas às normas: Vigência, Validade e Eficácia.423
Segundo o professor italiano, uma norma pode ser justa sem ser
observada (não eficaz) e, em sentido inverso, uma norma pode ser observada
embora seja injusta. Ainda, há a possibilidade de ocorrer que uma norma seja
vigente e eficaz apesar de ser inválida, como, de outro lado, é possível que uma
norma seja válida, porém ineficaz.424
O juízo sobre a Vigência da norma (existência) recai sobre condições de
Validade Formal, que resguardam o devido procedimento de sua edição e a
competência do órgão que a emana. De maneira diversa, o juízo de Validade da
norma se ocupa acerca das condições de Validade Substancial, as quais regulam o
conteúdo da norma, ou melhor, seu significado.425 Isto significa que a norma é
vigente quando decorre de um processo legislativo previsto na Constituição e válida
se for compatível materialmente com as garantias e direitos reconhecidos no texto
constitucional.426
Sejam formais ou substanciais, as condições para a produção normativa
estão estabelecidas em nível normativo superior. Todavia, enquanto as condições
formais de vigor consistem em requisitos de fato, que sem o respeito aos mesmos a
norma não chega a existir juridicamente, as condições de Validade Substanciais
(principalmente as de validade constitucional) consistem habitualmente no respeito a
valores como: igualdade, liberdade, ou garantias dos direitos dos cidadãos, cujas
violações resultam em antinomias (conflito de normas de conteúdo ou de significado
incompatíveis).427
Se a verdade (ou falsidade) dos juízos sobre vigor é aplicável com base
em análises empíricas ou de fato, o juízo de Validade consiste em valoração da
423
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 47-48.
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 80.
425
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 806.
426
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 48-49.
427
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 806.
424
120
conformidade ou da deformação das normas aos valores previstos em suas normas
superiores, que, por serem juízos de valores, não comportam conclusões de
verdadeiro ou falso, podem ser mais ou menos opináveis, mas não configuram uma
tarefa fácil e óbvia ao julgador.428 Essa dificuldade, identificada por Ferrajoli na
análise dos valores previstos nas normas superiores, resulta em uma abertura
discricionária na interpretação da norma e conduz a um espaço irredutível de
ilegitimidade da autoridade judiciária. Entretanto, não compromete o modelo do
Estado de Direito de forma relevante, pois comporta esse espaço de ilegitimidade no
exercício do poder:429
Estamos, pois, diante de uma aporia teórica, que é o reflexo da já
revelada aporia jurídica de ilegitimidade potencial de todo o exercício de
poder no Estado de direito, e que se manifesta na dissociação estrutural
entre juízos sobre o vigor e juízos sobre a validade das normas, assim
como diante da indecisão da verdade sobre esses últimos.430
A interpretação garantista acerca da Validade da norma coloca em
questão dois dogmas do Juspositivismo Dogmático: a fidelidade do juiz à lei e
também a função meramente descritiva e avalorativa do jurista em relação ao Direito
Positivo vigente.431 O magistrado, como ator jurídico, pode analisar a norma
isoladamente e deixar de aplicá-la por não ser válida em face do caso específico,
expressando sua opinião material/constitucional.432
Ressalta-se que, com base na teoria garantista, a Validade (material) não
é sinônimo de justiça, pois está ligada ao conteúdo dos preceitos constitucionais,
rompendo com um sistema lógico de validade/nulidade para ganhar contornos
escalonáveis do ponto de vista interno do Direito Positivo.433 A justiça da norma é um
aspecto extrajurídico, feita por critério de valoração ético-político, externo ao
428
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 806-807.
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 83-84.
430
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 807.
431
BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, estado constitucional de direito e administração,
p. 29.
432
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 50.
433
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 50.
429
121
direito.434
Percebe-se, portanto, que uma análise garantista da norma jurídica
baseia-se em saber se ela tem Validade Formal (vigência), se respeita o processo
legislativo; e Validade Material, se o seu conteúdo é também compatível com os
Direitos Fundamentais trazidos na Carta Magna.435 A relação da teoria de Ferrajoli
com o positivismo kelseniano está no fato de que o enfoque teórico do primeiro não
refuta a necessidade de análise da Validade Formal da norma jurídica, defendida por
Kelsen, no sentido de que uma norma, para ter Validade, deve respeitar os ditames
de normas superiores que se encontram no ordenamento jurídico. Todavia,
acrescenta que a norma, além de ter Validade Formal, deve também ter Validade
Substancial (materialmente).
3.1.3 A terceira concepção: uma filosofia da política
O terceiro significado do Garantismo pode ser deduzido da doutrina
filosófico-jurídica que, criticamente, analisa a perda de legitimação externa das
intuições jurídicas positivas. Esta perda é relacionada à rígida separação entre
direito e moral, ou entre Validade e justiça, ou entre o ponto de vista jurídico (interno)
e o ponto de vista ético-político (externo ao ordenamento).436
Ao utilizar a expressão “autopoiesis”, desenvolvida por Niklas Luhmann437
434
Sobre a relação entre a norma jurídica e justiça, em sentido diverso de Ferrajoli, que trata a justiça
como um fator extrajurídico, Santo Dias defende que a dogmática jurídica, quando vivencia o
Estado Democrático de Direito, constitui-se em instrumento da consolidação da democracia, por
uma questão de justiça, em uma relação social mais ética. SANTOS DIAS, Maria da Graça dos. A
utopia do direito justo. In: XIV CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI. Anais do XIV Congresso
Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. p. 13.
Disponível em:
http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/XIVCongresso/008.pdf. Acesso em: 02 out.
2013.
435
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização, p. 123-124.
436
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização, p. 124.
437
Jurista e professor Niklas Luhmann (1927-1998) nasceu em Lünenburg, Alemanha, atuou
profissionalmente, em especial, em seu país de origem. A matriz teórica do Autor sobre sistemas
provoca uma importante mudança epistemológica na Teoria do Direito. ROCHA, Leonel Severo.
Luhmann, Niklas. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do Direito. São
Leopoldo: Editora da Unisinos, 2006. p. 550-553.
122
para designar a característica autoreferencial sobre sistemas de governo, Ferrajoli
diferencia as doutrinas autopoiéticas e heteropoiéticas de legitimação do poder.
Segundo as primeiras, o Estado é considerado um fim e encarna valores éticopolíticos de características supra-social e supra-individual, cuja conservação e
reforço para o direito e os direitos hão de ser funcionalizados. O Estado,
internamente, enquanto fim ou valor, subordina a si mesmo, à Sociedade ou aos
indivíduos. A legitimação do Estado advém do alto, a começar pelas doutrinas prémodernas, que justificaram a legitimidade do Estado sobre identidades metafísicas e
meta-históricas. Segundo as segundas (doutrinas heteropoiéticas), em sentido
contrário, o Estado é visto como um meio, legitimado tão somente pelo fim de
garantir os Direitos Fundamentais dos cidadãos, considerado ilegítimo politicamente
se não os garante ou mesmo os viola. A Sociedade e as pessoas são tomadas como
os fins e o Estado é um meio instituído para a tutela dos valores a ele atribuídos. A
legitimação do poder vem do externo ou de baixo, da Sociedade (soma heterogênea
de pessoas, de forças e de classes sociais). Enquanto são consideradas naturais as
pessoas e as suas necessidades vitais e não o Estado ou o poder, artificiais são
compreendidas as garantias jurídicas e, de maneira geral, os deveres e poderes
instituídos pela norma positiva para limitar ou tutelar direitos, como a vida e a
liberdade.438
O Quadro elaborado por Cademartori auxilia a compreensão das teorias
autopoiéticas e heteropoiéticas de legitimação:
TEORIAS AUTOPOIÉTICAS
TEORIAS HETEROPOIÉTICAS
Fundamentam os sistemas políticos sobre si
mesmos
Justificam o direito e o estado como bens ou
valores intrínsecos
O estado é um fim em si mesmo
Fundamentam os sistemas políticos sobre
finalidades sociais
Justificam Direito e estado como males necessários
para satisfazer os interesses vitais dos cidadãos
O estado é um meio que se legitima por preservar
e promover os direitos
Ponto de vista externo
Princípios
legitimadores
ex
parte
populi
(jusnaturalismo laico e racionalista)
Fins externos (valores estampados nas cartas de
direitos e garantias)
Ponto de vista interno
Princípios legitimadores ex parte principis
(stalinismo, fascismo)
Princípio da legalidade como princípio
axiológico externo
Quadro 3
439
Fonte: CADEMARTORI. Sérgio.
438
439
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 812-814.
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 164.
123
O
Garantismo,
em
sentido
filosófio-político,
é
compreendido,
essencialmente, na fundação heteropoiétca do direito, separado da moral. Por um
lado, ele consiste na negação de um valor intrínseco do direito somente porque
vigente e do poder porque efetivo, por outro lado, na concessão utilitarista e
instrumental do Estado, que tem como fim a satisfação de expectativas e dos
Direitos Fundamentais.440
Direitos Fundamentais substancialmente legitimam o Estado e o direito e,
externamente, são os Direitos Humanos e a centralidade da pessoa humana que
propiciam os parâmetros avaliadores dos seus níveis de justiça, ao servirem como
norte para o conteúdo do Contrato Social441 perfectibilizado pela Constituição.442
Dessa maneira, na visão garantista, o Estado de Direito é caracterizado
politicamente como um modelo de ordenamento justificado ou fundamentado por fins
completamente externos, que são declarados em forma normativa por suas
Constituições, mas sempre de forma incompleta, posto que sempre haverá espaço
para uma certa ilegitimidade dos poderes. Nesse entendimento, a política é vista
como dimensão axiológica (externa) do agir social, servindo de critério de
legitimação para a crítica e a mudança do funcionamento de fato e dos modelos de
direito das instituições vigentes.443
Defende-se que a justificação do Estado ocorra enquanto tutela dos
Direitos Fundamentais, que consiste no embrião da Democracia, não somente no
seu viés Formal (política) como igualmente no viés Substancial (social).444 Considera
que os Direitos Fundamentais são a fonte de legitimação interna, enquanto os
Direitos Humanos e a Dignidade da Pessoa Humana atuam como fontes de
440
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 815.
A Categoria Contrato Social pode ser entendida, para a corrente do contratualismo moderno, como
o pacto firmado entre os homens para superar os inconvenientes do estado de natureza, que
funciona como instrumento de passagem do momento negativo de natureza para o estágio político
(social), servido como fundamento de legitimação do Estado de Sociedade. MORAIS, José Luiz B.
de. Contrato Social, p. 163-168.
442
SCHINCARIOL, Rafael L. F. da C. Estado de direito e neoliberalismo: uma análise garantista.
104p. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade
Federal
de
Santa
Catarina,
Florianópolis,
2008.
p.
56.
Disponível
em:
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33937-44674-1-PB.pdf. Acesso em: 01 ago.
2013.
443
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 164.
444
SCHINCARIOL, Rafael L. F. da C. Estado de direito e neoliberalismo, p. 56.
441
124
legitimação externa do direito e do Estado por meio da política.
Todavia, a legitimação do Estado de Direito nunca é perfeita, apriorística,
global ou permanente, trata-se de uma aporia política do Garantismo. Ela vem da
divergência estrutural entre ser e dever ser e é uma característica comum de todos
os ordenamentos baseados sobre modelos de legitimação heteropoiéticas.
Garantimos e Democracia são sempre modelos normativos imperfeitamente
realizados, podendo valer como parâmetro de legitimação e de perda de legitimação
política. A legitimidade é sempre relativa, condicionada e mensurada em graus, seja
porque depende do grau de efetiva realização das funções externas que justificam
os poderes, seja pela imperfeição estrutural dos instrumentos institucionais a tal fim
apontados. Em sentido contrário, nos regimes absolutos pré-modernos, que dispõem
de legitimação oriunda do alto (Deus, nascimento, investidura soberana, dentre
outros), a legitimidade política e jurídica era absoluta, perfeita, apriorística e
incondicionada.445
Percebe-se, portanto, que a teoria garantista justifica a legitimação do
Estado do Direito, levando em consideração o respeito aos Direitos Fundamentais,
de baixo para cima. Se houver o respeito a esses direitos, o exercício do poder é
considerado legítimo, embora sempre haverá uma parcela de ilegitimidade, na
medida em que os detentores do poderes públicos deverão garantir os Direitos
Fundamentais, de acordo com suas próprias decisões políticas.
3.2 A CONCEPÇÃO GARANTISTA DE DIRETOS FUNDAMENTAIS
Tendo em vista que o Garantismo Jurídico contém uma visão de que o
Estado serve de meio para a realização dos Direitos Fundamentais,446 tais direitos
assumem um papel central na teoria elaborada por Ferrajoli. Por consequência, a
delimitação de seu conceito é de extrema relevância para o entendimento da
proposta teórica garantista.
445
446
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 817-818.
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização, p. 124.
125
O jurista italiano sustenta a definição formal ou estrutural de Direitos
Fundamentais, compreendidos como todos os direitos subjetivos que correspondam
universalmente a todos os seres humanos enquanto dotados do status de pessoa,
de cidadão ou de pessoa com capacidade de agir civilmente.447 Por direito subjetivo,
o autor entende qualquer expectativa positiva (de pretensão) ou negativa (de não
sofrer lesões) adstrita a um sujeito por uma norma jurídica. Direitos de personalidade
correspondem a todos os seres humanos enquanto indivíduos ou pessoas. Já
direitos de cidadania dizem respeito exclusivamente aos cidadãos, compreendidos
como membros de pleno direito de uma comunidade.448 Status é definido como a
condição de um sujeito, trazida por uma norma jurídica positivada, como
pressuposto para ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos que se
relacionam com ela. 449
A definição garantista de Direitos Fundamentais, embora seja formal, não
impede que se possa buscar nesses direitos a base da igualdade jurídica, que
depende da quantidade e da qualidade dos interesses protegidos como
fundamentais em um determinado ordenamento jurídico. Quando Ferrajoli direciona
o foco do conceito ao sujeito como pessoa, como cidadão e a quem tenha
capacidade de agir civilmente, busca sedimentar como Direitos Fundamentais as
características que são utilizadas historicamente como elementos de diferenciação
entres pessoas. Ser cidadão e ter capacidade civil são elementos que justificam a
igualdade, mas também podem ser utilizados para fundamentar um tratamento
desigual. Com base nessas características, o direito posto cria diferenciações
quando confrontadas com as das pessoas em geral, tais como pelo sexo, pela idade
ou pela nacionalidade.450 Consiste em uma definição que se baseia unicamente na
universalidade dos Direitos Fundamentais, sem levar em consideração a natureza ou
os interesses dos indivíduos tutelados, sendo válida para qualquer ordenamento
jurídico positivo. Por pertencerem a todos, os Direitos Fundamentais são alienáveis e
447
“[...] todos aquellos derechos subjetivos que correspondem unviveralmente a `todos` los seres
humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad de
obrar [...]”.FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias, p. 37.
448
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías, p. 98-99.
449
BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, estado constitucional de direito e administração,
p. 41.
450
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues. Os direitos fundamentais e os mecanismos de
concretização, p. 135-136.
126
não negociáveis, pertencem a prerrogativas não contingentes e inalteráveis de seus
titulares, instituindo limites e vínculos intransponíveis para todos os poderes,
públicos ou privados.451
O critério formal e operacional do conceito de Direitos Fundamentais do
professor italiano permite sua transição geográfica e histórica entre ordens jurídicas
distintas. Por essa razão, a historicidade desses direitos não é apagada, enquanto
variam no tempo os conteúdos, os significados e a amplitude, permanecem
inalterados
os
critérios
definidores
(personalidade,
capacidade
de
agir
e
cidadania).452
Garcia ensina que essa evolução histórica do conceito de Direitos
Fundamentais acompanha a da Sociedade, contudo sempre está relacionado à
proteção da Dignidade da Pessoa Humana, da liberdade, da igualdade e da
solidariedade:
[...] os Direitos Fundamentais não são um conceito estático, imutável ou
absoluto e muito pelo contrário trata-se de um fenômeno que acompanha
a evolução da sociedade, das novas tecnologias, e as novas
necessidades de positivação para proteger a dignidade humana, a
liberdade, a igualdade e fazer da solidariedade uma realidade entre
todos.453
Direitos Fundamentais e Dignidade da Pessoa Humana são conceitos que
possuem forte relação. Segundo Sarlet, o respeito à Dignidade da Pessoa Humana
depende da existência de respeito à vida e à integridade física e moral do ser
humano, com limitação ao exercício do poder, onde as liberdades, a autonomia, a
igualdade (em direitos e dignidade) e os Direitos Fundamentais sejam reconhecidos
e minimamente assegurados. Caso contrário, a pessoa humana figurará como mero
451
FERRAJOLI, Luigi. Los Fundamentos de los derechos fundamentales. Tradução de: Perfecto
A. Ibáñez. Madrid: Trotta, 2005. Título original: Diritti fondamentali. p. 19-21.
452
SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da. Direitos Fundamentais e liberdade sindical no
sistema de garantias: um diálogo com Luigi Ferrajoli. Faculdade de Direito de Campos.
Revista da Faculdade de Direito de Campos. Vol. 6, Campos dos Goytacazes, RJ, 2006:250.
Disponível em: http://fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista06/Docente/10.pdf. Acesso em 25
jul. 2013.
453
GARCIA, Marcos Leite. Efetividade dos Direitos Fundamentais, p. 196.
127
objeto de arbítrio e injustiças.454
O conteúdo da noção jurídica-normativo de Dignidade da Pessoa Humana
possui contornos vagos e abertos, reclamando constante concretização e
delimitação pela práxis constitucional.455 Nessa tarefa, Sarlet propõe o seguinte
Conceito Operacional:
Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade
intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venha a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além
de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais
seres humanos.456
Ferrajoli, a partir de seu entendimento sobre Direitos Fundamentais,
formula quatro teses essenciais para o desenvolvimento de uma teoria de
Democracia Constitucional. A primeira delas consiste na diferença estrutural entre
Direitos Fundamentais e direitos patrimoniais, sendo que os primeiros pertencem
aos sujeitos e os segundos somente aos seus titulares, com exclusão dos demais
indivíduos. Pela segunda tese, entende-se que, ao corresponder aos interesses e
expectativas de todos, os Direitos Fundamentais formam os parâmetros da
igualdade jurídica e compõem a dimensão Substancial da Democracia. A terceira
tese se refere à atual natureza supranacional de grande parte dos Direitos
Fundamentais, não se restringindo a direitos de cidadania. Podem estabelecer
limites externos, por convenções internacionais, e não somente internos, aos
poderes públicos e às bases normativas de uma eventual democracia internacional.
A quarta tese enfatiza que direitos e garantias são categorias de significados
diversos. Como principal consequência desta diferenciação, a negativa no
ordenamento de garantias não resulta na inexistência dos Direitos Fundamentais.457
454
SARLTE, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, p. 59.
SARLTE, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, p. 41.
456
SARLTE, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, p. 60.
457
FERRAJOLI, Luigi. Los Fundamentos de los derechos fundamentales, p. 25-26.
455
128
Por sua relevância dentro do Garantismo, a diferenciação entre Direitos
Fundamentais e direitos patrimoniais merece explicação, posto que estes não são
considerados
incluídos
no
conceito
daqueles.
considerados
distintos
das
“situações
jurídicas”
Direitos
Fundamentais
(modalidade
são
deôntica
de
comportamento produtivos de efeitos jurídicos). Se, por um lado, as situações
jurídicas correspondem a poderes ou deveres adquiridos conforme “causas” ou
“títulos” específicos e exercitáveis através de atos protestativos que produzem
efeitos na esfera jurídica do titular ou de outrem. De outro lado, considera-se que os
Direitos Fundamentais constituem-se em esferas de imunidade reconhecidas a
todos, independentemente de títulos e são exercidos por meio de comportamentos
meramente lícitos, que não interferem juridicamente na vida de outras pessoas.458
Outras diferenças são identificadas pelo professor italiano entre Direitos
Fundamentais e direitos patrimoniais, tais como: a) Direitos Fundamentais são
universais, deles ninguém pode ser privado, consistem no fundamento da igualdade
jurídica. Os direitos patrimoniais são singulares, para cada indivíduo há um titular
determinado com a consequente exclusão de todos os demais indivíduos, formam a
desigualdade jurídica; b) os Direitos Fundamentais são indisponíveis, inalienáveis e
personalíssimos e os direitos patrimoniais são disponíveis, negociáveis e alienáveis;
c) Direitos Fundamentais são horizontais por relações que se manifestam entre os
indivíduos e o Estado, e as violações estatais desses direitos podem resultar até
mesmo na resistência civil da vítima; os direitos patrimoniais estabelecem relações
verticais entre os titulares por meio de relações civis entre contratantes. 459
Além de propor uma caracterização do que são direitos inerentes aos
seres humanos, o professor italiano analisa quais direitos merecem ser considerados
como fundamentais. Para tanto, pauta-se em três critérios axiológicos, sugeridos
pela experiência histórica do constitucionalismo, tanto estatal quanto internacional,
que são: a) o nexo entre Direitos Humanos e paz; b) os direitos das minorias e o
nexo com a igualdade; c) o papel desses direitos como garantia dos direitos dos
458
459
CADEMARTORI. Sérgio. Estado de direito e legitimidade, p. 35-36.
SCHINCARIOL, Rafael L. F. da C. Estado de direito e neoliberalismo, p. 60.
129
mais fracos.460
O primeiro desses critérios é instituído pela Declaração Universal de
Direitos Humanos de 1948, que prevê como Direitos Fundamentais todos os direitos
vitais necessários à condição de paz. Assumem essa função, de forma primordial, o
direito à vida, à integridade pessoal (física e psíquica), direitos civis, políticos, de
liberdade e sociais. No âmbito interno dos países, o direito à paz é assegurado por
todos os direitos, cuja sistemática violação não justifica o dissenso, mas o conflito
como exercício do direito de resistência. Inclui-se no rol os novos direitos sociais
(saúde, educação, subsistência e previdência social), por serem relacionados com a
manutenção da paz interna. Na esfera internacional, a paz é garantida não somente
pelo desarmamento dos Estados, mas igualmente por uma Organização das Nações
Unidas (ONU) reformada democraticamente para ter uma atuação efetiva. Além de
existir um tribunal penal internacional que consiga coibir e punir as violações de
Direitos Humanos.461
O segundo critério diz respeito ao nexo dos Direitos Fundamentais com a
igualdade, de grande importância para a análise dos direitos das minorias. Defendese que a igualdade de liberdades é essencial para garantir o igual valor das
diferenças pessoais, dentro do pressuposto de que todas as pessoas são diferentes,
mas iguais enquanto pessoas humanas. A igualdade há que ser respeitada também
acerca dos direitos sociais, para garantir a redução das desigualdades econômicas e
sociais.462 Ferrajoli sustenta que o constitucionalismo e o universalismo dos direitos
não se opõem ao multiculturalismo, mas assumem a função de sua Garantia. 463
O último critério versa sobre o papel dos Direitos Fundamentais como
garantia dos mais fracos. Historicamente, esses direitos foram previstos em normas
nacionais ou internacionais contra opressões e discriminação de uma situação de
460
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 43-44.
GRUBBA, Leilane Serratine e CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Direitos humanos e
direitos fundamentais: convergências entre Joaquín Herrera Flores e Luigi Ferrajoli. UNOESC.
Revista Espaço Jurídico: Espaço Jurídico Journal of law. Vol 1 – (13), Joaçaba, 2012:163-164.
Disponível em: http://editora.unoesc.edu.br/index.php/espacojuridico/article/view/1445. Acesso em:
25 jul. 2013.
462
GRUBBA, Leilane Serratine; CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Direitos humanos e
direitos fundamentais, p. 165.
463
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 51.
461
130
injustiça social, tendo como foco especial a luta por liberdades de trabalhadores e
das mulheres. São direitos conquistados com o fim de limitar poderes e de proteger
os mais fracos, os oprimidos contra a lei do mais forte, que agia irrestritamente na
ausência dos mencionados direitos. 464
Definidos os critérios, Ferrajoli indica quatros classes de direitos: Direitos
Humanos, Direitos Públicos, Direitos Civis e Direitos Políticos. Os Direitos Humanos
são extensivos a todas as pessoas, sem distinções. Nessa classe de direitos, estão
incluídos os direitos à vida, à saúde, à educação, à liberdade, sociais, à integridade
física, garantias penais, dentre outros. Os Direitos Públicos são atribuídos
unicamente aos cidadãos, como o direito de residência, circulação no território,
associação e de trabalho. Os Direitos Civis são centrados nos direitos potestativos;
sua exteriorização acontece no âmbito da autonomia privada. Os Direitos Políticos
igualmente são restringidos aos cidadãos; incluem o direito ao voto, de ser votado e
de ocupar cargos públicos.465 Os direitos pertencentes a essas quatro classes
assumem a natureza de Direitos Fundamentais, quando foram atribuídos
universalmente à identidade de sujeitos relacionada à pessoa, ao cidadão e à
capacidade de agir civilmente.466
A teoria garantista, portanto, entende que os Direitos Fundamentais, por
um lado, indicam obrigações positivas ao Estado no âmbito social, e de outro lado,
limitam negativamente a atuação estatal, privilegiando as liberdades dos indivíduos,
não alienados pelo pacto social. Representam o substrato para a Democracia
Substancial Constitucional, ao significarem a extensão de liberdades e de direitos
sociais em sentidos opostos, mas direcionados, ambos à realização das promessas
constitucionais.467
464
GRUBBA, Leilane Serratine; CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Direitos humanos e
direitos fundamentais, p. 165-166.
465
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 33.
466
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías, p. 40-41.
467
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 32.
131
3.3 LIMITES AO EXERCÍCIO DO PODER
A consolidação do Estado de Direito com viés garantista incorporado à
concepção de Democracia Substancial, articula mecanismos de limitação do poder
do Estado, vinculando as funções estatais do executivo, do legislativo e do
judiciário.468
Esses limites dos poderes públicos consistem no que Ferrajoli denomina
de esfera do indecidível, que representa o conjunto de princípios que, na
Democracia, estão subtraídos da vontade da maioria.469
A concepção da esfera do indecidível remonta à teoria contratualista de
Jonh Locke,470 para quem o conteúdo do Contrato Social é deslocado. A instituição
do Estado significa a manutenção e consolidação dos direitos existentes no estado
de natureza, com o objetivo principal de resolução pacífica dos conflitos. A criação
do Estado não resulta na outorga de poderes plenos e absolutos. Os direitos
preexistentes permanecem na esfera individual de cada pessoa, o respeito a esses
direitos vincula a legitimidade de sua atuação (negativa e/ou positiva), do exercício
do poder, ou seja, são direitos incapazes de violação pelo Estado.471
No pensamento jusnatural dos contratualistas, os direitos vitais do homem
e suas garantias constituem condições de legitimidade do Estado e do pacto social
por ele assegurado. A positivação e constitucionalização de tais direitos deram
origem ao Estado de Direito, ao resultarem na “incorporação limitativa”, no
ordenamento jurídico, dos correspondentes deveres impostos ao exercício dos
poderes públicos. A previsão constitucional de tais deveres públicos (de respeito aos
limites) resulta na positivação dos direitos naturais como invioláveis, alterando a
estrutura do Estado, que deixa de ser absoluto e passa a ser condicionado e
468
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 21.
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 102.
470
O filósofo John Locke (1632-1704) nasceu em Wrington, Inglaterra, e viveu no seu país natal e na
Holanda por um período. Escreveu sobre economia, pedagogia, tolerância religiosa, teoria política
e epistemológica. Sua reputação na filosofia ficou marcada pela obra Ensaio acerca do
Entendimento Humano e na área jurídica pela obra Dois Tratado de Governo. SILVA FILHO, José
Carlos M. da. Locke, John. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário de Filosofia do Direito.
São Leopoldo: Editora da Unisinos. p. 541-545.
471
ROSA, Alexandre Morais da. O que é garantismo jurídico?, p. 23-25.
469
132
limitado.472
As obrigações impostas ao Estado de respeitar os Limites ao Exercício do
Poder formam as Garantias do cidadão, que são contra a maioria ou qualquer outro
poder para a tutela, sobretudo dos indivíduos e das minorias que não dispõem do
poder e, ainda, são contra a utilidade geral, tendo como escopo exclusivo a tutela
dos direitos individuais. Tendo em vista a existência das Garantias no Estado de
Direito, o legislador, mesmo que seja representante da maioria do povo, não é nunca
onipotente, na medida em que o desrespeito das Garantias confere vigor às normas
não simplesmente injustas, mas igualmente inválidas, censuráveis e sancionáveis,
tanto politicamente quanto juridicamente.473
Garantias são compreendidas como técnicas de tutela dos Direitos
Fundamentais. São obrigações correspondentes aos direitos subjetivos, estes
entendidos como toda expectativa jurídica positiva (de prestação) ou negativa (de
lesões). São garantias primárias (ou substanciais) as obrigações ou proibições
correspondentes aos Direitos Subjetivos garantidos e garantias secundárias (ou
jurisdicionais) as obrigações dos órgãos judiciais de aplicar a sanção (em razão de
atos ilícitos) ou de declarar a nulidade (devido a ato inválido) de atos que violem
direitos subjetivos e as garantias primárias a eles correspondentes.474
Dessa feita, Ferrajoli oferece elementos que permitem compreender o que
são limites dos poderes públicos. O primeiro elemento consiste na necessidade da
esfera do indecidível estar prevista em constituições rígidas, para não ser
considerada tão somente uma categoria filosófico-política. O segundo elemento diz
que a esfera do indecidível representa não somente aquilo que não pode ser
decidido, mas também aquilo que não se pode deixar de decidir. Pelo terceiro
elemento, Ferrajoli defende que a esfera do indecidível se aplica tanto aos poderes
públicos quanto aos poderes privados, ao Estado e também ao mercado.475
No quarto e último elemento, é feita uma redefinição do modelo clássico
472
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 793.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 793.
474
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 60-64.
475
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 102-103.
473
133
de separação dos poderes. A crítica garantista baseia-se na distinção entre a “esfera
discricional da política” e “esfera vinculada” à lei. A primeira se refere às funções e
instituições de governo e a segunda às funções e instituições de garantia. Portanto,
para o Garantismo, as funções administrativas de governo (funções diplomáticas, de
segurança pública ou de política fiscal) e as funções administrativas de garantia
(educação, saúde, seguridade social) estão todas incluídas de forma inadequada
dentro das atribuições do poder político executivo. Essa divisão de poderes, que
remonta à teoria desenvolvida por Montesquieu,476 é inadequada para dar conta da
complexidade da esfera pública das democracias contemporâneas, haja vista que,
no plano descritivo, todos os sistemas parlamentaristas demonstraram que o
governo obtém a confiança do parlamento, transformando a relação do executivo e
legislativo em coparticipação e não em separação. Em um plano axiológico, nem
todas as funções designadas à esfera pública estão classificadas dentro da proposta
montesquiana, na medida em que grande parte das funções administrativas,
oriundas do estado social, não são funções de governo, mas sim de garantia, que
requerem independência e inexistência de controle do poder executivo, que deve se
limitar às funções de governo.477
A divisão de poderes proposta pela teoria garantista permite a diversidade
de suas fontes de legitimação. A legitimação das funções e instituições de governo
(legislativo, atividades de governo), que têm suas investiduras pelo voto e eleição
popular, está ligada com a esfera do decidível. Por sua vez, a legitimação das
funções e instituições de garantia (órgãos de aplicação da lei – funções e instituições
judiciais e administrativas) é relacionada com a esfera do indecidível e advém
somente da lei que estão obrigados a aplicar em funções de garantia dos direitos
fundamentais.478
Como consequência, os poderes ficam divididos entre “poderes de
disposição, produção e inovação jurídicas” e “poderes de cognição”, visto que
476
O filósofo Barão de Montesquieu (1689-1755) nasceu em La Brède, França, onde viveu. Sua
principal obra foi Espirito das Leis, que traz sua teoria mais conhecida acerca da separação dos
poderes. WEHLING, Arno. Montesquieu, Barão de. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionário
de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora da Unisinos. p. 585-588.
477
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 104-106.
478
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 106.
134
possuem origens de legitimação diversas. Se, por um lado, os primeiros
(relacionados às funções de governo) possuem legitimação oriunda do consenso
popular, por outro lado, os segundos (ligados às funções de garantias) são
legitimados em razão da aplicação da lei na esfera administrativa ou judicial.
Conquanto os detentores dos poderes políticos tenham legitimidade para produzir e
inovar o direito, devem exercê-los sem adentrar na esfera do indecidível, em
conformidade com a rigidez constitucional.479 Percebe-se, portanto, que assim como
as funções e instituições de garantia devem respeitar a esfera do indecidível,
igualmente as funções e instituições de governo não possuem legitimidade para
interferir nesse Limite ao Exercício do Poder.
Ferrajoli ensina que os Direitos Fundamentais constituem a esfera do
indecidível, seja na aplicação, seja na criação da norma e não há como dispor dos
tais direitos:
De forma distinta a las cuestiones pertenecientes a la que he llamado
<<esfera de lo decidible>>, los derechos fundamentales están sustraídos
a la esfera de la decisión política y pertenecen a la que he llamado
<<esfera de lo no decidible (qué sí o qué no)>>. Ésta es por tanto su
característica específica: tales derechos son establecidos en las
constituciones como límites y vínculos a la mayoría justamente porque
están siempre – de los derechos de libertad a los derechos sociales –
contra las contingentes mayorías.480
Ao pertencerem à esfera do indecidível, no modelo de Estado de Direito
adotado pelo Garantismo, baseado da Democracia Substancial, os Direitos
Fundamentais são indisponíveis e inalienáveis, ativa e passivamente, não podendo
ser abolidos, reduzidos ou não efetivados por nenhuma maioria, nem sequer por
uma unanimidade, sob pena do exercício do poder se tornar ilegítimo.481 Essa
afirmação do Garantismo Jurídico encontra respaldo na Constituição brasileira
promulgada em 1988, tendo em vista que, no seu artigo 60,§ 4º, inciso IV,482 os
479
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 107.
FERRAJOLI, Luigi. Democracia constitucional, p. 55.
481
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias, p. 23-24.
482
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...].
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
[...]. IV - os direitos e garantias individuais.”
480
135
direitos e as garantias fundamentais são previstos como cláusulas pétreas,
insusceptíveis de serem objeto de deliberação pelos detentores do poder por
proposta de emenda constitucional.483
Os limites ao exercício do poder, situados pelo Garantismo Jurídico, na
vigente do Estado Democrático de Direito, devem ser respeitados também pela
legislação produzida anteriormente a promulgação da atual Constituição, como é o
caso da Lei 6.683/79. A única forma desse diploma legal ser recepcionado pelo
Estado Democrático de Direito, consiste em sedimentar a Interpretação conforme a
Constituição de que Anistia não é concedida aos militares, mas somente aos
integrantes da oposição. Caso contrário, tendo em vista que a Autoanistia viola
Direitos Fundamentais, que constituem limites à Validade Substancial da norma
jurídica, o Estado Democrático de Direito impõe o reconhecimento da invalidade da
Lei de Anistia.
483
SCHINCARIOL, Rafael L. F. da C. Estado de direito e neoliberalismo, p. 43.
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Ditadura Militar brasileira teve origem, sobretudo, na política externa dos
Estados Unidos da América para países da América Latina. Sob a influência da
Doutrina da Segurança Nacional, pela qual os interesses da Nação eram
considerados acima de todos e de tudo, sobrepondo o fim ao meio, o discurso de
combate ao crescimento do comunismo, no Continente, foi utilizado para garantir o
capitalismo como modo de produção hegemônico. Mediante o uso do discurso da
existência de um conflito interno, os militares destituíram o então presidente João
Goulart do poder, em 1964, pelo uso da força, e iniciaram o período da Ditadura
Militar. Os integrantes da oposição ou simplesmente quem discordasse desse
regime ditatorial foram duramente reprimidos pelos militares. Os atos de violência
praticados contra os “inimigos” do Governo foram iniciados desde o Golpe Militar de
1964, contudo, com advento do AI-5, a repressão atingiu seu mais alto grau, no
período histórico que passou a ser conhecido como “anos de chumbo”.
Perseguições, prisões, torturas, assassinatos e práticas de desaparecimentos
forçados foram os principais meios violentos utilizados para reprimir os opositores.
Os militares demonstraram sua força por meio de ataques, generalizados ou
sistemáticos, contra a população civil, com a ciência dessas características por
quem as praticou, configurando Crimes de Lesa-Humanidade.
A ocorrência de atos de violência pelos agentes do Estado acontece com
o respaldo da Legalidade Autoritária. Houve a alteração do direito, e os tribunais
militares foram utilizados para dar aspecto de “legalidade” à repressão. Como meio
de opressão, os suspeitos eram processados, com base em dispositivos legais
antidemocráticos, e eram condenados sem o respeito a Direitos Fundamentais. O
apoio recebido do Judiciário, pelos militares, enaltece a crueldade dos atos
praticados contra a oposição, pois os tribunais desempenhavam com eficiência a
repressão, portanto, a violência não era o único meio disponível para intimidar quem
discordasse do Regime Militar.
Diante da pressão pela abertura política do país, no final da década de
setenta, ainda com o monopólio do uso da força, o Regime Militar utiliza o
137
instrumento legal da Autoanistia, para impedir que aqueles que colaboraram com a
Ditadura fossem responsabilizados pessoalmente pelos crimes cometidos. A
inserção do benefício, na Lei nº 6.683/79, deu-se por meio de um texto dúbio, que
permite a camuflagem da Anistia extensiva aos agentes da repressão. Não houve
interesse dos militares em inserir, claramente, a Autoanistia no texto legal, a fim de
não serem reconhecidos os crimes de Lesa-Humanidade cometidos contra a
oposição. O Regime Militar apoderou-se da reivindicação da população civil por uma
Anistia ampla, geral e irrestrita, para os atos de oposição, e produziu a Lei nº
6.683/79, prevendo a irresponsabilidade penal para os dois lados, opositores e
repressores, como se fosse oriunda de um acordo político. Esse benefício legal
concedido de forma controlada pelos militares, significou um avanço para os
movimentos democráticos, sem, entretanto, representar uma derrota para os
golpistas.
Vislumbra-se que um regime autoritário, na iminência de sua saída do
poder, porém ainda com o monopólio do uso da força, tente criar um mecanismo
legal que inocente seus apoiadores de todos os crimes praticados contra o grupo
político adversário. Além disso, os ditadores tendem a continuar exercendo pressão
política, por ameaças e pelo discurso da reconciliação nacional, para que o novo
regime político mantenha as garantias de impunidade. Cabe ao governo
democrático, que suceder a um período de exceção, impedir que os apoiadores do
regime ditatorial continuem dispondo de força política para inviabilizar a
responsabilização criminal pelos delitos praticados. Nesse estágio da transição,
encontra-se o caso brasileiro, pois a consolidação do Estado Democrático de Direito,
trazido pela Constituição de 1988, veda que o antigo Regime Militar continue
dispondo de força para manter a Validade da Anistia concedida aos militares,
embora prevaleça, atualmente, nos tribunais nacionais, o entendimento em sentido
oposto.
A Autoanistia dos agentes da repressão não se originou de um acordo
político entre os dois lados que estavam em conflito. De um lado, estavam agentes
de um golpe de Estado, que dispunham do monopólio da força e que haviam
derrubado um governo eleito democraticamente. De outro lado, existiam cidadãos
138
insurgentes, os quais foram vítimas de violenta repressão e violações de Direitos
Fundamentais. A ocorrência da Guerrilha do Araguaia é um exemplo marcante da
desproporcionalidade de forças, haja vista que os guerrilheiros, em contingente
significativamente inferior, foram massacrados em uma típica operação de guerra
promovida pelas forças armadas. A diferença de forças entre os grupos políticos
envolvidos, junto com a inexistente representatividade da oposição livre no
Congresso Nacional, em 1979, afasta a ocorrência de uma Anistia oriunda de um
acordo político. A Lei nº 6.683/79 foi produzida, sobretudo, para atender aos
interesses do governo militar, de manutenção da impunidade no novo regime
político. Atualmente, em demonstração de força política dos apoiadores da Ditatura,
a tese da Anistia, oriunda de um acordo político, ainda predomina nos tribunais
brasileiros, sendo utilizada como principal fundamento de legitimidade da Lei nº
6.683/79, no julgamento da Ação de Descumprimento Fundamental nº 153, pelo
Supremo
Tribunal
Federal.
Todavia,
conforme
o
entendimento
da
Corte
Interamericana de Direitos Humanos, não importa se a mencionada Lei prevê uma
Anistia bilateral ou uma Autoanistia que, por desrespeitar Direitos Fundamentais,
carece de efeitos jurídicos.
A implementação dos mecanismos de Justiça de Transição passa a ser
importante para o Estado Democrático de Direito lidar com os débitos autoritários.
Na passagem do regime ditatorial para a Democracia, a responsabilização criminal
dos militares, envolvidos em crimes de Lesa-Humanidade, tem sido a medida de
justiça transicional que encontra maior dificuldade de sua ocorrência no Brasil. A Lei
nº 6.683/79 continua como grande empecilho para a efetividade dos Direito à
Verdade e, especialmente, à Justiça, daqueles que sofreram abusos durante a
ocorrência do Regime Militar. A utilização do Poder Judiciário, especialmente na
esfera criminal, exerce importante papel na reafirmação pública de normas e valores
democráticos, e suas violações resultam na imposição de sanções.
Ao prever que a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado
Democrático de Direito, a Constituição, promulgada em 1988, alterou sensivelmente
o modo de exercício do poder público no país, impondo limites rígidos para os atos
de governo. Se antes o exercício do poder era ilimitado, agora os detentores do
139
poder devem respeitar os termos da Constituição vigente. O aporte teórico do
Garantismo Jurídico permite definir a limitação ao exercício do poder trazida pelo
Estado de Direito, que somente é Democrático se a Validade da norma jurídica
respeitar os procedimento e conteúdos constitucionalmente previstos. Ao sustentar
que existe uma parcela de poder que é indecidível pela maioria, ou seja, que não é
lícito decidir e que não é lícito deixar de decidir, o Garantismo oferece limites ao
poder, inclusive para a maioria, para que a minoria seja respeitada. Tendo em vista
que os Direitos Fundamentais legitimam o Estado de Direito, caso não respeitados
os limites constitucionais, o exercício do poder passa a ser ilegítimo. Dessa forma, a
violação dos Direitos Fundamentais retira a legitimidade dos atos de poder
produzidos pelos governantes da Ditadura Militar. Sob o prisma do Estado de
Democrático de Direito, há ilegitimidade da suposta maioria política, de 1979, para
conceder Anistia aos agentes da repressão, pois os governantes não dispõem de
poder para impedir que a minoria, vítima de Crimes de Lesa-Humanidade, busque a
efetividade do Direito de acesso à Justiça, no judiciário. Desprovida de legitimidade
igualmente foi a decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF nº
153, que na vigência da Carta Magna, de 1988, reconheceu ser constitucional a Lei
nº 6.683/79, por ter, dentre outros argumentos, sido oriunda do alegado acordo
político. O Poder Judiciário, de 2010, na ótica garantista, extrapola seus limites
constitucionais ao enfraquecer direitos presentes na esfera do indecidível, com o
reconhecimento da Validade Autoanistia dos militares. Ao adotar essa posição
jurídica, o STF desrespeita a universalidade, uma das caraterísticas essenciais dos
Direitos Fundamentais. A discricionariedade utilizada pela maioria dos ministros da
Suprema Corte brasileira não encontra respaldo na atual Constituição, que não
permite ao juiz interpretar uma norma jurídica, diminuindo preceitos constitucionais,
em razão de um entendimento de como os fatos aconteceram.
Dessa forma, conclui-se que os limites substanciais ao exercício do poder
trazidos pela Constituição de 1988, que possuem como seu conteúdo os Direitos
Fundamentais,
não
só
não
impedem,
mas
determinam
que
ocorra
a
responsabilização criminal dos agentes de Estado que cometeram graves violações
a Direitos Fundamentais, durante o período da Ditadura Militar. Por violar os Direitos
Fundamentais, imperioso que a Lei nº 6.683/79 tenha sua invalidade Substancial
140
reconhecida. Esse diploma legal somente é recepcionado pela Carta Magna, se
houver sua Interpretação conforme a Constituição, no sentido de não se estender os
efeitos da Anistia aos militares, mantendo-se a Validade desse benefício legal
somente aos integrantes da oposição, conforme requereu a OAB na petição inicial
da ADPF nº 153.
Identifica-se, no mencionado julgamento, realizado pelo STF, a marcante
utilização de teses que pretendem prolongar os efeitos da Autoanistia também na
vigência do regime democrático. Ademais da sustentada legitimidade da Lei nº
6.683/79, porque teria sido oriunda de um pacto político, parte dos integrantes da
Corte defendeu a ocorrência da prescrição dos delitos, a irretroatividade penal, a
impossibilidade de revisão da Lei de Anistia, pelo Poder Judiciário, e a
constitucionalização da Anistia por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 1985.
Todas essas alegações são questões jurídicas que possuem o intuito de manter a
impunidade dos delitos praticados pelos militares.
Além do entendimento adotado pelo STF violar o direito nacional, na
esfera internacional, coloca a República Federativa do Brasil como um Estado que
não garante a efetividade dos Direitos Humanos, ou seja, como um violador desses
direitos. Ciente de que o Estado brasileiro adotou um entendimento contrário ao
cumprimento de obrigações internacionais assumidas de respeitar e efetivar tais
direitos, a Corte Interamericana de Direito Humanos, realizando controle de
convencionalidade da Lei de Anistia, condenou o Estado-Membro Brasil, no
julgamento do caso Gomes Lund e outros versus Brasil. Em razão da ocorrência de
Crimes de Lesa-Humanidade, a CIDH determinou que o Brasil proceda a
investigação e a punição dos responsáveis. Chama a atenção que a Corte
Interamericana estendeu os efeitos de sua decisão para proibir que nenhuma outra
disposição análoga à Anistia (prescrição, irretroatividade penal, coisa julgada, ne bis
idem, dentre outros) seja válida para eximir a obrigação de investigar e punir
penalmente os militares.
Defende-se que o entendimento da CIDH, produzido no âmbito
internacional, tenha força para alterar a intepretação realizada no STF (no âmbito
interno), sobre a Validade da Lei de Anistia brasileira, passando a ser uma obrigação
141
estatal a responsabilização criminal dos militares, para colocar um ponto final sobre
esse relevante efeito do Regime Militar, que se estende até os dias atuais,
fortalecendo os alicerces do recente Estado Democrático de Direito, criado em 1988.
A modificação de um entendimento no direito interno brasileiro, a partir de um
julgamento realizado na esfera internacional, cria uma importante Garantia às
pessoas que vivem no território brasileiro, de respeito aos seus Direitos Humanos,
quando graves violações são cometidas por atos do próprio Estado nacional. Uma
solução tomada no âmbito internacional, afasta a possibilidade de que o Estado
nacional seja o acusado de desrespeitar Direitos Humanos e, ao mesmo tempo,
tenha a responsabilidade de julgar esses fatos.
A
presente
dissertação
aponta,
portanto,
que
a
questão
da
Responsabilidade Criminal dos Militares, por delitos cometidos durante a Ditadura
Militar brasileira, não versa unicamente sobre a divergência de entendimentos entre
um tribunal nacional e um internacional. A posição adotada pela maioria dos
membros do STF não encontra fulcro no Estado Democrático de Direito. Se não
existe respeito à Constituição de 1988, pela Lei nº 6.683/79, há a necessidade do
Brasil alterar seu entendimento jurisdicional e determinar a investigação e punição
do militares por seus atos.
Resta, como ato estimulador desta Dissertação, verificar como outros
tribunais internacionais julgam leis de Anistia produzidas por países que, como o
Brasil, vivenciaram a transição de um regime ditatorial para uma Democracia. Esse
objeto de estudo se justifica, haja vista que, em outros países, golpistas de Estado
também buscaram ficar impunes por seus atos de violência praticados contra os
opositores, oferecendo importante auxílio para a solução do caso brasileiro.
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o garantismo jurídico e a responsabilização criminal de