Algumas Verdades sobre a Comissão da Verdade Cecilia Maria Bouças Coimbra “É preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer.” (Carlos Marighella, Rondó da Liberdade). Se acompanharmos as esparsas notícias veiculadas pelos meios de comunicação hegemônicos em nosso país, pouco, muito pouco saberemos do que se trata a Comissão Nacional da Verdade, sancionada em novembro de 2011 pela presidente da República. Essas pequenas notícias midiáticas vêm produzindo determinados modos hegemônicos de ver, perceber, sentir, pensar e agir sobre a história recente do Brasil. Ou seja, apenas parcelas mais conservadoras, algumas saudosistas da ditadura, empenham-se em criticar e falar da inconstitucionalidade e ilegalidade dessa lei. Os demais, grandes segmentos médios da intelectualidade, os governos federal e estaduais, dentre vários outros, apoiam essa Comissão. Assistimos hoje nos grandes meios de comunicação a argumentações sobre as “vantagens” de ser esta uma Comissão que não tem poder para remeter à justiça provas para a responsabilização dos crimes cometidos durante a ditadura civil-militar, pois isso poderá estimular alguns agentes da repressão a falar. E por isso mesmo, tem poder para tornar sigilosas as informações e depoimentos, se assim entender necessário. O que nesse pequeno texto pretende-se mostrar é que há uma outra posição que vem se afirmando, forjando outros modos de pensar uma Comissão da Verdade diferente dessa Comissão do possível, dessa Comissão consentida. Para tal, há que pensar, mesmo que sucintamente, sobre a recente história de nosso país. Desde a sanção da Lei da Anistia, em 1979, ainda em pleno período de ditadura, já se questionava a interpretação hegemônica que a ela se deu. Ou seja, pelos chamados “crimes conexos”, todos aqueles que cometeram atos contra a humanidade (sequestros, prisões ilegais, torturas, assassinatos e ocultação de restos mortais) estariam anistiados. Alguns movimentos sociais nunca aceitaram tal interpretação e grandes juristas, como os Drs. Fábio Konder Comparato e Hélio Bicudo, já apontaram, brilhante e competentemente, que não há conexidade entre os atos praticados pelos grupos oposicionistas ao regime militar e o terrorismo de Estado que à época se implantou em nosso país. Apesar disso, a perversa interpretação que ficou da Lei da Anistia é a de que os torturadores estariam anistiados. Sabemos que, desde a Anistia até os dias de hoje, acordos foram feitos entre as forças políticas que respaldaram e apoiaram aquele regime de terror, e os diferentes governos civis que se sucederam após 1985. Esses mesmo acordos — entre forças civis e militares — continuam dos mais diversos modos presentes na história política do Brasil, vigorando até os dias de hoje. Impõem, com isso, certa visão da história, mantendo e fortalecendo a chamada “história oficial”: a história narrada pelos “vencedores” que retira de cena as inúmeras memórias oposicionistas daquele tempo. Nesse cenário de acordos e concessões mútuas, em 1995, foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso a Lei 9.140, que criou uma Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e concedeu aos desaparecidos um atestado de óbito. Ou seja, apenas os declarou mortos, sem, no entanto, esclarecer onde, quando e como ocorreram tais crimes e quem os cometeu. Em realidade, apenas um atestado de “morte presumida”. As provas de que esses mortos e desaparecidos estavam sob a guarda do Estado e/ou foram assassinados por agentes desse mesmo Estado deveriam ser demonstradas por seus próprios familiares. Com isso, de modo perverso, colocou-se o ônus das provas nas mãos dos familiares: os arquivos da ditadura continuaram trancados a sete chaves. Por pressão de vários movimentos, criou-se, no início dos anos 2000, em alguns estados brasileiros, Comissões de Reparação Econômica para familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos. Seguindo os acordos já estabelecidos, também essas comissões estaduais de reparação exigiram que os interessados provassem sua prisão, tortura, morte ou desaparecimento, visto os arquivos continuarem inacessíveis. O próprio conceito de reparação, enunciado pela ONU e aprovado em 2005, aponta para a necessária investigação, averiguação, publicação e responsabilização desses atos criminosos e para “medidas que possam impedir, e mesmo garantir, a não repetição de tais violações”. O Brasil, de todos os países latino-americanos que passaram por recentes ditaduras, é o mais atrasado nesse processo de reparação. Pela Lei 9.140/95 de FHC, apenas se fez a reparação econômica, não se investigando, e muito menos publicando e responsabilizando qualquer agente do Estado violador à época. O Brasil mal iniciou esse processo de reparação. Entendemos que a compensação econômica é um direito, mas só tem sentido para a afirmação de algo novo em nossas vidas se for parte integrante e o final de um processo. Sem isso, as reparações meramente financeiras se transformam — e é o que tem ocorrido no Brasil — em um competente “cala-boca”, em uma proposta de esquecimento e silenciamento, em especial para os atingidos e para a sociedade em geral. Atravessada por todas essas tensões e acordos políticos firmados, a Comissão Nacional da Verdade foi votada como “aquilo que é o possível hoje”, como o que nos permitem e consentem fazer. Há que lembrar que, em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA condenou o Estado brasileiro a investigar, esclarecer e responsabilizar seus agentes que participaram do desaparecimento de mais de 70 opositores políticos na repressão contra a Guerrilha do Araguaia1. Estendeu essa sentença aos cerca de 500 mortos e desaparecidos políticos, afirmando que a interpretação oficial da Lei da Anistia não é empecilho para tais atos reparatórios. O Brasil deveria responder à OEA no prazo de um ano. Até hoje nada foi feito. E é no bojo de tais questões que foi votada a “toque de caixa”, em regime de urgência urgentíssima, a Comissão consentida. 1 Movimento de resistência ao regime militar (1966-1974) na região do Bico do Papagaio entre o Pará, Maranhão e Goiás, organizado por militantes do PCdoB. Essa proposta de Comissão, em sua 2ª versão2, é bastante limitada. Já no próprio texto do Projeto de Lei estreitava-se a margem de atuação da Comissão, dando-lhe poderes legais diminutos, fixando um pequeno número de integrantes escolhidos diretamente pela Presidente da República, não tendo orçamento próprio, com duração de apenas dois anos e desviando o foco de sua atenção ao fixar em 42 anos o período a ser investigado (de 1946 a 1988), minimizando na história do Brasil os anos de ditadura civil-militar (1964 a 1985). Além disso, impede-se que a Comissão investigue as responsabilidades pelas atrocidades cometidas e envie as devidas conclusões às autoridades competentes para que essas promovam a responsabilização dos criminosos. E, para culminar, a publicização de suas conclusões vai depender da própria Comissão. Ou seja, continuamos guardando sigilo, produzindo segredo sobre aquele período de terror. Continuamos produzindo esquecimento e silenciamento. Os crimes cometidos pela ditadura civil-militar que controlou o Brasil por mais de 20 anos permaneceram, em parte, desconhecidos e os documentos que comprovam essas atrocidades continuam em segredo, assim como os testemunhos daqueles que cometeram tais crimes. Queremos sim uma Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça onde todos os arquivos da ditadura sejam abertos e publicados; onde o período de terrorismo de Estado (1964-1985) seja efetivamente investigado, esclarecido e publicado. Queremos, sim, que nossa história recente possa ser conhecida por todos, e que os agentes do Estado terrorista possam ser execrados socialmente e responsabilizados por seus bárbaros atos. Há muito ainda para dizer, como afirmava Marighella, e há que não ter medo de dizê-lo. Há que não entrar na chantagem do “possível” em nome de uma pseudo-governabilidade democrática. 2 A 1ª versão da Comissão foi apresentada no bojo do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, em dezembro de 2009. Houve forte pressão dos comandantes militares e do Ministro da Defesa à época, Nelson Jobim, que colocaram seus cargos à disposição por serem contrários à Comissão. O Executivo cedeu à chantagem e, em maio de 2010, anunciou a 2ª versão do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, onde a Comissão da Verdade foi totalmente modificada. Forças conservadoras também estiveram presentes questionando vários outros pontos desse 3º Plano. Saíram vitoriosas e o presidente à época, Luiz Inácio Lula da Silva, voltou atrás em várias questões como a do aborto, das ocupações rurais, da liberdade de imprensa, entre outras.