A IMPORTÂNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR PARA A SOCIEDADE BRASILEIRA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A SUA ELABORAÇÃO, APLICAÇÃO E ATUALIZAÇÃO1 Chiara Antonia Spadaccini de Teffé* Sumário: 1. A proteção jurídica dos consumidores; 2. A tutela jurídica do consumidor: seu status constitucional e a elaboração de um Código próprio; 3. As mudanças ocorridas na sociedade de consumo brasileira após 1990; 4. A atualização do Código de Defesa do Consumidor; 4.1. A proposta da comissão de atualização: o reforço tridimensional do CDC; 5. Considerações finais; Referências Bibliográficas. 1 Paper apresentado na XIII Jornada Brasilcon de Atualização do Código de Defesa do Consumidor. Dias 3 e 4 de outubro de 2013 – Rio de Janeiro. * Estudante de graduação cursando o 10º período na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de Iniciação Científica na FAPERJ (2012-2013). Ex-Bolsista de Iniciação Científica do CNPQ (2011-2012). E-mail: [email protected] 1 1. A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS CONSUMIDORES A última metade do século XX foi marcada pela forte atuação de movimentos sociais que buscavam a positivação e a real promoção dos direitos de terceira dimensão, tendo como base o princípio da igualdade em seu viés material2. Neste sentido, a partir da década de 60, percebeu-se a importância de se conferir uma tutela especial à figura do consumidor e inserir o Direito do Consumidor no elenco histórico dos Direitos Humanos. Destacam-se importantes atuações como a criação de associações de consumidores nos Estados Unidos, a articulação de discursos inflamados sobre o Direito do Consumidor e o seu papel no mercado, como aquele proferido em 1962 pelo presidente norte-americano John F. Kennedy, e a elaboração de documentos internacionais que visavam à proteção daquele que se encontra vulnerável na relação de consumo. Neste cenário, o consumidor passou a ser compreendido como um sujeito de direitos que deveria ter os seus interesses individuais e coletivos reconhecidos e tutelados, tanto em nível nacional quanto internacional. Tal destaque se deu, em grande parte, em razão de uma efetiva preocupação, nas sociedades capitalistas industrializadas, com os riscos e danos que o progresso científico e o desenvolvimento tecnológico poderiam gerar para a população. Desta forma, este ônus deveria ser compensado por meio de leis de caráter tutelar e subjetivamente especial3, voltadas a trazer um maior equilíbrio fático e jurídico às relações consumeristas. Seguindo este pensamento, a Assembléia Geral da ONU editou a resolução n. 39/248, em 1985, que versava sobre os direitos do consumidor. Tinha-se como objetivo fornecer um conjunto de diretrizes gerais desenhadas, especialmente, para as necessidades dos países em desenvolvimento. O texto ressaltava a necessidade de os governos desenvolverem sistemas e fortalecerem as suas políticas de proteção ao consumidor, visando assegurar a sua 2 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.569. No que concerne aos direitos de terceira geração, o renomado jurista leciona que: “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo, ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já o enumeram com familiaridade, assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.” 3 BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA; Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2º Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2009. Pág. 26. 2 saude e segurança, a promoção de seus interesses econômicos, o fornecimento adequado das informações aos consumidores, a educação para o consumo, a disponibilização de mecanismos para uma efetiva reparação aos consumidores e a liberdade de se formar grupos ou organizações para a defesa dos interesses dos consumidores nos processos que lhes dizem respeito.4 Da leitura da referida resolução, percebe-se a sua grande influência tanto no texto da Constituição da República de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor brasileiro, quanto na doutrina, passando o Direito do Consumidor a ser considerado um ramo autônomo, entre o Direito Privado e o Público, com bibliografia própria e pesquisadores cada vez mais especializados. Observa-se que, não obstante a passagem do tempo, seus destaques ainda são atuais para a efetiva tutela do consumidor, ainda que, hoje, possam ser ampliados e atualizados. Consagrou-se, assim, em nível internacional, o tratamento do Direito do Consumidor como um Direito Social e Econômico, um Direito de igualdade material do mais fraco. 4 De acordo com a resolução, os princípios gerais da resolução eram: “2. Governments should develop, strengthen or maintain a strong consumer protection policy, taking into account the guidelines set out below. In so doing, each Government must set its own priorities for the protection of consumers in accordance with the economic and social circumstances of the country, and the needs of its population, and bearing in mind the costs and benefits of proposed measures. 3. The legitimate needs which the guidelines are intended to meet are the following: (a) The protection of consumers from hazards to their health and safety; (b)The promotion and protection of the economic interests of consumers; (c) Access of consumers to adequate information to enable them to make informed choices according to individual wishes and needs; (d) Consumer education; (e) Availability of effective consumer redress; (f) Freedom to form consumer and other relevant groups or organizations and the opportunity of such organizations to present their views in decision-making processes affecting them. 4. Governments should provide or maintain adequate infrastructure to develop, implement and monitor consumer protection policies. Special care should be taken to ensure that measures for consumer protection are implemented for the benefit of all sectors of the population, particularly the rural population. 5. All enterprises should obey the relevant laws and regulations of the countries in which they do business. They should also conform to the appropriate provisions of international standards for consumer protection to which the competent authorities of the country in question have agreed. (Hereinafter references to international standards in the guidelines should be viewed in the context of this paragraph.) 6. The potential positive role of universities and public and private enterprises in research should be considered when developing consumer protection policies.” Disponível em:<http://www.un.org/documents/ga/res/39/a39r248.htm> Acesso em: 16 de setembro de 2013. 3 2. A TUTELA JURÍDICA DO CONSUMIDOR: SEU STATUS CONSTITUCIONAL E A ELABORAÇÃO DE UM CÓDIGO PRÓPRIO De acordo com o ministro Herman Benjamin5, no Brasil, somente nos anos 70, os movimentos em prol do Direito do Consumidor começaram a repercutir intensamente, já que, antes desse período, a conjuntura social e econômica ainda não estaria desenvolvida o suficiente para propiciar o surgimento do “consumerismo”.6 O jurista firma que o contexto teria começado a mudar com o chamado "milagre econômico", época em que houve uma elevada taxa de crescimento econômico, o aumento da urbanização e o início da modernização de produtos e serviços. São marcas deste momento iniciativas legislativas, como o PL 70-1/1971 sobre a criação do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, a criação de associações em cidades como Curitiba e Porto Alegre, encontros temáticos e órgãos especializados na defesa deste novo sujeito de direitos, podendo se mencionar aqui o PROCON de São Paulo, o primeiro órgão de defesa do consumidor no país, criado em 1978.7 Esta maior preocupação com a tutela do consumidor repercutiu diretamente na Constituição da República de 1988 – “origem da codificação tutelar dos consumidores no Brasil”8 – sendo a proteção ao consumidor positivada como um Direito Fundamental (art. 5º, 5 “A repressão à qualquer forma de associativismo, no período do regime militar e em ditaduras anteriores, deixou, portanto, reflexos permanentes na capacidade de organização e de luta dos consumidores pelos seus direitos, mesmo os mais elementares. Daí que as conquistas dos consumidores, hoje estampadas no texto da Constituição de 1988 e no próprio CDC, decorrem muito menos do trabalho de um lobby forte, permanente e efetivo por parte de suas organizações (ao contrário do que ocorreu com a questão ambiental) do que de uma percepção quase que espontânea dos legisladores da problemática insustentável do mercado de consumo brasileiro e de uma certa vontade de introduzir no sistema jurídico tudo aquilo que o regime anterior negava.” (BENJAMIN, Herman V. O código brasileiro de proteção ao consumidor. Artigo disponível em: <http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32354-38891-1-PB.pdf> Acesso em 19 de setembro de 2013.) 6 Vale ressaltar que, no Brasil, o início da preocupação com as relações de consumo surgiu a partir das décadas de 40 e 60, quando foram editadas algumas leis sobre o assunto, dentre as quais pode-se destacar a lei de economia popular (Lei 1.221/51), a Lei Delegada n.º 4/62 e a Constituição Federal de 1967, com a emenda n.º 1 de 1969, que cita a defesa do consumidor. Todavia, apenas mais tarde, passou-se a se compreender o consumidor como um sujeito de direitos e a necessidade da elaboração de um direito especial para a sua tutela, dentro do direito privado. 7 AZEVEDO, Fernando Costa de; KLEE, Antonia Espindola Longoni. Considerações sobre a proteção dos consumidores no comércio eletrônico e o atual processo de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 22, n. 85, p. 215-216. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, jan./fev. 2013. OLIVEIRA, Amanda Flávio de. O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – Histórico. Revista de Direito do Consumidor, v. 44, págs. 97-105. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, out.-dez. 2002. 8 BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA; Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2º Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2009. Pág. 30. 4 XXXII), o que, em razão de sua localização topográfica, coloca-lhe no rol das cláusulas pétreas. De acordo com o disposto pelo legislador, o Estado deverá promover a defesa do consumidor na forma da lei.9 Assim, este sujeito passou a ter a garantia e o direito à ação positiva por parte do Estado, o qual recebeu a obrigação de promover a defesa desse direito e impedir a intervenção de terceiros (particulares).10 Além dessa importante previsão, foi a defesa do consumidor consagrada como um princípio da ordem econômica (art. 170, V) limitador da iniciativa privada e da autonomia da vontade. Cláudia Lima Marques entende que essa opção do constituinte brasileiro evidenciaria a tendência da Hermenêutica Constitucional contemporânea em atribuir à Constituição da República a função de eixo central do sistema jurídico de Direito Privado. Segundo Fábio Konder Comparato, mesmo que na Carta, em outras oportunidades, apareçam disposições relativas à matéria do consumidor de forma mais específica, as duas normas acima referidas seriam responsáveis por definir o lugar da proteção do consumidor no sistema constitucional brasileiro: como Direito Fundamental, garantia e princípio.11 9 “O cidadão-consumidor, ou melhor, a pessoa-consumidor, se projeta na dimensão constitucional, de modo que, na hipótese de conflito entre o respectivo direito fundamental – sobretudo quando traduzido nas situações jurídicas existenciais – e as exigências de mercado livre, sua primazia se mostra fora de discussão.” MARTINS, Guilherme Magalhães. A defesa do consumidor como direito fundamental na ordem constitucional. In: MARTINS, Guilherme Magalhães (coord.). Temas de Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 6. 10 O ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ruy Rosado de Aguiar, em seu voto, lembra as lições do professor alemão Dieter Grimm que afirma que os direitos fundamentais não se prestam apenas à defesa do cidadão contra o Estado (efeito imediato), mas também protegem o indivíduo nas relações privadas, produzindo efeitos sobre terceiros (“drittewirkung”). Essa eficácia nas relações de direito privado se dá por meio da interpretação das normas legais, em especial das cláusulas gerais. (REsp 235.678, quarta turma, relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar, publicação em 14/02/2000) Em relação à eficácia privada ou horizontal dos direitos fundamentais, destaca o jurista Ingo Sarlet: “(...) também na esfera privada ocorrem situações de desigualdade geradas pelo exercício de um maior ou menor poder social, razão pela qual não podem ser toleradas discriminações ou agressões à liberdade individual que atentem contra o conteúdo em dignidade da pessoa humana dos direitos fundamentais, zelando-se, de qualquer modo, pelo equilíbrio entre estes valores e os princípios da autonomia privada e da liberdade negocial e geral, que, por sua vez, não podem ser completamente destruídos Ainda nesse contexto, sustentou-se, acertadamente, que em qualquer caso e independentemente do modo pelo qual se dá a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais (isto é, se de forma imediata ou mediata), se verifica, entre as normas constitucionais e o direito privado, não o estabelecimento de um abismo, mas uma relação pautada por um contínuo fluir, de tal sorte que, ao aplicar-se uma norma de direito privado, também se está a aplicar a própria Constituição” (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.p.399-401) 11 COMPARATO, Fábio Konder. A proteção ao consumidor: importante capítulo do direito econômico. Revista Forense, v.255, p.68. Rio de Janeiro: Ed. Forense, jul./set. 1977. Vale observar que, em outras oportunidades, aparecem na Constituição da República disposições relativas à matéria do consumidor, de forma mais específica, como no art. 24, inciso VIII, que estabelece que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre e responsabilidade por dano ao consumidor, no art. 150 §5º que prevê que a lei 5 Na Constituição de 1988, portanto, já é possível perceber a grande preocupação do legislador com a desigualdade entre os sujeitos envolvidos na relação de consumo, ao estabelecer um sistema coerente de normas e valores próprios para a defesa do consumidor. Entende-se, assim, que o mesmo visou assegurar dois importantes corolários do princípio da Dignidade da Pessoa Humana: a igualdade e a liberdade.12 Como incremento, ordenou que o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, deveria elaborar um Código de Defesa do Consumidor (art. 48, ADCT), que deveria pautar-se por valores diversos daqueles estabelecidos nas leis até então editadas, como o Código Civil de 1916 e o Código Comercial de 1850, levando em consideração o consumidor como um sujeito destinatário de proteção especial por expressa determinação constitucional. Iniciava-se aqui a reconstrução das bases do Direito Privado brasileiro, por meio do reconhecimento das relações especiais entre dois sujeitos diferentes, o consumidor e o fornecedor. 13 Antes da elaboração do CDC, o consumidor brasileiro não tinha a sua disposição um sistema de normas gerais construído especialmente para a regulação das relações de consumo. A proteção do consumidor era realizada, em regra, com base nas normas ultrapassadas do Código Civil de 1916 e do Direito Comercial, no campo da propriedade industrial, da concorrência desleal e da repressão ao abuso do poder econômico. 14 Felizmente, este cenário se modificou, quando, em virtude do mandamento constitucional, o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor deu a uma Comissão de Juristas15 do estado de São Paulo a incumbência de elaborar o anteprojeto de Código de Defesa do Consumidor. determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços, no art. 155, § 2º, VII, que prevê que em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á: a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto; b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele. 12 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: uma Leitura Civil Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Renovar, 4º tiragem, 2009. Pág. 327. Segundo a ilustre jurista, a dignidade encontrar-seia fundada em quatro substratos, estando corporificada no conjunto dos princípios da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade e da solidariedade. 13 MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2012. Págs. 149-150. 14 COMPARATO, Fábio Konder. A proteção do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, ano 20, v. 77, págs.30-31. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, jan.-mar./2011. 15 “Seus membros originais eram Ada Pellegrini Grinover (Coordenadora), Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe e Zelmo Denari. Logo após sua segunda reunião, Antônio Herman V. Benjamin foi a ela incorporado. Em seguida, quando se discutia a questão da responsabilidade civil objetiva do fornecedor, após a entrega do texto final do "Substitutivo Ministério Público — Secretaria de Defesa do Consumidor", foi convidado Nelson Nery Júnior, que, a partir daí, passou a fazer parte da Comissão. Finalmente, 6 O projeto de lei do CDC foi alvo de críticas tanto durante a sua elaboração, quanto após a sua entrada em vigor no ordenamento, principalmente por parte de empresários e alguns meios de comunicação em massa. Inicialmente, os principais argumentos apresentados pautavam-se: a) no caráter estatizante do projeto, caracterizado pela ausência de uma filosofia de defesa do consumidor calcada na realidade do mercado nacional, desprezando, assim, experiências bem sucedidas de auto-regulamentação; b) no seu caráter punitivo, em detrimento de medidas preventivas; c) na previsão da figura de um Estado paternalista, que tutelaria o consumidor como se ele fosse incapaz de realizar as suas próprias escolhas e de se defender, interferindo indevidamente nas relações privadas. Não obstante a relutância de alguns setores em aceitarem um texto que, além de próprio a um campo específico das relações sociais, possuía um caráter especialmente protetivo ao consumidor, em 1990, foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/1990). Nascia, assim, um microssistema jurídico construído e organizado justamente tendo como base a tutela de um sujeito previamente identificado: o consumidor. Segundo leciona o professor Adalberto Pasqualotto, a função do CDC seria “compensatória das desigualdades”, mas sem interferir na estrutura ou no tipo de relação jurídica16, assegurando o devido equilíbrio entre as partes. De início, o legislador tratou de expressar a importância da lei 8.078/1990, ao afirmar que “o código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social” (art. 1º, CDC). Ao longo do texto, houve uma ampla previsão de direitos e garantias tanto para o consumidor stricto sensu (art. 2º, CDC), quanto para os consumidores equiparados (art. 2º, par. único, art. 17 e art. 19, CDC), além de importantes numa última fase, após a apresentação do Projeto Alckmin, foram integrados à Comissão Marcelo Gomes Sodré e Mariângela Sarrubbo.” (BENJAMIN, Herman V. O código brasileiro de proteção ao consumidor. Pág.10-11. Artigo disponível em: <http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32354-38891-1-PB.pdf> Acesso em 19 de setembro de 2013.) 16 PASQUALOTTO, Adalberto. Dará a reforma ao Código de Defesa do Consumidor um sopro do vida?. Revista de Direito do Consumidor. Ano 20, vol.78, abr.-jul./2011. 7 previsões relativas à responsabilidade civil objetiva dos fornecedores17, à publicidade e à oferta18, aos contratos celebrados19, às cláusulas abusivas e à defesa processual coletiva20. Em relação às normas do CDC, leciona Cláudia Lima Marques: “Código de Defesa do Consumidor é uma lei de função social, traz normas de direito privado, mas de ordem pública (direito privado indisponível), e normas de direito público. (...) Mister é, pois, analisar o CDC como sistema, como contexto construído, codificado, organizado, de identificação do sujeito beneficiado. Como é um pequeno sistema, especial, subjetivamente, e geral, materialmente, utilizaremos aqui a expressão de Natalino Irti, microssistema, para o descrever.”21 Gustavo Tepedino faz uma importante observação, ao ponderar que os consumidores não constituiriam simplesmente uma classe privilegiada, em detrimento dos empresários, em 17 Entende-se que o legislador optou pela responsabilidade objetiva do fornecedor, visando adaptar o direito às necessidades da economia, distribuindo os riscos inerentes a um mercado de consumo massificado e globalizado, e reparar integralmente os danos gerados em face do consumidor, facilitando a sua reparação moral e material, uma vez que a responsabilidade no CDC independe de culpa do fornecedor. 18 O legislador também se preocupou com a regulação das práticas pré-contratuais que poderiam causar danos ao consumidor, modificar o seu comportamento (principalmente quando se trata de crianças e idosos) ou induzi-lo ao erro, fazendo com que o consumidor adquira produtos ou serviços equivocadamente ou sem a informação adequada. 19 O microssistema do CDC provocou uma verdadeira relativização dos princípios da teoria contratual clássica, pautados na autonomia da vontade e na força vinculante e obrigatória dos contratos, por meio de normas que orientam o interprete pela busca da justiça e do equilíbrio nas relações contratuais de consumo. Este Código concretiza, assim, o princípio da função social do contrato, “por meio do qual se condiciona a satisfação dos direitos/liberdade individuais dos contratantes à realização de interesses coletivos (ideia da solidariedade social orgânica, prevista na Constituição da República, art. 3º, I), pertencentes ao contexto em que estão inseridas essas relações jurídico-contratuais.” Além disso, estabeleceu importantes normas sobre a proteção contratual dos consumidores como a definição legal do contrato de adesão, a não obrigatoriedade do contrato caso não for dada a oportunidade do consumidor tomar conhecimento prévio do seu conteúdo ou se for redigido de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance, a regra de interpretação das cláusulas contratuais mais favorável ao consumidor, a vinculação dos fornecedores às obrigações assumidas em contratos preliminares, o direito de arrependimento nos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial, a proteção contra as cláusulas contratuais abusivas e a relação de complementariedade entre os prazos de garantia legal e contratual. (AZEVEDO, Fernando Costa de; KLEE, Antonia Espindola Longoni. Considerações sobre a proteção dos consumidores no comércio eletrônico e o atual processo de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 22, n. 85, p. 219-223. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, jan./fev. 2013. 20 Diante das transformações que vinham ocorrendo na tutela processual e da melhor compreensão dos conflitos de consumo, o legislador tratou de ampliar no CDC a proteção conferida aos direitos do consumidor, conforme a extensão dos interesses lesionados, se individualmente considerados ou em uma formação coletiva. Para tanto, desenvolveu um conjunto normativo que, em diálogo com a lei da ação civil pública (Lei n. 7.347/85), representa um verdadeiro microssistema de processo coletivo brasileiro. Diante do sucesso desta proposta, o movimento de atualização do CDC elaborou novas normas pertinentes às ações coletivas, visando a ampliação do uso desses mecanismos de acesso à justiça e a sua maior efetividade no trato das relações de consumo. 21 BENJAMIN, Antônio Herman; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA; Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 2º Edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2009. Pág. 47 8 verdade, o que estaria em jogo seria a tutela da pessoa humana, em uma particular situação de inferioridade, nas relações de consumo: O constituinte brasileiro não somente inclui a tutela dos consumidores no rol das garantias fundamentais, como empresa à sua proteção um caráter instrumental, ou seja, funcionaliza os interesses patrimoniais do consumidor à tutela de sua dignidade e aos valores existenciais. Trata-se, portanto, de tutelar a pessoa humana (considerada em uma particular situação de inferioridade em face do fornecedor) que se mostra vulnerável na relação contratual, mais do que proteger o consumidor como uma categoria ou classe privilegiada, em detrimento dos empresários. 22 De acordo com Daniel Sarmento, a maior intensidade na proteção ao Direito Fundamental em jogo decorre do grau de desigualdade fática entre os envolvidos. Desta forma, no Direito do Consumidor, que tem como ideia inicial a desigualdade fática entre as partes, deve ocorrer uma necessária vinculação aos Direitos Fundamentais, enquanto a argumentação ligada à autonomia da vontade dos contratantes deve ser atribuída uma menor importância. 23 Ultrapassadas algumas dificuldades em relação à aplicabilidade do CDC, após a sua entrada em vigor, como a extinção do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, a polêmica se esta seria uma norma autoaplicável ou se seria necessária a sua regulamentação e, por fim, qual seria o âmbito de aplicação do CDC, entende-se que o Código de Defesa do Consumidor teria promovido uma verdadeira reforma ética no Direito Privado brasileiro e ampliado vigorosamente os mecanismos de acesso à justiça pelos consumidores24, mudando os rumos das relações de consumo na sociedade brasileira.25 São marcas desta reforma o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor (vulnerabilidade técnica, jurídica, fática, 22 TEPEDINO, Gustavo. Os contratos de consumo no Brasil. In: Temas de Direito Civil. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.p.124. 23 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.261. 24 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. 25 “Foi exatamente a inserção de normas jurídicas sobre o mercado respeitantes à igualdade substancial, à vulnerabilidade (e sua taxonomia: fática, técnica, jurídica, política, ambiental, tributária, econômica e social), à confiança nas relações de tráfego, ao equilíbrio nos contratos, à vedação das práticas abusivas, ao combate à concorrência desleal e a ampla exigência do dever de informação que situou em maior tutela o cidadão brasileiro, prenhe de necessidades inesgotáveis no campo jurídico e no setor econômico. (MARTINS, Fernando Rodrigues; FERREIRA, Keila Pacheco. A contingente atualização do Código de Defesa do Consumidor: novas fontes, metodologia e devolução de conceitos. Revista Direito do Consumidor. Ano 21, vol. 83, jul.-set./2012, págs.15-16) 9 econômica e/ou social), o qual necessita de uma proteção constante pelo ordenamento, a proteção aos direitos coletivos lato sensu e o amplo desenvolvimento e aplicação dos princípios positivados em seu texto, como o da boa-fé objetiva, paradigma significativo na revolução no regime jurídico dos contratos, vez que impõe comportamento leal e honesto entre os contratantes. No campo doutrinário, o Código foi bastante celebrado, por representar a positivação de institutos e teorias ricamente elaboradas para a defesa do consumidor e trazer uma tutela principiológica adequada e evoluída para o trato da relação de consumo, vindo a ser interpretado e comentado por importantes doutrinadores brasileiros das mais diversas áreas, como do Direito Civil, Consumidor, Constitucional, Penal e Administrativo, e linhas de atuação, destacando-se ministros, juízes, promotores, pesquisadores, advogados, entre outros. Pode-se mencionar, a título ilustrativo, nomes de extrema relevância na construção teórica e prática do novo Direito do Consumidor: Antonio Herman V. Benjamin, Cláudia Lima Marques, Adalberto Pasqualotto, Bruno Miragem, Eros Roberto Grau, Fábio Konder Comparato, Humberto Theodoro Júnior, Nelson Nery Junior, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Sálvio de Figueiredo Teixeira, Sergio Cavalieri Filho, Antônio Junqueira de Azevedo, Carlos Alberto Bittar, Gustavo Tepedino, Leonardo Roscoe Bessa, Ingo Wolfgang Sarlet, Guilherme Magalhães Martins, Heloísa Carpena Vieira de Mello, Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer, Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Rodolfo de Camargo Mancuso, Judith Hofmeister Martins Costa e outros. Na jurisprudência nacional, notadamente nos Tribunais Superiores, este novo paradigma legislativo proporcionou a elaboração de acórdãos mais humanizados e equilibrados. Neste sentido, podemos citar os seguintes julgados: “Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 8.039, de 30 de maio de 1990, que dispõe sobre critérios de reajuste das mensalidades escolares e da outras providencias. - Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que e o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros. (...)” (STF. ADI 319, Rel. Min. Moreira Alves, Plenário, DJ: 30/04/1993.) CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 5o, XXXII, DA CB/88. ART. 170, V, DA CB/88. INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. SUJEIÇÃO DELAS AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, EXCLUÍDAS DE SUA ABRANGÊNCIA A DEFINIÇÃO DO CUSTO DAS OPERAÇÕES ATIVAS E A 10 REMUNERAÇÃO DAS OPERAÇÕES PASSIVAS PRATICADAS NA EXPLORAÇÃO DA INTERMEDIAÇÃO DE DINHEIRO NA ECONOMIA [ART. 3º, § 2º, DO CDC]. MOEDA E TAXA DE JUROS. DEVER-PODER DO BANCO CENTRAL DO BRASIL. SUJEIÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. 1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. "Consumidor", para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. 3. O preceito veiculado pelo art. 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretado em coerência com a Constituição, o que importa em que o custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração da intermediação de dinheiro na economia estejam excluídas da sua abrangência. (...)” (STF. ADIn: 2591-DF, Relator: CARLOS VELLOSO, Data de Julgamento: 06/06/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 29-09-2006) RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DANOS MORAIS DECORRENTES DE ATRASO OCORRIDO EM VOO INTERNACIONAL. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. NÃO CONHECIMENTO. 1. O princípio da defesa do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da atividade econômica. 2. Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor. (...) (STF. ADIn RE 351750-RJ, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, Julgamento: 17/03/2009) "RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DANOS MORAIS DECORRENTES DE ATRASO OCORRIDO EM VOO INTERNACIONAL. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. NÃO CONHECIMENTO. 1. O princípio da defesa do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da atividade econômica. Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor." (STF. RE 351.750, Rel. p/ o ac. Min. Ayres Britto, Primeira Turma, DJE: 25/09/2009.) Direito do Consumidor. Recurso especial. Conceito de consumidor. Critério subjetivo ou finalista. Mitigação. Pessoa Jurídica. Excepcionalidade. Vulnerabilidade. Constatação na hipótese dos autos. Prática abusiva. Oferta inadequada. Característica, quantidade e composição do produto. Equiparação (art. 29). Decadência. Inexistência. Relação jurídica sob a premissa de tratos sucessivos. Renovação do compromisso. Vício oculto. - A relação jurídica qualificada por ser "de consumo" não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus pólos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro. - Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o 11 rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidoresempresários em que fique evidenciada a relação de consumo. - São equiparáveis a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais abusivas. - Não se conhece de matéria levantada em sede de embargos de declaração, fora dos limites da lide (inovação recursal). Recurso especial não conhecido. (STJ. REsp Nº 476.428 - SC (2002⁄0145624-5), Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, Data da Publicação: 09.05.2005) “(...) A dicção do artigo 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor é clara ao possibilitar o cabimento de indenização por danos morais aos consumidores, tanto de ordem individual quanto coletivamente. II - Todavia, não é qualquer atentado aos interesses dos consumidores que pode acarretar dano moral difuso. É preciso que o fato transgressor seja de razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva. Ocorrência, na espécie. III - Não é razoável submeter aqueles que já possuem dificuldades de locomoção, seja pela idade, seja por deficiência física, ou por causa transitória, à situação desgastante de subir lances de escadas, exatos 23 degraus, em agência bancária que possui plena capacidade e condições de propiciar melhor forma de atendimento atais consumidores. (...)”. (STJ, REsp 1221756, Relator: Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, Data de Julgamento: 02/02/2012) “CIVIL E CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE CONTEÚDO. FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA. 1. A exploração comercial da internet sujeita as relações de consumo daí advindas à Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo mediante remuneração, contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor. (...)” (STJ. REsp Nº 1.308.830 - RS, Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, Dje: 19/06/2012) Nesta ótica, vale destacar ainda importantes posicionamentos que foram sumulados pelo Superior Tribunal de Justiça, visando à ampla tutela do consumidor e a confirmação da aplicação do CDC, em diversos âmbitos que envolvessem relações de consumo: a) Súmula nº 297 - “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”; b) STJ Súmula nº 302 – “É abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado.”; c) STJ Súmula nº 321 – “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável à relação jurídica entre a entidade de previdência privada e seus 12 participantes.”; d) STJ Súmula nº 323 – “A inscrição de inadimplente pode ser mantida nos serviços de proteção ao crédito por, no máximo, cinco anos.”; e) STJ Súmula nº 359 – “Cabe ao órgão mantenedor do Cadastro de Proteção ao Crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição.”; f) STJ Súmula nº 469 – “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde.”; g) Súmula 477 – "A decadência do artigo 26 do CDC não é aplicável à prestação de contas para obter esclarecimentos sobre cobrança de taxas, tarifas e encargos bancários"; h) Súmula nº 479 – “As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias.” Desde a edição da lei 8.078/90, a sua redação vem sendo alterada, de forma breve e pontual, por meio de diversas leis esparsas. Em pesquisa, verificou-se que aproximadamente 11 leis já alteraram e acrescentaram dispositivos ao CDC.26 Isso pode ser compreendido como uma tentativa do legislador em adaptar o Código às novas demandas decorrentes da recente evolução científica e tecnológica, das técnicas de produção e venda em massa e do 26 Podemos citar as seguintes leis federais responsáveis por alterar o CDC: a) Lei 8.656/93 - Estipulou que apenas o valor cabível à União da pena de multa será revertido ao Fundo de Restituição de Bens Lesados. Nos demais casos, o valor será revertido para fundos estaduais ou municipais de proteção ao consumidor; b) Lei 8.703/93 - Determinou que as multas não poderão ser inferiores a 200 e não superiores a 3 milhões de vezes o valor da Unidade Fiscal de Referência (Ufir), ou a índice equivalente que venha a substituir; c) Lei 8.884/94 Proibiu a elevação sem justa causa do preço de produtos ou serviços. Proibiu os fornecedores de recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em lei especial; d) Lei 9.008/95 - Exigiu que os prestadores de serviço estipulem prazo para o cumprimento de sua obrigação. Legitimou a defesa coletiva de interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos pelo Ministério Público, pelos entes federados, pelos órgãos da administração pública destinados à defesa dos interesses e direitos do consumidor, e pelas associações legalmente constituídas e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo CDC. Permitiu a essas mesmas entidades propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos; e) Lei 9.870/99 Dispõe sobre o valor total das anuidades escolares. Incluiu entre as vedações dos prestadores de serviço aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido; f) Lei 9.298/96 - Estabeleceu que as multas de mora decorrentes de inadimplência não poderão ser superiores a 2% do valor da prestação; g) Lei 11.785/08 - Definiu que os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo 12, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor; h) Lei 11.800/08 - Alterou o CDC para impedir que os fornecedores veiculem publicidade ao consumidor que aguarda, na linha telefônica, o atendimento de suas solicitações, quando a chamada for onerosa ao consumidor que a origina; i) Lei 11.989/09 - Estabeleceu que características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, sejam gravadas de forma indelével nos produtos refrigerados oferecidos ao consumidor; j) Lei 12.039/09 - Determina que constem, nos documentos de cobrança de dívida encaminhados ao consumidor, o nome, o endereço e o número do CPF ou do CNPJ do fornecedor do produto ou serviço; l) Lei nº 12.741/12 - Dispõe sobre as medidas de esclarecimento ao consumidor, de que trata o § 5º do artigo 150 da Constituição Federal; altera o inciso III do art. 6º e o inciso IV do art. 106 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 - Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/CONSUMIDOR/150279-LEIS-QUE-ALTERARAM-OCODIGO-DE-DEFESA-DO-CONSUMIDOR.html>;<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20112014/2012/Lei/L12741.htm> Acesso em 17 de setembro de 2013. 13 desenvolvimento dos transportes. Ressalta-se que, mesmo diante desse cenário, até o ano de 2010, não havia ocorrido um movimento amplo de atualização do Código de Defesa do Consumidor, através da inclusão de temas e instrumentos inéditos para promover e efetivar a tutela do consumidor. Após mais de 20 anos da vigência do CDC, tornou-se mais do que importante reafirmar o mandamento constitucional de proteção aos consumidores, através de meios que promovam uma positiva modificação da legislação, reconstruindo e orientando tanto a doutrina quanto a prática jurídica frente aos atuais desafios da sociedade da informação globalizada. 3. AS MUDANÇAS OCORRIDAS NA SOCIEDADE DE CONSUMO BRASILEIRA APÓS 1990 Desde a elaboração do Código de Defesa do Consumidor, importantes mudanças vêm ocorrendo na sociedade brasileira e de forma acelerada. Nos últimos anos, o Brasil destacouse entre as maiores economias do mundo, tendo ainda uma relevante influência política no cenário internacional. Entende-se que o país teria atingido este patamar em razão, especialmente, de seu forte mercado interno, com a ampliação do crédito para o consumidor e do número de pessoas compreendidas na classe média e alta, e do aumento de suas exportações tanto de matéria-prima quanto de produtos industrializados, impacto direto da incorporação dos avanços tecnológicos importados e desenvolvidos no próprio país. Enquanto isso, no âmbito jurídico, houve a edição de novos diplomas, como o Código Civil de 2002 e leis especiais sobre a proteção do consumidor, e tentativas de aprovação de leis que tinham como objetivo imunizar determinados setores da aplicação do CDC, frutos de lobbies empresariais, cabendo aos intérpretes a difícil tarefa de traçar um diálogo entre todos os textos legais pertinentes à tutela do consumidor e elaborar uma interpretação sistemática com base nos valores e princípios constitucionais aplicáveis à defesa do consumidor e, ainda, coerente e adequada com a atual dinâmica do mercado brasileiro. A doutrina aponta que o CDC teria preparado a sociedade 14 para a Vive-se o que vem a ser caracterizado como a sociedade de massa, em que a produção, a distribuição, a venda e o consumo ocorrem em larga escala e pelos mais variados meios, seja físico ou virtual, de forma não personalizada e sem uma necessária base territorial fixa. Como lembra Bauman27, na pós-modernidade, houve a migração da sociedade de produtores estruturada na segurança, estabilidade, ordem e regularidade para a sociedade consumista, instável e líquida. Neste ambiente, os consumidores são continuamente chamados a consumir novos produtos e serviços, não havendo mais uma grande preocupação com questões relativas à durabilidade e ao apego emocional. As coisas são produzida e consumidas em massa e de forma descartável. Nesta realidade, são de grande relevância a elaboração de normas e o desenvolvimento doutrinário de temas atuais e polêmicos como, por exemplo, o comércio eletrônico, o superendividamento do consumidor (pessoa física), as regras processuais para as ações coletivas, o risco do desenvolvimento para a saude e a segurança dos consumidores28 e a responsabilidade civil dos provedores de internet pelos danos causados à pessoa humana, por meio da venda de dados pessoais e da colocação de conteúdos ofensivos pelos mesmos e/ou terceiros. Os princípios da solidariedade social, da 27 “A busca por prazeres individuais articulada pelas mercadorias oferecidas hoje em dia, uma busca guiada e a todo tempo redirecionada e reorientada por campanhas publicitárias sucessivas, fornece o único substituto aceitável – na verdade, bastante necessitado e bem-vindo – para a edificante solidariedade dos colegas de trabalho e para o ardente calor humano de cuidar e ser cuidado pelos mais próximos e queridos, tanto no lar como na vizinhança.” (BAUMAN, Zygmunt. A Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. Pág. 154.) 28 A problemática do risco do desenvolvimento refere-se aos casos em que empresas lançam no mercado novos produtos sem defeito cognoscível, mesmo que testados, e mais tarde, com o desenvolvimento científicotecnológico, descobre-se que estes são nocivos à saude humana, havendo um defeito capaz de causar danos aos consumidores. O caso mais famoso é o da Talidomida, que vitimou milhares de pessoas em todo o mundo, provocando malformações fetais, em razão da ingestão dessa substância por mulheres grávidas. Mais informações no site: <http://www.talidomida.org.br/oque.asp> Acesso em 22 de setembro de 2013. 15 Além dos assuntos desenvolvidos pela Comissão, como sugere o professor Pasqualotto, o legislador também deveria ter se preocupado com a questão do risco do desenvolvimento, acrescentando aos artigos 12 e 14, do CDC, um quarto parágrafo, que previsse, em regra, a responsabilidade civil da empresa, uma vez ocorrido o dano ao consumidor e demonstrada a sua relação de causalidade com o produto29. Essa previsão também atualizaria o CDC frente ao Código Civil, que, no art. 931, não exige o defeito para a imputação de responsabilidade civil às empresas, bastando a colocação do produto em circulação no mercado. Esta normatização seria especialmente importante para os casos envolvendo usuários de remédios e as vítimas do tabaco. 30 Do mesmo modo, outro tema de grande relevância é a responsabilidade civil dos provedores de internet no casos de danos aos consumidores. Com a grande avanço e popularização da internet, nos últimos anos, diversos conflitos de interesses vêm ocorrendo neste ambiente, como a violação e a apropriação indevida de dados pessoais, a publicação de fotos e mensagens ofensivas e práticas invasivas de oferta, através do envio de anúncios a emails pessoais. Em alguns casos, evidenciou-se uma clara relação de consumo entre as partes, como a relação entre os usuários das redes sociais virtuais e os provedores de hospedagem responsáveis pelas redes, tendo em vista a remuneração indireta oferecida pelos primeiros ao fornecerem os seus dados e colocarem-se, na prática, como o público alvo das diversas 29 Neste sentido, o enunciado n.º 43 da I Jornada de Direito Civil: “a responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art. 931 do novo CC, também inclui os riscos do desenvolvimento”. 30 O autor sugere uma solução bastante interessante para a polêmica relativa à normatização do risco do desenvolvimento no CDC, “a estipulação de um prazo limitado de responsabilidade do fornecedor e a proporcionalidade da indenização, conforme a magnitude dos danos e as possibilidades econômicas da empresa.” (PASQUALOTTO, Adalberto. Dará a reforma ao Código de Defesa do Consumidor um sopro do vida?. Revista de Direito do Consumidor. Ano 20, vol.78, abr.-jul./2011.pág.18.) 16 campanhas publicitária desenvolvidas neste meio31. Todavia, mesmo que este entendimento tenha sido consolidado pelo STJ32, este tema não foi diretamente abordado quando da atualização do CDC, deixando a cargo do Marco Civil da Internet (PL 2.126/2011) a regulamentação específica sobre a responsabilidade civil do provedor e a tutela do consumidor usuário que viu os seus direitos serem violados33. 4. A ATUALIZAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Na comemoração dos 20 anos do Código de Defesa do Consumidor, em dezembro de 2010, por meio de ato do presidente do Senado Federal, José Sarney, instituiu-se uma comissão de juristas para apresentar propostas de atualização do CDC. Esta foi presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça, Herman Benjamin, e teve como membros Cláudia Lima Marques (relatora-geral), Ada Pellegrini Grinover, Leonardo Roscoe Bessa, Roberto Augusto Pfeiffer e Kazuo Watanabe.34 Segundo os participantes deste processo, diante da ampla aplicação e efetividade do microssistema do CDC, fazia-se necessária uma atualização de suas normas, de forma que o Código contemplasse as mudanças nas relações entre consumidores e fornecedores e os novos conflitos da sociedade em massa. Como uma das leis mais importantes do século XX, colocando o Brasil na vanguarda desse tipo de legislação protetiva, entendeu-se que não 31 Vale ressaltar que é de conhecimento público que o marketing direcionado promovido nas redes sociais vai muito além de banners e links patrocinados, baseia-se no próprio conteúdo inserido pelos usuários, sendo este o principal capital a ser explorado pelos intermediários. 32 STJ. Recurso Especial nº. 1.193.764. Relatora: Min. Nancy Andrighi. 2011; Recurso Especial nº. 1.308.830. Relatora: Min. Nancy Andrighi. 2012. 33 Observa-se que parte da doutrina consumerista também entende pela aplicação do CDC, nestes casos. Ensina o professor Bruno Miragem: “(...) tendo identificada a relação de consumo mediante remuneração direta ou indireta do provedor de conteúdo – o que especialmente nas redes sociais se dá sob a forma clara de remuneração indireta – restam caracterizadas as condições de incidência do Código de Defesa do Consumidor, e com isso, de seu regime de responsabilidade pelo fato do serviço, nos termos do seu art. 14 (...).” Vale ressaltar que, em relação à espécie de risco assumido pelo fornecedor, de forma diversa a nossa tese, o professor Miragem entende tratar-se de um risco-proveito. (MIRAGEM, Bruno. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações entre provedores de conteúdo da internet e seus consumidores. Revista de Direito do Consumidor. Ano 20, n. 79, jul-set./2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423). 34 Os ilustres juristas Benjamin, Watanabe e Pelegrini integraram, em 1990, a Comissão original que elaborou o projeto do atual Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). 17 deveria ser realizada uma reforma integral do texto e sim uma atualização pontual que trouxesse ainda mais avanços em assuntos de alta relevância social, econômica e política. Em junho de 2011, a referida comissão apresentou três anteprojetos de leis preliminares para discussão pública: comércio eletrônico e parte geral; aspectos processuais das ações coletivas; crédito e prevenção ao superendividamento do consumidor. Estes textos foram amplamente debatidos em audiências públicas e reuniões35, surgindo, então, uma proposta final para o presidente do Senado, em março de 2012. Estas propostas transformaram-se, respectivamente, nos PL 281/201236, PL 282/201237 e PL 283/201238 que encontram-se em tramitação no Senado Federal desde 2012. Vale ressaltar que foi apresentado um grande número de emendas aos referidos projetos, totalizando-se 106, conforme documento disponibilizado pelo órgão.39 4.1. A PROPOSTA DA COMISSÃO DE ATUALIZAÇÃO: O REFORÇO TRIDIMENSIONAL DO CDC No relatório apresentado pela Comissão, em 2012, salientou-se que 35 Segundo relatório, a comissão realizou 37 reuniões, 12 reuniões ordinárias, 8 audiências públicas e 17 reuniões técnicas com os setores interessados, procurando ouvir todos os segmentos atuantes no direito e na defesa do consumidor, visando dialogar com a sociedade brasileira e desenvolver um trabalho transparente, com boa técnica e democrático. (Relatório Geral – Comissão de juristas de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Pág. 27. Disponível em:<http://www.senado.gov.br/senado/codconsumidor/pdf/ extrato_relatorio_final.pdf> Acesso em 22 de setembro.) 36 Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar as disposições gerais do Capítulo I do Título I e dispor sobre o comércio eletrônico. 37 Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar a disciplina das ações coletivas. 38 Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção do superendividamento. 39 Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=134468&tp=1> Acesso em 15 de setembro de 2013. 18 “Trata-se de um conjunto de normas estratégico para moldar o País que queremos, para ajudar o acesso a bens e serviços, mas também ao crédito e às benesses da economia global. Sucede que o novo Brasil necessita de um Código de Defesa do Consumidor sempre atualizado e adaptado aos novos desafios tecnológicos, de marketing, compatibilização de mídias, anseios de proteção da privacidade e segurança no comércio eletrônico, assim como às novas realidades da economia, de democratização do crédito e do acesso a produtos e serviços complexos e a distância, no mercado brasileiro e global.” 40 Visando solucionar os novos dilemas apresentados pela , objetivo o “reforço tridimensional do CDC: as dimensões do reforço da base constitucional, da base ético-inclusiva e solidarista, e, por último, a da base da confiança, efetividade e segurança jurídica.”41 A primeira, a dimensão do reforço da base constitucional, entende que o “presumido vulnerável e parte fraca da relação de consumo frente ao fornecedor de produtos e serviços, públicos e privados, nacionais e internacionais, assim revigorando o diálogo das fontes (Art. 7º do CDC) sob a luz da Constituição e garantindo que direitos e prazos maiores presentes em outras leis e tratados sejam utilizados a favor dos consumidores, seja assegurando melhores instrumentos de segurança, igualdade e privacidade na contratação a distância e na Internet, e de preservação do mínimo existencial ao consumidor superendividado, seja ainda reforçando o acesso do consumidor à Justiça, garantindo um foro privilegiado, sua defesa coletiva e evitando arbitragens compulsórias, nacionais ou internacionais.” 40 Relatório Geral – Comissão de juristas de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Págs.19-20. Disponível em:<http://www.senado.gov.br/senado/codconsumidor/pdf/extrato_relatorio_final.pdf> Acesso em 22 de setembro. 41 Relatório Geral – Comissão de juristas de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Pág. 21 19 Sobre a dimensão constitucional, Cláudia Lima Marques e Bruno Miragem afirmam que esta exige o estrito alinhamento com a diretriz constitucional-protetiva do CDC, impondo que as alterações legislativas se concentrem em novos assuntos, aumentando o rol de princípios e direitos do consumidor, tendo como base a vulnerabilidade do consumidor, a boafé objetiva e a transparência.42 A segunda, a dimensão do reforço da base ético-inclusiva e solidarista, Esta dimensão estabelece, entre outras previsões, a elaboração de novas normas para: a) prevenir a , De acordo com Marques e Miragem, esta dimensão seria inclusiva por prever que a nova intervenção legislativa deveria ser pontual e breve, sempre dialogando com a estrutura valorativa estabelecida no sistema jurídico nacional. Partiria da preocupação com os novos 42 MARQUES, Cláudia Lima Marques; MIRAGEM, Bruno. Anteprojetos de Lei de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. Ano 21, vol. 82, abr.-jun./2012, págs.331-334. 20 modelos de negócios, os novos consumidores que se inserem no mercado e a inclusão de direitos ao consumidor que não firam ou reduzam o nível de proteção já alcançado. A terceira dimensão representa o reforço da base da confiança, efetividade e segurança jurídica (ou a dimensão da efetividade e da confiança no microssistema)43. Tendo em vista o grande número de leis especiais, normas aplicáveis e correntes jurisprudenciais, seria importante reforçar a confiança dos consumidores no CDC e a sua efetividade prática nos atuais conflitos, “seja trazendo normas especiais quanto aos prazos prescricionais e a interação entre as ações individuais e coletivas, seja revigorando a sua parte instrumental, em especial no que se refere a ações coletivas, facilitando de forma educativa um procedimento especial para as ações coletivas (...), valorizando estas ações e suas decisões positivas para os consumidores, assim como o papel da Defensoria Pública, do Ministério Público e das Associações na defesa individual e coletiva dos 44 consumidores, e garantindo o acesso à justiça.” Parte-se do princípio de que a ampliação da confiança da sociedade no CDC ─ como um sistema especial de proteção e um conjunto de normas estáveis de aplicação obrigatória nas relações de consumo, sendo indisponível aos desejos e vontades dos particulares ─ seria determinante no desenvolvimento de um sistema orientado pela segurança jurídica e pela maior previsibilidade das decisões judiciais e administrativas. Além disso, entende-se que essa situação positiva ampliaria a noção de que o Código seria uma lei eficiente para regular o mercado, orientar as condutas das partes, proteger o consumidor e manter o mercado atrativo e dinâmico. Guiando-se por essa dimensão, a comissão tratou de reforçar as normas preventivas de conflitos nas contratações e na concessão de crédito. Com a popularização das novas tecnologias de comunicação e a inserção da mobilidade, houve uma expansão das possibilidades de contratação à distância, enquanto que com o aumento na concessão do crédito e as novas “necessidades urgentes” da pós-modernidade, houve o aumento do grau de endividamento dos consumidores (pessoas físicas). No campo dos direitos coletivos, tal dimensão reforçaria a elaboração de mecanismos que trouxessem uma maior efetividade às ações coletivas, visando, principalmente, evitar danos massificados. 43 MARQUES, Cláudia Lima Marques; MIRAGEM, Bruno. Anteprojetos de Lei de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. Ano 21, vol. 82, abr.-jun./2012, págs.331-334 44 MARQUES, Cláudia Lima Marques; MIRAGEM, Bruno. Anteprojetos de Lei de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. Ano 21, vol. 82, abr.-jun./2012, pág. 333. 21 “o CDC é uma das leis mais conhecidas e que desperta maior confiança em sua efetividade; logo um reforço na sua dimensão instrumental e de excelência implica na sua aplicação prática e nos instrumentos que a concretizam, seja prevenindo conflitos, mediante regras materiais claras e imperativas, seja através da desjudicialização de alguns conflitos, seja na criação de novos instrumentos, processuais, para-processuais administrativos e penais, assim como de sanções para danos massificados, que possam assegurar maior efetividade e eficiência ao microssistema do CDC, em especial nas ações coletivas, tão importantes para a defesa dos consumidores.”45 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir dos anos 60, o Direito do Consumidor passou a ganhar um maior destaque na sociedade, vindo a ingressar entre os Direito Fundamentais dos seres humanos. Entretanto, somente após a redemocratização do Brasil que a tutela do consumidor foi concebida dentro de um sistema coerente de valores e normas próprias e especiais, através da previsão Constitucional da necessária proteção ao consumidor e da elaboração do Código de Defesa do Consumidor. Percebeu-se a importância de se elaborar um microssistema consumerista para lidar com os conflitos oriundos da massificação da produção, da distribuição e do consumo, frutos da terceira revolução industrial e da globalização, tendo em vista o aumento exponencial da vulnerabilidade dos consumidores e do número de consumidores lesados em acidentes de consumo. Com as diversas mudanças que vêm ocorrendo na sociedade brasileira, seria temerário deixar a cargo da autorregulação e dos antigos diplomas a proteção do novo agente econômico prioritário deste mundo do consumo: o consumidor. Neste sentido, o legislador desenvolveu temas de grande importância para sociedade brasileira no CDC, como os direitos básicos do consumidor, a responsabilidade dos fornecedores, os contratos consumeristas, a prestação dos serviços públicos, a utilização de bancos de dados e o direito processual coletivo, ampliando o acesso à justiça para o consumidor e criando um microssistema de proteção com normas de direito material e processual adequado para dirimir os conflitos da sociedade de massa globalizada46. 45 Relatório Geral – Comissão de juristas de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Pág. 26. 46 Segundo o ministro Herman Benjamin, “No período anterior ao CDC, o consumidor brasileiro não só carecia de proteção no plano substantivo, como, ainda, lhe faltava instrumentos processuais adequados para o exercício daqueles poucos direitos que, aqui e ali, o ordenamento jurídico tradicional lhe conferia.” (BENJAMIN, Herman V. Op.Cit. p. 32) 22 Da análise da produção doutrinária e jurisprudencial, após 1990, é inegável que a entrada em vigor deste Código proporcionou uma verdadeira modificação na prática jurídica, ocorrendo uma maior humanização e equilíbrio nas relações de consumo, por meio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor e da ampla abrangência do CDC. Analisando as propostas apresentadas para a atualização do Código de Defesa do Consumidor, verifica-se que o foco principal deste trabalho é promover uma maior efetividade e atualidade às normas do CDC, por meio do desenvolvimento de temas como: o crédito e o superendividamento do consumidor, o comércio eletrônico e as ações coletivas. Pretende-se, através de intervenções pontuais e temáticas, trazer um novo “sopro de vida”47 para um Código que, inegavelmente, participou da reformulação ética do Direito Privado brasileiro. De forma acertada, a doutrina jurídica nacional entende que o atual modelo deve ser preservado, evitando-se particularismos que descaracterizem a bem sucedida configuração protetiva desenhada no Código e fragmentações casuísticas que, por meio da edição de leis posteriores, estabeleçam padrões de proteção diversificados, conforme a relação jurídica e os envolvidos.48 A doutrina lembra que, ainda hoje, alguns setores empresariais fazem pressão requerendo a aprovação de leis especiais, na tentativa de buscar imunidade, em relação à adequada e correta aplicação do CDC.49 Nas palavras do Min. Herman Benjamin (informação oral: audiência pública de atualização do CDC no IAB, Rio de Janeiro, outubro de 2011), reformar não é preciso, atualizar é preciso e de forma cirúrgica. A ideia, portanto, é manter a estrutura do Código de 47 PASQUALOTTO, Adalberto. Dará a reforma ao Código de Defesa do Consumidor um sopro do vida?. Revista de Direito do Consumidor. Ano 20, vol.78, abr.-jul./2011.pág.14. 48 Em relação à caracterização do CDC, o professor Adalberto Pasqualotto afirma que este Código pode ser compreendido como um guarda-chuva, por oferecer um modelo de proteção ao consumidor generalista, ou seja, “ele é um conjunto de normas gerais, aplicáveis à ampla gama de relações de consumo existentes no mercado, sem se fixar em nenhuma delas em particular.” Como um mecanismo de proteção único – o guarda-chuva – deve-se evitar a sua fragmentação, por meio da edição de leis posteriores que revoguem ou alterem disposições específicas e de grande relevância para a tutela do consumidor. (PASQUALOTTO, Adalberto. Dará a reforma ao Código de Defesa do Consumidor um sopro do vida?. Revista de Direito do Consumidor. Ano 20, vol.78, abr.jul./2011.pág.13.) 49 Defende-se também que, por ser uma lei principiológica, fruto de um mandamento constitucional, os direitos inseridos no CDC devem penetrar os dispositivos legais posteriores que regulem as relações de consumo, vencendo assim normas que sejam fruto do mero lobby de empresas. (SODRE, Marcelo Gomes. Vinte anos: riscos sofridos pelo Código de Defesa do Consumidor. Revista do Advogado, São Paulo, v. 31, n. 114, dez. 2011, pág. 84.) 23 Defesa do Consumidor, reforçando-a com cláusulas gerais e regras que contemplem as novas situações da sociedade de consumo. Entende-se que, nesta etapa de atualização do CDC, outros assuntos também poderiam ter sido abordados, uma vez que não receberam a adequada atenção do legislador de 1990, em virtude do estágio de desenvolvimento social, econômico e tecnológico do Brasil à época, como o risco do desenvolvimento para a saude e a segurança do consumidor e a responsabilidade civil dos provedores de internet nos casos de danos aos consumidores. Por outro lado, a opção por focar em três assuntos específicos também foi bastante coerente e produtiva, pois permitiu um estudo mais aprofundado e direcionado sobre as questões e um maior debate com a sociedade brasileira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Fernando Costa de; KLEE, Antonia Espindola Longoni. Considerações sobre a proteção dos consumidores no comércio eletrônico e o atual processo de atualização do Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, v. 22, n. 85, p. 215216. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, jan./fev. 2013. 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