LINGUAGENS
-metria
Alfredo José MansurI
Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo
Em muitos setores da prática clínica são usadas medidas obtidas por meio de diferentes métodos e expressas
por números. Os números são tomados como dados objetivos de análise e, depois, base para o diagnóstico e para
a terapêutica.
O fato de os números serem calculados e determinados
carrega acepções de exatidão, rigor, precisão, objetividade,
clareza, perfeição, ausência de falhas, ciência, entre outras.
Por vezes resvala, ainda, — que em muitas vezes impropriamente — são traduzidos como verdades indiscutíveis, tão
somente por serem números. O dicionário registra que o pospositivo -metria, relacionado à medida, tem largo emprego na
área e exemplifica: acidimetria, biometria, calorimetria, densimetria, gasometria, optometria, osteometria, pelvimetria,
radiometria, toracometria,1 entre outras. Talvez cientimetria,
bibliometria façam parte da família.
Por outro lado, números não falam por si só e necessitam
de interpretação. Depois de interpretados, serão aplicados
na prática, por exemplo, quando o número geral (números de uma população ou casuística de estudo) se aplica
ao indivíduo (tanto o médico quanto o paciente). Em tal
circunstância, a aura de exatidão aritmética dos números
se modula e surgem experiências curiosas, que foram examinadas na literatura e vivenciadas por quem se dedica à
prática clínica e estimulam reflexões, particularmente em
momento da cultura na qual o acesso a grande número de
dados e muitos números pode ser possível.
Objetividade – Recentemente foi reiterado aspecto interessante da informação sobre números. A decisão por
prescrição de medicamentos por médicos após a informação
variou de acordo com o modo que a informação foi trazida –
se redução relativa do risco, se redução absoluta do risco ou
número de pacientes necessários a tratar para se obter o efeito desejado. Dependendo do modo com que a informação foi
apresentada, a decisão por prescrever medicamentos variou
de 25% a 80% dos médicos. Prosseguiu o autor: o modo como
são apresentados os dados pode influenciar, de modo relevante, os hábitos de prescrição dos médicos, e concluiu: não
podemos nos iludir pensando que a interpretação dos dados
científicos seja objetiva, uma vez que é influenciada pelo
modo como os dados são ilustrados.2
Às vezes a quantidade de números pode ser grande, de tal
modo que surge a necessidade de que eles sejam reunidos em
um índice que simplifica a informação, e há muitos índices
nas diferentes áreas do conhecimento. Um editorial recente
e bem-humorado lembrou que os números que entram nos
índices podem ser escolhidos por quem os cria, de tal modo
que, ao mesmo tempo, quem faz o índice define o problema
e dita a solução,3 o que seria um modo menos isento ou independente de avaliação.
Livre-docente em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Diretor da Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do
Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
I
Endereço para correspondência:
Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo — Avenida Dr. Enéas
de Carvalho Aguiar, 44 — São Paulo (SP) — CEP 05403-000
Tel. InCor (11) 2661-5237 — Consultório: (11) 3289-7020/3289-6889
E-mail: [email protected]
Fonte de fomento: nenhuma declarada — Conflito de interesse: nenhum declarado
Entrada: 10 de novembro de 2014 — Última modificação: 2 de dezembro de 2014 — Aceite: 4 de dezembro de 2014
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Quantificação de risco – Estudiosos admitem que estimar risco alto ou baixo requer o entendimento não somente
dos números, mas depende também do contexto e do conteúdo ao qual esse número se aplica; para alguns pacientes, os
números transmitem informação corretamente, para outros
são apenas cifras.4 O conceito de risco também inclui a acepção de incerteza.5
Curiosamente, muitas pessoas, inclusive médicos, preferem usar palavras ao invés de números para exprimir
opiniões e incerteza. Pesquisadores procuraram quantificar expressões mediante técnicas matemáticas de lógica
(fuzzy) e demonstraram que as expressões de frequências
nos extremos da escala de quantificação (nunca e sempre)
são entendidas de modo mais preciso e menos vago do que
os termos intermediários (por exemplo às vezes, frequentemente). Outros exemplos de expressões intermediárias
estudadas foram nunca, quase nunca, infrequentemente,
ocasionalmente, às vezes, metade dos casos, frequentemente, no mais das vezes, quase sempre. Pesquisadores avaliam
essas expressões para transformá-las em expressões mais
próximas de números; estes indicaram que termos contíguos e com superposição foram idênticos ou similares no
significado. A expressão de palavras sem ambiguidade ou
com significado bem distinto foi considerada importante,
particularmente na medicina.6 Foi comentado recentemente o uso repetido dos termos “é razoável” ou “pode ser
considerado” (em tradução livre) em guideline de sociedade
internacional sobre a avaliação cardiológica pré-operatória
de pacientes candidatos a intervenção cirúrgica não cardíaca.7 Trata-se da reiteração científica do que se observa na
prática e pode ser útil para o estudo da interpretação de números no âmbito da medicina.
Estatística na prática – nas pesquisas admitidas as mais
corretas possíveis cientificamente, publicadas nas melhores
revistas, a análise dos dados emprega modelos estatísticos
elaborados. Estes, por sua vez, respondem a perguntas específicas e permitem analisar número limitado de variáveis.
Por outro lado, muitas vezes o número de variáveis em um
paciente pode ser maior, e às vezes, inclui variáveis importantes no caso individual, que não fazem parte da informação
da média da população de pacientes estudados (por exemplo,
preferência de pacientes e de médicos). Por isso, há sempre
necessidade de ajustes de métodos estatísticos para aprimorar análises.8 Às vezes, as próprias variáveis se comportam
diferentemente no decorrer do tempo (por exemplo, em um
momento influem na mortalidade de modo diferente do que
semanas depois), o que requer que tal fator também seja levado em consideração.9,10 E quando os modelos estatísticos não
abrangem integralmente a realidade, e decisões têm que ser
tomadas, recorre-se ao que se chama de clínica.
Para alguns autores, no conceito científico não se faz referência a um caso concreto, mas a uma amostra estatística.
Probabilidade refere-se uma entidade matemática, risco à
estimativa de um dano mais ou menos relevante que poderá acontecer, e perigo a uma ameaça iminente.2 Nem sempre
a informação estatística é aplicável, sem juízo crítico, a um
paciente em específico, de população diferente da população
original do estudo.
Processo – quantificações e números são necessários
para avaliação de muitas atividades humanas, inclusive nas
diferentes instâncias da atividade médica nas múltiplas
dimensões. Provavelmente poucos questionariam que os números são necessários; entretanto podem não ser suficientes,
ao não permitirem acesso aos processos que os produzem e
seus contextos. Resultaria que perseguir tão somente os números, sem perseguir os processos que os geram, pode não
ser eficiente.
Recentemente, um cientista brasileiro lembrou-me da
questão das bibliometrias científicas estimuladas e parte de
metas que devem ser cumpridas frente a diferentes avaliadores. Lembrou que alcançar os altos índices bibliométricos
(produção, impacto) é resultado de um processo complexo e
que este, sim, deve ser perseguido para se chegar a números,
e não somente aos números descontextualizados desse processo; nesse caso, não seriam situações sustentáveis.
Placebo – em geral os números associados ao efeito placebo
são considerados números secundários. Médicos experientes
salientam a sua eficiência,11 e às vezes, o placebo é pouco lembrado ou utilizado nas interpretações de resultados. O efeito
placebo opera também (ou talvez principalmente) em equipamentos de alta tecnologia. Médicos com experiência dilatada
no tempo têm na casuística portadores de angina de peito que
contavam melhora depois da cineangiocoronariografia diagnóstica. Recentemente, o forte efeito placebo de equipamentos
de alta tecnologia foi re-enfatizado;12 o sucesso inicial atribuído
a certas intervenções recentes de alta tecnologia poderia ter
sido decorrência tão somente do efeito placebo.
De fato, os números do placebo às vezes surpreendem os
próprios médicos e pesquisadores. Em estudo para submeter
a teste uma droga para tratamento de hipotensão ortostática neurogênica, o efeito da droga foi superior ao placebo.
Quando o próprio autor apresentou seus dados, comentou
que foram surpreendidos pela resposta medida nos pacientes que receberam placebo, cujos números não estiveram tão
abaixo da droga em estudo.13 De fato, foi reconhecido que, em
algumas situações, o efeito do placebo pode mimetizar efeito
de drogas poderosas.14 Como o placebo em geral não é interesse de estudos, o número obtido pode ser menos enfatizado.
Há outras histórias interessantes sobre o placebo no contexto
de estudos randomizados publicados em 1980, 1990, e 2005,
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nos quais o ajuste para aderência ao placebo se associou com
resultados comparáveis a medicamentos da pesquisa.2
Lembramos que as reflexões não objetivam reduzir a importância dos números, do método científico e das medidas de
modo geral, que, apesar de todo esforço e empenho, pela sua própria natureza não conseguem abarcar por completo a realidade
do paciente. A medida com o uso de números é necessária, mas
nem sempre suficiente. Felizmente, nessa circunstância, particularmente quando há hiatos de conhecimento sobre a questão
clínica que se apresenta, o raciocínio clínico se alça ainda mais
relevante como credencial de acesso à realidade do paciente, do
diagnóstico correto e da melhor orientação terapêutica.
Finalizando, nunca é demais lembrar que a experiência dos
demais colegas pode ampliar e aprofundar estas reflexões.
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