JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO
BRASIL
VIOLÊNCIA, JUSTIÇA E SEGURANÇA
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Jorge Campos da Costa – Editor-Chefe
JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO
Organizador
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO
BRASIL
VIOLÊNCIA, JUSTIÇA E SEGURANÇA
Porto Alegre, 2012
© EDIPUCRS, 2012
Rodrigo Valls
dos autores
Rodrigo Valls
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J96
Justiça de transição no Brasil : violência, justiça e segurança
[recurso eletrônico] / José Carlos Moreira da Silva Filho, org. –
Dados eletrônicos – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2012.
357 p.
Textos em português e espanhol
ISBN 978-85-397-0225-1
Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>
1. Direito. 2. Justiça (Direito). 3. Direitos Humanos. I. Silva Filho,
José Carlos Moreira da.
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Sumário
APRESENTAÇÃO....................................................................................9
LOS DERECHOS DE LA VÍCTIMA COMO LÍMITE A LAS MEDIDAS
ADOPTADAS EN EL MARCO DE LA JUSTICIA TRANSICIONAL: EN
ESPECIAL EL CASO DE LA AMNISTÍA CHILENA.............................15
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
LEI DE ANISTIA E SELETIVIDADE DO USO DO DIREITO
INTERNACIONAL NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: AMICUS
CURIAE ELABORADO POR ALUNOS DA FACULDADE DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO NA ADPF 153*..........................39
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
ESTADO DE SEGURANÇA E POLÍCIA NO BRASIL: UMA ABORDAGEM
CONSTITUCIONAL DE DIREITOS E DO DIREITO DE GREVE.........67
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
PARA ALÉM DA MERA REFORMA: REFLEXÕES SOBRE AS
RELAÇÕES ENTRE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO, DIREITO PENAL E
POLÍTICA CRIMINAL .........................................................................97
Rodrigo Deodato de Souza Silva
A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO BRASILEIRA, SEUS LIMITES E
POSSIBILIDADES: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DA
ASSINCRONIA TEMPORAL DO DIREITO E DO IMPERATIVO DE
RADICALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS .................................113
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum, Rafaela da Cruz
Mello e Tiéli Zamperetti Donadel
HISTÓRIA, EXCEÇÃO E PROCESSO: CONSIDERAÇÕES A PARTIR
DOS PENSAMENTOS DE GIORGIO AGAMBEN E WALTER
BENJAMIN......................................................................................135
Eduardo Tergolina Teixeira
A JUSTIÇA TRANSICIONAL ENTRE O INSTITUCIONALISMO DOS
DIREITOS HUMANOS E A CULTURA POLÍTICA: UMA COMPARAÇÃO
DO BRASIL COM O CHILE E A ARGENTINA (1995-2006).............149
Rodrigo Lentz
UMA KAFKALÂNDIA CHAMADA MEMÓRIA DA DITADURA
MILITAR BRASILEIRA: ESPERANDO A CASMURRA ESPERANÇA
COM A COMISSÃO DE VERDADE E RECONCILIAÇÃO...................171
Ana Carolina Guimarães Seffrin
ANÁLISE DA (I)LEGITIMIDADE DA DECISÃO DA JUSTIÇA FEDERAL
ACERCA DE NÃO RECEBER A DENÚNCIA CONTRA O CORONEL
SEBASTIÃO CURIÓ RODRIGUES DE MOURA..................................191
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO DOI/CODI/II
EXÉRCITO (1970-1976): ASPECTOS DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL EM SÃO PAULO................................................213
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
O RESGATE DA MEMÓRIA E DA VERDADE: UMA ANÁLISE DA
PUNIBILIDADE DOS CRIMES DITATORIAIS NO BRASIL E DO
URUGUAI............................................................................................237
Cláucia Piccoli Faganello e Íris Pereira Guedes
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: UM BREVE RELATO SOBRE A
EXPERIÊNCIA BRASILEIRA..............................................................255
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
ENTRE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E A IMPRESCRITIBILIDADE
DOS CRIMES DA DITADURA MILITAR, A ADPF 153 EM FOCO.....277
Ricardo Silveira Castro
ADPF N° 153/STF E LEI DA ANISTIA: POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS
NA ESFERA INTERNACIONAL..........................................................293
Robert Rigobert Lucht
ENTRE A PERMANÊNCIA E A RUPTURA: O LEGADO AUTORITÁRIO
NA CONDUÇÃO DE INSTITUIÇÕES POLÍTICAS BRASILEIRAS E A
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO ..................................................................313
Roberta Cunha de Oliveira
NOVAS NARRATIVAS: A DIFICULDADE DE LEGITIMAÇÃO
DE NOVAS VOZES ACERCA DAS VIOLAÇÕES A DIREITOS
FUNDAMENTAIS DURANTE O REGIME MILITAR BRASILEIRO
DIANTE DA ACELERAÇÃO DO TEMPO E DO PARADIGMA DA
RACIONALIDADE...............................................................................335
Vanessa Dorneles Schinke
SOBRE OS AUTORES..........................................................................349
Apresentação
O livro que ora se apresenta ao público em geral traz o resultado
das comunicações científicas realizadas ao longo do “Seminário
Internacional Limites e Possibilidades da Justiça de Transição –
Impunidade, Direitos e Democracia”, ocorrido no Auditório da
Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, de 11 a 14 de abril de 2012, na cidade de Porto Alegre (RS). Esse
Seminário foi organizado pelo Grupo de Estudos Direito à Memória e
à Verdade e Justiça de Transição, sediado na PUCRS e integrante do
Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq, pela Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça e pelo Grupo de Estudos em Internacionalização
do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST.
Conforme se pode depreender da Programação, o Seminário
contou com a participação de pesquisadoras e pesquisadores
renomados que investigam a temática, contemplando diferentes áreas
do conhecimento. O tema da Justiça de Transição necessariamente deve
contar com a conjugação de diferentes olhares disciplinares. Filosofia,
História, Direito, Ciências Políticas, Relações Internacionais, Sociologia,
Letras e Antropologia são áreas do conhecimento imprescindíveis para
o estudo dos processos transicionais pelos quais passa cada sociedade.
O Seminário contou, em meio à sua programação, com a VI
Reunião do Grupo de Estudos em Internacionalização do Direito e
Justiça de Transição, conhecido pelo nome de IDEJUST . Esse grupo,
fundado no dia 13 de outubro de 2009, é fruto de um convênio assinado
entre a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e o Instituto de
Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, onde funciona a
sua sede. Trata-se de um Grupo cuja proposta é a de disseminar o tema
da Justiça de Transição e da Internacionalização do Direito no ambiente
acadêmico brasileiro, funcionando como um espaço de discussão,
apresentação de trabalhos e iniciativas institucionais e acadêmicas.
Desde a sua fundação, o Grupo tem constituído uma qualificada rede
de pesquisadores das mais diferentes áreas afins aos temas que lhe
dão nome, congregando, inclusive, membros de outros países latinoamericanos. Dessa rede muitas realizações têm surgido, dentre eventos,
publicações e ações de intervenção política, jurídica e institucional.
10
Antes de cada reunião do IDEJUST, é divulgado um Edital
que aponta um grande tema, dentre os disponíveis sobre Justiça de
Transição e Internacionalização do Direito. Os trabalhos enviados e
selecionados são apresentados e debatidos durante as reuniões, e os
seus autores passam automaticamente a ser membros do IDEJUST, com
direito a voto nas Plenárias e a inserção dos seus endereços eletrônicos
na intensa e movimentada rede de discussão. Já houve reuniões em São
Paulo, Brasília, Curitiba e Porto Alegre.
Esta é a primeira vez que os trabalhos apresentados em uma
reunião do IDEJUST comporão uma publicação, o que se deve à proposta
maior do Seminário de ter como seus Anais justamente os artigos
apresentados na VI Reunião do IDEJUST e, sem dúvida alguma, ao apoio
fornecido pelas agências de fomento de pesquisa. Assim, agradecemos
sinceramente à CAPES, ao CNPq e à FAPERGS, que, mediante editais
específicos, nos deram o apoio financeiro necessário para que todo o
evento e suas publicações pudessem ocorrer. Agradecemos também ao
apoio financeiro e logístico da Comissão de Anistia do Ministério da
Justiça, bem como ao apoio de mesma natureza que nos foi dado pela
Pró-Reitoria de Extensão da PUCRS. Agradecemos igualmente ao apoio
na organização dado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da
PUCRS, pela Faculdade de Direito da PUCRS e pelo Programa de PósGraduação em Ciências Criminais da PUCRS.
Neste volume estão os 16 trabalhos que foram selecionados
e apresentados na VI Reunião do IDEJUST. São trabalhos de grande
qualidade e representativos de uma ampla gama de atores acadêmicos
interessados em discutir e pesquisar a temática. Entre os autores
estão pesquisadores, professores, doutorandos, mestrandos, bolsistas
de iniciação científica e graduandos, todos oriundos de diferentes
localidades e instituições, o que demonstra a disseminação do debate e
da investigação sobre o assunto em todos os níveis do ensino superior.
Entre os autores, há pessoas provenientes das áreas da Filosofia, da
História, da Ciência Política, da Administração e do Direito. Há que se
destacar, porém, o grande número de autores da área do Direito, o que é
um sinal extremamente positivo para a área, visto que até há bem pouco
tempo atrás esse tipo de investigação era praticamente inexistente no
campo das Ciências Jurídicas.
11
Entendemos que não é por acaso que o tema era praticamente
desconhecido e ignorado na área do Direito, afinal o país viveu 21 anos
de uma ditadura que primou por constituir uma legalidade autoritária,
com o objetivo de criar um verniz democrático sobre uma base ditatorial
e repressiva, formando nos meios acadêmicos e profissionais do Direito
consciências entorpecidas que se contentavam com um legalismo rasteiro
de bases autoritárias. Como muitas decisões judiciais recentes vêm dando
prova, infelizmente o país ainda se ressente desse tipo de mentalidade
jurídica, que dá vida nova a leis e raciocínios antigos e autoritários.
Um dos temas centrais tratados neste livro é justamente a postura
do Poder Judiciário brasileiro diante das oportunidades de confrontação
do passado ditatorial e de responsabilização dos agentes públicos que
praticaram crimes de lesa-humanidade. Há trabalhos que questionam
profundamente a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal na
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, proposta pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com o objetivo de
firmar uma interpretação adequada para a Lei de Anistia de 1979. Essa
ação pretendia evitar que a Lei 6.683/79 continuasse sendo um bloqueio
para a responsabilização judicial de agentes públicos torturadores,
assassinos e seus facilitadores, mas foi indeferida pela Corte. A decisão
é analisada em seus fundamentos e em relação ao Direito Internacional,
à Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, mais
especificamente, diante da condenação do Brasil no Caso Gomes Lund,
mais conhecido como Caso Guerrilha do Araguaia, cujo deslinde se
deu meses após a decisão do STF. É o que se pode conferir nos artigos
escritos por Roberta Cunha de Oliveira, Evorah Lusci Costa Cardoso,
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto, Ricardo
Silveira Castro e Robert Rigobert Lucht.
Há também artigos que enfrentam outras decisões judiciais
reticentes diante da questão como o escrito por Carlos Augusto de Oliveira
Diniz e Alessandro Martins Prado a respeito do não recebimento de
denúncia pela Justiça Federal contra Sebastião Curió, um dos principais
promotores dos desaparecimentos forçados ocorridos na Guerrilha
do Araguaia; e o escrito por Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno
Konrad que buscam retratar, em uma perspectiva historiográfica, a
atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército de 1970 a 1976 e o seu
enfrentamento por parte do Ministério Público Federal, inclusive
12
com a propositura de Ação Civil Pública no ano de 2008 que exigia a
responsabilidade civil do Coronel Brilhante Ustra, ex-comandante
da Operação Bandeirante em São Paulo durante a ditadura, de Audir
Maciel, também ex-comandante do DOI/CODI, e do próprio Estado
brasileiro pela perseguição, morte e desaparecimento de várias pessoas.
Tal ação, contudo, foi extinta pela Justiça Federal logo após a decisão do
STF na ADPF 153, ainda que se tratasse de um caso de responsabilidade
civil e não penal.
Alguns trabalhos aqui publicados trazem, ainda, uma
perspectiva latino-americana e comparada, tanto dos regimes ditatoriais
que infectaram o continente nos anos 60 e 70 como dos modos de
enfrentamento do seu legado nos períodos pós-ditatoriais. É o caso dos
artigos escritos por Rodrigo Lentz (Brasil, Chile e Argentina), Cláucia
Piccolli Faganello e Iris Pereira Guedes (Brasil e Uruguai) e Rodrigo
Andrés González-Fuentes Rubilar (Chile).
A Comissão da Verdade no Brasil, tema que vem suscitando tanto
interesse e atenção no contexto brasileiro, também vem diretamente
abordado nos artigos de Ana Carolina Seffrin, Jânia Saldanha, Márcio
Morais Brum, Rafaela da Cruz Mello e Tiéli Zamperetti Donadel.
Traçando estudos e preocupações mais conceituais e filosóficas, com
especial apego ao pensamento de Walter Benjamin, estão os artigos
de Eduardo Tergolina Teixeira e de Vanessa Dornelles Schinke. E,
por fim, trazendo à tona a preocupação com o pilar da Reforma das
Instituições de Segurança no viés da Justiça de Transição, focando
mais especificamente preocupações relacionadas à política criminal, ao
Direito Penal e à Polícia Militar estão os artigos de Rodrigo Deodato de
Souza Silva e Luigi Bonizzato.
Acreditamos que a coletânea de trabalhos aqui publicados presta
uma importante contribuição para o estudo e o avanço das pesquisas
relacionadas à Justiça de Transição no Brasil, representando, ademais, o
grande êxito na criação e desenvolvimento das atividades do IDEJUST,
na medida em que torna realidade os seus dois maiores objetivos: a
criação de uma rede de pesquisadores e estudiosos latino-americanos
sobre o tema da Justiça de Transição e da Internacionalização do Direito
e o consequente aprofundamento e disseminação das investigações
científicas sobre tais temas.
13
José Carlos Moreira da Silva Filho (PUCRS)
Paulo Abrão Pires Junior (CA/MJ)
Deisy Ventura (USP)
Marcelo Cattoni (UFMG)
Katya Kozicki (UFPR e PUCPR)
Marcelo Dalmás Torelly (CA/MJ)
Renan Quinalha (USP)
(Membros da Diretoria do IDEJUST)
Los derechos de la víctima como límite a
las medidas adoptadas en el marco de la
Justicia Transicional: en especial el caso
de la amnistía chilena
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
1 El test de proporcionalidad y los derechos de las víctimas
Una de las características propias de la justicia de transición
(en adelante JT) es su constante dilema entre justicia y paz. La
difícil tarea de conseguir el correcto balance entre ambas se puede
lograr a través del uso del llamado test de proporcionalidad. Este
test implica someter cada medida contraria a la persecución penal
a tres niveles de evaluación.1 Así, en primer lugar, la medida debe
ser apropiada para alcanzar el objetivo pretendido, es decir, paz en
la sociedad. Dentro de este nivel, se debe observar qué tan serio es
el objetivo perseguido por la medida.2 Esto se podría entender como
un proceso mental positivo, que permite determinar si la medida es
apta para conseguir su objetivo. En segundo lugar, la medida debe ser
necesaria o indispensable para alcanzar el objetivo; ello quiere decir
que si existe otra medida que permita obtener el mismo resultado de
manera menos invasiva, ella deberá ser preferida.3 A diferencia del
primer nivel, aquí se trata de un proceso mental negativo, a través
del cual se eliminan todas aquellas medidas que sean más contrarias
a la persecución. En tercer lugar, una vez que se ha constatado
que la medida es necesaria para la consecución del balance,
Véase Kai AMBOS, ‘The Legal Framework of the Transitional Justice: A Systematic Study with
a Special Focus on the Role of the ICC’, en: Ambos/Large/Wierda (eds.) Building a Future on
Peace and Justice, Studies on Transitional Justice, Peace and Development, Springer, BerlinHeidelberg, 2009, 19-103, pp. 49-53.
1
2
AMBOS (nota 1) p. 50.
3
AMBOS (nota 1) p. 50.
16
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
se debe determinar la amplitud de ella a través de la proporcionalidad
stricto sensu.4
Ahora bien, dentro de este esquema de proporcionalidad
deben ser considerados los derechos de las víctimas como un límite
a la aplicación de cualquier medida. Así, por más que la medida sea
apropiada y necesaria para obtener el balance justicia-paz, si ella no
cumple con los niveles de exigibilidad requeridos por los derechos
de las víctimas, entonces la medida deberá ser desechada. Desde
la perspectiva del esquema planteado, la satisfacción del grado de
exigibilidad de los derechos de las víctimas debería ser analizado
conjuntamente con el test de proporcionalidad stricto sensu.
2 La víctima en el contexto de la Justicia de transición
La JT, como rama de estudio de carácter multidisciplinario,
ha estado en constante evolución gracias a los aportes tanto de la
doctrina como también de la experiencia arrojada por la aplicación de
instrumentos de transición. Producto de esta evolución, el enfoque la
de JT ha cambiado en las últimas décadas. Así, mientras la JT de las
décadas anteriores exigía la consecución de la democracia por sobre
los derechos de las víctimas,5 la noción actual de ella está dirigida
principalmente al respeto y promoción de los derechos de las víctimas.6
Debido a lo anterior, la adopción y la extensión de cada una de
las medidas en el contexto de la JT deben considerar como límite los
derechos de las vícitmas.7 La presencia de estos derechos se justifica, a
4
AMBOS (nota 1) p. 50-51.
Esperanza NAJAR MORENO, Derecho a la Verdad y Justicia Transicional en el Marco de la
Aplicación de la Ley de Justicia y Paz, Grupo Editorial Ibáñez, Bogotá, 2009, p. 81.
5
AMBOS (nota 1) p. 33; Mark FREEMAN/Drazan DJUKIC, ‘Jus post bellum and transitional
justice’, en: Carsten/Kleffner (eds.) Jus Post Bellum, Towards a Law of Transition from Conflict
to Peace, T.M.C. Asser Press, The Hague, 2008, Chapter 11, 213-227, p. 218; Felipe GÓMEZ ISA,
‘Retos de la justicia en contextos no transicionales: el caso de Colombia’, en: Reed/Rivera (eds.)
Transiciones en Contienda, Dilemas de la justicia transicional en Colombia y en la experiencia
comparada, Centro Internacional para la Justicia Transicional, Bogotá, 2010, 188-210, p. 200.
6
7
El concepto de víctima en diferentes instrumentos internacionale ver en M. Cherif BASSIOUNI,
‘Victim´s Rights, International Recognition’, en: Bassiouni (ed.) The Pursuit of International
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
17
su vez, gracias al paradigma de la justicia restaurativa, el cual no centra
su atención en el conflicto, sino en la víctima.8 Por su parte, diferentes
instrumentos internacionales,9 regionales10 y nacionales han contribuido
al reconocimiento de los derechos de las víctimas.
De acuerdo a Bassiouni, los derechos de las víctimas encuentran
una base jurídica tanto en instrumentos internacionales, como en la
costumbre internacional.11 Sin embargo, tales derechos se han visto
reafirmados gracias a la dictación de los 2006 Basic Principles and
Guidelines.12 De acuerdo a este instrumento, se entiende por víctima:
a toda persona que haya sufrido daños, individual o
colectivamente, incluidas lesiones físicas o mentales, sufrimiento
emocional, pérdidas económicas o menoscabo sustancial de
sus derechos fundamentales, como consecuencia de acciones u
omisiones que constituyan una violación manifiesta de las normas
internacionales de derechos humanos o una violación grave del
derecho internacional humanitario. Cuando corresponda, y en
conformidad con el derecho interno, el término “víctima” también
comprenderá a la familia inmediata o las personas a cargo de
la víctima directa y a las personas que hayan sufrido daños al
intervenir para prestar asistencia a víctimas en peligro o para
impedir la victimización.13
Criminal Justice: A World Study on Conflicts, Victimization, and Post-Conflict Justice, v. 1,
Intersentia, Antwerp-Oxford-Portland, 2010, 575-656, pp. 617, 630-632.
8
Antonio BUTI, ‘Restorative Justice’, en: Bassiouni (ed.) The Pursuit of International Criminal
Justice: A World Study on Conflicts, Victimization, and Post-Conflict Justice, v. 1, Intersentia,
Antwerp-Oxford-Portland, 2010, 699-707, p. 700.
Universal Declaration of Human Rights, General Assembly resolution 217 A III, 10.12.1948,
ejemplo arts. 10, 11; Geneva Convention (III) relative to the Treatment of Prisoners of War,
12.08.1949, art. 68; Geneva Convention (IV) relative to the Protection of Civilian Persons in Time
of War, 12.08.1949, arts. 40(3), 51(3), 95(3); Protocol Additional to the Geneva Conventions of
1208.1949, and relating to the Protection of Victims of International Armed Conflicts (Protocol I),
08.06.1977, art. 91.
9
European Convention on Human Rights, Council of Europe, European Treaties, ETS No.
5, 04.11.1950, ejemplo arts. 6, 41; American Convention on Human Rights, Inter-American
Specialized Conference on Human Rights, 22.11.1969, arts. 8, 10, 43; African Charter on Human
and Peoples´ Rights, OAU Doc. CAB/LEG/67/3 rev. 5, 21 I.L.M. 58 (1982), 27.06.1981, art. 7;
International Covenant on Civil and Political Rights, General Assembly Resolution (ICCPR) 2200A
(XXI), 16.12.1966, art. 2(3).
10
11
BASSIOUNI (nota 7) p. 590.
12
BASSIOUNI (nota 7) p. 583.
13
2006 Basic Principles and Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross
18
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
Se trata de una definición de carácter amplio que comprende cuatro
categorias de víctima: 1) víctima individual, representada por la persona
que ha sufrido directamente el daño; 2) víctimas colectivas, todas aquellas
que sufren un daño en virtud de su pertenencia a una comunidad o a un
grupo específico (pudiendo este grupo existir antes o después del daño);14
3) víctimas indirectas, es decir, aquellas que soportan las consecuencias
de la violación principal, como por ejemplo los dependientes o miembros
de la familia de la vícitma directa; y 4) personas que han sufrido un daño
como consecuencia de dar asistencia a una víctima o por haber intentado
evitar la comisión del crimen. Además, la misma disposición establece
que los Estados deben reconocer las dos primeras categorías como
obligatorias, mientras que las últimas dos, quedan a criterio de cada
Estado, según las consideración generales del derecho nacional.
Víctimas pueden ser tanto aquellas que son parte del grupo que
sufre la opresión de un régimen como también los miembros de dicho
régimen a manos de grupos insurgentes. Tratándose de una transición
posterior a un conflicto bélico, víctimas pueden encontrarse tanto en el
bando vencedor como en el vencido. Debido a esta consideración dual de
víctima es que resulta criticable la exclusión en el programa de reparación
implementado en Perú de los miembros de los grupo Sendero Luminoso
y Movimiento Revolucionario Túpac Amaru.15
3 La víctima como factor relevante en la noción de
impunidad por la comisión de crímenes fundamentales
La noción de impunidad por la comisión de crímenes
fundamentales (core crimes) es diferente a la que deriva de la comisión
de crimenes comunes. Tal diferenciación puede ser fundada en la noción
Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of International Humanitarian
Law (van Boven Principles), UN General Assembly Resolution 60/147, 16.12.2005, Principle 8.
Heidy ROMBOUTS/Pietro SARDARO/Stef VANDEGINSTE, ‘The Right to Reparation for
Victims of Gross and Systematic Violations of Human Rights’, en: De Feyter et al. (eds) Out of the
Ashes, Reparation for Victims of Gross and Systematic Human Rights Violations, Intersentia,
Antwerpen-Oxford, 2005, 345-503, p. 467.
14
15
Cfr. ley 28.592, 20.07.2005, art. 4.
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
19
de víctima. Así, mientras la impunidad por la comisión de crímenes
comunes se refiere a la falta de castigo por un delito específico que
afecta a la víctima en su calidad de individuo; la impunidad en caso de
crímenes fundamentales proviene de la falta de persecución y castigo
de hechos que han afectado a la humanidad como un todo.16 La falta
de persecución y castigo por violaciones a los derechos humanos es lo
que Ambos denomina impunidad material en sentido restringido.17 La
víctima también es mencionada como eje central dentro de la noción de
impunidad por Orentlicher en los siguientes términos:
La impunidad constituye una infracción de las
obligaciones que tienen los Estados de investigar las violaciones,
adoptar medidas apropiadas respecto de sus autores, especialmente
en la esfera de la justicia, para que las personas sospechosas de
responsabilidad penal sean procesadas, juzgadas y condenadas a
penas apropiadas, de garantizar a las víctimas recursos eficaces y
la reparación de los perjuicios sufridos de garantizar el derecho
inalienable a conocer la verdad y de tomar todas las medidas
necesarias para evitar la repetición de dichas violaciones.18
De esta manera, con el objeto de evitar situaciones de impunidad
derivada de la commisión de crímenes fundamentales, cada una de las
medidad adoptadas durante la transición deberá ser sometida al test de
grado de exigibilidad de los derechos de las víctimas.
4 Los derechos de las víctimas
Los derechos de las víctimas pueden ser resumidos en tres:
derecho a la verdad, derecho a la justicia y derecho a la reparación.19
Véase ICTY, Prosecutor vs. Erdermovic, Case IT-96-22-T, Sentencing Judgment, 29.11.1996,
para 19, para 28.
16
17
Kai AMBOS, Impunidad y Derecho Penal Internacional, 2nd ed., Ad Hoc, Buenos Aires, 1999, p. 35.
Diana ORENTLICHER, Report of the independent expert to update the Set of principles to
combat impunity, Addendum Updated Set of principles for the protection and promotion of human
rights through action to combat impunity, E/CN.4/2005/102/Add.1, 08.02.2005, Principle 1.
18
19
2006 Basic Principles and Guidelines (nota 13) Principle 11.
20
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
a) Derecho a la verdad
El derecho a la verdad consiste en la obligación del Estado de
investigar y de dar información a las víctimas, a sus familiars y a
toda la sociedad sobre las circunstancias relativas a violaciones a los
derechos humanos.20
El origen del derecho a la verdad puede ser establecido con
el derecho de las familias de conocer el destino de sus parientes,
reconocido en el derecho internacional humanitario.21 A pesar de que
el derecho a la verdad no está “expresamente referido”22 en ninguna
convención de derechos humanos, sí ha sido considerado en algunos
instrumentos como un principio. Así, los Updated Set of Principles
for the Protection and Promotion of Human Rights through Action to
Combat Impunity, en su principio 4 establece el derecho a conocer la
verdad y el destino de la víctima,23 mientras que el principio 2 es aún
más enfáctico, pues califica al derecho a la verdad como inalienable.24
Los principios de van Boden también hacen mención expresa a
este derecho, cuyo art. 24 establece que las víctimas deben “obtain
information on the causes leading to their victimization”25 y dentro de
este deber de informar se puede situar el derecho a la verdad. Por su
parte, tanto la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos
Humanos (CIDH) como por la Corte Europea de Derechos Humanos
(CEDH) han considerado al derecho a la verdad como un deber para
los Estados, argumentando a partir de otros derechos fundamentales.26
En relación con la jurisprudencia internacional, el derecho a la verdad
20
ROMBOUTS/SARDARO/VANDEGINSTE (nota 14) p. 405; Stefanie BOCK, Das Opfer vor dem
Internationalen Strafgerichtshof, Duncker & Humblot, Berlin, 2010, p. 174; CIDH, Barrios Altos v
Peru, Judgement Series C 75 14.03.2001, para 48; CIDH, Baldeón García v Peru, Judgment, Series C
147, 06.04.2006, para 196; CIDH, Almonacid Arellano et al. v. Chile, judgment 26.09.2006, Series C
154, para 148 et seq.; CIDH, Ituango Massacre v Colombia, Judgment, Series C 148, 01.07.2006, para
399; CEDH, Hugh Jordan v United Kingdom, Judgment 24746/94 (2001) 327, 04.05.2001, para 93.
21
Cfr. por ejemplo art. 32, 33 y 34 Protocol I of Geneva Conventions relating to the Protection
of Victims of International Armed Conflicts, 08.06.1977, respecto de personas desaparecidas y
muertas. Cfr. también American Convention on Human Rights (nota 10) art. 1, 8, 25.
22
MALLINDER (nota 94) p. 212.
UN Updated set of principles for the protection and promotion of human rights through action
to combat impunity, E/CN.4/2005/102/Add.1, 08.02.2005, Principle 4.
23
24
UN Updated set of principles for the protection and promotion (nota 23) Principle 2.
25
BOCK (nota 20) p. 179 en relación con 2006 Basic Principles and Guidelines (nota 13) Principle 24.
En este sentido Yasmin NAQVI, ‘Verdad en el Derecho Internacional: ¿Realidad o Ficción?’, 862
IRRC 2006, 1-33, p. 27.
26
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
21
cobra relevancia gracias a la figura de la desparación forzada,27 la cual
fue utilizada como mecanismo de opresión en contra de los disidentes
de las dictaduras en América Latina.28 Todo lo anterior permite
concluir que el derecho a la verdad se ha convertido en una norma
de la costumbre internacional y en un principio general de derecho
internacional.29 Ahora bien, en el ámbito nacional, el derecho a la
verdad puede encontrarse implícito y, por ende, deducido de otros
derechos, como el derecho a obtener información y el derecho a obtener
justicia. A su vez, en los contextos transicionales, el establecimiento
de una Comisión de Verdad y Reconciliación (CVR) constituye una
manifestación de que el Estado considera a la verdad como una
garantía que no puede eludir.30
Además del objetivo principal del derecho la verdad, de
obtener la información relativa a las circunstancias que rodearon
las violaciones a los derechos humanos, se pueden mencionar otras
finalidades. En primer lugar, la verdad constituye un medio para
evitar la repetición de violaciones a los derechos humanos en el
futuro,31 pues conciendo las causas que originaron su producción
es posible tomar las medidas necesarias para que tales hechos no
vuelvan a producirse. En segundo lugar, la verdad respresenta un
instrumento de reparación para las víctimas,32 especialmente cuando
Cfr. CIDH, Velásquez Rodríguez v. Honduras, Merits, Judgment, 29.07.1988, Series C 4, para
181; CIDH, Anzualdo-Castro v. Peru. Preliminary Objection, Merits, Reparations and Costs.
Judgment 22.09.2009, Series C No. 202, para 63, 118-119; ComIDH, Parada Cea v El Salvador,
Report N° 1/99, Case 10.480, 27.01.1999, para. 150.
27
Kai AMBOS/María Laura BÖHM, ‘La desaparición forzada de personas como tipo penal
autónomo’, en: Ambos (coord.) Desaparición Forzada de Personas, análisis comparativo e
Internacional, GTZ et al. Bogotá, 2009, 195-255, p. 199 con notas 8 y 9; cfr. CIDH, Velásquez
Rodríguez v. Honduras (nota 27) para 149.
28
29
AMBOS (nota 1) p. 36 con nota 100.
30
AMBOS (nota 1) p. 35-36.
31
Cfr. ComIDH, Chafeau Orayace et al.v Chile, Report N° 25/98, Case 11.505, 07.04. 1998, para. 95.
Respecto a las cortes internacionales, cuestionable para Stephen PETÉ/Max du PLESSIS,
‘Reparations for Gross Violations of Human Rights Context’, en: du Plessis/Peté (ed.) Repairing
the Past?, International Perspectives on Reparations for Gross Human Rights Abuses, Intersentia,
Antwerpen-Oxford, 2007, 3-28, p. 15-17. ComIDH, Monsignor Oscar Arnulfo Romero y Galíndez
v El Salvador, Report N° 37/00, Case 11.481, 13.04.2000, para. 148; ComIDH, Chafeau Orayace
et al. v Chile (nota 31) para 95. CIDH, Trujillo Oroza v Bolivia, Reparation and Costs, Judgment
27.02.2002, Series C No 92, para 114; CIDH, Castillo-Páez v Peru, Merits, Judgment 03.11.1997,
Series C No 34, para. 90, CIDH, Bámaca Velásquez v. Guatemala, Reparations, Judgment,
22.02.2002, Series C No 91, para. 76.
32
22
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
se ha promulgado una ley de amnistía.33 En tercer lugar, la obtención
de verdad permite legitimar las decisiones de carácter político
adoptads durante la transición,34 en el sentido de que aquellas no
pueden limitar el derecho a la verdad.
La obtención de verdad representa, por tanto, un factor
primordial para considerar exitosa a una transición.35 La verdad no
admite ningún tipo de limitación,36 ni siquiera la urgente consolidación
de la paz; debe considerarse un derecho imperativo,37 absoluto,38
inalienable y autónomo.39 La verdad es también esencial para obtener
la reconciliación,40 y siendo esta la finalidad última que persigue la JT,
se debe entender que la verdad es también esencial para la JT.41
b) Derecho a la justicia
El derecho a la justicia comprende tanto la obligación de
investigar y determinar responsabilidades respecto de violaciones a los
derechos humanos y otorgar a las víctimas un medio judicial efectivo
de acuerdo al derecho internacional.42 Debido al carácter disfuncional
33
ComIDH, Parada Cea v El Salvador (nota 27) para 150.
José ZALAQUETT, ‘Confronting Human Rights Violations Committed by Former Governments:
Principles Applicable and Political Constraints’, en: Kritz (ed.) Transitional Justice, How emerging
democracies reckon with former regimes, vol. 1, United States Institute of Peace Press, Washington
D.C., 1995 (reprint 2004) 3-31, pp. 6-9.
34
NAJAR MORENO (nota 5) p. 94; cfr. también David TOLBERT/Alexander KONTIC, ‘The
International Criminal Tribunal for the former Yugoslavia: Transitional Justice, the Transfer
of Cases to National Courts, and Lessons for the ICC’, en: Stahn/Sluiter (eds.) The Emerging
Practice of the International Criminal Court, Martinus Nijhoff Publishers, Leiden-Boston, 2009,
Chapter 9, 135-162, p. 159.
35
NAJAR MORENO (nota 5) p. 95; para Jon ELSTER, ‘Justice, truth, peace’, en: Bergsmo/
Kalmanovitz (eds.) Law in Peace Negotiations, Forum for International Criminal and
Humanitarian Law (FICHL), Series No 5, Oslo, 2009, 21-28, p. 23 la verdad puede ser reemplazada
por la justicia. Véase también NAQVI (nota 26) p. 24-25.
36
M. Cherif BASSIOUNI, ‘Searching for peace and achieving justice: the need for accountability’,
59 (4) Law and Contemporary Problems Autumn 1996, 9-28, p. 24; idem (nota 7) p. 651.
37
Gonzalo AGUILAR CAVALLO, ‘Crímenes Internacionales y la Imprescriptibilidad de la Acción
Penal y Civil: Referencia al Caso Chileno’, 14 (2) Ius et Praxis 2008, 147-207, p. 157.
38
39
UN, Economical and Social Council, Commission on Human Rights, 62nd session, Distr.
GENERAL E/CN.4/2006/91, 08.02.2006, para. 55.
José ZALAQUETT, ‘Why deal with the past?’, en: Boraine/Levy/Scheffer (eds.) Dealing with the
Past: Truth and Reconciliation in South Africa, 2nd ed., IDASA, Cape Town, 1997, 8-15, p. 13.
40
41
BASSIOUNI (nota 37) p. 23.
42
2006 Basic Principles and Guidelines (nota 13) Principle 12.
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
23
que representa este derecho en una etapa de transición, su ejercicio
puede ser deficiente.43
El derecho de las víctimas a la justicia conlleva a su vez una
serie de obligaciones para los Estados, las que según la CIDH y la
CEDH se encuentran relacionadas con el derecho a reparación.44 Tales
obligaciones son las siguientes:45
aa) Otorgar un medio legal efectivo a las víctimas:46
Este deber implica que el Estado dé información sobre cuáles
son los medios legales47 puestos a disposición para la persecución
de las violaciones a derechos humanos.48 Al mismo tiempo, tal
deber representa una garantía para las víctimas de participar en las
diferentes etapas de los procedimientos49 y perseguir reparaciones
por los daños sufridos.50
43
FREEMAN/DJUKIC (nota 6) p. 215.
CEDH, Aksoy v. Turkey, Judgment 18.12.1996, Application No 21987/93, para 98; CIDH,
Velásquez Rodríguez v. Honduras (nota 27) para. 174. Véase 2006 Basic Principles and Guidelines
(nota 13) Principle 22 (f).
44
45
Gonzalo RAMÍREZ CLEVES, en: Uprimny et al. (eds.) Justicia transicional sin transición?
Verdad, justicia y reparación para Colombia, Centro de estudios de derecho, justicia y sociedad,
Bogotá, 2006, 262-268, p. 264. Disponible en: <http://www.scielo.org.co/pdf/ef/n36/n36a16.
pdf> (Visto por última vez: 12.02.2012).
46
UN Declaration of Basic Principles of Justice for Victims of Crime and Abuse of Power, General
Assembly resolution 40/34, 29.11.1985, Principle 4: Las víctimas “(…) are entitled to access to the
mechanisms of justice and to prompt redress, as provided for by national legislation, for the harm
that they have suffered.”
47
En relación con la ineficacia de un instrumento véase CIDH, Las Dos Erres Masacre v
Guatemala, Judgment (Preliminary Objection, Merits, Reparations and Costs), 24.11.2009,
Series C No 211, para. 121.
48
2006 Basic Principles and Guidelines (nota 13) Principle 12 (a).
Cfr. CIDH, Anzualdo-Castro v. Peru (nota 27) para 183; CIDH, Caracazo v Venezuela,
Reparations and Costs 29.08.2002, para 118; CIDH, Rosendo Cantú and other v Mexico,
Preliminary Objection, Merits, Reparations, and Costs Series C No 216, 31.08.2010, para 213.
49
50
Cfr. Principles 12, 13, y 14 2006 Basic Principles and Guidelines (nota 13). Cfr. también art.
8. Universal Declaration of Human Rights, A/RES/217, UN-Doc. 217/A-(III), 10.12.1948, art.
6 Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination, UN General Assembly
Resolution 2106 (XX), 21.12.1965; art. 2 (3) ICCPR, UN Doc. A/6316, 19.12.1966; art. 13 European
Convention on Human Rights, Council of Europe, European Treaties, ETS No. 5, 04.11.1950; art.
25 American Convention on Human Rights (nota 10); CIDH, Rosendo Cantú and other v Mexico
(nota 49) para. 213
24
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
bb) Investigar e iniciar la persecución penal:
Tales obligaciones, junto con la de aplicar un castigo penal,
son consideradas como una forma de reparación.51 Esta obligación
debe ser asumida de manera seria por el Estado y no como una mera
formalidad52 pues su incumplimiento deriva en impunidad.53 Los 2006
Basic Principles and Guidelines establecen:
En los casos de violaciones manifiestas de las normas
internacionales de derechos humanos y de violaciones graves del
derecho internacional humanitario que constituyen crímenes en
virtud del derecho internacional, los Estados tienen la obligación
de investigar y, si hay pruebas suficientes, enjuiciar a las personas
presuntamente responsables de las violaciones y, si se las declara
culpables, la obligación de castigarlas.54
De acuerdo a Mallinder para interpretar esta disposición es
necesario, en primer lugar, hacer una distinción entre crímenes que
satisfacen el umbral de un crimen internacional y crímenes que no
alcanzan tal umbral. En el primer caso, la persecución debe entenderse
obligatoria, mientras que en el segundo caso, es posible el uso de otras
medidas.55 Por lo tanto, la gravedad del crimen cometido es relevante
para determinar en qué medida se puede exigir el cumplimiento de
este deber. Por su parte, Robinson, en relación con la posibilidad de
que la Corte Penal Internacional (CPI) no lleve a cabo una persecución
penal, indica que una combinación de un programa de CVR y amnistía
para los responsables de menor rango y una efectiva persecución penal
para los responsables de rango superior, puede impedir la intervención
de la CPI.56 De este modo, la distinción entre responsables de rango
51
CIDH, Velásquez Rodriguez v Honduras, Reparations and Costs, Judgment 21.07.1989, Series C
No 7, para 33. Véase también BASSIOUNI (nota 7) p. 638.
52
CIDH, Velásquez Rodríguez v Honduras (nota 27) para. 177; CIDH, Rosendo Cantú and other
v Mexico (nota 49) para 175; CIDH, Anzualdo-Castro v. Peru (nota 27) para 123; CEDH, Ergi v.
Turkey, Judgment, 28.07.1998, Application No 23818/94, para. 85-86.
53
UN Updated set of Principles for the Protection and Promotion (nota 23) Principle 1.
54
2006 Basic Principles and Guidelines (nota 13) Principle 4.
55
MALLINDER (nota 94) p. 211.
Darryl ROBINSON, Serving the Interests of Justice: Amnesties, Truth Commissions and the
International Criminal Court, 14(3) EJIL 2003, 481-505, pp. 483-484.
56
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
25
inferior y de rango superio también resulta relevante para el ejercicio
del derecho a la justicia.57
Sin embargo, no se debe olvidar que en el marco de la JT, la
justicia debe ser balanceada con la paz. Si este balance arroja que una
persecución penal no es aconsejable, entonces deberá suspenderse hasta
que el peligro de un quiebre en la consolidación de la paz sea superado.
Ahora bien, tal suspensión no debe entenderse como una privación de
derecho de las víctimas a la justicia, pues este derecho implica no solo
la determinación de la responsabilidad penal, sino también los otros
objetivos del proceso, como la obtención de verdad y de reparación. Por
lo tanto, en caso que sea imposible conducir una persecución criminal
deben existir de todos modos otros mecanismos que permitan obtener
la verdad y la reparación. Así, con relación al derecho a la verdad,58
este puede ser alcanzado a través de la investigación de una CVR.59 La
reparación, que en sí misma constituye una manifestación de justicia
para las víctimas,60 puede ser otorgada a través de un programa
institucional de reparación promovido por el Estado.
cc) Observar las reglas del debido proceso:
Los procesos conducidos durante la JT deben respetar las reglas
del debido proceso del mismo modo que aquellos llevados a cabo en
tiempos de la justicia ordinaria. De este modo, principios como el de
inocencia, de investigación tanto de las causales de incriminación como
de exculpación, la no aplicación de torturas a los presuntos culpables,
etc., deben ser tomados en consideración.
57
Iván OROZCO ABAD, Justicia transicional en tiempos del deber de memoria, Temis, Bogotá,
2009, p. 88.
58
CIDH, Las Dos Erres Masacre v. Guatemala (nota 47) para. 149; CIDH, González et al. (“Cotton
Field”) v. Mexico, Judgment (Preliminary Objections, Merits, Reparations, and Costs) 16.11.2009,
Series C 209, para. 454: “The absence of a complete and effective investigation into the facts
constitutes a source of additional suffering and anguish for the victims, who have the right to know
the truth about what happened”; CIDH Heliodoro Portugal v. Panamá, Judgment (Preliminary
Objections, Merits, Reparations and Costs) 12.08.2008, Series C No 186, para.146.
Indicando que para algunas escuelas, la verdad es obtenida de mejor manera a través de la
persecución penal BASSIOUNI (nota 7) p. 639 con nota 311; CIDH, Anzualdo-Castro v. Peru (nota
27) para 119. Véase también Ruti G. TEITEL, ‘Transitional Justice Genealogy’, 16 Harvard Human
Rights Journal 2003, 69-94, p. 79 los fines de la persecución y de la CVR pueden ser considerados
similares para prevenir nuevas violaciones.
59
60
Cfr. BOCK (nota 20) p. 176 con nota 40.
26
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
dd) Sancionar:
Esta obligación debe ser entendida de manera amplia. De
acuerdo a Bassiouni,61 analizando la sentencia Velásquez-Rodríguez
(CIDH), no se excluye dentro de esta obligación la aplicación de
una sanción no-criminal. Así, medidas adimistrativas pueden ser
consideradas como una sanción.
ee) Imponer una sanción proporcionada:62
la aplicación de una pena en concreto dependerá de diferentes
factores o condiciones como la gravedad del delito cometido y las
circunstancias particulares que rodean a la persona condenada.63
En relación con el grado de exibilidad del derecho a la justicia,
Freeman/Djukic señalan que tal derecho debe ser entendido como
una garantia de justicia incompleta. Los autores indican que la justicia
criminal en las sociedades no transicionales solo puede ser satisfecha si
la comisión de crímenes constituye una excepción.64 En el caso que la
comisión de crímenes se convierta en una regla general, el sistema no
transicional no podrá hacerse cargo de ellos.65 De esta manera, si la justicia
ordinaria no puede lidear con la criminalidad bajo tales circunstancias, la
JT menos podrá hacerlo.66 Esto permite entender la razón por la cual, a
nivel internacional, la justicia está dirigida a perseguir los crímenes más
graves cometidos por los responsables de mayor rango.
Más allá del comentario anterior, para determinar el grado de
exigibilidad del derecho a la justicia es necesario hacer previamente la
siguiente precisión. El problema que enfrenta este derecho radica en la
61
BASSIOUNI (nota 7) p. 601.
UN Updated set of principles for the protection and promotion (nota 23) Principle 1; CIDH,
Velásquez Rodríguez v Honduras (nota 27) para 174.
62
63
ICTY-Statute, art. 24-2. Véase también INSTITUTO NACIONAL DE DERECHOS
HUMANOS, Situación de los Derechos Humanos en Chile, Informe anual 2011, p.
253. Disponible en: <http://www.indh.cl/informe-anual-2011-de-derechos-humanos-enchile> (Visto por última vez: 20.02.2012).
64
FREEMAN/DJUKIC (nota 6) p. 216.
Los sistemas judiciales nacionales están contemplados para lidear con la criminalidad común
y no con violaciones masivas a los derechos humanos, Jeremy SARKIN, ‘Reparations for Gross
Human Rights Violations as an Outcome of Criminal Versus Civil Court Proceedings’, en: De Feyter
et al. (eds) Out of the Ashes, Reparation for Victims of Gross and Systematic Human Rights
Violations, Intersentia, Antwerpen-Oxford, 2005, 151-188, p. 153.
65
66
FREEMAN/DJUKIC (nota 6) p. 216.
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
27
amenaza de un quiebre del nuevo régimen durante los primeros años
de la transición. Por lo tanto, durante esta primera etapa, el derecho a
la justicia pueder ser entendido como relativo o absoluto, según si se
le considera en términos amplios o restringidos. Así, por un lado, si el
derecho a la justicia se considera en un sentido restringido, es decir,
como el deber del Estado de llevar a cabo la persecución criminal,
entonces debe ser entendido como relativo. Las circunstancias
particulares de cada realidad transicional pueden demostrar que una
persecución penal arriesgaría el balance justicia-paz. Por otro lado,
si el derecho a la justicia es considerado en sentido amplio, es decir,
no solo como persecución penal, sino también la inclusión de otros
mecanismos que permiten alcanzar también algunos de los fines del
proceso, entonces debe entenderse como un derecho absoluto. Sin
embargo, una vez que desaparezca la amenaza de un quiebre en la
consolidación de la paz, el derecho a la justicia revive en su aspecto de
persecución penal respecto de crímenes fundamentales.
c) Derecho a la reparación
El derecho a la reparación juega un rol de importancia en el ámbito
de la JT, pues constribuye al reconocimiento de la calidad de víctima,67
reafirmando el Estado de Derecho a través de la reconstrucción de
los vínculos sociales y cívicos.68 Precisamente, debido a este carácter
reconstructivo es que De Greiff señala que la reparación tiene un
carácter más político que jurídico.69 Ello se refleja en el hecho de que
a pesar de la importancia de la reparación en el marco de la JT,70
67
ROMBOUTS/SARDARO/VANDEGINSTE (nota 14) p. 354.
Pablo De GREIFF/Marieke WIERDA, ‘The Trust Fund for Victims of the International Criminal
Court: Between Possibilities and Constraints’, en: De Feyter et al. (eds) Out of the Ashes, Reparation
for Victims of Gross and Systematic Human Rights Violations, Intersentia, Antwerpen-Oxford,
2005, 225-243, p. 235.
68
69
Pablo De GREIFF, ‘Justice and Reparations’, en: Miller/Kumar (eds.) Reparations:
Interdisciplinary Inquires, OUP, Oxford, 2007, 153-175, p. 156.
70
Andreas O´SHEA, ‘Reparations under International Criminal Law’, en: Du Plessis/Peté (eds.)
Repairing the Past?, International Perspectives on Reparations for Gross Human Rights Abuses,
Intersentia, Antwerpen-Oxford, 2007, 179-196, p. 181; cfr. BASSIOUNI (nota 7) p. 604, reparación
“(…) is a fundamental component of the process of restorative justice”; Rama MANI, ‘Reparation
as a Component of Transitional Justice: Pursuing ‘Reparative Justice’ in the Aftermath of Violent
Conflict’, en: De Feyter et al. (eds) Out of the Ashes, Reparation for Victims of Gross and Systematic
Human Rights Violations, Intersentia, Antwerpen-Oxford, 2005, 53-82, p. 66.
28
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
su concretización dependerá básicamente de la capacidad económica
del Estado.71
A diferencia del derecho a la verdad y del derecho a la justicia,
el derecho a la reparación no está asistido por un instrumento que
permita su cumplimiento de manera exclusiva.72 Así, mientras
el derecho a la verdad puede ser alcanzado a través de una CVR,
el derecho a la justicia se obtiene principalmente a través de la
persecución penal.73 De este modo opina Mani para quien, a pesar de
que a través de una CVR o de una persecución penal se puede obtener
reparación, el objetivo principal de tales instrumentos es otro, ya
sea la determinación de la verdad (CVR) o de la responsabilidad
individual (persecución penal).74
Desde la perspectiva del Estado, este tiene una obligación
de reparar.75 El fundamento de esta obligación radicaría en el no
cumplimiento del deber de evitar las violaciones a los derechos
humanos comprendido en diversos instrumentos internacionales.76
Con el objeto de determinar el grado de exigibilidad de este
derecho en el contexto de la JT es necesario hacer una distinción
basada en el contenido de la reparación, es decir, entre el derecho a la
verdad como reparación y las otras medidas reparatorias. En el primer
caso, debido a que la verdad es un derecho obligatorio e inalienable
de las víctimas, y siendo además una forma de reparación, entonces
este derecho también debe ser considerado como obligatorio. En el
segundo de los casos, si lo que se repara es distinto a la obtención de
71
Roger DUTHIE, ‘Toward a Development-Sensitive Approach to Transitional Justice’, 2 IJTJ
2008, 292-309, p. 301; cfr. también Martien SCHOTSMANS, ‘Victims’ Expectations, Needs and
Perspectives after Gross and Systematic Human Rights Violations’, en: De Feyter et al. (eds) Out of
the Ashes, Reparation for Victims of Gross and Systematic Human Rights Violations, Intersentia,
Antwerpen-Oxford, 2005, 105-133, p. 127-128.
72
MANI (nota 70) p. 64.
Simone SCHULLER, Versöhnung durch strafrechtliche Aufarbeitung?, Die Verfolgung
von Kriegsverbrechen in Bosnien und Herzegowina, Peter Lang GmbH, Frankfurt am Main,
2010, p. 17-18.
73
74
MANI (nota 70) p. 62-63.
75
2006 Basic Principles and Guidelines (nota 13) Principles 15, 17.
Cfr. por ejemplo Declaration on the Right and Responsibility of Individuals, Groups and Organs
of Society to Promote and Protect Universally Recognized Human Rights and Fundamental
Freedoms, UN General Assembly Resolution 53/144, 08.03.1999, art. 2.1; Inter-American
Convention to Prevent and Punish Torture, 15th regular session of the General Assembly, Cartagena
de Indias, Colombia, 09.12.1985, art. 1; American Convention on Human Rights (nota 10) art. 1.1.
76
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
29
verdad, entonces el derecho a reparación es menos exigible, pues su
cumplimiento dependerá de la capacidad económica del Estado.
d) Interacción entre los tres derechos
A pesar de que cada uno de los derechos de las víctimas es
perfectamente autónomo,77 ellos se encuentran en interacción, siendo el
núcleo de tal interacción el derecho a la verdad. La simbiosis entres los
tres derechos puede ser explicada de la siguiente manera:
1. El derecho a la verdad es absoluto y por ende no puede ser
sometido a ningún tipo de limitación.
2. Respecto del derecho a la justicia es necesario hacer la
siguiente distinción de acuerdo a la finalidad de la persecución penal.
Si se considera la obtención de verdad como objetivo de la persecución
penal, entonces este ámbito de la justicia se satisfará a través de
cualquier medio que permita obtener verdad, como por ejemplo, a
través del trabajo de una CVR, no siendo en definitiva necesaria una
persecución penal en sí misma. Ahora bien, en relación con la finalidad
de obtener responsabilidad, ello parece solo alcanzable a través de una
persecución criminal, ante lo cual es necesario previamente determinar
si dicha persecución puede afectar o no la consolidación del régimen
democrático. Si la amenaza existe, entonces el cumplimiento del derecho
a la justicia estará suspendido. Una vez que desaparezca la amenaza,
entonces el derecho vuelve a ser completamente obligatorio.
3. La verdad representa una forma de reparación.78 Esto
es especialmente trascendental respecto de los familiares de las
víctimas desaparecidas o muertas. La recuperación del cadáver y el
conocimeinto de las circunstancias que rodearon la muerte resultan
más importantes que la reparación económica en sí. De este modo, la
reparación debe incluir el derecho a la verdad y nunca ser reemplazada
por una reparación de tipo económica.79
Juan MÉNDEZ, ‘Accountability for Past Abuses’, 19 (2) Human Rights Quarterly 1997, 255-282,
pp. 255, 263.
77
78
CIDH, Chitay-Nech et al. v. Guatemala. Preliminary Objections, Merits, Reparations, and Costs,
Series C 212, 25.05.2010, para 206.
Brandon HAMBER, ‘The Dilemmas of Reparations: In Search of a Process-Driven Approach’, en:
De Feyter et al. (eds) Out of the Ashes, Reparation for Victims of Gross and Systematic Human
Rights Violations, Intersentia, Antwerpen-Oxford, 2005, 135-149, p. 139.
79
30
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
5 La admisibilidad de la amnistía como mecanismo de JT
En el marco de la JT, la amnistía ha jugado un rol de importancia
a pesar de las críticas planteadas por la comunidad internacional en el
sentido de que representa una infracción a los derechos de las víctimas.80
La amnistía consiste en una decisión política de excluir la persecución
y el castigo penal respecto de crímenes cometido en el pasado.81 Esto
permite concluir que la amnistía es siempre retroactiva.82
Las amnistías pueden ser dictadas de acuerdo al ordenamiento
interno, pero al mismo tiempo pueden transgredir las obligaciones
internacionales a las que están sujetas los Estados.83 Al respecto se
debe dejar en claro que la amnistía tiene un carácter territorial y por lo
tanto, solo tiene validez dentro del territorio del Estado que la otorga.84
En consecuencia, un tercer Estado puede conducir una persecución
penal, si sus requisitos generales son satisfechos, en contra de un
ciudadano del Estado que ha otorgado la amnistía, a pesar de haber
sido beneficiado con la medida.85 Esto es posible en virtud del principio
de la jurisdicción universal.86 En tal caso, no existe una violación de la
Louise MALLINDER, ‘Exploring the Practice of States in Introducing Amnesties’, en: Ambos/
Large/Wierda (eds.) Building a Future on Peace and Justice, Studies on Transitional Justice,
Peace and Development, Springer, Berlin-Heidelberg, 2009, 127-171, p. 127.
80
Para una definción de amnistía ver Black´s Law Dictionary, Garner (ed.) 8th ed., Thomson West,
St. Paul, 2004 (reprint 2007) p. 93.
81
82
MALLINDER (nota 80) p. 132.
Diane ORENTLICHER, ‘Settling Accounts: The Duty to Prosecute Human Rights Violations
of a Prior Regime’, en: Kritz (ed.) Transitional Justice, How emerging democracies reckon with
former regimes, vol. I, United States Institute of Peace Press, Washington D.C., 1995 (reprint
2004), 375-416, p. 385.
83
84
Carsten STAHN, ‘La Geometría de la Justicia Transicional: Opciones de Diseño Institucional’, en:
Rettberg (coord.) Entre el Perdón y el Paredón. Preguntas y Dilemas de la Justicia Transicional,
Universidad de los Andes, Bogotá, 2005, 81- 142, pp. 82-83; cfr. también ICTY, Prosecutor v.
Furundzija, Judgement, 10.12.1998, N° IT-95-17/1, para. 155, según la cual una amnistía nacional
respecto del crimen de tortura “would not be accorded international legal recognition.” De acuerdo
a Catalina BOTERO/Esteban RESTREPO, ‘Estándares internacionales y procesos de transición en
Colombia’, en: Rettberg (ed.), Entre el Perdón y el paredón. Preguntas y dilemas de la justicia
transicional, Ediciones Uniandes, Bogotá, 2005,19- 65, p. 30, existe una tendencia de las cortes
internacionales a declarar que medidad nacionales como la amnistía no tienen efecto legal en
materia de crímenes fundamentales.
85
Max Du PLESSIS/Jolyon FORD, ‘Transitional Justice: A Future Truth Commission for
Zimbabwe?’, 58 (1) ICLQ 2009, 73-117, p. 112.
86
Para un desarrollo histórico de la jurisdicción universal véase Mark CHADWICK, ‘Modern
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
31
soberanía del Estado que ha otorgado la amnistía por parte del Estado
que conduce la persecución penal, pues este último solo esta ejerciendo
su propia soberanía.87
De acuerdo a la amplitud o no con que se dicten las amnistías, estas
puedes ser clasificadas en amnistías generales y amnistías condicionales.
a) Amnistías generales (Blanket Amnesties)
Amnistías generales son aquellas que han sido otorgadas sin
exigir el cumplimiento de determinadas condiciones por parte del
beneficiario.88 No son admisibles, pues son contrarias a la obligación
de perseguir crimes internacionales89 e impiden la obtención de la
verdad. Así lo ha señalado la jurisprudencia internacional, como
por ejemplo, la CIDH,90 en referencia a los casos de Perú y Chile,91 la
CEDH92 y el ICTY.93
Developments in Universal Jurisdiction: Addressing Impunity in Tibet and Beyond’, 9 ICLR 2009,
359-394, pp. 361-366; cfr. también AMBOS (nota 1) pp. 52-56; Lúcia Elena ARANTES FERREIRA
BASTOS, ‘As leis de anistia face ao direito internacional e à justiça transicional’, en: Prado Soares/
Shimada Kishi (coord.) Memória e Verdade, A Justiça do Transição no Estado Democrático
Brasileiro, Editora Forum, Belo Horizonte, 2009, 169-196, p. 173. En relación al carácter
controversial de este principio véase Antonio REMIRO BROTÓNS, ‘International Law after the
Pinochet Case’, en: M. Davis (ed.) The Pinochet Case: Origins, Progress, and Implications, Institut
of Latin American Studies, London, 231-251, pp. 232, 239.
Alicia GIL GIL, La justicia de Transición en España. De la Amnistía a la memoria histórica,
Atelier, Barcelona, 2009, pp. 113-114.
87
88
Para algunos ejemplos de amnistías véase Naomi ROTH-ARRIAZA, ‘Combating Impunity: some
thoughts on the way forward’, 59(4) Law and Contemporary Problems Autumn 1996, 93-102, p. 94.
Cfr. AMBOS (nota 1) pp. 55, 61; véase también Kai AMBOS, Internationales Strafrecht, 3rd ed., C.H.
Beck, München, 2008, p. 214 “völkerrechtswidrig”; Christine BELL, ‘The “New Law” of Transitional
Justice’, en: Ambos/Large/Wierda (eds.) Building a Future on Peace and Justice, Studies on
Transitional Justice, Peace and Development, Springer, Berlin-Heidelberg, 2009, 105-126, pp. 106107; ARANTES FERREIRA BASTOS (nota 86) p. 181; Helmut GROPENGIEßER/Jörg MEIßNER,
‘Amnesties and the Rome Statute of the International Criminal Court’, 5 ICLR 2005, 267-300, p. 276.
89
Cfr. CIDH, Barrios Altos v. Peru, Judgment, 14.03.2001, Series C 75, para 41, 43; CIDH, La
Cantuta v. Peru, Judgment, 29.11.2006, Series C 162, para. 62, 80, 174; CIDH, Almonacid Arellano
v Chile (nota 20) para. 110, 114.
90
91
Amnistía Perú ley No 26.479, 14.06.1995 (interpretando ley No 26.492); Amnistía Chile Decreto
Ley 2.191, Ley de Amnistía, 19.04.1978.
92
CEDH, Al Adsani v. The United Kingdom, Judgment, 21.12.2001, Application No 33763/97, para. 61.
93
ICTY, Prosecutor v. Furundzija (nota 84) para 148-150.
32
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
b) Amnistía condicional
Las amnistías condicionales son aquellas que, como lo indica
su nombre, se otorgan solo bajo el cumplimiento de determinadas
condiciones. Este tipo de amnistías puede incluso promover justicia,
si esta se entiende en sentido amplio.94 Las razones para dictar una ley
de amnistía son variadas. Desde luego, una amnistía puede convertirse
en un buen instrumento para obtener verdad, pues al cesar la amenaza
de una persecución penal, los presuntos responsables pueden estar
más dispuestos a otorgar la información relativa a la comisión de los
crímenes.95 En este sentio, la amnistía se transforma en un instrumento
de memoria del pasado.96 Esto pareciera ser contradictorio con la
esencia misma de la amnistía, cuyo objetivo precisamente es el olvido.
Sin embargo, se trata de una contradicción aparente pues el olvido
de la amnistía está solo referido a la responsabilidad y no limita el
derecho a la verdad.97
Las condiciones que deben ser satisfechas para obetenr el
beneficio de la amnistía pueden ser clasificadas en dos grupos:
negativas y positivas.
aa) Condiciones negativas
Antes de otorgar una amnistía se debe realizar un test negativo,
es decir, un test que corrobore la ausencia de ciertas circunstancias.
Básicamente, una amnistía no debe ser concedida respecto de
crímenes fundamentales o nucleares98 cometido por personas de
rango superior.99
De acuerdo al test de proporcionalidad propuesto por Ambos
(véase supra), en un nivel abstracto, los crímenes nucleares no pueden
94
Lousie MALLINDER, ‘Can Amnesties and International Justice be Reconciled?’, 1 IJTJ 2007,
208-230, p. 218 et seq.
95
Du PLESSIS/FORD (nota 85) p. 108.
Faustin Z. NTOUBANDI, Amnesty for Crimes against Humanity under International Law,
Martinus Nijhoff Publishers, Leiden-Boston, 2007, p. 229.
96
97
ZALAQUETT (nota 34) p. 16.
Cfr. por ejemplo SCSL, Prosecutor v Kondewa, Decision on Lack of Jurisdiction/Abuse of
Process: Amnesty Provided by the Lomé Accord, 25.05.2004, Case No SCSL-2004-14-AR72(E),
separate opinion of justice Robertson, para. 32-34. Cfr. también CIDH, Barrios Altos v Peru (nota
90) Concurring opinion judge García Ramírez, para 14.
98
99
Cfr. ORENTLICHER (nota 83) p. 406.
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
33
ser objeto de nungún tipo de excepción, menos si han sido cometidos
por funcionarios que ocupan cargos de alta jerarquía.100 Sin embargo,
el mismo autor indica que bajo determinadas circunstancias, ciertas
excepciones pueden ser justificadas.101
bb) Condiciones positivas
Las condiciones positivas son todos aquellos requisitos que debe
cumplir el beneficiario para obtener la amnistía. Tales condiciones son
variadas. Desde luego, en caso de un conflicto aún pendiente, la primera
condición será la consecución de un armisticio.102 Otras condiciones
positivas son la cooperación al establecimiento de la verdad, la conceción
de reparaciones, la petición de disculpas públicas, etc.
6 La inadmisibilidad de la amnistía chilena
En abril de 1978, en el medio del régimen militar, Pinochet
dictó un decreto ley de amnistía (DL 2191) cuya finalidad era evitar
la persecución penal de crímenes cometidos durante el estado
de sitio, es decir, durante el periodo en que tuvo lugar el mayor
número de violaciones graves a los derechos humanos.103 La amnistía
beneficia a “todas las personas que, en calidad de autores, cómplices
o encubridores hayan incurrido en hechos delictuosos, durante la
vigencia de la situación de Estado de Sitio, comprendida entre el 11
de Septiembre de 1973 y el 10 de Marzo de 1978, siempre que no se
encuentren actualmente sometidas a proceso o condenadas” (art. 1).
Si bien se trata de una amnistía que comprende tanto a las personas a
favor como en contra del régimen militar, en la práctica solo resultaron
100
AMBOS (nota 1) p. 65.
101
Cfr. AMBOS (nota 1) p. 65.
AMBOS (nota 1) p. 62; MALLINDER (nota 80) p. 154.
102
Durante este periodo tuvo lugar el mayor número de crímens cometidos. Salvador
MILLALEO HERNÁNDEZ, ‘Chile’, en: Eser/Sieber/Arnold (eds.) Strafrecht in Reaktion auf
Systemunrecht, v. 11, Duncker & Humblot, 2007, Berlin, 23-447, p. 165, indica que el 81,6%
de 3.197 víctimas de homicidio oficialmente reconocidas se encentran cubiertas por el ámbito
temporal de la amnistía.
103
34
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
beneficiados los primeros, pues a la época de la dictación del DL el
número de personas detenidas por motivos políticos se había reducido
debido a la muerte o desaparecimiento de los opositores, o bien a su
expulsión del país.104
De acuerdo a un criterio material, la amnistía es establecida en
terminos amplios, comprendiendo todos los delitos cometidos durante
el estado de sitio, salvo “(...) parricidio, infanticidio, robo con fuerza en
las cosas, o con violencia o intimidación en las personas, elaboración o
tráfico de estupefacientes, sustracción de menores de edad, corrupción
de menores, incendios y otros estragos; violación, estupro, incesto,
manejo en estado de ebriedad, malversación de caudales o efectos
públicos, fraudes y exacciones ilegales, estafas y otros engaños, abusos
deshonestos, delitos contemplados en el decreto ley número 280, de
1974, y sus posteriores modificaciones; cohecho, fraude y contrabando
aduanero y delitos previstos en el Código Tributario.” Por presiones
políticas de Estados Unidos, también se excluyó la causa relativa a
la falsificación de pasaporte, considerado un acto preliminar para el
posterior asesinato de Orlando Letelier in 1976 (art. 4).105
La amnistía chilena puede ser sometida al test de
proporcionalidad y de protección de los derechos de las víctimas, y así
determinar su procedencia en el marco de la JT. Lo primero que se debe
señalar es que se trata de una auto-amnistía, dictada durante el régimen
militar, por lo que su legitimidad ya es criticable. Sin embargo, más allá
de la precisión anterior, la amnistía responde al test de proporcionalidad
y de protección de los derechos de las víctimas de la siguiente manera:
Cristián CORREA, ‘El Decreto Ley de Amnistía: orígenes, aplicación y debate sobre su validez’, en:
Veloso (ed.) Justicia, Derechos Humanos y el Decreto Ley de Amnistía, Santiago, 13-68, p. 16. El autor
indica que, según registros de la Vicaría de la Solidaridad, el DL 2191 permitió la liberación de 387
personas en la región metropolitana.
104
105
Orlando Letelier era el Ministro de Defensa de Salvador Allende al momento de cometerse el golpe
de Estado. Letelier fue arrestado por los militares el mismo día del golpe y trasladado a diferentes
campos de detención, incluyendo la prisión política de la isla Dawson. Luego de su liberación,
Letelier se trasladó a Caracas (Venezuela) junto a su familia para después decidir instalarse en
Washington D.C. Desde Washington encabezó la opisición contra el régime de Pinochet, lo cual le
implicó la pérdida de la nacionalidad chilena. El 21 de septiembre de 1976, Letelier y su secretaria
fueron asesinados a través de un coche bomba. Michael Townley fue condenado como responsable
del ataque por las cortes estadounidenses, mientras que los tribunals chilenos condenaron a
Manuel Contreras y Pedro Espinoza.
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
35
- La amnistía es apropiada, ella representa una de varias medidas
existentes para satisfacer las exigencias de justicia y paz en el
contexto de la transición chilena.
- La amnistía es necesaria, pues no existía otra medida que
pudiese paralizar las persecuciones penales. Las persecuciones
penales, sobre todo a los líderes del régimen militar, constituían
un alto riesgo de quiebre del régimen democrático durante los
primeros años de la transición.
- En cuanto al test del proporcionalidad stricto sensu, la
amnistía contempla diferentes criterios para limitar su
aplicación. Así, un criterio temporal indica que el beneficio
solo se aplica a hechos entre 1l de septiembre de 1973 y el
1º de marzo de 1978. No se establece un criterio material
restringido, pues la amnistía se puede conceder para todos
delitos salvo los que ellla misma menciona (por ejemplo, el
parricidio). Tampoco se contempla un criterio personal ya
que se concede ampliamente tanto a autores, cómplices o
encubridores. La falta o la mala regulación de estos criterios
de limitación ya hacen dudar la admisibilidad de la amnistía.
- Sin embargo, es en materia de derecho de las víctimas donde
la amnistía evidencia sus mayores falencias. Así, la amnistía
se dirige contra la persecución penal, impidiendo cumplir
sus fines, entre otros, la determinación de la verdad. La
necesidad de impedir las persecuciones penales durante los
primeros años de la transición hacía necesaria la existencia
de la amnistía. En este caso, el derecho a la verdad fue
materializado a través del trabajo de las CVRs106 y, al ser
la verdad una forma de reparación, se materializó también
este derecho.
- Ahora bien, en la situación actual de la transición chilena, en
la que la amenaza de un quiebre constitucional ha cesado,
la amnistía resulta abiertamente contraria a los derechos
de las víctimas, pues impide la persecución penal de los
responsables por crímenes fundamentales. Por ende, ella
resulta inadmisible.
Dos CVRs fueron creadas en Chile: 1) La Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación
(Comisión Rettig) y 2) La Comisión Nacional sobre Prisión Política y Tortura (Comisión Valech).
106
36
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
La postura de la inaplicabilidad de la amnistía ha comenzado
tibiamente a desarrollarse a partir del año 1998 cuando la Corte Suprema
decide por primera vez no hacer uso de ella en el caso Poblete Córdova.107
La argumentación se basó en el respeto de las normas internacionales que
obligan a perseguir y juzgar a los responsables de violaciones graves a los
derechos humanos.108 Se trata de una tendencia fuertemente influenciada
por el devenir de la transición chilena. Desde el retorno de la democracia
hasta el arresto de Pinochet en Londres se mantuvo una postura de
impunidad en la jurisprudencia chilena,109 debido a la composición de
los mismos tribunales, especialmente la Corte Suprema. Antes de dejar
el mando del país, Pinochet sustituyó a varios de los miembros de la
Corte Suprema que debían sujetarse a retiro en los próximos años por
jueces que eran simpatizantes del régimen militar.110 Si bien, la detención
de Pinochet en Londres puede ser considerada como un factor a la hora
de fundamentar el cambio de actitud de la jurisprudencia en materia
de derechos humanos, parece más acertada la afirmación de que es el
paso del tiempo y la pérdida cada vez mayor de influencia del régimen
militar en los nuevos gobiernos democráticos lo que ha jugado un rol
relevante. De esta manera, la renovación progresiva de los miembros de
la Corte Suprema, como el aumento de sus integrantes de 17 a 21 en el año
1998, permitió contar con un tribunal compuesto por mayoría de jueces
designados durante la democracia.111
Con una Corte Suprema “más democrática” se comenzó a
delinear el futuro de la amnistía, siendo cada vez más fuerte la tendencia
hacia su rechazo. Actualmente se puede afirmar que la amnistía carece
de aplicación, dejando de ser un mecanismo que impida la consecución
de los fines de la JT.
107
Corte Suprema, sentencia en caso Poblete Córdova, Rol No 469-98, 09.09.1998.
La discusión consistió basicamente en la aplicación de los Convenios de Ginebra y en el carácter
de conflicto no internacional vivido durante el estado de sitio.
108
Francisco BRAVO LÓPEZ, ‘The Pinochet case in the Chilean courts’, en: Davis (ed.) The Pinochet
Case. Origins, Progress and Implications, Institute of Latin American Studies, London, 2003, 107-122,
p. 112. El autor indica, sin embargo, que el mayor periodo de impunidad se registra entre 1990-1996.
109
Jaime COUSO, ‘Transición a la democracia y justicia post-transicional en Chile’, en: Carpio
Delgado/Galán Muñoz (coord.) La transformación jurídica de las dictaduras en democracias
y elaboración jurídica del pasado, Humboldt College, Tirant lo Blanch, Valencia, 2009, 145-188,
p. 160; Alan ANGELL, ‘The Pinochet factor in Chilean politics’, en: Davis (ed.) The Pinochet Case.
Origins, Progress and Implications, Institute of Latin American Studies, London, 2003, 63-84, p. 75.
110
111
Véase COUSO (nota 110) p. 169.
Los derechos de la víctima como límite a las medidas...
37
Conclusión
Las diferentes medidas políticas o jurídicas que se adopten en
el marco de la JT no solo deben estar dirigidas a la consecución del
balance justicia y paz, sino también deben estar sometidas a ciertos
límites que, en defintiva, están reflejados en los derechos de las víctimas.
Tales derechos se resumen en tres: el derecho a la verdad, el derecho a la
justicia y el derecho a la reparación. Ahora bien, el nivel de exigibilidad
de cada uno de ellos es diferente, dependiendo mayormente de la
situación política y de la capacidad económica del país. En todo caso, el
derecho a la verdad se manifiesta como fundamental y, por lo tanto, no
admite nigún tipo de limitación. Por ello, cualquier medida que limite
el derecho a la verdad será inadmisible, salvo que esté acompañada de
otros mecanismos que permitan la realización de aquel derecho (por
ejemplo, una CVR). Sometida al esquema de los níveles de exigibilidad
de los derechos de las víctimas, la amnistía chilena resulta inadmisible
de acuerdo a las condiciones políticas actuales que presenta el país. El
quiebre de la democracia ya no constituye un riesgo, lo que se traduce
en la necesidad de conducir las persecuciones penales sin que exista
ningún tipo de limitación para ello. El uso de la amnistía debe ser, por
tanto, desechado. Así lo ha entendido la Corte Suprema en los últimos
años, dejando sin aplicación el DL 2191 gracias, primordialmente, a la
aplicación de normas de derecho internacional.
Lei de anistia e seletividade do uso do
direito internacional no Supremo Tribunal
Federal: amicus curiae elaborado por
alunos da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo na ADPF 1531*
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Luís Fernando Matricardi Rodrigues
EXCELENTÍSSIMO SENHOR
MINISTRO DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, RELATOR DA
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO
DE PRECEITO FUNDAMENTAL 153
Min. Luiz Fux
O CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO, entidade
representativa dos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo, inscrita no CNPJ sob o nº 53286548/0001-06, com sede
à Rua Riachuelo, 194, CEP: 01007-000, em São Paulo-SP (doc. 01), por
seu presidente André Correia Tredezini, vem perante Vossa Excelência,
através de seus procuradores devidamente habilitados (doc. 02), nos
autos da ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL 153 – sobre a “Lei de Anistia” – manifestar1
“O CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – CFOAB, Impetrante
da presente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, vem à presença de V.
Exa., requerer ADIAMENTO do julgamento dos Embargos de Declaração constantes da Pauta do
dia 22/03. Termos em que, PEDE DEFERIMENTO. Brasília, 21 de março de 2012.” (Cf. última peça
eletrônica disponibilizada, ADPF 153, site do STF).
*
Este amicus curiae é baseado em estudo elaborado por alunos e antigos alunos da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo em disciplina de extensão (Amicus DH), organizada pelo Professor Doutor
Virgílio Afonso da Silva e pela doutoranda Evorah Cardoso. São eles: Cristiane Penhalver Jensen, Daniel
Torres de Melo Ribeiro, Jefferson Nascimento, Luís Fernando Matricardi Rodrigues, Mariana Augusta
dos Santos Zago, Maybi Rodrigues Mota, Renata Chiarinelli Laurino e Victor Marcel Pinheiro.
40
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
se na condição de AMICUS CURIAE por ocasião do julgamento dos
embargos de declaração opostos pelo Conselho Federal da Ordem
dos Advogados do Brasil, com especial interesse no pedido adicional
deduzido pela Embargante em petição própria, pelos fundamentos
apresentados a seguir.
Admissibilidade do Centro Acadêmico XI de Agosto
para habilitação como amicus curiae
A participação do Centro Acadêmico XI de Agosto via
amicus curiae no debate acerca da Lei de Anistia na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 153, corrente neste
Supremo Tribunal Federal, e no Caso Gomes Lund (caso Guerrilha
do Araguaia) vs. Brasil, de competência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, atende ao propósito de ensino e pesquisa do direito
e das instituições jurídicas de forma diferenciada, por buscar intervir
qualificadamente no processo de interpretação e aplicação do direito,
seja ele doméstico ou internacional, em um tema de extrema relevância
para a sociedade, como o tratado neste caso.
Nesse sentido, mostra-se significativa a participação do Centro
Acadêmico XI de Agosto na presente ação, pois a entidade assume um
propósito de ensino de direito e intervenção social diferenciada, baseada
no princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nas
universidades (art. 207, caput, Constituição Federal).
O Centro Acadêmico XI de Agosto é a entidade representativa
dos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
associação civil sem fins lucrativos e apartidária, declarada de utilidade
pública pela Lei Estadual 3.287/55 e pelo Decreto Municipal 3.883/38.
A entidade possui como seus principais objetivos o aperfeiçoamento
constante das condições do ensino jurídico e o desenvolvimento cultural
e político dos estudantes de direito (art. 3º, “b”, do Estatuto Social – doc.
01) e também a luta pelo aperfeiçoamento do direito e das instituições
jurídicas, para que toda a população goze de justiça e de igualdade social
(art. 3º, “h”, do Estatuto Social).
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
41
Também a história política nacional registra sua participação efetiva
em grandes eventos políticos. Trata-se de uma das entidades estudantis
universitárias mais antigas do país, tendo sido fundada em 11 de agosto de
1903 e com notória relevância no movimento estudantil nacional. Prova
disso, tem previsto em seu estatuto o compromisso de organizar e orientar
a luta dos estudantes, ao lado do povo, na construção de uma sociedade
livre, democrática e sem exploração (art. 3º, “e”, do Estatuto Social).
Considerando a importância do tema da ADPF 153, sobre a “Lei
de Anistia”, para a democracia, mostra-se relevante a participação da
entidade nesse caso. Destaca-se o fato de que o Centro Acadêmico XI
de Agosto já vem estudando e discutindo o tema desta ação entre seus
associados por meio principalmente da promoção de eventos, debates
e palestras sobre a “Lei de Anistia”. Isso demonstra efetivo interesse da
entidade sobre o assunto.
A presente manifestação é baseada em estudo elaborado por
alunos e antigos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo em disciplina de extensão (Amicus DH), organizada pelo professor
de Direito Constitucional Virgílio Afonso da Silva e pela doutoranda
Evorah Cardoso, sem vincular a totalidade do corpo discente. São eles:
Cristiane Penhalver Jensen
Daniel Torres de Melo Ribeiro
Jefferson Nascimento
Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Mariana Augusta dos Santos Zago
Maybi Rodrigues Mota
Renata Chiarinelli Laurino
Victor Marcel Pinheiro
Vale ressaltar que o Centro Acadêmico XI de Agosto
também participou como amicus curiae em duas ações diretas de
inconstitucionalidade que versam sobre tema correlato ao deste caso,
nomeadamente, as leis de sigilo de documentos públicos e o acesso à
informação – ADI 4077 e ADI 3987.
Apoiada nessas razões, entende a Requerente que está legitimada
a pleitear o ingresso nos embargos de declaração da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 153 na condição de amicus
curiae, ademais de atender os critérios de relevância da matéria e
representatividade do postulante (art. 7º, §2º, da Lei 9.868/99).
42
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
A participação do amicus curiae na fase recursal de
processo objetivo: superveniência de evento relevante
Descrita a representatividade do Centro Acadêmico XI de Agosto,
passa-se então à sua oportunidade como amicus curiae no presente momento
processual da APDF, isto é, em sede de recurso de embargos de declaração.
Como restará demonstrado, conquanto talvez incomum, o ingresso não é
contrário à jurisprudência consolidada por este Supremo Tribunal, sendo, ao
revés, especificamente justificado pela superveniência de evento que, pelas
consequências fáticas e normativas que traz ao presente julgamento, tornam-lhe
verdadeiramente paradigmático.
Em primeiro lugar, reconhece-se a orientação firmada por esta e. Corte no
julgamento da ADI 4071-AgR/DF, de relatoria do Min. Menezes Direito, segundo
a qual o ingresso de amicus curiae somente pode ser demandado até a liberação
do processo pelo Relator para a pauta. O caso desta ADPF, que havia sido incluída
em pauta, é outro: após solicitação formal do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil1 e deliberação do Tribunal para o adiamento do julgamento
dos embargos de declaração,2 ela não mais se encontra entre os processos arrolados
para a única sessão de julgamento prevista para esta semana, no dia 03/04/2012 (cf.
calendário de julgamentos, site do STF). Inexistindo registro formal de sua retirada
de pauta, a Requerente apoia-se em precedentes desta Corte acedendo à admissão
de terceiros face ao decurso de tempo para julgamento da causa.3
A admissão da presente manifestação em sede recursal, longe de
gerar qualquer tumulto processual, é justificada em razão da relevância das
considerações veiculadas por este amicus curiae sobre evento posterior ao
acórdão deste e. Tribunal – razão pela qual não é, de modo algum, redundante
com os amici curiae já participantes do processo.
“O Tribunal, por unanimidade, deliberou adiar o julgamento por uma sessão. Votou o Presidente,
Ministro Cezar Peluso. Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli. Ausentes, neste adiamento,
os Senhores Ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Plenário, 22.03.2012.” (Cf. último
andamento Processual da ADPF 153, site do STF).
2
“PEDIDO DE INTERVENÇÃO NOS AUTOS COMO AMICUS CURIAE. [...] PEDIDO REALIZADO
MESMO QUE APÓS O ENCERRAMENTO PARA MANIFESTAÇÃO DE TERCEIROS DEVE SER
RECONHECIDO, DEVIDO O DECURSO DE TEMPO PARA JULGAMENTO DA CAUSA. PEDIDO
DEFERIDO.” “5. [...] pelo grande número de processos em pauta aguardando julgamento o
presente feito ainda não pode ser julgado, o que permite a acolhimento do pleito de intervenção
como amicus curiae, mesmo após o transcurso de prazo para manifestação” (RE 567110/AC, Min.
Rel. Carmen Lucia, j. 05/08/2010).
3
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
43
Isso porque, à decisão pela improcedência da ADPF, que declarou
a validade da Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979 (“Lei de Anistia”), em 29
de abril de 2010, seguiu-se a prolação da Sentença no caso Gomes Lund
e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil pela Corte Interamericana
de Direitos Humanos (CrIDH), em 24 de novembro de 2010, condenando
o país por violação dos deveres assumidos na Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (CADH).
Como se detalhará à frente, embora essa não tenha sido a primeira
condenação do Brasil no Sistema Interamericano, ela traz consigo uma
peculiaridade: ao declarar a Lei de Anistia brasileira inválida e rechaçar
sua aplicação pelo judiciário doméstico, a decisão contraria o que (até o
presente momento) é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal
a respeito. É dizer: mantido o acórdão desta ADPF e a sentença Corte
Interamericana em seus termos, coexistirão duas decisões válidas,
oriundas de órgãos competentes, dispondo contrariamente sobre o
mesmo objeto. Este amicus curiae procura atentar para o fato de que
no ordenamento jurídico brasileiro inexistem, hoje, instrumentos
processuais para lidar diretamente com possíveis resultados antagônicos
da rotina decisória de tais cortes. Essa lacuna institucional provoca
o sentimento de “inadequação” do pedido da Embargante por um
posicionamento do Supremo Tribunal Federal face à sentença da CrIDH
em sede de embargos de declaração, como manifestado nos autos pelo
Senado Federal e a Procuradoria Geral da República – os quais, contudo,
não sugeriram meios alternativos para solucionar o problema.
A razão da presente manifestação, assim, está em prover o
STF com considerações descritivas e propositivas acerca da questão
do conflito, surgido apenas posteriormente à decisão nesta ADPF e
expressamente suscitado pela Embargante. Sua discussão na presente
fase recursal se justifica circunstancialmente diante da existência de
decisão internacional que opera efeito imediato sobre todos os órgãos
do Estado brasileiro – incluído o Judiciário –, e institucionalmente face
ao dever de, a um só tempo, garantir a consistência do ordenamento
jurídico interno e a eficácia da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos e da jurisdição da Corte Interamericana, à qual o Brasil
aceitou submeter-se.
Ante o exposto, tem-se que a presente manifestação deve ser
admitida, dado o ineditismo, até aqui, do evento que lhe serve de objeto.
44
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
A discussão por ela lançada, frisa-se, não causa qualquer tumulto
ao processo, senão contribui com considerações ao seu desfecho. Na
condição de instrumento promotor da participação da sociedade em
questões de grande impacto e relevância social, o instituto do amicus
curiae é o veículo democrático por excelência de debates como este, o
que só tem a reforçar, em legitimidade, o processo decisório dos tribunais
(ADI 3268/RJ, Min. Celso de Mello).
Estrutura do amicus curiae
A tese defendida por este amicus curiae é a de que, nos casos
em que se observe incompatibilidade entre decisões do Supremo
Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
haveria uma lacuna no desenho institucional atual do Supremo Tribunal
Federal. Coexistiriam duas decisões válidas, oriundas de órgãos
competentes, dispondo contrariamente sobre o mesmo objeto, que
careceriam de harmonização não apenas em relação aos seus efeitos no
momento de implementação, mas, principalmente, entre o controle de
constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal e o controle
de convencionalidade (adequação à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos) realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Este amicus curiae entende que esta harmonização poderia ser feita de
duas formas: por meio da argumentação e fundamentação das decisões
do Supremo Tribunal Federal, ou por meio de mecanismo processual
específico, ainda inexistente, que permitiria que o tribunal fosse
provocado a reavaliar suas decisões em diálogo com a jurisprudência do
sistema interamericano de direitos humanos. No presente caso acerca
da Lei de Anistia, observa-se decisão anterior do Supremo Tribunal
Federal (ADPF 153) e posterior da Corte Interamericana de Direitos
Humanos [Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil],
sendo que, entre elas, este amicus curiae constata que ainda não houve
harmonização. Ela poderá ser operada por meio de argumentação e
fundamentação da decisão do Supremo Tribunal Federal pontualmente
por ocasião do julgamento destes embargos de declaração, sem, no
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
45
entanto, dissolver a necessidade de adoção de mecanismo processual
específico para tal harmonização em casos futuros.
Lei de Anistia, Supremo Tribunal Federal e Corte
Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao avaliar a
“convencionalidade”4 da Lei de Anistia e dos demais atos e políticas
governamentais do Estado brasileiro no Caso Gomes Lund vs. Brasil,5 além
de confirmar seus standards de proteção de direitos humanos para a região
a respeito de crimes cometidos durante ditaduras (como seus parâmetros
de interpretação e aplicação do direito à verdade, devido processo
legal etc.), obriga o Estado brasileiro a reavaliar o tratamento jurídico
dedicado a uma série desses crimes. Essas obrigações são destinadas a
todos os órgãos do Estado brasileiro, inclusive ao Poder Judiciário na
interpretação dada até então aos efeitos da Lei de Anistia. Destacam-se
entre as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos
aquelas que produzem efeitos mais direcionados ao Poder Judiciário:
1.
A Corte Interamericana reconhece que a Lei de Anistia
brasileira é “inconvencional”, isto é, contrária à Convenção
O juiz Sergio García Ramírez, em diversas oportunidades, aproxima o papel desempenhado pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos ao de uma corte constitucional, pois exerce o “controle
de convencionalidade” (conformidade segundo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos),
assim como as cortes constitucionais realizam o controle de constitucionalidade. Ver e.g. Caso
Vargas Areco vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 26/09/2006, Série C, no.
155; Caso Trabalhadores Cassados do Congresso (Aguado Alfaro e outros) vs. Peru. Exceções
Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24/11/2006, Série C, nº 158, voto separado
do Juiz Sergio García Ramírez; Caso del Penal Miguel Castro Castro vs. Peru. Mérito, Reparações
e Custas. Sentença de 25/11/2006, Série C, no. 160. Ainda sobre o controle de convencionalidade
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ver também Caso Almonacid Arellano e outros vs.
Chile. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 26/09/2006, Série C, nº
154, § 124; Caso La Cantuta vs. Peru. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 29/11/2006, Série
C, nº 162, § 173; Caso Heliodoro Portugal vs. Panamá. Exceções preliminares, mérito, reparações
e custas. Sentença de 12/08/2008, Série C, no. 186, § 180. Ver também Carolina de Campos Melo,
“Transitional Justice in South America: The Role of the Inter-American Court of Human Rights”,
In Revista CEJIL, Ano IV, n. 5, dec. 2009, p. 88.
4
5
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”)
vs. Brasil. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 24/11/2010, Série C Nº 219.
46
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Americana sobre Direitos Humanos, e que o Estado brasileiro
é responsável internacionalmente pela interpretação e aplicação
que foi dada à Lei de Anistia:
3. As disposições da Lei de Anistia brasileira
que impedem a investigação e sanção de graves
violações de direitos humanos são incompatíveis
com a Convenção Americana, carecem de efeitos
jurídicos e não podem seguir representando um
obstáculo para a investigação dos fatos do presente
caso, nem para a identificação e punição dos
responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante
impacto a respeito de outros casos de graves violações de
direitos humanos consagrados na Convenção Americana
ocorridos no Brasil.
5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar
seu direito interno à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação
aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como
consequência da interpretação e aplicação que foi
dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações
de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é
responsável pela violação dos direitos às garantias
judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1
e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela
falta de investigação dos fatos do presente caso,
bem como pela falta de julgamento e sanção dos
responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas
desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos
parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos
parágrafos 137 a 182 da mesma.
2.
Reconhece, ainda, que o Estado brasileiro é responsável
pelo desaparecimento forçado de pessoas e que deve alterar sua
legislação, tipificando este delito. Enquanto esse delito não é
tipificado, deve aplicar todos os mecanismos existentes no direito
brasileiro para o seu julgamento e punição:
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
47
4. O Estado é responsável pelo desaparecimento
forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao
reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à
integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos
artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento,
em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da
presente Sentença, em conformidade com o exposto nos
parágrafos 101 a 125 da mesma.
15. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as
medidas que sejam necessárias para tipificar o delito
de desaparecimento forçado de pessoas em
conformidade com os parâmetros interamericanos, nos
termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente
Sentença. Enquanto cumpre com esta medida,
o Estado deve adotar todas aquelas ações que
garantam o efetivo julgamento, e se for o caso,
a punição em relação aos fatos constitutivos de
desaparecimento forçado através dos mecanismos
existentes no direito interno.
3. Reconhece que o Estado brasileiro é obrigado não apenas a
garantir os direitos de buscar e receber informações e à verdade,
mas também a responsabilizar penalmente indivíduos que
cometeram crimes:
6. O Estado é responsável pela violação do direito à
liberdade de pensamento e de expressão consagrado
no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 desse
instrumento, pela afetação do direito a buscar e
a receber informação, bem como do direito de
conhecer a verdade sobre o ocorrido. [...].
297. Quanto à criação de uma Comissão da Verdade, a Corte
considera que se trata de um mecanismo importante, entre
outros aspectos, para cumprir a obrigação do Estado de
garantir o direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido.
Com efeito, o estabelecimento de uma Comissão da Verdade,
dependendo do objeto, do procedimento, da estrutura e da
finalidade de seu mandato, pode contribuir para a construção
48
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
e preservação da memória histórica, o esclarecimento de
fatos e a determinação de responsabilidades institucionais,
sociais e políticas em determinados períodos históricos
de uma sociedade. Por isso, o Tribunal valora a iniciativa
de criação da Comissão Nacional da Verdade e exorta o
Estado a implementá-la, em conformidade com critérios
de independência, idoneidade e transparência na seleção
de seus membros, assim como a dotá-la de recursos e
atribuições que lhe possibilitem cumprir eficazmente com
seu mandato. A Corte julga pertinente, no entanto, destacar
que as atividades e informações que, eventualmente,
recolha essa Comissão, não substituem a obrigação
do Estado de estabelecer a verdade e assegurar
a determinação judicial de responsabilidades
individuais, através dos processos judiciais penais.
Essas determinações da Corte Interamericana em sua sentença no
Caso Gomes Lund vs. Brasil têm efeitos sobre as decisões judiciais proferidas
pelos tribunais brasileiros. A interpretação dada pelos tribunais brasileiros
à “Lei de Anistia”, ao compreender como anistiados determinados crimes
e impossibilitar processos judiciais para a sua investigação, julgamento e
punição, é contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
O presente amicus curiae entende que a interpretação usual dada
à Lei de Anistia promove uma política de esquecimento em relação aos
crimes cometidos durante o período da ditadura no Brasil, o que gera uma
série de efeitos que perduram até os dias de hoje. Por ser a interpretação
dada à anistia “ampla, geral e irrestrita”, ela impossibilita não apenas a
punição penal dos autores destes ilícitos, como também dificulta qualquer
forma de responsabilização com efeitos civis ou declaratórios desses
autores, além da busca e acesso à informação e reconstituição da verdade.
Da forma como concebida, a anistia “ampla, geral e irrestrita”
na prática serviu para impedir uma série de respostas constitucionais
do Estado brasileiro a expectativas sociais de tratamento dos crimes
cometidos no período da ditadura, retirando qualquer possibilidade de se
discutir abertamente, num contexto de “redemocratização”, as condutas
havidas no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de
agosto de 1979. Criou-se um tabu jurídico, que formalmente justificou o
término precoce de todo debate disposto a entender o que ocorreu.
A Lei de Anistia, portanto, impede o Estado brasileiro de exercer
uma série de respostas a estes crimes. Os efeitos da “Lei de Anistia”
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
49
ultrapassam o da responsabilização e punição penal daqueles que
cometeram crimes no período da ditadura – aspecto mais destacado
no debate público e jurídico sobre a lei. É preciso atentar para as
consequências de natureza civil e declaratória de responsabilidade
que a interpretação “ampla, geral e irrestrita” da lei tem obstado, bem
como para os efeitos de tal interpretação sobre o direito à verdade e ao
acesso à informação.
Essa interpretação e aplicação da Lei de Anistia tem sido
questionada nos últimos anos por meio de ações judiciais. Familiares
das vítimas demandaram a responsabilização civil, em seus efeitos
declaratórios,6 dos autores de determinados crimes cometidos no
período da ditadura; outras ações judiciais promovidas pelo Ministério
Público Federal (MPF) baseiam-se na imprescritibilidade de ações de
ressarcimento ao erário público para cobrar dos autores dos crimes as
indenizações que têm sido pagas pela União às vítimas e familiares7
O caso da Família Teles trata-se de ação declaratória proposta por Janaina de Almeida Teles,
Edson Luis de Almeida Teles, César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e Criméia
Alice Schmidt de Almeida em face de Carlos Alberto Brilhante Ustra, alegando terem sido vítimas
de tortura durante o regime militar. A sentença acolheu e julgou procedente a ação declaratória,
reconhecendo que “entre eles [os autores] e o réu Carlos Alberto Brilhante Ustra existe relação
jurídica de responsabilidade civil, nascida da prática de ato ilícito, gerador de danos morais”.
“Basta ler a Lei nº 6.683/79 para verificar que, no que diz respeito à anistia, seu
campo de incidência é exclusivamente penal.” MM. Juiz de Direito Gustavo Santini Teodoro
(Processo nº 583.00.2005.202853-5), 23ª Vara Cível de São Paulo/Capital, em 07/10/2008.
6
7
O MPF, por sua vez, propôs Ação Civil Pública em face da União Federal, de Ustra e de Audir
Santos Maciel. Em face desses dois últimos requer-se (I) a perda da função pública que eventualmente
exerçam e ainda sejam impedidos de investidura em qualquer função pública, (II) a reparação pelos
danos morais coletivos, (III) a reparação regressiva pelos atos praticados no comando do DOI/CODI,
(iv) a declaração da existência de responsabilidade pessoal. Em face da União, requer-se a declaração
de existência da obrigação do exército de tornar públicas as informações sobre o DOI/CODI do
período de 1970 a 1985 e a omissão em promover as ações regressivas pelas indenizações das vítimas
e familiares que sofreram danos decorrentes dos atos praticados no período da ditadura. Esta ação foi
extinta sem julgamento do mérito. Segundo o MPF, “a sentença aponta como um dos motivos para o
indeferimento o fato da morte ter ocorrido ‘há muito passado’, o que ‘por si só não originaria a alegada
violação aos direitos humanos suficiente a ser reparada à toda a coletividade’”. Após a decisão da
ADPF 153 pelo STF, a ação civil pública foi julgada improcedente nos pedidos de condenação dos réus
à reparação, perda de funções públicas e não conhece os demais pedidos, extinguindo o processo sem
julgamento do mérito. Sobre os efeitos da ADPF 153 no caso: “De acordo com a interpretação adotada
no julgamento da assaz citada ADPF n. 153, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos
dias 28 e 29 de abril de 2010, decidiu por maioria, com eficácia vinculante para todos, que
a anistia concedida por meio desses dispositivos é ampla, geral e irrestrita, produzindo
o efeito jurídico de apagar todas as consequências (cíveis e criminais) dos atos
anistiados.” E desconsidera um possível conflito com a Corte Interamericana em uma sentença,
então, futura: “A possibilidade de condenação pela Corte Interamericana é irrelevante sob o prisma
jurídico porque a autoridade de seus arestos foi reconhecida pelo Brasil plenamente em 2002, por
50
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
e, recentemente, também demandam a responsabilização penal8
desses autores.
No Supremo Tribunal Federal (STF) também existem reflexos
do debate sobre a Lei da Anistia em algumas ações judiciais, como é o
caso das ações diretas de inconstitucionalidade nº 4077 e nº 3987 (sobre
sigilo de documentos públicos)9 e da Extradição nº 974.10 A principal
meio do Decreto 4.463, de 8 de novembro de 2002, apenas para fatos posteriores a 10 de dezembro
de 1998.” MM. Juiz Federal Clécio Braschi (Processo n. 2008.61.00.011414-5) 8ª Vara da Justiça
Federal em São Paulo, em 05/05/2010.
Ao apresentar denúncia criminal em face do coronel reformado do Exército Sebastião Curió
Rodrigues de Moura, conhecido como major Curió, pelo desaparecimento de pessoas que
participaram da Guerrilha do Araguaia, o Ministério Público Federal faz o exercício de dialogar
com a sentença da Corte Interamericana e com a decisão da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal
Federal. “Apesar da indiscutível autonomia do Ministério Público e do Poder Judiciário brasileiros
[...] não se pode olvidar que a oferta da presente denúncia, bem como o trâmite desta
ação penal estão imbricadas com a obrigação estipulada pela Corte Interamericana
de Direitos Humanos ao Brasil no julgamento do Caso Gomes Lund [...]”. “Os órgãos
do Poder Judiciário e do Ministério Público, assim, encontram-se jungidos ao
cumprimento dessas determinações, na medida em que a sentença da Corte IDH
vincula todos os agentes do Estado, conforme o artigo 68.1 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos ‘Os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da
Corte em todo caso em que forem partes’. O respeito pelo Judiciário e pelo Parquet à autoridade
das decisões da Corte IDH, ressalte-se, não afasta ou sequer fragiliza minimamente a soberania do
Estado-parte [...].” “[O] julgamento da ADPF [153] não esgotou o controle de validade da
Lei de Anistia, pois atestou a compatibilidade da Lei n. 6683/79 com a Constituição
Federal brasileira, mas não em relação ao direito internacional. Nessa matéria,
como é cediço, cabe à Corte IDH se pronunciar, de forma vinculante, em matéria de
controle de convencionalidade. É que para uma norma ser considerada juridicamente válida
– em relação aos parâmetros de proteção aos direitos humanos – é indispensável que sobreviva aos
dois controles.” “Desse modo, no que se refere à força cogente e ao caráter vinculante da decisão
da Corte IDH (caso Gomes Lund e outros vs. Brasil), conclui-se que o fato de se dar cumprimento
à decisão da Corte Interamericana – ao que o Brasil se obrigou, em compromisso internacional
regularmente introduzido em seu ordenamento jurídico – não implica dizer que a decisão da Corte
Interamericana seja superior à do Supremo Tribunal Federal ou que se esteja desautorizando a
autoridade do sistema de justiça pátrio.” Ministério Público Federal. Cota introdutória à denúncia
em face de Sebastião Curió Rodrigues de Moura Processo nº 1162-79.2012.4.01.3901, Justiça
Federal de Marabá/PA), em 23/02/2012.
8
Os casos referentes a crimes cometidos no período da ditadura militar sofrem com a falta de
acesso à informação a documentos públicos da época. A negativa ao acesso à informação de órgãos
públicos é em parte respaldada, de modo equivocado, pela regulamentação que possibilitava o
sigilo de documentos públicos. Tais ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) foram objeto de
amicus curiae também elaborado pelos alunos da disciplina optativa de extensão Amicus DH, da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Embora ainda não tenham sido julgadas, estas
ADIs podem perder o objeto com a aprovação da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que
não apenas dá nova regulamentação ao sigilo de documentos públicos, mas também cria uma Lei
de Acesso à Informação, até então inexistente no país.
9
Trata-se de extradição de militar uruguaio acusado na Argentina de participar da Operação
Condor. A extradição foi decidida pelo pleno do Supremo Tribunal Federal como procedente em
10
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
51
ação judicial no tema, no entanto, é esta Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental 153. Sua petição inicial solicitava ao tribunal que
a Lei de Anistia fosse declarada incompatível com a Constituição Federal
de 1988. Tal pedido partiu do pressuposto de que haveria pelo menos
duas interpretações possíveis da lei, sendo que apenas a interpretação
mais restritiva – que se ajusta aos compromissos assumidos pelo Brasil
internacionalmente e que respeita os direitos fundamentais reconhecidos
e garantidos pelo seu ordenamento jurídico – seria constitucional. A
despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal de manter a vigência da
Lei de Anistia e sua interpretação usual como sendo constitucionais, este
amicus curiae considera que o debate judicial acerca da interpretação e
aplicação dessa lei ainda não se encerrou.
Diversos processos judiciais que questionam a Lei de Anistia
ainda tramitam sem decisão definitiva em diferentes níveis do
Poder Judiciário brasileiro e a eles se soma a perspectiva de diálogo
jurisprudencial com a superveniente sentença da Corte Interamericana
de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund vs. Brasil. Isso porque,
reitera-se, a sentença da Corte Interamericana estabelece obrigações
ao Estado brasileiro como um todo. Todas as instâncias do judiciário,
assim como o Ministério Público, são responsáveis pela implementação
da sentença da Corte Interamericana, sob pena de responsabilização
do Estado brasileiro por não cumprimento. Vale ressaltar que o Estado
brasileiro deve prestar contas sobre os avanços obtidos em relação às
determinações da Corte Interamericana.
O direito a um recurso efetivo, conforme entendimento
jurisprudencial da Corte Interamericana, não tem sido observado
na estrita aplicação da Lei de Anistia em sua interpretação usual. O
próprio Estado brasileiro já apontou que a investigação penal dos
responsáveis pelos desaparecimentos forçados das vítimas no Caso
Gomes Lund vs. Brasil e pela execução de Maria Lucia Petit da Silva
estaria impossibilitada pela Lei de Anistia ainda vigente.11 A afirmação
parte, no dia 06.08.2009. Foram feitas menções à lei de anistia no voto no ministro relator Marco
Aurélio, no sentido de aplicá-la ao caso, assim como nos demais votos, no sentido de refutar sua
aplicação. As razões divergentes apresentadas ao voto do ministro relator formaram maioria.
Considerou-se a impossibilidade de presunção do homicídio dos desaparecidos e o prolongamento
no tempo do crime de sequestro de menor de idade.
11
CIDH, Relatório No. 91/08 (mérito), nº 11.552, Júlia Gomes Lund e outros (Guerrilha do
Araguaia), Brasil, 31 de outubro de 2008, Apêndice 1, § 98.
52
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
do Brasil, em sede de contestação ao Caso Gomes Lund vs. Brasil, de
que um julgamento favorável à ADPF 153 teria eficácia erga omnes,
efeito vinculante e, possivelmente, efeitos ex tunc12 também reforça a
percepção de que o próprio Estado reconhecia o óbice ao direito a um
recurso efetivo representado pela Lei de Anistia e pela decisão do STF.
Ao decidir a ADPF 153, o STF manteve tal restrição injustificada do
direito a um recurso efetivo.
A norma erigida do texto legal que entende anistiados os crimes
comuns praticados no lapso temporal indicado é, no entendimento
deste amicus curiae, não apenas “inconvencional”, mas também
inconstitucional, ao contrário do que decidido pelo STF, porquanto
viola direitos fundamentais constitucionais correlatos aos que a Corte
Interamericana reconheceu como violados na Convenção Americana
sobre Direitos Humanos. Entre outros, a proteção à vida (art. 5º,
caput, CF), ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), ao acesso
à informação e direito à verdade (art. 5º, XIV, CF) e à dignidade
humana (art. 1º, III, CF).
O judiciário brasileiro em suas várias instâncias tem, portanto,
o papel fundamental de reavaliar a interpretação e aplicação da Lei de
Anistia, a partir da sentença da Corte Interamericana no Caso Gomes
Lund vs. Brasil e também, como defendido por este amicus curiae,
das diferentes respostas judiciais, além da responsabilização penal,
que podem ser dadas aos casos de violações de direitos em crimes
cometidos durante o período da ditadura.
A incorporação da jurisprudência do Sistema Interamericano
precisa ser pensada em todos os âmbitos da engrenagem institucional
doméstica, inclusive no Poder Judiciário. Este amicus curiae entende que
esta incorporação judicial poderia ser feita, pelo menos, de duas maneiras:
uma circunstancial, por meio da argumentação e fundamentação das
decisões judiciais, e outra por mecanismos institucionais especialmente
previstos para facilitar ou provocar essa incorporação.
12
Contestação do Estado do Brasil ao Caso Júlia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), nº
11.552, § 157.
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
53
Incorporação judicial da jurisprudência do sistema
interamericano por meio da argumentação e
fundamentação nestes embargos de declaração
A jurisprudência da Comissão e Corte interamericanas deve
integrar o ônus argumentativo dos tribunais domésticos, pois são os
órgãos do sistema interamericano responsáveis pela interpretação
e aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O
Estado brasileiro, por ter ratificado a Convenção Americana e aceitado
expressamente a jurisdição da Corte Interamericana, é obrigado a
incorporar essa jurisprudência.
O STF pode aproveitar da experiência comparada de outros
tribunais de cúpula de países-membros do Sistema Interamericano
de Direitos Humanos. Assim como a Corte Suprema de Justicia de
la Nación Argentina, o STF pode reconhecer jurisprudencialmente
as decisões da Comissão e da Corte interamericanas.13 O mesmo é
defendido pela própria jurisprudência da Corte Interamericana de
“11. Que la ya recordada ‘jerarquía constitucional’ de la Convención Americana sobre Derechos
Humanos (consid. 5°) ha sido establecida por voluntad expresa del constituyente, ‘en las condiciones
de su vigencia’ (art. 75, inc. 22, párr. 2°), esto es, tal como la Convención citada efectivamente rige
en el ámbito internacional y considerando particularmente su efectiva aplicación jurisprudencial
por los tribunales internacionales competentes para su interpretación y aplicación. De ahí que la
aludida jurisprudencia deba servir de guía para la interpretación de los preceptos
convencionales en la medida en que el Estado Argentino reconoció la competencia de
la Corte Interamericana para conocer en todos los casos relativos a la interpretación
y aplicación de la Convención Americana (confr. art. 75, Constitución Nacional, 62 y 64
Convención Americana y 2°, ley 23.054)”. Corte Suprema de Justicia de la Nación, Caso Giroldi,
Horacio D. y otro, 07/04/1995. “21. Que la interpretación Del Pacto debe, además, guiarse
por la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos – uno de
cuyos objetivos es la interpretación del Pacto de San José (…)”.Corte Suprema de Justicia
de la Nación, Fallo 315:1492, Caso Ekmekdjián v. Sofovich y otros, 07/07/1992. “8. Que la ‘jerarquía
constitucional’ de la Convención Americana sobre Derechos Humanos ha sido establecido por
voluntad expresa del constituyente, ‘en las condiciones de su vigencia’ (art. 75, inc. 22, párr. 2°)
esto es, tal como la convención citada efectivamente rige en el ámbito internacional y considerando
particularmente su efectiva aplicación jurisprudencial por los tribunales internacionales
competentes para su interpretación y aplicación. De ahí que la opinión de la Comisión
Interamericana de Derechos Humanos debe servir de guía para la interpretación de
los preceptos convencionales en la medida en que el Estado argentino reconoció la
competencia de aquélla para conocer en todo los caso relativos a la interpretación y
aplicación de la Convención Americana, art. 2° de la ley 23.054 (confr. doctrina de la causa
G:342.XXVI, «Giroldi, Horacio D. Y otros s/ recurso de casación», sentencia del 7 de abril de
1995)”. Corte Suprema de Justicia de la Nación, Bramajo Hernán J., 12/09/1996.
13
54
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Direitos Humanos, ao dizer que os Estados não se vinculam apenas
ao texto da Convenção Americana, mas também à interpretação que
é produzida sobre ela. Isso justifica, por exemplo, a responsabilização
internacional dos Estados, por decisões judiciais proferidas com
base em normativa doméstica contrária à Convenção Americana e à
interpretação dada a ela.14
A Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina pode
servir como referência também por ter julgado inconstitucionais as leis
de anistia nº 23.492, de 24/12/1986 (“Punto Final”), e nº 23.521, de
08/06/1987 (“Obediencia Debida”).15 Os ministros que compuseram
a maioria na sentença consideraram os crimes praticados como crimes
contra a humanidade. A consequência mais importante disso é sua
imprescritibilidade. Eles também dialogaram com a decisão da Corte
Interamericana no Caso Barrios Altos vs. Peru.16 Mesmo o voto dissidente
do ministro Fayt dialoga com a decisão da Corte Interamericana, justificando
a sua não aplicação no Caso Simón por conta da diferença de contexto em
que as leis de anistia foram promulgadas no Peru e na Argentina, pois em
Barrios Altos as leis eram de autoanistia, enquanto que na Argentina foram
criadas durante o regime democrático do presidente Raúl Alfonsín.
Os ministros da Corte Suprema argentina tratam, portanto, de
dois pontos levantados pela jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, “crimes contra a humanidade” e a incompatibilidade
com as leis de anistia. Interessante notar como os ministros incorporam
nas suas linhas argumentativas a decisão Barrios Altos, seja para defender,
seja para afastar a sua aplicação ao caso argentino. A jurisprudência do
14
“124. La Corte es consciente que los jueces y tribunales internos están sujetos al imperio de la
ley y, por ello, están obligados a aplicar las disposiciones vigentes en el ordenamiento jurídico.
Pero cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención
Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también están sometidos a
ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de las disposiciones de la Convención
no se vean mermadas por la aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, y que desde
un inicio carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial debe ejercer
una especie de “control de convencionalidad” entre las normas jurídicas internas que
aplican en los casos concretos y la Convención Americana sobre Derechos Humanos.
En esta tarea, el Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino
también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete
última de la Convención Americana” Almonacid Arellano v. Chile (2006).
15
Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina, Caso Simón, 14/06/ 2005.
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Barrios Altos vs. Peru. Mérito. Sentença de
14/03/2001. Serie C No. 75.
16
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
55
Sistema Interamericano passa a integrar a fundamentação realizada
pelos tribunais constitucionais. Outro ponto interessante é que o Caso
Barrios Altos era contra o Peru, não contra a Argentina, e mesmo
assim a Corte Suprema Argentina o considerou como relevante para a
fundamentação da sentença.
A decisão da Corte Suprema argentina ilustra como é possível
que a interpretação da Convenção Americana, produzida pela Corte
Interamericana, seja utilizada como precedente nas cortes constitucionais.
Mais do que isso, mostra como países com contextos políticos
(regimes autoritários) e jurídicos (leis de anistia), além de problemas
semelhantes (desaparições forçadas, tortura, execuções extrajudiciais
etc.), podem ser alvo direta ou indiretamente da jurisprudência do
Sistema Interamericano. Uma vez que a Corte Interamericana já
formou o precedente de que as leis de anistia são incompatíveis com
a Convenção Americana e com o direito internacional geral quando se
trata de crimes contra a humanidade, não seria mais necessário que
outros casos iguais fossem levados à sua apreciação em busca de uma
solução individualizada. Daí a importância da receptividade, pelo Poder
Judiciário dos países-membros, à utilização do direito internacional
e ao diálogo com a jurisprudência de organismos internacionais, para
evitar a responsabilização futura do país por tema que já foi objeto de
apreciação do Sistema Interamericano.
A ADPF 153 não é o único caso do STF que remete ao Sistema
Interamericano de Direitos Humanos. Em casos ainda não julgados,
como leis de sigilo de documentos públicos17 e reconhecimento da
propriedade de comunidades tradicionais indígenas e quilombolas,18 a
ADI 4077 e 3987, nas quais seria possível apresentar o entendimento da Corte Interamericana
sobre direito de acesso à informação sob controle do Estado em sua dimensão individual e coletiva,
derivado do direito de liberdade de expressão da Convenção Americana, e os limites impostos pela
Convenção à sua restrição, como, por exemplo, prazo razoável para que seja dada a resposta e as
respostas negativas devem sempre ser motivadas (Opinião Consultiva n. 5/1985; Caso Claude Reyes
v. Chile – 2006); a construção jurisprudencial do direito à verdade, que justificaria a abertura dos
arquivos da ditadura, tanto em sua dimensão individual, interesse da vítima e dos familiares em
conhecerem os fatos em torno da violação de violação de direitos humanos, quanto em sua dimensão
coletiva, interesse da sociedade em conhecer a sua história, direito derivado da proteção judicial e
das garantias judiciais. Estes e outros argumentos foram desenvolvidos em trabalho coletivo com
alunas da Faculdade Direito da USP, na disciplina Amicus DH, organizada pelos professores Diogo R.
Coutinho e Virgílio Afonso da Silva, e pela doutoranda Evorah Cardoso, quando foram apresentados
dois amici curiae do Centro Acadêmico XI de Agosto ao STF, na ADI 4077 e ADI 3987.
17
18
Caso Raposa Serra do Sol (Pet 3388, entre outros processos de demarcação de terra indígena),
56
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Convenção Americana sobre Direitos Humanos poderia ser interpretada
e as decisões da Comissão e Corte Interamericanas já proferidas
nesses temas poderiam ser incorporadas pelo STF no seu processo de
interpretação. E já existe pelo menos um precedente bastante claro do
STF nesse sentido: o caso sobre exigência de diploma para o exercício
da profissão de jornalista (RE 511.961/SP), que possui fundamentação
integralmente consonante com a Convenção Americana e a interpretação
dada a ela pela Corte Interamericana.19 A decisão é mencionada na
própria ementa do RE 511.961/SP:
8. JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMNAOS. POSIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO
DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA. A Corte
Interamericana de Direitos Humanos proferiu
decisão no dia 13 de novembro de 1985, declarando que
a obrigatoriedade do diploma universitário e da
inscrição em ordem profissional para o exercício da
profissão de jornalista viola o art. 13 da Convenção
Americana de Direitos Humanos, que protege a
liberdade de expressão em sentido amplo (caso
“La colegiación obligatoria de periodistas” – Opinião
Consultiva OC-5/85, de 13 de novembro de 1985). Também
a Organização dos Estados Americanos – OEA, por meio da
ADI 3239 (contra o decreto que regulamenta a demarcação de terra quilombola) e ADI 4032
(contra o Programa Territórios da Cidadania, que destina verbas para a regularização das terras
indígenas e quilombolas e a indenização aos que as ocupam), nas quais seria possível apresentar o
entendimento da Corte Interamericana sobre o dever dos Estados de conferir tratamento especial
à propriedade de comunidades tradicionais (indígenas e quilombolas), por serem grupos que se
diferenciam da população em geral, pela relação diferenciada que essas comunidades desenvolvem
com a terra, não apenas de caráter patrimonial, mas também cultural, espiritual, de integridade,
sobrevivência econômica, de preservação e transmissão a futuras gerações, todos elementos de
caráter imaterial e ligados à propriedade da terra; sobre o caráter consuetudinário da propriedade
da terra, que deve se basear na posse e não no título real sobre a terra, ou seja, a propriedade deve
ser reconhecida, ainda que sem registro. (Caso Yake Axa v. Paraguai - 2005; Caso Comunidade
Mayagna (Sumo) Awas Tingni v. Nicarágua - 2001; Caso Saramaka v. Suriname - 2007). Casos
brasileiros já foram admitidos pela Comissão Interamericana, sobre as comunidades quilombolas,
Caso Comunidade de Alcântara (Relatório N. 82/06), que trata da omissão do Estado em
conferir os títulos de propriedade definitiva às comunidades; sobre comunidades indígenas, Caso
Comunidade Indígena Ananas e outros (Relatório N. 80/06), que trata da demora do processo
de demarcação de terra e da situação de conflito entre índios e fazendeiros. Um caso brasileiro
sobre direito indígena já recebeu relatório de mérito da Comissão Interamericana, reconhecendo a
violação do direito à propriedade, entre outros – Caso Yanomami (Relatório de mérito N. 12/85).
19
Corte Interamericana de Direitos Humanos, “La colegiación obligatoria de periodistas”, Opinião
Consultiva OC 5/85, de 13/11/1985.
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
57
Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
entende que a exigência do diploma universitário
em jornalismo, como condição obrigatória para o
exercício dessa profissão, viola o direito à liberdade
de expressão (Informe Anual da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, 25 de fevereiro de 2009).
O que se pode observar do contraste da argumentação do STF
na decisão sobre exigência de diploma para exercício da profissão de
jornalista com a decisão sobre a Lei de Anistia é que o STF ainda parece
fazer uso seletivo do direito internacional e da jurisprudência do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos.
Em uma decisão com sete votos pela improcedência da ADPF 153
e dois favoráveis, poucos foram os ministros que se engajaram nesse
diálogo com o Sistema Interamericano e com o direito internacional.
Especificamente em relação à jurisprudência do Sistema
Interamericano, pronunciaram-se os ministros Lewandowski20 e Celso de
Mello,21 respectivamente, pelo provimento parcial e pela improcedência
O ministro Lewandowski menciona essa jurisprudência em seu voto, ao tratar da inafastabilidade
da jurisdição: “[A] Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que os Estados Partes da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos – também internalizada pelo Brasil – tem o dever
de investigar, ajuizar e punir as violações graves aos direitos humanos, obrigação que nasce a partir
do momento da ratificação de seu texto, conforme estabelece o seu art. 1.1. A Corte Interamericana
acrescentou, ainda, que o descumprimento dessa obrigação configura uma violação a Convenção,
gerando a responsabilidade internacional do Estado, em face da ação ou omissão de quaisquer de
seus poderes ou órgãos.” (Voto Min. Ricardo Lewandowski, ADPF 153, fls. 129.)
20
O ministro Celso de Mello reconhece e afasta a aplicabilidade da jurisprudência da Corte
Interamericana em relação à lei de anistia brasileira. “Reconheco que a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em diversos julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos casos contra
o Peru (‘Barrios Altos’, em 2001, e ‘Loyaza Tamayo’, em 1998) e contra o Chile (“Almonacid
Arellano e outros”, em 2006), proclamou a absoluta incompatibilidade, com os princípios
consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam
anistia, unicamente, a agentes estatais, as denominadas “leis de autoanistia”. A razão dos diversos
precedentes firmados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos apoia-se no reconhecimento
de que o Pacto de São Jose da Costa Rica não tolera o esquecimento penal de violações aos direitos
fundamentais da pessoa humana nem legitima leis nacionais que amparam e protegem criminosos
que ultrajaram, de modo sistemático, valores essenciais protegidos pela Convenção Americana de
Direitos Humanos e que perpetraram, covardemente, à sombra do Poder e nos porões da ditadura a
que serviram, os mais ominosos e cruéis delitos, como o homicídio, o sequestro, o desaparecimento
forçado das vítimas, o estupro, a tortura e outros atentados às pessoas daqueles que se opuseram
aos regimes de exceção que vigoraram, em determinado momento histórico, em inúmeros países
da América Latina. É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de anistia brasileira,
exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser qualificada como uma lei de autoanistia, o que
torna inconsistente, para os fins deste julgamento, a invocação dos mencionados precedentes da
21
58
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
da ação. Suas manifestações foram em temas diversos: o ministro
Lewandowski menciona entendimento da Corte Interamericana de
Direitos Humanos sobre inafastabilidade da jurisdição, enquanto o
ministro Celso de Mello afasta a aplicação da jurisprudência da Corte
Interamericana à Lei de Anistia brasileira por entender que esta não
se enquadra na categoria de “autoanistias”, repudiadas pela corte. No
entanto, a Corte Interamericana decidiu no Caso Gomes Lund vs. Brasil
que a Lei de Anistia brasileira é, sim, contrária à Convenção Americana.
Já com relação aos argumentos de direito internacional,
apresentados de modo geral e abreviado, manifestaram-se apenas
os ministros Eros Grau,22 Lewandowski,23 Celso de Mello24 e Gilmar
Corte Interamericana de Direitos Humanos.” (Voto Min. Celso de Mello, ADPF 153, fls. 183-184.)
22
“Anoto a esta altura, parenteticamente, a circunstância de a Lei n. 6.683 preceder a Convenção das
Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes –
adotada pela Assembleia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 – e a
Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura. E, mais, o fato de o preceito veiculado
pelo artigo 5°, XLI I I da Constituição – preceito que declara insuscetíveís de graça e anistia a prática
da tortura, entre outros crimes – não alcançar, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a
sua vigência consumadas. A Constituição não recebe, certamente, leis em sentido material, abstratas
e gerais, mas não afeta, também certamente, leis-medida que a tenham precedido. Refiro-me ainda,
neste passo, a texto de Nilo Batista, na Nota introdutória a obra recentemente publicada, de Antonio
Martins, Dimitri Dimoulis, Lauro Joppert Swensson Junior e Ulfrid Neumann: “em primeiro lugar,
instrumentos normativos constitucionais só adquirem força vinculante após o processo constitucional
de internalização, e o Brasil não subscreveu a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de
Guerra e dos Crimes contra a Humanidade de 1968 nem qualquer outro documento que contivesse
cláusula similar; em segundo lugar, ‘o costume internacional não pode ser fonte de direito penal’ sem
violação de uma função básica do princípio da legalidade; e, em terceiro lugar, conjurando o fantasma
da condenação pela Corte Interamericana, a exemplo do precedente Arellano x Chile, a autoridade
de seus arestos foi por nós reconhecida plenamente em 2002 (Dec. n. 4.463, de 8 de novembro de
2002) porém apenas ‘para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998’.” (Voto Min. Eros Grau, ADPF
153, fls. 37) Nota-se neste trecho de doutrina, citado pelo ministro Eros Grau, um argumento sobre
eventual condenação do Brasil na Corte Interamericana, mas não é feito no corpo do voto do ministro
qualquer posicionamento mais detalhado a respeito do que ele considera nesse tema, tendo em vista
que a citação pareceu ter sido feita principalmente em relação ao argumento de incorporação do
direito internacional e não de eventual jurisprudência do sistema interamericano.
23
O ministro Lewandowski afasta brevemente a aplicação do direito internacional ao tratar
dos crimes comuns: “Não adentro – por desnecessária, a meu ver, para o presente debate – na
tormentosa discussão acerca da ampla punibilidade dos chamados crimes de lesa-humanidade,
a exemplo da tortura e do genocídio, definidos em distintos documentos internacionais, que
seriam imprescritíveis e insuscetíveis de graça ou anistia, e cuja persecução penal independeria de
tipificação prévia, sujeitando-se, ademais, não apenas à jurisdição penal nacional, mas, também,
à jurisdição penal internacional e, mesmo, à jurisdição penal nacional universal. É que, de acordo
com estudiosos do assunto, vários seriam os delitos comuns possivelmente praticados por agentes
do Estado, durante o regime autoritário, todos tipificados no Código Penal de 1940, vigente à época
[...]” (Voto Min. Ricardo Lewandowski, ADPF 153, fls. 115-116.)
24
O ministro Celso de Mello afasta de modo fundamentado a aplicação do direito internacional:
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
59
Mendes.25 À exceção do ministro Celso de Mello, os demais ministros
reconhecem que estão mencionando o argumento de direito internacional
“parenteticamente”, “sem adentrar” ou como “um parêntese” ao longo da
argumentação de seus votos – donde se extrai que essas manifestações
não consolidam posicionamento autenticamente majoritário no Tribunal
em relação ao argumento de direito internacional. Ademais, nem mesmo
os fundamentos normativos coincidem: enquanto o ministro Eros Grau
refere-se à não aplicação da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura
e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes (sem especificar sobre
quais “tratados” faz referência), o ministro Celso de Mello aborda a não
aplicação da Convenção das Nações Unidas sobre a Imprescritibilidade
dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade.
Não houve, portanto, deliberação ou maioria formada entre os
ministros acerca do papel da jurisprudência do sistema interamericano
na decisão da ADPF 153, nem com relação aos argumentos de direito
internacional afastados de sua aplicação neste caso.
Sendo essas todas as menções realizadas pelos ministros do
STF em relação ao sistema interamericano e a argumentos de direito
internacional ao longo da ADPF 153, a Corte Interamericana, ao avaliar
a decisão do STF, está correta ao dizer que houve clara omissão por parte
do tribunal em realizar qualquer interpretação a partir da Convenção
Americana, restringindo-se ao controle de constitucionalidade:
49. […] En el presente caso, la Corte Interamericana
no está llamada a realizar un examen de la Ley de
“Nem se sustente, como o faz o Conselho Federal da OAB, que a imprescritibilidade penal, na
espécie ora em exame, teria por fundamento a ‘Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes
de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade’. Mostra-se evidente a inconsistência jurídica de
semelhante afirmação, pois, como se sabe, essa Convenção das Nações Unidas, adotada em
26/11/1998, muito embora aberta à adesão dos Estados componentes da sociedade internacional,
jamais foi subscrita pelo Brasil, que a ela também não aderiu, em momento algum, até a presente
data, o que a torna verdadeira ‘res inter alios acta’ em face do Estado brasileiro. [...] Ninguém pode
ignorar que, em matéria penal, prevalece, sempre, o postulado da reserva constitucional de lei em
sentido formal.” (Voto Min. Celso de Mello, ADPF 153, fls. 189-190.)
“Aqui faço um parêntese para ressaltar que não tem curso a tese – e o Ministro Eros Grau o
demonstrou muito bem – da imprescritibilidade em razão de tratados que vieram a ser subscritos
posteriormente. Inclusive, diferentemente do que ocorre em outros países, a jurisprudência pacífica
desta Corte é no sentido de que as normas sobre prescrição são normas de Direito material.” (Voto
Min. Gilmar Mendes, ADPF 153, fls. 250-251).
25
60
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Amnistía en relación con la Constitución Nacional
del Estado, cuestión de derecho interno que no
le compete, [...] sino que debe realizar el control
de convencionalidad, es decir, el análisis de la
alegada incompatibilidad de aquella ley con las
obligaciones internacionales de Brasil contenidas
en la Convención Americana.”
177. En el presente caso, el Tribunal observa que no fue
ejercido el control de convencionalidad por las
autoridades jurisdiccionales del Estado y que, por
el contrario, la decisión del Supremo Tribunal
Federal confirmó la validez de la interpretación de
la Ley de Amnistía sin considerar las obligaciones
internacionales de Brasil derivadas del derecho
internacional [...]”.26
E é justamente essa omissão do Supremo Tribunal Federal
que intersecciona as alegações lançadas nos embargos de declaração
opostos à presente ADPF e, mais tarde, com a ciência da decisão da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, especifica seu pedido de
posicionamento do STF frente a mesma – a qual, no exercício de sua
competência de interpretação da Convenção Americana, considera a Lei
de Anistia contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Se o Supremo Tribunal Federal não se manifestar a respeito
dessa sentença e reavaliar o seu controle de constitucionalidade acerca
da Lei de Anistia, o Estado brasileiro permanecerá em situação de
responsabilidade internacional por violar a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos. Mais do que isso, o Supremo Tribunal Federal
será responsável pela manutenção dessa situação de violação, pois os
demais órgãos do Estado brasileiro, incluídas as demais instâncias do
Poder Judiciário e o Ministério Público, permanecerão diretamente
obrigados, a despeito do acórdão lavrado nesta ADPF 153, a atender as
determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso
Gomes Lund vs. Brasil. No limite, o não cumprimento das decisões da
Corte Interamericana levaria a um impasse institucional que só poderia
26
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do
Araguaia”) vs. Brasil. 24/11/2010.
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
61
ser resolvido com a denúncia do Estado brasileiro à Convenção27 – a qual,
contudo, ainda assim não eliminaria a responsabilidade internacional
brasileira para o caso presente, nos termos do art. 78 (2) CADH.
Amparado no pedido, pela Embargante, de colmatagem das
omissões na decisão proferida por esta Corte, então instanciado pelo
acréscimo feito em nova petição, este amicus curiae pleiteia portanto que
o Supremo Tribunal Federal valha-se da oportunidade processual desses
embargos de declaração para incorporar, por meio da argumentação
e fundamentação de sua decisão, a interpretação realizada pela Corte
Interamericana da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Sem prejuízo de envidar esforços para, em casos futuros, dispor de
mecanismo processual adequado à compatibilização de suas decisões,
em diálogo com a jurisprudência do Sistema Interamericano.
Necessidade de mecanismo processual adequado para
a incorporação judicial da jurisprudência do Sistema
Interamericano no Supremo Tribunal Federal
As decisões da Corte e Comissão interamericanas não se
restringem à interpretação da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos e à estipulação de indenização de vítimas e familiares.
Elas apresentam uma série de medidas que refletem no trabalho do
judiciário, como obrigação de investigar, julgar, punir, assim como
outras medidas de satisfação e garantias de não repetição, que exigem
alterações em políticas públicas e na legislação, envolvendo órgãos
do executivo e legislativo. Justamente por isso esbarram em entraves
administrativos, organizacionais e institucionais dos vários entes da
federação e dos Poderes.
Na ausência de legislação brasileira que determine o procedimento
de implementação das medidas presentes da jurisprudência do Sistema
27
Tome-se como exemplo a postura da corte constitucional venezuelana, que declarou não
executável uma decisão da Corte Interamericana e, consciente das implicações, requereu
ao Executivo venezuelano a denúncia da Convenção. (Tribunal Supremo Venezolano, Sala
Constitucional, Caso Abogados Gustavo Álvarez Arias y otros, Julgamento n. 1.939, 18/12/2008).
62
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Interamericano,28 cada órgão tem a responsabilidade de criar soluções
institucionais para o seu cumprimento. Também neste caso as soluções
encontradas por outros países-membros do sistema interamericano de
direitos humanos em sua engrenagem institucional doméstica podem
servir como reflexão para as deficiências institucionais brasileiras.29
O Poder Judiciário também tem, portanto, obrigação em sua
gestão administrativa de criar mecanismos que facilitem a incorporação
das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.30 No
entanto, como afirmado, o Supremo Tribunal Federal não dispõe
atualmente de qualquer mecanismo de reavaliação de suas decisões a
partir das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Talvez nesta ADPF 153 fique mais evidente o conflito entre a
decisão sustentada até aqui pelo STF e a tomada posteriormente
No Brasil já foram elaborados projetos de lei, mas nenhum foi ainda aprovado (Projeto de
Lei 3.214/2000, Deputado Marcos Rolim e Projeto de Lei 4.667/2004, Deputado Federal José
Eduardo Cardozo). Para uma análise desses projetos de lei, ver Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (Org.) Implementação das decisões do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos: jurisprudência, instrumentos normativos e experiências nacionais. Rio de Janeiro:
CEJIL, 2009, e Juliana Corbacho Neves dos Santos. A execução das decisões emanadas da Corte
interamericana de direitos humanos e do sistema jurídico brasileiro e seus efeitos. Prismas:
Direito, Políticas Públicas e Mundialização, Brasília, v. 8, n. 1, p. 261-307, jan./jun. 2011.
28
Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Org.). Implementação das decisões do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos: jurisprudência, instrumentos normativos e experiências
nacionais. Rio de Janeiro: CEJIL, 2009.
29
Algumas iniciativas nesse sentido parecem ter sido iniciadas. “Foi firmado, no ano de 2006, um
Acordo de Cooperação Técnica entre o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de promover uma articulação
entre esses órgãos para dar maior celeridade à tramitação de casos no Poder Judiciário, relacionados a
processos que se encontrem sob o exame de órgãos internacionais. A Corregedoria Nacional de Justiça
do CNJ lançou, em 23 de novembro de 2010, o programa Justiça Plena, com o objetivo de monitorar
o andamento de processos de grande repercussão social que estão com o andamento paralisado no
Judiciário Brasileiro. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República atua em parceria
com o CNJ nesse programa e já indicou dez processos que tramitam no Sistema Interamericano de
Proteção de Direitos Humanos para serem o piloto do programa. Dentre os processos indicados,
estão as ações judiciais relativas ao Caso Ximenes Lopes. Essa iniciativa certamente corrobora os
esforços de alguns órgãos e instituições brasileiras para dar cumprimento às determinações de
apuração e punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos reconhecidas pela Corte.
Ao que parece, a intenção dessas medidas é integrar os órgãos do Poder Judiciário ao procedimento
de execução das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, capazes de atuar em um
ponto fundamental, presente em todas as sentenças e demandas internacionais em trâmite em face
do Brasil: a violação dos artigos da Convenção Americana relativos às garantias judiciais e à proteção
judicial (artigos 8 e 25), em face da denegação de justiça no caso concreto.” Juliana Corbacho Neves
dos Santos. A execução das decisões emanadas da Corte interamericana de direitos humanos e
do sistema jurídico brasileiro e seus efeitos. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização,
Brasília, v. 8, n. 1, p. 261-307, jan./jun. 2011, p. 287-288.
30
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
63
pela Corte Interamericana (muito embora o relatório da Comissão
Interamericana sobre o Caso Gomes Lund já recomendasse uma série
de medidas com as quais o STF poderia ter dialogado31).
Os embargos de declaração opostos na presente ADPF podem
não ser vistos, à guisa do defendido pelo Senado Federal e Procuradoria
Geral da União, como o mecanismo processual mais apropriado para
esse debate. No entanto, sobretudo por ser órgão de cúpula do Poder
Judiciário e operador do controle concentrado de constitucionalidade, é
preciso repensar também o desenho institucional do Supremo Tribunal
Federal para possibilitar o diálogo de sua jurisprudência com decisões
do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Decisões judiciais de
instâncias domésticas inferiores que não dialoguem com a jurisprudência
do Sistema Interamericano poderão, no limite, ainda ser reavaliadas
por instâncias superiores. Quando o próprio Supremo Tribunal Federal
decide de modo contrário à jurisprudência do sistema interamericano, é
preciso disponibilizar mecanismo processual adequado à provocação do
Tribunal, para que dialogue com essa jurisprudência.
Caso entenda este Supremo Tribunal Federal não ser o recurso
de embargos de declaração a sede ideal para o debate que alcança
o desenho institucional sobre a sentença da Corte Interamericana
no Caso Gomes Lund vs. Brasil, cumpre reconhecer que ficam
pendentes essas reformas na engrenagem institucional doméstica,
fundamentais para a adequada harmonização do direito doméstico
com o direito internacional em casos futuros. Esses mecanismos
processuais específicos, no Supremo Tribunal Federal, garantiriam
a coerência não apenas entre os efeitos emanados pelas decisões do
tribunal e do sistema interamericano de direitos humanos durante
sua implementação, mas também a coerência argumentativa e
normativa desenvolvida entre os controles de constitucionalidade e
convencionalidade realizados por cada um.
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha do
Araguaia), Relatório No. 91/08 (mérito), 11.552, Brasil, 31/10/2008.
31
64
Evorah Lusci Costa Cardoso e Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Pedido do amicus curiae
Diante de todo o exposto, requer-se:
(a) a admissão, na presente fase da ADPF 153, do Centro
Acadêmico XI de Agosto na qualidade de amicus curiae,
com fundamento no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99,
autuando-se a presente manifestação junto aos embargos
de declaração;
(b) subsidiariamente, entenda o e. Relator de modo diverso,
a juntada por linha da presente manifestação, convicto da
relevância dos argumentos por ela trazidos à sua apreciação;
(c) que se manifeste esta e. Suprema Corte quanto ao pedido
feito pela Embargante sobre a executoriedade, no direito
interno, da sentença prolatada pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha
do Araguaia”) vs. Brasil, de 24 de novembro de 2010;
(d) reconhecida a saliente incompatibilidade entre a referida
sentença internacional com o acórdão lavrado pelo Supremo
Tribunal Federal, que seja o controle de constitucionalidade
desta ADPF harmonizado ao controle de convencionalidade
da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso
Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil,
de 24 de novembro de 2010, colmatando, assim, as lacunas
no acórdão recorrido, tal como pontuadas pela Embargante
e contextualizadas por este amicus curiae.
Termos em que pede deferimento.
São Paulo, 2 de abril de 2012.
Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional...
André Correia Tredezini
Presidente do CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO
Evorah Lusci Costa Cardoso
Organizadora da disciplina Amicus DH
OAB/SP n° 270.611
Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Aluno da disciplina Amicus DH
OAB/SP n° 305.178
65
Estado de segurança e polícia no Brasil:
uma abordagem constitucional de direitos
e do direito de greve
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
Carlos Bolonha
Dos policiais militares: direito de greve e deveres nos
termos da Constituição da República
São antigas as funções estatais ligadas à polícia e ao dever de
proteção dos cidadãos.1 Embora nem sempre variados Estados tenham
treinado seus efetivos e adaptado seus servidores públicos a uma função
de real defesa da população, tantas vezes sendo a polícia mais associada
à repressão, à punição, ao big stick2 e à truculência, é indubitável sua
natural vinculação com a ideia de atenção, preocupação e orientação das
pessoas e do patrimônio público e particular. As polícias ostensivas de
qualquer Estado, pelo menos em tese, têm como escopo final e geral tais
funções protetivas.
Não se objetiva esticar o presente estudo para que se possa entender, sobretudo sob a
perspectiva histórica, a função policial. De qualquer forma, em se tratando do Direito e seus
desdobramentos, sugere-se, tanto para uma compreensão mais completa, em matéria da função
de polícia estatal no Brasil, quanto no âmbito internacional, a leitura de: GIORDANI, Mário
Curtis. História de Roma. 14. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001; ZIPPELIUS, Reinhold.
Teoria geral do Estado. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984; COULANGES,
Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Fernando de Aguiar. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2000; CERVINI, Raúl, GOMES, Luiz Flávio. Crime organizado. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1995; POSTERLI, Renato. Violência urbana: abordagem multifatorial
da criminogênese. Belo Horizonte: Editora Inédita, 2000; KOSHIBA, Luiz; PEREIRA, Denise
Manzi Frayze. História do Brasil. 5. ed. São Paulo: Atual Editora, 1987; FAORO, Raymundo. Os
donos do poder. Vol. 1 e 2. 15. ed. São Paulo: Editora Globo, 2000; PESSOA, Mário. O direito da
segurança nacional. Rio de Janeiro: Editora Revista dos Tribunais, 1971.
1
Theodore Roosevelt, em 1901 – 36 anos após o término da conhecida Guerra de Secessão (18611865) estadunidense –, foi responsável pela difusão da expressão que viria a ser associada à própria
política externa norte-americana nos tempos seguintes (“cassetete grande”, em tradução livre).
2
68
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
As primeiras Constituições do Brasil anunciaram a necessidade
de se defenderem o patrimônio particular e a segurança do e no
país,3 mas o caráter extenso e compromissório da atual Constituição,
inclusive modificado pelo legislador constituinte derivado, é que tratou
de conferir especial atenção ao direito social à segurança, sobretudo
no âmbito interno, a poderes, deveres, obrigações e direitos ligados às
Forças Armadas e militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios,
além, logicamente, de à segurança pública e seus desdobramentos.
E, se a evolução constitucional brasileira exerce auxílio peculiar
para o tema que ora se aborda, também se mostra indispensável breve
menção a conceitos seguramente bem enraizados e trabalhados na
cultura jurídica nacional, mas sempre rediscutidos, repaginados e
revirados quando se mostram necessárias inserções e evoluções teóricas.
Nesse viés, não se deve olvidar de aqui chamar a atenção para o clássico
instituto de Direito Administrativo chamado poder de polícia.
Portanto, antes mesmo de imiscuir-se para o cerne das questões
voltadas para a polícia, a segurança e direitos correlatos (neste estudo,
principalmente, o direito de greve), sempre a partir do previsto
na Constituição brasileira, cumpre, primeiramente, estabelecer
as bases da relação entre estes e o já conhecido poder de polícia da
Administração Pública.
Nesse sentido, conforme sintético e fiel entendimento a respeito
do tema, poder de polícia seria a atividade estatal consistente em limitar
o exercício dos direitos individuais em favor do interesse público.4
Tranquilidade, segurança e salubridade públicas5 devem ser garantidas
Por exemplo, as Constituições de 1824 e 1891 não se furtaram de trazer dispositivos conferindo
poderes às forças militares nacionais da época. Nesse sentido, embora a preocupação com a segurança
“do” país se mostrasse mais intensa, também se anunciaram dispositivos em que, logicamente a
segurança interna foi lembrada (segurança “no país”). Nessa linha, conferir, na Constituição Imperial
de 1824, o inciso XV, do Art. 102; os Artigos 145 a 150; e, entre outros, o próprio Art. 179, portador de
rol de direitos fundamentais, à época. Na Constituição de 1891, entre outros, o Art. 14; o § 3º do Art.
48; e o Art. 72, com o rol de direitos fundamentais atualizado pelos ideais republicanos.
3
Para Lemoyne de Forges, ao tratar com precisão do poder de polícia na França: Dans toutè
société organisée existe un pouvoir de police, c’est-à-dire un pouvoir conféré à certaines autorités
administratives qui permet à celle-ci d’imposer des limitations aux libertés dont disposent les
individus et les groupes dans lê but d’assurer l’ordre public. (DRAGO, Roland (Org.). Récuel de
notices: Droit administratif et administration. vol. 12. Le Pouvoir de police. Paris: La Documentation
Française, 1988, 23 v., p. 01.).
4
CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Administrativo brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2000, p. 547.
5
Estado de segurança e polícia no Brasil
69
pelo Estado, que, exercendo as funções de polícia,6 passa a deter valioso
meio de efetivação do público interesse.7
Assim, no atuar administrativo, mormente quando sob incentivo
legal que impõe limitações variadas à propriedade individual e pública
e a demais liberdades tradicionais, muitas das quais ponderadamente
consagradas em nosso ordenamento jurídico, tem em suas mãos o
Poder Público um dever-poder, o qual, se esmiuçado em prol de uma
melhor compreensão, traz à tona facetas que conduzem desde a uma
prerrogativa de emitir licenças e autorizações, até emissão de decretos,
fiscalização material de atividades dos administrados e aplicação
de sanções, quando necessárias forem. Atos, ora vinculados, ora
discricionários,8 são o dia a dia da Administração Pública, a qual se vê
6
A ideia de função administrativa de polícia é bem posta por Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, afirmando ter-se chegado, assim, “ao atual conceito de função administrativa de polícia, por
meio da qual o Estado aplica restrições e condicionamentos legalmente impostos ao exercício das
liberdades e direitos fundamentais, tendo em vista a assegurar uma convivência social harmônica
e produtiva” (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. Rio
de Janeiro: Editora Forense, 2001, p. 385.).
Marcello Caetano, com domínio de causa e, comparando com o conceito fornecido pelo Art. 78 do
Código Tributário Nacional (CTN), exporia seu entendimento, de acordo com o qual: “De harmonia
com as ideias até aqui expostas pode definir-se a polícia como o modo de actuar da autoridade
administrativa que consiste em intervir no exercício das actividades individuais susceptíveis de
fazer perigar interesses gerais, tendo por objecto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem
os danos sociais que a lei procura prevenir” (CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do
Direito Administrativo. Coimbra: Almedina, 1996, p. 269).
7
8
Célere menção à clássica distinção entre ato/poder vinculado e ato/poder discricionário se queda
proveitosa. “Ato vinculado, ou regrado é aquele em que o agente tem competência para praticálo em estrita conformidade às prescrições legais, manifestando a vontade da Administração na
oportunidade e para os efeitos integralmente previstos em lei, sem qualquer margem de escolha
de atuação, seja de tempo ou de conteúdo. [...] Ato discricionário, por outro lado, será aquele em
que o agente tem competência legal para fazer escolhas, seja de oportunidade, de conveniência,
do modo de sua realização, do alcance de seus efeitos, de seu conteúdo jurídico, de suas condições
acessórias, do momento de sua exeqüibilidade ou do destinatário ou destinatários da vontade da
Administração, seja apenas uma escolha, sejam várias, sejam as referentes a todos esses aspectos
considerados, desde que rigorosamente contidas dentro dos limites que lhe foram abertos pela lei”
(MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Obra citada, p. 143). Cumpre aditar, sobre a problemática
envolvendo a vinculação e a discricionariedade do administrador público, o estudo realizado por
Raquel Cristina Ribeiro Novais há mais de 12 anos, acerca do princípio da razoabilidade e o exercício
da discricionariedade. A ideia de indiferentes jurídicos é bem retratada pela autora, a qual, afirmando
que em face de possibilidades indiferentes juridicamente – possibilidades igualmente razoáveis –,
não caberia qualquer apreciação acerca do ato mais oportuno ou conveniente, sustentando a linha
de que somente não existiria controle a ser exercido sobre uma sobrevaloração da Administração,
por ser uma prerrogativa inerente ao poder discricionário. E, em linhas prévias e gerais sobre os
atos vinculados e discricionários, buscando a origem doutrinária das nomenclaturas emprestadas aos
diferentes pontos jurídicos, reportaria à tese peculiar, de acordo com a qual “a doutrina, ao conceituar
ambos os tipos de atos previstos hipoteticamente na norma jurídica, adota a nomenclatura segundo
70
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
constantemente desafiada a solucionar questões diversas, envolvendo
desde casos legalmente simples até os mais complexos e difíceis.
Com efeito, um dos alicerces da Administração pública – tanto
a nível prático quanto teórico – e de seus poderes é, sem sombra de
dúvida, o poder de polícia amplamente considerado, englobando, vale
frisar, as noções de polícia judiciária e administrativa,9 para aquela
(repita-se, judiciária) voltando-se com maior especificidade o presente
estudo, que finda por cuidar de pontuais direitos e deveres de policiais
militares, membros da Administração Pública brasileira e responsáveis
pela segurança, tranquilidade e paz públicas.
a qual, aos atos dirigidos, dá-se o nome de ‘atos vinculados’; àqueles que resultem da apreciação
de qualquer abertura contida na norma, dá-se o nome de ‘atos discricionários’” (CUNHA, Tatiana
Mendes. Estudos de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Max Limonad, 1999). Atualmente,
inúmeras novas teorias emergiram, valendo destacar o trabalho de Gustavo Binenbojm, para quem
“a emergência da noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da Administração à
Constituição, não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos vinculados
e atos discricionários, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à
juridicidade. A discricionariedade não é, destarte, nem uma liberdade decisória externa ao direito,
nem um campo imune ao controle jurisdicional” (BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do Direito
Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Editora
Renovar, 2006, p. 39). Em linha semelhante e relativamente a um princípio da juridicidade/
normatividade, conferir o anterior trabalho de: MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional
da Administração Pública. São Paulo: Editora Dialética, 1999.
9
Oportuna se afigura menção à clássica distinção existente entre polícia administrativa e polícia
judiciária. Abstendo-se de situações excepcionais e guardadas as devidas proporções, costumase apontar o cunho repressivo da polícia judiciária, em oposição ao caráter eminentemente
preventivo da polícia administrativa. É ainda por muitos ressaltado que a polícia administrativa
restringe o exercício de atividades lícitas, reconhecidas pelo ordenamento como direitos dos
particulares, isolados ou em grupo, fato que expressa uma conformação e ponderação necessárias
entre interesses público e privado. Por outro lado, a polícia judiciária visa a impedir o exercício de
atividades ilícitas, vedadas pelo ordenamento jurídico, auxiliando o Estado e o Poder Judiciário na
repressão e prevenção de delitos – Art. 144, incisos e parágrafos, da Constituição Federal. Ademais,
pode-se identificar uma diferenciação orgânica, a partir da qual a polícia administrativa seria
inerente e se difundiria por toda a Administração, enquanto a polícia judiciária concentrar-se-ia em
determinados órgãos, exempli gratia, Secretaria Estadual de Segurança Pública, em cuja estrutura
se inserem a polícia civil e a polícia militar. Sem desviar-se em demasia dos objetivos ora propostos,
trava-se constante discussão na sociedade, principalmente frente a reiterados acontecimentos,
sobre uma possível união de estruturas ou de funções atinentes às polícias civil e militar. Sem
adentrar no mérito da questão e tendo em vista o mar de opiniões surgidas, crê-se, inicialmente,
que os problemas e mazelas que circundam a segurança pública nacional não se extinguiriam
com a citada união. Diferenças basilares existem entre as duas polícias: a primeira dedica-se à
condução de inquéritos, atendo-se na seara investigatória; já a segunda volta suas atividades para
o policiamento ostensivo. Nesses termos, torna-se discutível e duvidosa a alegação de melhoria do
sistema de segurança nacional, pelo único e exclusivo fato de se unirem as polícias civil e militar.
(MESQUITA NETO, Paulo de. É boa a proposta de unificar as polícias Civil e Militar?. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 11 de agosto de 2001, cad. A, p. 03.).
Estado de segurança e polícia no Brasil
71
Vista dada à inserção da modalidade sob enfoque nos contornos
do denominado poder de polícia da Administração e, dando o adequado
prosseguimento, surge ainda prévio ponto a ser destacado, do qual,
evidentemente, não se pode prescindir. Toda essa breve análise da
história e evolução da polícia brasileira, assim como a abordagem
conceitual sugerida, faz com que se possa melhor entendê-la e se partir,
com maior precisão, para um exame das normas constitucionais que
regulam sua atuação e elevam seus princípios básicos. Aproveitar-se-á
o momento para também examinar – de forma paralela e não central,
é bom que se diga – a posição dos bombeiros militares, os quais,
juntamente com os policiais militares, possuem regramento específica e
conjuntamente exposto na Constituição da República.
Portanto, feitas essas considerações, será imperioso o exame de
alguns dispositivos da Constituição de 1988, tais como os artigos 6, 37, 42,
142 e 144. São artigos em que não apenas direta ou indiretamente a função
policial estatal pode vir à tona, mas também em que variadas questões
serão suscitadas e avaliadas sob o prisma, principalmente, constitucional.
A Constituição de 1988 é, sobretudo, uma Constituição extensa,
que objetivou regular uma série de direitos e deveres de diversas
categorias profissionais, a principal delas ligada à Administração
Pública brasileira. Inúmeros são os dispositivos que versam sobre
o assunto, valendo salientar, de forma mais evidente, o longo art. 37
como o portador dos principais direitos e deveres de servidores públicos
e o enumerador das principais características gerais da Administração
Pública brasileira.
No entanto, tais normas voltadas à regulação da Administração
Pública e de seus componentes não se limitaram ao art. 37, encontrandose presentes em uma série de outros momentos dentro do texto
constitucional. Assim, quando o legislador constituinte estampou no
art. 6º, ao lado de variados direitos sociais, o direito à segurança, fez
menção, pelo menos, a uma dupla acepção deste direito: àquele que
todo cidadão tem de se sentir protegido pelo Estado e deste exigir a
defesa de seus direitos mais lídimos; e a que se refere a como o Estado
irá proporcionar segurança aos administrados. De um lado, o direito
subjetivo à segurança, de outro, o direito objetivo, com todas as suas
implicações, nuanças e extensão.
72
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
Não foi à toa, portanto, que além de prever o direito à segurança
no Art. 6, que traz o rol dos principais direitos sociais no Brasil de hoje,
trouxe à Constituição também capítulo específico para melhor regular tal
direito. Mais precisamente, o Capítulo III, do Título V,10 acompanhado
de perto por outros capítulos e subdivisões do mesmo Título.
Assim, antes de mais nada, é fundamental avaliar a condição dos
servidores públicos em geral quando o tema central a ser discutido é o
relativo ao direito de greve. Tanto os policiais e bombeiros militares,
quanto os demais servidores públicos são membros da Administração
Pública brasileira, pois assim quis a Constituição quando deles cuidou
em seções e subseções específicas do Capítulo “Da Administração
Pública”.11 Nessa linha, entretanto, há regimes jurídicos diferenciados
para cada categoria destes servidores em sentido amplo, que merecerão
enfoque especial nos parágrafos seguintes. Que se comece, então, pela
figura mais ampla dos servidores públicos em geral.
Os servidores públicos, em sentido amplo, podem ser
considerados aqueles que exercem função pública e possuem uma
vinculação laboral formal com a Administração Pública. Na realidade,
entretanto, essa ampla visão não afasta uma mais restrita, de acordo
com a qual os servidores públicos são os agentes com alguma relação
funcional com o Estado, sob a égide do regime chamado estatutário.
Aqueles que ocupam cargos públicos em comissão ou efetivos, ou seja,
decorrentes de aprovação em concurso público, submeter-se-ão e serão
tutelados pelo regime jurídico de direito público, sendo, nessa linha,
reputados servidores públicos. Seus direitos e deveres são amplos e,
relativamente a eles e à própria Administração Pública, preocupou-se
a Constituição da República, a qual reservou uma série de dispositivos
para sua regulação.
Assim é que, ao se pensar, hoje, em Administração Pública
e seus membros no Brasil, vem comumente à tona as previsões
contidas nos Artigos 37 e seguintes da Constituição de 1988. Seu
caráter indubitavelmente dirigente e compromissório fez com que não
apenas se preocupasse com a organização do Estado e suas principais
características, mas também com uma série de outros direitos, muitos
Título V: Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Capítulo II: Das Forças Armadas.
Capítulo III: Da Segurança Pública.
10
11
Capítulo VII, do Título III, denominado “Da Organização do Estado”.
Estado de segurança e polícia no Brasil
73
dos quais real e materialmente constitucionais, outros tantos mera e
formalmente constitucionais.
Independentemente, contudo, da maneira pela qual se concebam
vários direitos e deveres dos servidores públicos e características da
Administração Pública, sua previsão constitucional merece tratamento
condizente com o grau de importância, logicamente, ligado à sua
localização no ordenamento jurídico brasileiro. E nesse sentido é que
se deve encarar, entre outros, o direito de greve dos servidores públicos.
Ressalte-se, assim estatui o Art. 37, inciso VII, da Constituição:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também,
ao seguinte:
[...]
VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos
limites definidos em lei específica;
Se a greve é direito, embora duramente conquistado, já
solidificado como fundamental do trabalhador brasileiro, quando
o assunto é “greve de servidores públicos”, muito ainda há o que se
amadurecer e concretizar no ordenamento jurídico nacional. E isso,
sobretudo, em razão da ainda – pasme-se! – não complementação do
apenas citado inciso do Art. 37 da Constituição. Norma constitucional de
eficácia contida ou limitada, seguindo-se a antiga classificação de José
Afonso da Silva,12 o fato é que carece o dispositivo de regulamentação
e, por conseguinte, da devida preocupação e atenção legislativa, a qual
parece propositalmente distante desde a promulgação da Constituição,
no ano de 1988.13
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo: Editora
Malheiros, 1999.
12
A única regulamentação, entretanto não de lei complementadora, a qual ainda não existe, mas direta
do dispositivo constitucional ora sob foco é o Decreto nº 1.480, de 03 de maio de 1995, direcionado
aos servidores públicos federais. Tal Decreto, ressalte-se, rechaça a greve de servidores por meio de
sanções conferidas aos que faltarem o trabalho por motivo de greve. Assim estatui o Art. 1º, incisos
13
74
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
Enquanto o trabalho regido pela Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT) é naturalmente alcançado pelo Art. 9 da Constituição
da República,14 inserido no Capítulo reservado aos Direitos Sociais, o
qual, por sua vez, encontra-se estampado no interior do Título dedicado
aos Direitos Fundamentais, os servidores públicos sofrem com limbo
legislativo e com a incerteza sobre a extensão da referida norma. Aliás,
de incertezas há longo tempo vive a sociedade brasileira, no tocante a
possibilidades, limites e características de greves de servidores públicos.
Para os fins deste texto, entretanto, é imperioso ressaltar que
se entende permitido o direito de greve aos servidores públicos. Pois,
caso não fosse, sequer teria a Constituição trazido, no inciso VII do
Art. 37, o teor já mencionado ou, talvez, teria expressamente proibido
seu exercício, como no caso dos policiais e bombeiros militares,
conforme adiante será enfrentado. Nesse viés, defende-se, em primeira
análise, que, se circundado por legitimidade, pacificidade, organização
e segurança aos administrados, pode o servidor público se fazer
valer deste direito fundamental arduamente conquistado, sob pena,
inclusive, de se retroceder em matéria de conquistas de aplicabilidade
e efetividade de direitos fundamentais em caso de vedação de sua
aplicação à referida categoria.
De qualquer forma, entendimentos e posicionamentos jurídicos
sobre a possibilidade de greve dos servidores públicos à parte, problema
maior e o cerne do que ora se discute diz respeito à possibilidade ou não
do exercício deste direito por policiais militares.15 Responsáveis diretos
I, II e II do referido Decreto: “Art. 1º Até que seja editada a lei complementar a que alude o art. 37,
inciso VII, da Constituição, as faltas decorrentes de participação de servidor público federal, regido
pela Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, em movimento de paralisação de serviços públicos não
poderão, em nenhuma hipótese, ser objeto de: I - abono; II - compensação; ou III - cômputo, para fins
e contagem de tempo de serviço ou de qualquer vantagem que o tenha por base”.
Assim estatui o Art. 9º da Constituição de 1988: “Art. 9º É assegurado o direito de greve,
competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que
devam por meio dele defender. § 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá
sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. § 2º - Os abusos cometidos
sujeitam os responsáveis às penas da lei”. A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais,
juntamente com relevância nacional e internacional, cada vez mais intensa, destes mesmos
direitos, alça a garantia do tradicional direito de greve a patamar deveras elevado, com já variadas
manifestações legais e jurisprudenciais sobre sua extensão. Ao invés do ostracismo, o direito
de greve dos trabalhadores urbanos e rurais, valendo-se dos termos da própria Constituição, é
matéria já bem mais visitada por juristas, economistas, políticos e demais estudiosos ligados a
múltiplas áreas do saber.
14
15
Como já salientado desde o início, o foco central deste artigo é o policial militar. Mas, em razão
Estado de segurança e polícia no Brasil
75
pela segurança pública e ostensiva no âmbito de cada Estado membro
da Federação brasileira, seus recebimentos são comumente definidos
pelo Poder Executivo estadual e eventuais paralisações em seus serviços
representam direta consequência no bem-estar social, sobretudo urbano,
e na concepção contemporânea de que o Estado é provedor de uma série
de direitos, mas principalmente, do direito à segurança. A contrario
sensu, suspensões e interrupções no trabalho do policial militar trazem
à tona a inevitável figura do medo, em sua mais ampla acepção. É a ideia
de Estado de Segurança se sobrepondo ao Estado de Liberdade. Antes
se ter espremida uma liberdade, do que se ter ameaçada a segurança.
Melhor ser menos livre e seguro, do que livre e sob constante ameaça e,
repita-se, medo.
No entanto, antes mesmo de se discutirem as figuras, modelos
e paradigmas de liberdade e segurança, mostra-se imprescindível um
enfrentamento constitucional minucioso do quiçá direito de greve do
policial militar.
Assim, ressalte-se, desde já, o contido no Art. 42 da Constituição
republicana em vigor:16
das inúmeras semelhanças e aproximações em matéria de direitos, frequentemente far-se-á
menção à categoria dos bombeiros militares.
Vale salientar que a redação atual foi preponderantemente conferida pela Emenda Constitucional
nº 18 de 1998, com alterações nos §§ 1º e 2º, respectivamente, também pelas Emendas nº 20 de
1998 e 41 de 2003. Eis a redação original do dispositivo: “Art. 42. São servidores militares federais os
integrantes das Forças Armadas e servidores militares dos Estados, Territórios e Distrito Federal os
integrantes de suas polícias militares e de seus corpos de bombeiros militares. § 1º As patentes, com
prerrogativas, direitos e deveres a elas inerentes, são asseguradas em plenitude aos oficiais da ativa,
da reserva ou reformados das Forças Armadas, das polícias militares e dos corpos de bombeiros
militares dos Estados, dos Territórios e do Distrito Federal, sendo-lhes privativos os títulos,
postos e uniformes militares. § 2º As patentes dos oficiais das Forças Armadas são conferidas pelo
Presidente da República, e as dos oficiais das polícias militares e corpos de bombeiros militares dos
Estados, Territórios e Distrito Federal, pelos respectivos Governadores. § 3º O militar em atividade
que aceitar cargo público civil permanente será transferido para a reserva. § 4º O militar da ativa
que aceitar cargo, emprego ou função pública temporária, não eletiva, ainda que da administração
indireta, ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa
situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela
promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos
ou não, transferido para a inatividade. § 5º Ao militar são proibidas a sindicalização e a greve.
§ 6º O militar, enquanto em efetivo serviço, não pode estar filiado a partidos políticos. § 7º O
oficial das Forças Armadas só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou
com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou
de tribunal especial, em tempo de guerra. § 8º O oficial condenado na justiça comum ou militar
a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será
submetido ao julgamento previsto no parágrafo anterior. § 9º A lei disporá sobre os limites de
idade, a estabilidade e outras condições de transferência do servidor militar para a inatividade. §
16
76
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de
Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na
hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito
Federal e dos Territórios.
§ 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal
e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as
disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e
3º, cabendo à lei estadual específica dispor sobre as matérias do
art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas
pelos respectivos governadores.
§ 2º Aos pensionistas dos militares dos Estados, do Distrito
Federal e dos Territórios aplica-se o que for fixado em lei específica
do respectivo ente estatal.
Assim, à Seção III, do Capítulo VII, do Título III da Constituição,
reservou-se apenas o supra transcrito Art. 42, o qual cuida dos policiais
e bombeiros militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios.
E, na linha do objetivado pelo legislador constituinte,
sobretudo, anos mais tarde, derivado reformador, vários direitos e
deveres dos referidos profissionais encontram-se distribuídos pela
Constituição, com enfoque primordial e privilegiado ao que resta
estampado no Capítulo II, do Título V, da Carta Maior, dedicado às
Forças Armadas.
E, no tocante ao direito de greve, assim estatui o inciso IV, do
§ 3º, do Art. 142 da Constituição, com a redação também aletrada
pela anteriormente mencionada Emenda Constitucional nº 18, de 05
de fevereiro de 1998, e reproduzindo o antigo teor do Art. 42, § 5º, da
mesma Constituição de 1988:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo
Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes
10. Aplica-se aos servidores a que se refere este artigo, e a seus pensionistas, o disposto no art. 40,
§§ 4º e 5º § 11. Aplica-se aos servidores a que se refere este artigo o disposto no art. 7º, VIII, XII,
XVII, XVIII e XIX”. Note-se que a proibição do exercício do direito de greve já existia, de forma
expressa, no § 5º do Art. 42, que hoje foi direcionada e deslocada, conforme a seguir examinado,
para o Art. 142 da Constituição, que cuida, de forma separada, da Forças Armadas, com a reserva
do Art. 42 apenas aos policiais e bombeiros militares dos Estados, do Distrito Federal e dos antigos
Territórios brasileiros.
Estado de segurança e polícia no Brasil
77
e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina,
sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinamse à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por
iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
[...]
§ 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares,
aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as
seguintes disposições:
[...]
IV - ao militar são proibidas a sindicalização e a greve;
Ora, pelas previsões anteriores, interpretação direta do teor
dos dispositivos constitucionais citados faz com que se conclua,
imediatamente, pela impossibilidade do exercício do direito de greve
pelos policiais e bombeiros militares. A ideia central é a de que os
direitos fundamentais, sobretudo os de toda a sociedade e os de pessoas
que dependem da segurança proporcionada pelo Estado,17 devem ser
garantidos a todo custo e qualquer preço. Ainda que sejam os policias
também seres humanos e portadores também de uma série de direitos,
inclusive os fundamentais, como apenas salientado.
Entretanto, outros dispositivos constitucionais existem, dos
quais emergem outros valores e princípios, em relação aos quais não se
devem fechar os olhos.
Portanto, se analisada a Constituição sob o prisma também dos
direitos fundamentais, entretanto com foco diverso, pode-se concluir
que afastar o direito de greve de uma categoria profissional, tal como
é a dos policiais militares e, também, a dos bombeiros militares,
significa simplesmente retroceder juridicamente e limitar a aplicação de
17
Este o teor do caput do Art. 144 e dos §§ 5º e 6º do mesmo Artigo da Constituição de 1988: “Art.
144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes
órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias
civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. [...] § 5º - às polícias militares cabem
a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das
atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. § 6º - As polícias
militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se,
juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”.
78
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
direitos sociais fundamentais previstos na Constituição da República.
É oportuna, assim, menção, ao princípio da proibição do retrocesso,
de acordo com o qual, em linhas bem gerais e introdutórias, vitórias
e conquistas históricas, máxime ligadas aos direitos fundamentais de
todo ser humano, não devem ser suplantadas, sob nenhum argumento,
uma vez que se estaria regredindo, ao invés de progredindo seja na
previsão e garantia, seja na tutela de direitos fundamentais. E tal
proibição anunciada, vale tanto para situações expressas, quanto e,
principalmente, para as decorrentes e resultado de interpretações
variadas da Constituição e suas normas.
Em abordagem e enfrentamento do tema, merece destaque
pesquisa de Felipe Derbli, que, amparado, entre outros, pelo magistério
de Ingo Sarlet, explica:
Nessa ordem de ideias, o princípio da proibição do
retrocesso decorre implicitamente do ordenamento constitucional
brasileiro, extraído, segundo o autor, das seguintes normas
constitucionais: (I) o princípio do Estado Democrático de Direito,
em especial o princípio da segurança jurídica [...]; (II) o princípio
da dignidade da pessoa humana; (III) o princípio da máxima
eficácia e efetividade dos direitos fundamentais (Art. 5º, § 1º, da
Constituição) [...].18
Embora se saiba que tal princípio não é imune a críticas – fato
extensivo a praticamente todas as teorias jurídicas, em que dialética e
argumentação traduzem constantemente seus contornos –, assume-se
aqui o entendimento segundo o qual realmente a ordem constitucional
vigente veda o retrocesso em matéria constitucional social.
DERBLI, Felipe. Proibição de retrocesso social: uma proposta de sistematização à luz da
Constituição de 1988. In: BARROSO, Luis Roberto. A reconstrução democrática do Direito Público
no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 457. O presente estudo não objetiva dissecar
o tema da proibição do retrocesso. Para aprofundamento, portanto, vale conferir o mesmo artigo
de Felipe Derbli e, entre outros: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais.
2. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001; SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da
pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001;
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa
humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro.
In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Org.). Constituição e segurança jurídica: direito adquirido,
ato jurídico perfeito e coisa julgada – estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. 2.
ed. Belo Horizonte: Editora Forum, 2009; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. 6. ed.
Coimbra: Almedina, 1993.
18
Estado de segurança e polícia no Brasil
79
Nesse viés, por conseguinte, suprimir o direito de greve de qualquer
categoria profissional significaria afronta à própria Constituição, ainda
que se precise amparar-se em outras teorias19 para se possibilitar um
controle das próprias normas inseridas na Constituição.
Por corolário e por todo o exposto anteriormente, imperioso
perceber a magnitude da questão ora enfrentada e suas conotações,
variações e, infelizmente, imprecisões dentro do ordenamento jurídico
brasileiro. Se, por um lado, a Constituição de 1988 foi diretamente
clara ao proibir a extensão da sindicalização e do direito de greve aos
policiais e bombeiros militares, por outro lado foi igualmente explícita
e cristalina ao proclamar uma série de direitos fundamentais, entre os
quais o próprio direito de greve, inequivocamente garantido no Artigo
9 e, embora dependente de complementação, também no Art. 37 da
Constituição. Ademais, a mesma Carta Nacional de Direitos previu
princípios como o da igualdade, segurança jurídica, liberdade, proibição
do retrocesso e uma gama de direitos sociais, em sentido amplo e estrito,
com aplicabilidade imediata e efetividade indiscutível sob o ponto de
vista do cidadão e do administrado.
Portanto, desde que com diálogo, caráter pacífico e legitimidade,
como simplesmente fechar os olhos para reivindicações que partem de
classe profissional com função indubitavelmente essencial para a ordem
pública e a paz social? Este estudo se debruça, conforme já salientado e,
logicamente, às nuanças, sobretudo constitucionais, da polícia e do direito
de greve. Não se deseja qualquer direcionamento rumo ao direito militar
e suas particularidades.20 Para os fins aqui perseguidos, as funções de
polícia são, antes de tudo, do Estado, sendo os policiais militares de cada
Estado membro da Federação brasileira e do Distrito Federal (não há,
atualmente, em seu sentido técnico, Territórios na República Federativa
do Brasil) servidores responsáveis pelo policiamento ostensivo no país,
19
Por exemplo, a da existência de normas constitucionais inconstitucionais. Entre tantos, conferir:
BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Tradução de José Manuel M. Cardoso
da Costa. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.
20
Realmente, em nenhum momento versou, nem mesmo versará, o ora estudo, sobre as inúmeras
nuanças e facetas do direito militar. Entretanto, alguns princípios que findam por estar, ora mediata,
ora imediatamente relacionados a tal linha de estudo e pesquisa, já foram neste texto salientados,
sobretudo quando se fez menção aos Artigos 42 e 142 da Constituição. É o caso da hierarquia e
da disciplina (“instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina”), aplicados de forma
explícita às Forças Armadas brasileiras e, igualmente, à figura dos policiais e bombeiros militares.
80
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
por meio de sua atuação em cada uma das 27 unidades da Federação
(Estados e Distrito Federal).
Em seguida, a problemática aqui anunciada caminhará no
sentido de uma avaliação mais ampla da questão da segurança no país.
Estado de Segurança e Policiamento: uma necessidade
de diálogo e solução
Ultrapassada a esfera de análise das questões atinentes à posição
constitucional dos policiais militares, com foco direcionado a seus
direitos enquanto profissionais – mais precisamente, ao tormentoso
direito de greve –, faz-se mister partir para uma segunda etapa de
considerações, a maioria das quais voltada para a problemática maior
hoje vivenciada no Brasil e em diversos outros países e relacionada à
ideia de segurança.
Múltiplos direitos sociais e de liberdade foram sedimentados em
vários ordenamentos jurídicos a duras penas, resultado de conquistas
árduas e penosas para diversos povos. A cristalização dos direitos
fundamentais, entre os quais sempre se destacaram as principais
liberdades e direitos sociais, direitos fundamentais de primeira e segunda
geração, ocorreu de forma lenta e gradual, sendo, atualmente, motivo de
comemoração sua aceitação e quase inviolabilidade em diversos países.
Entretanto, a complexidade constante das relações sociais, o
enorme desenvolvimento urbano e tecnológico, assim como, entre tantos
outros fatores, o crescimento de atos terroristas, em âmbito externo, e
do crime organizado, no âmbito inicialmente interno de vários países,
fizeram com que, também gradativamente, ganhassem força e espaço
políticas de segurança, comumente acompanhadas da necessidade de
adoção de medidas jurídicas, as quais muitas vezes levam à redução de
liberdades e direitos fundamentais.
Contemporaneamente, a ameaça terrorista fez com que, no
âmbito internacional, a pessoa reputada inimiga por determinada nação
ou grupo social passasse a ter tutela jurídica diferenciada. O direito penal
do inimigo é clara manifestação intelectual do que ora se alega. Cortes
constitucionais estrangeiras já foram provocadas a se manifestarem
Estado de segurança e polícia no Brasil
81
sobre confrontos entre direitos individuais ligados a liberdades, de um
lado, e segurança nacional e territorial de outro.21
A título exemplificativo, a Corte Constitucional alemã já se
pronunciou em diversos casos, tendendo a privilegiar a prevalência
dos direitos fundamentais sobre o combate ao terrorismo a todo custo.
Embora o confronto entre princípios mascare um embate entre questões
políticas e questões jurídicas, decisões dos tribunais demonstram que
a defesa dos direitos fundamentais esbarra em paradoxos, tais como
o de defender a segurança por meio de restrições à liberdade ou o de
defender a liberdade com limitações à segurança. Tanto segurança
quanto liberdade são direitos fundamentais e, em uma acepção mais
ampla, pensando-se em liberdades substantivas e fundamentais, poderse-ia enquadrar a segurança como um aspecto da liberdade.22
O Tribunal Constitucional Federal Alemão é uma fonte de
exemplos do que ora se examina, valendo citação ilustrativa do caso das
sentinelas do muro de Berlim.23
21
Sobre o direito penal do inimigo, com ênfase em teoria e críticas, entre outros: GÜNTHER,
Jakobs; MELIÁ, Manuel Cancio (Org.). Derecho Penal del enemigo. Madrid: Editorial Civitas,
2006; CANOTILHO, J. J. Gomes. Justiça Constitucional e Justiça Penal. Separata da Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, 58 v., ano 14, p. 329-344, jan./fev. 2006; e BUSATO,
Paulo César; CONDE, Francisco Muñoz. Crítica ao Direito Penal do Inimigo. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2011.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
22
23
Para uma análise mais aprofundada desse caso e também de outras decisões do Tribunal
Constitucional Federal Alemão: VIEIRA, José Ribas (Org.). Constituição e Estado de Segurança
nas decisões do Tribunal Constitucional Alemão. Curitiba: Editora Juruá, 2008. Também do
Direito alemão e de seu Tribunal Constitucional se extrai outra decisão interessante, que leva em
consideração, de um lado, a segurança antiterrorista e, de outro, direitos individuais e fundamentais,
sobretudo, mais uma vez, o direito à vida. Trata-se da possibilidade ou não do abate de aviões civis
quando estes, ainda que repletos de civis, estiverem dominados por terroristas para a prática de ato
terrorista por meio da aeronave sequestrada. A citada Corte Constitucional declarou inconstitucional
a Lei de Segurança do Transporte Aéreo, que entrou em vigor em 15 de maio de 2005 e que permitia
ao Ministro da Defesa ordenar o abate de avião de passageiros caso se pudesse presumir que a
aeronave seria utilizada para atentar contra a vida de outras pessoas e que o abate seria o único
modo de evitar o atentado. Na realidade, não se distanciando da necessidade premente e decorrente,
outrossim, de ampla comoção popular, a nível praticamente mundial, de combate ao terrorismo e
a violências desproporcionais, embora tenha condenado a previsão contida no § 14 da referida lei,
distinguiu o Tribunal Constitucional Federal Alemão o caso em que uma aeronave estivesse tripulada
apenas por terroristas, caso em que estes não seriam alcançados pelos princípios da dignidade
humana e pelo direito à vida. Conferir-se-ia, assim, ao Ministro da Defesa, a possibilidade de decretar
pena de morte aos (supostos) terroristas condutores de aeronave, sem qualquer respeito a um devido
processo legal, nos moldes tradicionais. A situação emergencial exigiria decisões rápidas de maneira
a evitar um mal maior. O caso é complexo, pois, inserido na problemática de defesa e proteção da
82
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
Nesse sentido, no enfrentamento do caso concreto apenas
citado, teve a Corte Constitucional alemã que decidir sobre a
condenação ou não de duas sentinelas que dispararam arma de
fogo e levaram ao falecimento cidadão que tentava ultrapassar a
fronteira demarcada pelo muro de Berlim, obra humana construída
após a segunda guerra mundial com o objetivo de subdividir a nação
germânica em ocidental e oriental. A marca da divisão entre socialismo
e capitalismo, entre o ocidente liderado pelos Estados Unidos e
o oriente encabeçado pela União Soviética e, principalmente, da
guerra fria no pós-guerra, somente superada em 1989, deixou vários
resíduos e reflexos até os dias de hoje.
A grande e paradigmática questão gira em torno do fato de as
mencionadas sentinelas terem sido julgadas e condenadas pela morte
do cidadão contra quem dispararam. Poderiam as mesmas, mesmo após
a reunificação da Alemanha e a certeza de que cometeram grave ofensa
aos direitos fundamentais, serem condenadas pelo cumprimento de seu
ofício? Ou seja, tendo em vista estarem cumprindo ordens superiores
de atirar para matar nos casos de tentativa de cruzamento do muro,
poderiam tais guardas ser considerados imputáveis e culpados e, por
conseguinte, condenados?
O Tribunal Constitucional alemão, mantendo, sob novo
fundamento, a decisão do tribunal Territorial de Berlim, condenou
os guardas pela morte do cidadão, expondo que o cumprimento das
ordens superiores não justificaria, naquele caso concreto, uma afronta
a direitos fundamentais, principalmente ao direito à vida. Os direitos
fundamentais sobrepor-se-iam a quaisquer outras normas de conduta
ou deveres de ofício, ainda que decorrentes de outras normas jurídicas.
O recurso dos condenados à Corte Europeia de Direitos Humanos
fez com que esta pudesse se pronunciar de maneira a também manter a
condenação, expondo que, mesmo que estivessem obedecendo às normas
de seus comandantes, deveriam ter tido cognição suficiente para entender
que não poderiam afrontar a lei penal alemã e desconhecer a tutela
internacional dos direitos humanos, especialmente do direito à vida.
segurança e transportado para outras realidades, significa uma maneira distinta de se aplicarem os
direitos fundamentais. Respeitadas as peculiaridades de cada caso, seria o mesmo que se permitirem
incursões policiais em comunidades carentes e nas quais se soubesse existirem lideranças locais de
organizações criminosas, permitindo-se violações a liberdades e direitos individuais em homenagem
ao direito, naquele momento, reputado maior, isto é, à segurança.
Estado de segurança e polícia no Brasil
83
Apesar de o caso anterior referir-se à República alemã, reflete
uma problemática internacional e, também, internamente vivida, em
menor ou maior grau, por diversos países. Práticas contrárias à garantia
internacionalmente consagrada dos direitos humanos e permitidas
pelos respectivos governos de cada nação podem ser punidas, por
exemplo, a nível interno de cada país, mediante a provocação de
governos subsequentes?
Analisando o cometimento de tortura na Era Bush, o governo
estadunidense subsequente entendeu por bem condenar a prática, mas
não punir aqueles que cumpriram ordens e se valeram de afrontas aos
direitos humanos para tentar evitar atos terroristas contra a população
norte-americana.24
A questão é controvertida e ganha, dia após dia, mais corpo e
densidade, principalmente se levar-se em conta a realidade de violência
urbana em diversas cidades e de organizações criminosas em vários
países. O que se poderia compreender como estado de exceção e o que
seria um Estado Democrático de Direito?
Não há dúvidas de que, no Brasil e no mundo criou-se uma espécie
de obsessão pela segurança. Direitos sociais, liberdades fundamentais,
entre outros direitos e garantias constitucionais são muitas vezes
relegados e colocados em segundo plano quando o direito à segurança
assume posição ponderativa. Qualquer que seja a ameaça a um direito
fundamental, se o direito à segurança estiver em jogo, presencia-se
movimentação intelectual mecânica e impulso institucional pragmático
rumo ao fortalecimento do Estado e, por consequência, da segurança – o
que findaria por resvalar nos cidadãos –, com a criação de uma película
24
Barack Obama, presidente dos Estados Unidos que sucedeu George Bush, condenou, desde
sua campanha presidencial, uma série de práticas de combate ao terrorismo adotadas pelo
governo anterior. No entanto, por questões eminentemente políticas, decidiu, em um primeiro
momento, não punir aqueles que, no cumprimento de ordens superiores, torturam prisioneiros
e, por consequência, afrontaram direitos fundamentais básicos. Manter ou não certas práticas
de tortura é um desafio para Obama, o qual tem de equilibrar direitos fundamentais básicos,
tais como o direito à segurança e à liberdade. “A tentativa de equilibrar-se entre as duas
posições é uma mostra do desafio do presidente em lidar com uma questão essencial: como será
conduzida a vigilância antiterrorista daqui em diante. Apesar de ter dispensado as práticas vis
mais conhecidas do governo Bush, outras tantas ainda são úteis para proteger o país. ‘Obama
inocentou os agentes da CIA para não abalar a moral e a credibilidade da agência, pois sabe
que ainda precisa deles para combater o terrorismo’, disse a VEJA o americano Kal Raustiala,
professor de direito internacional da Universidade da Califórnia” (FAVARO, Thomaz. A vida
depois da tortura. In: Revista Veja: Editora Abril, edição 2110, nº 17, ano 42, p. 95, 2009).
84
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
protetora, uma cúpula, por entre a qual não passariam ameaças ao bemestar social, nos dias de hoje eminentemente traduzido na forma de
segurança. Entre segurança e liberdade ou outros direitos sociais, que
se privilegie a segurança.
Nesse contexto, então, é que se deve inserir boa parte dos debates
atuais sobre direitos de policiais militares e, mais especificamente, sobre
o direito de greve destes últimos. Ora, como admitir que os responsáveis
pela segurança do Estado e, por corolário, da própria sociedade,
paralisem suas atividades? Estar-se-ia, em uma primeira análise, diante
de um fortalecimento da insegurança, pois aqueles que deveriam por ela
zelar simplesmente estariam abandonando seus misteres institucionais
e colocando toda uma comunidade de pessoas sob perigo.
Por outro lado, deve-se perceber, também, que outras questões
podem vir à tona. E, sobretudo, se examinado o tormento da greve dos
policiais militares em sentido mais amplo. Se, conforme anunciado, em
um primeiro momento, a paralisação de serviços públicos de segurança
representa uma ameaça inconteste à população, por outro lado, a
continuidade perene da prestação de serviços públicos de segurança, sem a
certeza da existência de qualquer poder de pressão sobre os empregadores
– em sentido amplo, é claro – por parte de cada policial militar, não seria
um real e verdadeiro desestímulo à tão nobre função por eles exercida?
Independentemente do ponto de vista e de uma possível resposta a tal
indagação, imperiosa se mostra breve análise da ideia de segurança.
Pensar em segurança e suas múltiplas facetas faz com que se
precise iniciar pela sua visão mais límpida, de acordo com a qual:
A ideia de segurança, em si, de amplitude ecumênica,
abarca a atividade do Homem até no Espiritual. Sob determinado
ângulo, chega a sinonimizar-se com a Paz Integral (Paz Física + Paz
Psicológica). Tal é a sua grandeza. Essa ideia predominantemente
emana dos fatos e sobre eles, por sua vez, exerce influência.
Para o mesmo autor supracitado, a palavra segurança é o
afastamento de qualquer perigo. Significa, também:
o abrigo dos males entre os quais o pauperismo e a deficiência
educacional. Precaução e cautela são táticas da segurança.
Estado de segurança e polícia no Brasil
85
Poupança é segurança na expressão financeira ou econômica.
Medidas sanitárias são medidas de segurança contra o que afeta
a saúde. Segurança é igualmente a certeza de que determinada
informação é verídica: é o crédito que se atribui a um
testemunho, a confiança que se confere à integridade moral de
um indivíduo no trato dos negócios com ele, sobretudo quando
se decora com a toga de magistrado, é a fé numa decisão do
chefe de Estado.
E, por fim, afirma Mário Pessoa em estudo específico sobre o
direito da segurança nacional, realizado no início da década de setenta
do século passado:
A palavra segurança tornou-se mágica perante o
assombrado mundo hodierno em todos os setores da atividade
humana. Na absorvente preocupação de enfrentar perigos ou
ameaças, ela se engrandeceu em atualidade e importância.
Estamos no apogeu da sua valorização.25
Mágica e engrandecimento. Portanto, em 1971, quando da
conclusão dos trabalhos de pesquisa iniciados ainda antes, o mencionado
autor concluiu que segurança era à época a questão de ordem, principal,
talvez, a ser enfrentada por todos, inclusive por juristas. Mais de quarenta
anos depois da publicação de seu trabalho, entretanto, é imprescindível
indagar: poderiam as colocações anteriormente transcritas valer para
um estudo atual, finalizado no ano de 2012?
E a resposta, por mais benevolente e condescendente que se
pretenda ser, é sim. Ainda hoje a segurança encontra-se nas principais
agendas políticas, jurídicas e econômicas, razão pela qual qualquer
espécie de ameaça e perigo ao chamado Estado de Segurança é motivo
de preocupação imediata.
No caso ora mais precisamente sob exame, o exercício de
um direito fundamental pela classe responsável pelo policiamento
ostensivo no Brasil é entendido, em um primeiro momento – sobretudo
pelo legislador constituinte brasileiro – uma afronta e real ameaça à
25
PESSOA, Mário. O direito da segurança nacional. Rio de Janeiro: Editora Revista dos Tribunais,
1971, p. 07.
86
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
democracia. Como sobreviver sem o policiamento nas ruas e a atuação
constante e incisiva dos policiais militares, podendo estender tal
afirmação, guardadas as devidas proporções, aos bombeiros militares?
Essa é a base sobre a qual verdadeiramente se funda um dos
alicerces do problema da aplicação e extensão do direito social à greve
aos policiais e bombeiros militares.
No entanto, o drama – e aqui se arrisca na utilização deste
vocábulo – vivenciado por algumas categorias profissionais, entre
as quais as que aqui se destacam, finda por esbarrar em deficiências
estatais claras e patentes. No Brasil, primeiramente, as perdas salariais26
no setor público – e neste momento se referindo apenas às relativas
mudanças econômicas previsíveis, tais como perdas inflacionárias etc. –
são patentes e todo o funcionalismo público, em sentido amplo, torna-se
sempre refém das decisões governamentais que versam sobre melhorias
em seus recebimentos mensais. E no tocante à figura dos policiais
militares, a certeza de satisfatórios reajustes anuais não é sentimento
inerente à classe.
A Constituição de 1988, no já anteriormente levantado capítulo
reservado à Administração Pública, assim determina, após, ressalte-se,
redação trazida pela Emenda Constitucional nº 19/1998:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
X - a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que
trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados
por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso,
assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem
distinção de índices;
Nessa linha, assegura a Constituição a “revisão geral anual”
da remuneração dos servidores públicos, sem qualquer distinção de
26
Vocábulo “salário” utilizado sem o rigor técnico que se exigiria, em se tratando de recebimentos
provenientes do setor público.
Estado de segurança e polícia no Brasil
87
índices. Entretanto, nem sempre vem sendo tal dispositivo respeitado.
As perdas remuneratórias se acumulam, ano após ano, o que faz com
que os recebimentos dos funcionários públicos entrem em rota de
franca defasagem.
E, para além do anteriormente citado, não apenas, por exemplo,
sofrem os policiais militares de diversos Estados-membros da Federação
brasileira com a inexistência de reajustes condizentes com a realidade
econômica do Brasil. Reivindicações de melhorias e ganhos reais também
passam pela esfera política de consentimento do Poder Executivo de
cada Estado, o que faz com que direitos findem por transformar-se
em tratativas e negociações de cunho principalmente político. Assim,
torna-se evidentemente ainda mais complexa a lógica de melhoria de
benefícios para várias classes de funcionários e servidores do Estado,
entre as quais também se deve encaixar a dos policiais militares.
É certo que ocupam posição um tanto quanto particular, uma vez
que são os responsáveis pelo policiamento e pela segurança pública,27
além de submeterem-se a princípios específicos ligados à rotina
militar, tais como os já citados da hierarquia e disciplina. Contudo,
são seres humanos, detentores e portadores de direitos sociais,
constitucionalizados não por obra do acaso, mas em razão de séculos
de evolução constitucional de direitos, a qual tende a levar à máxima
garantia dos direitos fundamentais. Policiais e bombeiros militares,
frise-se, possuem família e deveres normais a todos os cidadãos. Aliás,
até mesmo quando não usam seus distintivos e fardas, carregam o
ônus da profissão escolhida. Que possam usufruir o bônus, desde que,
conforme por vezes salientado, de forma mansa, pacífica, dotada de
legitimidade e, preferencialmente, com base no diálogo.
E esta talvez uma das formas de se evitar o temido caos diante de
paralisações de serviços na busca por melhores remunerações.
Note-se que, se em uma unidade da Federação brasileira iniciase processo de paralisação das atividades de policiamento ostensivo,
com o anúncio de estado de greve de policiais militares, é certo que, sob
um dos olhares possíveis, a segurança pública restará ameaçada. E se tal
27
Para Mário Pessoa, segurança pública “é normalmente constituída pelo fato de nenhum perigo sério
ameaçar o cidadão de um país civilizado. [...] Atrás de toda a segurança, para apoiá-la moralmente,
deve existir imanente um princípio de justiça. Um estado ideal de consciência”. E, concluindo, afirma:
“A segurança reúne em torno de si um processo interminável de adaptação de meios para eliminar
tudo que possa destruí-la, parcial ou totalmente” (PESSOA, Mário. Obra citada, p. 11.).
88
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
ameaça atingir patamares insustentáveis, em situações extremas podese até mesmo ter lugar a figura da intervenção federal, em relação à qual
os comentários seguintes se mostram oportunos.
Sobre a intervenção federal e suas nuanças,28 portanto, salientese seu tratamento distinto na Constituição da República.
As possibilidades criadas na Constituição de 1988 para
a intervenção federal referem-se a situações excepcionais e não
necessariamente ligadas à segurança. São, na verdade, corolário do
princípio federativo, segundo o qual a regra é a não intervenção da
União nos Estados e Municípios, e dos Estados nesses últimos, salvo
nas hipóteses previstas nos Artigos 34 e 35 da Constituição.
Portanto, embora os incisos e alíneas, sobretudo do Art. 34, tragam
amplo rol de possibilidades e causas para a intervenção, um eixo central o
norteia, qual seja, a proteção da federação como forma de Estado escolhida
no Brasil desde a Constituição de 1891. Se a referida forma de Estado
for ameaçada, seja por força estrangeira, seja por movimento nacional,
poderá a União intervir em determinado Estado. E, no tocante às finanças
públicas e às suas consequências federativas, um rompimento no pacto
decorrente da própria federação também poderá levar à intervenção, seja
por parte da União nos Estados, seja por parte dos Estados nos Municípios
de seu território, no caso específico de intervenção estadual, como reflexo
consequencial da intervenção federal.
Nessa linha, assim, o ataque, principalmente, aos chamados
princípios sensíveis poderá dar ensejo à decretação da intervenção
federal, que deverá se enquadrar, como anteriormente dito, nas hipóteses
dos Arts. 34 e 35 da Constituição e obedecer aos requisitos do Art. 36
da mesma Carta Magna.29 Note-se que, em se tratando de problemas
28
A principal nuança aqui tratada será a ação direta interventiva, conforme a seguir se verá.
Este o teor dos Arts. 34, 35 e 36 da Constituição, vigentes após as alterações decorrentes das
Emendas constitucionais nº 29 e 45. “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito
Federal, exceto para: I - manter a integridade nacional; II - repelir invasão estrangeira ou de uma
unidade da Federação em outra; III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; IV
- garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; V - reorganizar as
finanças da unidade da Federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de
dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas
tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei; VI - prover a execução
de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII - assegurar a observância dos seguintes princípios
constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da
pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e
indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida
29
Estado de segurança e polícia no Brasil
89
ligados ao policiamento e à paralisação de atividades relacionadas à
segurança pública, poder-se-ia invocar a necessidade de se pôr termo
a grave comprometimento da ordem pública ou, ainda, entre outros
argumentos e enquadramentos, assegurar a observância dos direitos da
pessoa humana e do regime democrático.
A intervenção federal se dá por ato discricionário do Presidente da
República (Art. 84, inciso X, da Constituição) ou por decisão do Supremo
Tribunal Federal (sobretudo, Art. 36, inciso III, da Constituição), que aí
sim vincula o Chefe do Poder Executivo.
Para que melhor se compreenda a questão, ressalte-se que os
prejacentes princípios constitucionais sensíveis são os previstos no
Art. 34, inciso VII, da Constituição. São os que dão ensejo, no caso de
seu descumprimento pelos Estados-membros da Federação brasileira,
à propositura da ação direta interventiva, regulada pela ainda vigente
a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços
públicos de saúde (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000). Art. 35. O Estado
não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal,
exceto quando: I - deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos,
a dívida fundada; II - não forem prestadas contas devidas, na forma da lei; III - não tiver sido
aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas
ações e serviços públicos de saúde (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000); IV
- o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios
indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão
judicial. Art. 36. A decretação da intervenção dependerá: I - no caso do art. 34, IV, de solicitação
do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo
Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário; II - no caso de desobediência
a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de
Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral; III - de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de
representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à
execução de lei federal (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004); IV - (Revogado
pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 1º - O decreto de intervenção, que especificará
a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será
submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado, no prazo
de vinte e quatro horas. § 2º - Se não estiver funcionando o Congresso Nacional ou a Assembleia
Legislativa, far-se-á convocação extraordinária, no mesmo prazo de vinte e quatro horas. § 3º - Nos
casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou
pela Assembléia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se
essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade. § 4º - Cessados os motivos da intervenção,
as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal”. Vale ressaltar
que a Emenda constitucional nº 29 de 2000 alterou a redação dos incisos VII e III, dos Arts. 34 e
35, respectivamente, da Constituição, para acrescer preocupação financeira do Estado não apenas
com a educação, mas também com políticas de saúde. Valendo igualmente destacar que o Art. 36
foi modificado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, a qual reforçou o papel do ProcuradorGeral da República, principalmente no caso de ação direta interventiva.
90
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
Lei 4.337/64.30 Essa ação, proposta pelo Procurador-Geral da República
(legitimado ativo), tem por objetivo fazer com que o Supremo Tribunal
Federal aprecie um conflito entre a União e um Estado-membro que,
por meio de ato de qualquer natureza (mas normalmente normativo)
ou omissão, atente contra o pacto federativo e, mais precisamente,
contra um ou mais dos princípios constitucionais sensíveis. Trata-se de
modalidade de ação31 sui generis, mas que se insere dentro do controle
abstrato de constitucionalidade, embora, frise-se, além de não colimar
especificamente a declaração de inconstitucionalidade de algum ato
normativo estadual,32 gire em torno de um conflito concreto de interesses
entre a União e o Estado-membro, ou entre um Estado-membro e um
Município, na hipótese de ação interventiva estadual.
Relativamente ao objeto da referida Ação, pronuncia-se Luis
Roberto Barroso no sentido de que:
O objeto da ação direta interventiva é a obtenção de
um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal acerca da
violação de algum princípio constitucional sensível por parte
de Estado-membro da Federação. Trata-se, portanto, de um
mecanismo de solução do litígio constitucional que se instaurou
entre a União e uma entidade federada. Coma decisão, declarase se houve ou não infringência da Constituição, formando-se
certeza jurídica na matéria.33
A Ação Direta Interventiva proposta por Estados, em face de ato municipal, regula-se pela Lei
5.778/72, sendo seu julgamento de competência do Tribunal de Justiça do respectivo Estado
integrante da Federação brasileira.
30
Gilmar Ferreira Mendes fala em representação interventiva, apesar de o aqui autor entender que
se está diante de verdadeira ação direta, proposta pelo Procurador-Geral da República diretamente
junto ao Supremo Tribunal Federal. O mesmo Gilmar Ferreira Mendes também anuncia o caráter
parcialmente concreto da referida ação – a que chama de representação –, nos seguintes termos:
“Portanto, o Procurador-Geral da República instaura o contencioso de inconstitucionalidade não como
parte autônoma, mas como representante judicial da União Federal, que ‘tem interesse na integridade
da ordem jurídica por parte dos Estados-membros’. Esta colocação empresta adequado enquadramento
dogmático à chamada representação interventiva, diferenciando-a do controle abstrato de normas,
propriamente dito, no qual se manifesta o interesse público genérico na preservação da ordem jurídica”
(BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Martires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de
Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 1.399.).
31
“Do ponto de vista objetivo, já se assinalou que o acolhimento do pedido não importa na declaração
de nulidade ou de ineficácia do ato que motivou a representação. De modo que a decisão, por si só,
não altera o ordenamento jurídico objetivamente considerado” (BARROSO, Luis Roberto. O controle
de constitucionalidade no Direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 293).
32
33
BARROSO, Luis Roberto. Obra citada, p. 286.
Estado de segurança e polícia no Brasil
91
Imperioso, por fim, destacar que, no caso de procedência do
pedido formulado na referida ação de caráter federal, fica a União
obrigada a intervir no Estado-membro, vinculando-se à mencionada
decisão concessiva, uma vez que a guarda da Constituição compete ao
Supremo Tribunal Federal, defensor, portanto, dos princípios sensíveis.
A contrario sensu, a improcedência do pedido leva à impossibilidade de
intervenção federal, fatos estes que não ocorrem nas demais hipóteses
previstas nos outros incisos do Art. 34 da Constituição, aos quais não
está ligada a ação direta interventiva e a partir dos quais o Presidente da
República – Chefe do Poder Executivo – detém discricionariedade para
decidir quanto à decretação ou não da intervenção federal, conforme
acima já anunciado.34
No entanto, para que neste ponto – qual seja, o de intervenção
federal – não se precise chegar, o ideal, em uma situação de necessidade de
paralisação das atividades pré-anunciada, é que se estabeleça um diálogo
institucional coordenado, sobretudo entre unidades da Federação. Assim,
se os policiais do Estado de São Paulo, ou do Rio de Janeiro, ou de Santa
Catarina etc., de forma pacífica, legítima, mansa e organizada, pretendem
paralisar suas atividades, por exemplo, em determinado dia do ano,
com fins de exercício de pressão sobre os respectivos Poderes Executivo
e Legislativo, um diálogo com outros Estados-membros e, sobretudo,
com a União, mostrar-se-ia fundamental, a fim de que, em se chegando
a um acordo, pudesse esta última – União, repita-se – proporcionar uma
espécie de “cobertura” temporária nas atividades de policiamento.
Não se pretende, com o presente, incorrer em inocências jurídicas
e políticas, sendo certo que tal diálogo não é de fácil consecução.
Entretanto, o que se pretende, aqui, é a proclamação, ainda que em
teoria, de possíveis soluções para questões verdadeiramente incômodas
no Estado brasileiro. Não é legítima a pretensão de melhorias salariais
e, outrossim, de condições gerais de trabalho por parte de qualquer
categoria profissional e de trabalhadores? Se a questão da remuneração
foi anteriormente citada, imagine-se a relativa às condições de trabalho
34
“Ao contrário do que ocorre em outras hipóteses do art. 34 da Constituição, em que a intervenção
é uma competência política discricionária, aqui o ato do Presidente é vinculado, não havendo
espaço para que formule juízo de conveniência e oportunidade” (BARROSO, Luis Roberto. Obra
citada, p. 292). Portanto, se a necessidade de intervenção estiver relacionada, a título ilustrativo, à
necessidade de se “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”, nos exatos termos do
inciso III, do Art. 34, não será caso da ação judicial ora comentada.
92
Luigi Bonizzato e Carlos Bolonha
de policiais militares! Armas de fogo defasadas e poderio estrutural
inferior ao do crime organizado, o qual frequentemente demonstra a
todos o seu completo arsenal e as possibilidades de afronta ao Estado
Democrático de Direito.
Enfim, todas as circunstâncias narradas findam somente por
propiciar aberturas aos desvios de conduta e às práticas corruptivas
por parte dos policiais militares do país, muitos dos quais facilmente
seduzidos por ganhos ilegais, práticas inescrupulosas e expectativas de
maior reconhecimento social. Embora, logicamente, nada justifique tais
práticas claramente criminosas, podem-se compreender determinadas
atitudes e entender que um Estado mais atuante poderia evitar certas
incorreções no exercício das atividades como as de segurança.
Neste contexto, por corolário, insere-se, também, a questão que
ora se narra e que se pretende seja mais bem conduzida pelas teorias
jurídica, social e outras. Simplesmente vetar o exercício do direito social
de greve para policiais militares é atitude pontual e específica em excesso,
que certamente visa a atacar a ponta do iceberg, sem atingir as causas
reais de vários problemas estruturais e conjunturais da Administração
Pública brasileira.
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Para além da mera reforma: reflexões sobre
as relações entre Justiça de Transição,
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Rodrigo Deodato de Souza Silva
A grande maioria dos países latino-americanos, bem como
africanos e asiáticos, e até mesmo alguns europeus, sofreu, no decorrer do
século XX, períodos mais ou menos curtos de ditaduras cívico-militares
e, em muitos desses casos, foram empregados mecanismos de justiça
de transição os mais diversos, como estratégia de redemocratização.
Dentre esses a adoção de leis de anistia foi, por exemplo, utilizada em
países como o Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Peru, El Salvador,
Guatemala, Honduras, Nicarágua, Haiti e Suriname. O esquecimento
dos crimes, dos fatos e das violações cometidas no passado, como
afirma Tzvetan Todorov,1 foi a estratégia dos “regimes totalitários do
século XX, [que] deram à memória um estatuto inédito na medida em
que perseguiram com afinco a sua supressão”. A utilização equivocada
da anistia, enquanto um autoperdão, uma espécie de amnésia histórica
imposta, em nome de uma alegada pacificação social, deixou no limbo
da impunidade determinados delitos.2
Entretanto aqueles que sofreram direta e indiretamente com os
crimes e violações aos Direitos Humanos cometidos durante os períodos
de exceção dos regimes ditatoriais, resistiram a esse esquecimento e
as estratégias ostensivas de supressão da memória. Especialmente,
por não terem tido a possibilidade de fechar o ciclo natural da vida
de muitos de seus entes queridos, tão simplesmente pelo fato desses
últimos permanecerem até os dias atuais em local incerto e não sabido,
em condição de desaparecidos forçados.
De uma forma geral, contudo, diversos grupos sociais sempre
mantiveram a teoria de que as violações cometidas precisavam ser
1
TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós Asterisco, 2000.
PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Leis de anistia em face ao direito internacional: desaparecimentos
e direito à verdade. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, globalização econômica e integração
regional: desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 287.
2
98
Rodrigo Deodato de Souza Silva
reconhecidas e publicizadas, jamais esquecidas, para que a memória
deles servisse de aspecto pedagógico, para que o padrão de não
repetição pudesse, enfim, se estabelecer, no lugar onde a impunidade
insiste em habitar.
Apontamentos sobre Justiça de Transição
Os processos transicionais visam, comumente, fomentar uma
transformação expressiva da ordem social e política de um determinado
país, ultrapassando a barreira de um estado de exceção e alçar uma
ordem social pacífica, ou ainda para passar de uma ditadura a uma
ordem política democrática. Ordinariamente quando se observam
transições cujo objetivo é deixar para trás um conflito armado e
reconstituir o tecido social, tal transformação implica a desafiadora
obra de se chegar a um equilíbrio entre as partes conflitantes, visando
sempre às exigências de justiça e paz.
Tal realidade apresenta-se bastante complexa. Por vezes
existem tensões entre as exigências jurídicas internacionais relativas
aos direitos à verdade, à justiça e à reparação das vítimas de crimes
de guerra ou de lesa-humanidade, e as restrições impostas pelas
negociações de paz levadas a cabo pelos atores armados com vistas a
alcançar a pacificação do conflito. Assim, ainda quando a normativa
internacional tenha a obrigação de individualizar, julgar e condenar os
responsáveis de graves violações de direitos humanos um imperativo
cada vez mais estrito, a imposição de sanções desse tipo em todos os
casos pode obstaculizar e inclusive levar ao fracasso um acordo de paz.
As tensões entre justiça e paz devem sempre ser levadas
em consideração nas análises que versem sobre as condições e
possibilidades de um processo transicional, pois ignorá-las equivale a
desconhecer o imenso peso que têm as particularidades das conjunturas
político, econômica, sociais e culturais no êxito ou fracasso de um
processo desse tipo. Entretanto, apesar de ser plausível a ideia de que
de alguma forma é certo que em longo prazo uma paz democrática
durável e verdadeira possa vir a se estabelecer em uma realidade ainda
Para além da mera reforma: reflexões sobre as relações entre Justiça...
99
difícil de um pós-conflito, esta somente se edifica de uma maneira mais
sólida sobre a aplicação da justiça, entendida em seu sentido amplo.
Diante do exposto pode-se compreender melhor que, apesar
de em um primeiro nível, poucas sejam as conexões possíveis entre
os processos experimentados em contextos tão distintos como os dos
países do Eixo no Pós-II Guerra Mundial, os países da Ásia e África
coloniais que se tornaram independentes, as democracias da América
Latina pós-regimes militares e ditaduras, além dos países oriundos da
divisão e abertura da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas –
URSS, no que tange a formulação do conceito de justiça transicional,
existe um elemento em comum entre todas essas transições e, em
especial, o modo de lidar com ele possibilitou a criação de inúmeros
tratados e resoluções internacionais, além de uma legislação vasta e
processos nacionais e regionais.
O elemento comum, infelizmente, é o conjunto de violações aos
direitos humanos cumuladas com a ação do próprio Estado. “Resta de
comum a todos estes processos transicionais, portanto, a necessidade
de estabelecer ou restabelecer um Estado de Direito e, a um só tempo,
equacionar as violações empreendidas em nome deste mesmo Estado
no período de exceção e autoritarismo”.3
Denominou-se, assim, de Justiça de Transição a um conjunto
de iniciativas empreendidas desde os planos internacional, regional
ou interno, nos países em processo de redemocratização, englobando a
isso suas políticas públicas, as reformas legislativas e o funcionamento
de seu sistema de justiça, com vistas a garantir que a mudança política
alcance os resultados almejados e que, ao término da mesma, haja não
apenas uma democracia formal, mas, sobretudo, um Estado de Direito
na acepção substancial do termo. A concepção de justiça de transição
evidenciada por Bickford entende que
Justiça de Transição refere-se ao campo de atividades
e investigação sobre como as sociedades lidam com legados de
violações e abusos contra os direitos humanos praticados no
passado, atrocidades em massa, outras formas severas de trauma
TORELLY, Marcelo D. (2010). Justiça de Transicional e Estado Constitucional de Direito:
Perspectiva Teórico-comparativa e Análise do Caso Brasileiro. Dissertação de Mestrado,
Coordenação de Pós-Graduação em Direito. Brasília: UNB, p. 83.
3
100
Rodrigo Deodato de Souza Silva
social, incluindo o genocídio e a guerra civil, a fim de construir um
futuro mais democrático, justo e pacífico.4 (tradução livre)
Daí se pode afirmar que, no contexto de um processo transicional
baseado em negociações de paz e em uma proposta de redemocratização,
“assim como a impunidade resulta uma opção impossível, desde o ponto
de vista ético e jurídico, a possibilidade de uma justiça retributiva plena
parece também ficar excluída”5 (tradução livre). Isso não impede que
os mecanismos de Justiça de Transição idealizados para alcançar uma
transformação exitosa possam incluir exigências importantes de justiça
retributiva, assim como doses substanciais de perdão.
De fato, quando da evidenciação das tensões, que podem fluir
ao saber do vento em certas conjunturas nesses tipos de processos,
torna-se patente que não há uma fórmula única e plenamente
satisfatória para superá-las. Todas as estratégias de justiça transicional
acarretam comumente em sacrifícios de alguns dos valores em tensão,
com vistas a possibilitar uma adequação às relações específicas de
força existentes entre os atores e as possibilidades de compromisso
próprias de cada contexto. Isso proporciona “que cada sociedade venha
a desenhar sua própria fórmula de justiça transicional”,6 de acordo
com os condicionamentos políticos, jurídicos, econômicos, sociais e,
sobretudo culturais, impostos pela conjuntura do conjuntura e o grau
de cristalização do conflito.
4
Cfr. “Transitional Justice refers to a field of activity and inquiry focused on how societies
address legacies of past human rights abuses, mass atrocity, or other forms of severe social trauma,
including genocide and civil war, in order to build a more democratic, just, or peaceful future.”
BICKFORD, Louis (2004). Transitional Justice. In: The Encyclopedia of Genocide and Crimes
Against Humanity. Volume III. Nova Iorque: MacMillan, pp. 1045-1047.
5
YELLES, Uprimny Rodrigo (Coord.); BOTERO MARINO, Catalina; RESTREPO, Esteban;
SAFFON, María Paula (2006). ¿Justicia transicional sin transición? Reflexiones sobre verdad,
justicia y reparación en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad
(DJS), p. 9.
6
Idem, Ibidem.
Para além da mera reforma: reflexões sobre as relações entre Justiça...
101
Direito à Justiça e à Reparação
Os Estados têm a obrigação de investigar, julgar e condenar a
penas adequadas, os responsáveis pelas graves violações aos direitos
humanos. Esse direito se apresenta em cinco vertentes próprias:
o dever de condenar os autores de delitos contra o direito
internacional humanitário e dos direitos humanos; o dever do
Estado de investigar todos os assuntos relacionados com o tema da
violação dos direitos humanos; o direito das vítimas a um recurso
judicial efetivo; o dever de respeitar em todos os juízos as regras
do devido processo legal, e o dever de impor penas adequadas aos
responsáveis7 (tradução livre).
Com efeito, a obrigação relativa ao Direito à Justiça é evidenciada
e atribuída aos Estados, por exemplo, nos artigos XVIII e XXIV da
Declaração Americana de Direitos Humanos e nos artigos 1-1, 2, 8 e 25
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Assim, os Estados
têm a obrigação de adotar todas as medidas necessárias e cabíveis para
combater a impunidade.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua
jurisprudência, entende por impunidade “a falta de investigação,
persecução, captura, enjuizamento e condenação dos responsáveis
de violações aos direitos humanos”.8 Na decisão do Caso Velásquez
Rodríguez Vs. Honduras, o mesmo órgão internacional afirmou que
os Estados “devem prevenir, investigar e condenar toda violação dos
direitos reconhecidos pela Convenção [Americana] e procurar, ademais,
o restabelecimento, se for possível, do direito violado e, em seu caso, a
reparação dos danos produzidos pela violação dos direitos humanos”.9
7
Cfr. “el deber de castigar a los autores de delitos contra el derecho internacional humanitario; el
deber del Estado de investigar todos los asuntos relacionados con el tema de la violación de los derechos
humanos; el derecho de las víctimas a un recurso judicial efectivo; el deber de respetar en todos los
juicios las reglas del debido proceso, y el deber de imponer penas adecuadas a los responsables.”
LOPÉZ DÍAZ, Claudia (Coord.); VARGAS, Álvaro; CARDONA, Juan Pablo; FAJARDO, Andrés, Et.
Al. Manual de Procedimiento de Justicia y Paz. Bogotá: Milla, 2009. pp. 37, 42-43. p. 37
8
Corte IDH. Caso de la “Panel Blanca” (Paniagua Morales y otros) Vs. Guatemala. San José:
Corte IDH, 1998. Serie C No. 37. § 173.
9
Corte IDH. Caso Velásquez Rodríguez. Vs. Honduras. San José: Corte IDH, 1988. Serie C No. 4.
102
Rodrigo Deodato de Souza Silva
Já no âmbito do Direito à Reparação, pode-se afirmar que
o mesmo consiste em favorecer as vítimas, através de medidas que
venham a minorar seu sofrimento, compensem as perdas sociais,
morais, materiais e restituam seus direitos, o respeito à sua imagem,
a sua história e a sua luta. O princípio 31 apresentado no Relatório
de Diane Orentlicher determina que “Toda violação de um direito
humano dá lugar a um direito da vítima ou de seus sucessores a obter
reparação, o que implica o dever do Estado de reparar e o direito de
dirigir-se contra o autor da violação”.10
Concomitantemente, o princípio 34 afirma que
O direito de obtenção de reparação deverá abranger todos os
danos e prejuízos sofridos pelas vítimas; compreenderá medidas
de restituição, indenização, reabilitação e satisfação conforme é
estabelecido pelo Direito Internacional.
Nos casos de desaparecimentos forçados, a família da
vítima direta tem o direito imprescritível de ser informada da
sorte e/ou o paradeiro da pessoa desaparecida e, em caso de
falecimento, deve ser restituído o corpo assim que for identificado,
independentemente de haver sido estabelecida a identidade dos
autores ou que eles tenham sido processados.11
A reparação plena então consiste no conjunto das medidas
adotadas com fins a promover a extinção dos efeitos das violações aos
Direitos Humanos e ao Direito Internacional Humanitário. Vale ressaltar
que não se pode pensar em uma sociedade, que vise a um estado de
pacificação durante o processo de transição para a democracia, e que
não busque tratar das formas mais adequadas ao seu contexto as feridas
deixadas pela amplitude das violações massivas e sistemáticas.
§§166,167.
ORENTLICHER, Diane (2004). Estudio independiente, con inclusión de recomendaciones,
sobre las mejores prácticas para ayudar a los Estados a reforzar su capacidad nacional con
miras a combatir todos los aspectos de la impunidad. New York: UN, 2004. § 31. Disponível em:
<http://www.unhchr.ch/Huridocda/Huridoca.nsf/0/94b45b7493a558cac1256e6e005a6d1d/$FI
LE/G0411355.pdf>. Acesso em: 08 out. 2011.
10
11
Idem. §§ 34,35.
Para além da mera reforma: reflexões sobre as relações entre Justiça...
103
A Justiça de Transição, o Direito Penal, e uma longa
caminhada...
Ao refletir sobre o Direito à Justiça e à reparação, e entendendo
que os instrumentos utilizados pela Justiça de Transição têm por
objeto principal sustentar os principais pilares dessa forma de ação
nos processos de redemocratização, ou seja, trazem em seu bojo a
necessidade da busca pela verdade, resgate e conservação da memória,
reparação das vítimas e responsabilização dos perpetradores, interfaces
com outros conhecimentos precisam ser estabelecidas.
Como trabalhar a proposta de responsabilização dos perpetradores,
sem se levar em consideração, por exemplo, a relação entre a Justiça
de Transição, o Direito Penal e mesmo a Política Criminal? Mesmo
sabendo que a reestruturação das estruturas e aparatos de segurança e
justiça do Estado compõe o rol de ações e desenvolvidas pela Justiça de
Transição, como tal fator pode se evidenciar mais adequadamente rumo
a um sistema de respeito aos Direitos Humanos?
O Direito Penal encontra-se envolto pela Política Criminal, como
afirma Mireille Delmás-Marty, quando sustenta que, na atualidade, o
Direito Penal conserva todo o seu vigor, mas se encontra como que
envolto pelo conceito mais amplo e mais aberto da política criminal,
que não deixa de ser uma disciplina jurídica e não sociológica, mas
que engloba as práticas de controle social. Em matéria de diferenças,
indica que a política criminal é “pluridisciplinar”, já que engloba outros
ramos do direito (administrativo, civil, constitucional e internacional),
e “diacrônica”, no sentido de que a mesma inclui os movimentos que se
evidenciam na temporalidade, como a despenalização (ou, em sentido
inverso, a criminalização), contrariamente ao Direito Penal que é
“sincrônico”, limitado ao direito em vigor aqui e agora.12 Assim qual
haveria então de ser a função do Direito Penal dentro de um sistema
de justiça e segurança reformulado sobre esse prisma? Poder-se-ia
afirmar que o principal papel do Direito Penal seria a fomentar soluções
razoáveis aos casos e problemáticas em que seja imprescindível
uma intervenção direta para o apaziguamento das relações sociais,
12
DELMÁS-MARTY, Mireille. Del Derecho Penal a la Política Criminal. Revista del ILANUD:
Ediciones del Instituto, Año 11, Nº 26, Bs.As., 2002, págs. 71/72
104
Rodrigo Deodato de Souza Silva
sem promover o esgarçamento do tecido social, logo se evitando ao
máximo o emprego da pena em sentido forte, contudo não abolindo
por completo a sua utilização.
Quebrado o ciclo longínquo de ligação entre delito e pena aflitiva,
enfraquece-se o condicionamento do pensamento criminal voltado
exclusivamente à medida de privação da liberdade, surgindo, como
dito, possibilidades outras de se adentrar no hermético baú do Direito
Penal outras soluções já utilizadas por outras áreas, não exclusivamente
jurídicas, como procedimentos restaurativos, penas alternativas, a
mediação, reparação e até mesmo o perdão. Tal iniciativa, pode-se
dizer, fortalece também a estrutura democrática quando não necessita
da utilização velada de objetivos escusos que direcionam o Direito
Penal para o conhecido jargão maquiavélico. Assim, pode-se considerar
que a reforma do Sistema de Justiça e Segurança é necessária, mas
principalmente a visão, o paradigma de Política Criminal, o referencial
maior é que deve ser repensado para uma proposta mais igualitária e de
respeito aos Direitos Humanos.
Nesse sentido a Justiça de Transição oferta uma gama de
instrumentos e ricas experiências em processos de reforma dos sistemas
de justiça e segurança de Estados em processos de transição democrática.
É sabido que o aumento constante dos padrões de violência e do
sentimento de insegurança apresenta-se com um empecilho grave ao
processo de consolidação democrática para os países que saíram, não há
muito, de tormentosas ditaduras cívico-militares, dentre eles o Brasil. O
sentimento de temor expresso pela opinião pública, juntamente com as
recorrentes ações ineficazes dos governos, nas mais diversas esferas, na
tentativa de reverter essa realidade, tem fomentado gravosos processos
de esgarçamento do tecido social, obstaculizando a universalização da
cidadania plena e ativa, além de alimentar o padrão de inefetividade
dos Direitos Humanos. Tudo isso simplesmente mina a confiança da
população tanto na autoridade governamental quanto nas demais
instituições que compõem o Sistema de Justiça e policiamento.
Os regimes autoritários e as ditaduras cívico-militares que por
algumas décadas atuaram contundentemente na América Latina,
intencionalmente, não levando em consideração os compromissos
internacionais voluntariamente assumidos pelos próprios Estados
em matéria de Direitos Humanos, deixaram de herança à sociedade
Para além da mera reforma: reflexões sobre as relações entre Justiça...
105
um padrão cíclico e permanente de reprodução da violência. A partir
dessa recente e viva história latino-americana, pode-se perceber que
boa parte das instituições que dá sustentação ao sistema de justiça e
polícia, na maioria dos Estados, em especial no Brasil, não passou por
transformações e reformas eficazes, o que caracteriza uma transição
para a democracia ainda muito lenta e formalística.
Segundo o Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD),
organização multilateral, inserida na Organização para a Cooperação
Econômica e Desenvolvimento (OCDE), e dedicada ao surgimento e
evolução das políticas de desenvolvimento dos países integrantes, aponta
que as Reformas dos Sistemas de Justiça e Segurança devem de uma forma
geral apresentar: I) o estabelecimento de medidas eficazes de governança,
supervisão e responsabilidade no sistema de justiça e segurança; II) a
melhoria da prestação de serviços em matéria de segurança e justiça;
III) o desenvolvimento de lideranças locais que tenham a propriedade
de atuar nos processos de reforma e sustentabilidade da região em que
estão inseridos; e IV) a sustentabilidade da prestação dos serviços de
justiça e segurança13 (tradução livre).
A Comissão Europeia tem afirmado que “o objetivo [das Reformas
nos Sistemas de Segurança e Justiça] é contribuir explicitamente para o
fortalecimento da boa governança, da democracia, do Estado de Direito,
da proteção dos Direitos Humanos e da utilização eficiente dos recursos
públicos”14 (tradução livre).
A Justiça Transicional (ou de Transição) tem como missão lidar
com o legado de violações sistemáticas e massivas aos Direitos Humanos,
reconhecendo as vítimas e contribuindo para os processos de construção
da paz e consolidação da democracia. Não se trata em si mesma de
uma forma especial de justiça, mas um conjunto de abordagens que
Cfr. “i) Establishment of effective governance, oversight and accountability in the security
system. ii) Improved delivery of security and justice services. iii) Development of local leadership
and ownership of the reform process. iv) Sustainability of justice and security service delivery.”
ORGANISATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). OECD DAC
Handbook on Security System Reform: Supporting security and justice. Paris: OECD, 2007. p. 21.
Disponível em: <http://www.oecd.org/dataoecd/43/25/38406485 .pdf>. Acesso em: 25 fev. 2012.
13
Cfr. “the objective is to contribute explicitly to strengthening of good governance, democracy, the
rule of law, the protection of human rights and the efficient use of public resources.” COMMISSION
OF THE EUROPEAN COMMUNITIES. Communication from the Commission to Council and the
European Parliament: A concept for European Community Support for Security Sector Reform.
Brussels: COC, 2006. p. 6. Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/site/en/
com/2006/com2006_0253en01.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2012.
14
106
Rodrigo Deodato de Souza Silva
procuram favorecer a justiça em condições extraordinárias, geralmente
em transições de conflitos onde o autoritarismo e/ou a violência
suplantaram a democracia e a paz.
Um elemento-chave da justiça transicional é colocar a vítima
no centro de sua atuação e garantindo que a mesma seja reconhecida,
habilitando-a à plenitude do exercício da cidadania e restaurando-se a
sua dignidade. A justiça transicional inclui abordagens que não estão
limitadas aos processos judiciais e à apuração da verdade, mas que
passam principalmente pela reparação às vítimas, a reforma de sistemas
e instituições abusivas, e ações de memorialização.
Entretanto, apesar de tantas possibilidades extrapenais, a
experiência transicional tem evidenciado que a estabilidade, em longo
prazo, dos padrões e níveis de segurança não pode ser alcançada sem
uma cultura de responsabilidade que flua através de todas as instituições
públicas. E tal questão também passa pela responsabilização criminal
dos violadores.
É evidente que se torna humanamente impossível vir a processar
todos os acusados de violações aos Direitos Humanos durante um
determinado período ditatorial, tendendo os processos judiciais a
direcionar o foco sobre os mais responsáveis, os idealizadores ou
gerentes das sistemáticas violações levadas a cabo.
Buscando-se outros meios de responsabilização, ao contrário dos
tribunais, as Comissões da Verdade, por exemplo, não têm a autoridade
para impor sanções aos agressores. Mas o desvelamento da verdade
é, por si mesmo, um aspecto da justiça que não deve ser esquecido.
Ao investigar e divulgar a realidade dos fatos ocorridos, a busca pela
verdade contribui para gerar uma narrativa histórica comum, chave
imprescindível ao (re)estabelecimento da confiança entre os grupos
populacionais e entre os cidadãos e o Estado. Contudo, tal mecanismo
não deve substituir ou impedir acusações futuras de indivíduos ou
mesmo sanções aos violadores. Assim, os diferentes mecanismos devem
reforçar – e não substituir – a intervenção penal, uma abordagem
holística que provavelmente seja a mais adequada para satisfazer as
necessidades de justiça da população como um todo.
Para além da mera reforma: reflexões sobre as relações entre Justiça...
107
Os primeiros passos para um novo sistema de
segurança e justiça
Como já evidenciado, a reforma das instituições públicas também
compõe o diapasão fundamental de medidas outras utilizadas pela
Justiça de Transição. Tal iniciativa tem por objeto tornar as instituições
mais responsáveis por seus atos e os de seus agentes perante a população,
modificando a posição vista pelo senso comum, passando de agressores
para protetores do Estado Democrático de Direito, em consolidação.
Reformar as instituições que promoveram ou promovem práticas
abusivas para que eles sejam responsáveis e confiáveis para a população
transforma não apenas a condição dessas instituições, mas também
os indivíduos que passam de vítimas da opressão para a condição de
respeitabilidade de seus direitos pelo próprio Estado.
Para atingir esses objetivos, as reformas dos sistemas de
segurança e justiça se concentram comumente em quatro principais
áreas de reestruturação: construção da integridade do sistema de
segurança; estabelecimento de uma responsabilização efetiva; reforço
da sua legitimidade e empoderamento dos cidadãos.15 A integridade de
um sistema de segurança refere-se à sua adesão ao Estado de direito na
prestação da segurança. Tal noção ultrapassa a ideia do fortalecimento
das capacidades das agências de segurança. Como elementos cruciais
para a construção dessa integridade estão, por exemplo, a criação de
mecanismos e processos de prestação de contas, com base em best
practices internacionais. As reformas no interior da instituição devem
incluir o desenvolvimento de padrões profissionais e códigos de conduta,
acompanhadas de medidas disciplinares.
A Justiça de Transição propõe uma abordagem mais holística
para a prestação de contas do que as abordagens comuns e estabelece a
responsabilização pelos abusos mais graves do passado, bem como pelas
violações cometidas no presente ou mesmo no futuro. A legitimidade
de um sistema de segurança se refere ao nível de confiança cívica que
o mesmo goza. É claro que um legado sistemático de graves violações
DAVIS, Laura. Transitional Justice and Security System Reform. Brussels: PEACEBUILDING,
ICTJ, 2009. p.11. Disponível em: <http://www.initiativeforpeacebuilding.eu /pdf/Transitional_
Justice_and_Security_System _Reform.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2012.
15
108
Rodrigo Deodato de Souza Silva
fundamentalmente mina a legitimidade do sistema de segurança.
Buscar fortalecer a integridade do mesmo pode não ser suficiente para
superar a crise de confiança, que é característica de tal legado.
Instituições de segurança só podem ter êxito se elas responderem
às necessidades de segurança do povo e ganharem a confiança da
população, tratando todos os cidadãos de forma justa e reconhecendo
suas preocupações em torno do que vem a ser uma segurança eficaz.
Assim como, a construção e/ou fortalecimento da integridade da
instituição, os esforços para promover a legitimidade do sistema
de segurança e justiça podem e devem incluir medidas verbais ou
simbólicas (tais como memoriais, pedidos de desculpas e comendas)
que reafirmem o compromisso, para se superar a herança de abuso, e
endossem as normas e valores democráticos.
Por fim, o empoderamento dos cidadãos é um componente
integrante de uma abordagem sensível da Justiça de Transição. Vítimas
da repressão estatal ou do conflito violento, e membros de outros grupos
marginalizados ou historicamente em condição de vulnerabilidade
devem ter seus direitos, responsabilidades e necessidades garantidos
pelas instituições públicas. Assim medidas de capacitação, campanhas
de informação pública, pesquisas com os cidadãos para identificar o
seu sentimento de segurança e justiça, além da efetivação do direito
ao acesso à justiça, bem como a possibilidade do fortalecimento de
organizações da sociedade civil (ONGs) com fins ao monitoramento do
sistema de segurança e justiça são algumas das mais variadas formas de
se favorecer uma efetiva reforma no sistema penal.
Considerações finais
O Brasil, bem como os demais Estados que passam por períodos
recentes ou tardios de Justiça Transicional, precisa e merece se reconciliar
com seu passado. Os instrumentos de Justiça de transição apresentamse em um momento tal em que o Direito Penal, mesmo podendo e
devendo ser utilizado, não comporta a sua utilização isoladamente.
Mesmo reconhecendo os aspectos simbólicos do Direito Penal e
considerando que o mesmo não alcança por si só nem à responsabilização
Para além da mera reforma: reflexões sobre as relações entre Justiça...
109
nem à reconciliação, não se pode, por total, desconsiderar todos os
fatos ilícitos, crimes contra humanidade – todos imprescritíveis,
como se ainda nos dias atuais mães e pais não mais chorassem e nem
aguardassem, na angústia de Antígona, o momento de poder ver o ciclo
de seu ente querido ser selado com um sepultamento, ou mesmo com o
sentimento de justiça estabelecido em seus corações.
Bem verdade, já ficou clara a real e concreta possibilidade de
se refletir em outro Direito Penal, muito diverso daquele que hoje se
apresenta. A penalidade não pode e nem deve ser entendida como
punição apenas, mas como um brado à responsabilização dos violadores,
seja na esfera penal ou em outra diversa. A busca pela verdade e os
conjuntos inteiros de mecanismos de Justiça de Transição, passíveis
de serem utilizados nesses casos, podem e muito contribuir para uma
transformação desse paradigma meramente punitivo do Direito Penal,
que assim como a espada de Alexandre, o Grande, quando aplicado
isoladamente, tacão simplesmente corta o nó górdio das relações
impedindo o restabelecimento dos laços anteriores, para um ideal de
responsabilização onde a conscientização se estabelece não pelo castigo,
mas, sobretudo, pelo conjunto de ações, meios e métodos de controle e
prevenção das violações, ou dos crimes de uma forma geral.
Assim, apenas mudanças em artigos não irão trazer nada
além do que novas letras e palavras em Códigos que permanecem a
apresentar a mesma máscara de tantos outros. O que se faz necessário
é uma modificação drástica na Política Criminal estabelecida para que
avanços reais possam ser efetivados e sentidos até mesmo por possíveis
e necessárias modificações nos artigos do Código Penal.
Ao lembrar o caso concernente à posição do Supremo Tribunal
Federal, e após todo o exposto, não é de se estranhar o reconhecimento
da adequação à Carta Magna de 1988, da Lei de Anistia de 1979. O
Brasil vislumbrou um novo horizonte quando da redemocratização
e promulgação da Constituição Federal, contudo a mentalidade das
instituições públicas, o referencial repressor e punitivo ainda se fazem
presentes e não diferem muito do vigente durante os anos de chumbo.
Nesse caso, parafraseando Eduardo Galeano, a cada passo que
se dá rumo ao horizonte da consolidação do Estado Democrático de
Direito, o mesmo se distancia igualmente um passo, mas pelo menos
ele nos permite e nos impulsiona constantemente à continuação e ao
fortalecimento dessa longa caminhada.
110
Rodrigo Deodato de Souza Silva
Referências
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of Genocide and Crimes Against Humanity. Volume III. Nova Iorque:
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111
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A justiça de transição brasileira, seus
limites e possibilidades: uma análise sob a
perspectiva da assincronia temporal do
direito e do imperativo de radicalização
dos direitos humanos1
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
Márcio Moraes Brum
Rafaela da Cruz Mello
Tiéli Zamperetti Donadel
A história demonstra que o direito é um fenômeno que surgiu
com as primeiras civilizações humanas. Para se organizar em sociedade,
o homem estabeleceu um conjunto mínimo de regras para regular
as relações interindividuais dentro da comunidade: o ordenamento
jurídico. Aceitando-se a ideia de que a principal finalidade da organização
em sociedade era (e continua sendo) a de melhorar a condição de vida
do homem, e que a concomitante criação do direito ocorreu no intuito
de viabilizar esta vida social, conclui-se que o direito, embora tendo de
estabelecer algumas restrições mínimas às liberdades individuais, teve
como objetivo último uma melhoria do bem-estar humano.
E isso, de fato, foi possível de acontecer nas sociedades primitivas
(pré-capitalistas), em que cada um produzia conforme sua capacidade e
recebia segundo suas necessidades, não havendo desigualdade material
entre os indivíduos. Portanto, em condições normais de meio ambiente
e produção de bens de consumo, a conservação e melhoria, sempre
que possível, do bem-estar dos cidadãos era algo que deveria acontecer
naturalmente, ou seja, nem mesmo havia a necessidade de um direito ou,
1
Este texto fora desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa intitulado “A atuação da jurisdição
brasileira e regional no processo multidimensional de desenvolvimento humano no contexto da
transnacionalização do direito: os desafios da policronia e da assincronia”, da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM/RS). O projeto de pesquisa, do qual resultou esse trabalho, obtém auxílio
financeiro, através de bolsas de iniciação científica dos seguintes órgãos de fomento à pesquisa:
Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIPE), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e Federação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
114
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
mais precisamente, de um ramo do direito (como “direitos humanos”)
para garantir a igualdade social.
Porém, com o passar do tempo, as formas organizativas das
comunidades humanas foram sofrendo alterações e “evoluindo” até
chegarem ao estágio atual. Durante esse desenvolvimento, porém,
houve a criação e intensificação de uma desigualdade material entre os
homens que gerou (e continua gerando) a marginalização social dos mais
pobres, que por sua vez acarreta um aumento no índice de transgressão
das leis em vigor, que precisa ser combatido pelo Estado para não causar
tumulto à ordem estabelecida.
O combate à “criminalidade” é realizado das mais variadas formas
e pelos mais diversos setores sociais, compreendendo a tipificação penal
de novas condutas pelo legislativo; a criminalização dos movimentos
sociais e a “criminalização da pobreza”, que mesmo não se tratando
de condutas típicas no ordenamento jurídico, norteiam e determinam
decisões políticas na esfera do legislativo, executivo e judiciário; a atuação
violenta das polícias, e até mesmo do exército, dentro de comunidades
pobres onde realizam verdadeiras limpezas étnicas; a repressão policial
aos movimentos sociais etc.2
Mas o que mais impressiona neste quadro caótico em que se
encontra a sociedade atual é que todas essas formas de repressão
e violência utilizadas pelo Estado contra a população gozam de um
caráter legal, ou seja, são “tuteladas juridicamente”! Logo, isso leva a
uma inevitável conclusão prévia de que o direito, que inicialmente
possibilitou a organização do homem em sociedade e tornou sua condição
2
Em 2011, no Rio de Janeiro, a operação intitulada Choque de Paz objetivou a “retomada” das
favelas da Rocinha, Vidigal e Chácara do Céu pelas forças de segurança. A megaoperação reuniu
3 mil homens das polícias civil, militar, federal e rodoviária federal, além de 194 fuzileiros navais,
18 veículos blindados, 4 helicópteros da PM e 3 da Polícia Civil. Isso revela o intenso processo de
militarização das políticas de segurança do país, em que o poder militar, sabidamente adestrado
para a guerra, lugar de não direito, aproxima-se do poder punitivo, gerido pelo sistema penal. Essa
aproximação, como lembra Nilo Batista, é muito prejudicial para a democracia e extremamente
perigosa se lembrar-se que os grandes genocídios do séc. XX foram praticados por forças policiais
militarizadas ou forças armadas com funções militares. Além disso, a ocupação das comunidades
pelas forças de segurança da maneira como ocorre(u) no RJ é flagrantemente inconstitucional. A
série de restrições impostas aos moradores, como o cerceamento do direito de ir e vir pelo toque
de recolher, vigilância de festas locais pela polícia, sem falar nos impedimentos de certas gravações
jornalísticas no local, só poderiam ocorrer se decretado o Estado de Sítio ou Estado de Defesa.
No primeiro caso, pelo Presidente da República, ouvidos o Conselho da República e o Conselho
de Defesa Nacional, e, no segundo, também pelo presidente, mas com a devida autorização do
Congresso Nacional (art. 136 e 137 da CF).
A justiça de transição brasileira, seus limites e possibilidades
115
de vida mais confortável e segura, mostra-se, hoje, incapaz de assegurar
esses objetivos e, além disso, atua muitas vezes no sentido contrário,
voltando-se violentamente contra os próprios cidadãos. Afinal, o que
houve: teria o direito, no andar da história, se desvirtuado de sua razão
de ser, ou na verdade “isto” que está em vigor atualmente não pode ser
definido, em sua essência, como jurídico, mas sim como alguma outra
espécie, “mística”, de normatividade?
Para Giorgio Agamben (2004), as sociedades contemporâneas
vivem em permanentes estados de exceção, e isso talvez responda aos
questionamentos anteriores. Um exemplo histórico do fenômeno da
exceção é o caso da Alemanha nazista, onde Hitler, ao chegar ao poder,
promulgou uma medida intitulada “Decreto para a proteção do povo e do
Estado”, e com ele suspendeu as liberdades individuais garantidas pela
Constituição de Weimar. O decreto nunca foi revogado e, com isso, os 12
anos do Terceiro Reich podem ser considerados, juridicamente, como
um estado de exceção. Esse exemplo, utilizado por Agamben, apresenta
os primeiros contornos do fenômeno, que tem seu conceito lapidado até
chegar à definição do estado de exceção como a interrupção e suspensão
total de um ordenamento jurídico (do direito enquanto tal, e não apenas
da administração da justiça), o que acarreta a produção de um vazio
jurídico. O estado de exceção, portanto, não é um direito especial, como
o direito da guerra, mas a suspensão total da própria ordem jurídica
(AGAMBEN, 2004).
O estado de exceção, que deixou de ser a exceção para tornarse a regra de atuação dos governos atuais, evidencia-se nitidamente
em medidas governamentais como a military order, promulgada pelo
presidente Bush, em novembro de 2001, autorizando uma indefinite
detention e o processamento perante as military commissions dos
estrangeiros suspeitos de envolvimento em atividades terroristas. O que
ocorre nesses casos é a suspensão total de garantias processuais que,
embora continuem vigentes no ordenamento jurídico daquele país,
passam a carecer de qualquer eficácia na prática. Instala-se sobre o
indivíduo uma pura dominação de fato que escapa das determinações
legais e do controle judiciário (AGAMBEN, 2004).
Ademais, a suspensão do direito é um fenômeno permanente que
se transformou em uma técnica de atuação do poder. A violação constante
de direitos e garantias fundamentais escancara o lugar de não direito em
que se vive, e o autoritarismo manifestado por instituições do Estado
116
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
revela o caráter essencialmente não democrático das “democracias” dos
Estados neoliberais capitalistas. Ellen Meiksins Wood, nessa questão,
afirma a antítese estrutural entre capitalismo e democracia, porque
“toda prática humana que é transformada em mercadoria deixa de ser
acessível ao poder democrático” (WOOD, 2003, p. 8).
A partir desses apontamentos introdutórios sobre estado de
exceção e incompatibilidade entre democracia e exigências do capital,
o objeto de estudo deste trabalho será a justiça transicional (JT)
brasileira, mais especificamente suas limitações e possibilidades no
atual contexto político-econômico nacional e mundial. Para tanto, a
primeira parte será voltada para a apreciação crítica do instituto jurídico
dos direitos humanos, dentro do qual se classificam as medidas de JT, e
a segunda parte será destinada ao estudo de importante mecanismo da
JT brasileira, que é a Comissão Nacional da Verdade (CNV), já criada
pela Lei nº 12.528/2011, mas ainda pendente de instauração na prática.
Os Direitos Humanos no neoliberalismo: a assincronia
temporal e o imperativo da radicalização
É preciso questionar, inicialmente, a própria natureza,
funcionamento e eficácia dos sistemas de proteção dos direitos
humanos, isto é, indagar sobre como e de onde nascem esses
dispositivos e se agem sobre a fonte última das violações de direitos
ou, diferentemente, atuam apenas como uma maneira de atenuar os
efeitos de violações já desencadeadas pela lógica do sistema. Interrogase, portanto, sobre a própria possibilidade de uma verdadeira garantia
dos direitos humanos dentro do sistema neoliberal, ou, como diria
Marx, no seio da realidade desconcertante da sociedade de indivíduos
egoístas (MÉSZÁROS, 2008, p. 161).
Diante do grande aparato normativo criado para proteger
os direitos humanos, que se alastra pela esfera nacional, regional e
global, um questionamento é inevitável: por que continuam ocorrendo
tantas violações aos direitos humanos, violações essas invariavelmente
ligadas a fatores econômicos? Em primeiro lugar, afirmação histórica
dos direitos humanos parece nunca ter estado na contramão do
A justiça de transição brasileira, seus limites e possibilidades
117
desenvolvimento do neoliberalismo, já que engloba um conjunto de
medidas destinadas à redução dos efeitos sociais do sistema, mas não
faz oposição ao foco central das violações, consistindo, portanto, muito
mais em uma tentativa de correção do que de solução do problema
(MELO, 2011, p. 191).
Para Costas Douzinas, os direitos humanos, quando surgiram,
dentro da tradição radical do Direito Natural, eram um fundamento
transcendente da crítica contra a opressão e o senso comum. Nos anos
de 1980, em diversos países europeus e asiáticos, os direitos humanos
adquiriram mais uma vez o tom de dissidência, rebeldia e reforma.
Depois, porém, “a redefinição popular dos direitos humanos foi abafada
por diplomatas, políticos e juristas internacionais que se reuniram em
Viena, Pequim e outras festanças dos direitos humanos a fim de reaver
o discurso das ruas para os tratados, as convenções e os especialistas”
(DOUZINAS, 2009, p. 25). Conclui o autor que “uma teoria dos direitos
humanos que deposita toda a confiança em governos, instituições
internacionais, juízes e outros centros de poder público ou privado,
frustra sua raison d’être, que era precisamente defender as pessoas
dessas instituições e poderes” (DOUZINAS, 2009, p. 30).
Evidentemente, essas afirmações não significam que o rol de
direitos hoje declarados nos marcos normativos nacionais e internacionais
de direitos humanos tenham sido voluntária e espontaneamente
reconhecidos e positivados por agentes do poder político e econômico.
O reconhecimento dos direitos humanos, no atual estágio, se deve a
incansáveis lutas travadas pelo povo ao longo da história que, devido
à sua força reivindicativa e pressão aos órgãos públicos, lograram e
continuam logrando consideráveis avanços em matéria de direitos
civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Muitos desses avanços,
inclusive, se dão com enorme resistência política devido ao temor de as
reivindicações populares estarem indo “longe demais”, o que poderia
interferir na estrutura das relações de poder, ultrapassando o limite
conjuntural a que a dominação pode ceder.
Isto explica o porquê de, nos estados de exceção contemporâneos,
ter-se chegado ao ponto em que inclusive estas medidas (normas
jurídicas) reconhecidas e implementadas pelo sistema, sob pressão
popular, não serem respeitadas. O sistema desaplica dispositivos
jurídicos que ele próprio instituiu, mas que consistem em um avanço
“demasiado” e, por isso, representam uma ameaça à manutenção do
118
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
status quo. Essa inefetividade dos direitos humanos em comparação
à efetiva aplicação de outros setores normativos, como o direito
comercial, contribui para a geração do fenômeno que Mireille DelmasMarty denomina de assincronia do direito. Como meio de superar a
assincronia e, ainda, avançar no sentido de uma exploração mais
profunda dos direitos humanos, que os faça avançarem para além
de medidas meramente corretivas e redutivas de efeitos, urge uma
radicalização dos usos desses instrumentos.
Assincronia temporal do direito como problema estrutural
do sistema neoliberal
Dentro do processo de mundialização,3 o qual busca estudar a
multiplicidade e ambiguidade dos fenômenos que ocorrem atualmente,
tentando abranger a síntese das transformações sociais e políticas
contemporâneas, há que se destacar o fenômeno da assincronia do
direito, estudado por Mireille Delmas-Marty (2004). Consoante tal
fenômeno, os avanços cosmopolitas – em relação aos direitos humanos
– são contrabalanceados pela ideologia neoliberal atual, extremamente
voltada para o desenfreado crescimento econômico.
A assincronia do direito caracteriza-se pela diferença de velocidade
dos processos de integração e de efetivação das normas internacionais de
direitos humanos e/ou ambientais em relação às normas de direito do
comércio. Além de as velocidades serem diferentes, o tempo de integração
e de efetivação de tais direitos também são diferenciados, de modo que
os direitos econômicos são integrados aos ordenamentos jurídicos e
efetivados no âmbito interno dos Estados de modo muito mais rápido, ou
seja, em um tempo muito menor do que os direitos humanos.
3
O termo mundialização é amplamente utilizado por estudiosos e juristas franceses. Entretanto,
é possível encontrar sinônimos para tal vocábulo. O termo globalização, por exemplo, pode ser
considerado como um sinônimo de mundialização. Entretanto, não é considerado tão amplo, visto
que abarca as mudanças sociais somente pelo viés econômico, não considerando que as mudanças
trazidas pelo processo de mundialização são multidimensionais. Universalização também é
utilizada como sinônimo de mundialização. Contudo, tal termo também não é capaz de abranger
a complexidade do fenômeno, abarcando unicamente a questão do compartilhamento de sentidos
(MORAIS, SALDANHA, VIEIRA, 2011).
A justiça de transição brasileira, seus limites e possibilidades
119
Dessa forma, como marca principal da assincronia em tempos
de mundialização, tem-se que a evolução dos direitos humanos é lenta
em comparação à celeridade da integração das normas de direito
comercial. Aliás, não só o tempo de integração de direitos humanos
é mais lento como também a efetivação desses no âmbito interno
dos países enfrenta inúmeros obstáculos. Para visualizar tal fato,
basta observar a decisão do Supremo Tribunal Federal Brasileiro no
julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
153 (ADPF 153). Contrariando a consolidada jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos,4 o STF, afirmando que a Lei de
Anistia foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 e que não
contraria tratados internacionais ratificados pelo país, não revogou a Lei
de Anistia brasileira, mantendo vigente a lei que anistiou não somente
presos políticos e exilados como os próprios torturadores e agentes do
estado responsáveis por crimes de lesa-humanidade.
As leis de autoanistia, como é o caso da Lei nº 6.683/1979, são
consideradas pela CIDH como incapazes de se adequar à legislação
internacional protetiva dos direitos humanos. Não seguindo a esteira de
outros países latino-americanos,5 que revogaram suas leis de anistia, o
A primeira decisão da CIDH no sentido de considerar inválidas as leis de Anistia: o Caso Barrios Altos
vs. Peru, referente ao governo Fujimori. Em 14 de março de 2001, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos declarou que as leis de anistia peruanas eram incompatíveis com a Convenção Americana
de Direitos Humanos e, por isso, careciam de efeitos jurídicos. No Caso Almonacid Arellano e outros
vs. Chile, relativo à autoanistia do governo Pinochet (2006), a CIDH ratificou tal posicionamento
ao declarar que “ao pretender anistiar os responsáveis por crimes contra a humanidade, o decretolei chileno nº 2191/78 é incompatível com a Convenção Americana, carecendo, pois, de efeitos
jurídicos”. Ainda determinou a CIDH que a autoanistia chilena não poderia continuar representando
um obstáculo a investigação, julgamento e sanção dos responsáveis por graves violações aos direitos
humanos. Caso Barrios Altos vs. Peru, sentença de 14 de março de 2001. Disponível em espanhol
no sítio: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_75_esp.pdf>. Caso Almonacid
Arellano y otros vs. Chile, sentença de 26 de setembro de 2006. Disponível em espanhol no sítio:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.pdf>.
4
5
Em razão da decisão proferida pela CIDH no caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, não
só a Câmara de Deputados chilena declarou inaplicável a Lei de Anistia para os crimes contra a
humanidade, como a Suprema Corte de Justiça do Chile ignorou a existência da lei e condenou
vários participantes do regime de exceção ocorrido no país por violações aos direitos humanos.
No mesmo sentido, outros países, na esteira das decisões da CIDH, reviram suas leis de anistia.
Na Argentina, por exemplo, em 2005, a Corte Suprema julgou inconstitucionais a Ley do Punto
Final, sancionada em 1986, e a Ley da Obediência Devida, sancionada em 1987. Como resultado
de tal medida, conhecidos torturadores da ditadura militar argentina puderam ser julgados pelas
violações aos direitos humanos cometidas. Disponível nos sítios: <http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S1806-64452005000200008&script=sci_arttext> e <http://anistia.multiply.com/
reviews/item/30?&show_interstitial=1&u=%2Freviews%2Fitem>.
120
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
Brasil fora demandado na CIDH no Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil,
e condenado por violações aos direitos humanos. A decisão proferida
declara não só que o Estado Brasileiro é responsável pelo desaparecimento
forçado de sessenta e dois guerrilheiros no estado Pará, entre 1970 e 1972,
como também que a Lei de Anistia de 1979 está em desacordo com as
obrigações do direito internacional e que não pode ser usada para impedir
a abertura de processos por graves violações aos direitos humanos.6
Percebe-se, portanto, que a decisão proferida pelo STF corrobora para o
recrudescimento do fenômeno da assincronia. Como se não bastassem as
tardias e lentas atitudes tomadas pelo Estado no sentido de implantação
de medidas de Justiça de Transição, nota-se a adoção de posturas jurídicas
que tendem a diminuir a importância do Direito Internacional.
Na realidade, o que se consegue perceber é que, apesar dos esforços
para tentar atingir uma “sincronização pluralista” (DELMAS-MARTY,
2004), ou seja, para tentar acelerar a velocidade dos direitos humanos a
fim de que essa seja no mínimo capaz de equiparar-se ao ritmo acelerado
dos direitos econômicos, a ideologia político-econômica dominante em
tempos de mundialização – o neoliberalismo – só faz reduzir o tempo da
universalização e manter acelerado do tempo da globalização.
Impossível, diante da vigência do sistema neoliberal, que
preconiza a intervenção mínima do Estado, políticas de privatização,
o livre jogo das forças de mercado como melhor forma para alocar
recursos e ter maior produtividade, não reconhecer a influência que tem
o poder econômico e dos meios de comunicação no processo político. As
ideologias neoliberais surgidas em meados dos anos de 1950 e aplicadas
e difundidas através dos governos Thatcher e Regan, respectivamente
na Inglaterra e nos Estados Unidos (ANDERSON, 1995), tentam reviver
aspectos do liberalismo clássico de Adam Smith, sem lembrar, contudo,
que os ideais das teorias clássicas do liberalismo não são capazes de se
adequar de modo eficaz em todos os aspectos da sociedade pós-moderna,
gerando efeitos prejudiciais, sobretudo, sobre os direitos humanos.
As políticas neoliberais são hoje predominantes, de modo que
as violações aos direitos humanos apresentam-se como patologias
derivadas da estrutura do sistema. O partido único de outrora das
sociedades totalitárias, que controlava todas as diretrizes do Estado, hoje,
Caso Gomes Lund y otros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. Disponível em português no sítio:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_esp.pdf.>.
6
A justiça de transição brasileira, seus limites e possibilidades
121
nos regimes “democráticos”, fora substituído pelo pensamento único,
no sentido de que, para os problemas sociais, políticos e econômicos, só
existe uma resposta: a imposta pelo mercado, que é capaz de penetrar
em todos os interstícios da sociedade.7
Dessa forma, o neoliberalismo se caracteriza por ser a razão do
capitalismo contemporâneo (DARDOT, LAVAL, 2009, p. 6), não sendo
somente um sistema econômico, mas sim um conjunto de discursos,
práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos
homens conforme o princípio da concorrência. Como elementos ínsitos
de sobrevivência do sistema estão a desigualdade social e a necessidade
de parecer democrático, quando na verdade não o é.
As críticas ao sistema neoliberal transcendem a esfera econômica
e política e atingem inclusive o plano das artes. Nesse sentido, por
exemplo, José Saramago8 denuncia esse modelo político-econômico,
afirmando que a força não está no Estado e no seu poder de gerência da
sociedade, mas sim nas instituições bancárias e corporações financeiras,
que controlam e manipulam os governos estatais a fim de conseguir
vantagens, sobretudo econômicas, muitas vezes valendo-se de violações
dos direitos humanos para efetivar lucros particulares. O neoliberalismo
tem a necessidade de parecer democrático, mas somente é capaz de
existir em razão das violações aos direitos humanos. A concentração de
poder, portanto, está na raiz das violações aos direitos do homem.
Imperativo de radicalização dos direitos humanos
Apesar de tudo, é evidente que os direitos humanos não
são problemáticos por si próprios. O problema de direitos como
“liberdade”, “igualdade” e “fraternidade” declarados desde a revolução
francesa está no contexto em que se originam, ou seja, são “postulados
ideais abstratos e irrealizáveis” numa “sociedade regida pelas forças
desumanas da competição antagônica e do ganho implacável, aliados
Neste contexto destaca-se a entrevista de Ignacio Ramonez no documentário “O Cerco: A
Democracia nas malhas do Neoliberalismo”. Disponível no sítio: <http://www.youtube.com/
watch?v=g798krPEupY>.
7
8
Disponível no sítio: <http://www.youtube.com/watch?v=gDMF4XgGbV4&feature=fvst>.
122
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
à concentração de riqueza e poder em um número cada vez menor de
mãos” (MÉSZÁROS, 2008, p. 161).
Apesar do caráter ideológico dos direitos humanos é preciso
compreender como eles podem ser utilizados, com eficácia, a favor
daqueles que visam tutelar. Importante, nesse sentido, o resgate que
Mészáros faz de estudos marxistas sobre base econômica e superestrutura
política e jurídica, demonstrando a necessidade que o sistema social
possui em permitir uma autonomia relativa da superestrutura em relação
à base, para não deixar que direito e política reproduzam de forma
idêntica as contradições dessa, e evitar, com isso, o desmascaramento
imediato da dominação (MÉSZÁROS, 2008).
Essa autonomia relativa da superestrutura é a oportunidade que
os mecanismos de direitos humanos, que nascem como paliativos do
próprio sistema, sejam radicalizados em seus usos (reivindicando mais
do que aquilo a que se propõe realizar) e possam, aos poucos, ir formando
uma consciência social em torno da necessidade de mudanças estruturais.
Compartilhando este entendimento, Melo (2011, p. 194) afirma que “o
sentido da luta pelos direitos humanos é tornar e manter visível a tensão
contraditória entre capitalismo e democracia, denunciando as limitações
democráticas sobre as quais se sustenta a reprodução do capital e ‘afiando’
alternativas concretas para sua superação”.
É, neste sentido que serão analisados, em seguida, alguns aspectos
da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a ser instalada no Brasil, em
2012. Instituída pela Lei nº 12.528/2011, a Comissão surge como um
mecanismo destinado à efetivação de direitos até então negados ao
povo brasileiro, sendo o principal deles o direito de conhecimento da
verdade dos fatos ocorridos durante a ditadura militar brasileira. Tratase, portanto, de uma medida de proteção de direito humanos e, como
tal, será analisada conforme o enquadramento teórico, anteriormente
apresentado, de tais mecanismos dentro do sistema neoliberal.
A Comissão Nacional da Verdade e a justiça
transicional brasileira
No decorrer da última década, começou, no Brasil, um amplo
debate sobre justiça de transição, tendo como objetivos principais
A justiça de transição brasileira, seus limites e possibilidades
123
esclarecer a verdade, promover a reconciliação, julgar e punir os
agentes causadores de violações aos direitos humanos, bem como
a reforma das instituições perpetradoras de abuso no período
compreendido pela ditadura militar. Um importante instrumento
da justiça de transição são as Comissões Nacionais da Verdade, que
viabilizam o esclarecimento e a apuração dos abusos e violações aos
direitos humanos, dá voz às vítimas, e ao mesmo tempo dá lugar a que
se conheça o grau de violências e abusos cometidos pelo Estado. São
órgãos temporários de assessoramento a governos e são oficialmente
investidas de poderes para identificar e reconhecer todos os fatos
ocorridos e as pessoas que participaram, tanto agressores como
agredidos, do processo da ditadura, porém não possuem o poder de
processar e julgar.
A CNV brasileira foi criada para investigar, em dois anos,
violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, e será
composta por sete membros, que serão nomeados pela Presidência da
República. Tem como objetivo: efetivar o direito à memória e à verdade;
promover a reconciliação nacional; trazer à tona as graves violações
de direitos humanos, tais como torturas, mortes, desaparecimentos
forçados, ocultação de cadáveres e seus autores; identificar e tornar
públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias
relacionadas a essas violações; encaminhar aos órgãos públicos
competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na
localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos
políticos e colaborar para que seja prestada assistência às vítimas.
A Comissão, como instrumento de efetivação de direitos
humanos, nasce de uma forte pressão social, principalmente de setores
mais diretamente atingidos pela violência empregada pelo Estado
brasileiro contra a população durante a repressão da ditadura civilmilitar. Esses grupos, compostos por familiares de mortos, torturados
e desaparecidos, pelas próprias vítimas de tortura, e também por
professores e estudantes de diversas áreas do conhecimento, além de
outros grupos esclarecidos da sociedade, buscam a reconstituição da
memória de um período ainda nebuloso da história brasileira, para uma
futura verdadeira reconciliação social.
A Lei nº 12.528/2011, que cria no Brasil a CNV, foi aprovada
no Congresso Nacional e sancionada pela presidenta da República,
mas não sem resistência política em pontos estratégicos que poderiam
124
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
permitir uma majoração de suas potencialidades para muito além
de meras correções e reduções de efeitos. A Comissão, principal
instrumento da justiça transicional brasileira, já nasce com limitações
que poderão reduzir sua eficiência e dificultar o alcance de seus
objetivos. Porém, esses obstáculos poderão ter sua importância
mitigada caso se consiga alcançar, através do trabalho dos membros
da Comissão, resultados concretos expressivos que posteriormente
sejam amplamente divulgados e debatidos pela sociedade.
Limites da justiça de transição no Brasil
Diversos países no mundo,9 após longos ou curtos períodos de
controle autoritário de governo criaram Comissões da Verdade a fim
de apurar delitos e violações aos direitos humanos perpetrados pelo
próprio Estado. O Brasil, em tal aspecto, encaixa-se no que estudos
sobre o tema denominam de vertente minimalista. Isso porque adotou
a anistia como método geral para tratar das violações aos direitos
humanos ocorridas no passado.
Com a anistia brasileira, somada ao aspecto de “legalidade
autoritária” (PEREIRA, 2010) existente durante o período de exceção,10
adotou-se a política do esquecimento quando se falam dos fatos
ocorridos na ditadura militar. O direito à memória e à verdade no
Brasil ainda é algo pendente, pois um véu obscuro cerca os episódios
traumáticos ocorridos durante a vigência do regime militar, sendo que,
até hoje, a história contada sobre eles é permeada de lacunas silenciosas
e narrativas fechadas e lineares (SILVA FILHO, 2010, p. 185-227).11
9
A lista completa dos países que criaram Comissões Nacionais da Verdade, bem como informações
sobre cada caso específico, pode ser acessada em <http://www.usip.org/publications/truthcommission-digital-collection>.
10
Disponível no sítio: <http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/view/3339/2124>.
Para exemplificar em termos práticos essa noção de esquecimento, basta observar a pesquisa
atual realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) a qual constatou que 74%
dos brasileiros entrevistados desconhecem a Lei de Anistia. Esse dado faz parte da terceira edição
da pesquisa Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), a qual avaliou a relação dos
militares com a sociedade e entrevistou 3.796 pessoas. Disponível no sítio: <http://sul21.com.br/
jornal/2012/02/brasileiros-desconhecem-lei-da-anistia-revela-ipea/>.
11
A justiça de transição brasileira, seus limites e possibilidades
125
Paralelamente à imposição de políticas de silêncio e de
soterramento dos eventos ocorridos durante os “anos de chumbo”,
militares e outros setores conservadores preocupados com o que
poderá vir à tona nas investigações da CNV têm difundido na sociedade,
já há algum tempo, a ideia de que o “desenterramento” do passado
seria pura e simplesmente um ato de revanchismo dos perdedores
contra os vencedores do regime. Setores da direita chegam ao ponto
de esbravejar que a instalação da Comissão é “um ato de covardia com
as forças armadas”, que “apunhala pelas costas os militares”, pois “só
quer apurar os crimes dos militares e não os da esquerda armada”,
ou seja, “querem prender e humilhar os militares, como já se faz na
Argentina e no Uruguai”.12
No mesmo sentido, militares convidados a participar de programas
formadores de opinião da grande mídia brasileira elogiam o golpe de 64,
justificando-o como uma necessidade, na época, de conter movimentos
sociais que não lutavam por democracia, mas sim para “impor uma
ditadura do proletariado”. Para completar, justificam a participação
massiva dos jovens na luta contra o regime ditatorial dizendo terem sido
“atraídos pelo canto da sereia” e se tornado defensores de “ideologias
que não tinham nada a ver com a realidade brasileira”.13
Com argumentos deste quilate (que convencem grande parcela
da população acrítica do país), a direita legislativa brasileira já logrou
êxito, por exemplo, em impor diversas limitações aos trabalhos da
CNV como forma de fragilizá-la e torná-la incapaz de alcançar sua
finalidade última, que é a devida apuração dos fatos, o esclarecimento
da verdade, o reconhecimento por parte do Estado brasileiro dos crimes
que cometeu e, a partir disso, uma reconciliação nacional que possibilite
a instauração e consolidação de um regime político verdadeiramente
democrático no país, além do fim do autoritarismo que impregna as
instituições públicas.
Observa-se, ainda, que a dependência financeira da CNV, seu
número reduzido de membros e o longo período a ser investigado
12
Vide o discurso do Deputado Federal Jair Bolsonaro na data de 15 de setembro de 2011, antes
da aprovação do projeto de lei que criava a Comissão Nacional da Verdade. Disponível no sítio:
<http://www.youtube.com/watch?v=fG563tDNN_c>.
13
Vide a entrevista com o General Heleno no Programa Canal Livre de 15 de maio de 2011.
Disponível no sítio: <http://www.youtube.com/watch?v=0bK7n3I99N4>.
126
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
são fatores e condições que certamente poderão reduzir a capacidade
da Comissão em esclarecer minuciosamente os fatos que pretende
investigar. São limitações impostas politicamente que enfraquecem o
mecanismo da JT e tentam impedir que avance para além daquilo que o
sistema político-econômico está disposto a admitir e a (con)ceder.
Certamente, o trabalho a ser desenvolvido pela CNV, apesar das
limitações numéricas e temporais, poderá trazer avanços significativos
para o desenvolvimento da democracia no país. Todavia, a Comissão da
Verdade, juntamente com os demais mecanismos de justiça transicional,
por si só, não terá a capacidade de implantar um regime democrático
e acabar com o autoritarismo das instituições. Basta que se observe,
neste sentido, a realidade de outros países que passaram por práticas
autoritárias e que se encontram em estágios mais avançados de aplicação
de políticas transicionais.
No Chile,14 por exemplo, diversas manifestações estudantis
contra o modelo de educação em vigor no país continuam sendo
reprimidas com violência pela polícia, violando-se direitos e garantias
constitucionais como liberdade de reunião, expressão e manifestação.
Neste caso, problemas advindos de um período de regime de exceção,
como é o caso da cultura policialesca chilena que não sofreu alterações
pelas medidas da justiça de transição, frente ao sistema neoliberal, não
só continuam existindo como se transformam em mazelas sociais. Nas
mesmas manifestações ocorridas durante o ano de 2011, as contradições
entre Chile democrático e Chile autoritário foram demonstradas nos
relatos de jornalistas de agressões e tortura cometidas pela polícia em
plenos tempos de democracia.15
O Chile, que entre os anos de 1973 e 1990, enfrentou a ditadura militar comandada pelo General
Augusto Pinochet, teve como uma das grandes realizações do governo que assumiu após o término
do período de exceção a criação da Comissão Nacional sobre Verdade e Reconciliação. Além da
adoção de tal Comissão, que teve o relatório de suas apurações divulgado em fevereiro de 1991, o
país adotou outras medidas relacionadas à apuração de violações aos direitos humanos perpetradas
pelo Estado. Dentre essas, destacam-se a reforma de normas procedimentais e da arquitetura
do Poder Judiciário, que apresentava certa conivência com a ditadura militar e a punição de
torturadores (PEREIRA, 2010).
14
Consultar as seguintes matérias jornalísticas: “Estudantes chilenos voltam a protestar
por educação de qualidade”, disponível em: <http://www.bbc.co.uk/portuguese/ultimas_
noticias/2012/03/120315_chile_estudantes_cc_rn.shtml>; “Três ficam feridos e 50 são presos
em protesto estudantil no Chile”, disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/mundo>; e
“Chile: polícia usa gás e jato de água em protesto de estudantes”, disponível em: <http://noticias.
terra.com.br/educacao/noticias/0,,OI5666848-EI8266,00-Chile+policia+usa+gas+e+jato+de+a
15
A justiça de transição brasileira, seus limites e possibilidades
127
A sobrevivência de tais violações em muitos países, mesmo
após a passagem de regimes genuinamente de exceção – ditaduras
militares – para Estados Democráticos são resquícios alimentados pelo
sistema político ideológico atual, de práticas de regimes anteriores que
permanecem e se refletem no comportamento da polícia, das autoridades
e funcionários do Executivo, que se “viciaram” nas práticas da tortura
e do autoritarismo. As violações permanecem mesmo em estados
democráticos, pois se constituem como tentativas de criar, aumentar ou
manter privilégios trazidos pela concentração de poder.16
Logo, no que concerne a países que enfrentaram períodos de
ditadura em sua história, mesmo que exista a adoção de medidas
transicionais, o fato é que nenhum regime democrático consistente
e pleno pode ser construído “de cima para baixo” como resultado do
trabalho de um número reduzido de pessoas, mas sim ao contrário, “de
baixo para cima”, partindo necessariamente das bases da sociedade, isto
é, do povo organizado. Nesse aspecto, vislumbram-se os mecanismos de
justiça transicional como meios de, através da disseminação de ideias e
de um amplo debate público, conscientizar, organizar e mobilizar as bases
em torno de pautas concretas e radicais de democratização do Estado.
Possibilidades da justiça de transição no Brasil
Mesmo com as limitações de nascença da Comissão da Verdade,
a justiça transicional brasileira poderá surtir profundos efeitos se
aproveitar a brecha aberta pelo sistema para radicalizar os efeitos
de seu trabalho, fazendo vir à tona as verdadeiras relações de poder
que permeiam e definem os rumos da sociedade, e a inerência do
autoritarismo ao atual sistema político-econômico.
A CNV deve ser vista e realizada como um meio que se dirige
a uma finalidade, e não como um fim em si mesmo. Os objetivos da
gua+em+protesto+de+estudantes.html>.
16
Vide reportagem do jornal norte-americano The Economist intitulada “Better late than never,
Brazil is re-examining the legacy of dictatorship”, disponível no sítio: <http://www.economist.
com/node/21538786>.
128
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
Comissão estão especificados no art. 3º da Lei 12.528/11,17 sendo
um deles “promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de
torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e
sua autoria, ainda que ocorridos no exterior”. Entretanto, não se pode
perder de vista que tais objetivos da CNV, e a própria Comissão como
um todo, visam ao escopo maior da efetivação da justiça transicional
no país. Desse modo, tão importante quanto o trabalho investigativo da
Comissão e seus futuros esclarecimentos dos fatos, será saber a maneira
como utilizar tais resultados de forma a obter a máxima eficácia possível
deste mecanismo da justiça de transição.
Assim, seu trabalho seria frustrado caso todas as informações
por ela levantadas ficassem restritas aos seus membros e a uma pequena
parcela de interessados diretos no assunto como os familiares das vítimas
e alguns poucos estudiosos da questão. Certamente, o esclarecimento das
circunstâncias de atos de tortura, mortes, desaparecimentos forçados e
de outras arbitrariedades cometidas por agentes do Estado é de enorme
importância para as próprias vítimas e seus familiares, por questões
pessoais, de forma que quando isso ocorrer já se terá um significativo
avanço em matéria de justiça transicional no país. Porém, ainda serão
avanços pontuais e de caráter individual, insuficientes para gerar efeitos
expressivos na órbita social.
Para lograr êxito em seus objetivos sociais, os resultados
do trabalho da CNV deverão ser amplamente divulgados a todos
os brasileiros, para que compreendam a realidade que os cerca e
possam aos poucos sair do estado de alienação que os afeta. Será a
“Art. 3º São objetivos da Comissão Nacional da Verdade: I - esclarecer os fatos e as circunstâncias
dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1º; II - promover
o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados,
ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior; III - identificar e tornar
públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de
violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1º e suas eventuais ramificações nos
diversos aparelhos estatais e na sociedade; IV - encaminhar aos órgãos públicos competentes toda
e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos
mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1º da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de
1995; V - colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos
humanos; VI - recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de
direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e VII promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações
de direitos humanos, bem como colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais
violações. (A Lei nº 12. 528/2011 encontra-se disponível no sítio: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm>.)
17
A justiça de transição brasileira, seus limites e possibilidades
129
partir da larga publicização das informações que poderá haver o
desencadeamento de um debate social de maior escala, que extrapole
o âmbito dos diretamente interessados, para alcançar todos os
segmentos da população. Com isso, poderá iniciar o fundamental
processo de educação e conscientização popular, isto é, de organização
e fortalecimento das bases, para que, no futuro, com suficiente pressão
social, se promova a realização de reformas institucionais e alterações
nas estruturas de poder no interior do Estado.
Antevendo essas possibilidades, o trabalho dos membros da
CNV será tão mais fértil e promissor à medida que mais obtiver êxito
em clarear as circunstâncias dos atos da repressão. Nesse aspecto, mais
importante ainda que identificar as vítimas e fazer conhecer a identidade
dos algozes será esclarecer o porquê de suas ações e, com isso, os reais
motivos que estiveram por trás do golpe de 64. Nisso, visualiza-se que
a Lei da CNV contém importantes possibilidades de esclarecimento
circunstanciado dos fatos, como no inciso III do art. 3º, que estabelece
entre seus objetivos “identificar e tornar públicos as estruturas, os locais,
as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações
de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1º e suas eventuais
ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade”.
Circunstância significa causa, motivo, estado de coisas em
determinado momento, situação. Com a prerrogativa de esclarecimento
circunstanciado dos fatos, a CNV poderá trazer à tona as verdadeiras
causas da implantação do regime autoritário e de todas as atrocidades
cometidas em seu decurso, que ainda hoje são obscuras ou entendidas
com graves distorções e enganos por uma boa parte da população
brasileira. Poder-se-á, então, questionar a “verdade” hoje em vigor,
difundida pelos agentes do regime, de que seus atos foram empreendidos
pela necessidade de restabelecer a “ordem” em um país que se encontrava
em estado “caótico”. Afinal, que tipo de “ordem” buscavam os militares,
com o financiamento de grandes empresários do país, e qual o verdadeiro
“caos” social que queriam abafar? Acaso, teriam sido acometidos pelo
pavor de que os jovens revolucionários da década de 60 obtivessem êxito
em suas aspirações de justiça social e, assim, prejudicassem gravemente
suas posições economicamente privilegiadas dentro da sociedade?
Expandir o debate para todas as camadas sociais, sem dúvida,
é uma pretensão difícil de ser realizada, ainda mais em um mundo
130
Jânia Maria Lopes Saldanha, Márcio Moraes Brum...
de tempo acelerado e indivíduos alienados. O mundo moderno não
deixa tempo para que as pessoas realmente se informem e pensem
a respeito de coisas que as pertencem. A sobrecarga de informações
que recebem todos os dias, ao contrário de informar, é um dos
fatores geradores da alienação, que leva os indivíduos a fazerem
voluntariamente aquilo que não querem realmente fazer. Assim,
ocorre uma saturação social porque há uma alienação em relação ao
espaço e ao tempo e não se escapa ao sentimento de uma profunda
alienação de si mesmo. Além disso, os sonhos, os objetivos, os desejos
e os planos da vida individual são utilizados apenas para alimentar a
aceleração do tempo (ROSA, 2010).
Logo, se conseguir despertar numa parcela mais ampliada
da população a percepção de que os motivos do autoritarismo do
regime militar foram, em sua essência, os mesmos da ausência de
uma verdadeira democracia nos dias atuais, onde se vive ainda sob a
ditadura do capital, já que a estrutura das relações de poder não sofreu
alteração com a transição para a “democracia”, a CNV já terá realizado
uma enorme contribuição para o processo de justiça transicional no
país. Talvez a grande possibilidade da justiça de transição brasileira
seja o desencadeamento de fortes movimentos sociais por democracia
real ou, para utilizar expressão de Boaventura de Sousa Santos, por
democracia sem fim (SOUSA SANTOS, 2012).
Considerações finais
O sentimento de que o direito, ao longo da história, se
desvirtuou da sua razão de ser pela incapacidade de assegurar uma
vida digna a todos os homens, além do fato de não hesitar em voltar-se
violentamente contra eles próprios sempre que houver ameaça a uma
determinada “ordem social”, que a poucos interessa, reflete sua própria
condição no sistema neoliberal capitalista. Porém, mais do que uma
simples deturpação do direito, em diversas medidas governamentais na
atualidade, há verdadeira suspensão e interrupção dos ordenamentos
normativos, com a produção de vazios jurídicos, isto é, de lugares de não
direito, que caracterizam o fenômeno da exceção.
A justiça de transição brasileira, seus limites e possibilidades
131
Nesse contexto, os direitos humanos, apesar de suas fragilidades
originárias enquanto medidas corretivas e redutivas de efeitos, guardam
em si o potencial e a possibilidade de serem utilizados como importantes
ferramentas de luta contra as ditaduras do capital. Mas, para tanto, é
necessário antes o enfrentamento da assincronia temporal do direito,
que mantém os direitos do homem presos a uma lenta velocidade de
integração e efetivação enquanto outros setores normativos desenvolvemse e concretizam-se com muito mais rapidez.
A luta contra a assincronia se faz possível dentro das próprias
“aberturas” permitidas pela superestrutura política e jurídica do sistema
social. É a partir do próprio instituto dos direitos humanos, amplamente
reconhecido em sua legitimidade pelos Estados, que poderá haver uma
radicalização dos usos das medidas protetivas e das reivindicações por
reconhecimento de direitos ainda não tutelados juridicamente. Um
exemplo foi o reconhecimento recente, no Brasil, do direito à memória e
à verdade, com a aprovação da Comissão Nacional da Verdade.
Como já se previa, porém, o embate de forças e interesses
opostos no legislativo impôs limitações à Comissão que poderão
dificultar o alcance dos objetivos almejados. Mas, apesar dos óbices, é
possível que não haja grande comprometimento das possibilidades de
alcance de resultados satisfatórios. Se bem conduzidos os trabalhos por
membros imparciais e, ao fim, devidamente divulgadas as informações
obtidas, já se terá dado um importante passo no processo de formação
da consciência crítica em torno da aspiração de um regime políticoeconômico realmente democrático.
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História,
exceção
e
processo:
considerações a partir dos pensamentos
de Giorgio Agamben e Walter Benjamin
Eduardo Tergolina Teixeira
A história desde os vencidos
Benjamin ataca uma concepção de história cronológica, linear,
que ele vem a considerar como historicismo.1 Este carregaria em seu
âmago um vício, uma desídia, uma preguiça, consubstanciada em ver a
história como continuidade e linearidade. O historicista, diante de uma
verdadeira entrega ao passado, deixar-se-ia seduzir por sua imagem –
uma empatia, empatia do presente com o passado.2
E as narrações históricas seriam comumente e correntemente
produzidas por meio dessa (danosa) empatia. De fato, embora seja
enganoso assim pensar, mostra-se, inclusive, prazeroso contar a história
a partir da ótica daqueles que venceram. Uma história de vitórias, de
sucessos, de êxitos. Outrossim, não é demais anotar que, em regra e
por óbvias razões, são os próprios vencedores que permanecem e se
encarregam de descrever o que aconteceu.
Esse equivocado modo de pensar acabaria por chancelar
uma ideia de manutenção dos oprimidos em um estado de exceção
permanente. O que as noções de linearidade, da cronologia e do
progresso traduziriam, de fato, é uma excepcionalidade como regra
para os despojados.3 A concepção de progresso,4 alçada à categoria de
1
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sergio Paulo
Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 231.
2
MATE, Reyes. Meia-noite na História – Comentários às teses de Walter Benjamin Sobre o
conceito de história. trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Unisinos, 2011, p. 172.
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 226; e AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. trad. Iraci D.
Poleti, 2. ed. São Paulo : Boitempo, 2007, p. 18.
3
4
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 226.
136
Eduardo Tergolina Teixeira
lei da história, propiciaria essa exceção permanente aos esmagados.5
E tudo com esteio em uma cumplicidade e uma indiferença por parte
das pessoas. Com efeito, “a ciência trabalha com dados, com o máximo
de dados possíveis, mas só quem viveu a experiência de um campo
de concentração pode dizer ‘tudo é campo’ porque aquilo teria sido
impossível sem a cumplicidade ou a indiferença de todos”.6
Benjamin denuncia esse historicismo e a história universal,
na qual este culmina7 e por meio da qual se sugere considerar um
sentido mais profundo por trás da “mera” barbárie cometida, que
requer personalidades heroicas, cósmico-históricas, fatos de inevitável
ocorrência, conformes à astúcia da razão, sendo inafastável, nesse
permeio, “pisar algumas florzinhas à beira do caminho”.8 Ao contrário
dessa concepção, Benjamin assevera ser necessário “escovar a história
a contrapelo”,9 nadar contra a correnteza, estancar a noção de história
como escola de transmissão da violência.10
O progresso, na concepção benjaminiana, trata-se de uma
tempestade que nos impulsiona de modo irresistível para o futuro,11
seduzindo-nos a nos esquecermos das ruínas e a nos entregarmos ao
mito da linearidade e da cronologia.12 E é nessa toada que mencionado
pensador irá propor uma história a partir dos esmagados, dos vencidos,
questionando o cortejo triunfal da história13 e a ideia de progresso
(considerado como uma norma histórica).14 Nos dizeres de Mate:
O vencido sabe melhor do que ninguém que o que de
fato ocorre não é a única possibilidade da história. Há outras,
como aquela pela qual ele lutou, que estão na lista de espera. O
5
MATE, Reyes. op. cit. p. 189.
6
MATE, Reyes. op. cit. p. 162.
7
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 231.
8
MATE, Reyes. op. cit., p. 166.
9
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 225.
10
MATE, Reyes. op. cit. p. 175.
11
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 226.
SCHLESENER, Anita Helena. Os Tempos da História: observações sobre algumas teses de
Walter Benjamin. História, pensamento e ação. Org. Antônio Carlos dos Santos. São Cristóvão:
Universidade Federal de Sergipe, 2006, p. 176.
12
13
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 225.
14
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 226.
História, exceção e processo: considerações a partir dos...
137
vencido pode, portanto, converter a experiência frustrada em
expectativa de história.15
Benjamin procura com afinco descolar o histórico do fático, a
história é mais do que o que aconteceu – e tudo necessita, inafastavelmente
ser trazido para conhecimento. O presente está imbricado nesse passado,
havendo entre eles um compromisso secreto.16 Conforme Agamben:
somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e
as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Mas a
origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é
contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste,
como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro
e a criança na vida psíquica do adulto.17
Aos que venceram, interessa apenas que se aceite o curso
da história e o custo do progresso. Não haveria razões para que se
resgatasse a voz dos despojados, dos arrastados pelo cortejo triunfal. Tal
só atrapalharia o desenvolvimento da humanidade. Vê-se com clareza,
por conseguinte, que o esquecimento se mostra fundamental para os
instrumentos de dominação. Todavia, se quisermos tencionar entender
o presente, precisaremos de uma chave, chave essa que se encontra
escondida no arcaico.18 E, para tanto, o contemporâneo deverá ir ao não
vivido, voltar a um presente no qual jamais esteve.19
Conforme Mate, existe um passado que “foi e continua sendo”;
outro, porém, foi e “é sido”: já não é mais. A memória trabalha
com este passado ausente, o passado dos vencidos.20 Por meio da
memória, opera-se o que Benjamin chamou de virada copernicana.21
O passado dos vencidos, na perspectiva da memória, não pode mais
ser considerado como algo fixo, inerte, estagnado, como o que foi e já
15
MATE, Reyes. op. cit. p. 180.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro
Honesko. Chapecó: Argos, 2010, p. 70.
16
17
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 69.
18
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 70.
19
Idem.
20
MATE, Reyes. op. cit. p. 180.
21
Idem.
138
Eduardo Tergolina Teixeira
não mais é; deve, isto sim, ser entendido como “o privado de vida”,
uma “carência”, “um desejo (frustrado) de realização”.22 Impende
que se promova esse resgate. Conforme Benjamin expõe em sua Tese
VII, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também
um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de
barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”.23
É nessa perspectiva que, atentando-se para esse “passado ausente do
presente”, não se sustenta mais conceber os vencidos como florzinhas
casualmente pisoteadas à beira do caminho, mas sim como injustiça,
frustração violenta de um projeto de vida.24
O abandono
Escovando a história a contrapelo,25 produzindo-se a história
a partir dos vencidos, resgatando seus pensamentos, percebemos que
a porta dos direitos e das garantias está escancarada, mas o sujeito
não consegue entrar. A saúde está ali, assim como a liberdade, a
igualdade, a segurança e também a vida ali estão. O direito está lá,
na lei, categoricamente disposto, mas de costas para o indivíduo. Um
comportamento paradoxal, contraditório, que impõe a que a pessoa vista
a roupa da indiferença, do desrespeito e da desconsideração. Roupa esta
que ostenta o curioso potencial de – pela indiferença, pelo desprezo,
pelo desrespeito e pela desconsideração – despojar o ser humano de
fundamentais direitos. As injustiças se multiplicam.26
A vida humana – na lógica biopolítica –, mais e mais, tem se
mostrado objeto de captura e dominação. O Outro, submetido à excessiva
regulamentação de seu viver, encontra-se objetivado, desrespeitado
22
Idem.
23
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 225.
24
MATE, Reyes. op. cit. p. 159.
25
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 225.
Diante do historicismo e da linearidade, o Flautista de Hamelin estabelece comportamentos, afasta
a criatividade e apaga a subjetividade. A (salutar) diferença desaparece, ficando o racionalizado e o
normalizado. A dimensão imaginativa, criativa, fonte especial e inesgotável do sujeito, se esvai aos olhos
do Estado e da sociedade, diante da hipertrofia do estereótipo, por razões de progresso. Por meio das
marionetes que se produzem neste processo, o flautista pode trilhar seu caminho com sossego.
26
História, exceção e processo: considerações a partir dos...
139
e violentado. Essa situação dá azo a vilipêndio de direitos de ordem
fundamental, concebido e levado a cabo pela vontade soberana,
determinando a assunção, por parte do Outro, de uma condição de pura
vida nua, apanhada e, ao mesmo tempo, excluída.27 Uma captura, uma
situação em que o indivíduo encontra-se sob a ordem estatal, mas dela
não faz parte, uma inclusão exclusiva – está em Hamelin, mas em outra
condição: sob o efeito do Flautista –, a porta da lei está escancarada,
mas o sujeito não consegue acessar. A vida nua é capturada e excluída.
O mal pode ser feito contra ela – e de forma impune. E, para que esse
mal seja feito, não é necessário qualquer ritual, rito ou processo. Daí
porque a vida nua é matável e, também, insacrificável.28
Diante dessa (declarada) vida nua, fragilizada, relativamente
para a qual o mal pode ser feito de forma impune (vida matável) e
“sem cerimônia” (vida insacrificável), se percebe a clara aparição da
vontade soberana, decretando o abandono, o status de bando.29 Essa é a
realidade da pura vida nua (vida matável e insacrificável: homo sacer),
e ninguém está excluído da possibilidade de, diante de determinadas
circunstâncias, estar à mercê da vontade soberana, ser submetido a tal
condição – condição de abandonado –, constitutiva que é da própria
estrutura do poder soberano:
Se, na modernidade, a vida se coloca sempre mais
claramente no centro da política estatal (que se tornou, nos termos
de Foucault, biopolítica), se, no nosso tempo, em um sentido
particular, mas realíssimo, todos os cidadãos apresentam-se
virtualmente como homines sacri, isto somente é possível porque
a relação de bando constituía desde a origem a estrutura própria
do poder soberano.30
A esfera soberana é aquela em que se mata sem se cometer
homicídio e sem se celebrar sacrifício, sendo sacra – matável e
27
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. 2.
ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 106.
28
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 84.
29
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 109.
30
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 110.
140
Eduardo Tergolina Teixeira
insacrificável – a vida capturada nessa lógica.31 Interessante observar
que existe uma necessária relação entre soberania e vida humana,
fundamentando-se toda ordem social na captura dessa vida humana.
A vontade soberana, muito ao contrário de, na atualidade, se encontrar
desaparecida ou fragilizada, está apenas oculta, pronta para entrar
em ação e interferir na esfera do indivíduo: “o rio da biopolítica, que
arrasta consigo a vida do homo sacer, corre de modo subterrâneo,
mas contínuo”.32
Essa violência, essa subtração de direitos, suspendendo-se
a lei (no âmbito material) em relação ao homo sacer – lei essa que,
entretanto, frise-se, continua, formalmente, a viger – configura
autêntica exceção, nascida no seio da própria democracia. A lei
vigora, mas sem significado. Tal exceção não é declarada – de direito
–, mas fática. Promove-se um baralhar entre fato e direito, surgindo
dessa confusão uma exceção de fato, permanente, não de direito. O
oprimido vive em um estado de exceção permanente, transmudandose este estado de exceção na própria norma a qual o indivíduo está
inafastavelmente submetido.33 Há um direito suspenso, que condena
a pessoa – e a enquadra –, restando evidenciada sua matabilidade e
sua insacrificabilidade: “O estado de exceção moderno é, ao contrário,
uma tentativa de incluir na ordem jurídica a própria exceção, criando
uma zona de indiferenciação em que fato e direito coincidem”.34
Também: “O essencial, em todo caso, é a produção de um patamar de
indiscernibilidade em que factum e ius se atenuam um ao outro”.35
Diante disso, surgem situações paradoxais, apontadas por
Ruiz. Primeiramente, a exceção não é decretada por uma norma
jurídica, é fática, e então não há um reconhecimento formal por parte
do Estado da condição de oprimido, de homo sacer. Esta condição
é “inexistente”, não reconhecida pelo Estado. Os direitos estão
garantidos, mas apenas formalmente:
31
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 85.
32
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 118.
33
BENJAMIN, Walter. op. cit. p. 226.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo,
2007, p. 42.
34
35
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 46.
História, exceção e processo: considerações a partir dos...
141
Na condição dos excluídos a exceção é a norma, porém de
uma forma paradoxal. É uma exceção que não foi decretada por
uma vontade soberana explícita. Não há um decreto jurídico ou
político suspendendo os direitos dos excluídos. Pelo contrário,
eles têm garantidos “formalmente” todos os direitos. É a garantia
formal dos direitos que torna os excluídos invisíveis para o direito.
Ao não existir um ato soberano de direito que suspenda os direitos
dos excluídos, sua condição de vida nua não é reconhecida pelo
direito como um ato de exceção. Como consequência ele, o direito,
não se considera responsável pela sua condição de homo sacer.36
A decorrência própria ao estado de exceção permanente, e na
modalidade fática, e a consequente garantia meramente formal do direito
é que o indivíduo não sofre diretamente de frente à vontade soberana
de matar, de encerrar com sua vida. O sujeito, a despeito da exceção
fática, sobrevive, mesmo que adiante o ato estatal venha a conduzi-lo
a uma morte certa. O indivíduo sobrevive, sob o manto de uma vida
indigna de ser vivida. Na presente situação, não há um ato estatal de
diretamente matar, mas de incluir (formalmente garantir direitos)
e excluir (englobar o sujeito na exceção permanente), sobrevivendo a
pessoa na indignidade, pura vida nua:
O excluído social sobrevive privado de direitos
fundamentais. Sobre ele se abate um estado de exceção de fato,
pois está privado de direitos básicos que reduzem sua vida a
uma sobrevivência muitas vezes indigna que, em muitos casos,
simplesmente o conduz diretamente para a morte. A vida do
excluído é uma vida nua, um homo sacer reduzido, em diversos
graus, à sobrevivência indigna e, em muitos casos, a uma morte
certa (pensemos nas milhares de pessoas que morrem no Brasil,
e cujas mortes poderiam ser evitadas, simplesmente porque não
têm o atendimento de saúde necessário). Na vida destes excluídos
“a exceção é norma”. Vivem em um permanente estado de exceção.
Às vezes por muitas gerações vêm sobrevivendo numa condição de
vida nua, de suspensão de direitos fundamentais que torna sua
vida uma vida indigna.37
RUZ, Castor M. M. Bartolomé. O estado de exceção como paradigma de governo. Disponível
em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4080&
secao=373. Acesso em: 30 mar. 2012.
36
37
Idem.
142
Eduardo Tergolina Teixeira
É dentro do contexto de necessidade, de profundas carências, de
indistinção entre fato e direito e de uma grande sutileza no agir estatal,
que se percebe, a despeito do que posto expressamente nos textos legais,
a face mais odiosa do Estado, acabando este por decidir sobre a morte:
No mesmo passo em que se afirma a biopolítica, assistese, de fato, a um deslocamento e a um progressivo alargamento,
para além dos limites do estado de exceção, da decisão sobre
a vida nua na qual consistia a soberania. Se, em todo Estado
moderno, existe uma linha que assinala o ponto em que a decisão
sobre a vida torna-se decisão sobre a morte, e a biopolítica pode
deste modo converter-se em tanatopolítica, tal linha não mais
se apresenta hoje como um confim fixo a dividir duas zonas
claramente distintas; é, ao contrário, uma linha em movimento
que se desloca para zonas sempre mais amplas da vida social, nas
quais o soberano entra em simbiose cada vez mais íntima não só
com o jurista, mas também com o médico, com o cientista, com o
perito, com o sacerdote.38
Não é demais lembrar o que ocorre nos hospitais, quando, diante
da escassez de estrutura e pessoal, em dados momentos, o médico,
na emergência, acaba por agir enquanto soberano; também de se
rememorarem lamentáveis posturas, transformando, ainda hoje, pessoas
em verdadeiras cobaias de experimentos de cientistas;39 da mesma forma,
a soberania dos peritos ao conferirem veredictos sobre capacidade ou
incapacidade de pessoas, sobre aquisições de medicamentos, internações;
agentes decidindo sobre a liberdade e a vida de estrangeiros. Todas essas
situações, próprias do cotidiano, são solo fértil ao aparecimento da face
mais odiosa da biopolítica, a tanatopolítica. A vida útil é cuidada (pois
produtiva e consentânea aos critérios de eficiência); a vida desfavorável,
prejudicial, inútil é abandonada:
O paradoxo da biopolítica enuncia o cuidado da vida
humana como princípio formal da política moderna, porém cuidase da vida quando é útil e abandona-se quando resulta inútil. A
38
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo, 2. ed.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 119.
39
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 150.
História, exceção e processo: considerações a partir dos...
143
genealogia do conceito biopolítica nos remete diretamente a uma
de suas consequências mais perversas: a destruição das vidas
inúteis em nome do crescimento das vidas melhores. A biopolítica
de Kjellen deriva imediatamente numa tanatopolítica. Essa,
por sua vez, se justifica como uma política de mortes seletivas
com objetivo de “cuidar” a vida dos cidadãos melhores ou mais
importantes. Já na sua origem, a biopolítica mostrou que seu lado
mais obscuro desemboca inevitavelmente numa tanatopolítica.
Ela não se legitima como um poder despótico arbitrário, mas
como uma política eugenista para o bem da maioria dos cidadãos.
O objetivo biopolítico da tanatopolítica é defender a sociedade
de “vidas indignas de ser vividas” (termo utilizado nas obras da
época) e de “vidas perigosas”.40
De fato, por meio da biopolítica, de acordo com uma lógica
utilitarista, a vida humana é transmudada em meio, a serviço de fins outros:
O conceito de biopolítica coloca em jogo a estratégia
utilitarista que faz da vida humana um recurso objetivável para
fins outros. A biopolítica é uma prática moderna que inverte a
lógica de fins e meios, fazendo da vida humana um meio, e da
eficiência, um fim. Na biopolítica encontra espaço fecundo a lógica
instrumental da técnica moderna que transforma os meios – a
eficiência e a lucratividade – em fins, reduzindo o fim, nesse caso
a vida humana, a mero meio.41
O sacrifício
Despiciendo falar que isso tudo tem, na gênese, é óbvio, a
desconsideração em relação ao Outro, reificando-o, promovendo
desrespeito, afronta a direitos e violência a serviço das lógicas
de dominação.
RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Genealogia da biopolítica. Legitimações naturalistas e filosofia
crítica. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/ index.php?option=com_content&vie
w=article&id=4308&secao=386>. Acesso em: 20 mar. 2012.
40
41
Idem.
144
Eduardo Tergolina Teixeira
E é de relevo anotar o extraordinário peso que tem a ideia de
insacrificabilidade, trazida por Agamben. De fato, o sacrifício justifica
ações. O ritual, o processo confere sentido ao que “aparentemente” se
afigura desarrazoado. O despropósito acha no ritual o porto seguro.
Dessa forma, enfatizar-se o caráter insacrificável da vida nua demonstra,
também, que, além de poder ser impunemente morta sem cerimônia,
sem processo, sem rito, essa horrenda providência não pode, por outro
lado, ser alvo de pretensas justificações. Não se pode querer atribuir
sentido ao sem-sentido. Inaceitável que se tencione achar razão para o
intrinsecamente irrazoável. Anote-se o que foi dito por Agamben:
A doutrina do martírio nasce, portanto, para justificar o
escândalo de uma morte insensata, de uma carnificina que não
podia deixar de parecer absurda. Diante do espetáculo de uma
morte aparentemente sine causa, a referência a Lc 12, 8-9 e a Mt.
10, 32-33 (“todo aquele que me confessar diante dos homens,
também eu o confessarei diante de meu Pai; e aquele que me negar
diante dos homens, também eu o renegarei diante de meu Pai”)
permitia que se interpretasse o martírio como um mandamento
divino e que se encontrasse assim uma razão para o irracional.
Mas isso tem muito a ver com os campos. Com efeito,
nos campos, o extermínio – para o qual talvez fosse possível
encontrar precedentes – apresenta-se, porém, em formas que
o tornam absolutamente sem sentido. Também a respeito disso
os sobreviventes se acham concordes. “A nós mesmos, o que se
tinha a dizer então começou a parecer inimaginável.” “Todas
as tentativas de explicação [...] fracassaram radicalmente”.
“Irritam-me as tentativas de alguns extremistas religiosos que
interpretam o extermínio à maneira dos profetas: uma punição
para os nossos pecados. Não! Isso não o aceito. O fato de ser
insensato torna-o mais espantoso.”
O infeliz termo ‘holocausto’ (frequentemente com H
maiúsculo) origina-se dessa inconsciente exigência de justificar
a morte sine causa, de atribuir um sentido ao que parece não
poder ter sentido.42
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo,
2010, p. 37.
42
História, exceção e processo: considerações a partir dos...
145
Calha anotar o caráter de insacrificabilidade nos tempos
modernos. Conforme Benjamin, a história da linearidade, universal,
não busca a justiça, mas sim a perpetuação da injustiça. Agamben aduz
que sequer o direito visa à justiça, tampouco visa à verdade, objetivando
exclusivamente o julgamento. Aquilo a que não devem sobrepor nem os
próprios filhos nem a própria vida – a Justiça43 – não é buscado senão
como eventual consequência do processo, fim em si mesmo:
Isso fica provado para além de toda dúvida pela força da
coisa julgada, que diz respeito também a uma sentença injusta.
A produção da res judiciata – com a qual a sentença substitui
o verdadeiro e o justo, vale como verdadeira a despeito da sua
falsidade e injustiça – é o fim último do direito. Nessa criatura
híbrida, o direito encontra paz; além disso ele não consegue ir.44
A coisa julgada expressa bem (a par da insacrificabilidade) essa
concepção de linearidade a que a sociedade está adstrita em seu pensar.
O processo judicial, dentro dessa lógica historicista, de progresso e
linearidade, perde a referência na Justiça, surgindo daí um julgamento
que é finalidade em si mesmo, produtor de coisa julgada. O processo
se desvela como verdadeiro mistério, promovendo o desabrochar de
uma natureza autorreferencial do julgamento45. Nesse diapasão, a
pena, advinda do processo, tratar-se-ia de mero penduricalho deste,
ostentando um caráter absolutamente acessório, na medida em que o
fim é o processo. O processo (que era o ritual, próprio ao sacrifício, e
que, contemporaneamente, é concebido como instrumento garantidor
do justo julgamento, instrumento de liberdade) se transforma já ele
próprio em pena e esta só adquire (ainda que) raso sentido se vista
como prolongamento do julgamento, um justiçar: “Isso significa
também que ‘a sentença de absolvição é a confissão de um erro judicial’,
que ‘cada um é intimamente inocente’, mas que o único verdadeiro
inocente ‘não é quem acaba sendo absolvido, e sim quem passa pela
vida sem julgamento’”.46
43
PLATÃO. Críton.
44
AGAMBEN, Giorgio. op. cit., p. 28.
45
AGAMBEN, Giorgio. op. cit. p. 29.
46
Idem.
146
Eduardo Tergolina Teixeira
Esse é o processo da atualidade, um processo de injustiça, em
cumplicidade com a exceção permanente. Concebido como instrumento
de liberdade e de respeito aos direitos fundamentais, como rito (nulla
poena sine judicio), transmuda-se em pena (nullum judicium sine
poena), manifestação clara do desrespeito à alteridade: “A justiça nada
quer de ti. Acolhe-te quando vens e te deixa ir quando partes”.47
Considerações finais
A biopolítica, a qual, segundo Agamben, está a acompanhar
a humanidade desde a sua origem, vem se revestindo de refinadas
técnicas de dominação e regulação. Tais ações estatais acabam por, em
não raros momentos, impor ao indivíduo a condição de homo sacer,
abandonado, uma vida vivida na indignidade. Para Agamben, o homo
sacer é a figura originária da política,48 remontando, pois, ao arcaico.
A repugnância em relação ao humano, o tratamento deste com abjeção
também se manifesta desde os tempos primevos, todavia, assim como a
biopolítica, claramente se estende a nós, em nosso tempo, afetando-nos
mais e mais. O pensamento de Kafka reflete com mestria essa realidade:
“Como um cachorro! – era como se a vergonha fosse sobrevivê-lo”.49
Tal vergonha deve ser trazida ao presente pela memória, por
meio de testemunho mais puro possível – já que o testemunho puro
não é possível, ante sua intrínseca incapacidade de testemunhar,
porque morreu com o morto.50 Sob pena de cumplicidade e indiferença,
devemos ser contemporâneos e perceber as nuances, a luz provinda
da escuridão51 e construir o presente com base no infindável material
provindo do passado, a fim de resgatar os oprimidos da indignidade
em que estão imersos.
47
KAFKA, Franz. O Processo. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 237.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo, 2.
ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 86.
48
49
KAFKA, Franz. ob. cit., p. 244.
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Trad. Selvino J. Assmann, São Paulo : Boitempo,
2010, p. 44.
50
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro
Honesko. Chapecó: Argos, 2010, p. 65.
51
História, exceção e processo: considerações a partir dos...
147
Escovando a história a contrapelo, resgatando os fatos a partir do
viés da memória e dando, pois, voz e oportunidade aos esmagados pelo
cortejo triunfal, sem dúvidas habilitar-se-ão mais bem as práticas do
Estado e da sociedade, o que, de consequência, trará, inafastavelmente,
maior respeito aos direitos e processos – agires mais justos.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti, 2. ed. São
Paulo: Boitempo, 2007.
______. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. trad. Henrique
Burigo, 2. ed. Belo Horizonte : Editora UFMG, 2010.
______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. trad. Vinícius
Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2010.
______. O que resta de Auschwitz. trad. Selvino J. Assmann. São
Paulo: Boitempo, 2010.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política.
trad. Sergio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
MATE, Reyes. Meia-noite na História – Comentários às teses de Walter
Benjamin Sobre o conceito de história. trad. Nélio Schneider. São
Leopoldo: Unisinos, 2011.
PLATÃO. Diálogos. vol. V. trad. Carlos Albertos Nunes. Belém:
Universidade Federal do Pará, 1975.
148
Eduardo Tergolina Teixeira
RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Genealogia da biopolítica. Legitimações
naturalistas e filosofia crítica. Disponível em: <http://www.ihuonline.
unisinos.br/ index.php?option=com_content&view=article&id=4308&
secao=386>. Acesso em: 20 mar. 2012.
______. O estado de exceção como paradigma de governo. Disponível
em:
<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=4080& secao=373>. Acesso em: 30 mar. 2012.
SCHLESENER, Anita Helena. Os Tempos da História: observações
sobre algumas teses de Walter Benjamin. História, pensamento e ação.
Org. Antônio Carlos dos Santos. São Cristóvão: Universidade Federal de
Sergipe, 2006.
A
justiça
transicional
entre
o
institucionalismo dos direitos humanos
e a cultura política: uma comparação
do Brasil com o Chile e a Argentina
(1995-2006)
Rodrigo Lentz
A partir do final do século XX, extensa parte da literatura
preocupada com as transições de regimes políticos apostou nos “arranjos
institucionais” da política como forma de assegurar a estabilidade
dos novos regimes políticos em direção à democracia (O’DONNELL,
SCHIMITTER, 1988). Em se tratando, em sua maioria, de países
submetidos à Doutrina de Segurança Nacional, a resolução de uma
questão se tornava crucial: o que fazer com o passado de violência do
regime a ser superado?
Genocídios, execuções sumárias, torturas, abusos sexuais, prisões
arbitrárias, desaparecimentos forçados (crimes de lesa-humanidade)
e censura faziam parte da engrenagem Estatal anterior, fossem
institucionalizadas ou não. Evidentemente, os regimes democráticos
procedimentais que daí emergiram estavam carregados de normatividade,
valores e uma ética que orientava o futuro (sintetizada, em diferentes
medidas, pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948) e se
opunha, ao menos formalmente, ao passado de violência.
Isso, aparentemente, implicava a necessidade de publicização
dos responsáveis pelas circunstâncias dos crimes e no consequente
julgamento ético e penal dessas violações. Entretanto, logo esse
imperativo foi colocado como obstáculo à estabilidade e consolidação
do novo regime. Especialmente na América Latina, se desenvolveu a
tese de que a “reconciliação nacional” não combinava com “abertura
de feridas do passado”, porquanto provocaria nova fragmentação e
conflito interno entre os grupos outrora em enfrentamento sangrento.
Assim, foi comum o uso das chamadas “leis de anistias”. Em geral,
elas garantiram imunidade penal aos responsáveis pelo antigo
150
Rodrigo Lentz
regime e buscavam interditar investigações sobre esse passado. Além
disso, a mesma imunidade foi estendida à grande parte da oposição/
resistência ao regime.
Essa interpretação da transição política prevaleceu num
primeiro momento, mas logo foi alvo de críticas que vinham das ruas
às universidades. Familiares organizados de mortos, desaparecidos,
sobreviventes da repressão, torturados, grupos internacionais de defesa
dos direitos humanos e a própria organização das Nações Unidas
passaram a deslegitimar a dicotomia estabelecida entre estabilidade e
justiça. Qual o principal argumento? É que a omissão àquelas violações
do passado autorizavam sua repetição no presente e no futuro. Ao invés
de desestabilizar o novo regime, mexer exemplarmente nas “feridas do
passado” solidificava as bases dessa nova ordem institucional e política.
Principalmente por interferir na formação dos valores que orientariam
as práticas das instituições e dos indivíduos dali em frente. Ou seja, seria
capaz de formar uma cultura política de repúdio pelas atuais e novas
gerações às práticas do antigo regime.
Mas até que ponto os mecanismos da justiça transicional são
eficazes para a formação da cultura política que objetiva? Os caminhos
sugeridos por esse programa de transição política encontram sustentação
nas teorias da cultura política? É dessas inquietações que este incipiente
problema de pesquisa se propõe a realizar uma análise comparativa
entre três países latino-americanos advindos da Doutrina de Segurança
Nacional e que, em medidas distintas, aplicaram os mecanismos da
Justiça Transicional, a saber: Brasil (1964/1985), Chile (1973-1990) e
Argentina (1976-1983). Basicamente, é feita uma revisão teórica dos
principais conceitos envolvidos. Posteriormente, um entrelaçamento
da teoria com dados empíricos sobre os valores da população dos três
países relativos às instituições democráticas para, ao final, apresentar
conclusões provisórias.
Justiça transicional: do autoritarismo à poliarquia pela ética
O sentido geralmente dado à palavra “transição” pode ser
colocado como o passar “de um lugar para outro”. Em termos da justiça
A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos...
151
transicional, qual seria esse lugar? E para onde vai esse outro? A ideia
central do lugar de partida é a suspensão de direitos individuais em
relação ao Estado (ir e vir, expressão, pensamento, integridade física),
sob o argumento da soberania do Estado e segurança do povo em
abstrato contra um “inimigo” a ser eliminado. Do ponto de vista teórico,
podem ser classificados como Autocracias ou Ditaduras (STOPPINO,
1998) e, cuidando-se de América Latina, de regimes burocráticoautoritários (O’DONNELL, 1987). Liderados pelas Forças Armadas
nacionais na segunda metade do século XX, estão contextualizados
mundialmente na Guerra Fria e se baseavam na Doutrina de Segurança
Nacional (COMBLIN, 1978). Embora com outros contornos formais,
esses regimes Autoritários diferem pouco de um Estado de Exceção
vinculado ao Estado Moderno (AGAMBEN, 2002).1
E para onde a transição almeja chegar? Acompanhando
um movimento hegemônico mundial (HUNTINGTOM, 1994), as
referidas transições apontavam na direção de regras eleitorais de
competição política entre grupos nacionais, por meio do voto direto dos
representantes, reorganização do Estado com base em uma certa ordem
social, econômica e moral fundamentada nas liberdades individuais
ligadas ao liberalismo. Em poucas palavras, regimes poliárquicos, assim
definidos por Robert Dahl (1997) e criticados por sua ineficiência na
dimensão da igualdade política e pouca atenção aos aspectos culturais
(BAQUERO, 2007). Dessa forma, a Justiça Transicional aponta para
uma visão dicotômica de regimes políticos: autoritarismo x democracia.
Igualmente, dicotomia que é alvo de críticas, especialmente por sua
simplificação e desconsideração das zonas híbridas entre esses dois
extremos (MAINWARING; ANÍBAL, 2001).
Nesse passo se chega ao qualitativo Justiça. Por sua própria
natureza, essa dimensão é a que confere traços visivelmente normativos
para o processo de transição desses países. Está aqui presente, por um lado,
uma dimensão ética e, por outra, de eficácia da transição a curto e longo
prazo. Ambas se ancoram na noção de trauma individual da psicanálise
de Freud (1987), articulada para o plano coletivo por Ricoeur (2007).
1
Regimes políticos assim caracterizados manifestariam o nomos do Estado Nação Moderno. Por
meio da criação de “campos”, onde a exceção é a regra, a persistência de violências sistemáticas
contra nacionais, perpetradas por agentes Estatais e apoiada por grupos civis, e a nudez de direitos
de certos grupos sociais permanecem mesmo após a (re)instauração de um Estado Democrático de
Direito. O que Bercovici chamaria de Estado de Exceção Permanente (2004).
152
Rodrigo Lentz
Centralmente, esse argumento sustenta que grandes traumas coletivos –
guerras, genocídios, ditaduras – em que práticas sistemáticas de violência
são utilizadas em larga escala geram consequências intergeracionais. É
como se a libido coletiva estivesse presa aos sentimentos do trauma, como
dor, sofrimento e repressão da própria libido (energia psíquica). “Virar a
página” desse passado de violência sem conhecê-la (teste de realidade)
redunda, em verdade, na repetição daquelas práticas (compulsão da
repetição). É preciso, assim, a prática do luto coletivo que promova a
reconciliação com esse passado e permita sua memória resolvida. Isso
através de uma ética negativa que em sua fundamentação busca orientar
o futuro: que o passado de violência jamais se repita (ADORNO, 2001).
Dessa maneira, atrelar a consigna justiça à transição é um rompimento
com a tradição das “violências fundadoras”. Entendê-las como o “custo do
progresso” nada mais é consentir com sua violência e passá-la enquanto
valor cultural (conquistas culturais) de gerações em gerações por meio de
identidades culturais.2
A partir disso, a Justiça Transicional consiste, basicamente, num
conjunto de cinco cinco estratégias: 1) investigação e esclarecimento
do passado de violências; 2) julgamento jurídico dos responsáveis;
3) reparação material e material dos danos das vítimas; 4) reformas
ou extinção das instituições responsáveis pela repressão política; 5)
exercício de memória das violações. Essas estratégias não seguem uma
sequência definida e tão pouco se restringem a uma receita “passo a
passo”, pois se orientam conforme as especificidades de cada país em
que for buscada e também em que estão imbricadas (MÉNDEZ, 1997;
BICFORD, 2004; ICTJ, 2009; ZYL, 2009; CIURLIZZA, 2009).
A primeira dimensão é uma espécie de reconhecimento da
realidade passada. Cuida-se do acesso à pluralidade de versões
sobre esses fatos pretéritos para possibilitar um julgamento ético
jurídico das mesmas no presente. Aberturas de arquivos oficiais,
oitiva de testemunhos de sobreviventes e familiares, investigação
das circunstâncias da repressão, identificação dos agentes do Estado
responsáveis direta e indiretamente pela repressão, assim como
de agentes não estatais. Esse trabalho geralmente é realizado pela
instalação de “Comissões da Verdade” (HAYNER, 2001; SIKKINKI,
2
Não por acaso é comum se referir ao passado de violência e conflitos como “feridas”, de buscar
esse passado como “abrir feridas”. Essa transposição do plano individual para o coletivo leva muito
em conta os elementos linguagem, tempo e espaço como unificadores das duas dimensões.
A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos...
153
2007) que, ao final, produzem relatórios com suas conclusões e
denunciam às instâncias institucionais para as “medidas cabíveis”, que
irão variar conforme a disposição jurídica sobre o tema em cada país.
Além de possibilitar os julgamentos penais, o primordial aqui é um
amplo reconhecimento do Estado sobre os crimes, o desvelamento dos
responsáveis pela repressão e a construção social de forma ampla e
democrática da história de violações permanentemente aberta através
da garantia de acesso às fontes daquela realidade.3
No que tange aos julgamentos, eles consistem no processamento
jurídico visando submeter os responsáveis pela repressão à
responsabilização criminal. Vale destacar que esse processamento
inclui as garantias democráticas já em regra do novo regime, como
o contraditório e ampla defesa. Essa variável é a que mais gera
controvérsias e resistências nos processos transicionais, especialmente
na América Latina. Pode-se dizer, em linhas gerais, que o uso do
direito penal se configura na mais significativa reprimenda ética e
social disposta pelos Estados Modernos contra determinadas condutas
praticadas por indivíduos, seja a serviço do Estado ou não. Era de se
esperar, portanto, que as forças políticas e sociais ligadas ao antigo
regime armassem, sempre e na medida do possível, estratégias para
evitar esses procedimentos. Lugar onde regramentos nacionais – como
Leis de Anistia e a garantia prescricional de crimes – se confrontam com
o ordenamento do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH)
– tipificação penal de crimes de lesa-humanidade e imprescritibilidade
desses crimes – e colocam em xeque a própria validade dos sistemas
Interamericano e Internacional de proteção aos Direitos Humanos.4
A reforma das instituições focaliza especialmente nas forças de
seguranças, como as forças armadas e as polícias regionais e nacionais.
O objetivo é realizar depurações dos integrantes identificados como
responsáveis pela repressão e uma reorientação política das corporações
de respeito aos direitos humanos.
3
Seria isso uma versão dos vencedores? Até onde se experimentou, não se trata disso. Garantir o
acesso às fontes daquela realidade e o amplo acesso ao público é, pelo contrário, desfazer um silêncio
imposto pela repressão justamente para abster-se de julgamentos pelas futuras gerações.
4
Cuida-se de um tema bastante complexo e que comporta ricas discussões tanto no campo do
Direito como da Ciência Política. Não sendo o foco deste texto, apenas se apontam bibliografias
importantes nesse sentido: BRAGATO, 2010; VENTURA, 2011; SILVA FILHO; SALDANHA;
LENTZ, 2011; SILVA FILHO, 2010; AMBOS, 2009.
154
Rodrigo Lentz
Já a reparação material e moral se destina mais restritamente
aos familiares dos mortos e desaparecidos, sobreviventes da repressão
e homenagens póstumas. Visa principalmente minimizar as perdas
materiais e, por outro lado, retribuir simbolicamente a esses atores
sociais seu engajamento na resistência política ao Autoritarismo.
Essas reparações também sugerem enquanto sujeito a sociedade
como um todo. Por isso se aproxima da última dimensão da justiça
transicional, a memória.
Essa talvez seja o principal elemento desse conjunto de estratégias
que fundamenta a alegada interdependência entre os demais. Entendida
como condição de Justiça (MATE, 2009), ela exige o conhecimento dos
acontecimentos passados e seu exercício seria fundamental para que o
principal objetivo da justiça transicional seja alcançado: lembrar para
que jamais se repitam as violações do passado.
Por outro lado, do ponto de vista histórico, a construção da justiça
transicional pode ser descrita em três fases (TEITEL, 2003): primeira,
posterior à Segunda Guerra Mundial, marcada pelo internacionalismo
e a criação de Tribunais ad hoc (Nuremberg e Tóquio); segunda, PósGuerra Fria, queda do muro de Berlim, nova ordem social no leste
europeu e a abertura democrática nos países Latino-Americanos que
viviam sob a batuta militar. Foi aí que a terceira fase, do pressuposto
ético imprescindível às transições políticas, encontrou objeção: buscar a
justiça e a verdade, seja juntas ou separadas, provocaria instabilidade e
a volta de injustiças.
Esse foi um posicionamento no campo da ciência política do final
da década de 80 e do início de 90 (HUNTINGTOM, 1991; O’DONNEL
e SCHMITTER, 1986; JOSÉ ZALAQUETT, 1992) que encontrou
sequência nos primórdios do século XXI (GOLDSMITH & KRASNER,
2003; COBBAN, 2006; SNYDER & VINJAMURI, 2003/2004). O
transcorrer do tempo permitiu que testes empíricos fossem possíveis,
visando verificar a consistência fática daquelas ressalvas. É nesse
sentido que a pesquisa realizada por Kathryn Sikkink e Carrie Booth
Walling (2007) percorreu ao investigar qual o impacto da instalação de
julgamentos sobre violações passadas e de comissões de verdade sobre
as novas democracias na América Latina, seja na estabilidade do novo
regime seja no respeito (prática) dos direitos humanos. Em conclusão,
apontam para evidências de que o impacto da justiça transicional sobre
as práticas de direitos humanos é positivo, e não negativo. Especialmente
A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos...
155
a aplicação dos mecanismos de julgamento e comissão não significaram
um “suicídio” da democracia, pelo contrário, resultaram em maior
solidez se comparados com aqueles que não realizaram os mecanismos.
Trazendo-se esse acúmulo teórico e empírico para o caso
brasileiro, pode-se perceber o quanto o problema de efetivação dos
Direitos Humanos fundamentais é sintomático das características da
transição brasileira. Inexistindo um processo de ruptura, a abertura
democrática atendeu as expectativas do General Ernesto Beckmann
Geisel (1974-1979), sendo uma “distensão lenta, gradual e segura”
controlada em sua maioria pela “imaginação política criadora” dos
próprios militares (ARTURI, 2011:250; GONZÁLEZ, 2002). A Lei de
Anistia brasileira (Lei 6.683/79), que iniciou o processo de reabertura,
segue colhendo os frutos semeados por seus tutores: impedir a
responsabilização penal dos agentes políticos do antigo regime, assim
como o bloqueio aos documentos públicos sobre o período. Quando
a tentativa de responsabilização pelas violações foi levada à Suprema
Corte brasileira, a imunidade penal foi mantida de forma tragicômica.5
É verdade que o país tem realizado alguns avanços, em que pese
à timidez: reconhecimento pelo Estado como mortos os desaparecidos
políticos, a consequente instalação da Comissão de Mortos e
Desaparecidos (Lei 9.140/95) e posterior publicação de relatório oficial
com seus resultados;6 instalação da Comissão de Anistia e a promoção
de reparação financeira e moral (Lei 10.559/02);7 em passo mais
recente, a criação da Comissão Nacional da Verdade (Lei 7376/10),
que objetiva oficialmente “examinar e esclarecer as graves violações de
direitos humanos” entre os anos de 1946 a 1988.8
Contudo, o próprio processo de aprovação e instalação dessa
Comissão é sintomático de como o enfrentamento ético e jurídico do
5
Em 2010, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153), proposta pela
Ordem de Advogados do Brasil (OAB), foi julgada improcedente por sete votos a favor e dois contra.
O relator da decisão foi o Ministro Eros Grau, ex-preso político do regime. Em sua decisão, fez uso
de poema de Mário Benedetti, conhecido poeta Uruguaio, defensor do julgamento das violações dos
direitos humanos.
6
Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_direito_memoria_verdade/
livro_direito_memoria_verdade_sem_a_marca.pdf>. Acesso em 20 jul. 2011.
7
Destaque-se aqui a importância dos julgamentos públicos realizados pelas Caravanas da Anistia, que
levavam as sessões administrativas para os locais da perseguição política em eventos massivos, onde o
representante do Estado pedia desculpas pelos crimes cometidos pelo regime anterior.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.
htm>. Acesso em: 17 mar. 2012.
8
156
Rodrigo Lentz
passado de violações encontra forte oposição de relevantes atores políticos.
Por exemplo, das Forças Armadas e demais setores sociais remanescentes
do antigo regime. Entre fevereiro e março de 2012, dois “alertas à
nação” foram publicados. Neles, em resumo, criticavam como “quebra
de compromissos” as manifestações de duas Ministras do Executivo a
favor do direito à verdade e à justiça e contrárias à ditadura militar em
questão, com a complacência da Presidenta. O primeiro, publicado pelos
“Interclubes Militares”, recebeu a reprimenda do poder civil e foi retirado
da página eletrônica dos Clubes, uma vez que os militares da reserva
ainda devem obediência ao poder civil. Contudo, novo documento foi
publicado. Reafirmando os termos do primeiro, ele atualmente conta com
a assinatura de 117 Oficiais Generais, 1 Desembargador, 1 Policial Federal, 2
Legisladores Federais, 771 Coronéis, 197 Tenentes Coronéis, 5 Aspirantes,
94 Capitães, 38 Majores, 139 Tenentes, e 1.045 “Civis”, totalizando 2.410
assinaturas.9 A reação gerou a promessa de punição, anunciada por Celso
Amorim, Ministro da Defesa. Contudo, o caso se encontra até o momento
em aberto, inclusive sem a concretização das punições.10
Nesse quadro, é de se compreender que a responsabilização
penal encontra maior e mais ampla objeção. Alicerçado na Doutrina de
Segurança Nacional, o Poder Judiciário brasileiro preserva sua história
enquanto parte do institucionalismo do regime repressivo (PEREIRA,
2010), como se observa na validação da Lei de Autoanistia do país.
Como afirma o Ministro da Corte Constitucional do país, Marco Aurélio
de Mello, a ditadura civil-militar de 1964-1985 foi “um mal necessário”
diante do “mal que se avizinhava” [comunismo],11 o que explica a postura
dessa instituição sobre o tema.
9
Os manifestos e a integra dos nomes que os assinam podem ser encontrados na página
eletrônica “a verdade sufocada”, veículo editada pelo Coronel Brilhante Ustra, que comandou um
dos principais centros de tortura e execuções da época (DOI-CODI em São Paulo). Disponível em:
<http://www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=6661&Ite
mid=1>. Acesso em: 17 mar. 2012.
Em 06/03/2012, o Ministro de Defesa afirmou: “Eu não vou me estender sobre isso, esse assunto
já foi objeto de orientação, o assunto se encontra nesse momento nas mãos dos comandantes
das Forças”. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2012/03/apos-criticas-demilitares-amorim-pede-respeito-autoridade-civil.html>. Acesso em: 17 mar. 2012.
10
11
MELLO, Marco Aurélio. “Ditadura foi um mal necessário”, diz ministro do STF. Entrevista
concedida ao Programa É noticia, da Folha de São Paulo. Disponível em: <http://mais.
uol.com.br/view/e0qbgxid79uv/ditadura-foi-um-mal-necessario-diz-ministro-do-stf04029C3768D8C14326?types=A>. Acesso em: 28 out. 2010.
A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos...
157
O impacto da justiça de transição na cultura política
Entende-se por cultura política um sistema de crenças e valores
dos indivíduos que orientam seu comportamento nas relações sociais.
A construção de uma determinada variação cultural se dá no processo
de socialização desse indivíduo. Aí constam inevitáveis experiências
históricas que são transmitidas entre gerações. Embora não sejam
lineares e contínuos, é comum se manterem vivos determinados valores
que funcionem como uma bússola para o pensamento e comportamento
humano inserido em uma coletividade. É por isso que é difícil alguém
sair desnudo pelas ruas de qualquer cidade urbana no século XXI e não
provocar algum “choque cultural”.12 Assim como no controle exercido
sobre o corpo (REICH, 1972), a formação cultural dos indivíduos incide
no comportamento político das instituições, na eficácia e na legitimidade
de determinada organização política.
Isso é que sustentam os principais teóricos do
comportamentalismo político. Tanto na antiguidade, com Platão em a
República, como no pensamento moderno de Tocquevile (Democracia
na América, 1832) e de Weber (Ética protestante, 1904), a relação
entre regime político e a cultura dos cidadãos estava presente.
Todavia, a obra de Almond e Verba sobre cultura cívica (1963) pode ser
considerada como o primeiro estudo mais sólido, a partir do uso das
pesquisas de opinião por amostragem (surveys). No modelo de cultura
dos autores, são identificados três tipos ideais de comportamento que
refletiam na estabilidade das instituições políticas: paroquial (onde
o indivíduo desconhecia o Estado nacional); submisso (conhecia e
se sujeitava apenas) e participativo (preocupado com a participação
política). Além da influência clara dos pensamentos de Tocquevile e
Weber, o cidadão participativo de Rousseau contribuiu na teorização
de uma “cultura cívica” que combinava as duas últimas dimensões
e explicaria a estabilidade democrática. A obra de Almond e Verba
recebeu severas críticas, é verdade,13 mas sua importância segue
Basta citar a forma de chamar a atenção da sociedade para problemas sociais encontrada por
alguns grupos ativistas, como os ciclistas: tirar a roupa em público. Disponível em: <http://www.
worldnakedbikeride.org/>. Acesso em: 21 jul. 2011.
12
13
Principalmente pela universalização monocultural identificada com os Estados Unidos, modelo
158
Rodrigo Lentz
reconhecida pelo pioneirismo no estudo do comportamento político
para analisar a organização política social.
Outra noção importante é a de capital social. Primeiro, ele
pressupõe a participação do indivíduo em alguma(s) coletividades
(redes sociais). Segundo, essa participação lhe proporciona algum valor
útil (recurso) na convivência social neste mesmo seio social ou em
outros. Essa adesão pode ser de cunho individual instrumental a partir
da expectativa de reciprocidade (BOURDIEU, 1985) ou desinteressada,
sem expectativa de retorno (altruísta). Apesar da imprecisão conceitual,
Portes (1998) aponta Coleman (1990) como um dos precursores do
conceito de capital social enquanto construção do capital humano. A
institucionalização do capital social se dá a partir da obra de Putnam
(1995 e 1996), que pega o conceito emprestado de Coleman (GONZÁLEZ,
2011) e o atrela ao associativismo e à confiança recíproca das pessoas
como forma de resolução de seus problemas e anseios sociais. Contudo,
como chama atenção Portes, o capital social também pode ter sua faceta
“negativa” identificada com um “sufocamento individual pelo coletivo”,
cujas visões “apaixonadas” parecem desconsiderar.14
Neste tocante, os valores de autoexpressão de Inglehart e
Wenzel (2009) ressaltam a importância de um suposto individualismo
“não egoísta” que, ao contrário de que afirma Putnam, seriam causa
de um maior engajamento político entre os indivíduos, preocupação
com questões de ordem pública (meio ambiente), tolerância
(homossexualismo) e igualdade (de gênero). Essa obra, em certa
medida, segue um princípio causal das teorias de modernização
(LIPSET, 1993; PRZEWORSKI, CHEIBUB, LIMONGI, 2000; BOIX,
2006; ACEMOGLU, ROBINSON, 2006): na medida em que a
sobrevivência é garantida (promoção do bem-estar social) as estratégias
de vida dos indivíduos são direcionadas para valores pós-materialistas.
A estrutura socioeconômica das sociedades industriais moldava
relações sociais hierarquizadas. Com a transformação econômica em
movimento na direção da sociedade de serviços, as relações se tornam
mais complexas e diversificadas. A satisfação das questões materiais
e cognitivas (educação e acesso a informações massivas) diminuiria
cultural tido como ideal pelo estudo. Os autores inclusive organizaram livro onde convidaram
alguns críticos a escrever suas ressalvas: The Civic Culture Revisited, 1989.
Ele se refere ao culto ao comunitarismo que pode reprimir a individualidade. Receio que, em
parte, pode ser explicado por sua velha (Cuba) e nova (E.U.A.) nacionalidade.
14
A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos...
159
as restrições às escolhas dos indivíduos proporcionando um aumento
da autonomia humana. Em que pese ao claro viés etnocêntrico e aos
pressupostos liberais do desenvolvimento socioeconômico, o trabalho
conta com uma ampla base de pesquisa empírica realizada desde a
década de 80 em quase todos os países do mundo.
Não obstante, esses estudos buscam explicar o surgimento
e a consolidação da democracia a partir da cultura política dos
indivíduos em uma determinada sociedade política. Desse modo, há
um efeito de congruência entre as instituições políticas e os valores dos
indivíduos. Logo, é incidindo na formação de valores dos indivíduos,
e não em engenharias institucionais, que o problema da consolidação
democrática e sua própria qualidade (ou melhor, efetividade universal)
podem encontrar uma saída exitosa. Essa compreensão se opõe ao
posicionamento que defende uma primazia das instituições políticas no
constrangimento do comportamento individual em determinada direção
(SHUGART, CAREY, 1992; TSEBELIS, 2009; NORRIS, 2008). Além
disso, outro ponto de corte entre esses dois campos teóricos se refere
às motivações da atitude humana. Enquanto o enfoque culturalista
enfatiza as estruturas psíquicas internalizadas irracionalmente (a força
do inconsciente), aquele institucionalista aposta na escolha racional,
calculada friamente entre custos e benefícios.
Inseridos nessa controvérsia, os Direitos Humanos guardam em
sua formação histórica moderna (COMPARATO, 1999) uma ânsia desde
a II Guerra Mundial: não repetir as atrocidades experimentadas nesses
eventos traumáticos de massiva e generalizada violência humana. Está
aí uma determinada unidade de valores (iluministas) que permitiu um
movimento de universalização desses através de um consenso, possível e
não pleno, sintetizado na Declaração Universal dos Direitos do Homem
(GONZÁLEZ, 2006). Mas como conseguir isso? O simples reconhecimento
institucional, seja nacional ou internacional, já se mostrou insuficiente,
nem universalizando e tão pouco evitando a divisibilidade desses direitos
mínimos relativos à integridade física e à vida.
Nesse sentir, a justiça transicional aponta para uma superação
desse institucionalismo fracassado dos Direitos Humanos e busca
saídas com raízes culturais para o problema da efetivação desses
direitos pelo Estado. É verdade que a direção continua sendo, em
certa medida, o método democrático e as liberdades civis e políticas.
Por outro lado, é perceptível a relevância da dimensão valorativa dos
160
Rodrigo Lentz
cidadãos como variável explicativa da consolidação democrática e da
qualidade desse regime.
A pesquisa empírica de Sikkink e Walling demonstra que
países com equivalentes níveis de método democrático como o Brasil,
Argentina e Chile15 apresentam diferentes níveis de respeito aos valores
básicos ligados ao programa político “democracia”. É claro que outros
fatores estruturais são explicativos, mas as evidências apresentadas
identificam que uma transição sem tratamento valorativo do passado
violento acusou resultados relevantes (negativamente) na prática dos
direitos humanos básicos no caso brasileiro.
Será possível estabelecer essa mesma relação quanto à cultura
política dos cidadãos sobre o regime democrático? Em outras palavras,
até que ponto a forma como o país lida com seu passado de violência
política recente incide na cultura política dos cidadãos sobre os chamados
“crimes de lesa-humanidade”? A resposta para esse questionamento
implica a análise da tolerância dos cidadãos quanto a essas práticas
antes e depois dos mecanismos da justiça transicional. Fontes de dados
empíricos de que até o momento não se dispõe.
Apesar disso, acredita-se que é possível mensurar a dimensão
valorativa sobre os regimes militares dos cidadãos e cidadãs de Chile,
Argentina e Brasil. A maneira sugerida é verificar a aceitação de um
governo militar antes e depois dos mecanismos da justiça transicional
nesses países como forma de verificar seus efeitos, seja em razão de sua
presença ou de sua ausência.
Ano
País
Argentina
Brasil
Chile
1995-1999
2006
26,00%
45,00%
27,00%
11,00%
35,00%
18,00%
Quadro 1: Percentual de entrevistados que acham um
governo militar muito ou bastante bom.
Fonte: Pesquisa Mundial de Valores.16
Segundo os dados de uma agência de mensuração mundial da democracia liberal (procedimental),
Freedom House (<http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=1>).
15
16
Disponível em: <http://www.worldvaluessurvey.org/>.
A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos...
161
Nessa variável, fica evidente que a aceitação pela população
de regimes militares apresentou significativa queda no Chile e
na Argentina após o desenvolvimento dos mecanismos da justiça
transicional mencionados. De modo contrário, no Brasil os índices
de aceitação seguem bastante elevados, apesar da queda. Mais de um
terço da população recebe positivamente a possibilidade de um governo
comandado pelos militares. Essa tendência cultural brasileira já foi
identificada também por González e Castro (2008), manifestada por
meio da preferência de um modo de governar tecnocrático e autoritário.
Outro dado interessante é em relação à possibilidade de tomada
de poder pelo exército ante um governo “incompetente”. Nesses dados
não é possível fazer o antes e depois dos mecanismos, pois foi inserido
na base de coleta apenas em 2005/2006. Ainda assim, não é difícil
perceber o quão sintomáticos das diferentes maneiras de lidar com o
passado autoritário.
Ano
País
Argentina
Brasil
Chile
1995-1999
58,00%
26,00%
48,00%
Quadro 2: O exército tomar o poder quando o governo
é incompetente não é essencial em uma democracia.
Fonte: Pesquisa Mundial de Valores.
Esses dados evidenciam que, na opinião do brasileiro e da
brasileira, um golpe de Estado semelhante ao de 1964 não seria algo
alienígena do que entende por Democracia. Isso indica o quanto ainda
está presente na cultura brasileira a leitura sobre o passado autoritário
com base nas lentes da Doutrina de Segurança Nacional. Ainda que a
população tenha elegido uma ex-guerrilheira, tudo leva a crer que segue
a legitimar a violência do Estado e a quebra das regras democráticas
para resolução de problemas sociais. Por outro lado, essa evidência
aponta para o impacto positivo da justiça transicional nos valores pródemocracia no Chile e na Argentina.
Não obstante, será que essa relação sobrevive quando analisada
a dimensão “participação” da cultura política dos países analisados?
162
Rodrigo Lentz
A categoria “líder forte” é associada pela literatura da cultura política
como um traço de governo autoritário, que centraliza poder e onde a
participação do cidadão e da cidadã não são valores importantes.
Ano
País
Argentina
Brasil
Chile
1995-1997
2005-2006
36,00%
50,00%
39,00%
48,00%
64,00%
33,00%
Quadro 3: É importante ter um líder forte?
Fonte: Pesquisa Mundial de Valores.
O caso brasileiro, novamente, chama atenção: quase dois terços
da população têm simpatia por esse líder autoritário. Por outro lado, a
associação entre os mecanismos transicionais e a mudança de valores
pró-democracia perde um pouco de força nessa variável. Se o Chile
apresenta uma queda nesse traço valorativo autoritário, a Argentina
já demonstra um aumento que desautoriza essa relação. É provável
que aí existam outros fatores não identificados com os mecanismos da
justiça transicional.
Considerações finais
Este texto se propôs a investigar muito brevemente duas
inquietações: até que ponto a chamada justiça transicional incide na
cultura política pró-direitos humanos e se os caminhos sugeridos por
esse programa de transição correspondem aos postulados das teorias
da cultura política. Em que pese à dificuldade em obter dados do “antes
e depois” que possibilitassem uma melhor mensuração do impacto da
justiça transicional nos valores dos indivíduos sobre os crimes de lesahumanidade, tem-se que os resultados de alguma forma contribuem
para a compreensão dessas questões.
Há indícios que, naqueles países onde se implementaram as
políticas da justiça transicional – comissões da verdade, julgamentos
A justiça transicional entre o institucionalismo dos direitos...
163
penais, reparações, reformas institucionais e políticas de memórias
–, os valores dos cidadãos em respeito ao método democrático e a
oposição da volta do autoritarismo de coturno ao poder receberam
impactos positivos dos mecanismos da justiça transicional. Por outro
lado, no Brasil, o efeito indica ser o inverso: os brasileiros e as brasileiras
permanecem reconhecendo nas Forças Armadas um poder moderador
e político, em desprezo às instituições democráticas como forma de
resolução de conflitos e atendimento de demandas sociais.
Nesse sentido, também é possível concluir que a justiça
transicional parte do pressuposto que a estabilidade democrática e a
qualidade da democracia (efetivação dos direitos humanos) passam
por uma mudança cultural. No entanto, os caminhos indicados por essa
perspectiva não incluem, por exemplo, mecanismos de participação
política como forma de construção de uma cultura política sólida e
que possibilite o respeito aos direitos humanos. Considerando que
a participação política é alçada pela literatura da cultura política
como fundamental para tanto, se percebe um descompasso teórico e
prático nesse sentido.
É importante notar que, ao menos um dos mecanismos,
o exercício de memória, sinaliza claramente a disposição dessa
perspectiva de transição em construir socialmente uma tradição
cultural de respeito aos direitos humanos. Contudo, os mecanismos
que se direcionam especificamente a instituições políticas deixam de
lado outras importantes instituições sociais que são fundamentais na
construção de uma tradição pró-direitos humanos: família, escola,
religião e meios de comunicação. Vale lembrar que boa parte dessas
instituições fez parte ativa do regime autoritário brasileiro, sendo
fundamentais para legitimar mais de vinte anos de repressão política.
Se é verdade que a cultura política é fundamental para a consolidação
do regime democrático brasileiro, parece ser recomendável que a justiça
transicional não se limite às soluções que se restrinjam às instituições
políticas tradicionais.
164
Rodrigo Lentz
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Ditadura Militar Brasileira: esperando a
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Verdade e Reconciliação
Ana Carolina Guimarães Seffrin
- Nestes cemitérios gerais não há a morte
gosto, táctil, sensorial, com aura, ar de
banho morno. - Certo bafo que banha os
vivos em volta da banheira, dentro da qual
o morto banha na sua auréola espessa. - A
morte aqui é ao ar livre, seca, sem o ressaibo
natural noutras mortes e no sabor de Rilke
ou de cravo. -Ela nunca é a presença travosa
de um defunto, sim morte escancarada,
sem mistério, sem nada fundo. -Nestes
cemitérios gerais não há morte isolada,
mas a morte por ondas para certas classes
convocadas. - Nunca ela vem para um só
morto, mas sempre para a classe, assim
como o serviço nas circunscrições militares.
[...] - E grande ou não, a nova classe,
designada pelo ano, segue para a milícia de
onde ninguém se viu voltando.1
Kafka à beira-mar
Novos sistemas, novos conhecimentos,
novas técnicas, novo jargão... Por outro
lado, existem lembranças que, por mais
tempo que se passe e aconteça o que
1
MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e outros poemas. Rio de Janeiro: Objetiva,
2008, p. 108-109.
172
Ana Carolina Guimarães Seffrin
acontecer, não conseguimos de maneira
alguma apagar de nossa memória.
Lembranças que não se desgastam. Que
restam em nosso íntimo, irremovíveis como
pedras angulares.2
Planeta Terra, Brasil, setembro de 2011. Depois de estendidos
anos de debates, a Câmara dos Deputados aprova a Comissão Nacional
da Verdade, projeto que esteve engavetado e encaixotado até criar teias
de aranha. Originalmente prevista no terceiro Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDU), assinado pelo ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, em 2009, a comissão “parece” ser o único caminho passível
de análise do passado de violações de direitos humanos sucedidas no
Estado brasileiro entre 1946 e 1988.
Depois de sofrer inúmeras alterações – sobretudo para não
afetar os confins da Lei de Anistia –, o direito à memória e à verdade
histórica nessa que foi a todos os destinos uma “transição pactuada”
ressuscita diretamente da tumba – afinal o projeto esteve enterrado
durante anos – a fim de apresentar-se uma nova narrativa da história
do Brasil. Pretendendo manter-se atuante por um período de dois anos,
a Comissão será composta por sete membros nomeados pelo Poder
Executivo e estará subordinada à Casa Civil. Ao fim e ao cabo, são dois
para analisar mais de quarenta anos de violações.
A moeda apresenta suas duas caras: de um lado, seria a urgência
de que as verdades brutais relativas às violações venham à tona,
assim como a chegada de informações a respeito de casos de torturas,
desaparecimentos forçados, mortes e sofrimentos por parte das vítimas.
De outro, a assunção de uma velha queixa dos militares, aquela relativa
à ideia de que os trabalhos “irão reabrir velhas feridas”. Sem qualquer
poder punitivo, a Comissão terá a dupla tarefa de observar e cumprir
atentamente os preceitos da Constituição Federal de 1988, como
também do principal legado ditatorial: a Lei de Anistia.
Os governos recuaram anos-luz para o estabelecimento de uma
Comissão de Verdade e Reconciliação. O tempo passou, e o assunto
continuou na pauta da agenda política brasileira. Não poderia ser
diferente: como Anthony Pereira observa, o Brasil, com sua arraigada
2
MURAKAMI, Haruki. Kafka à beira-mar. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2008, p. 123.
Uma Kafkalândia chamada Memória da Ditadura Militar Brasileira...
173
herança de legalidade autoritária, em comparação com Argentina
e Chile, tecnicamente não adotou medidas transicionais, como a
anulação da autoanistia militar, o julgamento de dirigentes dos
regimes ditatoriais, tampouco a adequada instauração de Comissões de
Verdade.3 O exame e esclarecimento das violações de direitos humanos
ocorridas entre 1946 e 1988 aparentemente nunca saia do papel,
tampouco dos discursos de politicagem partidária. Por consequência,
parte da sociedade brasileira “esperou” – ainda que existam aqueles
que nada esperaram – o esclarecimento dos fatos ocorridos em prol da
reconstrução da memória coletiva.
Enquanto mais de vinte países no mundo inteiro já criaram
distintos grupos para investigar períodos marcados por ditaduras
e conflitos sociais, o Estado brasileiro, membro do Conselho de
Segurança e Conselho de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas, um dos porta-vozes da diplomacia humanitária, ou
está vivendo um romance de Franz Kafka4 ou, conforme aquele velho
ditado, “está empurrando com a barriga” o assunto. Passados mais de
vinte anos do fim da Ditadura Militar, o comprometimento público
do Estado para com as atrocidades é nebuloso como uma nuvem num
dia de tempestade.
Num paralelo de oito perspectivas – anulação de autoanistia militar, civis isentos da justiça
militar, expurgos no Judiciário, manutenção da Constituição promulgada pelo regime militar,
dirigentes dos regimes autoritários levados a julgamento, comissões de verdade oficiais,
indenização das vítimas e expurgos na polícia e nas forças armadas – o Brasil cumpre tão somente
com a promulgação de uma nova Constituição e indenização das vítimas. (PEREIRA, Anthony W.
Ditadura e repressão: o autoritarismo o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São
Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 238).
3
4
Se há um tema constante nas obras desse gigante escritor de ficção da língua alemã, esse mote
é o da alienação, os conflitos da existência humana, o realismo objetivo que sentencia metáforas
atemporais. Apenas um exemplo: “Há questões que não poderíamos superar se não estivéssemos
livres delas pela própria natureza”. Agora, reflita-se na Memória da Ditadura Militar e se há
possibilidade de livrar-se dela. Ou melhor: ponderar a utilidade dos escritos kafkanianos. Kafka
indubitavelmente encontraria um terreno de inspiração no Brasil. Sua obra a “A Metamorfose”
seria nossa “transição” para a democracia: de humano a inseto rastejante – um país que rasteja
com dificuldades plenas para consolidar pilares democráticos elementares; “O Castelo” consiste
na cidade de Brasília, com seus porões, os da amnésia, recheados de segredos e ameaças; a
“Colônia Penal” a efígie fidedigna de um país que não consegue desvencilhar-se de seu passado
histórico, o de colônia, e passa a viver num ritmo “harmonioso” de autoritarismos, oligarquias,
pactos entre silenciados e silenciosos, imperialismos ditatoriais. Por fim, “O Processo” equivale a
toda uma sociedade que acorda certa manhã e, sem motivos conhecidos, é presa e sujeita a longo
e incompreensível processo atemporal por crimes não revelados – aqueles que dizem respeito à
Memória Histórica do país.
174
Ana Carolina Guimarães Seffrin
No âmbito do Direito Internacional, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos já se manifestou5 a respeito da situação afirmando
que “valora” as ações por parte do Estado para agilizar o conhecimento e
reconhecimento das atrocidades cometidas durante a Ditadura Militar,
sobretudo a iniciativa da criação da Comissão Nacional da Verdade,
exortando o Estado a implementá-la, em conformidade com os critérios
de independência, idoneidade e transparência na seleção de seus
membros. Todavia, julga pertinente que as atividades e informações
que, eventualmente, recolha essa Comissão, não substituam a obrigação
do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial
de responsabilidades individuais, através de processos judiciais penais.
Apesar do constante exercício de cabo de guerra político,
a Comissão, agora aprovada, terá de ser capaz de cumprir com os
parâmetros internacionais de autonomia, independência e consulta
pública. Nessa visão, suas consequências são múltiplas, momento em que
se introduz um convite de exame dos valores democráticos da República
brasileira pós-Golpe, bem como uma apurada reflexão histórica.
O presente escrito pretende realizar uma análise – um pouco
esperançosa – a respeito dos desafios e perspectivas da Comissão
Nacional da Verdade a partir de uma breve análise de experiências
vividas em outros países – especificamente, Bangladesh e Guatemala
– e como essa instituição poderia lograr frutos em termos psicológicos,
históricos, políticos, jurídicos e sociais. A tonalidade das palavras
seguintes parte da ideia de que a sociedade é uma mescla de Joseph
K. e/ou Dom Casmurro: a partir desse entendimento observa-se que
está na hora de despertar diante do espetáculo. Essas duas perspectivas
sanguíneas serão progressivamente explicitadas e clarificadas; muito
mais do que um rio de meada crítica, as linhas clamam pela urgência
de que os anos ditatoriais sejam relembrados como anos de violações de
direitos humanos e não como tempos de esquecimento nesse que não
chamará aqui de Brasil, senão Kafkalândia.6
5
CASO GOMES LUND E OUTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS. BRASIL. Corte
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Disponível
em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>.
Acesso em: 2 mar. 2012.
6
Grifo nosso.
Uma Kafkalândia chamada Memória da Ditadura Militar Brasileira...
175
Rupturas e descontinuidades: a Verdade e a Reconciliação?
MEFISTÓFELES – Na guerra ou paz, sagaz
sempre é o conceito: De todo ensejo extrairse proveito! É olhá-lo, espiá-lo assim que se
revela; Fausto é a ocasião: tens de apegarte a ela.7
Esgotamentos teóricos a respeito do regime ditatorial vivenciado
pelo Brasil tenderiam a divergências múltiplas; caracterizado como um
“Estado de Exceção” que à época do golpe fora apoiado por determinados
grupos sociais, o país viveu entre 1964 e 1985 um período político tenso
e conturbado. Mesmo com o advento de uma carta constitucional, em
1988, a tensão não teria qualquer possibilidade de finalizar-se facilmente,
sobretudo com as falhas tentativas de “apagar-se” ou “esquecer-se” os
acontecimentos decorridos dos anos de Ditadura Militar. A suspensão da
arbitrariedade ditatorial, nos dias atuais, ainda não foi capaz de silenciar
a temática. O número de vidas que foram “apagadas” e de homens e
mulheres que sofreram todo tipo de violações de direitos contribuíram
de modo decisivo para que o debate não se esgotasse tão somente em
livros de história brasileira.
Uma das claras evidências desse panorama se apresenta com a
tentativa de reconhecimento público e oficial dos abusos cometidos por
meio da Comissão Nacional da Verdade, instituto que serviria como prova
fidedigna do cenário ilustrado. O tempo passou, e o silêncio deu espaço para
que uma espécie de “ânsia” reveladora tomasse corpo; entre os objetivos
dessa Comissão encontra-se a necessidade de acentuar a responsabilidade
do Estado e recomendar reformas do aparato institucional por meio de
um relatório final da Comissão, que não somente serve para que o Estado,
de modo pontual, venha assumir suas responsabilidades, mas também
ajudar na questão vital da implementação de um dos fundamentos da
Justiça de Transição, que é a de reformarem-se as instâncias que tratam
da Justiça e da Segurança Pública.8
7
GOETHE, Johann Wolfang von. Fausto: uma tragédia – segunda parte. São Paulo: Ed. 34,
2011, p. 475.
8
CARTILHA COMISSÃO DA VERDADE. Portal Memórias Reveladas. Disponível em: <http://
176
Ana Carolina Guimarães Seffrin
Dentro desse contexto, o Estado brasileiro convive com um
momento de pressão política interna e externa; desde logo ficará evidente
que os pronunciamentos da Organização dos Estados Americanos a
respeito da “transição” política brasileira9 são a expressão máxima de
insatisfação de órgãos internacionais com as atitudes políticas adotadas em
solo nacional. Internamente, diversas entidades clamam por mudanças,
como seria o caso do Grupo Tortura Nunca Mais, o Centro pela Justiça e
o Direito Internacional – CEJIL –, dentre tantas outras organizações. O
compromisso dos governos com o assunto construiu-se pelo seu inverso,
o (des)compromisso e a omissão. Como resultado, cada acontecimento
torna-se uma espécie de novo desejo para que se construa um modelo de
justiça transicional capaz de oferecer sentido ao passado.
O empecilho criado pela Lei de Anistia para a realização de
investigações foi a cartada triunfante dada pelos militares, jogada essa
que criou um nicho de impunidade sem dimensões. As emaranhadas
teias contraditórias do presente sugerem que a Comissão desempenhará
um papel complexo e também “complicado” ante as reclamações de
militares pela sua mera existência – ainda que não tenha qualquer
caráter punitivo, determinados setores das Forças Armadas – como os
reservistas – posicionam-se contrariamente à institucionalização de um
órgão predisposto a escutar as vítimas e a realizar um relatório final que
será disponibilizado à sociedade. A redemocratização inacabada tentará,
agora, afugentar os piores demônios. Pelo fio da meada percorrido
como, entretanto, é possível analisar o papel da Comissão, quer dizer,
sua importância na história política brasileira?
A resposta para a pergunta sugerida resulta em absoluta reflexão
especulativa. Ante a impossibilidade de um exercício de adivinhação
a respeito do futuro da Comissão Nacional da Verdade brasileira,
prevendo-se o futuro, resta encontrar nas narrativas de outros países
prováveis respostas para as dúvidas que são colocadas; ou, quem sabe,
www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/media/Cartilha%20Comiss%C3%A3o%20
da%20Verdade%20-%20N%C3%BAcleo%20Mem%C3%B3ria.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2012.
O último chamamento da OEA deu-se com recente notificação, para o Brasil, a respeito da
morte do jornalista Vladimir Herzog em 25 de outubro de 1975. Militante do Partido Comunista
Brasileiro, foi torturado até a sua morte em São Paulo. Sua morte gerou uma onda de protestos,
mobilizando um processo internacional em prol dos direitos humanos na América Latina. A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) abriu oficialmente investigação sobre as
razões pelas quais o Brasil não investigou e puniu os responsáveis pelo assassinato de Herzog.
9
Uma Kafkalândia chamada Memória da Ditadura Militar Brasileira...
177
formas de interpretar-se a presente discussão a respeito dos desafios
que entram em cena.
Jan-Michael Simon, em um instigante e importante artigo a
respeito da “Comisión para el Esclarecimiento Histórico, Verdad y
Justicia en Guatemala”,10 analisa os limites de caráter pessoal, material
e temporal das atividades de investigação da Comissão, assim como o
marco jurídico de suas atividades, realizando um estudo a respeito do
funcionamento dessa instituição.
A Guatemala, esse país localizado na América Central,
subscreveu, em 1994, o chamado “processo de paz guatelmateco”, a
primeira vez em que a Unidade Revolucionária Guatelmateca (URGN)
e o governo da Guatemala consideraram o direito à verdade como um
direito de todo o povo.
O Secretário Geral da ONU, na época, nomeou como primeiro
membro da CEH o professor alemão de Direito Internacional, Dr.
Christian Tomuschat; depois de negociações, o professor permaneceu
como “coordenador” dessa comissão. A ideia de nomear um coordenador
estrangeiro estava baseada no fato de que este não estaria sob suspeita
de seguir objetivos políticos. Posteriormente, Christian nomeou outros
dois integrantes; a diferença das comissões de verdade nacionais na
Argentina, Chile ou África do Sul, nas quais contavam com muito mais
integrantes. A única comissão que contava com três integrantes – no
mesmo modelo da Guatemala – foi a de El Salvador. É evidente que os
trabalhos não transcorreram facilmente; o governo da Guatemala, em
um determinado momento, chegou a ameaçar ao professor de que seria
expulso da Guatemala como persona non grata.
Para garantirem-se a objetividade, a equidade e imparcialidade no
trabalho da CEH, resultava necessário dar-lhe um estatuto jurídico que
lhe permitisse cumprir com seu mandato, livre de pressões ou ações que
pudessem perturbar sua independência. De outro modo, todo documento
produzido pela CEH também deveria resultar “inviolável”; depois de
realizadas as tarefas de preparação, como aprovação de pressuposto,
a busca de fundos, questões logísticas, recrutamento de pessoal e
capacitação, a CEH foi criada formalmente e iniciou seu período de
trabalhos. Ao todo, foram 269 profissionais, pessoal de apoio e segurança.
10
SIMON, Jan-Michael. La Comisión para el Esclarecimiento Histórico, Verdad y Justicia em
Guatemala. Disponível em: <http://www.ejournal.unam.mx/bmd/bolmex106/BMD10606.pdf>.
Acesso em: 24 mar. 2012.
178
Ana Carolina Guimarães Seffrin
Foi argumentado – e ainda se argumenta – que os acordos não
tinham revestimento jurídico, senão que se tratariam unicamente de
“acertos políticos”; assim, não estando definida a natureza dos “pactos”
dessa comissão, os resultados de suas investigações corriam o risco de
cair no campo minado entre a política e o direito.
Jan-Michael Simon afirma que convém pontualizar que o caráter
da CEH era o de uma instituição híbrida, localizada entre o Direito nacional
e internacional; a CEH não podia ser caracterizada como “nacional”, no
sentido de ser subordinada a uma entidade nacional superior e, pela
mesma razão, tampouco “internacional”. Inobstante esse fato, a Comissão
decidiu usar o termo “direitos humanos” em seu sentido jurídico e não
em sua visão filosófica ou sociológica. O órgão se viu confrontado com o
problema de como “categorizar” os acontecimentos atribuíveis aos grupos
armados insurgentes contra uma hierarquia jurídica.
A solução foi aplicada com a fórmula de investigação “de
violações de direitos humanos”, por um lado, e “violações ao Direito
Internacional Humanitário com responsabilidade dos grupos
armados” sob o título “acontecimentos de violência”, a fim de dar
um tratamento igualitário às partes. Um fato ficou claro: não se
solucionava o problema jurídico, é dizer, o marco de referência legal
da investigação, porque não estavam identificados e muito menos
definidos juridicamente os “princípios”. Sem embargo, o perigo de que
o governo e, principalmente, setores dentro do exército da Guatemala
pudessem criticar a comissão de “parcial” era muito maior do que a
legitimação dos resultados de suas investigações.
Assim, seguiu-se o fundamento da jurisprudência do Tribunal Penal
Internacional da Ex-Iugoslávia, onde se afirmou que “os instrumentos
universais e regionais e os Convênios de Genebra compartem um ‘núcleo’
comum de estandartes fundamentais que são aplicáveis a todo momento,
em todas as circunstâncias e a todas as partes”.
As críticas ao mandato da CEH estavam diretamente relacionadas
às suas limitações; os trabalhos tinham um efeito de recomendação,
não possuindo propósitos ou efeitos judiciais. Tornava-se impossível,
assim, atribuir responsabilidades individuais às pessoas. A Comissão
concluiu que não estava apta para identificar nomes de responsáveis
individuais que estivessem em objeto de esclarecimento. Seu mandato
foi interpretado no sentido de examinar tanto o papel das instituições
do Estado como das estruturas de insurgência. Ainda que a ninguém
Uma Kafkalândia chamada Memória da Ditadura Militar Brasileira...
179
se tenha atribuído “responsabilidade pessoal” por violações, qualquer
observador atento estaria na posição de obter suas próprias conclusões.
O produto das investigações deveria estar definido na seara de “sem
propósitos ou efeitos judiciais”. Muitas organizações interpretaram
isso como o fomento da impunidade na Guatemala; como resultado, a
CEH publicou, em 1999 um exaustivo e autorizado informe final de sua
investigação que consta de 12 tomos.
Fora concluído que a maioria das infrações atribuídas ao Estado
se realizou com o conhecimento ou ordem das mais altas autoridades; em
relação às execuções arbitrárias, desaparecimentos forçados e torturas
adjudicadas ao Estado, afirmou-se que em certas etapas prevalecia
um caráter sistemático, fato esse que levou a CEH a concluir que em
distintas regiões do país foram cometidos crimes de lesa-humanidade,
produtos de denegação da justiça.
Por conseguinte, a Comissão formulou conselhos de reformas
necessárias para preservar a memória das vítimas e seus familiares
e fomentar uma cultura de respeito mútuo e de observância dos
direitos humanos, a fim de fortalecer-se o processo democrático. As
recomendações foram plurais; se aconselhavam desde políticas de
exumações a serem executadas pelo Estado com o fim primordial de
devolver-se a dignidade das vítimas até a revelação pública do perdão,
assumindo, o Estado, suas próprias responsabilidades.
Organizações manifestaram-se positivamente em relação aos
trabalhos da Comissão; reconheceu-se que a atuação permitia “criar
consciência nacional” que assegurasse a sociedade conhecer e reconhecer
seu passado, para que os acontecimentos não voltassem a ocorrer.
Como conclusão: a Comissão da Guatemala foi uma instituição
completamente independente, de caráter não permanente, com o
mandato de esclarecer os acontecimentos violentos e sem o objetivo
de sancionar penalmente os responsáveis. Infelizmente, o Estado
da Guatemala não reconheceu seus crimes. Ainda que o presidente
houvesse pedido perdão pela violência sofrida à população, jamais se
mencionou que essa violência representava, em verdade, infrações
muito graves de ordem jurídica tanto nacional quanto internacional –
não havendo “responsabilidade” do Estado. Simon conclui que, em um
Estado de Direito, os resultados das investigações realizadas por esse
tipo de comissões deveriam ser vinculantes.
180
Ana Carolina Guimarães Seffrin
As lições da Guatemala também não passam despercebidas; diante
de toda a complexidade da situação, ao ser instaurada uma Comissão de
Esclarecimento11 Histórico prestou-se uma “homenagem” ao povo, às
vítimas da violência do passado, aos seus familiares e demais testemunhas
– ainda que, publicamente, o Estado não tenha afirmado que havia violado
o direito nacional e internacional. Sempre que solicitado, o Congresso da
República facilitou o adequado funcionamento da Comissão e o Judiciário
respondeu positivamente. Desde sua fase preparatória de instalação, várias
organizações de direitos humanos fizeram contribuições extremamente
valiosas para o trabalho da CEH e organizações da sociedade civil
também emprestaram apoio contínuo. Os meios de comunicação, tanto
nacionais quanto internacionais, de forma exemplar, cumpriram sua
função de informar, com máxima atenção e respeito. Organizações não
governamentais ajudaram, de forma consubstancial, durante o desfecho
de sua realização. Isso permitiu que a sociedade se mantivesse a par de
cada avanço feito pela Comissão. Também é importante voltar os olhos
para o próprio nome dessa Comissão: esclarecimento histórico.
Buscando esclarecer com toda objetividade, equidade e
imparcialidade as violações de direitos humanos e os atos de violência
que causaram o sofrimento da população da Guatemala, esteve imbuída
na tarefa de preparação de um relatório que contivesse os resultados das
investigações realizadas, a fim de fornecer informações objetivas sobre
os eventos do período; formulou recomendações específicas de incentivo
à paz e harmonia nacional. A Comissão, antes de tudo, recomendou
11
Esse aspecto é importante de ser referido. O maior argumento encontrado pela “ala” contrária
ao estabelecimento de uma justiça de transição em países que viveram passados traumáticos reside
justamente em encontrar “qual verdade” e de quem é a verdade. Não são poucas as manifestações,
na mídia – sobretudo em periódicos – que se utilizam desse subterfúgio argumentativo para evitar
a revisão dos tempos passados. Diz-se que o primeiro objetivo de uma “comissão de verdade” é,
enquanto mecanismo institucional, apurar abusos de violações de direitos. Ocorre que, a busca
pela verdade, mais tem a ver com uma apuração filosófica, que talvez remeta até mesmo aos
hermeneutas – citemos Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, os quais escreveram sobre os
confins filosóficos da palavra. O primeiro problema, portanto, se evidencia. Não seria em vão que os
debates empreendem uma perspectiva infinita de prós e contras. Está-se diante de uma palavra que
mais tem a ver com a filosofia, aos problemas fundamentais da existência e não com o mundo do
direito. A própria inserção dessa palavra na seara jurídica admite um arcabouço de interpretações
intermináveis nas quais os dogmáticos, aqueles fiéis à letra da lei, veriam como um atentado
violento ao pudor. Nesse caso, a “encrenca está feita”. Tanto a ala contrária quanto a favorável ao
estabelecimento de uma Comissão acabam vítimas de um revisionismo de significado a respeito de
um vocábulo, nos confins de um condicionamento metafísico que tende a resultar em nada. Alguns,
como um infortúnio que cai dos céus, se esquecem do que está por trás da cortina.
Uma Kafkalândia chamada Memória da Ditadura Militar Brasileira...
181
medidas de preservação da memória das vítimas, para fomentar uma
cultura de respeito mútuo e observância dos direitos humanos e reforço
do processo democrático.
Em conclusão, é possível adjudicar pontos a serem observados
pela Comissão brasileira a partir da experiência da Guatemala: em
qualquer etapa de análise dos acontecimentos decorrentes dos anos
ditatoriais, há de prevalecer o entendimento de que houve violações
claras ao Direito Internacional, sobretudo ao Direito Internacional dos
Direitos Humanos, a admissão de que em território nacional foram
cometidos crimes de lesa-humanidade; nesse sentido, a primeira tarefa
que a Comissão será a de documentação, da maneira mais objetiva,
das consequências atrozes dos anos ditatoriais – sobretudo, a atroz
consequência jurídica à preservação do direito à verdade e à memória
criada pela Lei de Anistia. O êxito futuro dessa instituição, no Brasil,
terá de estar definido na formulação das reformas necessárias para
preservar a memória das vítimas e familiares. Muito mais do que a
verdade e a busca pela reconciliação, as autoridades governamentais
deverão atentar para a questão fulcral do “esclarecimento histórico”.
A hipocrisia e a encenação: os olhos da cigana
dissimulada
Avante, mocidade nova
O mundo moderno a evoluir-se,
Não sejam néscios, avante!
A Verdade sempre prevalece:
O mar é tenebroso sim!
Mas o real marinheiro, corajoso
Não se atemoriza!
Navega à mercê do vento!
Amaina o vento,
Não se atemoriza!
Navega à mercê do vento!
182
Ana Carolina Guimarães Seffrin
Amaina o vento,
O barco em vira-voltas
Chega são e salvo,
Ao porto desejado [...]12
O que não pode acontecer no Brasil – e seria de se esperar nesse
país em que tudo é possível em termos políticos e não políticos – é
situação semelhante à ocorrida em Bangladesh. Considerado um dos
países mais corruptos do mundo – “coincidência?” –, os sucessivos
governos têm tentado resolver esse problema por meio da introdução
de novas leis e estabelecimento de comissões anticorrupção. No ano de
2008, o governo interino desse país aprovou planos para a formação
de uma Comissão de Verdade e Responsabilidade. Seus objetivos eram
claros: a busca pela revelação de acordos corruptos e ilícitos de riqueza.
O governo, juntamente com os militares, não tinha interesse em julgar
ninguém, senão colher provas.
A Suprema Corte de Bangladesh, seguindo a linha de raciocínio
decisória de um tribunal inferior, declarou recentemente que a
Comissão era ilegal e inconstitucional.13 O painel criado pelo governo,
cuja ideia basilar tinha por propósito limpar um grande acúmulo de
casos de corrupção, teria um funcionamento curioso: ao mesmo tempo
em que não se desejava julgar ninguém, descaradamente pessoas
estavam sendo acusadas, e algumas, “corruptas”, estavam recebendo
“anistia” em troca de informações. A Suprema Corte deixou claro
que qualquer acusação contra um indivíduo deveria ser tratada de
acordo com a lei, não havendo, de igual modo, nenhuma disposição
constitucional que permitisse oferecer uma anistia para os indivíduos
acusados de corrupção.
Ativistas afirmaram que a menos que houvesse uma forte
vontade política e conscientização pública, a corrupção iria continuar
a assolar o progresso do país; outros opinaram pela circunstância de
que a Comissão iria criar mais problemas do que resolver: os crimes
SINCRÓ, Visnum Porobo. Poema Bangla Desh Viva, 1971. Disponível em: <http://
archiveofgoanwritinginportuguese.blogspot.com/2011/04/visnum-porobo-sincro-bangla-deshviva.html>. Acesso em: 24 mar. 2012.
12
13
ETHIRAJAN, Anbarasan. Bangladesh truth commission is declared ‘illegal’. Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/news/world-south-asia-13410976>. Acesso em: 23 mar. 2012.
Uma Kafkalândia chamada Memória da Ditadura Militar Brasileira...
183
permaneceriam acontecendo e a comissão tinha um caráter de medida
temporária diante de circunstância especial. Dito e feito: a decisão da
Suprema Corte ratificou o prognóstico e os ativistas conjecturaram de
forma correta. A Comissão se tornou palco de encenação.
Bangladesh lembra a tese de Hannah Arendt14 a respeito
do hipócrita, aquele que está a serviço de uma falsa virtude,
desempenhando um papel com a mesma coerência do ator na peça –
em grego “hipócrita” significa ator de teatro – povoando o mundo com
fantasmas enganadores; a pretensa tentativa de enganar o povo com o
falso testemunho de uma nova história a ser contada.
Ainda que a Comissão de Verdade de Bangladesh tenha
um aspecto um tanto quanto semelhante à brasileira “Comissão
Parlamentar de Inquérito” (CPI), a famosa investigação conduzida pelo
Poder Legislativo que transforma a casa parlamentar em uma oitiva
de testemunhas, seu escopo era iniciar um “curativo” (semelhante à
situação brasileira de instauração de uma Comissão de Verdade depois
de longínquos anos de uma ferida latejante no seio da sociedade)
diante de uma ferida histórica bengalês: a corrupção. O desfecho dos
trabalhos de qualquer comissão que venha ser futuramente instaurada
no Brasil não pode ter um “tom” teatral ou quem sabe hipócrita. O país
deve viabilizar uma comissão que seja, antes de tudo, “pedagógica”;
sua estrutura não deve estar centrada num revanchismo político, muito
menos engrenagem do “acusa-acusa”, senão submeter evidências de
nosso passado por meio de testemunhos.
14
“[...] não há um alter ego perante o qual ele possa aparecer em sua forma verdadeira, pelo menos
não enquanto está no palco. Sua duplicidade, portanto, rebate em si mesmo, e ele é vítima de sua
mendacidade tanto quanto os outros a que está iludindo. Em termos psicológicos, pode-se dizer
que o hipócrita é ambicioso demais; não só quer aparecer virtuoso perante os outros como também
deseja convencer a si próprio. Com isso, ele elimina do mundo, que povoou com ilusões e fantasmas
enganadores, o único núcleo de integridade de onde a aparência verdadeira poderia ressurgir, o
próprio eu incorruptível. Pois, embora provavelmente nenhum indivíduo vivo, em sua capacidade
de agente, possa pretender ser incorrupto e além do mais incorruptível, isso talvez não se aplique
a este outro eu, que observa e atesta, e perante o qual devem aparecer, se não nossos motivos e as
sombras do nosso coração, pelo menos nossas palavras e nossas ações. Como testemunhas não de
nossas intenções, mas de nossa conduta, podemos ser falsos ou verdadeiros, e o crime do hipócrita
é que ele presta falso testemunho contra si mesmo. O que torna tão plausível considerar a hipocrisia
como o vício dos vícios é que, de fato, a integridade pode existir sob todos os demais vícios, menos
sob ela. É verdade que apenas o crime e o criminoso nos colocam diante da perplexidade do mal
radical; mas somente o hipócrita é realmente podre até o fundo.” (ARENDT, Hannah. Sobre a
revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 144-145).
184
Ana Carolina Guimarães Seffrin
De outro modo, esse enredo entre política, hipocrisia e
teatralidade, no caso brasileiro, pode estar fincado na visão clara
– e realista – de que não estaríamos necessariamente seguros
“historicamente” com o desenrolar de uma Comissão cujos trabalhos
foram desempenhados puramente por autoridades governamentais
– ao contrário da situação da Guatemala, o Brasil não chamará
autoridades “estrangeiras” possivelmente isentas de “pré-juízos” de
valor. Estamos nas mãos dos desejos das autoridades governamentais.
Será Arendt quem perceberá o perigo dessa situação, na medida em
que é evidente que os fatos não estão seguros nas mãos do poder. “Os
factos afirmam-se a si próprios pela sua obstinação e a sua fragilidade
está estranhamente combinada com uma grande resistência à
distorção – essa mesma irreversibilidade que é o cunho de toda a
acção humana”;15 correm-se, portanto, “riscos”, quando Comissões
são criadas, e esses arrojos assumem-se de igual modo em relação
aos grupos e indivíduos em conflitos na época em que, hoje, terão a
oportunidade de “manifestar” publicamente seus testemunhos, mas
também seus interesses parciais e adversos. Se, de um lado, parece
ser fundamental a adoção de políticas por parte do Estado brasileiro
que visem ao resgate da memória histórica; de outro, essa atitude
deve estar conformada com as aprendizagens retidas de outros países
que experimentaram ou continuam experimentando ensaios sólidos
em matéria de Justiça Transicional. Em longo prazo, será impossível
definir – como num exercício de adivinhação – as consequências
pontuais da instauração de uma comissão de verdade, como a que
entrará em funcionamento nesse país; é de se esperar que erros sejam
cometidos, assim como acertos.
Há um ponto que não pode ser esquecido; qualquer experiência
que venha a se desenvolver causará impacto direto na “revisão” da
história brasileira. Em um breve exame, seria possível admitir como
um primeiro resultado de uma comissão no Brasil um interessante
passo e oportunidade de verificarmos os acontecimentos sofridos e
revisarmos as páginas da história; mas não seria tão somente isso: ante
a crescente influência dessa espécie de paradigma antirrevisionista
dos fatos advindos durante o período ditatorial, esse exercício de
memória que também é um exercício de esquecimento, agora estará na
15
ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Lisboa: Relógio D`Água Editores, 1995, p. 52.
Uma Kafkalândia chamada Memória da Ditadura Militar Brasileira...
185
guarida de uma Comissão que, perante as “soluções” ortodoxas que os
militares legaram à sociedade, terá de vivenciar um desafiador cenário
completamente reformulado.
A complexidade dessa paisagem política em um país como o
Brasil é de dimensões avassalares. O comprometimento das autoridades
governamentais, o acompanhamento pela mídia – assim como o papel
que a mesma desempenhará –, a academia universitária realizando a sua
constante ação de crítica e análise, ademais de toda uma sociedade, seriam
esses os atores que estarão envolvidos “nessa trajetória” a ser vivenciada.
Há de se ter em mente que, acima de tudo, é necessário ver na Comissão de
Verdade brasileira uma legítima revolução das nossas práticas e costumes
constitucionais e institucionais. Pela primeira vez depois de muitos anos
existe uma chance de questionamento do passado. O descontentamento
dos setores que foram pungentemente prejudicados.
Arendt transporta, por fim, um termo “conceptual”; poderíamos
chamar de verdade àquilo que não podemos mudar, o que, em
conformações humanas, seria o solo no qual nos mantemos e o céu que
se estende por cima de todos;16 não há espaço para ingenuidade: não
podemos, com uma varinha mágica, esperar que o passado seja diferente,
belo e fantasioso, que a Ditadura Militar brasileira não tenha sido
um ato impositivo e autoritário, de Forças encasteladas no Congresso
Nacional, porque o foi e serão os acontecimentos históricos – nebulosos
e não nebulosos – que se sustentam acima de nós, como um céu. O caso
brasileiro é sui generis, atípico e à “parte”: contém elementos próprios,
de agentes que protegeram ideologias e as imagens dos impactos da
realidade e da verdade no bojo de conflitos e colisões, seja porque os
dirigentes da época induziram tal, seja porque certos dirigentes atuais
continuaram e continuam, na mesma vertente das oligarquias eternas e
imortais, a controlar e induzir fatos que não condizem, necessariamente,
com o passado.
Um fato parece vir à tona: o que fora vivido em termos políticos
durante a Ditadura Militar brasileira foi uma oposição clássica. “Insistindo
no alcance dos dois termos, direita e esquerda, ninguém se limita a
verificar que, na mecânica das forças políticas, tendem a formarem-se
dois blocos, separados por um centro que se corrói sem cessar”.17 Essa
16
ARENDT, Hannah. Verdade e Política. Lisboa: Relógio D`Água Editores, 1995, p. 59.
17
ARON, Raymond. Mitos e homens. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura S.A., 1959, p. 15.
186
Ana Carolina Guimarães Seffrin
lógica foi representada de modo otimista durante as tendências sociais
e econômicas no decorrer dos séculos passados, mas sua autonomia,
acompanhada de seu pessimismo impaciente, não pode preservar-se
como estado de corrosão supremo; emana-se um outro tipo de postura
que deduz “sentir as feridas abertas latejantes”, empreendendo uma ação
humana voltada à memória e reconstrução do período.
Considerações finais
- Meu caro Kafka Tamura, existe um ponto
em nossas vidas em que voltar atrás já
não nos é permitido. E também um ponto,
este mais raro, em que não podemos mais
avançar. Alcançados tais pontos, só nos
resta aceitá-los, para o bem ou para o mal.
É dessa maneira que nós todos vivemos.18
Parece ser evidente que o Estado brasileiro não pode se tornar
um nicho de críticas. Após a promulgação da Constituição Federal de
1988, muitas foram as iniciativas dos governos; o primeiro sinal de uma
“justiça transicional” seria a própria Constituição, carta enunciadora
de direitos depois de mais de uma era de violações.
A lição de Antoine Garapon, citando Mark Drumbl, possui
celeuma de suma importância: o objetivo das cerimônias quase
judiciárias – as Comissões – é menos punir ou excluir e mais despertar
a civis, isto é, o espírito de cidadania.19 Isso não significa, de modo
algum, que as vítimas estão sendo respeitadas de uma forma sui
generis, senão que a “recordação” dos fatos toma sentido reflexivo
e ativo; os acontecimentos não estariam apenas sendo evocados e
reconstituindo certos fatos da memória.
Se, em um fluxo reflexivo, parece ser fundamental a adoção de
políticas por parte do Estado brasileiro, de outro, essa atitude deve estar
18
MURAKAMI, Haruki. Kafka à beira-mar. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva Ltda., p. 200.
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar – Para uma justiça
internacional. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 220.
19
Uma Kafkalândia chamada Memória da Ditadura Militar Brasileira...
187
conformada as aprendizagens retidas de outros países que experimentaram
ou continuam experimentando em matéria de Justiça Transicional. Em
longo prazo, será impossível definir – como num exercício de adivinhação
– as consequências pontuais da instauração de uma Comissão da Verdade,
como a que entrará em funcionamento nesse país; seria de se esperar que
erros sejam cometidos, assim como acertos.
Desponta como fundamental interesse o ideário de que nenhum
membro da Comissão que futuramente irá funcionar no Brasil irá se
aproximar de verdade alguma. Desejar tal é desejar a metafísica no
seu sentido mais amplo. De outro lado, mesmo que a Comissão esteja
“mal nomeada” por assim dizer, sua importância enquanto “medida”
e “aparato institucional” é manifesta. Quem disser o contrário estará
atentando abertamente contra a história. Não seria em razão de
uma palavra posicionada erroneamente que familiares de mortos e
desaparecidos não teriam o direito de esclarecimentos a respeito de seus
entes próximos. Não seria em razão de uma palavra chamada verdade
que a história brasileira não deva ser devidamente esclarecida, não
apenas para esses mesmos familiares, como também para a criança que
nasce no dia de hoje até o idoso que viveu nesse período. Passar uma
borracha na história é condenar uma sociedade a repetir os erros do
passado. Todos, independentemente de sexo, religião, cor de pele, opção
sexual ou o que seja, têm o direito de conhecer suas próprias raízes.
Em segundo, a ideia de um revanchismo, arguida por parte de
determinados setores da sociedade brasileira, se destaca como perniciosa
quando arguida. Ninguém mais nos anos de Guerra Fria para que os
hodiernos discursos de direita e esquerda permaneçam. Os tempos
são outros e nenhuma tragédia irá desandar com a apuração de crimes
e violações de direitos ocorridas no passado. A razão é óbvia: não há
nenhum tipo de Jorge Rafael Videla, esse ex-militar argentino que
ocupou a presidência de seu país, entre 1976 e 1981, e exerceu uma cruel
e doentia ditadura, que será condenado à prisão perpétua por crimes de
lesa-humanidade. O Brasil não é a Argentina, tampouco o Uruguai. Ainda
que as lições de outros países tenham muito a ensinar, as experiências
históricas são únicas em cada país. Os setores da sociedade que admitem
a existência de uma “vingança” acabam se esquecendo do ideário de a
anistia não significar amnésia, ainda que esses mesmos setores saibam
perfeitamente que ninguém será julgado, muito menos condenado, por
algum tribunal em território brasileiro. Se, de um lado, o velho vulgo
188
Ana Carolina Guimarães Seffrin
popular “quem não deve não teme” deva permanecer enquanto lembrança,
de outro, uma atitude agressiva, inspirada pelo desejo de afronta e
revanche, está mais compatibilizada com os anos de ditadura militar do
que com os tempos atuais. Há de se recordar que a “implementação de
uma Comissão da Verdade permite reinserir no debate social a questão do
autoritarismo e suas nefastas consequências, promovendo a reflexão”.20
Enquanto alguns se debruçam em revanchismos e vocábulos,
outros lutam em favor da memória, esse difícil exercício de consolidação
e recuperação, esse exercício que requer coragem e que homens de pouca
imaginação, por sua mentalidade de caracteres covardes, não conseguem
realizar. Felizmente o Brasil engatinha, ainda que a passos lentos, a favor
de algum tipo de futuro pró-esclarecimento. Não um futuro da verdade,
como alguns pressupõem, senão algum tipo de futuro em que a Constituição
Federal e os demais tratados e dispositivos de proteção a direitos humanos
façam algum sentido ante um Estado que se diga Democrático, de Direito.
Resta esperar que a Comissão de Verdade, nesse país, não se torne uma
peça de museu. Esperando a casmurra – e talvez tardia – esperança com
o resgate à memória depois de anos de desinteresse nessa palavra e de
infindáveis tentativas de genocídio histórico.
Referências
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
______. Verdade e Política. Lisboa: Relógio D`Água Editores, 1995.
ARON, Raymond. Mitos e homens. Rio de Janeiro: Editora Fundo de
Cultura S.A., 1959.
20
PORTAL MEMÓRIAS REVELADAS. A Comissão de Verdade no Brasil. Por quê? O que é? O
que temos que fazer? Disponível em: <www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br>.
Acesso em: 23 mar. 2012.
Uma Kafkalândia chamada Memória da Ditadura Militar Brasileira...
189
CARTILHA COMISSÃO DA VERDADE. Portal Memórias Reveladas.
Disponível
em:
<http://www.portalmemoriasreveladas.arquivonacional.
gov.br/media/Cartilha%20Comiss%C3%A3o%20da%20Verdade%20-%20
N%C3%BAcleo%20Mem%C3%B3ria.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2012.
CASO GOMES LUND E OUTROS (“GUERRILHA DO ARAGUAIA”) VS.
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Estados Americanos (OEA). Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/
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ETHIRAJAN, Anbarasan. Bangladesh truth commission is declared ‘illegal’.
Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/news/world-south-asia-13410976>.
Acesso em: 23 mar. 2012.
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar –
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GOETHE, Johann Wolfang von. Fausto: uma tragédia – segunda parte.
São Paulo: Ed. 34, 2011.
KAFKA, Franz. Aforismos. In: Essencial Franz Kafka. São Paulo:
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MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e outros poemas.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
MURAKAMI, Haruki. Kafka à beira-mar. Rio de Janeiro, RJ:
Objetiva Ltda.
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo o
estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e
Terra, 2010.
190
Ana Carolina Guimarães Seffrin
PORTAL MEMÓRIAS REVELADAS. A Comissão de Verdade no Brasil.
Por quê? O que é? O que temos que fazer? Disponível em: <www.
portalmemoriasreveladas.arquivonacional.gov.br>. Acesso em: 23 de
março de 2012.
SIMON, Jan-Michael. La Comisión para el Esclarecimiento
Histórico, Verdad y Justicia em Guatemala. Disponível em: <http://
www.ejournal.unam.mx/bmd/bolmex106/BMD10606.pdf>. Acesso
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SINCRÓ, Visnum Porobo. Poema Bangla Desh Viva, 1971.
Disponível em: <http://archiveofgoanwritinginportuguese.blogspot.
com/2011/04/visnum-porobo-sincro-bangla-desh-viva.html>. Acesso
em: 24 mar. 2012.
Análise da (i)legitimidade da decisão da
Justiça Federal acerca de não receber
a denúncia contra o coronel Sebastião
Curió Rodrigues de Moura
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
Alessandro Martins Prado
A ditadura militar ocorrida no Brasil representou uma ruptura
com o processo de redemocratização que vinha ocorrendo após o fim
do Estado Novo. Foi um período obscuro e repressivo, onde algumas
liberdades e garantias fundamentais dos indivíduos foram suspensas.
Qualquer manifestação contrária ao regime era severamente punida
e a oposição política ao governo, quando havia, era consentida pelo
Estado (MDB).
A revolta armada foi a principal maneira que jovens militantes
encontraram para tentar derrubar ou enfraquecer o regime. Essa
situação gerou um grande número de mortos, desaparecidos e indivíduos
psicologicamente perturbados devido às atrocidades cometidas nas
sessões de tortura.
Antes da decadência do regime é publicada a Lei de Anistia
(1979), que por ser ampla e irrestrita, perdoava além dos presos políticos
e exilados, os militares que cometeram assassinatos e torturas nesse
período. É interessante perceber como o governo se valeu da lei para se
abster de punir seus agentes que cometeram crimes hediondos.
Até hoje, apesar de a grande maioria da sociedade discordar da
manobra política realizada pelos militares, a revisão da Lei de Anistia não
ocorreu, corroborando para a tese de que ainda no Brasil a democracia
não está consolidada e que se deve atentar para que não se retorne a
viver como no passado.
O objetivo do presente trabalho é contestar a postura do Poder
Judiciário diante de algumas provocações que estão sendo feitas pelas
instituições que querem reordenar a História deste país e reavaliar a
192
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
legalidade da Lei de Anistia e consequentemente dos crimes cometidos
contra a humanidade neste período.
Além desse objetivo geral pretende-se, como objetivo específico,
demonstrar que a desobediência civil é direito fundamental superior à
legislação e por isso deve ser usado quando as ações do Estado não se
coaduna com a busca do Bem Comum.
A Lei de Anistia: um ato ilegal de um governo ilegítimo
A Guerra Fria ocorrida após a Segunda Grande Guerra iniciou
um período de bipolarização econômica e ideológica na humanidade.
Um lado representado pelos Estados Unidos correspondia ao bloco
capitalista. O outro comandado pela União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas era o socialista.
Um importante resultado dessa divisão do mundo foi o
surgimento, principalmente nos países latino-americanos, de
regimes arbitrários aliados ao bloco capitalista que objetivavam
o ordenamento positivo da sociedade e a contenção da influência
comunista nesses Estados.
Um exemplo dessa consequência foi a ditadura militar ocorrida
no Brasil dos anos sessenta até o final dos anos oitenta que se sustentou
pelo medo, censura, tortura e terrorismo financiados pelo poder
irrestrito e ilegítimo conseguido pelas Forças Armadas através do golpe
de Estado em 1964.
Esse governo se configurou como ilegítimo, pois através da
tomada do poder sem o consentimento da população que não exerceu
seu poder de escolha através do voto, o que corresponderia à democracia
representativa vigente na época e regulamentada pela constituição
de 1946, porém, os militares utilizaram outro meio, a força, para
fundamentar seu poder.
Muitas das atrocidades cometidas durante o regime contra os
direitos humanos até hoje não foram julgadas porque estão protegidas pela
Anistia. Tal lei é reflexo dos primeiros sintomas no final dos anos setenta
de que o governo militar não resistiria e sucumbiria principalmente por
fatores como a pressão popular nacional e internacional que condenava
Análise da (i)legitimidade da decisão da Justiça Federal...
193
a repressão política. Outro fator foi a crise econômica que devido ao
crescimento descontrolado da economia nos primeiros anos de ditadura
gerou altíssimos índices inflacionários, sendo assim é promulgada a Lei
de Anistia (nº 6.683, de 28 de agosto de 1979):
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período
compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979,
cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais,
aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores
da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao
poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário,
aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos
com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
Nesse contexto é importante que se pare para refletir sobre
a legitimidade dos atos de um governo que toma o Estado pela força.
Qual é a função do Estado? Qual é o fim a que ele se propõe? Quais
são suas prerrogativas, seus limites. Entender isso é fundamental para
que se possam analisar a legitimidade e a legalidade do governo que foi
responsável pela criação e concretização da Lei de Anistia no Brasil.
Entender a lei de anistia requer uma análise do período da
ditadura e o que tal momento representa do ponto de vista de estrutura
estatal. Tem-se que o ocorrido do Brasil na década de 60 do século
passado está relacionado a dois pontos cruciais que são a Ordem e a
Mutação (DALLARI, 2010, p. 139) “Um dos problemas fundamentais
do Estado contemporâneo é conciliar a ideia de ordem, no sentido de
situação estabelecida, com o intenso dinamismo social, que ele deve
assegurar e promover [...]”.
Dessa forma, é preciso ter sobriedade para que se possa conciliar
ambos no intuito de que se mantenha uma ordem, que não seja
completamente estática, e a mutação, sendo esta entendida como uma
forma de garantir avanços que serão garantidos pela primeira. A ordem
então serve como mantenedora das conquistas e não como forma de
fundamentar a repressão (DALLARI, 2010, p. 139).
Com efeito, há dois erros básicos de concepção que
têm levado o Estado a extremos opostos: ou mantendo uma
organização inadequada, ou adotando processos muito eficazes
194
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
para objetivos limitados, mas conflitantes com o objetivo de
consecução do bem comum de todo o povo. No primeiro caso
tem-se uma concepção formalista e estática de ordem, que leva
à utilização do Estado como um embaraço às mudanças sociais,
tornando-o expressão de valores anacrônicos, já superado pela
realidade social. Essa noção do Estado como ordem estática,
responsável, entre outras coisas, pela manutenção de estruturas
absolutamente ineficazes, tem levado a concepção formalista
do próprio direito, sendo responsável pela contradição das
ditaduras constitucionais. Concebida a ordem estatal como
simples forma, que deve ser mantida a todo custo, é inevitável o
recurso à força para impedir que as novas exigências da realidade
imponham a adoção de novas formas. E o próprio anacronismo
dos valores oferece pretexto para a ação arbitrária, pois toda
inovação é vista como ação destruidora de valores tradicionais e,
dessa maneira, contraditoriamente, a preservação de uma ordem
inadequada serve de fundamento para impedir que se atinja o
ideal de atualização, que é o Estado adequado.
Eis então o problema dos militares brasileiros, não saber conviver
com a mutação e conceber uma interpretação completamente errônea
de ordem. Logo, recorreu-se à força para subjugar a mutação. Mutação
essa que segundo o momento histórico direcionava o Brasil para uma
linha política mais próxima ao modelo socialista.
Dessa forma, a força dos militares interrompeu o curso natural da
História brasileira. Isso por si só já demonstra a ilegitimidade deste fato
ocorrido com o golpe militar de 1964. Então, o uso da força para conter a
mutação é o motivo pelo qual se sustenta neste trabalho a ilegitimidade
dos atos dos militares.
Sendo assim, o regime militar foi um exemplo claro de que pela
força o Estado tornou-se “inadequado”. E por se tornar inadequado
naturalmente este Estado não mais se coaduna com os anseios da
sociedade e consequentemente não se mostra capaz de promover o bem
comum. Ocorre que isso somente poderá ser alterado via luta, tendo em
vista que a força é a forma encontrada pelo governo para controlar a
alteração social.
Entende-se ainda que lutar contra o que Dalmo de Abreu
chama de “Estado Inadequado” é legítimo porque visa colocar o
Estado em seu caminho correto, qual seja, propiciar que a sociedade
Análise da (i)legitimidade da decisão da Justiça Federal...
195
possa gerar dividendos políticos e sociais para o seu desenvolvimento.
Neste contexto, lutar não só é preciso, mas louvável: “Assim, pois,
também os juristas reconhecem que, em determinadas circunstâncias,
a revolução, embora seja, por definição, contrária à ordem jurídica
vigente, pode ser justificada como uma exigência do próprio direito”
(DALLARI, 2010, p. 141).
Mas o que se sustenta no presente trabalho é o fato de que a
maneira como os militares chegaram ao poder torna seus atos eivados
de vício. Quando se refere a essa eiva de vícios está-se referindo à
legalidade deste governo que tortura, persegue, mata e, antes de iniciar
a transição para a democracia, edita legislação anistiando seus agentes.
Será que este governo que se impôs tem legitimidade para tanto?
Entende-se que não. Anistia de assassinos fere frontalmente o contrato
social firmado, anistiar aqueles que atentaram contra a sociedade não
pode ser legal porque leva a sociedade de volta à barbárie, época em
que o mais fraco sucumbia perante a força. Quando se concebe o Estado
abre-se mão de fração de nossa liberdade e, com isso, abdica-se do uso
da força em função do Estado.
Porém, quando a força é usada contra a população sem um
motivo justo ou justificável, torna-se à simples violência. Essa que é
vedada ao cidadão comum, mas que por um ato ilegítimo foi utilizada
pelos militares contra o povo brasileiro.
Destarte, a Lei de Anistia, por ter emanado da vontade mais
escusa, a vontade que perseguiu, torturou, matou, não é legítima e por
isso dizer que a Constituição Federal de 1988 recepciona a lei da anistia
é atentar contra a legalidade, contra o Estado, contra o conceito de
sociedade, é profanar aos quatro ventos que a ilegalidade pode ser usada
quando se tem força.
O professor Paulo Bonavides (2010) aborda a questão da
legitimidade. O autor analisa o critério sociológico do conceito de
legitimidade, partindo do conhecimento criado por Vedel1 (BONAVIDES,
2010, p. 125).
O conceito de Legitimidade expresso por Vedel, segundo o
qual “chama-se princípio de legitimidade o fundamento do poder
numa determinada sociedade, a regra em virtude da qual se julga
1
Georges Vedel, Introduction aux Études Polítiques, Fásciculo I, p. 28.
196
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
que um poder deve ou não ser obedecido” nos leva assim sem
nenhuma intermitência à compreensão sociológica do termo.
Logo, constata-se que os meios pelos quais os militares chegaram
ao poder os tornam ilegítimos, e por isso a Lei de Anistia não é legal e
muito menos constitucional. Isso deixa claro que tal ato não pode ser
“obedecido” pelas instituições e pela sociedade.
O Judiciário brasileiro
Ante essa inquietação que encontra respaldo em vários setores,
conscientes, da sociedade, a Ordem dos Advogados do Brasil propôs
uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental que foi
distribuída no Supremo Tribunal Federal – STF com o número 153,
onde se argumentou que a Lei de Anistia não poderia ser recepcionada
pela Constituição Federal de 1988.
O processo teve seu curso e então o STF teve a chance de fazer
justiça, mas isso não aconteceu, o STF vacilou. Salvo honrosas exceções
de Ricardo Lewandowski e Ayres Brito que votaram a favor da revisão
da Lei de Anistia. Ao contrário de Lewandowski que se pautou por uma
decisão mais técnica, o ministro Ayres Britto proferiu voto carregado de
emoção (GALLUCCI, 2011, s/p).
“O torturador experimenta o mais intenso dos prazeres
diante do mais intenso dos sofrimentos alheios”, argumentou
Ayres Britto. “O torturador é uma cascavel que morde o som
dos próprios chocalhos.” Para ele, os torturadores são “tarados”,
“monstros” e “desnaturados”.
Dessa forma, por sete votos a dois, o STF se utilizou do “véu de
ignorância” para não ver que a história lhes deu uma chance de corrigir
os erros do passado. Será que é este o Poder Judiciário que se quer?
Será que este é o Judiciário que o Brasil merece? Será que tal Judiciário
não estaria sendo “inadequado” na linha do que ensina o professor
Análise da (i)legitimidade da decisão da Justiça Federal...
197
Dalmo de Abreu? Não se trata de revanche, ou algo parecido, mas sim
da possibilidade de o Estado fazer o que não fez até hoje.
O fato é que os crimes cometidos pelos militares não foram
políticos e por isso não fazem jus à guarida da Lei de Anistia, que não
deixa de ser ilegal mesmo assim, e por isso a interpretação está errada,
devendo, sim, os militares pagarem pelos crimes comuns cometidos
(HENRIQUES, 2011, s/p).
Para Lewandowski e Ayres Britto, homicídio, abuso de
autoridade, lesões corporais, desaparecimento forçado, estupro e
atentado violento ao pudor, crimes cometidos pelos militares no
regime ditatorial, não podem ser considerados crimes políticos
– anistiados pela Lei de 1979 – e sim comuns. “O crime político
pressupõe um combate ilegal à estrutura jurídica do Estado, o que
não ocorreu”, destacou. O ministro afirmou não conseguir ver a
clareza na Lei, no sentido de que ela teria incluído todas as pessoas
que cometeram crimes não só comuns, mas também hediondos.
“Interessa-me a objetividade da lei. Ela é mais sábia que a
subjetividade do legislador.” O voto de Ayres Britto, que também
julgou a ação parcialmente procedente, entendeu que devem ser
excluídos do texto da Lei de Anistia qualquer interpretação que
signifique estender absolvição aos crimes hediondos – e outros
como tortura, homicídios e estupros.
Dessa forma, além do fato de a Lei de Anistia não ter validade
devido a sua fonte ser advinda de poder ilegítimo, tem-se ainda a questão
da separação entre crimes políticos e crimes comuns hediondos. Porém
os “meninos”2 Eros Grau, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Ellen Gracie,
Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso “não pensam” assim e
então ainda o Brasil está preso a uma questão não resolvida.
Bem verdade que as atuações dos “homens”3 Ayres Britto e
Ricardo Lewandowski, no julgamento da ADPF 153, indicam que, ainda
que não pareça, existe vida inteligente e comprometida com a História
do Brasil no Supremo Tribunal Federal.
Este termo “meninos” deve ser entendido como aquele que não tem compromisso com a
sociedade que lhe propiciou a posição de Ministro do STF.
2
Este termo “homens” deve ser entendido como aquele que tem compromisso com a sociedade
que lhe propiciou a posição de Ministro do STF.
3
198
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
Mais recentemente o Ministério Público Federal denunciou o
Coronel Sebastião Curió, porém a Justiça Federal, seguindo a linhas dos
“meninos”, não recebeu a referida denúncia (NOSSA, 2012, s/p).
A Justiça Federal no Pará rejeitou ontem denúncia do
Ministério Público para prender o major da reserva Sebastião
Curió Rodrigues de Moura pelo desaparecimento de cinco
guerrilheiros do Araguaia, em 1974. Na decisão, o juiz federal
João César Otoni de Matos considerou “genérico” e “equivocado”
o pedido dos procuradores e avaliou que normas internacionais
de direitos humanos não derrubam a Lei da Anistia, promulgada
durante o Estado de exceção, em 1979. Em nota, Otoni de Matos
diz que o MP não apresenta documentos ou elementos concretos
na denúncia contra Curió. “Pretender, depois de mais de três
décadas, esquivar-se da Lei da Anistia para reabrir a discussão
sobre crimes praticados na ditadura militar é equívoco que, além
de desprovido de suporte legal, desconsidera as circunstâncias
históricas que, num grande esforço de reconciliação nacional,
levaram à sua edição”, diz o juiz. Na última quarta-feira, o
Ministério Público apresentou à Justiça o argumento de que o
desaparecimento dos guerrilheiros é um sequestro qualificado e
um crime continuado, pois os corpos dos militantes não foram
localizados. Os procuradores argumentaram que o crime, por ter
“caráter permanente”, não estaria coberto pela Lei da Anistia,
de 1979, que na interpretação mais aceita nos tribunais teria
perdoado crimes cometidos por agentes do Estado. Ao rejeitar o
pedido dos procuradores, Otoni de Matos afirma que, em 1995,
o Estado reconheceu as mortes dos guerrilheiros que estiveram
no Araguaia. A Lei 9.140, daquele ano, reconheceu a morte
presumida dos chamados “desaparecidos políticos”. Ele ressalta
que para qualificar um crime de sequestro, de acordo com o artigo
148 do Código Penal, não basta o fato de os corpos dos militantes
não terem sido encontrados. A denúncia dos procuradores leva
em conta depoimentos de moradores do Araguaia e ex-agentes
da repressão que disseram ser testemunhas das prisões dos
guerrilheiros Maria Célia Corrêa, a Rosinha, Hélio Luiz Navarro
Magalhães, o Edinho, Daniel Ribeiro Callado, Doca, Antônio de
Pádua Costa, Piauí, e Telma Regina Corrêa, a Lia. Os guerrilheiros
teriam sido vistos na base militar da Bacaba, à margem da rodovia
Transamazônica, no Pará. Os procuradores argumentam, apenas
com base nos depoimentos, que Curió era o responsável pela base.
Pressão. Ontem, a ONU elevou o tom e usou uma coletiva com
jornalistas de todo o mundo para insistir em falar sobre o caso
Análise da (i)legitimidade da decisão da Justiça Federal...
199
Curió e elevar a pressão internacional para que a Justiça brasileira
aceite a denúncia do MPF contra o major. “Vemos esse caso como
o primeiro e crucial passo contra a impunidade que rodeia o
período do governo militar no Brasil”, disse o porta-voz da ONU
para Direito Humanos, Rupert Colville.
Pior que não ter recebido a peça acusatória foram os fundamentos
da referida decisão, qual seja, que tais crimes foram prescritos e, pior
ainda, fundou-se no julgamento da ADPF 153, que é expressão clara de
decisão não legítima porque vai contra a busca do Bem Comum.
Os crimes contra a humanidade são imprescritíveis. Sendo assim,
tanto a decisão do STF quanto a decisão da Justiça Federal não são
dignas de respeito, ou acatamento, pois estão completamente destoadas
da juridicidade, legalidade, constitucionalidade e principalmente dos
direitos humanos.
Apesar dessa decisão o Ministério Público Federal (MPF) não tem
se recolhido à penumbra jurídica que os “meninos do STF” criaram para
lançar a discussão no esquecimento e está fazendo seu papel, sobretudo
com a propositura de denúncia contra o “Dr. Luchini” pelo sequestro
dos militantes do PC do B: Maria Célia Corrêa; Hélio Luiz Navarro de
Magalhães; Daniel Ribeiro Callado; Antonio de Pádua; Telma Regina
Cordeira Corrêa.
Ná época o “Dr. Luchini” alcunha do então Major Sabastião
Curió Rodrigues de Moura foi responsável pelo sequestro e privação
em caráter permanente das referidas vítimas até os dias atuais. Diante
disso o Ministério Publico Federal por intermédio da Procuradoria da
República no Município de Marabá-PA ofereceu a denúncia contra o
réu pautando-se principalmente no fato de que as vítimas estão até hoje
desaparecidas e também porque o réu foi o comandante da operacional
da repressão à denominada guerrilha do Araguaia, em especial durante
a operação Marajoara.
Operação deflagrada por volta de outubro de 1973 e mormente
em 1974. Tal ação dos membros desertores do Exército logrou êxito o
que levou à promoção do sequestro qualificado pela imposição de grave
sofrimento físico ou moral das vítimas descritas anteriormente.
A denúncia apresentada é peça muito bem arquitetada, pois
pauta-se primeiramente na presunção de inocência dos desertores do
200
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
Exército brasileiro com relação à eventual prática de homicídio haja
vista que a materialidade existente não demonstra esse crime, mas
sim o crime de sequestro que é crime permanente. Por isso na peça o
MPF pede a condenação do réu Sabastião Curió Rodrigues de Moura
pela prática do tipo penal previsto no artigo 148, § 2º do Código Penal
brasileiro na forma do artigo 69 do mesmo diploma.
Proposta a denúncia que foi distribuída na 2ª Vara da Subseção
Judiciária de Marabá-PA, constatou-se que “os meninos” não estão
presentes apenas na suprema corte brasileira, eles estão espalhados por
toda a estrutura do Poder Judiciário. De modo que, em decisão acerca
da referida denúncia, “o menino João Cesar Otoni de Matos” emitiu
decisão que demonstra muitas coisas interessantes.
O referido “menino” rejeitou liminarmente a denúncia com
base no artigo 395, II e III, do Código de Processo Penal. Tal decisão
demonstra aspectos um tanto quanto irracionais, primeiramente porque
ela se funda em boa parte no julgamento fatídico da ADPF 153 (MATOS,
2012, p. 1-2).
A denúncia não deixa mesmo dúvidas quanto ao propósito
de instaurar investigação criminal de fatos relacionados a
“graves violações aos direitos humanos durante a Guerrilha do
Araguaia”. Ocorre, que a persecução penal relativa a tais ilícitos
foi definitivamente abolida pelo art. 1º, § 1º da Lei 6.883/79, a Lei
da Anistia [...]. Nada obstante, o titular da ação penal pretende,
dando outra roupagem aos fatos, reabrir a discussão.
Diz, em síntese, que pessoas referidas na denúncia foram, em
verdade, vítimas do delito de sequestro qualificado (art. 148, CP:
“privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere
privado”), sendo seu paradeiro até hoje desconhecido. Diante
disso, por se tratar de delito permanente – cuja permanência, no
seu entender, ainda perdura – não seria o caso de aplicação do art.
1º, § 1º, da Lei nº 6.683/79, por extrapolado o período coberto
pelo manto da anistia, não havendo falar ainda em transcurso
de prazo prescricional. Razão não lhe assiste. É que, não fosse
a evidente aplicação da Lei da Anistia ao caso concreto,
que cristalinamente se enquadra dentre os crimes
políticos e conexos referidos no seu art. 1º, § 1º (a anistia,
como se convencionou dizer, foi ampla, geral e irrestrita: ademais,
os mais notórios crimes relacionados à ditadura, expressamente
anistiados todos, provavelmente tenham ocorrido justamente no
Análise da (i)legitimidade da decisão da Justiça Federal...
201
âmbito do combate à Guerrilha do Araguaia), os fatos narrados
na inicial não se subsumem ao tipo do art. 148, § 2º, do CP. A
investigação – histórica, inclusive – a respeito foi e é profunda,
e não se tem notícia sequer de esperanças ou fundada suspeita
de que algum dos inúmeros “guerrilheiros” capturados na
região do Araguaia durante o período da ditadura militar possa
ainda ser encontrado com vida. Pelo contrário, os trabalhos
circunscrevem-se à busca e localização de corpos, pois já
se sabe com razoável segurança que essas pessoas foram
mortas. O animus, como nos parece historicamente claro, não
era o de sequestrar, antes o de capturar e executar.
A referida sentença possui mais “demonstrações de sapiência”,
mas preferiu-se não demonstrar mais para não dar margem a uma
“intoxicação jurídica” dos operadores que tiverem acesso a esse texto.
Sendo assim, quando se diz que se está diante de um momento de crise
do poder judiciário que não tem representado o povo funda-se nesses
exemplos seja dos “meninos do STF”, ou seja, dos “meninos da Justiça
Federal”. Com isso chama-se a atenção para a ponderação de Lênio Luiz
Streck (2012, s/p):
Saramago contava que, há mais de 400 anos, em Florença,
numa pequena aldeia, os habitantes ouviram tocar o sino da
igreja em uma determinada tarde. O sino só tocava aos domingos
e quando alguém morria. Só que o toque era de finados. E não
era domingo. Todos correram para saber: afinal, quem morrera?
E lá estava um pobre camponês que dizia: “ninguém que tivesse
nome e figura de gente; toquei porque a Justiça está morta”. E,
então, o campônio fala das agruras que sofrera nas “mãos” da
justiça de então...!
Sendo assim, os cidadãos brasileiros são camponeses que ainda
que não percebam estão no “velório da justiça” e é um acontecimento
bastante grave, sobretudo porque existe uma clara separação entre
o que seja direito e o que seja justiça, pois esta não se consegue
perceber em todos os locais ao passo que aquele está presente nos mais
totalitários regimes.
Se o homem criou o Estado para que este promovesse o bem
comum é pressuposto, para que o Estado seja respeitado, que ele atue
202
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
com vistas a promover o referido bem comum. A partir do momento em
que as ações do Estado estejam apartadas dos anseios do bem comum
devem ser desobedecidas, pois tornam-se ilegítimas.
Com isso nasce o que se chama de direito fundamental à
revolução. Bem verdade que tal direito não encontrará respaldo na
ordem jurídica, porém não se pode confundir ordenamento jurídico
como fundamento do poder. Isso porque o poder se funda no povo.
De maneira que a revolução definida como a modificação, fora
dos quadros constitucionais vigentes e geralmente por meios violentos,
dos fundamentos do Direito e do Estado, ou a restauração, pelos mesmos
processos, da ordem constitucional violada ou destruída pela tirania
(GARCIA, 2004).
Nesse contexto de tirania percebe-se que não somente o
Executivo é capaz de praticá-la, nos casos aqui analisados pode-se
perceber que o Judiciário também cometeu atos de tirania e por isso
é importante analisar a natureza desse direito de revolução (GARCIA,
2004, p. 153)
[…] quando enumera os vários entendimentos da doutrina:
enquanto Herrfahrdt, Ramirez e outros, considerando que
nenhuma revolução é autorizada pelo Direto positivo, declaram
tal direito simplesmente moral, já para outros, como Ossorio
e Recaséns Siches, trata-se de um direito excepcional com
fundamento jurídico-filosófico. Para alguns, entre esses
Hauriou e Lhering, trata-se não de um direito, mas de um
estado de necessidade; para Dabin, existe realmente um direito
de insurreição e de resistência passiva e ativa, tratando-se de
um direito natural, que encontra sua legitimidade no próprio
sistema do Estado, pouco importanto que a legislação positiva
reconheça ou não tal direito, por vezes verdadeiro dever dos
súditos, acrescentando que, de fato e de direito, esse estágio de
permissão legal acha-se superado quando se discutem o direito
de resistência e de insurreição; para Kelsen, a revolução não
configura direito, de vez que ela própria é fato jurígeno, isto é,
fato gerador de direitos, ao passo que para Sampaio Dória, tratase de um direito decorrente do direito inalienável, que ao povo
assiste, de auto-organização (soberania nacional).
Análise da (i)legitimidade da decisão da Justiça Federal...
203
A necessidade de revolução demonstra claramente que as recentes
decisões do Judiciário brasileiro devem, precisam ser desrespeitadas
porque são antijurídicas e não voltadas para o bem comum. O direito à
revolução também precisa ser visto no sentido de que a revolução nem
sempre significa pegar em armas e usar de violência.
Num processo revolucionário a violência deve ser usada,
segundo a lição de Maquiavel, somente no limite do necessário,
pois quando se extrapola essa barreira estar-se-á contribuindo para
que ocorra um abuso do direito. No caso aqui discutido a forme de
desrespeitar essas decisões é levá-las à Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
O cidadão e seu direito de proteção: um dever do Estado
O conceito de proteção está diretamente ligado à ideia de
preservação de algo. Quanto ao direito de proteção do cidadão pode-se
analisá-lo em duas frentes, a primeira é a do cidadão que tem o direito
de ser protegido, e a outra seria a ótica do Estado que tem o dever de
efetivar essa proteção. Nessa direção, Roberty Alexy elabora um conceito
sobre o que seria o direito de proteção (ALEXY, 2008, p. 450).
Por “direito a proteção” devem ser aqui entendidos os
direitos do titular de direitos fundamentais em face do Estado
a que este o proteja contra intervenções de terceiros. Direitos à
proteção podem ter os mais diferentes objetos. Desde a proteção
contra homicídios na forma mais tradicional, até a proteção contra
os perigos do uso pacífico da energia nuclear. Não são apenas a vida
e a saúde os bens passíveis de serem protegidos, mas tudo aquilo
que seja digno de proteção a partir do ponto de vista dos direitos
fundamentais: por exemplo, a dignidade, a liberdade, a família e
a propriedade. Não menos diversificadas são as possíveis formas
de proteção. Elas abarcam, por exemplo, a proteção por meio de
normas de direito penal, por meio de normas de responsabilidade
civil, por meio de normas de direito processual, por meio de atos
administrativos e por meio de ações fáticas. O que há de comum
em meio a essa diversidade é o fato de que os direitos a proteção
são direitos subjetivos constitucionais a ações positivas fáticas ou
204
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
normativas em face do Estado, que têm como objeto demarcar as
esferas dos sujeitos de direito de mesma hierarquia, bem como a
garantia da exigibilidade e da realização dessa demarcação, é uma
das tarefas clássicas da ordem jurídica.
Tal direito é na verdade uma necessidade de uma tutela positiva
do Estado. Logo, este tem o dever de agir de forma que se garanta aquele
direito de proteção. Em geral pode-se dizer que o artigo 5º da CF/88
está repleto de direitos de proteção.
Será que existe alguma semelhança ou diferença entre proteção
e defesa? Tal questão é abordada por Robert Alexy (2008, p. 451) é a
seguinte: “caso os direitos a proteção existam, sua natureza é, de fato,
distinta da dos direitos de defesa de tipo clássico”. O fato é que existe
uma distinção entre ambos (ALEXY, 2008, p. 456).
Direitos à proteção e direitos de defesa foram contrapostos
porque os primeiros são direitos a ações positivas, e os segundos,
a ações negativas. A correção dessa contraposição pode ser
colocada em dúvida. Nesse sentido, Dürig salienta ‘que também
a ação positiva de ‘proteção’ é ação estatal defensiva e não uma
configuração positiva’. Nessa afirmação é correto que o direito a
proteção diz respeito a uma defesa. Mas com isso esgotam-se os
pontos comuns entre o direito de defesa e o direito a proteção. O
primeiro é um direito em face do Estado a que ele se abstenha de
intervir, o segundo é um direito em face do Estado a que ele zele
para que terceiros não intervenham. A diferença entre o dever de se
abster de intervir e o dever de cuidar que terceiros não intervenham
é tão fundamental e repleta de consequências que, pelo menos
do ponto de vista da dogmática, qualquer relativização nessa
diferenciação é vedada. Por isso, a menção ao caráter defensivo
pode, no máximo, ser compreendida no sentido de uma inserção
dos direitos a proteção na tradição liberal, mas não no sentido de
pertencer à classe dos direitos de defesa dirigidos contra o Estado.
Não é possível concordar com Dürig quando ele afirma que os
direitos a proteção não conduzem a uma configuração positiva.
Na medida em que o legislador realiza demarcações entre esferas
individuais, exigidas pelos direitos à proteção, ele configura uma
parcela decisiva da ordem jurídica e, com isso, uma parte essencial
da vida social.
Análise da (i)legitimidade da decisão da Justiça Federal...
205
Nesse sentido quando se pugna pela abertura da discussão acerca
da Lei de Anistia e sua legalidade, ou constitucionalidade, o Estado
via Poder Judiciário tem o dever de atuar garantindo uma prestação
positiva, ou seja, o STF tem por dever garantir a punição daqueles que
ultrajaram os direitos humanos. Isso é o que o ordenamento jurídico,
analisado à luz da lógica, garante.
Evidentemente este dever de prestação somente poderá ser
garantido no judiciário após um plus que é a provocação devido ao
respeito ao princípio da inércia do judiciário. Mas no caso em tela o
Judiciário foi provocado, e suas decisões provocaram indignação, pois o
direito de proteção não se efetivou no Brasil.
Chile um exemplo de respeito aos direitos de proteção4
O homem, para Aristóteles (2007), é um animal social, e o Estado
é a consequência natural da associação humana que tem por objetivo,
além da autossuficiência e proteção, a busca pelo bem comum. Dessa
forma, é dever do Estado zelar pelos indivíduos e pela coletividade
garantindo aos homens os princípios básicos para sobrevivência,
informação, educação e conservação.
Sendo assim, a legislação presente na Constituição se configura
como uma forma interna capaz de conferir os direitos e princípios básicos
para a vida em sociedade. Durante o período da ditadura militar muitos
direitos concernentes à liberdade de expressão, linha política e liberdade
de ir e vir foram suspensas pelos atos institucionais decretados pelo
governo ilegítimo. O mais arbitrário deles, o AI-5, determinava no art. 5º:
A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato,
importa, simultaneamente, em: I - cessação de privilégio de
foro por prerrogativa de função; II - suspensão do direito de
votar e de ser votado nas eleições sindicais; III - proibição de
atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;
4
Ainda que na América Latina existam outros países que viveram ditaduras e depois revisaram as
suas leis de Anistia, escolheu-se o Chile como paradigma apenas para demonstrar o quão atrasado
o Brasil está nesta questão.
206
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de
segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de frequentar
determinados lugares; c) domicílio determinado. § 1º - o ato
que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar
restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer
outros direitos públicos ou privados. § 2º - As medidas de
segurança de que trata o item IV deste artigo serão aplicadas
pelo Ministro de Estado da Justiça, defesa a apreciação de seu
ato pelo Poder Judiciário.
No entanto, já em 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas
proclamou a declaração universal dos direitos humanos que prevê,
em seus artigos V, IX e XIII respectivamente, que “Ninguém será
submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante”, “Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado”
e “Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro
das fronteiras de cada Estado”, cabendo ao Estado a proteção desses
direitos, para que o homem não seja obrigado, através da rebelião, a
lutar contra a repressão.
Determinados direitos que eram subtraídos do cidadão pelo
governo eram, ao mesmo tempo, garantidos por um órgão internacional.
Então aconteceu o choque entre a soberania nacional e os ditames da
Organização das Nações Unidas (ONU). Mas o que se viu no Brasil
durante quase vinte anos foi a vitória do governo militar que subjugou
e submeteu cidadãos a situações desumanas de tortura, perseguição,
estupros e assassinatos.
No Chile, a ditadura militar instaurada pelo General Augusto
Pinochet, em 1793, derrubou o governo socialista de Salvador Allende e
governou o país com mãos de ferro por 17 anos. Mais de três mil pessoas
foram mortas, mil e duzentas estão desaparecidas e mais de vinte e cinco
mil foram torturadas. Mas, em 1990, no processo de redemocratização
pelo qual passava a América Latina, o general é derrotado nas eleições
(YOUTUBE, 2011). Isso demonstrou seu enfraquecimento o que
conduziu o país a, em 2006, julgar aqueles que atentaram contra os
direitos humanos (TRIBUNA DO NORTE, 2008).
Suprema Corte de Justiça do Chile ignorou a existência
da Lei de Anistia ao condenar os ex-carabineiros Paulino Flores
Análise da (i)legitimidade da decisão da Justiça Federal...
207
Rivas e Rufino Rodríguez Carrillo a cinco anos de prisão (embora
sob o sistema de liberdade vigiada) pelo assassinato de dois
militares do MIR, um dos mais ativos grupos de esquerda dos
anos 70 no Chile no dia 23 de setembro de 1973, uma semana e
meia após o golpe de Estado.
A Corte Suprema aplicou a decisão da Corte Interamericana, que
por coincidência já condenou o Brasil em novembro de 2010 a tipificar o
desaparecimento de pessoas e as torturas promovidas contra militantes
do Partido Comunista, que atuaram principalmente na Guerrilha do
Araguaia (PERES, 2010).
Essa tipificação deveria conter: “a) a eliminação de instituições
jurídicas como a anistia e a prescrição; b) a eliminação da competência
da justiça militar; c) a investigação da totalidade das condutas das
pessoas implicadas, e d) a determinação das sanções proporcionais à
gravidade do crime” (PERES, 2010).
Ocorre que o STF teve em suas mãos a chance de equiparar o
Brasil ao Chile, mas não o fez. O que intriga é o fato de que o julgamento
da revisão da Lei de Anistia não é grave simplesmente porque
desrespeita as diretrizes da Corte Interamenicana de direitos humanos,
mas principalmente porque desrespeita a História do Brasil.
Considerações finais
Diria Rousseau que o homem cede parte de sua liberdade na
formação de um Estado que vise o bem comum, mas mesmo cedendo ele
não perde a completamente essa liberdade, já que ela é intrínseca a ele e
não pode ser totalmente desconsiderada, porém muitas vezes é violada.
Nesse caso, Rousseau propõe que o rei seja derrubado pelo povo, já que
foi este último que lhe concedeu poder para governar.
Durante a ditadura militar essa liberdade não existiu, aliás, existiu
para quem era do governo, foi violada, corrompida na mesma medida em
que o regime era ilegítimo. Com a promulgação de leis que não primavam
pelo bem comum da sociedade, os militares oprimiram, perseguiram e
torturaram indivíduos e se não bastasse, se autoanistiaram.
208
Carlos Augusto de Oliveira Diniz e Alessandro Martins Prado
Alguns dirão que a Lei de Anistia, não só tornou impunes os
crimes de militares, mas também de militantes civis que lutaram contra
o governo manifestamente ilegítimo, o que se demonstrou que é luta
legítima dadas as circunstâncias do momento de governo golpista.
Outros ainda indagam se a revisão dessa lei com a condenação e
consequente publicação de nomes de torturadores não provocaria um
sentimento de vingança na população que poderia até tentar contra a
vida desses indivíduos, mas a revisão é necessária para que a justiça seja
feita por quem realmente deve fazê-la e para que a História não fique
esquecida, pois o esquecimento provoca a desinformação das gerações
futuras que podem ser vítimas de uma nova ditadura.
Conhecer a História do Brasil possibilita evitar a volta a práticas
ultrajantes aos direitos humanos das gerações passadas e das futuras
para que não se sofra o cerceamento da liberdade de escolha e retrocedase a um período obscuro de violência e atrocidades que não são foram
camufladas, mas baseadas em lei de um governo ilegítimo.
Não se pode deixar de abordar ainda a postura do poder Judiciário
quando falamos desse processo de reconstrução do passado. O Judiciário
tem demonstrado que não representa os anseios do povo brasileiro, não
os primitivos, mas aqueles voltados à persecução da justiça.
Percebeu-se isso tanto no Supremo Tribunal Federal quanto
na Justiça Federal que se furtaram ao seu compromisso para com a
memória e a verdade, e deixam estagnada por tempo indeterminado a
possibilidade de julgar e condenar essas “cascavéis”, como asseverou o
ministro Carlos Ayres Brito.
Não se pode parar de lutar somente pelo fato de o STF não ter
considerado a Lei de Anistia inconstitucional ou porque um juiz federal
tenha indeferido liminarmente uma denúncia contra um desertor
criminoso, pois esses julgamentos corroboram com a impunidade e com
o ato de lançar a verdade na penumbra. O processo teve início e há de
chegar a um resultado seja aqui ou seja no Tribunal Penal Internacional.
O povo do Brasil exercerá o seu direito de resistência quando
pugnar pela condenação dos criminosos não somente na esfera
doméstica que ainda pode ter algum julgador disposto a reescrever a
História, mas também nas estruturas de proteção aos direitos humanos
internacionais. A luta contra a ditadura está apenas ganhando o cenário
dos tribunais, o que demonstra que ele perdura desde 1964.
Análise da (i)legitimidade da decisão da Justiça Federal...
209
O problema é que os atos ilegítimos dos militares estão
lamentavelmente sendo reproduzidos pelo Judiciário que insiste em
perpetuar a impunidade do passado pouco glorioso deste país. Mas a
desobediência civil recomenda que o Tribunal Penal Internacional seja
acionado como último sopro de luta por justiça antes do retorno da
barbárie com a total fraqueza das instituições.
Portanto, o governo militar não tinha legitimidade para perseguir,
torturar, estuprar e matar o povo de seu país. Essa legitimidade também
não havia no caso de criação de uma Lei de Anistia para proteger todos
aqueles que cometeram crimes comuns contra a população.
Por isso é chegada a hora de levar o Brasil para as cortes
internacionais visto que não está sendo digno com seu passado e com
seu povo. É preciso abrir a “caixa-preta” que existe na História do
Brasil. É preciso resistir internamente para que se possa buscar justiça
externamente, isso é promover direitos humanos.
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As violações de direitos humanos no DOI/
CODI/II Exército (1970-1976): aspectos
da atuação do Ministério Público Federal
em São Paulo
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
Diorge Alceno Konrad
Este texto procura abordar a forma como a democracia brasileira
restaurada trata das violações de Direitos Humanos praticadas no
âmbito do DOI/CODI/II Exército, dentre elas os crimes de prisão
ilegal, tortura, homicídio e desaparecimento forçado de cidadãos. Cabe
lembrar que as democracias restauradas da América Latina, na visão
de Alain Rouquié: “são as herdeiras das ditaduras, quando não são suas
prisioneiras. E os jogos de coerções que os autoritarismos imprimem
a cultura política não as afetam menos que os ‘ajustes’ institucionais
que se instalaram”.1
Levando-se em consideração que os governos pós-ditaduras
possuem características próprias, bem assim como “as ditaduras não
desaparecem por encanto”,2 analisamos neste estudo, alguns aspectos da
atuação do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo, em relação
aos crimes praticados no período de 1970 a 1976 nas dependências do
DOI/CODI Paulista. Visando contextualizar o período das violações
de Direitos Humanos, buscamos abordar a formação da estrutura
repressiva daquele órgão policial, bem como tratamos da constituição
da ideia de direitos humanos, no cenário político brasileiro.
Ao longo deste trabalho, utilizamos dois conceitos-chave
para analisar as iniciativas cíveis do MPF em São Paulo, no tocante à
promoção de reparações aos Direitos Humanos violados no DOI/CODI/
II Exército. No primeiro momento, o conceito de justiça transicional
assenta a pretensão deste texto, tendo em vista que, de acordo com
1
ROUQUIÉ, Alain. A la sombra de las dictaduras: la democracia en América Latina. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica, 2011. p. 15.
2
Ibid, p. 114-115.
214
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
Jon Elster, “a justiça transicional é composta pelos processos de juízos,
expurgos e reparações que têm lugar no período de transição de um
regime político para outro”.3 Ademais, no momento de transição para
o regime democrático, surgem alguns problemas que necessitam ser
resolvidos de forma breve:
(a) como fazer com que os líderes do regime político anterior
“prestem contas” de seus atos políticos e, também, dos crimes
cometidos e impedir que continuem exercendo influência política
relevante no futuro? (b) Como construir um novo – e melhor –
regime político? (c) O que fazer com as vítimas do regime político
anterior? (d) Como conciliar a busca por justiça – rápida, ágil e
severa com os criminosos – com a reestruturação econômica e
política da sociedade?4
A constituição desta investigação também leva em consideração
algumas ideias de justiça, propostas por Agnes Heller, a partir da
perspectiva do conceito formal de justiça. Buscamos desenvolver a
análise da implementação das reparações aos graves crimes praticados
durante o período de 1970-1976, no DOI/CODI de São Paulo, através
das ideias de “a cada um a mesma coisa” e “a cada um de acordo com
suas necessidades”, as quais foram e são sugeridas como ideias de
justiça distributiva.5
Neste texto realizamos a análise das principais peças dos autos
judiciais referentes ao Caso DOI/CODI/II Exército, bem como a
sentença do Caso Gomes Lund versus Brasil, referente ao julgamento da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em complemento,
o estudo monográfico das Forças Armadas sobre a atuação dos DOI/
CODI serviu para elaboração dos resultados alcançados pelo organismo
repressor paulista, assim como são trazidas algumas matérias produzidas
pela Revista Veja, no tocante aos abusos dos Direitos Humanos
praticados durante a Ditadura Civil-Militar de 1964.
3
ELSTER, Jon. Rendición de cuentas: la justicia transicional en perspectiva histórica. Buenos
Aires: Katz, 2006, p. 15.
SILVA, Alexandre Garrido da; VIEIRA, José Ribas. Justiça transicional, direitos humanos e
a seletividade do ativismo judicial no Brasil. In: Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo
Horizonte, v. 11, n. 22, 2º Sem., 2008, p. 21.
4
5
HELLER, Agnes. Além da justiça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 47.
As violações de direitos humanos no DOI/CODI/II Exército...
215
Formação da Estrutura Repressiva DOI/CODI/II Exército
O contexto histórico da institucionalização da repressão à
dissidência política brasileira, notadamente do surgimento do DOI/
CODI/II Exército, guarda vinculação com o período anterior à deflagração
do Golpe Civil-Militar de 1964. A preocupação com o recolhimento de
informações ocorreu desde o período pré-1964, tendo em vista que
Golbery do Couto e Silva, um dos principais ideólogos da Ditadura
de Segurança Nacional no Brasil, reuniu no Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (IPES) milhares de fichas e dossiês que foram levados
posteriormente para o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão
que o referido militar assumiu a chefia em julho de 1964.6
Dessa maneira, o Serviço Nacional de Informações (SNI) passou
a ser o principal órgão do Sistema Nacional de Informações (SISNI),
criado para subsidiar as atividades da repressão política no período
pós-1964. O projeto repressivo civil-militar não se tratava apenas de
mera reposta aos contratempos da época, tendo em vista que muitos
militares acreditavam que via controle policial-militar a sociedade
poderia ser moldada de forma estática e desideologizada, bem como
seria possível combater a guerrilha e, numa segunda etapa, fazer um
trabalho preventivo de saneamento ideológico.7
A compreensão da atuação política das Forças Armadas brasileiras,
durante os anos de 1964-1985, deve ser realizada à luz do anticomunismo
político-militar e também da Doutrina de Segurança Nacional e
Desenvolvimento, a qual via no “subversivo”, no “terrorista”, enfim no
opositor, o principal inimigo da Ditadura, chamada eufemisticamente
de “Revolução”. O argumento anticomunista foi o principal elemento do
discurso que levou ao Golpe Civil-Militar de 31 de março, e a ideia de que
o Brasil corria o risco de ser dominado pelos comunistas constituiu-se
como principal justificativa para a derrubada de João Goulart.8
6
FICO, Carlos. Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da repressão.
In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). Brasil Republicano. Livro 4.
O tempo da Ditadura. Regime Militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, p. 174-175.
7
D’ARAUJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO, Celso. Os anos de chumbo. A
memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 7.
8
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O anticomunismo militar. In: MARTINS FILHO, João Roberto (Org.).
216
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
A Ditadura Civil-Militar, implementada a partir de 1964,
possuiu entre seus pilares uma ideologia de dominação de classe,
compreendida, resumidamente, através do abuso de poder ou da
força para alcançar os objetivos do Estado. A Doutrina de Segurança
Nacional e de Desenvolvimento traz em sua essência uma visão de
mundo utilizada para moldar as estruturas do Estado Brasileiro, a
qual procura impor formas de controle específicas da sociedade civil,
bem como delinear um projeto de governo do Brasil, na visão de Maria
Helena Moreira Alves trata-se de variante teórica que:
[…] constitui um corpo orgânico de pensamento que inclui
uma teoria de guerra, uma teoria de revolução e subversão
interna, uma teoria do papel do Brasil na política mundial e
de seu potencial geopolítico como potência mundial, e um
modelo específico de desenvolvimento econômico associadodependente que combina elementos da economia keynesiana
ao capitalismo de Estado.9
A elevada cooperação e integração entre os poderes Militar e
Judiciário é uma das características essenciais da Ditadura Civil-Militar
brasileira pós-1964. O padrão brasileiro de repressão explica por que
pouco foi feito no País, diante da Justiça Transicional, em comparação
com o Chile e a Argentina. Além disso, as variações da relação entre o
Estado de Direito e o Autoritarismo, de acordo com Anthony Pereira, não
podem ser explicadas como resultado da força da oposição enfrentada
por cada governo, e sim se devem observar o consenso, a integração e a
cooperação entre os militares e o Judiciário.10
Na tentativa de responder por que os governos autoritários se dão
ao trabalho de judicializar a repressão, Anthony Pereira sugere dupla
resposta. Em primeiro lugar, é vantajoso para os regimes autoritários
legitimar seu poder com algum grau de embasamento legal, e em
segundo lugar, os regimes autoritários judicializam a repressão por que
têm condições de fazê-lo. Na visão de Anthony Pereira,
O Golpe de 1964 e o Regime Militar: novas perspectivas. São Carlos: EDUFSCAR, 2006, p. 11-12.
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru: EDUSC,
2005, p. 31.
9
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o Autoritarismo e o Estado de Direito no Brasil, no
Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 283.
10
As violações de direitos humanos no DOI/CODI/II Exército...
217
Os que conseguem judicializar a repressão são aqueles
que podem contar com tribunais “dignos de confiança” –
tribunais civis ou militares cujos veredictos se harmonizam com
a concepção de legalidade adotada pelo regime, e que não irão
contestar as bases do poder autoritário.11
Diante da perspectiva de analisar a estrutura repressiva
paulista, importa notar o pensamento militar da década de 1970,
através das memórias de Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante
do DOI/CODI/II Exército, no período de 1970/1974. A centralização
da repressão à dissidência política, a partir do nascimento da
Operação Bandeirante (OBAN), em julho de 1969, definida pela
Diretriz para Política de Segurança Interna, do Governo Costa e
Silva, evidencia o processo de assunção do Exército da coordenação e
execução repressiva. A contar dos resultados alcançados com as ações
da Operação Bandeirante (OBAN), a Ditadura Civil-Militar avança
na concessão do campo de atuação dos Comandantes Militares de
Área (CMA) e, em setembro 1970, surge a Diretriz Presidencial de
Segurança Interna, elaborada no governo do general-presidente Emílio
Garrastazu Médici, possibilitando a existência dos Destacamentos
de Operações de Informações (DOIs) em nível federal. Seguimos o
“combate à subversão”, segundo Ustra:
Na primeira quinzena de setembro de 1970, a Presidência
da República, em face aos problemas criados pelo terrorismo,
expediu um documento que analisava em profundidade as
consequências que poderiam advir dessa situação e definia o
que deveria ser feito para impedir e neutralizar os movimentos
subversivos. De acordo com essa Diretriz, em cada Comando
de Exército, que hoje se denomina Comando Militar de Área,
existiria: um Conselho de Defesa Interna (CONDI); um Centro
de Operações de Defesa Interna (CODI); um Destacamento de
Operações de Informações (DOI); todos sob a coordenação do
próprio Comandante de cada Exército”.12
11
Ibid., p. 284.
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: OBAN, DOI/CODI. 29set.70-24jan.74.
Brasília: Editerra, 1987, p. 67. Grifos nossos.
12
218
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
Em tempo, o governo do general-presidente Emílio Médici é
marcado pela busca da democracia e do desenvolvimento, conforme
suas palavras: “Democracia e desenvolvimento não se resume
em iniciativas governamentais: são atos de vontade coletiva que
cabe ao Governo coordenar e transformar em autênticos e efetivos
objetivos nacionais”.13 Para auxiliar os esforços do governo na busca
por seus objetivos, o Exército Brasileiro desenvolveu uma linha de
ação genuinamente brasileira que serviu de ensinamento para vários
outros países:
Isso ocorreu com a criação dos CONDI, dos CODI
e dos DOI e com o empenho de apenas 450 homens do seu
efetivo, distribuídos aos DOI. O restante do pessoal dos DOI
era complementado com os bravos e competentes membros
das Polícias Civil e Militar dos Estados. O Exército, através
dos Generais de Exército, Comandantes Militares de Área,
centralizou, ordenou, comandou e se tornou responsável pela
condução da Contrassubversão no país. Os DOI eram a força
pronta para o combate, diretamente a eles subordinados.14
Conforme estudo das Forças Armadas, o DOI/CODI/II Exército,
no período de 1970 a 1977, deteve aproximadamente 6.897 cidadãos.
Em cerca de sete anos, conforme dados da Tabela 1, 54 cidadãos
foram mortos no próprio Destacamento de Operações de Informações
(DOI) de São Paulo15 e 542 “encaminhados a outros órgãos”, muitas
vezes outros DOI/CODI e demais órgãos de repressão. Com base no
relatório oficial da Presidência da República, divulgado no livro Direito
à Memória e à Verdade, é possível identificar 64 casos de mortos e
13
MÉDICI, Emílio Garrastazu. O jogo da verdade. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional,
2 ed., 1970, p. 11.
14
USTRA, Carlos Alberto Brilhante, op. cit., p. 68.
Devemos ressaltar que esta afirmação não é corroborada por Carlos Alberto Brilhante Ustra e
Audir dos Santos Maciel, os comandantes do DOI/CODI/II Exército, no período de 1970-1976. Em
relação às mortes relacionadas na Monografia do Major Perdigão, Ustra afirma que tais mortes
ocorreram em combate. Na versão de Ustra: “Além dos combates, era comum os presos ao serem
soltos para cobrir um ‘ponto’, tentarem a fuga. Em outras oportunidades, o contato com quem
se encontrava no ‘ponto’, ao perceber que seu companheiro estava preso, entregava-lhe uma
arma e os dois reagiam.” Ver: Contestação. Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ação Civil Pública nº
2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativo ao “Caso
DOI/CODI/SP”, fls. 439/440.
15
As violações de direitos humanos no DOI/CODI/II Exército...
219
desaparecidos pelo aparato do DOI/CODI de São Paulo (inclusive por
seus agentes em diligência), no período de 1970-1976.16
O processo de assunção do Exército Brasileiro da coordenação
da repressão política ocasionou o surgimento dos DOI e a estrutura
repressiva deste órgão repetia o trabalho da Operação Bandeirante
(OBAN), tratava-se de corpo de polícia política dentro das organizações
militares do Exército. Na visão de Elio Gaspari:
Repetia-se no DOI o defeito genético da Oban, misturandose informações, operações, carceragem e serviços jurídicos.
O destacamento formava uma unidade policial autárquica,
concebida de forma a preencher todas as necessidades da ação
repressiva sem depender de outros serviços públicos. Funcionou
com diversas estruturas e na sua derradeira versão tinha quatro
seções: investigação, informações e análise, busca e apreensão, e
administração. Dispunha de uma assessoria jurídica e policial.17
Ademais, o Destacamento de Operações de Informações (DOI)
é caracterizado, conforme Carlos Fico, como organismo flexível para
combater a guerrilha urbana. Nas palavras do primeiro comandante
do DOI/CODI/II Exército: “não se consegue combater o terrorismo
amparado nas leis normais, eficientes para um cidadão comum.
Os terroristas não eram cidadãos comuns”.18 Possivelmente, esse
pensamento justifique a organização flexível do DOI/CODI Paulista,
bem como a prática de diversas violações de Direitos Humanos no
tratamento dos presos políticos. Desse modo, para Carlos Fico:
Os DOI seriam uma espécie de “anticorpo mutável”, diante
da nova “virose” da guerrilha urbana. […] Os “destacamentos”,
diferentemente das “companhias”, “batalhões” ou “regimentos”,
não possuem, nas organizações militares, uma composição fixa.
Assim flexíveis, os DOI podiam movimentar pessoal e material
BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos
Humanos, 2007. Há de se ressaltar que os 64 casos de mortos e desaparecidos são referidos na
Ação Civil Pública referente ao Caso DOI/CODI de São Paulo, promovida pelo MPF em São Paulo.
16
GASPARI, Elio. As ilusões armadas: A Ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras,
2009, p. 180.
17
18
USTRA, Carlos Alberto Brilhante, op. cit., p. 85. Grifos nossos.
220
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
variável, conforme as necessidades de cada operação, com grande
mobilidade e agilidade.19
RESULTADOS ALCANÇADOS ENTRE 1970-1977
Total
Presos pelo DOI
Encaminhados ao DOPS para Processo
2.541
1.001
Encaminhados a outros Órgãos
Liberados
Mortos
Presos recebidos de outros Órgãos
Encaminhados ao DOPS para Processo
Encaminhados a outros Órgãos
Liberados
Mortos
Elementos que prestaram declarações e foram liberados
Total de cidadãos que passaram pelo DOI/CODI/II Exército
201
1.289
51
914
347
341
221
3
3.442
6.897
Tabela 1: Resultados alcançados pelo DOI/CODI/II Exército.20
O contexto da atuação repressiva do DOI/CODI/II Exército deve
ser analisado a partir do período de crise da Ditadura Civil-Militar.
Nesse período, iniciam-se as tratativas em direção à distensão política
brasileira, tema que abordaremos a seguir.
1973: Início da Crise da Ditadura Civil-Militar
Durante o ano 1972, a Ditadura Civil-Militar Brasileira
empreendeu
esforços
significativos
na
comemoração
do
sesquicentenário da Independência do País (1822-1972). Dentre
19
FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 123.
Resultados alcançados pelo órgão repressor desde sua criação em na segundo semestre de 1970
até 19/05/1977. Tabela elaborada a partir de dados encontrados em: PEREIRA, Freddie Perdigão.
O Destacamento de Operações de Informações (DOI). Histórico papel no combate à subversão –
Situação atual e perspectivas. Monografia. Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Rio de
Janeiro, 1977, p. 28. Documento Confidencial. Encartado no Anexo 4 da peça inicial da Ação Civil
Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativo
ao “Caso DOI/CODI/SP”.
20
As violações de direitos humanos no DOI/CODI/II Exército...
221
as realizações deste ano, destacou-se a publicação da obra Brasil:
150 anos de Independência, através da Editora Divulbrás, empresa
criada para realizar a divulgação das instituições políticas, sociais,
econômicas e culturais do Brasil. Nessa obra, através do olhar
do Poder Executivo, observamos a caracterização das primeiras
realizações do governo Médici, no período compreendido entre 1969
e 1972. A política econômica daquele período chegou a alcançar 9% de
crescimento sobre o Produto Interno Bruto (PIB) nacional, bem como
desenvolveram-se variadas ações políticas voltadas para promoverem
o Plano de Integração Nacional, através do financiamento de obras
de infraestrutura econômica e social nas regiões Norte e Nordeste do
País, além do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural, com a
consequente extensão de todos os benefícios da Previdência Social aos
trabalhadores do campo.21
Embora, tenham existido condições econômicas favoráveis
ao crescimento do Brasil até o ano de 1972, devemos lembrar que a
gênese da distensão política corresponde, na visão de Suzeley Mathias,
a erosão da legitimidade do governo do general-presidente Médici,
ocorrida no final de 1973. A distensão política brasileira, ocorrida a
partir do governo do general-presidente Ernesto Geisel, consistia
em descomprometer os militares com a repressão e estabelecer uma
democracia tutelar de “dictablanda”.22
Dessa forma, a transição política, pressionada pela retomada
dos movimentos sociais e políticos de oposição, efetuada no contexto
brasileiro, no que tange ao poder, consistiu numa transição negociada das
classes dominantes brasileiras, tendo em vista o alto controle das elites
sobre o processo político. O marco da ação liberalizante da Ditadura CivilMilitar corresponde às eleições de 1974, as quais provocaram através de
seu resultado efeito direto sobre a velocidade do projeto de distensão.23
A Ditadura Brasileira enfrentou, no ano de 1976, um de seus
maiores desafios com a ascensão de Jimmy Carter à presidência dos
EUA. A partir de tal acontecimento, ocorreram transformações políticas
MELLO, Agenor Bandeira. Brasil 150 Anos de Independência: Resumo histórico e documento da
atualidade b. Rio de Janeiro: Divulbrás, 1972, p. 173-174.
21
22
MATHIAS, Suzeley Kalil. Distensão no Brasil: O Projeto Militar (1973-1979). Campinas: Papirus,
1995, p. 38.
23
Ibid. p. 38.
222
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
e econômicas na América do Sul, semelhantes as do Leste Europeu de
período posterior (1984/1985). Dentre elas destacamos a crítica do
predomínio de um partido oficial ou instituição que faça às vezes deste
partido e a denúncia da atuação de polícias responsáveis pela repressão
das dissidências políticas. Entre os principais atores da abertura política
brasileira, ao longo dos anos 1970 e 1980, encontramos a pressão exterior,
notadamente do Governo Carter, agregada às condicionantes da economia
mundial, além da já citada retomada dos movimentos sociopolíticos
de oposição. É claro que o cenário político da abertura contava com a
Estratégia Geisel-Golbery e o projeto de abertura do Poder Militar, bem
como a ação da oposição: autônoma, porém, “condicionada”.24
Em março de 1979, a revista Veja revelou alguns paradoxos do
governo Geisel. Entre eles, a utilização do autoritarismo para começar
a desmontar a Ditadura ao seu redor. Outro paradoxo apontado foi a
prepotência do general, associada à falta de articulação e a pouca atenção
dada ao diálogo e às atenções políticas, frente à abertura de dentro, o
que denotaria sua manobra para reformar as instituições em ruptura.25
Dessa maneira, para alcançar os objetivos estabelecidos neste
texto, desenvolveremos breve histórico sobre o desenvolvimento das
ideias de Direitos Humanos, em especial sobre a perspectiva do Poder
Legislativo brasileiro.
Ideias de Direitos Humanos
Para a historiadora Lynn Hunt, os Direitos Humanos dependem
tanto do domínio de si mesmo [autonomia] como do reconhecimento
[empatia] de que todos os outros são igualmente senhores de si, e por esse
motivo o desenvolvimento incompleto da empatia, ou do reconhecimento
de que todos os outros são igualmente senhores de si, dá origem a todas
as desigualdades de direitos, ao longo de toda a História.26
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política
no Brasil, 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil
Republicano. Livro IV. O tempo da Ditadura: Regime Militar e movimentos sociais em fins do
século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 3 Ed., 2009, p. 247.
24
25
Veja, Edição 549, 14/03/1979. São Paulo: Editora Abril, p. 46.
26
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras,
As violações de direitos humanos no DOI/CODI/II Exército...
223
No contexto brasileiro, marcado pelas graves violações de
Direitos Humanos, principalmente no período da Ditadura Civil-Militar,
podemos notar que a constituição de tais direitos está imbricada no
proposto por Lynn Hunt, posto que:
Os direitos não podem ser definidos de uma vez por todas,
porque sua base emocional continua a se deslocar, em parte como
reação às declarações de direitos. Os direitos permanecem sujeitos
a discussão porque a nossa percepção de quem tem direitos e do
que são esses direitos muda constantemente.27
O detalhamento do contexto político de aprovação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 demonstra que a
universalidade, daquele momento, de tais direitos não foi plena, tendo
em vista que tal Declaração “foi, como é sabido, aprovada por votação
em que oito governos se abstiveram, em uma Assembleia Geral das
Nações Unidas, então composta por 56 países, estando a maior parte
da humanidade sob o jugo colonial”.28 É somente a partir da realização
da Conferência Mundial de Viena, em 1993, que os Direitos Humanos,
estabelecidos na Declaração Universal de 1948, foram pela primeira
vez, reconhecidos pelo conjunto completo de Estados de todo o planeta,
embora, com “declarações interpretativas”.29
A História dos Direitos Humanos no Brasil, sob a perspectiva do
Poder Legislativo, é acontecimento relacionado diretamente ao período
pré-Golpe Civil-Militar. Conforme pondera Nilmário Miranda:
A primeira vez que a questão apareceu no espaço público
foi em 1956, quando o então deputado federal Bilac Pinto (UDN/
MG) apresentou um projeto de lei à Câmara dos Deputados criando
o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).
No entanto somente em 1964, oito anos depois, o Conselho foi
aprovado e sancionado pelo então presidente João Goulart. Na
2009, p. 28.
27
Ibid, p. 27.
ALVES, J.A. Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva,
2005, p. 9.
28
29
Ibid, p. 9.
224
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
verdade, o projeto de lei foi sancionado no dia 16 de março de
1964, quinze dias antes do golpe militar que rasgou a Constituição
e violou os Direitos Humanos sistematicamente.30
No ano de 1968, durante o governo do general-presidente Costa e
Silva, havia muitas denúncias de tortura, arbitrariedades contra presos
políticos, repressão a estudantes, violação de Direitos Humanos de toda
maneira. Diante dessas denúncias públicas, Costa e Silva convocou a
instalação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(CDDPH) em solenidade com o Ministro Gama e Silva, futuro redator
do Ato Institucional nº 5.31
Em dezembro de 1969, a revista Veja trazia em sua capa a frase
“O presidente não admite torturas”. Tratava-se de matéria relatando os
primeiros dias do governo do General Garrastazu Médici e a proposição
de mudança nos métodos de combate à “subversão”. Na visão de Médici,
havia uma importância exagerada nas ações da dissidência política. Para
enfrentar a oposição, em nome do combate à “subversão”, o terceiro
governo da Ditadura Civil-Militar buscava o apoio da população. As
denúncias de violências contra os Direitos Humanos no País, divulgadas
no exterior, desde os anos anteriores irritava o governo da Ditadura.
De todo modo, Médici havia assumido à Presidência com declarações
públicas no sentido de promover a reabertura política, o restabelecimento
da Justiça e dos Direitos Civis no país.32
Somente a partir da criação da Comissão de Direitos Humanos
(CDH), em 1995, na Câmara dos Deputados, constituiu-se um locus
privilegiado para a promoção dos Direitos Humanos no Brasil. Por isso,
há de ser ressaltar que as iniciativas políticas visando à promoção dos
Direitos Humanos no País, mesmo após o final de Ditadura Civil-Militar,
encontraram óbices significativos, como ocorrido no surgimento da
Comissão de Direitos Humanos na Câmara Federal:
Em 1987, a Deputada Federal Benedita da Silva havia
apresentado um projeto de resolução, que foi arquivado pela
Mesa. Em 1991, a Deputada voltou a apresentar o mesmo projeto,
30
MIRANDA, Nilmário. Por que direitos humanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 33.
31
Ibid, p. 33.
32
VEJA, Edição 65, 03/12/1969. São Paulo: Editora Abril, p. 19.
As violações de direitos humanos no DOI/CODI/II Exército...
225
que foi novamente arquivado sob a alegação de que a Comissão
deveria ser uma Subcomissão da Comissão de Justiça e Redação.33
Após, as considerações apresentadas sobre a evolução das
ideias de Direitos Humanos, partiremos para o contexto histórico do
início da atuação do Ministério Público Federal diante da necessidade
de promover a reparação e a responsabilização pelos crimes ocorridos
durante a Ditadura Civil-Militar de 1964.
As iniciativas do Ministério Público Federal
Alguns acontecimentos, no plano internacional, influenciaram
as iniciativas do Ministério Público Federal (MPF), em São Paulo,
diante da promoção das reparações as violações de Direitos Humanos
ocorridas no período de 1964-1985. Entre eles, a prisão de Augusto
José Ramón Pinochet Ugarte que se converteu em marco histórico
na repressão dos crimes contra a humanidade. Agrega-se a esse
acontecimento, a atuação da justiça italiana, em referência à Operação
Condor, no tocante à identificação e punição dos responsáveis pelo
desaparecimento forçado34 dos cidadãos ítalo-argentinos Lorenzo
Ismael Viñas e Horacio Domingo Campiglia.35
33
MIRANDA, Nilmário, op. cit., p.47.
Em relação ao crime de desaparecimento forçado, considerado uma violação múltipla e
continuada de Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) assim se
manifestou no Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil: “Nenhuma lei ou norma de direito interno,
como as disposições de anistia, as regras de prescrição e outras excludentes de responsabilidade,
pode impedir que um Estado cumpra essa obrigação [dever de investigar, punir, se for o caso],
especialmente quando se trate de graves violações de Direitos Humanos que constituam crimes
contra a humanidade, como os desaparecimentos forçados do presente caso, pois esses crimes são
inanistiáveis e imprescritíveis”. Ver Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) e outros vs. Brasil.
Corte Interamericana de Direitos Humanos Sentença (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações
e Custas) de 24 de novembro de 2010. par. 127, p. 47, interpolação nossa. Disponível em: <http://
www.direitoshumanos.gov.br/sobre/sistemasint/lund.pdf>. Acesso em: 1 jul. 2011.
34
35
FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Crimes da Ditadura: iniciativas do Ministério Público
Federal em São Paulo. In: KISHI, Sandra A. Shimada; SOARES, Inês V. Prado (Coord.). Memória e
verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009,
p. 220-21.
226
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
O contexto de possível punição jurídica aos envolvidos na prática
de violações aos Direitos Humanos, ocorridas no âmbito do DOI/CODI
de São Paulo, é marcado pela incoerência da prescrição e da Lei de
Anistia brasileira.36 O texto da Lei da Anistia de 1979 não abrange crimes
cometidos pelos militares e policiais contra os opositores políticos, tendo
em vista que as Forças Armadas negavam e ainda negam a prática de
qualquer crime, disso resulta a questão: “Como os crimes dos militares
podem ter sido anistiados se sequer foram admitidos?”.37
O início da atuação do MPF, em São Paulo, diante dos crimes
da Ditadura Civil-Militar, relaciona-se à tarefa humanitária de buscar
e identificar restos mortais de desaparecidos políticos para entrega
às respectivas famílias. Em setembro de 1999, instaurou-se na
Procuradoria da República, em São Paulo, o Inquérito Civil Público nº
06/1999, a partir da representação da Comissão Especial dos Familiares
de Mortos e Desaparecidos Políticos.38 As investigações ministeriais
36
Sobre as discussões em torno do conceito de Anistia Política, importa notar o trabalho de Lauro
Swenson Júnior, sobre a validade da anistia concedida em 1979, pois “Quando um Estado decide
não punir ou diminuir a pena de certos criminosos, ele nunca perdoa, mas exerce seu poder de
clemência, comutando penas, concedendo anistia, indulto ou graça”. Ver: SWENSON JUNIOR,
Lauro Joppert. Problemas de validade da Lei de Anistia brasileira (Lei 6.683/79). Curitiba:
Juruá, 2010, p. 141.
FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. op. cit., p. 214. Em relação à concessão de anistia,
mediante o desenvolvimento de mecanismos de justiça transicional, é oportuno mencionarmos a
Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR), implementada na África do Sul. Conforme assevera
Edson Teles, a Comissão de Verdade sul-africana é diferente das antecessoras desenvolvidas na
América Latina, tendo em vista que: a) tem sua política centrada na reconciliação e no perdão,
b) procura libertar o cidadão do ato inaugural da violência; c) buscou gesto civil de reunião e
compreensão entre vítimas e criminosos, através da apuração da verdade dos fatos, da reparação
moral às vítimas e da anistia aos que confessaram seus atos, bem como adotou procedimento da
instituição política que procura produzir a verdade e a reconciliação. Ver: TELES, Edson Luís de
Almeida. Brasil e África do Sul: rupturas e continuidades nas transições políticas. In: SOARES,
Inês V. Prado; KISHI, Sandra A. Shimada (Coords.). Memória e Verdade: A Justiça de Transição
no Estado Democrático Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 119-131. O modelo adotado
pela Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR) sul-africana para conceder anistia aos violadores
de Direitos Humanos é talvez uma das mais inovadoras e criativas contribuições para a justiça
de transição em anos recentes, conforme Nahla Nvali, componente da Comissão da Verdade e
Reconciliação da África do Sul. Ver: NVALI, Nahla. Comissão de Verdade e Reconciliação na
África do Sul. In: Revista Democracia Viva, Rio de Janeiro: IBASE, n. 17, 2003. Também é
significativo o estudo elaborado pela Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados brasileira
acerca dessa temática. Para mais detalhes, ver: CINTRA, Antônio Octávio. As comissões de
verdade e reconciliação: O caso da África do Sul. Brasília: Consultoria Legislativa da Câmara dos
Deputados, fevereiro/2001.
37
38
Em 1995, o governo brasileiro promulgou a Lei nº 9.140, que visa à reparação econômica das
vítimas da Ditadura Civil-Militar no país, através da concessão de indenização financeira. Além
disso, essa lei instituiu a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos
As violações de direitos humanos no DOI/CODI/II Exército...
227
evidenciaram a necessidade de implementação de medidas de justiça
transicional, tendo em vista as lacunas do processo de consolidação da
democracia brasileira.
Em 14/05/2008, o MPF, em São Paulo, propôs Ação Civil
Pública (ACP), relativa ao Caso DOI/CODI/SP, em face das pessoas
físicas Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel,
comandantes do organismo repressor-policial no período de 19701976, bem como da União Federal.39 A referida Ação Civil Pública foi
autuada sob o número 2008.61.00.011414, perante o juízo da 8ª Vara
da Justiça Federal de São Paulo.
Além da Ação Civil Pública, relativa ao Caso DOI/CODI/SP, a
Procuradoria da República em São Paulo e a Procuradoria Regional
da República na 3ª Região, órgãos do Ministério Público Federal,
propuseram mais cinco providências cíveis no tocante à promoção da
responsabilização pessoal de autores de torturas, desaparecimentos
forçados, homicídios e outros delitos, cometidos na repressão à
dissidência política durante a Ditadura Civil-Militar, assim como para a
revelação da verdade sobre esse processo histórico.40
(CEMDP), com o objetivo de promover o reconhecimento do Estado mediante a responsabilidade
dos crimes cometidos durante o período da repressão política no País. Acerca do surgimento da
CEMDP, do histórico de reivindicações e das lutas da Comissão em torno da Vala de Perus e da
Guerrilha do Araguaia, bem como sobre o processo indenizatório de Carlos Lamarca e Carlos
Marighella, convém salientar o trabalho de Sheila Cristina Santos. Ver: SANTOS, Sheila Cristina.
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a reparação do Estado
às vítimas da Ditadura Militar no Brasil. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia
Universidade Católica, São Paulo, 2008.
39
A petição inicial é assinada pelos seguintes Procuradores e Procuradoras da República, em São
Paulo: Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, Luciana da Costa Pinto, Luiz Fernando Gaspar Costa,
Sergio Gardenghi Suiama. Além desses membros do MPF, assinam o documento Marlon Alberto
Weichert, Procurador Regional da República e Adriana da Silva Fernandes, Procuradora Regional
dos Direitos do Cidadão.
40
Dentre as providências relacionadas a essa temática encontram-se a Ação Civil Pública, referente
ao Caso Manoel Fiel Filho, Autos n.º 2009.61.00.005503-0, em trâmite na 11ª Vara Federal de
São Paulo, a Ação Civil Pública, acerca do Caso Ossadas de Perus, Autos nº 2009.61.00.025169-4,
em trâmite na 6ª Vara Federal de São Paulo, a Ação Civil Pública, relativa ao Caso Desaparecidos
Políticos – IML – DOPS – Prefeitura SP, Autos nº 2009.61.00.025168-2, em trâmite na 4ª Vara
Federal de São Paulo, a Ação Civil Pública, referente ao Caso Policiais Civis no DOI-CODI/SP,
Autos nº 0018372-59.2010.4.03.6100, em trâmite na 7ª Vara Federal de São Paulo e a Ação Civil
Pública – Caso OBAN, Autos n.º 0021967-66.2010.4.03.6100, em trâmite na 4ª Vara Federal – São
Paulo. Ver: <http://www.prr3.mpf.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=143&I
temid=184>. Acesso em: 05 mar. 2012.
228
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
Neste texto, para alcançar o objetivo proposto analisamos a
Ação Civil Pública referente ao Caso DOI/CODI/SP. Essa ação trata
das violações de Direitos Humanos praticadas por agentes públicos
no exercício de função federal, no Destacamento de Operações de
Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI),
do Exército Brasileiro em São Paulo. Na visão de seus idealizadores, a
ação judicial trata-se de instrumento de produção da verdade, da justiça
e da reparação.41 A seguir apresentamos a pretensão desta Ação Civil
Pública movida pelo Ministério Público Federal:
1) Declarar a existência de obrigação do Exército Brasileiro, órgão da
ré União Federal, em tornar públicas à sociedade brasileira todas as
informações relativas às atividades desenvolvidas no DOI/CODI/II
Exército no período de 1970 a 1985, inclusive a divulgação de:
a) nomes completos de todas as pessoas presas legal ou ilegalmente,
as datas e as circunstâncias de suas detenções, inclusive com todas as
“grades diárias” de controle de presos;
b) nomes de todas as pessoas torturadas;
c) nomes de todas as pessoas que morreram nas dependências do DOI/
CODI/II Exército ou em ações externas de seus agentes;
d) circunstâncias das mortes ocorridas;
e) destinos das pessoas desaparecidas;
f) nomes completos – bem como eventuais apelidos ou alcunhas – de
todos os agentes militares e civis que serviram no órgão, suas patentes
ou cargos nos serviços de origem, suas funções no DOI/CODI e
respectivos períodos em que exerceram suas funções;
2) Declaração da omissão da ré União Federal em promover as medidas
necessárias à reparação regressiva dos danos que suportou no pagamento
das indenizações previstas na Lei nº 9.140/95.
3) Declaração da existência de responsabilidade pessoal dos réus Carlos
Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel perante a sociedade
brasileira pela perpetração de violações de Direitos Humanos,
especialmente prisão ilegal, tortura, homicídio e desaparecimento
forçado de cidadãos, sob seu comando no extinto DOI/CODI/II
Exército, bem como a existência de relação jurídica entre os réus e
41
Ver: Petição inicial Ministério Público Federal. Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5,
proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativo ao “Caso DOI/CODI/SP”, fl.10.
As violações de direitos humanos no DOI/CODI/II Exército...
229
os familiares das 64 vítimas do aparato do DOI/CODI/SP no período
1970-1976, pela corresponsabilidade nos atos ilícitos que culminaram
na morte ou desaparecimentos desses cidadãos.
4) Condenar os réus Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos
Maciel a repararem regressivamente, e em relação aos casos ocorridos
nos períodos em que respectivamente comandaram o DOI/CODI do II
Exército, os danos suportados pelo Tesouro Nacional na forma da Lei nº
9.140/95 a título de indenização aos parentes das vítimas indicadas no
item 2 desta inicial, tudo atualizado monetariamente e acrescido de juros
moratórios pelos índices aplicáveis aos créditos da Fazenda Nacional.
5) Condenar os réus CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA e
AUDIR SANTOS MACIEL a repararem os danos morais coletivos,
mediante indenização a ser revertida ao Fundo de Direitos Difusos,
em montante a ser fixado na sentença, ou outra providência material
cabível, com base nos elementos que forem apurados no curso da ação.
6) Condenar os réus CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA e
AUDIR SANTOS MACIEL à perda das funções públicas que estejam
eventualmente exercendo, bem como a não mais serem investidos em
qualquer nova função pública.42
Nesse contexto, oportuno evidenciar a competência da Justiça
Federal para apurar as graves violações de Direitos Humanos ocorridas
durante a Ditadura Civil-Militar. Os atos praticados por agentes da Forças
Armadas, próprios ou requisitados de outros órgãos públicos, no âmbito
das funções do DOI/CODI ou de outros órgãos militares, revestem a
natureza de atos de servidores públicos federais. Dessa maneira, tais atos
atraem a competência da Justiça Federal para processá-los e julgá-los,
por força do disposto no artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal,
conforme entendimento sumulado pela jurisprudência (Súmula nº 254
do Tribunal Federal de Recursos, mantida pelo STJ – CC 1.679/RJ e
RHC 2.201/DF).43
42
Ver: Petição inicial Ministério Público Federal. Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5,
proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativo ao “Caso DOI/CODI/SP”, fls.
73/75. Grifos nossos.
43
FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga, op. cit., p. 225.
230
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
Os réus Carlos Alberto Brilhante Ustra,44 Audir Santos Maciel45
e a União Federal46 apresentaram contestação. Em seguimento, o
MPF apresentou réplica.47 Cabe destacar que o juízo da 8ª Vara Cível
suspendeu o processo até o julgamento final, pelo Supremo Tribunal
Federal, da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 4077 e da
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº
153.48 O Ministério Público interpôs Agravo de Instrumento,49 que foi
processado sem efeito suspensivo. O MPF requereu fosse dado imediato
prosseguimento ao trâmite da ação civil pública, diante do esgotamento
do prazo de suspensão, conforme artigo 265, § 5º, do CPC.
Os autos judiciais foram julgados, pelo Juiz Federal Clécio Braschi,
em 05/05/2010.50 A sentença julgou improcedente o pedido formulado
na inicial, de 1) condenação dos réus Carlos Alberto Brilhante Ustra e
Audir Santos Maciel a repararem todos os danos apontados pelo autor,
2) perda das funções públicas que estejam eventualmente exercendo e
3) não serem mais investidos em qualquer nova função pública. Quanto
aos demais itens do pedido, o MM. Juiz não os apreciou, extinguindo
o processo sem resolução do mérito, com fundamento no artigo 267,
inciso VI, do Código de Processo Civil.
O Ministério Público Federal interpôs recurso de apelação.
Com isso, o processo foi remetido ao Tribunal Regional Federal da 3ª
Região, em fevereiro de 2011, para o julgamento da apelação. Os autos
judiciais foram distribuídos à 3ª Turma do Tribunal Regional Federal,
encontrando-se conclusos em gabinete para a decisão da relatora
44
Ver: Contestação Carlos Alberto Brilhante Ustra. Ação Civil Pública nº 2008.61.00.0114145, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativa ao “Caso DOI/CODI/SP”,
fls. 396/465.
45
Ver: Contestação. Audir Santos Maciel. Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta
pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativa ao “Caso DOI/CODI/SP”, fls. 477/503.
46
Ver: Contestação. União Federal. Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo
Ministério Público Federal de São Paulo, relativa ao “Caso DOI/CODI/SP”, fls. 510/553.
47
Ver: Réplica. Ministério Público Federal. Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta
pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativa ao “Caso DOI/CODI/SP”, fls. 559/598.
48
Ver: Decisão. Juiz. Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público
Federal de São Paulo, relativo ao “Caso DOI/CODI/SP”, fls. 559/598.
49
Ver: Agravo de Instrumento. Ministério Público Federal. Ação Civil Pública nº
2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo, relativa ao “Caso
DOI/CODI/SP”, fls. 741/764.
50
Ver: Sentença. Juiz Clécio Braschi . Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, proposta pelo
Ministério Público Federal de São Paulo, relativa ao “Caso DOI/CODI/SP”, fls. 800/809.
As violações de direitos humanos no DOI/CODI/II Exército...
231
MM. Desembargadora Federal Cecilia Marcondes, até o momento da
finalização deste texto.
Considerações finais
Em realidade, o Estado Brasileiro ainda não efetivou o processo
de acerto de contas com o seu passado repressivo, bem como não houve
resposta institucional concreta aos crimes da Ditadura Civil-Militar
de 1964-1985. Há de se considerar que dificilmente seja possível
desenvolver programa de reparação capaz de compensar as vítimas de
severas atrocidades na proporção dos danos sofridos.
Além disso, temos que algumas ideias de justiça, propostas
por Agnes Heller, a partir da perspectiva do conceito formal de
justiça, são prejudicadas, posto que ainda não se concretizaram
na sociedade brasileira. A concepção ou princípio de a “cada um a
mesma coisa” e “a cada um de acordo com suas necessidades” são
ideias reguladoras de justiça, em diversas relações sociais diferentes,
a justiça legal sendo talvez a mais importante.51 No caso brasileiro,
levando-se em consideração o julgamento como ato de distribuição
de justiça, temos que tais princípios não se concretizam perante as
graves perpetrações de crimes contra humanidade, no período de
1970 a 1976, em especial.
De outro modo, devemos notar que diferentes ideias de justiça
são aplicadas a todas as sociedades, sendo que existem as ideias de
justiça dominantes, as quais podem excluir a validade e a aplicação
de determinadas outras ideias operacionais numa sociedade.52 Com
isso, o caso da ACP referente ao DOI/CODI/II Exército apresenta
evidências de ideias de justiça dominantes de forma clara, tendo em
vista que mesmo diante da consistente jurisprudência internacional
favorável, notadamente a atuação da Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH), as medidas de justiça transicional não se
concretizam na condição necessária para realizar a ruptura com o
passado e o presente autoritário e ditatorial brasileiro.
51
HELLER, Agnes, op. cit., p. 48.
52
Ibid, p. 48.
232
Diego Oliveira de Souza e Diorge Alceno Konrad
Por fim, conclui-se que a ideia de justiça transicional, na
perspectiva do Poder Judiciário brasileiro, defronta-se com ideias de
justiça dominantes, entre elas a afirmação da prescrição das violações
de Direitos Humanos, em especial neste artigo as praticadas no DOI/
CODI/II Exército, bem como da validade da Lei de Anistia de 1979.
Tais ideias de justiça dominantes impedem a realização do julgamento
penal e a consequente punição dos perpetradores de violências, bem
como criam óbices ao julgamento cível dos crimes praticados durante a
ditadura civil-militar.
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2008.61.00.011414-5, proposta pelo Ministério Público Federal de São
Paulo, relativo ao “Caso DOI/CODI/SP”.
Veja, Edição 65, 03/12/1969. São Paulo: Editora Abril.
Veja, Edição 549, 14/03/1979. São Paulo: Editora Abril.
O resgate da memória e da verdade:
uma análise da punibilidade dos crimes
ditatoriais no Brasil e do Uruguai
Cláucia Piccoli Faganello e Íris Pereira Guedes
Íris Pereira Guedes
A crise democrática atualmente vivida pelos países da América
Latina pode ser resultado do modo como esses países se subordinaram
à ordem imperialista mundial. O que todos os países latino-americanos
têm em comum é que essa aceitação se deu através de regimes ditatoriais
que alinhados aos Estados Unidos da América (EUA), durante a Guerra
Fria, abriram suas economias ao custo de desaparecimentos, mortes e
torturas dos seus cidadãos. A Doutrina de Segurança Nacional imposta
pelos EUA e expandida para os demais países aliados tinha como
principal objetivo evitar outras experiências como a Revolução Cubana.
Este estudo utiliza-se do recorte espacial brasileiro e uruguaio
para analisar como os regimes autoritários se deram nesses países, os
principais momentos das ditaduras e verificar quais os avanços foram
obtidos pelos governos pós- redemocratização e pela população que
durante esses regimes foram impedidos de exercer seus direitos, mortos,
desaparecidos e torturados por um estado militar que violou todos os
avanços obtidos em relação aos direitos individuais, políticos e sociais
desde a Revolução Francesa. Desconsiderando também os acordos
internacionais que esses países são signatários.
Como método utilizou-se o estudo comparado. Num primeiro
momento faz-se uma revisão histórica das Ditaduras Militares brasileira
e uruguaia, posteriormente analisam-se as Leis de Anistia no Brasil e
Caducidade no Uruguai e por fim faz-se uma comparação dos avanços
obtidos por esses países no que tange as violações de direitos humanos
cometidas por esses estados durante o domínio das forças armadas.
238
Cláucia Piccoli Faganello e Íris Pereira Guedes
A Ditadura Militar Brasileira e Lei de Anistia
O Brasil ao longo de sua história teve dois momentos com
governos autoritários, o primeiro no segundo governo de Getúlio
Vargas (1937-1945), conhecido como Estado Novo, e o segundo, objeto
desse estudo foi a Ditadura Militar Brasileira (1964-1985). Em 1961,
Jânio Quadros então presidente renuncia, momento em que seu vice
João Goulart está na China, impedido assim de assumir. Uma emenda
parlamentarista muda o regime de governo, nesse momento João
Goulart desembarca no RS (1º de setembro), mas devido às pressões,
renuncia. Nesse momento há um contato do Brasil com China e Rússia,
ocorre a visita de Che Guevara ao Brasil e foi o momento da Revolução
Cubana, há um medo rondando e uma insegurança no ar. É importante
lembrar que nesse momento, o mundo se encontra dividido pela Guerra
Fria em duas grandes potências: Estados Unidos representando o
sistema capitalista e União Soviética como representante do sistema
socialista. E que em 1961 foi estabelecida a Aliança para o Progresso,
pela qual a América Latina visando o seu desenvolvimento econômico
recebia ajuda dos Estados Unidos.
O Golpe Militar se dá em 1º de abril de 1964, sob a justificativa
de manutenção da segurança nacional interna. Segundo Cláudia
Wasserman, “claro estava que o controle da segurança interna equivalia
ao controle da “subversão comunista”,1 e complementa:
a partir do final da Segunda Guerra Mundial e mais especificamente
nos anos 50, os militares latino-americanos e brasileiros passaram
a agir de acordo com a Doutrina de Segurança Nacional: um
conjunto de princípios e normas que serviram de base ao sistema
capitalista ocidental e segundo o qual o mundo estava dividido
entre o bem e o mal, sendo esse último representado pelo
comunismo internacional, supostamente infiltrado em todos os
países do mundo. O episódio do militar de 1964 fazia parte de um
longo processo de ideologização das Forças Armadas brasileiras e
latino-americanas que visavam impedir o avanço do comunismo.
1
WASSERMAN, Cláudia. O império da Segurança Nacional: o golpe militar de 1964 no Brasil.
In: WASSERMAN, Cláudia; GUAZZELLI, César Augusto Barcelos (organizadores). Ditaduras
Militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. p. 27-44.
O resgate da memória e da verdade: uma análise...
239
O Exército não atuava, como em outras ocasiões, como árbitro
entre as classes sociais, mas se colocava como protagonista de
objetivos determinados (fins), estratégias definidas (meios) e
iluminado por uma ideologia, a Segurança Nacional.
É nesse contexto que se inicia no Brasil um longo período
ditatorial que perdurou por 21 anos, uma imposição das Forças Armadas
Brasileiras que passaram por cima da Constituição Federal vigente
naquele momento, suspendendo direitos dos cidadãos, impedindoos de escolher os seus presidentes, de votar nos seus representantes
(as poucas eleições que houveram para manter a ilusão de um país
democrático foram fraudadas defendendo os interesses militares), e
contrapondo-se ao comandante-chefe em exercício, o Presidente da
República. Como lembra Cláudia Wasserman,2 anteriormente ao golpe,
os militares tentaram ganhar o poder através das eleições por três vezes,
em 1950, 1955 e 1960, no entanto, em todas a população decidiu por
derrotar os candidatos militares.
A Ditadura militar brasileira durou 21 anos e teve no poder:
Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967), Arthur da Costa e
Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto
Geisel (1974-1979) e João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985).
A população viveu um período de alienação, com forte repressão e uma
manipulação clara dos meios de comunicação.
Entre os fatos mais importantes, podemos destacar a dissolução
dos partidos políticos, a criação do Serviço Nacional de Inteligência,
visando investigar pessoas e instituições que pudessem se opor ao
regime, e em 1967 é outorgada uma nova Constituição, que dava
respaldo legal às ações militares. A imposição do Ato Institucional nº
5, ato mais radical da ditadura brasileira e que, segundo Edson Telles,3
“ampliou os poderes de exceção do cargo de Presidente e extinguiu vários
direitos civis e políticos, especialmente o habeas corpus. [...] investiu ao
Estado a prerrogativa de manipulação dos corpos e, também, da vida
matável dos cidadãos”. Esse ato gera um grande aumento no número
2
WASSERMAN, Cláudia. O império da Segurança Nacional: o golpe militar de 1964 no Brasil.
In: WASSERMAN, Cláudia; GUAZZELLI, César Augusto Barcelos (organizadores). Ditaduras
Militares na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. p. 27-44.
3
TELLES, Edson. As heranças da ditadura no Brasil. Disponível em: <http://www.cartamaior.
com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17632>.
240
Cláucia Piccoli Faganello e Íris Pereira Guedes
de desaparecidos. Ainda, a criação do DOI-CODI (Destacamento de
Operações e Informações ao Centro de Operações de Defesa Interna),
que se expandiu por todo país, torturando os considerados inimigos do
regime. Há uma grande censura a imprensa, livros, discos e artistas, dos
quais muitos tiveram de buscar abrigo no exílio para sobreviver. Por
ser um período de maior restrição dos direitos, o discurso de troca feito
pelos militares foi o do Milagre Econômico e da Copa do Mundo de 70
no Brasil. Em 1975 é suspensa a censura a imprensa, em 1978 é extinto
o AI-5, é restaurado o direito ao instituto do habeas corpus, e criam-se
as primeiras condições para a abertura. Em 1979 é decretada a Lei de
Anistia (Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979),4 considerada pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos5 uma Lei de Autoanistia, portanto
inválida, o que será objeto de análise na sequência.
A Lei de Anistia, em seu texto, afirma que estão anistiados “todos
quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de
agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Após
15 anos de um regime ditatorial cruel, a imposição por parte das Forças
Armadas da Lei de Anistia nem foi discutida, a transição foi conduzida
pelos militares de modo que eles não tivessem que prestar contas pelos
21 anos de repressão, torturas, mortes e desaparecimentos.
Nos anos seguintes, o Brasil esteve mais preocupado em afirmar a
sua pseudodemocracia6 e garantir os direitos individuais do que discutir
o seu passado e buscar uma reparação por todas as violações cometidas
nesse período sombrio da nossa história. De 1985 até 1995, os poucos
avanços foram obtidos através de Comissões que buscaram na sua
maioria encontrar mortos e desaparecidos. Em 1995, o então presidente
Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei dos Desaparecidos (Lei nº
9.140/95),7 que “reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão
de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no
período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979” e cria a Comissão
4
LEI Nº 6.683/79. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6683.htm>.
CIDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia) Vs. Brasil, Exceções preliminares,
Mérito, Reparações e Custas, sentença de 24 de novembro de 2010, Série C, nº 219. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>.
5
Optamos por utilizar o termo pseudodemocracia por entendermos que o Brasil só será uma
verdadeira democracia quando reescrever o seu passado ditatorial de forma justa e incluir no seu
modelo de democracia representativa a participação popular.
6
LEI Nº 9.140/95.
compilada.htm>.
7
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9140
O resgate da memória e da verdade: uma análise...
241
Especial de Reconhecimento do Mortos e Desaparecidos Políticos, porém
essa Lei não gerou resultados efetivos e a assim como a Lei de Anistia teve
abrangência somente até agosto de 1979, deixando esquecidos todos os
desaparecimentos e mortes ocorridos de 1979 até 1985.
Ocorre mais um longo período em que o debate sobre os
acontecimentos da ditadura militar permanecem esquecidos, enquanto
a maioria dos demais países da América Latina está revendo suas
leis e punindo os culpados. Em 2009, o debate volta à tona como o
PNDH III (Plano Nacional de Direitos Humanos III) do governo de
Luiz Inácio Lula da Silva, que em seu eixo orientador VI, diretriz 23,
trata sobre a criação da chamada Comissão Nacional da Verdade. A
Comissão da Verdade até o atual momento ainda não saiu do papel,
mas a atual presidente, Dilma Rousseff, em seu discurso de posse,
citou a importância da criação de tal comissão.
Em 2010 o debate volta a ter destaque com a ação promovida
pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pedindo uma revisão
da Lei de Anistia através de uma Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF).8 A Suprema Corte Brasileira, indo
contra todos os Tratados Internacionais de que o Brasil é signatário,
optou por entender que a Lei de Anistia é “ampla, geral e irrestrita”.
Na visão da OAB os crimes de tortura não se enquadrariam nos crimes
políticos previstos na referida lei, pois são considerados crimes contra
a humanidade e, portanto, crimes não anistiáveis. A decisão do STF
afirmou a anistia e impossibilidade de punir os atos de tortura, que
pela Constituição Federal de 19889 são considerados crime hediondo,
assim sendo imprescritível e inafiançável.
Parece que, com a decisão do STF, órgão máximo na Justiça
brasileira, o assunto estaria encerrado, e o Brasil não conseguiria virar
a página de sua história. Mas, no final de 2010, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos proferiu a sentença no caso “Julia Gomes Lund
e outros”, caso da “Guerrilha do Araguaia”, dizendo que os crimes
contra a humanidade (mortes, torturas e desaparecimento) que
foram cometidos por agentes do Estado durante a Ditadura Militar
ADPF 153. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/
ADPF153.pdf >.
8
9
Art. 5º, XLIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>.
242
Cláucia Piccoli Faganello e Íris Pereira Guedes
Brasileira devem ser investigados, processados e, se o caso, punidos
pelo Estado Brasileiro.10
Segundo Luiz Flávio Gomes, a Lei de Anistia brasileira é
inconvencional, já que
embora recebida pela Constituição de 1988 (de acordo com a
visão do STF), é inconvencional (por violar as convenções de
direitos humanos retificadas pelo Brasil) e inválida (por contrariar
frontalmente o jus cogens internacional). Nem tudo que o STF diz
ter sido recebido pela Constituição de 1988 é compatível com os
tratados em vigor na Brasil e detém validade.11
A Lei de Anistia resultou de uma convenção do governo militar
da época, o que segundo entendimento da CIDH é uma autoanistia
e, portanto inválida, como já ocorreu com a Argentina, Chile e Peru
em cumprimento a determinações dessa mesma Corte. Segundo o
presidente da CIDH, Felipe González,
O Brasil daria um magnífico exemplo e fortaleceria sua
imagem se acatasse as determinações. [...] Do ponto de vista
interno, não se trata apenas de um confronto com o passado. O
cumprimento da sentença fortaleceria a democracia, mostrando
que não existem cidadãos de primeira e de segunda categoria e
que todos os crimes, não importa quem pratique, são investigados
e os culpados, punidos.12
O Brasil não tem a obrigação de ratificar a decisão da OEA, e
nos dias seguintes a publicação da sentença, os ministros do STF já se
colocaram na mídia defendendo a decisão da Suprema Corte Brasil. Mas
como observa sabiamente Luiz Flávio Gomes
10
CIDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia) Vs. Brasil, Exceções preliminares,
Mérito, Reparações e Custas, sentença de 24 de novembro de 2010, Série C, nº 219. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>.
11
GOMES, Luiz Flávio. A Lei de Anistia viola convenções de direitos humanos. Disponível em: <http://
www.conjur.com.br/2011-mar-10/coluna-lfg-lei-anistia-viola-convencoes-direitos-humanos>.
12
Atendimento à corte da OEA requer revogação da Anistia. Entrevista de Felipe Gonzáles ao
Jornal Estadão. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101219/not_
imp655620,0.php>.
O resgate da memória e da verdade: uma análise...
243
O Brasil sequer pode cogitar da possibilidade de
não cumprir as decisões da CIDH. Poderia sofrer sanções
internacionais e ser excluído da OEA. O não cumprimento pelo
Estado brasileiro da sentença da Corte Interamericana acarreta
nova responsabilidade internacional ao país, a ensejar nova ação
internacional na mesma Corte e nova condenação, e assim por
diante. A posição do Ministro Nelson Jobim no sentido de que o
Brasil poderia deixar de cumprir as decisões da CIDH é totalmente
equivocada. O STF nada mais pode fazer. As decisões da Corte
devem ser cumpridas pelo Brasil necessariamente13.
O Brasil precisa rever a história da Ditadura Militar em
consideração a todos os mortos, desaparecidos e torturados pelo Estado
ilegítimo que, por 21 anos, se impôs sobre a cidadania brasileira.
Ditadura Militar no Uruguai e a Lei de Caducidade
O período de ditadura militar no Uruguai teve início no ano de
1973 e durou até o ano de 1985, sendo considerada uma das ditaduras
mais violentas da América Latina e com graves crimes contra os direitos
humanos. É possível avaliar que, nos anos em que antecederam período,
já havia indícios de que a sociedade estava cada vez mais dividida e
problemática. Existem controvérsias até mesmo nos dias de hoje a
respeito dos reais motivos que levaram a concretização da ditadura
militar e aparentemente a uma necessidade de focar em um ou outro
fator no inevitável período.
O Uruguai foi um dos últimos países a decretar uma ditadura
militar, as fortes pressões vindas do exterior, bem como dos EUA, podem
ter influenciado significativamente os militares e o então presidente
golpista Juan María Bordaberry, que possivelmente viu nessa debilitada
situação, somada às crises econômicas, políticas e sociais, a oportunidade
para criar uma aliança com as forças militares e policiais para impor a
ditadura. É importante mencionar que o país havia se mantido durante
13
GOMES, Luiz Flávio. A Lei de Anistia viola convenções de direitos humanos. Disponível em: <http://
www.conjur.com.br/2011-mar-10/coluna-lfg-lei-anistia-viola-convencoes-direitos-humanos>.
244
Cláucia Piccoli Faganello e Íris Pereira Guedes
muitos anos com a venda de produtos agrícolas para países em guerra,
em especial a carne de gado, era a chamada época do ouro. Entretanto, a
falta de modernização e o fim das guerras fizeram com que, em meados
dos anos 40, a falsa promessa de que o Uruguai seria eternamente a
“Suíça das Américas” e de que seria mantido o mesmo nível econômico
começou a ruir.
A crise econômica levou a uma indignação em massa da sociedade
à medida que essa crise parecia não afetar, por exemplo, os políticos, com
o agravante da corrupção, levando à descrença do Estado democrático
de direito e de seus representantes. Em resposta a essa descrença
surgiu em meados de 1966 o Movimento de Liberação Nacional –
Tupamaros. Os Tupamaros possuíam um discurso inicial de tirar dos
ricos e dar aos pobres, promovendo saqueamentos. O Movimento
passou a sequestrar e a matar pessoas de forte influência econômica e
política, buscando chamar a atenção da população e pressionar o então
governo, que rapidamente articulou um contra-ataque: exterminar,
prender e torturar os Tupamaros. É também necessário esclarecer que
para a sociedade uruguaia um dos principais motivos divulgados para
justificar a aliança do Presidente com os militares era de que precisavam
proteger os cidadãos do Movimento de Liberação Nacional, argumento
esse facilmente desconstituído quando se observa que as atividades
dos Tupamaros foram cessadas em 1972 e a data marco da ditadura do
Uruguai é de 1973, comprovando que o real interesse do governo não era
o bem nacional, mas a busca pelo poder. O inimigo passa a ser alguém
infiltrado na sociedade, as políticas de manutenção da segurança
nacional internas entram em cena.
A Lei de Pretensão Punitiva do Estado de n° 15.848, mais
conhecida como Lei de Caducidade, foi assinada no ano de 1984, sendo
assim, um ano antes do término do período ditatorial que é de 1985.
Dita na época como um acordo realizado entre os militares, policiais
e alguns partidos políticos como a única saída pacífica existente do
período ditatorial para a retomada do Estado democrático de direito.
No entanto, a realidade que se apresentava era um pouco mais
complexa, os militares haviam perdido o poder sobre a sociedade e,
tementes de serem punidos por seus atos cruéis, encontraram na Lei
de Caducidade segurança para deixarem seus cargos no governo. Esse
respaldo é claramente identificado nos artigos 1º, 2º e 3º, amparando
O resgate da memória e da verdade: uma análise...
245
todos os militares e policiais sem distinção dos crimes cometidos e
ainda por cima impedindo que a justiça possa investigar denúncias, as
quais deverão ser arquivadas. A lei não somente cria uma injustiça para
aqueles que foram torturados e para as famílias de pessoas que estão
desaparecidas ou que foram mortas, como também estende limitações
sobre o poder judiciário.
Um dos argumentos utilizados para os poucos que defendem
a manutenção da lei, publicamente, é de que a Lei de Caducidade é
complementar à Lei de Anistia de número 15737 – a qual foi promulgada
somente após do fim da ditadura militar para beneficiar presos contrários
ao regime – e que a motivação para os crimes cometidos na ditadura
foram decorrentes de uma tentativa de proteção da sociedade contra
os movimentos armados presentes entre os anos de 1960 e 1972. Outro
argumento seria a insegurança jurídica, decorrente do descumprimento
ou modificação da Lei de Caducidade, uma lei criada e aprovada
arbitrariamente, sem consulta à população, no período ditatorial.
Não é necessária uma análise minuciosa dos fatos e das duas
leis para chegar à conclusão de que isso não é verdade. Para começar,
como já foi dito anteriormente, o movimento nacional de libertação foi
exterminado um ano antes do início da ditadura. Ainda, a Lei de Anistia,
em seus artigos 1°, 8° e 9°, estabelece que ficarão excluídos da proteção
da lei os autores e participantes em delitos graves e que esses deveriam
ser submetidos a um novo julgamento, isso porque essas pessoas já
estavam presas e haviam sido julgadas pelo Tribunal Militar. A Lei de
Anistia servia para pessoas presas e acusadas de crimes não tão graves
e levando em conta a maneira desumana pelas quais se encontravam,
era calculado que a cada três dias de prisão lhe seria concedido um dia
a menos na pena estabelecida, ou seja, a Lei de Anistia não beneficiava
qualquer pessoa e ainda fazia distinção entre a natureza do crime.
A Lei de Caducidade tornou nulo todos os crimes cometidos antes
do ano de 1985 por policiais e militares, não há distinção de natureza,
nem permissão de denúncias e julgamentos. Outro fator importante é
que a Lei de Caducidade se refere a todos os policiais e militares, no
entanto, a Lei de Anistia se refere apenas às pessoas que haviam sido
acusadas e que estavam presas, ou seja, o cidadão que cometeu algum
crime grave e que não tivesse preso não estará amparado e deverá ser
denunciado e julgado como qualquer cidadão uruguaio. As diferenças
246
Cláucia Piccoli Faganello e Íris Pereira Guedes
entre as duas leis são óbvias, já que uma permite liberdade total, impede
o Poder Judiciário de receber a denúncia, foi promulgada em período
ditatorial e criada por pessoas que tinham grande interesse na própria
proteção; a outra é parcial, reduzindo a pena, ou seja, dando um dia
de liberdade para quem cumpriu três dias em condições desumanas,
sendo constantemente vítima de torturas físicas e morais, tendo sido
promulgada após o regime.
Até os dias de hoje foram realizados dois plebiscitos para a
anulação da Lei de Caducidade, o primeiro no ano de 1989, período
complicado devido à proximidade e ao temor que ainda eram presentes
na sociedade, e o último no ano de 2009 juntamente com as eleições
presidenciais. Nesse momento o plebiscito perdeu o foco, isso, somado
à confusão interna dos partidos políticos, os quais tinham divisões
de opiniões, e à falta de informações divulgadas para a sociedade,
contribuiu para que mais uma vez a Lei de Caducidade fosse mantida.
No ano de 2009 o governo uruguaio reconhece, por meio de uma lei, a
sua responsabilidade na realização de práticas violadoras dos direitos
humanos sem intervenção do poder judiciário, é importante mencionar
que o período pelo qual o Estado se responsabiliza começa antes mesmo
do período ditatorial de 1973, abrangendo desde o ano de 1968, ou
seja, governos como o de Pacheco Areco e de Juan Maria Bordaberry
foram considerados violadores da Constituição uruguaia, dos Direitos
Humanos e do apartamento do Estado de direito. O ex-ditador
Bordaberry foi condenado por 30 anos de prisão domiciliar, devido
a sua idade avançada, por ter cometido assassinatos e responsável
por inúmeros desaparecimentos, vindo a falecer no dia 17 de julho de
2011 no cumprimento da pena. Esse reconhecimento deixa marcado
o caráter simbólico que quatro governos democráticos anteriores não
foram capazes de admitir para a sociedade. No entanto, o Uruguai vem
sofrendo forte pressão da CIDH, sentenciando que sejam investigados
os desaparecimentos ocorridos na ditadura militar e que a Lei de
Caducidade fique sem efeitos, mencionando também o caso da menina
Macarena Gelman, filha de um casal de argentinos, que teve seu pai
morto e sua mãe grávida levada até o Uruguai. Macarena foi entregue
ilegalmente à família de um oficial uruguaio, tendo sua verdadeira
identidade suprimida e substituída. O vice-ministro de relações
exteriores do Uruguai Roberto Conde manifestou-se da seguinte
maneira frente à sentença:
O resgate da memória e da verdade: uma análise...
247
Desde el momento en que, por vía de distintos
instrumentos legales, fundamentalmente de la ley de reparación
de las víctimas del terrorismo de Estado de 2009, el Estado
reconoció su responsabilidad sobre la comisión de los delitos
de lesa humanidad y los crímenes violatorios de los derechos
humanos esta sentencia era “previsible”, Uruguay tendrá que
hacer frente a esta enorme contradicción jurídica que implica
contener en su derecho interno una norma como la Ley de
Caducidad, que choca con los compromisos que el país ha firmado
en el campo del derecho internacional humanitario. Es cierto que
la ley viola el derecho de las víctimas a la protección, al amparo
judicial y a la asistencia de la justicia, y hace que Uruguay viole
sus compromisos internacionales.14
Em outubro de 2011 o Presidente José Mujica afirmou aos meios de
comunicação que iria promulgar a lei que deixaria sem efeitos a prescrição
dos delitos cometidos durante a ditadura militar, mas somente a Suprema
Corte de Justiça poderia decidir em definitivo. No mês de abril de 2012
o Presidente Mujica pediu desculpas em nome do Estado, assumindo a
responsabilidade jurídica internacional pelo desaparecimento forçado
da mãe de Macarena Gelman, María Claudia García Irureta de Gelman,
cumprindo assim com a sentença da CIDH. No mesmo ato o Presidente
Mujica lastimou a participação do Uruguai no Plano Condor, nota-se que
um mês antes o governo uruguaio já havia pedido ao governo brasileiro,
paraguaio e estadunidense informações sobre possíveis vítimas do Plano.
O governo brasileiro posicionou-se em favor de fornecer informações de
uruguaios mortos durante o período ditatorial e considerou que o pedido
está de acordo com as ações implementadas para a criação da Comissão
da Verdade e a Lei de Acesso à Verdade.
Um país que se considera democrático não pode se eximir da
responsabilidade de crimes cometidos por particulares, ainda mais
quando esses crimes afrontam fortemente os Direitos Humanos e foram
contra toda a sociedade. O Uruguai, ao assumir a responsabilidade
desses crimes, cumpriu com parte de sua obrigação de tutela protetiva
para com os cidadãos, devendo ainda analisar quais são os verdadeiros
motivos para manter a Lei de Caducidade no texto original.
14
Sentencia de CIDH era “previsible” y aumenta presión sobre Uruguay para eliminar ley de Caducidad.
Disponível em: <http://www.presidencia.gub.uy/sci/noticias/2011/03/2011032512.htm>.
248
Cláucia Piccoli Faganello e Íris Pereira Guedes
Considerações finais: análise comparativa das leis
referentes às Ditaduras do Brasil e do Uruguai
Podemos dizer que ambos os regimes deixaram as suas marcas
e até hoje há uma grande resistência de que essa história seja tirada a
limpo. Para alguns, só será possível reescrever a história desses países
quando não houver mais ninguém vivo que possa ser punido, porém
entendemos que isso é essencial para alertar todos os cidadãos de como
o Estado autoritário é perigoso à cidadania e capaz de violar direitos
humanos já conquistados.
Comparando Brasil e Uruguai, podemos dizer que ambas as
ditaduras tiveram como plano de fundo a influência dos EUA em
implantar o modo de produção capitalista e o sistema econômico
ultraliberal, ao custo de milhares de vidas de cidadãos latino-americanos.
Sem dúvida, mesmo com uma menor duração, a ditadura uruguaia foi
muito mais violenta do que a brasileira, e o governo uruguaio se mostrou
muito mais disposto a discutir isso com a população posteriormente ao
regime, através de dois plebiscitos. Isso pode ser justificado pela efetiva
participação e politização da população uruguaia em todo o processo de
transição, inclusive na participação da escolha do primeiro presidente
pós-ditadura militar, o que não ocorreu no Brasil, onde a primeira
eleição se deu indiretamente.
A ditadura brasileira por ter esse caráter mais sutil e uma maior
duração, quando da transição para a pseudodemocracia, a maior
preocupação se deu em garantir que não houvessem represálias aos
envolvidos, não questionando em nenhum momento a população
sobre os rumos do processo. O Brasil só veio se questionar sobre a
necessidade de uma ação estatal quando os familiares dos mortos
e desaparecidos por conta própria empenharam uma luta por
respostas aos acontecimentos, nesse momento (1993) surge a Lei dos
Desaparecidos, que no plano fático não satisfez o esperado.
Segundo Valter Pomar, muitos latino-americanos não conseguem
entender por que os governos brasileiros pós-ditadura pegaram tão
leve com aqueles que “romperam com a legalidade, sequestraram,
torturaram, mataram e desapareceram”,15 e afirma que, nesse sentido,
15
POMAR, Valter. Sem esquecimento, sem perdão, sem temor. Disponível em: <www.
O resgate da memória e da verdade: uma análise...
249
os governos pós-ditaduras da Argentina, Chile e Uruguai foram muito
mais preocupados com o combate aos crimes cometidos.
Outro fator importante é que o governo uruguaio em 2009
assumiu a responsabilidade das práticas violadoras de direitos
humanos, enquanto o Brasil resiste em assumir isso, a exemplo das
manifestações do STF.
Ambos os países sofreram condenações da CIDH, nos dois
casos sendo a Comissão provocada a se manifestar pela ação da
cidadania e, em ambos, sem uma perspectiva de cumprimento das
sentenças. Entendemos, nesse caso, que é necessário que a comunidade
internacional pressione para seu cumprimento, pois, conforme o texto
do parágrafo 176 da sentença da CIDH, no caso Araguaia:
quando um Estado é parte de um tratado internacional, como
a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive seus
juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar
para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam
enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto
e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. O
Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado
a exercer um “controle de convencionalidade” entre as normas
internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de
suas respectivas competências e das regulamentações processuais
correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar
em conta não somente o tratado, mas também a interpretação
que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da
Convenção Americana.16
Isso se aplica tanto ao caso brasileiro quanto ao caso uruguaio
e dá respaldo para a Corte Internacional pressionar esses países para
avaliarem a convencionalidade da Lei de Anistia, no caso brasileiro e a Lei
de Caducidade, no caso uruguaio, já que ambos os países internalizaram
a Convenção Americana por vontade própria. No caso brasileiro é
importante ressaltar que a convencionalidade da Lei de Anistia não foi
objeto da ADPF nº 153.
cartamaior.com.br>.
16
CIDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil, Exceções preliminares,
Mérito, Reparações e Custas, sentença de 24 de novembro de 2010, Série C, nº 219. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>.
250
Cláucia Piccoli Faganello e Íris Pereira Guedes
No Brasil, após a decisão do STF em 2010, o tema volta à discussão
em 2012 com muito mais força, passa-se a discutir não somente os
crimes cometidos e a possibilidade de punição, mas também marcas
culturais oriundas do período ditatorial, como as ruas e avenidas que
levam o nome de ditadores. Nesse sentido temos
Rodovia Castello Branco, elevado Costa e Silva, rua
Dr. Sergio Fleury, avenida Presidente Médici e por aí vai. O
Brasil é uma das poucas democracias do mundo que não só deixa
tiranos impunes, como os homenageia em praça pública. Boa
iniciativa para a Comissão da Verdade seria propor a mudança
imediata de tais nomes.17
No mesmo sentido temos figuras emblemáticas na política que
permanecem no cenário e parecem intimidar a sociedade de atuar: “como
José Sarney, Marco Maciel, Paulo Maluf e outras, crias da ditadura e
cheios de autoridade na vida pública. E os pijamas do Clube Militar volta
e meia fazem ordem unida para enaltecer os anos de chumbo”.18
Algumas outras movimentações também são relevantes, tais
como a ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF) denunciando
o coronel da reserva do Exército Sebastião Curió Rodrigues por crime
de sequestro qualificado de cinco guerrilheiros: “A tese defendida
pelos procuradores é que como os corpos das vítimas nunca foram
encontrados, o crime continua ocorrendo e, portanto, Curió não pode
ser beneficiado pela Lei da Anistia”.19
O recurso movido pela OAB contra a decisão proferida em 2010
traz à baila a discussão sobre a validade da Lei de Anistia para os crimes
continuados, como o de sequestro, e o entendimento da Corte Suprema
gerará impacto direto na ação proposta pelo MPF. Nesse sentido o MPF
se coloca a favor do recurso proposto pela OAB:
17
MARINGONI, Gilberto. Ditadores e torturadores não podem ser nomes de ruas. Disponível em:
<www.cartamaior.com.br>.
MARINGONI, Gilberto. Ditadores e torturadores não podem ser nomes de ruas. Disponível em:
<www.cartamaior.com.br>.
18
19
PASSOS, Najla. MPF ajuíza 1ª ação da história do país contra agente da Ditadura. Disponível em:
<www.cartamaior.com.br>.
O resgate da memória e da verdade: uma análise...
251
a punição dos autores dos crimes praticados durante a Guerrilha
do Araguaia, além de um clamor da opinião pública brasileira, é
uma determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos
da Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem força
de lei no Brasil, já que o país é um dos signatários do Pacto
Interamericano de Direitos Humanos.20
Outro avanço importante é a posição do atual governo, conforme
recente pronunciamento da ministra-chefe da Secretaria de Direitos
Humanos, Maria do Rosário, na 19ª Sessão do Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas em Genebra, onde a ministra
[expressou] de forma inequívoca, não apenas o compromisso do
Brasil em relação aos direitos humanos, mas também ao rebater a
ideia de que o governo atual deixou de se interessar e de cooperar com
os organismos internacionais de proteção de direitos humanos.21
Nesse sentido, parece que o Brasil ainda levará um tempo para
superar essa questão, mas mostra-se disposto a enfrentá-la.
Com isso, podemos concluir que ambos os países ainda se
encontram em processo de assimilação dos acontecimentos e que os
avanços nesse sentido se dão de forma lenta, mas entendemos que a
maior necessidade da revisão desses períodos se dá pela necessidade
de a história passar a contar os fatos e assim conscientizar as futuras
gerações de que as ditaduras devem permanecer na história.
Referências
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Entrevista de Felipe Gonzáles ao Jornal Estadão. Disponível em: <http://
www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101219/not_imp655620,0.php>.
PASSOS, Najla. MPF ajuíza 1ª ação da história do país contra agente da Ditadura. Disponível em:
www.cartamaior.com.br.
20
21
PRONER, Carol. Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Disponível em: <www.
cartamaior.com.br>.
252
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Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
Justiça de Transição: um breve relato sobre
a experiência brasileira
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
Francisco Quintanilha Véras Neto
A investigação sobre a memória nacional; a efetivação de uma
justiça de transição; a criação de uma comissão da verdade; a atuação
de caravanas que oficializam o pedido de desculpas para as famílias
que tiveram seus entes desaparecidos; todos esses elementos citados
são instrumentos que nos possibilitam uma forma de compreensão
de um processo histórico, que fora marcado por inúmeras violações
dos mais variados direitos de seus cidadãos. Tais instrumentos nos
permitem um acerto de contas com a nossa história brasileira. Tal
acerto deve ser concretizado: através da criação de políticas públicas,
pela reestruturação das instituições e dos símbolos nacionais, pela
preservação e revelação da memória dos que lutaram para efetivar a
ordem democrática de nosso país.
Os abusos perpetrados pelo Estado ditatorial, instaurado pelo
golpe civil-militar de 1964, computam vítimas do terrorismo de Estado,
configurado por uso de meios abusivos pelos agentes desse Estado
que praticaram: torturas, desaparecimentos forçados, perseguições
políticas.1 No contexto de vigência em nosso país no mais recente regime
de exceção, configurou um estado de não direito2 que ficou fortemente
caracterizado pela supressão de direitos. Sendo que os direitos humanos
já compunham a pauta de diversos organismos internacionais, pois já
eram consolidados, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) de 1948 e inclusive eram parte das discussões na Organização
Tais perseguições se alastravam do campo político-ideológico e inúmeras vezes culminavam
na morte, na tortura, na perda de empregos, nas exonerações de opositores do setor público
civil e militar, alguns tendo por consequência a necessidade de sair do país para evitar os abusos
perpetrados pelo aparato estatal repressivo e os atos de violência eram muitas vezes praticados por
grupos paramilitares de direita organizados em esquadrões da morte quando tais violências não
eram realizadas por membros do próprio poder.
1
2
CANOTILHO, Joaquim Gomes. Estado de Direito. Coleção Fundação Mário Soares. Cadernos
Democráticos. Lisboa: Gravida, 1999, p. 13.
256
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
dos Estados Americanos (OEA), portanto essas violações aos mecanismos
internacionais eram inaceitáveis.
Com a internacionalização dos direitos humanos houve
uma maior proteção à dignidade da pessoa humana, uma vez que o
poder do Estado passou a ser limitado por um direito internacional.
Foi a partir da Declaração Universal de Direito Humanos de 1948
que se consolidou o Direito Internacional dos Direitos Humanos,
processo ético que se iniciou com a Declaração de Independência
dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, proveniente da Revolução Francesa.3
Ao remontarmos a necessidade de proteção dos direitos
humanos vem aliada com ao imperativo de contenção de poder punitivo
estatal, essas pautas advêm de um contexto histórico caracterizado
pela grande destruição, pela capacidade de desrespeito dos homens e
seus sistemas políticos por seus iguais. Foi somente após a II Guerra
Mundial que a Organização das Nações Unidas saiu do papel e veio a
compor o cenário internacional, objetivando assegurar direitos para os
cidadãos mundiais, após essa grande barbárie.
A Declaração Universal de Direitos Humanos4 (DUDH) foi fruto
de um processo que se iniciou ao final da segunda grande guerra. E
traz um rol de direitos garantidos pela DUDH,5 sendo essa um marco
importante no âmbito internacional no que tange direitos humanos e o
marco histórico adotado para essa abordagem, pois através da DUDH
esses e outros direitos ganham concretude e consolidou a implantação
de um aparato protetor de direitos humanos internacionais. Essa
preocupação que surgiu em meados dos anos 40 se faz presente nas mais
CANDIDO DA SILVA, Claudivino. Direito à memória e à verdade: direito de acesso à informação.
In: PRADO, Alessandro Martins; BATISTA, Cláudia Karina Ladeia; SANTANA, Isael José. Direito
à Memória e à Verdade e Justiça de Transição no Brasil: uma história inacabada! Uma República
Inacabada! Curitiba: PR: CVR, 2011, p. 248.
3
A DUDH, em seu corpo textual, traz disposto de preocupação com os direitos humanos,
afirmando máximas como: todos os humanos possuem direito a dignidade humana e que todos os
humanos possuem direito a liberdade, a justiça e a paz no mundo. Aduz que nenhum membro da
comunidade humana será submetido a tortura, tratamento ou castigo cruel.
4
5
Ver em: ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela
resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. UNESCO:
Brasília, 1998. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.
pdf>. Acesso em: mar. 2011.
Justiça de Transição: um breve relato sobre a experiência brasileira
257
diversas pautas sociais, a proteção de direitos humanos, segue sendo um
assunto de suma importância.
O objeto de análise desse artigo é a Justiça de Transição, tendo
essa por intuito apreciar as violações dos direitos humanos, ocorridas
durante regimes de exceção – no caso brasileiro, o último período militar
– observando se tais violações foram ou são tratadas em conformidades
com o ordenamento jurídico internacional.
A justiça transicional em nosso país possui como desafio alicerçar
uma democracia constitucional sobre o legado autoritário e inúmeros
são os seus desafios: uma lei que internacionalmente é considerada sem
efeitos, segue vigendo em seu ordenamento interno e dificultando as
investigações sobre esse passado, a questão da busca pela memória das
pessoas que vivenciaram e sofreram alguma espécie de dano com tais
violações, o fato de as nossas instituições nacionais ainda se fazerem
compostas por membros que ocupavam o poderio ao longo do regime de
exceção. Esses são alguns dos obstáculos que existem para que a justiça
de transição se estabeleça no Brasil em conformidade com organismos
internacionais e sobre tais questões nos debruçaremos neste texto.
A conceituação inicial: o que entendemos por Justiça
de Transição
Ao abordamos o termo Justiça de Transição, não estamos
falando de um conceito uniforme que possui um conteúdo limitado,
estamos abordando um conjunto de práticas que devem ser pensadas
em conformidade com o passado autoritário, visando eliminar fatos
não esclarecidos e, assim, constituindo meios para fortalecer o regime
democrático que vige nesse país. A palavra transição nos remete a ideia
de movimento, de transformação, então o papel dessa justiça é modificar,
é fazer transparecer o novo sobre o antigo. É conseguir vislumbrar novos
arranjos para uma sociedade que está saindo de um regime autoritário.
Desta forma, estes mecanismos são entendidos como uma
forma de, a um só tempo, dar extensão retroativa e prospectiva
ao Estado de Direito, compensando e reparando as violações do
258
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
passado restabelecendo os efeitos típicos do Estado de Direito,
especialmente a igualdade perante a lei e a previsibilidade do
sistema jurídico, de modo a garantir a não repetição da violência
e evitar a existência, na sociedade que entende fundar uma
democracia constitucional, de um “espólio autoritário”, composto
por atos que não podem ser submetidos ao controle de legalidade
do judiciário e pessoas que não podem ser processadas.6
O regime de exceção instaurado no Brasil, ao longo da década de
60, perdurou por 21 anos, e somente após 25 anos houve a devolução
aos cidadãos o direito de escolha do presidenciável que ocuparia o
cargo político mais importante do país,7 esse é um dado sutil, mas que
mostra por quanto tempo perdurou essa exceção declaradamente em
nosso país. Além de vedações, como a existente ao direito de votar, em
nosso regime de exceção, como todos os regimes, houveram leis que
foram decretadas de modo arbitrário. Ao longo dos anos excepcionais,
a justiça era mais próxima de ser mero vocábulo do que um direito dos
cidadãos brasileiros, já que nesse momento predominavam a injustiça e
a desigualdade na aplicação do direito.8
Em nosso país o que ocorreu fora uma transição negociada, e
o marco inicial dessa transição fora estabelecido pela promulgação da
Lei nº 6683/1979, mais conhecida como a Lei de Anistia, que não é
somente uma lei estanque no tempo, a entendemos como um “processo
político que começou em 1979 e vem sendo redefinido desde então”.9
Antes de sua promulgação houve uma queda de braços, entre situação e
oposição para ver qual proposta seria aprovada no Congresso Nacional,
6
ALMEIDA, Eneá de Stutz e; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição, Estado de Direito e
Democracia Constitucional: Estudo preliminar sobre o papel dos direitos decorrentes da transição
política para a efetivação do estado democrático de direito. In: Sistema Penal & Violência. Porto
Alegre, v. 2, n.2, p. 36-52, jul./dez. 2010, p. 37.
7
PADRÓS, Enrique Serra; GASPAROTTO, Alessandra. Gente de menos – nos caminhos e
descaminhos da abertura no Brasil (1974-1985). In: PADRÓS, Enrique; BARBOSA, Vânia; LOPEZ,
Vanessa; FERNANDEZ, Ananda. Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (19641985): história e memória. Porto Alegre: Corag, 2009, v.4, p. 35.
GENRO, Luciana. Justiça de Transição no Brasil: a lei de anistia e o sistema interamericano
de direitos humanos. Trabalho de Conclusão de Curso. São Leopoldo, 2011, p. 15 e ss. Disponível
em: <http://idejust.files.wordpress.com/2011/12/luciana-krebs-genro.pdf>. Acesso em:
dezembro de 2011.
8
9
MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de Contas com o Futuro – a anistia e suas consequências: um
estudo do caso brasileiro. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: FAPESP, 2006, p. 18.
Justiça de Transição: um breve relato sobre a experiência brasileira
259
o resultado dessa tensão sabemos que foi a vitória do projeto governista,
o qual aprovou uma anistia ampla, geral e irrestrita nos termos da lei.
O deputado Pacheco Chaves (MDB-SP) justificou a
iniciativa: “O projeto está, cabe ressalvar, eivado de grave
contradição: anistiam-se o homicídio, o constrangimento ilegal,
em suma a violência cometida em nome do Estado e praticada
nos gabinetes de tortura, sob o manto da impunidade garantida
pelo regime de exceção, porém anistiados não são os que, de modo
tresloucado, recorreram à violência na luta contra o regime, mas
sempre com risco pessoal”.10
Configurou-se, conforme o deputado Pacheco Chaves, uma
anistia completa para um dos lados. Na medida em que a amplitude,
a generalidade e a irrestrição não abarcavam todos os opositores
do regime civil-militar que detinham o controle político do país,
amparavam legalmente todos agentes que em nome do Estado brasileiro
cometeram alguma infração a qualquer regra de direito. Logo após
a entrada em vigor da Lei de Anistia, todos esses que agiram sobre o
manto de proteção estatal estavam abraçados pelos efeitos jurídicos da
lei. Em virtude disso observamos que a nossa transição se iniciou com
um acordo de vontades, como muitos dizem, mas sim como um acordo
que se configurou como uma “conciliação quase (im)posta”11 da situação
política sobre os opositores do regime.
Observamos o quão dificultoso é tentar resumirmos processos
históricos amplos em poucas palavras. Ao falarmos de justiça de transição,
estamos falando segundo a ONU, de um conjunto de mecanismos hábeis
para tratar o legado de violência do regime autoritário.12 O que se faz
importante destacar é que em nenhum momento essa passagem entre os
regimes deve ocorrer de modo que se busque um esquecimento. Não se
devem deixar os eventos ocorridos na época de seu acontecimento e sim
trazê-los à tona para que esses possam ser compreendidos, aprendidos
10
Ibidem, p. 44.
CUNHA, Paulo Ribeiro da. Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico. In: TELES,
Edson e SATAFLE, Vladimir (orgs.) O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo:
Boitempo, 2010, p. 15- 40.
11
12
ABRÃO, Paulo; GENRO, Tarso. Anistia e democracia. Disponível em: <http://oab-rj.jusbrasil.com.
br/noticias/851280/artigo-anistia-e-democracia-tarso-genro-e-paulo-abrao>. Acesso em: abr. 2011.
260
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
por aqueles que não o viveram e aos que os vivenciarem a devida
reparação seja feita. Já que os momentos traumáticos da história de
um país compõem a história de seus cidadãos, ou pelo menos deveriam
compor. No instante, que saímos de um regime de exceção e começamos
a rascunhar os moldes democráticos que daremos para o nosso país, o
conhecimento em relação a esse passado faz-se fundamental, para que
não perpetuemos uma cultura calcada em arbitrariedades, em violações
de direitos e garantias, em ações violentas.
Essa transição normalmente é alicerçada em quatro dimensões
fundamentais: “a reparação, o fortalecimento da verdade e construção
da memória, a regularização da justiça e reestabelecimento da igualdade
perante a lei e a reforma das instituições perpetradoras de violações
contra os direitos humanos”.13
As dimensões da Justiça de Transição
Cada uma dessas dimensões está relacionada com um dos
deveres do Estado para a instauração da Justiça de Transição; são eles: o
direito à compensação, o direito à verdade, o direito à justiça e o direito
a instituições verdadeiramente democráticas.
O direito à compensação está relacionado com a realização de
uma reparação de forma adequada, essa não se restringindo ao cunho
financeiro, pode ser prestada através de “assistência psicológica ou de
medidas simbólicas”.14 No caso do Brasil, temos leis que criam formas
para que a reparação seja realizada, tais leis15 buscam um amparo
PIRES JÚNIOR, Paulo Abrão; TORELLY, Marcelo Dalmás. As razões da eficácia da Lei de
Anistia no Brasil e as alternativas para a verdade e a justiça em relação as graves violações de
direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar (1964-1985). In: Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica. V. 8, n.8, 2010, p. 184 e ss.
13
GENRO, Luciana. Justiça de Transição no Brasil: a lei de anistia e o sistema interamericano
de direitos humanos. Trabalho de Conclusão de Curso. São Leopoldo, 2011, p. 21. Disponível em:
<http://idejust.files.wordpress.com/2011/12/luciana-krebs-genro.pdf>. Acesso em: dez. 2011.
14
15
Duas leis muito importantes para a questão da reparação dentro no cenário nacional é a Lei nº
9.140 de 1995 – Lei dos desaparecidos políticos, que implantou a Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos Políticos, que tinha como função maior reconhecer a responsabilidade estatal pelo
desaparecimento e mortes de seus cidadãos. Entra lei não menos importante é a Lei nº 10.559,
de 2002, regulamentou o disposto no art. 8º do ADCT Lei da reparação. Para tais reparações, é
Justiça de Transição: um breve relato sobre a experiência brasileira
261
financeiro para aqueles que foram vítimas do estado ao longo do
regime excecional. Além disso, o direito à reparação é uma garantia
constitucional, que está disposta no art. 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT),16 aos que foram atingidos em
decorrência de motivação exclusivamente política. Essa anistia presente
no texto constitucional abrange somente os que foram perseguidos.
O direito à verdade está relacionado com a busca pelo ocorrido
ao longo das violações de direitos em nosso país, assim como se
relaciona com a construção de uma memória nacional. Não buscamos
aqui defender uma verdade absoluta e oficial dos fatos, mas sim uma
verdade com contornos de verdade reais, inquestionáveis. Buscamos
trazer “narrativas diferentes e todas importantes para recompor o
caleidoscópio da história, mas ao mesmo tempo é imprescindível que seja
construída uma narrativa pública reconhecida pelo Estado em relação
aos abusos cometidos em nome dele mesmo”.17 Interessante posição, ao
falarmos de crimes cometidos pelos Estados, a de José Carlos Moreira
Filho18 que nos diz que estamos tratando de crimes internacionais, que,
por definição, são crimes que possuem focos negativos, entendendo
que para termos condições de se fazer justiça, temos que partir do
reconhecimento e da memória desses episódios traumáticos, com o
intuito de que a memória advinda desses possa significar a não repetição
em um futuro. São crimes que extrapolam a proteção individual e que
visam proteger nações, grandes grupos de pessoas que se encontravam
necessária submeter-se o interessado a dois procedimentos básicos: a declaração da condição de
anistiado político e depois dessa primeira etapa comprida passa-se para a segunda fase, a concessão
da reparação econômica.
“Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação
da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de
exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº
18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969,
asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam
direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos
nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos
servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos. (Regulamento)
§
1º - O disposto neste artigo somente gerará efeitos financeiros a partir da promulgação da
Constituição, vedada a remuneração de qualquer espécie em caráter retroativo.”
16
SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Crimes do Estado e Justiça de Transição. In: Sistema Penal
& Violência. Porto Alegre, v. 2, n.2, p. 22-35, jul/dez. 2010, p. 31.
17
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O anjo da história e a memória das vítimas: o caso da
ditadura militar no Brasil. In: RUIZ, Castor Bartolomé (Org.). Justiça e memória: por uma crítica
ética da violência. São Leopoldo: UNISINOS, 2009, p. 121 e ss.
18
262
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
em relação de hipossuficiência perante o poderio estatal, equipado com
toda sua estrutura, utilizada para fins não legais.
O direito à verdade está atrelado ao direito à memória, pois
a memória é composta do aprendido e do vivenciado, é a partir dela
que construímos referenciais, nossas identidades e elaboramos nossos
projetos. O fundamental é termos acesso amplo aos documentos
públicos19 para que possamos efetivar tais direitos.
Outro aspecto importante foi a recente criação da Comissão
Nacional da Verdade20 que será composta por sete membros plurais,
sendo que nenhum de seus membros poderá ser envolvido nos
processos que serão investigados, seja em qualquer lado do conflito.
Essa comissão objetiva:21 esclarecer os fatos e as circunstâncias dos
casos de graves violações de direito, buscando ainda promover o
esclarecimento dos casos de torturas, desaparecimentos forçados,
mortes, ocultações de cadáveres e sua autoria, mesmo que esses
tivessem ocorrido fora das fronteiras nacionais; colaborar com todas
as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos
humanos; recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para
prevenir violação de direitos humanos; e também reconstruir a história
dos casos de graves violações, visando à colaboração de assistência ás
vítimas dessas violações.
O direito à justiça é entendido como peça-chave para falarmos
em uma transição democrática, pois a justiça brasileira não reconhece
a possibilidade de ingressar no poder judiciário contra aquelas
pessoas que violaram os direitos humanos em nome do Estado. O que
hoje se permite é dar início a um processo que poderá reconhecer o
indivíduo como anistiado político e depois reconhecer que esse tem
direito a receber a reparação econômica pela violação sofrida. Até os
dias de hoje, no Brasil é assim que lidamos com esse caso exposto,
pois segundo o nosso Supremo Tribunal Federal, a Lei de Anistia de
19
O acesso aos documentos públicos passará, a partir do dia 18 de maio de 2012, a ser regido pela
Lei nº 12527 de 2011, que criou uma nova regulamentação para o acesso aos documentos públicos.
20
Criada pela Lei nº 12528 de 2011, será composta de forma pluralista, será integrada por sete
membros, designados pelo Presidente da República, dentre brasileiros, de reconhecida idoneidade
e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional,
bem como com o respeito aos direitos humanos.
21
Além dos objetivos descritos no texto legal, devemos considerar um avanço significativo a criação
da Comissão Nacional da Verdade apesar de ela não estender sua atuação ao âmbito da prestação da
tutela penal, não permitindo a instauração de processos que investigue penalmente as violações.
Justiça de Transição: um breve relato sobre a experiência brasileira
263
1979 segue vigendo e, portanto, é impossível abrir processo criminal
contra quem se encontre amparado por uma lei que o declara como
anistiado dos crimes cometidos em nome do Estado brasileiro. Sendo
o nosso país constitucionalmente um Estado Democrático de Direito,
que reconhece inúmeros tratados e o pacto de direitos humanos,22 a
manutenção dessa restrição de investigação barra vários preceitos
transicionais e não só o direito à justiça.
O direito a instituições verdadeiramente democráticas consiste
no fato de que, após o período em que a democracia não foi o regime
governamental adotado, ela seja efetivada. Sua implementação deve
ser de modo que se liberte e elimine todo e qualquer traço do ranço
autoritário que ainda poderia estar nas esferas estatais; é importante
que as instituições consigam se reestruturar. Assim que a democracia
voltou a ser o regime brasileiro, algumas modificações ocorreram
em relação aos órgãos relacionados à espionagem e informação.
Esses foram extintos, e outros órgãos que visavam assegurar a
democracia foram implementados, como o Ministério da Defesa, o
Ministério Público, para desempenhar a missão de proteger a ordem
constitucional e defender os interesses coletivos; houve também a
criação de uma Defensoria Pública para assessorar os cidadãos na
busca pelos seus direitos. Podemos observar dentro dessa premissa
transicional que o Brasil vem buscando adequar suas instituições em
conformidade com os parâmetros democráticos. O que falta ainda é
uma profunda reforma a ser “cumprida nas Forças Armadas e nos
sistemas de segurança pública”.23
22
O Brasil reconhece a Corte Interamericana de Direitos Humanos, reconhece seu tribunal
de jurisdição contenciosa. Ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos em
1992, o próprio texto constitucional reconhece que o Brasil formará um tribunal internacional
dos direitos humanos como disposto no art. 7º do ADCT. Cabe também destacar outros
instrumentos internacionais reconhecidos pelo nosso país: Convenção Interamericana para
Prevenir e Punir a Tortura, ratificada em 20/07/1989; Convenção contra a Tortura e Outros
Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, ratificada também em 1989 e também a
Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, ratifica em abril de
2011. Sobre o desaparecimento forçado faz-se importante notarmos que tramita no Congresso
Nacional, o PLS 245/11 que busca tipificar tal conduta do desaparecimento como um dos
crimes dispostos no código penal.
23
PIRES JÚNIOR, Paulo Abrão; TORELLY, Marcelo Dalmás. As razões da eficácia da Lei de
Anistia no Brasil e as alternativas para a verdade e a justiça em relação as graves violações de
direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar (1964-1985). In: Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, v. 8, n. 8, 2010, p. 184.
264
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
O papel fundamental da justiça e da memória: ao
pensarmos a transição
A investigação por justiça e verdade é essencial para instaurar
processos de educação em direitos humanos e efetuar a transição do Estado
autoritário para a ordem democrática apontada na nossa Constituição de
1988, efetiva e concretizadora na práxis constitucional de uma cultura de
direitos humanos centrada na dignidade da pessoa humana:
A noção de dignidade humana varia no tempo e no
espaço, sofrendo o impacto da história e da cultura de cada povo,
bem como de circunstâncias políticas e ideológicas. Desta feita,
no plano jurídico, o valor intrínseco da pessoa humana impõe a
inviolabilidade de sua dignidade e está na origem de uma série de
direitos fundamentais, o primeiro deles é o direito à vida e, sem
segundo lugar, o direito à igualdade.24
Essa luta pela democracia e justiça histórica de transição
encontra a oposição ferrenha e efetiva dos setores conservadores
herdeiros do golpe com sua busca pela impunidade e quer fortalecer
uma política de esquecimento deliberada que visa suprimir a memória
dos vencidos, dos desaparecidos, dos torturados que lutaram pela
democracia em um contexto de arbitrariedades inigualáveis. Ou seja, o
entulho autoritário do período da transição pelas cúpulas está vivo25 e
na ativa, coibindo e ameaçando os defensores desta justiça que busca
um acerto de contas com nosso passado recente, por isso a opção por
uma política de memória e não uma de esquecimento:
Mas talvez, será preciso também observar que se a
memória é esquecediça, o esquecimento, em contrapartida,
24
OLIVEIRA, Adauto José de. O direito à memória e à verdade: o Eixo Orientador VI do Programa
Nacional de Direitos Humanos – A dignidade da mulher e o direito à memória. In: PRADO,
Alessandro Martins; BATISTA, Cláudia Karina Ladeia; SANTANA, Isael José. Direito à Memória
e à Verdade e Justiça de Transição no Brasil: uma história inacabada! Uma República Inacabada!
Curitiba: PR: CVR, 2011, p. 31.
25
LOCKE, Adriana et al. Sociologia Jurídica: estudos de sociologia, direito e sociedade. Porto
Alegre: Síntese, 1999.
Justiça de Transição: um breve relato sobre a experiência brasileira
265
poderia perfeitamente ser conservador, como a psicanálise
igualmente nos ensinou. O que foi esquecido talvez seja
simplesmente recalcado, pronto para fazer seu retorno: matéria
psíquica ou institucional ainda disponível para novas elaborações:
como qualquer dialética, a da memória e do esquecimento (ou da
memória e do perdão), nunca, pois, está fechada.26
O direito à memória e à verdade consolida uma verdadeira
institucionalização da cidadania democrática, posicionando o Estado
Democrático de Direito como pedra angular de uma ordem democrática
que concretiza na práxis constitucional e cotidiana o modelo da dignidade
da pessoa humana e do respeito à vida prevenindo possíveis retrocessos
na ordem constitucional e social nacional e mesmo latino-americanas.
Os setores que apoiaram o golpe e que continuam vivos e
apontando um revisionismo absurdo que justifica as atrocidades
praticadas pelo terrorismo de Estado omitem que os opositores ao
regime a que sobreviveram foram presos em tribunais militares secretos,
torturados e pagaram um alto preço ao serem colocados numa guerra
em que a desproporção das forças do Estado e da sociedade que lutava
por igualdade e liberdade eram imensuráveis e beiravam a covardia
do setor detentor do poder opressivo militar e das instituições criadas
para manter a perseguição aos dissidentes políticos como o DOPS e o
SNI, com supressão do habeas corpus por atos institucionais que eram
idealizados pela Ideologia de Segurança Nacional, que suprimia toda a
independência do legislativo e do judiciário, assim como as garantias
jurídicas de ordem material e processual.
A ditadura brasileira valeu-se de dois mecanismos-chave
para garantir um nível de legitimidade suficiente para manter
este controle sobre a transição: (I) os dividendos políticos da
realização de um projeto de nação desenvolvimentista que, por
um longo período (o chamado milagre econômico), alçou o país
a níveis de desenvolvimento relevantes, e ainda, (II) a construção
semântica de um discurso do medo, qualificando como terroristas,
aos membros da resistência armada, e colaboradores do terror
e comunistas, aos opositores em geral. Será graças a adesão
social a esse discurso fundado no medo do caos e na necessidade
26
OST, François. O tempo do direito. São Paulo: Edusc, 2005, p. 60.
266
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
de progresso econômico que se desenvolve o argumento dos
opositores com inimigos e, posteriormente, da anistia como
necessário pacto político de reconciliação recíproca, sob a cultura
de medo, e a ameaça de uma nova instabilidade institucional ou
retorno autoritário.27
O poderio que legitimava o governo ditatorial e permitia
a consolidação do lema à anistia ampla, geral e irrestrita para os
governistas não se consolidou, no entanto, para os opositores; para os
perseguidos políticos não se mostrou ampla, geral e irrestrita.28
A Lei de Anistia: impeditivo para uma justiça
transicional efetiva
Ao longo do regime de exceção, infrações a direitos foram
cometidas, de variadas ordens, contra os diversos grupos de cidadãos
brasileiros que tentaram resistir às violações que lhes eram impostas.
Tais infrações foram muitas vezes praticadas por agentes do Estado, ou
a mando desses, sendo que tais atos foram questionados por diversos
setores da sociedade brasileira nas décadas de 60, 70 e 80. Os brasileiros
queriam obter respostas para o que estava acontecendo, pois tínhamos
um país com ares democrático, mas com suas práticas bem autoritárias.
Todo o descontentamento da sociedade brasileira pôde ser
constatado através da luta pela criação de uma lei que anistiasse os
contrários ao regime por seus atos praticados, tais atos legítimos de
resistência. A sociedade se organizou e começou a criar Comitês de
Anistia, que proliferaram pelos estados brasileiros, inúmeras denúncias
foram feitas no exterior relatando as violações de direitos humanos,
pelo governo brasileiro, até mesmo Comitês de Direitos Humanos foram
criados em nosso país, visando garantir que tais práticas que atentavam
27
OST, François. O tempo do direito. São Paulo: Edusc, 2005, p. 206.
PIRES JÚNIOR, Paulo Abrão e TORELLY, Marcelo Dalmás. As razões da eficácia da Lei de
Anistia no Brasil e as alternativas para a verdade e a justiça em relação as graves violações de
direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar (1964-1985). In: Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica, v. 8, n.8, 2010.
28
Justiça de Transição: um breve relato sobre a experiência brasileira
267
contra os direitos básicos dos cidadãos não continuassem a ocorrer nos
porões, em silêncio.
Começou uma movimentação nacional, em meados da década
de 70, para discutir sobre o tema das violações e sobre a anistia dos
presos e exilados políticos, esse debate tomou grandes proporções, com
passeatas e protestos que pediam: Anistia ampla, geral e irrestrita! Tal
bordão veio a ser consolidado com a lei promulgada em 28 de agosto
de 1979, a Lei nº 6.683, mais conhecida como a Lei de Anistia. Porém,
entre o que o texto legal concretizou e a vontade que era clamada
nas ruas, houve grande diferença. A vontade popular queria uma lei
que abarcasse com o termo ampla, geral e irrestrita todos os presos
e exilados políticos, sem distinguir esses pelos crimes cometidos e
buscava ainda que não fossem impostas barreiras a qualquer espécie
de crime, essa lei deveria abarcar todos aqueles que lutaram contra
um regime que consideram ilegítimo. Mas não foi isso que a Lei de
Anistia consolidou, e sim concretizou uma equiparação dos atos dos
resistentes frente aos dos agentes de Estado, dizemos isso no momento
em que temos uma lei com artigos amplos que consegue fazer uma
interpretação genérica e suficiente para abarcar, como anistiados,29
quase todos os crimes cometidos dentro dos crimes conexos, de que
fala o artigo 1º da Lei nº 6.683.
A Lei de Anistia é uma lei que até hoje gera discussões sociais,
políticas e jurídicas na sociedade brasileira, pois é entendida como
um processo político que se mantém na nossa sociedade.30 Em 1973,
começou a haver discussão da lei dentro da vida política nacional e até
hoje segue presente no cenário nacional e internacional.
Durante o regime civil-militar que perdurou por mais de duas
décadas, o governo nacional buscou manter aparente legalidade para o
cometimento dos crimes contra a humanidade. Importante lembrarmos
Antes de mais nada, é fundamental definir no que juridicamente consiste uma anistia: “é o
esquecimento jurídico do ilícito e tem por objetos fatos (não pessoas) definidos como crimes, de
regra, políticos, militares ou eleitorais, excluindo-se, normalmente, os crimes comuns”, conforme
Cezar Roberto Bitencourt. Sua concessão pode ocorrer após ou anteriormente a sentença penal
ter passado por trânsito em julgado. Tal concessão é “atribuição do Congresso Nacional, sujeito à
sanção do Presidente da República”, nos diz Paulo Queiroz, e faz-se válido lembrar que a anistia,
por ser o esquecimento jurídico do ilícito, extingue os pressupostos da reincidência, ou seja, exclui
todos os efeitos penais, só há manutenção da obrigação de indenizar, caso seja essa devida.
29
30
MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de Contas com o Futuro – a anistia e suas consequências: um
estudo do caso brasileiro. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: FAPESP, 2006, p. 18.
268
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
que o número de mortos e desaparecidos não é o que mostra o quão
perverso é um regime, pois em nosso país inúmeros tipos de violações
foram praticadas ao longo desses vinte e um anos. Os regimes de exceção
possuem uma estratégia para chegar ao seu objetivo, muitos se utilizaram
de massacres, matanças, torturas, delação, inúmeras são as violações
e as formas de atentarmos contra a dignidade da pessoa humana. O
importante é entendermos que todos os regimes de exceção escolhem
seus meios em conformidade com os seus objetivos. Todas essas violações
são consideradas crimes de Estado. Coadunando esse entendimento, Luiz
Flávio Gomes31 nos diz que tais crimes são imprescritíveis, não anistiáveis
e extraditáveis. No entendimento de Lenio Streck,32 ao falarmos dos
crimes cometidos ao longo do regime ditatorial brasileiro, falamos de
crimes de tortura, configurando-se, assim, não mais como crimes políticos
passíveis de anistia, e sim de crimes contra os direitos humanos, crimes
não anistiáveis. Expõe ainda que nenhuma lei pode proteger de forma
deficiente ou insuficiente os direitos humanos fundamentais. Acrescenta
mais: por vivermos em um Estado Democrático de Direito, esse possui a
obrigação de proteger seus cidadãos; portanto, seguindo a concepção do
renomado jurista, constatamos que o STF deixou tais preocupações fora
do julgamento da ADPF 153.
Outro aspecto importante a ser ponderado é em relação à
validade da Lei de Anistia, pois no direito, o que é nulo, defeituoso
em termos jurídicos, nulo também deve ser o seu entendimento e
seus efeitos. Portanto, “dizer que a eficácia da Lei foi para além de seu
conteúdo semântico aceito pela tradição. Fizeram com a Lei de Anistia
e as leis subsequentes o que estas não previam”.33 Quantos aos limites
interpretativos faz-se fundamental deixarmos claro que ao nosso
entender compreende que o Estado Democrático de Direito e o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos do qual o nosso país é membro,
que o Brasil se submete à jurisdição contenciosa da Corte Interamericana
31
GOMES, Luiz Flavio. Crimes contra a humanidade e a jurisprudência do Sistema Interamericano
de Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (orgs.). Crimes da
Ditadura Militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos
humanos. Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo: RT, 2011, p. 87.
STECK, Lênio Luiz. A Lei de Anistia e os Limites Interpretativos da Decisão Judicial: o problema
da extensão dos efeitos à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito. In: Revista de
Hermenêutica Jurídica: (In)justiça nas Transições Políticas. Vol. 8, nº 8. Belo Horizonte: Instituto
de Hermenêutica Jurídica, 2010, p. 180.
32
33
Ibidem, p. 176.
Justiça de Transição: um breve relato sobre a experiência brasileira
269
de Direitos Humanos e por isso pode sofrer condenações pelas violações
de direitos humanos, por descumprir os parâmetros internos e externos
de proteção estipulados.34
Ao longo do regime de exceção o ordenamento jurídico nacional
fora alterado e boa parte dos direitos individuais suspensos, fato com
que facilitou e muito a ação dos agentes do Estado para o cometimento
de tais crimes. Como mencionamos anteriormente na ordem jurídica
vigente no Brasil temos a Lei nº 6.683/1979, a qual concedeu anistia
a todos os agentes do Estado que praticaram crimes conexos, esse
termo acrescido em uma das últimas versões da referida lei, antes de ir
à votação no Congresso Nacional35 deixando de lado o apelo social. As
mais diversas violações de direitos foram cometidas sob a justificativa
de combate ao terrorismo e ao comunismo, utilizaram-se da paz social e
da Lei de Segurança Nacional, esses foram os mantos que encobriram as
práticas de tortura realizadas nos porões nacionais.
No entanto, nossos agentes do Estado brasileiro sempre
afirmaram que no Brasil não houve tortura, não houve agressões.
Entretanto, geramos um sutil questionamento, qual a necessidade de
a Lei nº 6.683/1979 possuir um parágrafo que trate de crimes conexos,
sendo esses uma possibilidade que abarca os agentes do Estado para não
lhe serem atribuída nenhuma responsabilidade jurídico-penal. Já que
em nosso país não houve tortura tal dispositivo serve para que situação.
Poderia justificar-se por excesso de zelo do nosso legislador, seria essa a
única explicação para tal dispositivo.
Entretanto, vamos analisar de quais atos governamentais
estamos falando de crimes de estado que podem ser definidos como
qualquer ação que viole o direito internacional público, e/ou uma
lei doméstica do próprio Estado quando tais ações são praticadas
por atores individuais agindo em favor ou em nome do Estado,
mesmo quando tais atos sejam motivados pelos seus interesses
pessoais econômicos, políticos e ideológicos.36
34
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 38 e ss.
MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de Contas com o Futuro – a anistia e suas consequências: um
estudo do caso brasileiro. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: FAPESP, 2006, p. 151.
35
36
SILVA, FILHO, José Carlos Moreira. Crimes do Estado e Justiça de Transição. In: Sistema Penal
& Violência. Porto Alegre, v. 2, n.2, p. 22-35, jul/dez. 2010, p. 25.
270
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
É importante temos em mente que os autores dos crimes de
estado, são os próprios agentes estatais, por serem os que possuem a
função de resguardar os violadores dos direitos esses crimes figuram
como os graves. Tal entendimento deriva que o Estado devia resguardar
o direito de seus cidadãos e não violá-lo, no instante no qual o Estado
viola, o cidadão não tem para quem recorrer, já que ele tem o controle
do direito e dos órgãos que fiscalizam a aplicação desse.
A ADPF 153: e o posicionamento do nosso Supremo
Tribunal Federal
Quando falamos da Lei de Anistia, é mister discutirmos a Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 (APDF 153),
que foi julgada em 2010 pelo Supremo Tribunal Federal, tal arguição
buscava que judicialmente fosse realizada uma nova interpretação da
Lei de Anistia, que a sua aplicabilidade, no mínimo fosse analisada
caso a caso, a OAB pretendia que o STF revisse seu entendimento e
concluindo que a referida lei não podia anistiar aqueles que cometeram
violações aos direitos humanos. O recurso legal escolhido pelo
Conselho da OAB foi a ADPF pelo fato de ser uma forma de controle
concentrado de constitucionalidade, que visa averiguar violações de
direitos fundamentais ocorridas antes ou após a promulgação do texto
constitucional, cabível para a ação em questão.
Com o julgamento da ADPF 153 e sendo votada sua improcedência,
não houve uma alteração na ordem jurídica vigente, manteve-se a
“anistia recíproca”,37 validada para os dois lados. Os julgadores do STF
desconsideraram elementos fundamentais da comunidade internacional
de direitos humanos no referido julgamento.
Abordaremos alguns dos aspectos que os ministros do STF não
utilizaram ao prolatarem seus votos: a invalidez das leis de autoanistia,
apesar de não haver ainda nenhuma sentença condenando o Brasil
37
Termo cunhado por Paulo Abrão em: ABRÃO, Paulo. A lei de anistia no Brasil: as alternativas para
a verdade. ABRÃO, Paulo. A lei de anistia no Brasil: as alternativas para a verdade e a justiça. In:
RUIZ, Castor M. M. Bartolomé (org.) Direito à Justiça, memória e reparação: A condição humana
nos estados de exceção. Promoção UNISINOS e UNESCO. São Leopoldo: Casa Leiria, 2010, s/p.
Justiça de Transição: um breve relato sobre a experiência brasileira
271
pela Lei nº 6.683/1979, há na Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) outras sentenças que evidenciam o posicionamento
deste tribunal internacional. Essa decisão jurisprudencial declarou a
invalidez das leis de anistia que dificultam e proíbem as investigações
que possuem o intuito de apurar os fatos ocorridos, ou seja, não
permite chegar a uma investigação legal sobre as violações de direitos.
Conforme nos explica Flávia Piovesan as leis de autoanistia, “são leis
que perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada”,38
na medida em que essas leis não permitem uma punição aos autores de
graves violações aos direitos humanos. Além disso, no momento em que
não há a possibilidade de investigação, o próprio Estado que assumiu
obrigações do Sistema Interamericano de Direitos está descumprindo
suas obrigações, caso brasileiro.39
Também é válido destacarmos que o STF não cumpriu com
suas obrigações internacionais no julgamento da ADPF 153, é salutar
lembrarmos, que além do controle de constitucionalidade que foi
realizado, caberia a ele realizar o controle de convencionalidade,40 não
feito pelos membros do STF. Mas a Corte Interamericana de Direitos
Humanos realizou tal controle em nossa Lei de Anistia e observou
que essa está em desconformidade com o Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, do qual o Brasil é membro.
Parece evidente, entretanto, que a decisão do STF não
levou em consideração o fato de que, ao realizar o controle de
constitucionalidade, é sua obrigação também realizar o controle
de convencionalidade, visto que a Convenção Americana de
38
PIOVESAN, Flávia. Lei de Anistia, sistema interamericano e o caso brasileiro. In: GOMES, Luiz
Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (orgs.). Crimes da Ditadura Militar: uma análise à luz
da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile,
Uruguai. São Paulo: RT, 2011, p. 76.
GENRO, Luciana. Justiça de Transição no Brasil: a lei de anistia e o sistema interamericano
de direitos humanos. Trabalho de Conclusão de Curso. São Leopoldo, 2011, p. 62. Disponível em:
<http://idejust.files.wordpress.com/2011/12/luciana-krebs-genro.pdf>. Acesso em: dez. 2011.
39
40
GOMES, Luiz Flavio. Crimes contra a humanidade e a jurisprudência do Sistema Interamericano
de Direitos Humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (orgs.). Crimes da
Ditadura Militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos
humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo: RT, 2011, p. 93. Além disso, faz-se de suma
importância destacar o voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que foi o único que se utilizou de
conceitos e preceitos de direitos internacional a proferir seu voto, e realizou o mais próximo de um
controle de convencionalidade, visto nesse julgamento.
272
Natália Centeno Rodrigues e Francisco Quintanilha Véras Neto
Direitos Humanos, assim como os demais tratados internacionais
de direitos humanos, possui, no mínimo, hierarquia supralegal,
reconhecida pelo próprio STF, quando editou a Súmula 25.
Portanto, quando uma norma legal infraconstitucional, como
a Lei de Anistia, conflita com outra, que é supralegal, no caso
a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a primeira
torna-se inaplicável.41
Cada julgador do nosso órgão de cúpula ao fundamentar
seu voto utilizou-se de argumentos como tais: a lei analisada fora
promulgada sobre um acordo das partes, que representavam a
mentalidade e a vontade de época. Declararam a incompetência para
alterar o texto normativo alegando ser essa do Congresso Nacional.
Outros construíram seu pensar alicerçados na ideia de revanchismo,
termos como esse foram utilizados para se referir a pessoas que
não conseguem conviver com violações de direitos perpetuadas no
cerne de seu regime democrático. Inúmeros equívocos serviram de
fundamentação dos votos dos nossos julgadores.
O julgamento da ADPF 153 serviu para evidenciar que o Brasil,
na figura do seu STF negou as obrigações estabelecidas frente a Corte
Interamericana de Direitos, sendo que é o órgão interno que deveria
preservar e buscar o cumprimento das obrigações internacionais.
Considerações finais
A criação da Comissão Nacional da Verdade e a discussão acerca
da Justiça de Transição no contexto nacional e latino-americano
define uma política aberta de fortalecimento da democracia. A
memória histórica, da política do período autoritário e de suas vítimas,
é emblemática para efetuar a justiça transicional que permitirá a
consolidação da democracia através da efetivação de uma cultura de
direitos humanos no âmbito nacional e regional. Nesse sentido, a lei da
41
GENRO, Luciana. Justiça de Transição no Brasil: a lei de anistia e o sistema interamericano de
direitos humanos. Trabalho de Conclusão de Curso. São Leopoldo, 2011, p. 130 e ss. Disponível em:
<http://idejust.files.wordpress.com/2011/12/luciana-krebs-genro.pdf>. Acesso em: dez. 2011.
Justiça de Transição: um breve relato sobre a experiência brasileira
273
autoanistia não pode garantir a impunidade de agentes que aplicaram
atos de terrorismo de Estado rechaçados pelo Sistema Interamericano
de Direitos Humanos. Pois estes são crimes imprescritíveis, de lesahumanidade e não meros crimes conexos que podem ser abarcados
pela Lei de Anistia. A decisão do STF aqui aventada fere diretivas da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, ocasionando uma severa
sequela no processo que busca a consolidação de uma política que
fortaleça os direitos humanos; capaz de sepultar o entulho autoritário
ainda vivo em alguns setores da sociedade brasileira. O combate a esses
focos de obscurantismo passaria pela necessidade de reconhecimento
jurídico da Corte Constitucional guardiã da Constituição, o STF, que
deveria contribuir para a tutela e concretização dos direitos humanos
fundamentais, permitindo assim a efetivação da justiça transicional.
Dessa forma, esse debate histórico e jurídico visa acertar as contas com
o passado e garantir para as futuras gerações um processo de educação
em direitos humanos calcado num ideário de justiça baseada na
memória, reparação e compensação das vítimas do estado de exceção
e que previna retrocessos autoritários sempre possíveis quando não há
questionamento da mentalidade totalitária do passado que encontra
defensores no presente.
Referências
ABRÃO, Paulo; GENRO, Tarso. Anistia e democracia. Disponível em:
<http://oab-rj.jusbrasil.com.br/noticias/851280/artigo-anistia-edemocracia-tarso-genro-e-paulo-abrao>. Acesso: abr. 2011.
______. A lei de anistia no Brasil: as alternativas para a verdade.
ABRÃO, Paulo. A lei de anistia no Brasil: as alternativas para a verdade
e a justiça. In: RUIZ, Castor M. M. Bartolomé (org.) Direito à Justiça,
memória e reparação: A condição humana nos estados de exceção.
Promoção UNISINOS e UNESCO. São Leopoldo: Casa Leiria, 2010, s/p.
274
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Entre o princípio da legalidade e a
imprescritibilidade dos crimes da ditadura
militar, a ADPF 153 em foco
Ricardo Silveira Castro
Se o Brasil vier a tomar novas medidas
com relação à justiça transicional, não
será por exigência da recém-adquirida
proeminência nos assuntos internacionais.
O mundo pode estar interessado no petróleo
brasileiro, no mercado em constante
expansão, nas florestas tropicais, nas
praias e no fato de que o país sediará a Copa
do Mundo e as Olimpíadas, mas questões
relativamente obscuras de quem fez o que
a quem durante um regime militar passado
dificilmente se transformarão em assunto
de conversa nos meios internacionais.
Se novas medidas forem tomadas, será
porque pessoas comuns exigem o direito de
saber mais sobre o passado ditatorial – o
passado delas próprias, e um passado que
informa o presente1
(Anthony Pereira, 2010).
Para todo estado que se pretende constituir em Estado
Democrático de Direito após um período de autoritarismo é
imprescindível o planejamento e a execução de políticas promotoras da
“justiça de transição”.2 Justiça de Transição é, assim, a série de medidas
PEREIRA, Anthony. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no
Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.p.30.
1
2
O termo é relativamente novo, mas serve para designar um processo já bastante antigo. Embora
já existam, atualmente, padrões claros relativos às obrigações dos estados a respeito da forma de
enfrentar o rastro autoritário de sua historio, o fato é que os processos de justiça de transição em
todo o mundo adquirem diferentes contornos e possuem peculiaridades próprias.
278
Ricardo Silveira Castro
que devem ser tomadas para promover a paz em um estado no período
de pós-conflito. É importante salientar que elementos fundamentais
como a legitimidade e a credibilidade do estado deverão ser resgatados
com essas ações.
Não obstante a justiça de transição se materialize basicamente
sob quatro pilares básicos – quais sejam: a reforma das instituições,
o empenho em buscar a verdade dos fatos ocorridos no período de
exceção, a instauração de políticas de reparação às vítimas e a promoção
do julgamento dos crimes de violência aos direito humanos – no Brasil
somente o campo da reparação pecuniária das vítimas do regime
militar foi merecedor do efetivo esforço estatal, por meio dos trabalhos
realizados pela Comissão de Anistia, a partir de 2001. A inexistência
de planos políticos que efetivem os demais pilares que sustentam a
justiça de transição faz do Brasil um dos países da América Latina mais
atrasados nessa matéria – o que acaba refletindo na disseminação da
cultura de violação dos direitos humanos pelas forças de segurança
pública do nosso país.
Por meio da Comissão de Anistia, o Estado buscou reparar as
vítimas do período militar.3 Cidadãos que tiveram suas vidas destruídas
durante o golpe de 1964 – basicamente por pensarem de maneira
diferente – receberam a devida restituição pecuniária juntamente com o
pedido de desculpas do Estado pelas atrocidades cometidas. Tais ações
são imprescindíveis para a obtenção dos fins da justiça de transição: a
reconciliação e a paz pós-conflito.
Na seara do direito à verdade e à memória pouco se construiu.
Os arquivos da ditadura seguem no desconhecimento, e a publicização
de diversos documentos importantes que constroem a história do
nosso país durante os “anos de chumbo” parece figurar uma realidade
distante. É necessário reconhecer que obtivemos modestos avanços com
políticas como a de “Memórias Reveladas”, em que acervos dos extintos
Conselho de Segurança Nacional, Comissão Geral de Investigações e
Serviço Nacional de Informações – até então sob custódia da Agência
Brasileira de Inteligência – passaram à Casa Civil para a sua organização
e publicização. Relevante, ainda, foram os trabalhos da Comissão
de Anistia para a reconstrução da memória durante a realização das
3
É curioso observar que a luta em torno do direito das vítimas e das obrigações do Estado
praticamente não conseguiu sensibilizar mais ninguém além dos diretamente nela envolvidos.
Entre o princípio da legalidade e a imprescritibilidade dos...
279
“Caravanas da Anistia”. A memória é – indubitavelmente – a base para
a construção da identidade social, política e cultural de um país. Para
buscar da ampliação desse pilar de sustentação da justiça de transição
foi criada a Comissão Nacional da Verdade – que mesmo antes de
começar os seus trabalhos já tem causado discussões e polêmicas – com
o intuito de esclarecer diversos pontos controvertidos durante o período
de 1946 a 1988.
Na área da reforma das instituições o Estado brasileiro tem
fracassado. Isso porque, embora instituições responsáveis pela prática
de crimes bárbaros como o Destacamento de Operações e Informações e
Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e os Departamentos
de Ordem Política e Social (DOPS) tenham sido extintos, os responsáveis
pela execução daqueles crimes seguiram fazendo parte dos quadros
funcionais do estado, sem receber quaisquer punições. O enfoque
desse trabalho surge justamente nesse pilar da justiça de transição: o
julgamento dos agentes estatais por práticas violadoras dos direitos
humanos. Certamente esse é o ponto mais espinhoso em matéria de
justiça de transição. O fato é que no Brasil esse pilar de sustentação
transicional nunca pode ser construído em função de um mecanismo
utilizado pelo regime militar no final da década de 1970: a autoanistia.
Assim, segue no Brasil a violação de regras fundamentais de direitos
humanos e com ela a expansão da cultura de impunidade difundida por
aqueles que remanesceram da ditadura militar.
Pretendendo contribuir para a transformação dessa desastrosa
realidade, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou
em 2008 uma arguição de descumprimento de preceito fundamental
(doravante chamada de ADPF 153) questionando a constitucionalidade
da interpretação dada à Lei de Anistia (particularmente o que diz
respeito ao 1º do art. 1º da lei) forjada – em 1979 – durante o período
ditatorial, portanto. Segundo tal interpretação, os crimes cometidos por
agentes do estado durante a ditadura militar (como torturas, homicídios,
desaparecimentos forçados, abuso de autoridade, estupros e sequestros)
contra os cidadãos opositores do regime também estariam anistiados
por aquele ato legislativo.
É importante perceber que a ação interposta pelo Conselho
Federal da OAB não surgiu isolada no tempo e no espaço – diversos
acontecimentos provocaram o seu movimento. No contexto internacional
280
Ricardo Silveira Castro
foi apresentado, ao final de agosto de 2004, pela Organização das Nações
Unidas (ONU), um relatório sobre “o Estado de Direito e a Justiça de
transição em sociedades em conflito ou pós-conflito”, documento que
revela a importância da justiça transicional para a efetiva construção do
Estado de Direito. Além disso, países latino-americanos como o Chile
e a Argentina, por exemplo, realizaram persecuções criminais contra
militares que atuaram nas ditaduras e teriam, supostamente, violado
normas de direitos humanos. Internamente, diversas ações levadas ao
poder Judiciário traziam no mérito discussões acerca da possibilidade
de responsabilização (seja civil, seja criminal) dos agentes públicos que
comandaram e executaram crimes comuns contra opositores políticos
do regime militar.4 Outrossim, a necessidade de resolução – por parte
do Estado – da controvérsia constitucional restou evidente.
Nos dias 28 e 29 de Abril de 2010 – em julgamento histórico,
de repercussão internacional – o Supremo Tribunal Federal julgou
improcedente a ação e corroborou o entendimento de que não é possível
promover o julgamento dos agentes estatais que violaram regras
básicas de proteção dos direitos humanos durante o período de exceção
brasileiro (1964-1985). Em que pese serem diversas de questões de
direito material e processual que integraram o debate do julgamento
pela Suprema Corte, o presente artigo pretende analisar criticamente
dois dos argumentos utilizados pelos ministros do Supremo Tribunal
Federal que serviram para negar provimento à ADPF 153. O primeiro
diz respeito a obstáculo que o princípio da legalidade representaria à
persecução criminal dos crimes da ditadura militar enquanto o segundo
menciona a prescrição daqueles crimes como impedimento para o
avanço das investigações. A escolha de desenvolver uma análise sobre
esses dois pontos controversos ocorreu em função de eles constituírem
4
Na seara cível, podemos citar como exemplo: ação que tramitou na 23º Vara Cível do Estado de
São Paulo (autos nº 583.00.2005.202853), ação que tramitou na 42ª Vara Cível do Estado de São
Paulo (autos nº 583.00.2007.241711) e a ação que tramitou na 8ª Vara Federal Cível de São Paulo
(autos nº 2008.61.00.0011414-5). Na seara criminal, também houve tentativas de responsabilizar
os agentes da violência ditatorial. Como exemplo, podemos mencionar o caso Vladmir Herzog,
no ano de 1992, em que o Ministério Público de São Paulo, por meio do Coordenador na 1ª
Promotoria do Júri da Cidade de São Paulo, Luiz Antonio Guimarães Marrey, requisitou a abertura
de inquérito à Polícia Civil para apurar o homicídio. Além desse, podemos citar a tentativa de punir
os responsáveis pelo ataque que ficou conhecido “Caso Riocentro” (1981), que também não logrou
êxito. SANTOS, Roberto Lima; FILHO, Vladimir Brega. Os reflexos da “judicialização” da repressão
política no Brasil no seu engajamento com os postulados da justiça de transição. In: Revista Anistia
Política e Justiça de Transição, Brasília, n.1, p.152-177, jan.-jun. 2009.
Entre o princípio da legalidade e a imprescritibilidade dos...
281
um núcleo de argumentos que invariavelmente serve para sustentar a
impossibilidade de promover julgamentos contra os agentes públicos
do regime militar por crimes de lesa-humanidade. Por fim, buscar-se-á
compreender a razão da posição tomada pelo Supremo Tribunal Federal
e perceber as suas consequências.
Com a palavra, o Supremo Tribunal Federal
A análise dos votos dos ministros do STF no julgamento da ADPF
153 revela um dado importante – a renegação, por parte dos magistrados
brasileiros, do direito internacional. Seria o Direito internacional capaz de
auxiliar na construção do reconhecimento da essencialidade das normas
de direitos humanos que foram violadas durante o período ditatorial?
Qual o papel do direito internacional nessa discussão? Atualmente, no
Brasil e no mundo muito se discute a respeito da relação existente entre
o Direito Internacional e o Direito interno de cada Estado. Algumas
teorias tentam explicar, a partir de compreensões diametralmente
opostas, a relação entre o direito das gentes e o direito nacional.5 Em
que pese à importância da compreensão de cada uma dessas teorias – já
que dependendo da posição adotada obter-se-á resposta diversa para a
5
Para a Teoria Dualista, seguida por Carls Heinrich Triepel, Balladore Pallieri e Alf Ross, o ponto
de partida é o dualismo existente entre o direito interno de cada Estado e o Direito Internacional,
que seriam dois sistemas independentes e distintos. Segundo essa construção os planos nacional e
internacional não se tocam por qualquer meio, importando para vigência interna de uma norma de
direito internacional que o Estado internalize tais normas pelo processo conhecido como adoção ou
transformação. Já para a Teoria Monista, preconizada por Kelsen, Verdross, Mirkine-Guetzévitch
e Jiménes de Aréchaga, o ponto de partida é a unidade do conjunto das normas jurídicas, internas
e internacionais. Conforme essa teoria, o Direito Internacional e o Direito interno são dois ramos
do Direito dentro de um só sistema jurídico, de maneira que tanto o Direito interno como o Direito
Internacional estariam aptos para reger as relações jurídicas dos indivíduos – restando inútil qualquer
processo de incorporação formal das normas internacionais no ordenamento jurídico interno. A
Teoria Monista ainda subdivide-se em: a) monismo internacionalista: sustenta a unicidade da ordem
jurídica sob o primado do direito externo, ou seja, o Direito Interno derivaria do Direito Internacional,
que representa uma ordem jurídica hierarquicamente superior; b) monismo nacionalista: apregoa
o primado do direito nacional de cada Estado soberano, sob cuja ótica a adoção dos preceitos do
Direito Internacional reponta como uma faculdade discricionária. Vale ressaltar ainda o surgimento
de doutrinas conciliatórias que sustentam a coordenação de ambos os sistemas a partir de normas
superiores a ambos, a exemplo das regras do Direito Natural. MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso
de direito internacional público. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
282
Ricardo Silveira Castro
mesma indagação – a análise aprofundada dos postulados de cada uma
dessas correntes foge ao objetivo desse trabalho.
Importa ressaltar que em se tratando de proteção dos direitos
humanos é forçoso reconhecer a obrigatoriedade de reverência ao
direito internacional. Isso porque foi esse ramo do direito que – a
partir de 1945, ao final da Segunda Grande Guerra – assumiu a tarefa
de estabelecer um núcleo de direitos mínimos a ser protegido pela
comunidade internacional independentemente de instabilidades
nacionais. O modelo de direito internacional dos direitos humanos é um
fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às
monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de
que parte dessas violações poderia ser prevenida se um efetivo sistema
de proteção internacional de direitos humanos existisse.6 Já em 10 de
dezembro de 1948, quando da proclamação pela Assembleia Geral das
Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito
internacional público fez ecoar no plano internacional que “o desprezo
e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros
que ultrajaram a consciência da Humanidade”.7 O direito internacional
vem demonstrando comprometimento com valores que transcendem
os valores puramente “estatais”, e com isso fez ressurgir a perspectiva
de que o Estado só deve ter um fundamento para existir: proteger os
direitos humanos fundamentais de seus cidadãos.
Outrossim, é necessário reconhecer a posição monista
internacionalista que assumimos ao tratarmos de proteção de direitos
humanos. Ainda que se reconheçam as fragilidades dessa corrente,
parece ser ela quem melhor molda a relação entre Direito internacional
dos Direitos Humanos e normas internas de proteção aos direitos
humanos. Conforme a Professora Deisy Ventura,
não há dúvidas sobre o grau de adesão do Brasil, um dos 51
Estados fundadores da Organização das Nações Unidas, ao
movimento internacionalista que sucedeu a Segunda Guerra
Mundial, gerador não somente do sistema onusiano, mas do
PIOVESAN, Flávia. Direito internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso brasileiro.
In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura? – a exceção brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2010. p. 93.
6
7
Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Entre o princípio da legalidade e a imprescritibilidade dos...
283
cerne convencional do processo de universalização dos direitos
humanos, em curso até nossos dias.8
Seguindo essa lógica, defendemos o fim da era em que a forma
pela qual o Estado tratava os seus nacionais era concebida como um
problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania.
Caso aceitemos que não existe apenas um único ordenamento
jurídico estatal, mas que existe uma pluralidade deles, coordenados e
com validade juridicamente delimitada, em plena vigência, reconhecese que é o direito internacional positivo que realiza essa coordenação
dos ordenamentos jurídicos únicos e a delimitação recíproca de seus
âmbitos de validade, então se deve conceber o direito internacional como
acima dos ordenamentos jurídicos pertencentes a uma comunidade
jurídica universal; com isso, a unidade de todo o direito é assegurada
num sistema escalonado consecutivo.9 A constatação de que o Supremo
Tribunal Federal adotou a orientação da teoria dualista, diferente da
visão que propomos, basta para enfatizarmos que o debate a respeito
da relação entre plano interno e internacional em matéria de direitos
humanos estará no âmago de toda a análise que traçaremos a seguir.
O princípio da legalidade
O princípio da legalidade é pressuposto fundamental para o
estabelecimento da ordem democrática e da construção do Estado
de Direito. No direito penal interno tal princípio é uma garantia dos
cidadãos, já que representa uma efetiva restrição ao poder punitivo
estatal. No início do século XIX, Feuerbach consagrou-o na fórmula
latina nullum crimen, nulla poena sine lege. A Constituição Federal
de 1988, por sua vez, ao proteger os direitos e garantias fundamentais
VENTURA, Deisy. A interpretação judicial da lei de anistia brasileira e o direito internacional. In:
PAYNE, Leigh; ABRAO, Paulo; TORELLY, Marcelo (orgs.). A anistia na era da responsabilização:
o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão da
Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011. p. 308-343.
8
9
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução
de J. Cretella Jr e Agnes Cretella. 6.ed.rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 140.
284
Ricardo Silveira Castro
determina que “não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem
pena sem prévia cominação legal”10 reverenciando claramente o
princípio da reserva legal.
Esse princípio, na visão de alguns ministros do Egrégio tribunal,
impediria que os crimes cometidos durante a ditadura militar fossem
investigados e punidos porque os fatos anistiados pela lei 6.683
antecedem tanto a promulgação, pelo Congresso Nacional, em 1997, da
Lei nº 9.455, que definiu e tipificou o crime de tortura, quanto à adoção,
pela Assembleia Geral da ONU, da Convenção das Nações Unidas
contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou
degradantes (1984). De fato, no ordenamento jurídico brasileiro, a
tipificação do crime de tortura foi posterior ao término do regime de
exceção. Evidentemente não poderíamos aceitar a incidência de uma
norma penal incriminadora a fatos anteriores a sua criação, sem ferir
o princípio da reserva legal. Também é verdadeira a constatação de que
a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis,
desumanos e degradantes – norma de direito internacional – foi criada
após o fim do período autoritário no Brasil.
No plano interno, é forçoso reconhecer a impossibilidade de
darmos alcance retroativo ao tipo penal incriminador criado em 1997
pela Lei 9.455. No entanto, o fato é que diversos outros tipos penais
vigentes à época da ditadura militar incidiram sobre as condutas
dos agentes estatais, como, por exemplo, homicídio, lesão corporal,
constrangimento ilegal, ocultação de cadáver, estupro e tantos outros
previstos no Código Penal. No plano internacional, podemos destacar
a vigência incontroversa de normas internacionais como a Declaração
Universal dos Direitos do Homem,11 a Convenção para a Prevenção
e Repressão do Crime de Genocídio12 e as Convenções de Genebra
que vedam as ofensas à dignidade das pessoas e os tratamentos
humilhantes e degradantes.
Outra reflexão se faz necessária diante desse argumento: qual
será a função do princípio da legalidade? Sendo uma garantia do
cidadão perante o Estado, esse princípio existe para acudir o direito
humano universal de dar conhecimento da existência da norma penal e
10
Artigo 5º, XXXIX da Constituição Federal de 1988.
11
Assinada pela República Federativa do Brasil, em 10 de dezembro de 1948.
12
Internalizada pelo Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952.
Entre o princípio da legalidade e a imprescritibilidade dos...
285
de seu conteúdo a todos aqueles que são a ela submetidos. Em síntese,
a reserva legal garante o conhecimento, por parte dos cidadãos, das
“regras do jogo” declaradas pelo Estado. Sustentar que o princípio
da legalidade impede o julgamento dos agentes que cometeram – no
período de exceção – crimes de lesa-humanidade implica acreditar que
esses agentes tinham dúvida sobre, ou mesmo desconheciam, o caráter
criminoso dos fatos que estavam praticando. A negação desses crimes
por parte das forças armadas atualmente já responde por si só: aquele
que torturou, sequestrou e estuprou guarda consigo a certeza do caráter
criminoso de seus atos.
Nesse sentido, resta evidente a inverossimilhança do
argumento de que a investigação e a punição dos crimes cometidos
durante o período ditatorial representariam um golpe ao princípio
constitucional da legalidade.
A prescrição
Outra questão que incitou o debate no julgamento da ADPF 153
foi a respeito da prescrição dos crimes cometidos pelos agentes estatais
durante o período de exceção. A posição vencedora foi a de que, caso
a postulação deduzida pelo Conselho Federal da OAB fosse acolhida,
haveria a incidência do instituto da prescrição, previsto em nosso
ordenamento, e isso impediria a responsabilização daqueles agentes
que violaram normas de direitos humanos na ditadura brasileira. Nos
termos do voto do ministro Celso de Melo, sustentar a imprescritibilidade
penal daqueles crimes tendo por fundamento a Convenção sobre
a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a
Humanidade representa uma inconsistência jurídica, pois,
como se sabe, essa Convenção das Nações Unidas, a dotada no
dia 26 de Novembro de 1968, muito embora aberta à adesão
dos Estados componentes da sociedade internacional, jamais foi
subscrita pelo Brasil, que a ela também não aderiu, em momento
algum, até a presente data.
286
Ricardo Silveira Castro
Nesse sentido, conclui o magistrado, “a cláusula de
imprescritibilidade penal que resulta dessa Convenção das nações
Unidas não se aplica, não obriga nem vincula, juridicamente, o Brasil
quer em sua esfera doméstica, quer no plano internacional”.13
Interessante analisar – nesse ponto da discussão – a legitimidade
dada pelo Supremo Tribunal Federal ao simulacro de legalidade
construído por aqueles que golpearam a Constituição de 1946 em 1964
por meio dos atos institucionais. Nessa perspectiva,
supor que o princípio da imprescritibilidade dos crimes contra
a humanidade estaria condicionado à assinatura, ratificação e
incorporação de uma convenção internacional por uma junta
militar que emendou arbitrariamente a Constituição para instituir
as penas de morte, prisão perpétua, banimento e confisco [provoca
até] certa graça.14
Certamente não faltariam motivos que convencessem os
generais, em 1968, a não assinar aquele ato normativo internacional.
Além disso, é importante enfatizar que crimes, como o de
desaparecimento forçado, o de sequestro e o de ocultação de cadáveres,
por exemplo, são crimes permanentes e, portanto, enquanto não se
encontrarem os corpos das vítimas desses crimes, não há que se falar na
incidência da prescrição. Essa foi, inclusive, a orientação do Supremo
Tribunal Federal no julgamento da extradição 974 em 2009. Nesse
processo discutia-se o pedido do governo argentino de extradição do
uruguaio Manuel Cordero Piacentini que estava sendo acusado de, dentre
outros crimes cometidos durante as ditaduras no cone sul, ter cometido
o crime de sequestro. A defesa do uruguaio ressaltou que o crime de
sequestro teria ocorrido há mais de trinta anos e, portanto, estariam
prescritos. No entanto, conforme o ministro Ricardo Lewandowski,
“esses sequestros podem, em tese, ainda subsistir. Portanto estamos
diante de um crime permanente”.15 A extradição foi deferida.
13
Voto do Ministro Celso de Melo. Disponível em: <www.stf.jus.br>.
14
VENTURA, Deisy. Ob. Cit..
15
Voto do Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: <www.stf.jus.br>.
Entre o princípio da legalidade e a imprescritibilidade dos...
287
Considerações finais
Após uma leitura analítica do acórdão da ADPF 153 fica muito
claro que o Supremo Tribunal Federal aplicou mal o Direito Internacional
e mostrou-se ignorante a respeito do debate contemporâneo sobre a
internacionalização do Direito e o transconstitucionalismo.
Além disso, uma outra constatação – e que revela mais a respeito
da decisão do Egrégio Tribunal – é a postura positivista que os ministros
aparentam adotar. De acordo com a Professora Deisy Ventura,
ao refutar a aplicação da Convenção sobre a Tortura por ter vigência
superveniente à da Lei de Anistia o Supremo Tribunal Federal
aparenta ser positivista. Nada mais do que aparência: tributário
de sua própria lógica, o puro positivismo não permitiria escolher,
entre as convenções internacionais, apenas aquelas que não estão
em vigor, e somente para refutá-las, ignorando em absoluto as que
são perfeitamente vigentes, mas não servem ao escopo.16
Esse “positivismo a la carte”, diz muito a respeito da atuação do
Supremo Tribunal Federal – e do Poder Judiciário – na legitimação do
simulacro de legalidade da ditadura militar brasileira.
Conforme o estudo realizado pelo professor Anthony Pereira,
a relação de cooperação entre as Forças Armadas e o Poder Judiciário
durante o período autoritário reflete diretamente na capacidade e
autonomia que o Estado terá de levar a julgamento aqueles agentes
estatais que violaram as normas de direitos humanos. Quanto mais
fortes os laços de cooperação entre eles, mais difícil e truculenta será
a construção daquele pilar da justiça de transição. No Brasil, como se
sabe, o regime militar forjou a legalidade (autoritária) e preocupouse em aparentar o estabelecimento de uma ordem. Com isso, poucos
foram os magistrados que se voltaram a identificar a legitimidade desse
sistema que sofria desde a sua inauguração de inconstitucionalidade.
A grande maioria – para não dizer a totalidade – de juízes, promotores
e delegados assumiram a legalidade autoritária como o imperativo de
ordem a ser seguido e cooperaram, assim, com as forças armadas para a
16
VENTURA, Deisy.
288
Ricardo Silveira Castro
implementação da nova “ordem”. Essa posição teve consequência direta
no julgamento da ADPF 153.
Ao se manifestar a respeito da (im)possibilidade de se investigar
e responsabilizar os agentes estatais que violaram normas de direitos
humanos durante o regime militar brasileiro, o Supremo Tribunal
Federal, em vez de desempenhar suas altas funções institucionais de
velar pela integridade dos direitos fundamentais, de repelir condutas
governamentais abusivas, de conferir prevalência à essencial dignidade
da pessoa humana, de fazer cumprir os pactos internacionais que
protegem os grupos vulneráveis expostos a injustas perseguições e a
práticas discriminatórias, de neutralizar qualquer ensaio de opressão
estatal e de nulificar os excessos do poder e os comportamentos
desviantes de seus agentes e autoridades, que tanto deformam o
significado democrático da própria Lei Fundamental, optou por seguir
dando legitimidade aquela ordem que outrora foi incapaz de garantir
aos cidadãos brasileiros os direitos fundamentais mais básicos.
O presente texto – enfatize-se – não tem a pretensão de
responder afirmativamente (ou negativamente) à questão posta em
debate pelo Conselho Federal da OAB em relação a possibilidade,
ou não, de haver responsabilização criminal dos agentes da ditadura
militar brasileira. Até porque, para isso, seria necessário um trabalho
muito mais detalhado a respeito de cada um dos diversos argumentos
que negaram provimento à ADPF 153.
Entretanto, é forçoso reconhecer que, após uma análise cuidadosa
dos dois argumentos trabalhados neste artigo, nenhum deles representa
um real obstáculo a essa responsabilização proposta pelo Conselho
Federal da OAB.
Diferentemente do que pronunciou o ministro Marco Aurélio, o
debate proporcionado pela ADPF 153 vai muito além de uma discussão
estritamente acadêmica, “para ficar nos Anais do Tribunal”.17 A
discussão assume importância prática inquestionável. Segundo
estudos científicos realizados pelas cientistas políticas estadunidenses
Kathryn Sikkink e Carrie Both Walling, nos países onde ocorreram
julgamentos por violações de direitos humanos durante os períodos
autoritários, a “PTS”18 diminuiu sensivelmente em relação ao período
17
Voto de Marco Aurélio.
18
“Political Terror Scale” – Escala de Terror Político.
Entre o princípio da legalidade e a imprescritibilidade dos...
289
anterior ao da realização desses julgamentos. O preocupante é que no
Brasil, de acordo com essa pesquisa, mesmo com a democratização das
instituições, o fim da censura e a ampliação das liberdades, a violência
não só continua alta, como é ainda maior. Tais resultados refletem o
alto índice de violência demonstrado pelas forças de segurança pública
do país – violência que não raro é denunciada por organizações
internacionais como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch.
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ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis
desdobramentos na esfera internacional
Robert Rigobert Lucht
A recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n°
153 acerca da Lei da Anistia foi polêmica e gerou inúmeras discussões.
Tratou aquele acórdão de responder, entre outras questões, se os crimes
praticados pelos agentes de Estado durante o regime militar de 1964 a
1979 teriam sido alcançados pela anistia instituída pela Lei n° 6.683, de
28/08/1979 (Lei da Anistia).
A resposta positiva do STF para essa demanda judicial teria,
segundo parte da doutrina, afrontado normas do Direito Internacional,
o que poderia gerar repercussões para o Brasil enquanto ente signatário
de tratados multilaterais.
Antes, durante e depois do julgamento, organizações, instituições
e diversos atores políticos e sociais envolveram-se numa disputa de
versões, fatos e argumentos – jurídicos e não jurídicos – sobre esse
período e sobre as intenções que estariam abarcadas pela referida lei.
Disso não trata nossa pesquisa. Não discutiremos se a decisão do STF
abordou corretamente os acontecimentos históricos. Não trataremos
dos usos do passado e do questionamento da memória da Lei da Anistia.
E nem temos a pretensão de apresentar mais uma versão do passado,
revistando-o mais uma vez.1
Nosso objetivo é diverso. Além do curto prazo entre essa decisão
(abril de 2010) e o momento presente, o que por si só já produz uma
lacuna científica, as pesquisas atuais olvidam de olhar para o presente
1
Uma das principais dificuldades de se revisitar o passado está na sua reconstituição fidedigna.
Beatriz Sarlo aduziu: “Tentei assinalar alguns dos problemas que a primeira pessoa colocava na
reconstituição do passado mais recente. A primeira pessoa é indispensável para restituir aquilo
que foi apagado pela violência do terrorismo de Estado; e, ao mesmo tempo, não é possível ignorar
as interrogações que se abrem quando ela oferece seu testemunho daquilo que, de outro modo,
nunca se saberia, e também de muitas coisas em que ela, a primeira pessoa, não pode demonstrar
a mesma autoridade”. Conforme SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada
subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte:
UFMG, 2007, p. 116-117.
294
Robert Rigobert Lucht
e para o futuro próximo. Dado que essa decisão do STF apresenta-se
da forma como colocada, o que pode acontecer daqui por diante? Ela
está em conformidade com os tratados de direitos humanos que o Brasil
foi signatário? Pode haver repercussões para o Estado Brasileiro? Caso
positivo, de que maneira?
A justificativa dessa pesquisa tem amparo nesse vazio acadêmico
que, ao primar pelo exame do passado – cujo mérito de forma alguma se
desmerece –, deixa de atentar objetivamente para o que pode acontecer
ao Brasil internacionalmente.
Esse é o nosso espectro. Buscamos respostas objetivas (reais
consequências) a um fato (decisão do STF). Nossa pretensão é de
desvendar, em breves linhas, as implicações desse acórdão sob a ótica
do Direito Internacional. Dessa feita, a pesquisa em questão procura
avaliar que possíveis implicações seriam essas e de que formas
poderiam ocorrer.
A metodologia para esse intento engloba a utilização de
pesquisa bibliográfica e documental, em especial a de legislação,
doutrina e jurisprudência. Quanto à abordagem, constitui-se em
qualitativa e exploratória.
A estrutura dessa pesquisa inicia pelo referencial teórico no qual
são delineados um rápido histórico sobre a Lei da Anistia e as questões
levadas a julgamento na ADPF n° 153, no STF. Em seguida, é exposto um
breve estudo sobre a responsabilidade do Brasil decorrente de normas
internacionais de proteção aos direitos humanos. De posse dessas noções,
analisamos propriamente as repercussões no cenário internacional da
posição brasileira e apresentamos as principais implicações que podem
advir dessa disposição. Por fim, são sintetizadas as conclusões extraídas
e realizadas algumas considerações acerca de tão importante tema.
Referencial teórico
Para a melhor compreensão das possíveis implicações da decisão
do Supremo no cenário internacional, é mister entender as questões
que foram submetidas àquele tribunal. Nesse diapasão, traçamos um
breve e sucinto histórico da Lei da Anistia para então examinarmos a
ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis desdobramentos...
295
responsabilidade do Estado Brasileiro na proteção dos direitos humanos
segundo as normas internacionais.
A Lei da Anistia e o objeto do julgamento da ADPF n°
153/STF
A Lei da Anistia, ou Lei n° 6.683, foi promulgada em 28/08/1979
pelo então presidente da República João Batista de Oliveira Figueiredo.
Teve por finalidade conceder uma anistia ampla e geral a todos aqueles
brasileiros exilados no período da repressão política, iniciado em 1968,
e constituiu-se em uma resposta à crescente pressão popular que surgia
no processo de liberalização.
O texto legal contemplava um perdão aos que tivessem cometido
crimes políticos ou conexos com esses, crimes eleitorais, aos que tiveram
seus direitos políticos suspensos, aos servidores da Administração
Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos
servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e aos
dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos
Institucionais e Complementares.
Uma das grandes discussões jurídicas sobre essa lei, e que se
materializou na ADPF 153/STF, foi o alcance do conceito de crimes
conexos, definido no § 1° do art. 1°, como aqueles de qualquer natureza
relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
A impetrante da ADPF – a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) –
arguia que, nesse conceito de crime conexo, não estariam inclusos os
crimes comuns praticados pelos agentes públicos tais como homicídios,
abuso de autoridade, lesões corporais, desaparecimentos forçados,
estupros e atentados violentos ao pudor.
A parcela da doutrina alinhada à posição da OAB defendia que
todos os crimes listados acima seriam comuns, em nada guardando
relação com a ordem política estatal vigente. Assim, a anistia jamais
poderia contemplar crimes de direito comum na medida em que
se afastaria da finalidade de atender apenas os crimes políticos. A
compreensão de que a edição de uma norma legislativa, levada a cabo
após um período de conflito, ampliando os crimes anistiados, conduziria
296
Robert Rigobert Lucht
à ideia de que o benefício passaria do delito à pessoa do criminoso,2
olvidando o aspecto objetivo em detrimento do subjetivo. Logo, uma
anistia com essas características desvirtuar-se-ia do seu fim primordial:
perdão dos crimes políticos.
Nessa seara, uma das questões a serem decididas na ADPF foi
examinar a extensão da definição de crime conexo, respondendo se os
crimes praticados por agentes políticos estariam acobertados ou não
pela referida lei. O posicionamento do STF foi no sentido afirmativo.
Entendeu aquela Corte que o adequado sentido da expressão “crimes
conexos” deveria ser extraído a partir do momento histórico no qual a
lei foi editada. Considerou a egrégia Corte que a anistia de 1979 assumiu
viés de lei-medida (Maßnahmegesetze), devendo ser interpretada na
realidade histórico-social da transição da ditadura para a democracia.3
Veja-se que não se trata de um posicionamento jurídico isolado.
Outros pesquisadores também reforçaram a validade da Lei da Anistia
tendo como parâmetro a Constituição Federal, ainda que pudessem
considerá-la uma norma injusta. Swensson Junior, por exemplo,
considerou-a juridicamente válida, socialmente eficaz e axiologicamente
injusta, por contrariar vários critérios moralmente admitidos, mas com
força normativa vinculante.
BASTOS, Lucia Elena Arantes Ferreira. Anistia: as leis internacionais e o caso brasileiro.
Curitiba: Juruá, 2009, p. 189.
2
“2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão
criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores
políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera. 3. Conceito e definição de “crime
político” pela Lei n. 6.683/79. São crimes conexos aos crimes políticos “os crimes de qualquer
natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política”; podem ser de
“qualquer natureza”, mas [i] hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão
de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes
comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A
expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico
da sanção da lei. A chamada Lei de Anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento
histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou
os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que “se procurou”,
segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado
encarregados da repressão. 4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado
contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral,
que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados – e com sentença transitada
em julgado, qual o Supremo assentou – pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e
atentado pessoal.” Conforme BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental – DF n. 153. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil – OAB. Relator: Eros Grau. Julgamento em: 29/04/2010, publicado no DJE nº 145, de
06/08/2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.
asp?incidente=2644116>. Acesso em: 02 set. 2011.
3
ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis desdobramentos...
297
Ocorre que, adotando tal entendimento, o STF e, por extensão o
Estado Brasileiro, teriam, como se verá a seguir e segundo a interpretação
mais recente das normas internacionais, violado tratados protetivos
de direitos humanos, ficando sujeito à responsabilização por parte de
organismos, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Responsabilidade do Brasil na proteção aos direitos
humanos e as normas internacionais
Subsistem dois sistemas de proteção de direitos humanos
relacionados aos países da América: o universal e o interamericano.
O primeiro é garantido pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Nesse, o domínio reservado (ou competência nacional exclusiva)4 exclui
a apreciação da questão, o que o torna não muito eficaz. No âmbito desse
sistema, foi assinada a Convenção sobre a Proteção de todas as pessoas
contra a Tortura e outras Penas e Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, em 1984, também referendada pelo Brasil. O segundo
sistema de proteção surgiu em 1948, dentro da Organização dos Estados
Americanos (OEA), em Washington, através da criação da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. Nesse sistema de proteção
regional, dá-se a observância dos Estados-membros ao previsto na carta
da OEA e aos direitos fundamentais. Entre os mecanismos, aparece
a possibilidade de particulares recorrerem à organização se houver
violação daqueles direitos por parte de um Estado integrante. Em
1969, surge a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (mais
conhecida como Pacto de San Jose) que previu a possibilidade de um
indivíduo recorrer à Comissão Interamericana de Direito Humanos,
após o esgotamento das vias internas. No caso de o Estado não seguir
as recomendações dessa Comissão, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) pode condenar o Estado à reparação, que não se
restringe à monetária, podendo haver a determinação de construção de
memoriais e outras ações.
4
Se um Estado se utiliza com frequência desse mecanismo para escapar de suas obrigações
internacionais, ele deixa de ter aplicação.
298
Robert Rigobert Lucht
Na questão dos direitos humanos, o Pacto de San Jose traduzse no principal diploma de proteção nas Américas: pela abrangência
geográfica, pelo rol de direitos civis e políticos e pela estruturação
de um sistema de supervisão e controle.5 Ele somente veio integrar a
ordem jurídica nacional em 1992. Adicionalmente, por muitos anos, o
Brasil também não reconheceu a jurisdição obrigatória da CIDH, o que
somente veio a ocorrer em 1998. Dessa feita, somente a partir de então é
que o Estado Brasileiro pode ser sujeito de apuração judicial de violações
de direitos humanos no sistema regional de proteção americano.6
Com isso, o reconhecimento da validade da Lei da Anistia
pelo STF em 2010 pode ser examinado pela CIDH, na medida em
que o direito nacional analisado na ação da ADPF poderia (e deveria)
contemplar também os princípios, os costumes e a jurisprudência do
Direito Internacional. Com esse enfoque, seria descabido afirmar-se
que o direito nacional poderia ser considerado como uma maneira de
validar a anistia promulgada, pois a violação a uma norma jurídica
internacional constituiria uma ilicitude. Portanto, se a Lei da Anistia
viola norma internacional, transforma-se numa ilicitude, sendo incabível
o reconhecimento da mesma pelo direito interno.7
Destarte, ao Brasil é imposta a tomada de providências segundo
essas normas internacionais no sentido de punir os responsáveis pelos
crimes atentatórios à dignidade humana face à sua imprescritibilidade.
E, frise-se, independente de lei nacional existente a respeito do tema
que crie uma anistia.8
5
RAMOS, André de Carvalho. Lei de Anistia: a relação entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. In: SILVA, Haike Roselane Kleber da (Org.). A luta pela
anistia. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 286.
6
A primeira condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos deu-se em 2006,
no caso Ximenes Lopes VS. Brasil, conforme ACCIOLY, Hildelbrando; SILVA, G. E. do Nascimento
e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público. 17. ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 460.
MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Responsabilidade internacional do estado. Rio de
Janeiro: Renovar, 1995, p. 32.
7
8
“O fato é que, independentemente da lei brasileira de anistia, o Brasil tem assinado acordos
internacionais – com poder de lei para os países aderentes – que condenam os crimes contra a
dignidade humana e os tornam imprescritíveis. Ou seja, a qualquer tempo, o Brasil é obrigado
a tomar providências em favor da punição dos responsáveis.” TELES, Edson. Democracia e
estado de exceção no Brasil. In: Memória, verdade e justiça: as marcas das ditaduras do Cone
Sul. Enrique Serra Padrós, Cármen Lúcia da Silveira Nunes, Vanessa Albertinence Lopez, Ananda
Simões Fernandes (Orgs.). Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2011, 291 p.
Disponível em: <http://www2.al.rs.gov.br/escola/LinkClick.aspx?fileticket=nqXCDEEgc94%3d&
ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis desdobramentos...
299
Além do exposto, para a maior parte da doutrina, o reconhecimento
de normas imperativas ou peremptórias (jus cogens) criaria uma
hierarquia onde elas estariam acima dos direitos internos e dos tratados
internacionais. Esse jus cogens, consagrado pela Convenção de Viena de
1969 (ratificada pelo Brasil em dezembro de 2009), abrange os valores
fundamentais da comunidade internacional e gera a obrigatoriedade
de cumprimento por todos os Estados. É o que se depreende da leitura
dos art. 53 e 64 dessa Convenção: as obrigações a que se refere o artigo
40 (que remete ao conceito do art. 53) decorrem “... daquelas normas
substantivas que proíbem comportamentos reputados intoleráveis pela
comunidade internacional, por conta da ameaça que apresentam à
sobrevivência dos Estados, de seus povos e dos valores humanos mais
básicos”.9 Dentre esses valores, pode ser citada a proteção contra graves
violações de direitos humanos, como os crimes de tortura.
Ainda que não se adote tal concepção – de que as normas de
direitos humanos estariam acima dos direitos internos e dos tratados
internacionais – o entendimento atual do Direito Internacional consagra
a primazia da norma mais favorável à vítima. Segundo essa solução,
compartilhada por Antônio Augusto Cançado Trindade e Silvia Steiner,
a prevalência não se dá entre norma interna e externa, mas entre a que é
mais e menos vantajosa a quem se socorre da norma. A razão para essa
concepção reside justamente no fato de que os direitos humanos têm
por finalidade última a proteção da pessoa humana, não fazendo sentido
adotar-se uma norma jurídica protetiva de menor escopo do que uma
outra mais benéfica.10
Além do Tratado de Viena, a farta jurisprudência da CIDH
já solidificou o entendimento de que a normatização interna de
um Estado não pode servir de empecilho à apuração e à punição
daqueles que cometeram crimes contra os direitos humanos. Muito
ao contrário: na eventual existência de regramento que impeça
tais objetivos, aduz aquela Corte que o país signatário deve alterar
tabid=2333>. Acesso em: 24 fev. 2012.
JOSÉ, Joanessa Tasca Deud. A responsabilidade internacional do estado por genocídio. 2007.
155 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2007, f. 31 e 32.
9
10
BASTOS, Anistia, p. 224.
300
Robert Rigobert Lucht
seu ordenamento11 de forma a torná-lo compatível com os direitos
garantidos pelo Pacto de San Jose.
De 1953 a 2001, a ONU, através da Comissão de Direito
Internacional (CDI), elabora o “Projeto Crawford” que se constitui em
um projeto de artigos sobre responsabilização internacional por ato
ilícito. Esse projeto é usado como se fosse uma convenção e consagra a
responsabilidade agravada, onde há a violação de normas imperativas.
Em que pese ainda ser um soft law,12 o projeto da CDI pauta a atuação
dos Estados de forma genérica.
Assim, e conforme todo o entendimento anteriormente colocado,
há por parte do Brasil uma obrigatoriedade ao cumprimento do
estabelecido na Convenção de Viena, no Pacto de San Jose, nos princípios
e nos costumes internacionais. Nesse enfoque, a decisão do STF de
2010 de não reconhecer um descumprimento de preceito fundamental
relativamente à extensão da anistia aos eventuais crimes contra os
direitos humanos, entre eles a tortura, parece colidir com algumas
interpretações do Direito Internacional. O impedimento da investigação
e da submissão dos eventuais agentes de Estado que tenham cometido
crimes de tortura e outras violações graves de direitos humanos pelo STF,
na visão dessa pesquisa, pode dessa forma ensejar a responsabilização
do país na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Repercussões na esfera internacional
Nesse ponto, abordam-se as repercussões jurídicas que a decisão do
STF pode provocar no cenário internacional. Cabe salientar que não se está
tratando apenas de sanções, ideia mais usual que normalmente permeia os
pesquisadores do Direito quando se fala em descumprimento de uma norma.
A título exemplificativo, cita-se: “15. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que
sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade
com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente
Sentença.” Conforme: Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund e outros
(“Guerrilha do Araguaia”) VS. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, p. 115.
11
12
Conjunto de princípios ou regras cujo descumprimento não gera responsabilização internacional
do sujeito. Servem como precedentes no Direito Internacional e, em especial, nas questões atinentes
aos direitos humanos.
ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis desdobramentos...
301
As consequências podem se dar também apenas como desdobramentos
políticos e que podem provocar ruídos nas relações internacionais.
Formas de responsabilização de um Estado
Um ato ilícito praticado por um Estado pode ser imputável ao
mesmo se, da sua realização, resulta em um prejuízo a terceiro. Dessa
responsabilização, nasce o dever de reparar que pode ocorrer sob três
formas e a escolha da vítima:
– restitutio in integrum: retorno ao estado anterior (status quo);
– satisfação: reconhecimento do dano causado e pedido de
desculpas;13 e
– compensação: a existência de danos materiais e morais pode
gerar o pagamento de uma indenização.
Observe-se que todo ato de um agente estatal é imputável ao
Estado, não importando se houve excesso por parte desse agente. Além
disso, a vítima no Direito Internacional Público (DIP) não se restringe
somente a um Estado soberano de competência plena. Os indivíduos,
sociedades transnacionais e organizações não governamentais podem,
excepcionalmente e por previsão em tratados, serem sujeitos de DIP e,
portanto, utilizarem mecanismos de ação internacional própria. No que
tange à proteção dos indivíduos, há a necessidade de esgotar os meios
internos para que se possa recorrer às cortes internacionais.
Na questão específica da Lei de Anistia, as formas de
responsabilização do Estado Brasileiro por um ato violador dos direitos
humanos estão previstas no artigo 63.1 da Convenção Americana de
Direitos Humanos. Segundo esse dispositivo, a CIDH pode adotar
medidas para assegurar o direito violado, inclusive com a reparação dos
efeitos e o pagamento de indenizações.
Note-se que o dever de reparação supõe estar calcado numa
adequação quanto aos valores. Quer-se dizer que não pode haver
13
Esse pedido de desculpas pode ocorrer mediante decisão declaratória de tribunal.
302
Robert Rigobert Lucht
excesso no quantum indenizatório de modo a enriquecer a vítima
imotivadamente nem ser aquém da justa medida pelo dano sofrido, de
maneira a não compensar o prejuízo apurado.
Como se verá a seguir, a CIDH utilizou-se de duas das três
formas previstas para responsabilizar o Brasil pela equivocada
interpretação dada à Lei da Anistia: a satisfação e a compensação. Isto
porque o retorno ao estado anterior (restitutio in integrum) – primeira
das formas de responsabilização – é inaplicável ao caso em tela pois
impossível faticamente voltar no tempo e desfazer as diversas violações
dos direitos humanos perpretadas.
Possíveis reflexos da decisão do STF
Os primeiros reflexos da decisão do STF – que não se trata
de possibilidade, contudo de fato consumado – estão expressos na
condenação do Brasil pela CIDH.
A sentença proferida pela Corte em 24 de novembro de 2010, no
caso Gomes Lund e outros vs. Brasil se refere à responsabilização do
Estado Brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento
forçado14 de 70 pessoas na região da “Guerrilha do Araguaia” entre 1972
e 1975. Ainda, tratou essa decisão da não investigação desses crimes pelo
poder público e da execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva.
Observou a CIDH que a constitucionalidade da Lei da Anistia
constituiu um controle interno estatal, mas que tal não impedia a
aferição da adequação da mesma lei com a convenção interamericana.
Ou seja, a decisão reconheceu a possibilidade de a CIDH realizar um
controle de convencionalidade da Lei da Anistia relativamente às
obrigações internacionais do Estado Brasileiro em relação ao Pacto
de San Jose. Da forma como a CIDH se pronunciou a respeito,15
14
O Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados e Involuntários de Pessoas nas Nações
Unidas definiu esse crime como a detenção ilegal por agentes, dependência governamental ou grupo
organizado de particulares atuando em nome do Estado, ou contando com seu apoio, autorização ou
consentimento. Conforme Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund..., p. 38.
15
“Em numerosas ocasiões, a Corte Interamericana afirmou que o esclarecimento quanto à
violação ou não, pelo Estado, de suas obrigações internacionais, em virtude da atuação de seus
órgãos judiciais, pode levar este Tribunal a examinar os respectivos processos internos, inclusive,
ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis desdobramentos...
303
constata-se claramente a expressa competência daquela Corte de
examinar a Lei da Anistia com as obrigações internacionais do Brasil
contidas na Convenção Americana, sem contrariar a regra da quarta
instância (controle de convencionalidade).
Além do controle de convencionalidade que deveria ter sido feito
pelo STF, a CIDH observou que, em se tratando de direitos humanos,
seus pronunciamentos são insistentes em afirmar a incompatibilidade
das leis de anistia com o Direito Internacional. Semelhantes decisões
com esse entendimento já foram proferidas em relação à Argentina,
Chile, El Salvador, Haiti, Peru e Uruguai. Esta contrariedade estaria
expressa inclusive pelos tribunais e órgãos dos sistemas regionais de
proteção de direitos humanos: europeu, africano e americano.16
Quanto à suposta falta de competência da CIDH para atos
praticados antes do reconhecimento do Pacto de San Jose (somente em
1998 o Brasil reconheceu a jurisdição da CIDH), e alegada pelo Estado
Brasileiro, a sentença salientou sua competência com fundamento na
continuidade ou permanência do crime de desaparecimento forçado,
cujos efeitos perduram até que se conheça do seu paradeiro e os fatos
sejam esclarecidos. Teria deste modo a Corte poder de examinar os fatos
relacionados à falta de investigação, julgamento e sanção dos agentes
estatais violadores de direitos humanos.17
eventualmente, as decisões de tribunais superiores, para estabelecer sua compatibilidade com
a Convenção Americana, o que inclui, eventualmente, as decisões de tribunais superiores. No
presente caso, não se solicita à Corte Interamericana a realização de um exame da Lei de Anistia
com relação à Constituição Nacional do Estado, questão de direito interno que não lhe compete
e que foi matéria do pronunciamento judicial na Arguição de Descumprimento n. 153 (infra par.
136), mas que este Tribunal realize um controle de convencionalidade, ou seja, a análise da alegada
incompatibilidade daquela lei com as obrigações internacionais do Brasil contidas na Convenção
Americana. Consequentemente, as alegações referentes a essa exceção são questões relacionadas
diretamente com o mérito da controvérsia, que podem ser examinadas por este Tribunal à luz da
Convenção Americana, sem contrariar a regra da quarta instância. O Tribunal, portanto, desestima
esta exceção preliminar.” Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund..., p. 20.
“Nesse mesmo sentido, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos concluiu
que as anistias e outras medidas análogas contribuem para a impunidade e constituem um obstáculo
para o direito à verdade, ao opor-se a uma investigação aprofundada dos fatos, e são, portanto,
incompatíveis com as obrigações que cabem aos Estados, em virtude de diversas fontes de Direito
Internacional.” Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund..., p. 56 e 59.
16
“17. Ao contrário, em sua jurisprudência constante, este Tribunal estabeleceu que os atos
de caráter contínuo ou permanente perduram durante todo o tempo em que o fato continua,
mantendo-se sua falta de conformidade com a obrigação internacional... 18. Além disso, o Tribunal
pode examinar e se pronunciar sobre as demais violações alegadas, que se fundamentam em fatos
que ocorreram ou persistiram a partir de 10 de dezembro de 1998. Ante o exposto, a Corte tem
17
304
Robert Rigobert Lucht
Importa ressaltar que esse posicionamento não é novo. Igualmente,
o Relatório 33/01 relacionado ao Brasil da Comissão Interamericana18 já
havia elucidado que, apesar de os fatos descritos terem ocorrido a partir de
1972, quando o Brasil ainda não havia ratificado a Convenção Americana
de Direitos Humanos, de acordo com o art. 20 de seu estatuto,19 a mesma
deveria examinar as alegadas violações com base na Declaração Americana
de Direitos e Deveres dos Homens.20
A Corte também ressaltou o caráter de jus cogens da proibição da
prática de desaparecimentos forçados por total abandono aos princípios
essenciais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.21 Essa
exegese, portanto, nos remete à norma hierarquicamente superior da
Convenção de Viena de 1969 (ratificada pelo Brasil em dezembro de
2009) e que se aplica aos delitos daquela espécie, pois continuados até
os dias atuais.
Segundo essa decisão, proferida posteriormente a da ADPF n°
153/STF, o Brasil ainda foi condenado a:
– conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos a fim de
esclarecê-los;
competência para analisar os supostos fatos e omissões do Estado, ocorridos depois da referida
data, relacionados com a falta de investigação, julgamento e sanção das pessoas responsáveis,
inter alia, pelos alegados desaparecimentos forçados e execução extrajudicial; a alegada falta
de efetividade dos recursos judiciais de caráter civil a fim de obter informação sobre os fatos; as
supostas restrições ao direito de acesso à informação, e o alegado sofrimento dos familiares.” Corte
Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund..., p. 10.
Esse relatório, datado de 06.03.2001, é relacionado ao caso 11.552, no qual examina-se o
desaparecimento de participantes da Guerrilha do Araguaia, entre 1972 a 1975, conforme BASTOS,
Anistia, p. 289.
18
“Artigo 20 – Com relação aos Estados membros da Organização que não são Partes da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, a Comissão terá, além das atribuições assinaladas no artigo 18,
as seguintes: a. dispensar especial atenção à tarefa da observância dos direitos humanos mencionados
nos artigos I, II, III, IV, XVIII, XXV e XXVI da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem; b. examinar as comunicações que lhe forem dirigidas e qualquer informação disponível;
dirigir-se ao Governo de qualquer dos Estados membros não Partes da Convenção a fim de obter as
informações que considerar pertinentes; e formular-lhes recomendações, quando julgar apropriado,
a fim de tornar mais efetiva a observância dos direitos humanos fundamentais; e c. verificar, como
medida prévia ao exercício da atribuição da alínea b, anterior, se os processos e recursos internos de
cada Estado membro não Parte da Convenção foram devidamente aplicados e esgotados.”
19
“Dessa forma, a Comissão Interamericana teria competência ratione temporis para decidir se, no
período anterior a 25.09.1992 (data da ratificação da Convenção Americana pelo Brasil), existiram
violações aos arts. 1, 25 e 26 da Declaração Americana.” BASTOS, Anistia, p. 292.
20
21
Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund..., p. 40.
ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis desdobramentos...
305
– determinar as correspondentes responsabilidades penais (na
jurisdição ordinária, e não na militar); e
– aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei
disponha.
Interessante de registro também na sentença da CIDH a
imposição ao Brasil de afastar qualquer disposição normativa que
impeça a determinação dos autores materiais e intelectuais tanto
dos desaparecimentos forçados como da execução extrajudicial.
Dessa feita, nem a Lei da Anistia nem mesmo eventual
prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in
idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade pode
ser aventada pelo Estado como razão para impedir as obrigações
acima descritas.22
Importa dizer que o entendimento que deve ser preponderante
é bem o contrário daquele adotado pelo STF. E, inobstante as
necessárias investigações e responsabilizações individuais, houve
ainda determinação de que o Estado:
– realize um ato público de reconhecimento de responsabilidade
internacional, em relação aos desaparecidos na “Guerrilha do
Araguaia”, com a participação de altas autoridades nacionais e
representantes das vítimas;
22
“Essa obrigação [de investigar, processar e punir] deve ser cumprida em um prazo razoável,
considerando os critérios determinados para investigações nesse tipo de caso, inter alia: a) iniciar
as investigações pertinentes com relação aos fatos do presente caso, levando em conta o padrão
de violações de direitos humanos existentes na época, a fim de que o processo e as investigações
pertinentes sejam conduzidos de acordo com a complexidade desses fatos e com o contexto em
que ocorreram, evitando omissões no recolhimento da prova e no seguimento de linhas lógicas de
investigação; b) determinar os autores materiais e intelectuais do desaparecimento forçado das
vítimas e da execução extrajudicial. Ademais, por se tratar de violações graves de direitos humanos,
e considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado ou permanente do desaparecimento
forçado, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como nenhuma
outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou
qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa obrigação, nos termos dos
parágrafos 171 a 179 desta Sentença, e c) garantir que: i) as autoridades competentes realizem,
ex officio, as investigações correspondentes, e que, para esse efeito, tenham a seu alcance e
utilizem todos os recursos logísticos e científicos necessários para recolher e processar as provas
e, em particular, estejam facultadas para o acesso à documentação e informação pertinentes, para
investigar os fatos denunciados e conduzir, com presteza, as ações e investigações essenciais para
esclarecer o que ocorreu à pessoa morta e aos desaparecidos do presente caso; ii) as pessoas que
participem da investigação, entre elas, os familiares das vítimas, as testemunhas e os operadores de
justiça, disponham das devidas garantias de segurança, e iii) as autoridades se abstenham de realizar
atos que impliquem obstrução do andamento do processo investigativo”. Corte Interamericana de
Direitos Humanos, Caso Gomes Lund..., p. 96.
306
Robert Rigobert Lucht
– determine o paradeiro das vítimas (de desaparecimento
forçado durante a ditadura)23 e eventuais identificação e entrega
dos restos mortais aos familiares;
– disponha atendimento médico e psicológico ou psiquiátrico às
vítimas dos fatos analisados naquela decisão;
– publique a sentença da CIDH (no Diário Oficial e na internet);
– implemente um programa ou curso sobre direitos humanos,
destinados a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas;
– adote as medidas necessárias à tipificação do delito de
desaparecimento forçado de pessoas, em conformidade com os
padrões interamericanos;24
– continue a sistematizar e dar publicidade aos documentos
relativos ao período do regime militar (em andamento na Ação
Ordinária n° 82.0024682-5, na Justiça Federal do Distrito
Federal); e
– pague a título de danos imateriais (além daqueles porventura já
pagos através da Lei n° 9.140/95), o montante de US$ 45.000,00
(quarenta e cinco mil dólares americanos) para cada familiar
direto e de US$ 15.000,00 (quinze mil dólares americanos) a
cada familiar não direto na sentença indicados.
Assim, constata-se que são muitas as consequências advindas do
posicionamento pátrio acerca da Lei da Anistia. E não se esgotam aqui:
outro desdobramento já se fez sentir no Poder Legislativo. A recente Lei
n° 12.528, de 18/11/2011, criou uma comissão que tem por fim apurar
os crimes ocorridos durante o período do regime militar brasileiro.
O referido diploma tem como objetivo “... examinar e esclarecer as
graves violações de direitos humanos praticadas durante o regime
militar...”, com a derradeira finalidade de buscar a memória e a verdade
histórica. Interessante notar que, em que pese o avanço dessa iniciativa
que busca colaborar com o Poder Público na apuração de violação de
23
Essa imposição está sendo atendida na Ação Ordinária n° 82.0024682-5, Seção Judiciária do
Distrito Federal, Justiça Federal de 1ª instância. A sentença que determinou localização dos corpos
transitou em julgado.
24
A Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas foi aprovada pelo
Decreto Legislativo n° 127, de 08/04/2011 (DOU 11/04/2011). Todavia, a definição das condutas
que constituem crimes de violação do Direito Internacional humanitário (como o desaparecimento
forçado) encontra-se pendente na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei n° 301/2007).
ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis desdobramentos...
307
direitos humanos, a lei alude em seu art. 6° que isso se daria com a
observância das disposições da Lei 6.683/79. Dito de outra maneira:
o país parece querer avançar na questão da apuração da violação dos
direitos humanos, mas sem comprometer o entendimento adotado pelo
STF na ADPF 153, o que segundo o entendimento da CIDH seria um
paradoxo. Pois a direção apontada por esse organismo internacional
requer necessariamente a apuração e responsabilização dos agentes
públicos, de maneira a afastar a aplicação da anistia tutelada pela Lei
6.683/79 e validada pelo STF.
Ainda, o posicionamento jurídico pátrio acerca dessa questão,
como se viu, sofreu críticas contundentes na Corte Interamericana de
Direitos Humanos, sendo objeto de considerações que repercutirão
política e normativamente. Aquele colegiado esclareceu que o Brasil
descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno ao impedir
a investigação, o julgamento e a penalização dos violadores de direitos
humanos. Adicionou que a Lei n° 6.683/79 careceria inclusive de
qualquer efeito jurídico face à interpretação conferida pelo STF.25
Fica cristalino, portanto, que, entre outros prováveis
desdobramentos da decisão contida na ADPF 153, estão a alteração
legislativa da Lei de Anistia de forma a compatibilizá-la com a
jurisprudência da CIDH e com o Direito Internacional e a reinterpretação
pelo Poder Judiciário da validade dessa lei tendo como parâmetro o
Direito Internacional.
Por fim, destaca-se como um dos últimos eventuais reflexos da
decisão do STF a possibilidade de que o Brasil, em não concordando com
os termos da decisão proferida pela CIDH, e em não reinterpretando
a Lei da Anistia, seja obrigado a denunciar o Pacto de San Jose, com
vistas a manter seu posicionamento jurídico frente àquele organismo,
o que seria um grave retrocesso à proteção dos direitos humanos no
plano interno. Também não se pode descartar que o Brasil sofra uma
25
“… ao aplicar a lei da anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento
e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os
desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno,
consagrada no artigo 2 da Convenção Americana. Com base nas considerações acima, a Corte
Interamericana conclui que, devido à interpretação e à aplicação conferidas à Lei de Anistia, a qual
carece de efeitos jurídicos a respeito de graves violações de direitos humanos, nos termos antes
indicados (particularmente, supra par. 171 a 175), o Brasil descumpriu sua obrigação de adequar
seu direito interno à Convenção, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do
mesmo tratado.” Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund..., p. 67.
308
Robert Rigobert Lucht
suspensão ou até mesmo expulsão por parte da OEA por desrespeito às
determinações da CIDH.26 Apesar de não se acreditar muito nessa atitude
extremada face às consequências políticas no campo internacional, não
se pode deixar de aventar essa casualidade na medida em que passa a se
constituir na hipótese legal factível ao Estado-membro que não respeitar
os termos do tratado e da jurisdição voluntária da CIDH a que, soberana
e discricionariamente, aderiu.
Considerações finais
A Lei n° 6.683/79 consistiu, sem sombras de dúvidas, em um
avanço na pacificação do país. Não apenas em relação ao apaziguamento
social tão necessário, mas inclusive em outros campos, como na
afirmação da defesa dos direitos individuais, no exercício da cidadania e
na implantação da democracia.27
Contudo, esse marco normativo não se traduziu no fim das lutas
de setores da sociedade civil pela redemocratização. Contrariamente à
ideia de que a anistia foi um ponto final na história brasileira, o Direito
Internacional recente e do qual o Estado não pode ficar à margem –
seja pela sua imersão nas diversas relações jurídicas interestatais, seja
pela ratificação dos tratados internacionais assinados –, reafirma a
necessidade de esclarecimentos, investigações, mudanças na legislação
26
Brasil corre risco de sofrer punição da OEA. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/
vidapublica/justica-direito/conteudo.phtml?id=1241177>. Acesso em 06 abr 2012. Jornal Gazeta
do Povo. Caderno “Justiça & Direito”.
27
“Por isso, neste texto procurei explorar como os discursos dos “Movimentos de Anistia”
extrapolavam a defesa de uma Lei de Anistia. Assim, não apenas a conquista da anistia, embora
limitada, foi pensada como um avanço, mas a participação nessa luta foi tratada como oportunidade de
participação e descoberta de novas formas de expressão social e política, um momento de constituição
de “sujeitos políticos” e de novas formas de “solidariedade social”. Nesse sentido também a luta pela
anistia, partindo da defesa dos “direitos humanos” e da reivindicação pelo estabelecimento do Estado
de Direito (elementos constitutivos de seu objeto), contribuiria para a consolidação e disseminação
da própria referência ao direito enquanto “gramática civil” que definia os termos e signos políticos da
relação com o Estado e mesmo das relações e diálogos internos à esfera societária. Parece ser esse o
sentido de vitória atribuído pelos movimentos à conquista da anistia.” DEL PORTO, Fabíola Brigante.
A luta pela anistia no regime militar brasileiro e a construção dos direitos de cidadania. In: SILVA,
Haike Roselane Kleber da (Org.). A luta pela anistia. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 79.
ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis desdobramentos...
309
pátria e até mesmo de punições. Nessa vertente, muito apropriada a
colocação de que a anistia ainda não se encerrou.28
O STF – através do julgamento da ADPF n° 153 – foi
determinante na postura do Estado brasileiro em relação aos
organismos internacionais, em especial à CIDH, afirmando a validade
da Lei da Anistia para os agentes públicos. Viu-se que os reflexos
desse posicionamento já se fazem sentir no plano interno como no
caso da condenação do Brasil na CIDH sob as formas de reparação
e satisfação. Essas compreendem diversas ações a serem executadas
pelo Estado, assumindo diversas maneiras de concretização que vão
desde a responsabilização dos violadores de direitos humanos até ao
pagamento de quantias monetárias a título indenizatório.
Não de outra forma, o Brasil, para evitar outras sanções de
organismos internacionais e para conferir a seus cidadãos uma dignidade
plena e efetiva, deve buscar uma compatibilização de suas políticas de
direitos humanos às diretrizes e decisões tomadas pela CIDH, que estão
impregnadas da visão mais moderna do Direito Internacional. Observese que essa adequação deve se dar em todos os Poderes:
– na edição de normas pelo Legislativo, como uma eventual
modificação ou revogação da Lei n° 6.683/79;
– na tomada de decisões pelo Judiciário, mediante uma
interpretação balizada pelo Pacto de San Jose e segundo os
princípios do Direito Internacional; e
– na regulamentação e execução dessas políticas públicas pelo
Executivo.
No mais, as decorrências do decidido na ADPF n° 153 podem
se dar na alteração de marcos legislativos, criações de comissões da
verdade, modificação da jurisprudência acerca do tema pelo STF e,
eventualmente, até mesmo a denúncia do Pacto de San Jose.
“Em contraposição à vertente acima mencionada, que busca a conciliação e o esquecimento em
torno do legado do regime militar, nos últimos anos temas como o da reparação aos familiares dos
mortos e desaparecidos, a localização dos restos mortais de seus entes, a abertura dos arquivos
militares relativos ao período ditatorial, a validade ou não da anistia para os torturadores também
entraram na pauta do debate político brasileiro.” SALES, Jean Rodrigues. Ditadura militar, anistia
e a construção da memória social. In: SILVA, Haike Roselane Kleber da (Org.). A luta pela anistia.
São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 26.
28
310
Robert Rigobert Lucht
Por certo que, sendo o trabalho em apreço um estudo de
possibilidades jurídicas, muito ainda deve ser aprofundado pela
doutrina, principalmente por mais pesquisas científicas neste campo
dos direitos humanos e do Direito Internacional Penal.
Cabe um reexame por todos os operadores do direito, juristas
e pesquisadores quanto à adequada e moderna concepção doutrinária
do Direito Internacional e sua interação com o ordenamento pátrio.
Existe assim uma necessidade de repensar a relação entre o direito
internacional e o direito constitucional, “... na linha de doutrina
nacional (Sarlet, Mazzuoli, Piovesan) e jurisprudência internacional,
reforçando a primazia da norma mais favorável, mais benéfica ou
mais protetora de direitos humanos, independentemente de status de
direito interno ou não”.29
Somente dessa maneira o Brasil passará a comungar do moderno
entendimento do Direito Internacional de absoluto respeito aos direitos
humanos de seus cidadãos, primando efetivamente pela dignidade
aludida em sua Constituição Federal.
Referências
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BASTOS, Lucia Elena Arantes Ferreira. Anistia: as leis internacionais e
o caso brasileiro. Curitiba: Juruá, 2009, 331 p.
29
BALDI, César Augusto. A Corte Interamericana de Direitos Humanos: crimes da ditadura militar
e anistia. In: Jornal Estado de Direito, ano V, número 30, 2011, Brasil, p. 12.
ADPF N° 153/STF e Lei da anistia: possíveis desdobramentos...
311
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DEL PORTO, Fabíola Brigante. A luta pela anistia no regime militar
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Roselane Kleber da (Org.). A luta pela anistia. São Paulo: Editora
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memória social. In: SILVA, Haike Roselane Kleber da (Org.). A luta pela
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312
Robert Rigobert Lucht
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Entre a permanência e a ruptura: o legado
autoritário na condução de instituições
políticas brasileiras e a justiça de transição
Roberta Cunha de Oliveira
O pensamento autoritário esteve presente no ideário político
brasileiro, muito antes da Doutrina de a Segurança Nacional ser
desenvolvida com profundidade na América do Sul, por meio das
ditaduras militares, depois da segunda metade do século XX. Aliás, o
pensamento tutelar,1 ou seja, sob o controle e obediência à autoridade
para manutenção da “ordem”, é uma marca característica da formação
dos Estados Nacionais na América Latina.
Quando se fala na parte mais ao sul do continente, é preciso
que se analise sob a ótica do colonialismo (dentro da dinâmica centroperiferia) e sua influência na formação das elites que deteriam o poder
nas colônias; mas também sob o olhar do pós-colonialismo, o qual
manteve a dependência desses países em relação ao mundo europeu e,
posteriormente norte-americano, para além das suas independências
políticas. No presente trabalho, fez-se a opção de tratar desse
ideário político autoritário no cenário brasileiro como uma opção de
continuidade mais do que de ruptura, a partir de 1964.
Entretanto, entende-se que o foco dessa construção do imaginário
político que afetou e ainda está muito presente em nossas Instituições
é complexo, necessitando de argumentos políticos, econômicos,
ideológicos e culturais que se entrelaçam em diversas vias. Tal opção
de continuidade ainda vige no judiciário brasileiro, por isso, em um
primeiro momento, propõe-se outra visão da formação histórica do
“povo brasileiro”, baseada no conflito, no extermínio das subjetividades
como marca do caráter colonial, que permanece até os dias atuais (sob
o manto pós-colonial de exclusão das minorias das grandes decisões
políticas do país) e, para tanto, recorre-se aos trabalhos de Celso Furtado
e sua crítica à “invenção do Brasil”.
1
O pensamento tutelar nas Américas espanhola e portuguesa dá-se desde seu “descobrimento”
ou conquista com a força da Igreja católica que detinha a “missão” de evangelizar e civilizar os
selvagens das “índias ocidentais”.
314
Roberta Cunha de Oliveira
Em um segundo instante, por meio dessa visão pós-colonial
de Furtado, tenta-se ponderar que o “flerte” com o autoritarismo
estava muito presente no imaginário político e jurídico do país, tanto
por sua constituição histórica, quanto pelos cenários geopolíticos
internacionais delineados até meados do século XX. Desta maneira, a
concepção aqui referida é a de que o regime civil-militar não aconteceu
de uma maneira independente, tampouco inesperada, em meio às
tensões e disputas pelo poder no caminho do “desenvolvimentismo” e
da “modernização”.
Por fim, refere-se ao papel desenvolvido pelo judiciário e sua
colaboração com o aparato militar, em momentos anteriores ao golpe
de 1964, o que ajudou a consolidar uma forma bem específica de
“judicialização da repressão”. Nesse item, há o intuito de problematizar
acerca da falta de reformas no poder judiciário durante o período de
transição democrática na década de 1980, e como a insuficiência destas
medidas ainda torna “lugar-comum” uma visão que flerta com uma
posição autoritária perante os direitos humanos. Além disso, buscase demonstrar um olhar conservador sobre a nossa história e o nosso
passado recente, baseado na “conciliação” e no caráter “cordial do povo
brasileiro”, expressados no voto do Ministro Relator, Eros Grau, durante
o julgamento da ADPF 153, em abril de 2010.2
O pensamento de Celso Furtado versus a formação
histórica do Estado forte na América Latina
No Brasil, a ideia de democracia, como governo da soberania
popular e de respeito e promoção dos direitos fundamentais, é
relativamente recente, mais precisamente afirmada na Constituição de
1988, já em uma era da reabertura política no continente. Desde finais
do século XIX até meados do século XX, o que se teve, em termos de
construção intelectual brasileira, foi uma disputa de concepções sobre a
“Há momentos históricos em que o caráter de um povo se manifesta com plena nitidez.
Talvez o nosso, cordial, se desnude na sucessão das frequentes anistias concedidas entre nós”.
Voto do Ministro Eros Grau, na ADPF 153, p. 43. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/
cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2011.
2
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
315
formação de um Estado que precisava modernizar-se economicamente,
deixando de ser apenas uma economia rural e que, para isso, também
necessitava refazer-se politicamente, como maior investimento em
infraestrutura, na indústria, na imigração, no reconhecimento de direitos
sociais, deixando de ser uma República Oligárquica, para inserir-se no
âmbito internacional como um Estado forte e “independente”.
Nesse cenário de discursos e controvérsias, pode-se afirmar que,
por muitas vezes, o contrário da democracia não era visto na ditadura,
mas sim no liberalismo,3 além disso, os debates econômicos e políticos
também envolviam o problema do nacionalismo, mais associado à
industrialização entre a década de 1920 e 1930. Tanto que neste período,
afirmava-se um novo “conceito de nação”, visto ser: a nação forte, a
nação industrializada, isto é, no Brasil havia o discurso da necessidade
de reforma das Instituições para que essas se adequassem à realidade.
Por outro lado, tendo como condutora uma posição de crítica ao
mito da nação, fez-se a opção de trabalhar neste ensaio, com algumas
conceituações políticas de Celso Furtado, especialmente as desenvolvidas
na primeira parte do livro Dialética do Desenvolvimento,4 quando o autor
trata da questão de que os países subdesenvolvidos somente atingirão o
desenvolvimento social quando as políticas econômicas forem tratadas
com ênfase na influência que produzem e recebem das estruturas
culturais. Ademais, em conformidade com concepções da corrente de
análise pós-colonial,5 Celso Furtado já havia desenvolvido o pensamento
econômico para além do debate entre planejamento, interferência do
Estado e controle inflacionário; pois assegurava sua análise a partir
de processos históricos, dizendo que países subdesenvolvidos, como
o Brasil, possuíam um “entrave cultural” assentado na economia com
caráter colonial e na concentração de renda.
Pensamento de Carl Schmitt revisitado por diversos intelectuais brasileiros defensores do Estado
autoritário como Azevedo Amaral, Oliveira Vianna, Francisco Campos, Roberto Campos, entre os
mais debatidos, citado também por BERCOVICI, Gilberto. In: Soberania e Constituição: Para uma
Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
3
4
Ainda que o livro de referência do autor seja A Formação Econômica do Brasil, os escritos da
Dialética do Desenvolvimento tratam da problemática das Instituições e na escolha entre sistemas
fechados autoritários ou abertos/democráticos para o desenvolvimento nacional. Por abordar a
problemática das Instituições, entende-se que a concepção de Celso Furtado nesses textos pode
também ajudar a compreender a discussão que se tem em termos de efetividade da justiça de
transição no Brasil, especialmente com referência a um de seus pilares: a reforma das instituições.
5
Tendo como expoentes entre outros, Enrique Dussel, Boaventura de Souza Santos, Carlos Mariátegui.
316
Roberta Cunha de Oliveira
Para Furtado, a adoção das elites de padrões de consumo dos
modos desenvolvidos (europeu e norte-americano) gerava acumulação
e concentração de renda, fazendo com que permanecesse a diferença
cultural entre as classes sociais;6 além de os países subdesenvolvidos
terem uma forma peculiar de inserção no comércio internacional, pois
incursionaram no capitalismo por meio do desenvolvimento tecnológico
dependente. Não obstante, o controle do poder também era feito pelas
oligarquias desses países, que, devido à abundante oferta de mão de
obra, acabavam decidindo o que fazer com o excedente e que rumo dar
para a produção nacional. Furtado desenvolveu argumentos de que a
“invenção do Brasil” foi obra das elites oligárquicas, deixando claro que
apenas a partir da “crise de 1929” que se poderia falar em industrialização
no país com uma “economia dual”.
Um dos caminhos indicados pelo autor para superar nossa
condição de país subdesenvolvido seria adotar o planejamento7 como
instrumento primordial do Estado, em conjunto com o fortalecimento
das instituições da sociedade civil. Ou seja, o desenvolvimento não se
daria de outra forma, senão por um regime democrático que sustentasse
a pluralidade na participação política. Entretanto, relembra-se que a
Dialética do Desenvolvimento8 foi publicada em 1964, ano no qual a
sociedade brasileira conheceu fática e drasticamente a opção oposta: do
regime fechado/autoritário militar.
Ademais, o tema do desenvolvimento, além de preocupar a
diferentes correntes de intelectuais brasileiros, já estava na pauta da
geopolítica estadunidense para a América Latina, tanto que o lançamento
da chamada “Aliança para o Progresso”, em 1961, previa a promoção
Nesse aspecto se assemelha ao pensamento do peruano Mariátegui, para o qual a problemática
da formação das nações na América Latina centrava-se no eixo da cultura e não na divisão de
classes como nos modelos europeus de socialismo. Mariátegui foi o grande expoente a pensar
o socialismo a partir da condição sociocultural do nosso continente e a tratar de um debate que
dividia também a formação das esquerdas latino-americanas, sobre de que forma seria possível, ou
não, implementar o socialismo nesses países. Apesar de ambos partirem da análise de estruturas
coloniais e privilegiarem a influência da cultura, Furtado dentro de uma linha mais acadêmica,
sempre se caracterizou por ser um liberal reformista.
6
O planejamento foi adotado nas décadas de 60, 70, mas sob outro enfoque, com a criação do
BNDE em 1962, e posteriormente com a administração deste banco por Roberto Campos, que
qualificava o golpe de 64 como “revolução”, com “reformas estruturais necessárias”, in CAMPOS,
Roberto. A lanterna na Popa, memórias. Vol. I. Editora Topbooks, 1994.
7
8
FURTADO, Celso. Dialética do Desenvolvimento. 1ª edição. São Paulo: Fundo de Cultura S.A, 1964.
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
317
do desenvolvimento na região,9 claro que sob a tutela do “guardião
democrático nas Américas”. Não obstante, o modelo autoritário militar
começava a encontrar suas bases de estabelecimento no continente,
seja pelos problemas endógenos dos países latino-americanos (como a
questão econômica da dependência e a questão política da revolução10),
seja pelos fatores exógenos e ideológicos, como a política da “Aliança
para o Progresso” e, posteriormente, a Doutrina da Segurança Nacional.11
Dessa maneira, o golpe militar de 31 de março de 1964 inaugurou
não apenas a era das Forças Armadas avocando-se o domínio do poder
político na região, instalando, não raras vezes, o terrorismo de Estado
no combate aos “inimigos” dos “interesses nacionais”; como também,
apontou um novo modelo fático de ditadura, melhor organizado, mais
“eficaz” e instrumentalizado, denominado por Alcázar de “ditaduras de
novo tipo”. Referido autor diferencia as ditaduras militares do que chama
de “ditaduras tradicionais” na América Latina; nas últimas o poder
ficava concentrado nas mãos das elites oligárquicas agroexportadoras,
havia um sistema convencional de partidos (partido liberal x partido
conservador); eram fortemente apoiadas pela Igreja católica, em
países nos quais a maioria da população era rural e as sociedades ainda
configuradas sob a égide do pensamento colonial.
Enquanto que as ditaduras militares foram resultado deste
pensamento autoritário aprimorado, principalmente com os
acontecimentos da década de 1950 (entre eles, a Revolução Cubana),
baixo a ideologia da Segurança Nacional, efetivados por meio de golpes
de Estado com uma política militar reacionária e tendo na violência
um dos principais meios utilizados para “eliminação” dos dissentes.
Sobretudo, nessa fase, houve a identificação dos interesses militares
9
ALCÀZAR, Joan del (coord.). TABANERA, Nuria. SANTACREU, Josep M. MARIMON, Antoni.
Historia contemporánea de América. Universitat de Valéncia, 2003, p. 282.
10
Ao se falar em revolução, o sentido que se conota é a de ruptura da ordem preestabelecida por
uma nova ordem política e jurídica. Nessa passagem alude-se aos pactos instáveis de governabilidade
estabelecidos nas recentes repúblicas latino-americanas, no desenrolar do século XIX até a metade
do século XX, nos quais as sociedades se dividiam entre elites de uma oligarquia agrária decadente
em disputa com uma elite industrial recém-formada. ALCÁZAR, na obra já citada, refere que nessa
modernização das elites do poder, as Forças Armadas tiveram um papel muito importante, entretanto,
até o golpe militar de 1964 no Brasil, abstiveram-se de tomar o poder com a quebra da ordem anterior
para si, delegando-o para outros grupos de civis: “entre febrero y diciembre de 1930, los militares
participaron, aunque com diversos proyectos políticos en el derribo de los gobiernos de seis países:
Argentina, Brasil, República Dominicana, Bolivia, Peru y Guatemala”, ob.cit. p. 225.
11
Ib.id.
318
Roberta Cunha de Oliveira
como se fossem os interesses nacionais, salvaguardando a pátria e com
a intenção de perpetuação no poder.12
Tal fato, conforme já referido, em muito tem a ver com o processo
histórico de formação dos Estados Nacionais latino-americanos. Dita
disparidade de classes sociais foi trabalhada por Celso Furtado,13 como
impeditivo não apenas do crescimento econômico, mas também da
passagem de Estados subdesenvolvidos para Estados desenvolvidos:
... por cima está a classe dirigente, formada de vários grupos de
interesse sob muitos aspectos antagônicos e incapacitada
para formular um projeto de desenvolvimento nacional,
com um monopólio incontestado do poder; mais abaixo,
temos uma grande massa de assalariados urbanos empregados
no terciário, que é mais um estrato social do que uma classe
propriamente dita; segue-se a classe dos trabalhadores industriais,
que não chega a representar um décimo da população ativa do
país, mas constitui seu setor mais homogêneo; por ultimo vem a
massa camponesa (grifo nosso).
Sendo assim, o Estado capitalista na América Latina se
constituiu com fortes resquícios de economias agroexportadoras,
o que acabou originando uma elite agrícola muito poderosa (a qual
Furtado chamava de “primitivo núcleo latifundiário”), direcionando
a uma ordem econômica dependente dos produtos industrializados
das antigas metrópoles, baseada na forte concentração de renda e no
latifúndio. Porém, a classe dirigente tende a ser ramificada no século
XX, com a industrialização/modernização brasileira, para o grupo
controlador dos interesses ligados ao comércio exterior, e o grupo
capitalista basicamente apoiado no mercado interno,14 o que gerou uma
constante luta pelo poder entre as elites, relegando ao povo (operários,
campesinos...) o papel de massa de manobra.
A concepção de Celso Furtado também nos dá um panorama
da estrutura da sociedade brasileira e das consequentes crises que
permitiriam mais de duas décadas sob um regime autoritário. Trata-se de
12
ALCÁZAR, ob. cit., p. 318.
13
FURTADO, Celso, ob. cit., p. 82.
14
FURTADO, ob.cit. p. 81.
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
319
meados do século XX, mais precisamente os anos de 1940 e 1950, com a
Europa devastada econômica e culturalmente por duas grandes guerras;
os Estados Unidos já experimentando certa inoperância do Estado de bemestar e a América Latina enfrentando agudas crises com a reestruturação
do capitalismo internacional, além das promessas sociopolíticas que os
Estados de Compromisso15 já não conseguiam cumprir.
Além disso, em paralelo houve uma aguda modernização,
profissionalização e homogeneidade ideológica das Forças Armadas.
Tais fatores criaram “condições de possibilidade” para uma ordem
militar com o discurso da própria salvaguarda do Estado e sua aceitação
social, o que Gilberto Bercovici denomina como a razão do Estado para
a promoção de medidas de exceção:
A vontade do Estado moderno de se afirmar como entidade
econômica e de ser superior aos demais Estados gerou a rivalidade
econômica entre os Estados e a concepção do poder econômico
com potencial militar. Não à toa, o capitalismo, ou seja, a razão
econômica da nova sociedade internacional está em estreita relação
com a razão de Estado. A razão de Estado, primeiro discurso do
estado de exceção, tinha por finalidade garantir a preservação do
Estado a qualquer preço”16
Voltando ainda no problema da constituição nacional, de acordo
com Aldo Ferrer,17 outro autor que embasou o pensamento da Cepal,18
a concentração do poder entre os séculos XVIII e XIX, esteve nas mãos
da elite “criolla”, dos delegados do Império e da igreja, que somavam
15
Visto que o populismo já não conseguia realizar suas promessas nessas sociedades constituídas
pelo conflito, onde a ordem era a defesa da propriedade e a lógica da guerra cada vez mais se
contrapunha à lógica da política.
16
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São
Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 44.
17
FERRER. Aldo. Historia de la globalización II. La Revolución Industrial y el Segundo Orden
Mundial, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2000. “...Las clases altas, compuestas
mayoritariamente por blancos portugueses y criollos, dominaban todo el sistema económico,
político y militar. Como en otras partes de Iberoamérica, la preservación de este sistema de
dominación, heredado del orden colonial, era el objetivo principal de los constructores del Brasil
independiente” (p. 342).
18
CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) criada em 1948 junto ao gabinete de Estudos
e Assessoramento da ONU, sob a direção de Raul Prebisch. A partir dos estudos cepalinos, começouse a configurar uma teoria latino-americana para o desenvolvimento com forte base estruturalista.
320
Roberta Cunha de Oliveira
uns 5% da população da América hispânica. Ademais, a intensidade dos
conflitos internos nas novas Repúblicas, teve um peso maior do que a
influência das ideias políticas na construção dos nacionalismos. No Brasil
a estratificação, hierarquia e desigualdade sociais estavam bastante claras
desde a independência política em 1822.
Na América Latina, este processo de construção do pertencimento
ganhou um significado de “periculosidade” agregado à “ideologia da
nação”, pois a virada no sentido das políticas de segurança nacional,
entre os anos de 1950 a 1960, possibilitou que os esforços para a defesa
do território contra um inimigo externo, fossem realinhados para a
defesa da sociedade contra um inimigo interno. Essa construção foi
influenciada por fatores externos como a Guerra Fria, mas também por
movimentos internos, especialmente abarcados em teorias nas quais
apenas um Estado “forte” seria capaz de conduzir o desenvolvimento
econômico e aplacar as crises sociais.
No Cone Sul, lugar em que se situavam as economias mais
industrializadas da região, o sistema-mundo teve uma influência
determinante na estratificação das sociedades coloniais, com o
mercantilismo; e posteriormente com o capitalismo industrial. O grande
cenário, no qual a pauta foi o Estado desenvolvimentista, deu-se a partir
do fim da Segunda Guerra Mundial, dentro das perspectivas globais de
crescimento e de uma unidade no mundo capitalista que impulsionava a
democratização. Entretanto, o Estado desenvolvimentista no continente
acabou por generalizar o subemprego, aumentar as taxas de desemprego,
com a modernização da economia sem mão de obra qualificada, além de
aumentar a concentração de ingressos e com isso, a desigualdade social.
Tais fatores criaram um ambiente de críticas tanto ao modelo
econômico (desenvolvimentista) quanto ao modelo político (democracia).
Contudo, essas críticas não se restringiram à esfera política e econômica
de atuação, mas também influenciaram certas manobras e acordos na
forma de condução das Instituições Públicas. Para aclarar tal processo,
necessário recorrer a Anthony Pereira,19 quando esse autor desenvolve
o argumento da “legalidade autoritária” da ditadura brasileira terse constituído primeiramente nos procedimentos das “ditaduras
oligárquicas”, anteriormente citadas:
19
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil,
no Chile e na Argentina. Tradução Patrícia Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Paz e Terra,
2010, p. 44.
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
321
No Brasil, a revolução de 1930 contou com a cooperação
entre civis e militares, que resultou na fusão organizacional
da justiça civil e da justiça militar na Constituição de 1934.
A cooperação e a integração entre civis e militares continuou
sendo uma característica marcante da abordagem brasileira aos
crimes políticos.
De acordo com Antony Pereira,20 a repressão brasileira
foi altamente judicializada e gradual, o que acabou interferindo
também no controle transicional que as Forças Armadas tiveram
e nos obstáculos ao cumprimento da Justiça de Transição, até
hoje discutidos.21 Tais aspectos dessa “legalidade autoritária” na
judicialização da repressão serão discutidos ao longo desse artigo,
entretanto, importante agora ter uma noção do cenário da política
internacional nessa época, antes de avançarmos.
Os câmbios da geopolítica internacional: em defesa
de democracia?
No segundo pós-guerra, com a confrontação leste-oeste
deflagrada pela Guerra – Fria, os cenários regionais periféricos foram
o campo de batalha na disputa entre capitalismo/socialismo. Para os
Estados Unidos era conveniente manter um inimigo externo claramente
definido. Durante a administração Roosevelt, respaldada por uma visão
idealista das Relações Internacionais, houve forte incremento para a
criação de Organismos Internacionais em prol da “paz coletiva”. O que
na prática passou a ser também uma política intervencionista, pois
intentava indiretamente abafar a estrutura da União Soviética.
“A repressão instaurada pelo golpe de 1964 foi altamente judicializada e gradualista: o regime aos
poucos modificou alguns aspectos da legalidade tradicional, mas não se lançou à matança extrajudicial
em larga escala, mesmo após o endurecimento do regime, em fins de 1960.” PEREIRA, ib., id.
20
A Lei 7376/10 que cria a Comissão da Verdade brasileira, sancionada em 18 de novembro de 2011,
sofreu certos “retrocessos” em negociação no Congresso Nacional, pois há um grande embate com
as Forças Armadas, que temem futuras responsabilizações pelas violações de direitos humanos,
cometidas durante a ditadura. Além disso, os militares da reserva lançaram vários manifestos
contrários à implantação da Comissão nos últimos meses, colocando-a como um instrumento
“revanchista da esquerda”.
21
322
Roberta Cunha de Oliveira
A esta altura do texto, cabe observar que, apesar do termo Justiça
de Transição ter sido cunhado recentemente (a partir das transições
políticas da década de 80), o seu sentido está vinculado com formas
práticas de não repetição de abusos autoritários ou totalitários. Isto
é, em como desenvolver políticas públicas, seja logo após o período de
conflito ou período autoritário, capazes de promover uma cultura de
paz e de reconciliação nacional. Convém referir que essas proposições
começaram a ser germinadas após a 2ª Guerra Mundial, pelas
devastações que o holocausto e a bomba atômica haviam causado no
uso do arbítrio para “desumanizar” os “inimigos”, tratando-os como
“não pessoas”.22
Tanto que os estudiosos da Justiça de Transição classificam o
período do pós-Guerra como a primeira fase desse processo histórico,
na qual foram implementadas medidas punitivas (o Tribunal de
Nuremberg é o mais notável exemplo) para a não repetição.23 O grande
problema dessa etapa é que ela se caracterizou por uma “justiça dos
vencedores” e não como uma justiça com capacidade restaurativa e
conciliatória. Além disso, nessa época de criação dos organismos
internacionais como a ONU, e a Declaração Universal de 1948, o
Direito Internacional dos Direitos Humanos ainda se vinculava à
vontade política dos Estados em fazê-lo respeitado, eis o porquê de
instrumentos protetores da figura humana terem entrado em certo
“congelamento” no período da Guerra Fria.
Tendo em vista que os Estados Unidos emergiram como a grande
potência depois da 2ª Guerra Mundial, é interessante observar como
as administrações estadunidenses aplicavam sua política externa, pois
esses, foram fatores de grande importância para a implementação
Zaffaroni fala da incompatibilidade de um Estado de direito trabalhar com a ideia de “inimigo
social’: “quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não pessoas),
faz-se referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual
deixam de ser considerados pessoas, e esta é primeira incompatibilidade que a aceitação dos hostis,
no direito, apresenta com relação ao Estado de direito”. In ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo
no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 2. ed. 2007, p.18.
22
TEITEL, Ruth, divide a justiça de transição em três fases: 1ª) Pós-Guerra; 2ª) Transições
democráticas a partir de 1989; 3ª) Conflitos presentes, em certa dinâmica da violência. Também
relaciona especialmente a primeira e a segunda fase com a ideia de reconstrução nacional, divide
a primeira fase pela determinação de responsabilidades e construção de um aparato dentro do
Direito Penal Internacional no pós-Segunda Guerra Mundial, a exemplo da Convenção contra o
genocídio, em 1948. In Transitional justice genealogy. Harvard Human Rigths Journal, vol.16,
Spring 2003, Cambridge, MA.
23
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
323
e duração das ditaduras latino-americanas. Assim sendo para a
administração da era Kennedy o papel dos EUA seria o de definir o
limite para a União Soviética e evitar que o socialismo real passasse
para o sistema; ou seja, o critério nos EUA passava ser o da política
de contenção. Na América Latina esse postulado foi efetivado por meio
da contenção seletiva, pois além da ameaça política/econômica havia
também a ameaça ideológica da URSS, a “construção social do inimigo”,
antes voltada para as “subclasses”, passava em fins da década de 40 a
permear o discurso político.24
A partir de 1949, com a Revolução comunista da China,
desaparecia do imaginário internacional a “supremacia militar norteamericana”, acirrando políticas de defesa interna e externa. Dentro desse
cenário é criada a OTAN e dá-se início às perseguições aos comunistas
nos EUA. Com isso, a contenção, antes seletiva nos territórios de
influência, passava a adquirir caracteres globais, no seio da corrida
armamentista. Uma ameaça em qualquer parte poderia significar uma
derrota em toda a parte, sob essa base, iniciava-se a construção dos
postulados da Estratégia de Segurança Nacional.
Corroborando tais postulados, em 1954, na Guatemala, houve
a renúncia do presidente por pressão da CIA. Já em 1959, a revolução
cubana, com seu peso real e simbólico (visto que a mesma atestava
a possibilidade de revolução na América Latina, e que não nasceu
socialista, mas se tornou socialista por decisões equivocadas da
administração norte-americana), tornou-se uma “ameaça” aos Estados
Oligárquicos25 latino-americanos.
Por outro lado, enquanto se desenrolavam os acontecimentos
externos anteriormente referidos, o Exército enquanto instituição foi
um dos primeiros a buscar inserir-se no paradigma da modernização.
Segundo Alcázar,26 tal trajetória possibilitou também a construção de
um imaginário coletivo nas Forças Armadas de que eram a elite melhor
qualificada para defender os “interesses nacionais” e de que eram
a Instituição para “educar a sociedade civil nos valores militares: a
hierarquia, o acatamento da disciplina e a coesão interna”.27
24
ALCÁZAR, ob.cit.p. 294.
25
ALCÀZAR, ob. cit. p. 323.
26
ALCÀZAR...Ob.cit. p. 318-319.
27
Ib.id.
324
Roberta Cunha de Oliveira
Desse modo, para o autor, as Forças Armadas foram o poder fático
mais importante da América Latina, o que ajudou a estabelecer um forte
controle na maneira de se fazer política nas Instituições. Alcázar ainda
refere que os militarismos brasileiro e argentino foram pretorianos,
tendo uma decisiva influência também nas transições políticas dos dois
países, ainda que no caso argentino atuem fatores de política externa
malconduzida, que ajudaram a debilitar os militares na década de 1980.28
Contudo, anteriormente, fez-se menção de que Celso Furtado, ao
analisar a sociedade brasileira na década de 1960, apontava para uma
frágil organização dos movimentos sociais, especialmente classificando
o papel do pequeno número de proletariados como “massa de manobra”.
De fato, segundo demonstram os autores aqui referidos, na América
Latina a classe obreira esteve politicamente pouco organizada na
primeira metade do século XX, tendo uma atuação mais efetiva nos
países de mineração como atividade econômica principal, como foi o
caso do Chile e da Bolívia.
Celso Furtado quando analisou a realidade brasileira, afirmava
que apenas um regime democrático/aberto criaria as condições políticas
necessárias para o desenvolvimento social em um país desenvolvido.
Para o autor, as lutas revolucionárias socialistas, como movimentos de
tomada de poder, impediram o desenvolvimento pela burocratização
que impuseram nas sociedades do leste europeu.
Todavia, ele elogiava a “tomada de consciência” das ligas
campesinas de Francisco Julião no Brasil, que no início da década de
1960 haviam passado de uma posição radical/revolucionária, para outra
de disputa dentro do ambiente democrático, apoiando as reformas
de base do governo João Goulart. A questão que Furtado29 coloca de
disputa de poder das elites é fundamental para entendermos a aceitação
do golpe militar por grande parte da sociedade brasileira.
Em meio a certo vazio de poder, pois os pactos instáveis
produziram uma conhecida crise social com grau relativamente alto de
polarização ideológica, houve uma base civil crente na “garantia” (não
cumprida pela “linha dura”), de que os militares salvaguardariam a
“nação” apenas para “manter a ordem”, restabelecendo o poder aos civis
com eleições para presidente em 1966:
28
A exemplo da Guerra das Malvinas em 1982.
29
FURTADO, ob.cit. p. 85.
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
325
Em realidade, os governos constituídos por processos
extralegais, mesmo que se digam “fortes”, se iniciam extremamente
fracos e adquirem força na medida em que vão pactuando com os
interesses constituídos e com os grupos organizados que detêm o
poder. Esses pactos são feitos inicialmente para ganhar tempo e,
por último, o são porque os objetivos iniciais já foram perdidos de
vista, restando apenas o desejo de conservar o poder.
Além da pífia justificativa de que o país estava “ameaçado por
subversivos” que desejavam impor uma “ditadura comunista”, que se
mostrou infundada pelas carências de organização dos movimentos,
há também que se assinalar que, no Brasil, a guerrilha se organizou
posteriormente ao golpe, como uma expressão da resistência.30 Alguns
autores apontam para as guerrilhas como também uma forma de
desestruturação das esquerdas existentes, pois no geral, as pessoas que
as comandavam não vinham das classes de trabalhadores urbanos ou
rurais, mas sim, provinham dos centros urbanos, das universidades,
o que não priorizou a mobilização das massas. Gillespie31 assinala a
militarização também nas táticas guerrilheiras: “la guerrilla urbana,
militarizada al máximo, adquirió uma dinámica propia, cada vez más
militar y menos política”.
O pensamento político dava-se também com contornos
fechados nos países latino-americanos e dita radicalização ideológica
acabou favorecendo as elites conservadoras. Depois do golpe de
1964 se produziu uma onda de governos autoritários na região, com
o postulado novo de que, naquele momento histórico, as Forças
Armadas deveriam assumir seu protagonismo na condução da política
também. Mas, se o problema dos nacionalismos impostos, permitiu a
hierarquização dessas sociedades sob o signo da disciplina; importante
ao menos referir a questão da diferença, na falta de reconhecimento do
outro e da dificuldade dos regimes fechados/autoritários em trabalhar
com a pluralidade.
Dessa maneira, Celso Furtado propunha que se pensasse em
política como ambiente de fatores que condicionam o exercício do
poder, abordando a atividade humana concreta em certos períodos
“La falta de resistencia al golpe militar de 1964, dejaría clara la realidad: no había habido ninguna
base para la implantación de un poder revolucionario en Brasil”, Alcázar, ob.cit., p. 282.
30
31
Apud ALCÁZAR, ob.cit., p. 290.
326
Roberta Cunha de Oliveira
históricos, para que o processo político não fosse minimizado a um
simples jogo formal abarrotado pela burocracia administrativa.32
Ressalta-se que o autor, apesar da crítica às oligarquias, ao populismo e
às elites conservadoras brasileiras, em nenhum momento caracterizouse como um revolucionário, já que pautava suas propostas políticas
dentro do âmbito das reformas institucionais e suas propostas
econômicas, tendo na distribuição de renda, o princípio fundamental
do equilíbrio dinâmico do capitalismo:
O marco institucional deve, portanto, ser suficientemente
flexível e ter a aptidão necessária para reformar-se toda vez que
a pressão gerada pelos conflitos alcance aquele ponto em que a
convivência social se torna inviável. O impulso que induz a esse
permanente reformar-se é o consenso geral de que existe um
interesse social por cima dos grupos e das classes, e a diretriz
desse interesse social está dada pelo desenvolvimento das
forças produtivas.33
A concepção de Celso Furtado adotava a social-democracia, com
o efetivo Estado de bem-estar, proporcionando um gradual aumento
da participação política das massas, via sindicatos, pressionando
por distribuição de riqueza. Além disso, para ele, a pressão existente
na relação mediada pelo voto acabaria por constituir a modernidade
brasileira. Tal quadro desenhado pelo autor na década de 1960 apenas
começou a se concretizar nos anos 80, com a organização do movimento
sindical e a união deste com o movimento pela anistia, por conseguinte,
fortalecendo a exigência pela volta das eleições diretas e democráticas,
através da campanha das Diretas Já.
Essas seriam as funções do Estado para manter a ordem
social no pensamento de Celso Furtado: o direito simbólico (visando
fortalecer e desenvolver o sentimento nacional), prevenção, redução ou
eliminação de conflitos; a acumulação econômica redistributiva, ainda
que dentro de um Estado liberal/capitalista. Esse autor, seguindo a
construção cepalina, entendia que o desenvolvimento só seria alcançado
com políticas econômicas que aumentassem a produção, gerando
32
FURTADO, ob.cit. passim 71-78.
33
FURTADO, p. 43.
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
327
ao mesmo tempo redistribuição de renda, e com políticas sociais que
possibilitassem um processo de redistribuição progressiva de ingressos.
Sua grande diferença para os outros autores da Cepal foi não haver se
pautado apenas na visão estruturalista/econômica para a superação de
problemas do desenvolvimento na América Latina.
Uma visão contrária a de Furtado foi a tutelar, utilizada em larga
escala pelas Forças Armadas, baseada na definição de modelos prévios
para o desenvolvimento das relações sociais e políticas. Garretón,34 ao
classificar as fases das ditaduras militares na América Latina, deixa
claro o uso do método disciplinário em todos os aspectos da vida social,
seja na fase reativa, na qual atuava um elemento repressivo contra os
opositores do regime, seja na fase transformadora, mais preocupada
com o desenvolvimentismo, ou na fase terminal colocando condições de
reabertura dos regimes autoritários.35
Não apenas venceu a decisão que Furtado criticava, de um regime
político fechado no Brasil, como também houve períodos de organização
política criminosa em nível estatal, com a efetiva atuação extralegal, ou
seja, um Estado de Exceção. Tal regime autoritário deixou seus rastros
permanentes nas Instituições do Estado brasileiro, pois administrou
suas condições de saída por meio da transição “lenta, gradual e segura”
iniciada no Governo Geisel.
O judiciário, a conservação da “legalidade” autoritária
e a política na justiça
No Brasil, tal disciplinamento teve como expoente a condução
dos julgamentos políticos pelo Tribunal Militar, condicionando quem
eram dignos da cidadania e quem eram “inimigos” do país. Tal estratégia
34
Apud ALCÁZAR, ob.cit. p. 324.
Portanto, a afirmativa do Ministro Eros Grau, na ADPF 153, “diz-se que o acordo que resultou
na anistia foi encetado pela elite política. Mas quem haveria de compor esse acordo, em nome dos
subversivos? O que se deseja agora, em uma tentativa, mais do que de reescrever, de reconstruir a
História? Que a transição tivesse sido feita, um dia, posteriormente ao momento daquele acordo,
com sangue e lágrimas, com violência? Todos desejavam que fosse sem violência, estávamos fartos
de violência.” (p. 58), não encontra coerência ao dizer que a Anistia de 1979 foi um acordo político
bilateral, quando é comprovado por diferentes estudiosos de que as Transições na América Latina
foram direcionadas pelas elites civis-militares.
35
328
Roberta Cunha de Oliveira
começava nos julgamentos políticos e acabava gerando consequências
“antijurídicas” na fase mais reacionária da ditadura civil militar, com
a implantação da pena de banimento, a instrumentalização da tortura,
dos desaparecimentos e das execuções extrajudiciais. Sobre essa
primeira fase, de “caça às bruxas”, Anthony Pereira deixa claro o papel
desempenhado pela justiça política:
A justiça política foi também uma tentativa de remodelar
a sociedade, para que ela se enquadrasse na visão dos líderes do
regime sobre o que a cidadania deveria ser, processando cidadãos
por crimes tais como distribuição de propaganda subversiva,
filiação a organizações proscritas, crimes contra a autoridade e
não conformismo sociopolítico.36
Comparativamente a países como o Chile e Argentina, no Brasil
a ditadura civil- militar não rompeu totalmente com a ordem vigente
anterior, houve certa “legalidade autoritária”, expressa principalmente
na condução desses processos judiciais contra os perseguidos políticos
do regime, inclusive com alusão à manutenção e “salvaguarda” da
democracia no discurso dos ditadores. Os citados tribunais militares
também incluíam algum juiz civil com formação em Direito em seu
quadro e os processos políticos serviram para “legitimar” junto à
população a “atuação do Estado dentro da lei”, embora as garantias da
justiça política dependessem muito mais dos “humores” do regime, do
que do respeito aos direitos fundamentais.
Ademais, na Argentina e no Brasil, os golpes militares foram
executados com a justificativa da “guerra iminente”, o que no Brasil
se configurou como um golpe “preventivo” e na Argentina as Forças
Armadas qualificaram como “guerra suja”, devido à forte atuação
das guerrilhas urbanas e rurais. O sistema militar argentino por não
contar com a colaboração tão explícita do judiciário adotou medidas
de execução extrajudicial e desaparecimentos forçados em um grau
muito superior ao dos seus vizinhos. O autor revela que tal colaboração
do judiciário brasileiro com os militares, também proporcionou uma
margem de atuação um pouco maior para os advogados de defesa e para
os perseguidos políticos.
36
PEREIRA, Antony, ob.cit. p. 54.
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
329
Dessa forma, acentua que no Brasil, o que ocorreu foi a implantação
de um sistema híbrido de “legalidade” no qual a Constituição continuava
em vigor, ainda que convivendo com Atos Institucionais. De alguma
forma, a “virada jurídica” que passou a ditar as normas do regime militar
brasileiro se deu com a edição do AI-2, institucionalizando a repressão,
porém, foi com a edição do AI-5, em 1968, que o regime deixou de ser
somente autoritário, passando a desenvolver ações de um característico
Estado de Exceção: “o caminho tomado pela repressão judicial brasileira
foi o mais conservador e gradual dos três, o que fica evidente no momento
de maior potencial de ruptura, a decretação do AI-5”.37
O estudo de Anthony Pereira é deveras importante para mostrar
que a continuidade do pensamento autoritário deu-se também no
campo jurídico. Isto é, as discussões mantidas pelos intelectuais
brasileiros, desde a década de 20, acabaram favorecendo a organização
dessa cumplicidade do poder judiciário com os atos do regime ditatorial.
Assim como não houve uma ruptura do pensamento vigente a época do
golpe, que era em grande parte um pensamento autoritário, também
não houve uma ruptura na passagem da ditadura civil-militar para a
democracia nos anos 80:
Da mesma forma que houve grande continuidade jurídica
na passagem da democracia para o autoritarismo, as transições
ocorridas na década de 1980 não desmontaram por
completo o aparato judicial repressivo construído pelo
regime militar. Algumas das leis nas quais esses julgamentos se
baseavam – bem como as instituições que processaram e julgaram
os acusados – ainda existem”.38 (grifo nosso)
Dita década de 80 caracteriza a segunda fase da Justiça
Transicional,39 com a reabertura política na América Latina e a
fragmentação da União soviética no leste europeu. Por meio dessa
nova mudança no cenário geopolítico mundial, a divisão de um mundo
bipolar cedia espaço ao multilateralismo, ainda que conduzido sob
as bases dos governos norte-americanos. Era também a época dos
37
PEREIRA, ob. cit. p.123.
38
PEREIRA, ob. cit. p. 39.
39
Segundo a Genealogia proposta por Ruth Teitel.
330
Roberta Cunha de Oliveira
neoconservadores no poder, com a administração Reagan, ocorrendo
um forte rearmamento militar em nível global, ao mesmo tempo em
que a política externa estadunidense para a América Latina propugnava
processos das “democracias viáveis”, nas quais as transições políticas
para a democracia levariam aos governos partidos majoritários, porém,
não de vanguarda, tudo isso, buscando amenizar vínculos e conflitos
com as forças armadas regionais.
Por meio desses processos de transição política é que surgiu o
termo Justiça de Transição, o qual foi conceituado pela ONU no ano de
2005 como um conjunto de ações e políticas públicas que visassem à
reparação dos períodos autoritários e também a não repetição da violação
aos Direitos Humanos e crimes contra a humanidade, cometidos na
vigência de regimes fechados. O Estado autoritário militar não soube
lidar com a oposição ao seu projeto civilizador, transformando-se em
um Estado de terror, muitas vezes.
Ressalta-se que a América Latina possui diferentes estágios da
Justiça de Transição,40 sendo que não se pode fazer uma comparação no
intuito de que todos os países apliquem os mesmos métodos e encontrem
as mesmas soluções para resolução dos abusos do autoritarismo. Logo,
ainda que o Brasil possua um procedimento sui generis de justiça
transicional, importantes avanços têm acontecido, mais precisamente
desde os anos 2000, com a criação de Comissões Especiais de Reparação,
como a Comissão de Anistia e a Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos Políticos.
Mas, para o que se tentou desenvolver ao longo desse trabalho,
é necessário aclarar, ainda que brevemente, o problema de Reforma
das Instituições. Nesse sentido, a referência não visa apenas à reforma
das Instituições diretamente envolvidas com a segurança pública,
mas também, de outras que, conforme vimos, colaboraram ao dar
“ares de legalidade” à repressão. No Brasil, as Forças Armadas não
passaram por uma ampla reforma, com referência aos seus métodos
de formação, apesar de a grande maioria dos generais militares ainda
vivos não estar mais ativa.
Nosso país ainda não realizou uma investigação pública capaz de
apontar os responsáveis pelas violações de direitos humanos na época
40
Argentina e Chile já constituíram suas Comissões da Verdade, sendo que na Argentina atualmente
há um número bastante expressivo de julgamentos por crimes de lesa-humanidade.
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
331
ditatorial, nem os responsabilizou, chance que a tardia, mas necessária
Comissão da Verdade terá a incumbência de fazer. Entretanto, os
processos de reabertura dos arquivos públicos e da constituição da
Comissão da Verdade ainda são fortemente controlados pelas elites
militares e também pelas elites civis que apoiaram o golpe.
Porém, uma influência pouco discutida publicamente é a do
Poder Judiciário, o qual demonstrou a permanência de seu pensamento
autoritário e conservador na decisão da ADPF 153,41 em abril de 2010, ao
dizer que a anistia imposta pelos militares para realizarem a transição
política foi um “acordo”, pactuada por ambas as partes. Sendo assim,
os delitos de lesa-humanidade estavam cobertos pelo instituto, pois se
conectavam aos crimes políticos, em clara desobediência às prescrições
do Direito Internacional dos Direitos Humanos e suas normas jus
cogens,42 visto que o Brasil reconheceu a supremacia dos postulados da
proteção regional ao se submeter à jurisdição da Corte Interamericana
de Direitos Humanos em 1998.
Além disso, o voto do Relator da ADPF 153 (Ministro Eros
Grau), ao tratar a “formação do povo brasileiro”, e caracterizá-lo
pela sua “cordialidade” para justificar a sociedade “pacífica” – que
prefere o esquecimento a saber a verdade de seu passado recente –
diferentemente que “uma aula de história”, foi a opção política por uma
visão conservadora da nossa formação nacional:
Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura
para a democracia política ter sido uma transição conciliada,
suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram
todos absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os
subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era
ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia
(em alguns casos, nem mesmo viver). Quando se deseja negar
o acordo político que efetivamente existiu resultam
fustigados os que se manifestaram politicamente em
nome dos subversivos43 (grifo nosso).
41
STF. ADPF 153. Voto do Ministro Eros Grau.
Tanto que o país foi condenado pela CIDH no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) x Brasil,
em sentença publicada no dia 24 de novembro de 2010.
42
43
STF. ADPF 153, Voto Eros Grau, p. 57.
332
Roberta Cunha de Oliveira
Ao afirmar que houve tal “pacto político” como um acordo
bilateral, o Ministro negou às vítimas, uma vez mais o reconhecimento
de sua condição de resistentes frente a um poder ilegítimo, inclusive
utilizando “rótulos” muito disseminados na construção dos perseguidos
políticos como “inimigos” sociais, quando os trata como subversivos.
Tais “perseguições políticas” e “rótulos” permanecem intrínsecos nas
inúmeras decisões que criminalizam as ações dos movimentos sociais
(em primeira ou segunda instância), sob a base de postulados de “lei e
ordem”. Enfim, apenas colocam-se esses exemplos para dizer que o poder
judiciário continua fortemente vinculado à “legalidade” autoritária da
ditadura militar, sem uma reforma em suas estruturas capaz de torná-lo
um poder mais democrático e, sobretudo, mantém-se incólume como o
grande “guardião da Constituição”, sem uma responsabilização pública
pelas colaborações que cedeu junto ao poder militar.
Considerações finais
Ante tudo até aqui exposto, devido ao fato de o pensamento
autoritário permear o imaginário jurídico, político e social brasileiro
desde a “invenção da nação”, pode-se corroborar a ideia de que o regime
militar não se esgotava em si mesmo, mas, sim, foi uma condição
histórica que acabou tendo grande influência na formação das estruturas
institucionais autoritárias para um horizonte futuro, em que a política
ficasse relegada a mero instrumento formal.
Contudo, lembra-se que a democracia surge sob o signo da
igualdade (ao menos formal) e da liberdade. Sendo assim, retornando
para o pensamento de Furtado, nota-se que o autor já afirmava a
incompatibilidade das ideias democráticas com uma forma fechada nas
Instituições do Estado. Para ele, o desenvolvimento de uma sociedade
capitalista/liberal não poderia macular os direitos individuais, pois o
liame entre marcos institucionais e soluções extralegais era um problema
complexo, que não tinha uma fórmula pronta.
A opção de trabalhar o pensamento de Celso Furtado sobre
as instituições também foi a de resgate para os debates políticos
atuais. Pois os mecanismos de justiça transicional intentam, além do
Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução...
333
restabelecimento da “paz social” nos Estados onde são implantados,
também rediscutir qual o papel do Estado para a real efetivação das
garantias aos direitos fundamentais. Também a opção de tratar do
imaginário autoritário foi tida como uma necessidade ao se discutirem
publicamente as ideias que permitiram o autoritarismo no nosso país e
que ainda continuam intrínsecas nos discursos políticos e jurídicos, com
novas roupagens.
Portanto, quando se discute a reforma das instituições, é
necessário também que se discuta a urgência de se descolonizarem o
pensamento e a produção do conhecimento, pois as instituições, antes
que mecanismos, são lugares dirigidos por homens e por ideias. Isso
implica uma gama de ações e estratégias que pautem nas diferentes
sociedades qual o sentido ético da democracia que se deseja construir,
pois a violência não cessa com a transformação apenas formal das
estruturas de poder.
Referências
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Universitat de Valéncia, 2003.
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Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
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PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o
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TEITEL, Ruth. Transitional justice genealogy. Harvard Human Rigths
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de
Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 2. ed. 2007.
Novas narrativas: a dificuldade de
legitimação de novas vozes acerca das
violações a direitos fundamentais durante
o regime militar brasileiro diante da
aceleração do tempo e do paradigma da
racionalidade
Vanessa Dorneles Schinke
O texto apresenta uma singela reflexão a respeito de alguns
aspectos que tendem a ser relevantes quando pretendemos viabilizar o
uso de relatos de pessoas que vivenciaram o período do regime militar
brasileiro e que, de alguma forma, tiveram seus direitos fundamentais
violados ou que presenciaram essas violações de maneira muito estreita.
Quanto a tais questões tangentes, deixando-se relativamente de lado
aspectos fundamentais referentes à memória, pois demandariam
estudos mais aprofundados, traz-se à tona uma sucinta observação
acerca da própria racionalidade ocidental e ao período de aceleração do
tempo, marcante na era das tecnologias da informação, em contraponto
à reflexão atenta que deve ser realizada frente a narrativas que, além de
narrarem a própria história do direito,1 apresentam um aparente risco à
ideia totalizadora de história, entendida como bloco acabado e unívoco,
na medida em que concede espaço para novas vozes e outros olhares.2
Em que pese a alegoria dizer respeito ao romance, figura com traços marcantes que o diferem
da narrativa, cabe referir que, nesse momento, pode surgir a imagem que compara o direito a um
livro, no qual cada intérprete seria responsável por escrever um capítulo do romance, de forma
a ter que considerar a narrativa já escrita nos capítulos anteriores, mas com a possibilidade de
redirecioná-la e de assumir o impacto de seu capítulo na continuação da narrativa. Essa conexão
com o passado, todavia, não é uma simples continuação repetitiva. Ao contrário, pode assegurar
uma virada no caminho até então construído pela narrativa, desde que fundamente a crítica aos
sentidos anteriormente construídos. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 19.
1
2
Ainda que se referindo às denominadas questões perenes, Baumer realiza uma importante
marcação ao lembrar que nós mesmos estamos amalgamados a nossas próprias perspectivas. “O
passado dá-nos respostas, sutis ou mesmo radicalmente diferentes das nossas próprias respostas,
a estas questões, pelas quais necessariamente conservamos um interesse vital. Apesar do nosso
conhecimento superior em muitas áreas, vemo-nos a nós próprios e ao mundo a partir da nossa
336
Vanessa Dorneles Schinke
Pertinente salientar que a mera passagem institucional de
um regime autoritário para o democrático não basta para resolver
as violações aos direitos fundamentais. A própria ideia de justiça de
transição carrega, em seu bojo, a adoção de medidas para a superação
das violações a esses direitos ocorridos em conflitos armados ou em
ditaduras. Nesse sentido que a preocupação em se construir uma memória
plural sobre o regime autoritário inclui-se dentre os requisitos para a
consecução de uma transição qualificada. Ademais, essa pluralidade da
memória reflete a própria diversidade no tratamento de tais violações
pela denominada justiça de transição, de forma que a mera pretensão
de consolidar determinada(s) narrativa(s), em detrimento de outras,
careceria de compatibilidade com a própria natureza, complexa, diga-se
de passagem, com que esses períodos se condensam.
Nesse ínterim, a própria noção de sujeito constitucional traz, em
seu bojo, dois elementos correlatos: o da própria concepção de sujeito
constitucional, relativo aos que elaboram a Constituição e aos que
a ela se sujeitam; e o da matéria constitucional, referente aos fatores
que constituem determinada identidade constitucional, à matéria
constitucional em si. Sabe-se contemporaneamente que o passado
é tão disponível e incerto quanto o futuro. A identidade do sujeito
constitucional, por sua vez, tende a se alterar com o tempo, ao mesmo
tempo em que reescreve e acomoda diversas identidades.
Essa identidade, então, seria estabelecida ao longo dos anos,
através do entrelaçamento do passado, do presente e das futuras
gerações, em outras palavras, a partir de um produto dinâmico
constantemente aberto à revisão. Isso ocorreria porque, em que
pese existir uma identidade inerente a cada comunidade política, ela
só poderia ser apreendida parcialmente por meio da interpretação
de fragmentos nas reconstruções discursivas dos membros dessa
mesma comunidade comprometida constitucionalmente. O
potencial legitimador dessa identidade decorreria da necessidade
de sua constante fundamentação e reinterpretação em razão dessa
incompletude e indeterminação inerentes.3
peculiar perspectiva. Esta perspectiva é qualquer coisa de especial, parcial e limitada.” BAUMER,
Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vila Nova de Gaia. Edições 70, 1990. v. I. p. 25.
3
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Trad. Menelick de Carvalho Netto.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 15.
Novas narrativas: a dificuldade de legitimação de novas vozes...
337
A possibilidade de que outras vozes ressurjam e relatem
circunstâncias de um passado até então sepultado afronta e contrapõese à linearidade temporal, em uma sociedade que se preocupa com um
futuro de progresso que a engole a todo instante. Lembremos que a
evolução do próprio aparato militar, especificamente quanto aos tanques
de guerra, constitui, em maior ou menor grau, uma representação curiosa
da possibilidade de deslocamento e de movimento, de modo geral, que
passou a embebedar o conhecimento humano, independentemente da
finalidade a que se propunham. Interessantemente, as trincheiras de
guerra, fixadas no chão, cederam espaço a mecanismos que aceleravam
a eliminação do inimigo.4
Além disso, a ideia de perda de controle é tão malquista pela
nossa racionalidade que o próprio Gregor Samsa, ao acordar na forma
de um inseto abjeto e ao perguntar o que lhe teria acontecido, poderia
referir-se tanto a sua forma de barata quanto à perda do horário, pois
estava atrasado e seu controle da temporalidade das lidas de um caixeiroviajante havia falhado.5
Embora não se trate da pretensão de discorrer sobre a história das
ideias em poucos parágrafos, convém, de qualquer forma, explicitar a
quais paradigmas está-se a referir quando se faz menção à racionalidade
ocidental. Dessa forma, a partir de sucessivas revoluções, que datam de
séculos passados, provenientes das descobertas de Newton, Copérnico,
Galileu e Descartes, possibilitou-se que o homem desse uma dimensão
utilitarista às suas finalidades, submetendo a natureza a métodos
incessantemente repetitivos, no intento de controlar não apenas o que
até então era intocável, mas de dirigir sua própria história.
O saber não se reconhecia como precário. Pode-se afirmar
que a modernidade, dessa forma, não concebeu fundamentos que ela
mesma não tenha criado. É descalça, resultante de inúmeras rupturas,
reconstruções e composta por novos paradigmas.6
O importante, pois, passou a ser a obra, o fazer. René Descartes, por
exemplo, ao conceber um organizado encadeamento de regras e princípios,
4
VIRILIO, Paul. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p. 35.
KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução e posfácio: Modesto Carone. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997.
5
6
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. Posfácio. p. 230.
338
Vanessa Dorneles Schinke
possibilitaria a apreensão do pensamento e, por que não, do universo.7 No
século XIX, por exemplo, parafraseando Baumer, os europeus estavam
conscientes, muito mais do que os antecessores, da aceleração da vida
moderna e do modo como isso contribuía para a confusão geral.8
O próprio Arnold falava na “pressa doentia” do seu tempo,
que ele ligava aos “objetivos divididos”. Acaracterística mais
saliente da vida, nesta última parte do século XIX, é a velocidade,
observou outro inglês, em 1875, e a velocidade, embora fosse
excitante, restringia o lazer, que permitia que os homens
refletissem sobre o valor e finalidade do que viam e faziam.9
O século XX, entretanto, abriu a cortina para o que o artistacrítico Wyndham Lewis chamou de espírito do tempo, que estaria em
constante movimento, em plena ação e em velocidades cada vez maiores
e, se possível, sem raízes, sob pena de não alcançar o futuro que está
sempre chegando.10
Dentro dessa perspectiva, Reys Mate apreende muito bem
a necessidade de revisarmos o que entendemos por verdade ou por
conhecimento da realidade, na medida em que entendemos esse
conhecimento por uma operação asséptica e atemporal.
Para empezar la realidad no es la facticidad lo que está
ahí. También forma parte de la realidad lo que no es, lo que quiso
ser y no pudo, lo que quedó frustrado. [...] La verdad que persigue
el conocimiento es más que lo que está presente; también implica
a lo ausente. La categoría “concepto” es insuficiente pues no se
puede aprehender o captar lo que no es. Hay que poner en marcha
otros recursos, a sabiendas de que en ese caso la iniciativa viene
7
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vila Nova de Gaia. Edições 70, 1990.
v. I. p. 56.
8
A interface instantânea toma o lugar dos intervalos de tempo das mais longas durações de
deslocação. Após o advento, no século XIX, da distância-tempo em detrimento da distância
espacial, é agora o advento da distância-velocidade das imagens eletrônicas: a imabilização
da imagem sucede ao estacionamento contínuo. VIRILIO, Paul. A inércia polar. Lisboa: Dom
Quixote, 1993. p. 38.
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vila Nova de Gaia. Edições 70, 1990.
v. II. p. 16.
9
10
Em complementação, Ortega y Gasset fazia referência ao “escandalosamente temporário”, dizendo
ser o primeiro período da história a não encontrar qualquer padrão no passado. Idem. v. II. p. 167.
Novas narrativas: a dificuldade de legitimação de novas vozes...
339
del exterior. Se puede hablar de negatividad en el sentido de que el
conocimiento cuestiona la pretensión de lo fáctico a presentarse
como la realidad. Lo negativo, lo oculto u ocultado, lo ausente,
toman la iniciativa y colocan al conocimiento en una posición de
máxima fragilidad, obligado siempre a revisarse, a incorporar la
nueva pregunta que impela a recomponer el equilibrio anterior.11
Nesse sentido, seria razoável admitirmos que a ideia de perda
do absoluto conhecimento e a abertura para diferentes perspectivas
causam estranhamento às certezas e dicotomias tradicionais. A
aceleração incontrolável da temporalidade, ainda submetida a uma
ideia de continuidade, ao mesmo tempo em que é subdividida em
categorias de passado, presente e futuro, torna-se um obstáculo
relevante quando se pretende abrir espaço junto ao fluxo das
informações para narrativas de uma categoria do conhecimento que,
em regra, não mais existe, como o passado. No dizer de Benjamin, as
experiências estão deixando de ser comunicáveis.12
O referido autor faz peculiar menção ao surgimento da
imprensa e à nova forma de comunicação, baseada em informações. A
informação, pois, aspiraria uma verificação imediata, pertinente a um
contexto, no qual a temporalidade é acelerada.
Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no
entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que
os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras
palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa,
e quase tudo está a serviço da informação. [...] O extraordinário e
o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto
psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para
interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado
atinge uma amplitude que não existe na informação.13
11
MATE, Reyes. Fundamentos de una filosofía de la memória. p. 20. In: RUIZ, Castor Bartolomé
(Org.). Justiça e memória: para uma crítica ética da violência. São Leopoldo: UNISINOS, 2009. 17-50.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Obras Escolhidas. v. I. p. 200.
12
13
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Obras Escolhidas. V. I. p. 203.
340
Vanessa Dorneles Schinke
Note-se que a velocidade de intenso desenvolvimento das
tecnologias, reflete-se em todas as áreas, inclusive na revolução
imagética, ligada à transmissão de imagens instantâneas, deixando à
deriva a imagem diferida, demasiadamente lenta para os dias atuais.
É nesse sentido que Virilio faz referência à crise das salas de cinema,
sendo reflexo, pois, de uma crise da noção de representação ligada à
explosão do direto, do que ele chama um direto em tempo real. Passase, então, na nossa vida cotidiana, de um tempo extensivo da história ao
tempo de uma instantaneidade sem história.
Este advento do trajeto real em detrimento do objeto e
do sujeito reais, tão revelador do primado da imagem sobre a
coisa, ela própria fruto da recente supremacia do tempo sobre
o espaço real, é uma manifestação significativa do caráter
ondulatório da realidade. Com efeito, a súbita comutação das
aparências sensíveis não é, em última instância, mais do que o
sinal precursos de uma desrealização generalizada, consequência
de uma nova iluminação da realidade sensível. De uma realidade
não já apenas “aparente”, como outrora, mas “transparente” ou
mais precisamente trans-aparente.14
Outrossim, a dicotomia que tradicionalmente separava razão
e emoção também aparece como óbice para legitimar narrativas que
envolvam elementos como afetividade, por exemplo.15 A ilusão de que
pensamentos racionais estariam completamente isolados de vivências
subjetivas não contribui para conferir aos relatos de perseguidos
políticos à posição de um enfoque verossímil de parte da realidade, apto
para engajar políticas públicas ou qualquer outra decisão que abarque a
sociedade de forma alheia à concepção de indivíduo.16
Nesse aspecto, faz-se referência aos estudos de Antônio
Damásio, que não apenas inferiu que certos elementos relacionados
à emoção são indispensáveis para a racionalidade, como tratou de
14
VIRILIO, Paul. A inércia polar. Lisboa: Dom Quixote, 1993. p. 21.
GAUER, Ruth M. Chittó. Transcendendo a dicotomia razão x emoção. In: GAUER, Ruth M.
Chittó (et alii) Memória, punição e justiça: uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2011, p. 9.
15
16
DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: 1985.
Novas narrativas: a dificuldade de legitimação de novas vozes...
341
integrar o corpo ao cérebro, afirmando que ambos constituem um
organismo indissociável, seja para questões atinentes à memória, à
linguagem ou ao raciocínio.17
A narrativa específica de violações aos direitos fundamentais,
pois, além de possibilitar a reparação,18 se possível, das injustiças
cometidas, cria um oco na realidade, por onde se inicia a contagem
de um novo tempo, se admitirmos a ideia de tempo contínuo.19 Fazse menção à ideia de força messiânica, trabalhada por Benjamin,
no sentido de que as gerações anteriores têm sobre as seguintes o
direito de que lhes sejam reconhecidas as injustiças sofridas e que a
elas seja feita justiça; entretanto, a capacidade de resposta da geração
presente sobre essas demandas é limitada, porque não pode responder
adequadamente, e é messiânica porque aceita a vigência hoje das
injustiças de ontem.20
Entretanto, importa ressaltar que ouvir essas narrativas
pressupõe abrir-se para “o outro”, na medida em que seu uso implica
um acordo tácito que convida alguém a ouvir o que se fala,21 que se
propõe a construir um elo entre quem narra e quem escuta. Tornase recomendável, contudo, a consciência de que toda narrativa que se
volta para o passado é sempre uma redução violenta de complexidade.
A verdade é verdade para alguém. De sorte que sem
testemunha que verifique a realidade comunicada não existe
verdade. Se a verdade é testemunho, a verdade é plural; isso não
tem por que significar relativismo ou ceticismo, já que todos os
testemunhos apontam para um silêncio que os supere e ao qual
se devem. O testemunho de um sobrevivente está em função da
vítima que não pode falar. [...] O testemunho necessita de um
leitor ou ouvinte que julgue, que faça justiça ao testemunho,
reconhecendo a vigência do narrado. Ao recolher a palavra
e transmiti-la logo, o ouvinte da testemunha faz memória,
incorpora-se como um anel à corrente que recorda uma injustiça.
DAMÁSIO, Antônio R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. Portugal:
Publicações Europa-América, 2000. p. 19
17
MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz – atualidade e política. São Leopoldo: Nova Harmonia,
2005. p. 27.
18
19
Idem. p. 26.
20
Idem. p. 24.
21
SOUZA, R. T. Kafka, a Justiça, o Veredicto e a Colônia Penal. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 14
342
Vanessa Dorneles Schinke
A testemunha é o que nos permite falar do relato, da vida como
uma narração que proporciona horizonte e sentido.22
Essas vozes, então, possibilitariam a reconfiguração do que
entendemos por realidade e conhecimento, na medida em que os
testemunhos elucidariam elementos que nós não veríamos.23 É nesse
âmbito que se poderia falar em uma proposta de compromisso entre
a memória individual e a construída pela sociedade.24 A memória
apareceria, pois, como uma vertente capaz de retomar o fracasso de
violações aos direitos fundamentais, uma vez que as inúmeras teorias
criadas pela racionalidade humana não foram capazes de prever,
sobretudo através de seu emaranhado de conceitos.25
O testemunho, na verdade, como veremos, é marcado
pelo tempo do presente. Trata-se também sempre de uma
performance testemunhal. O ato de testemunhar tem seu valor
em si, para além do valor documental ou comunicativo deste
evento. A cena do testemunho, se o testemunho de fato acontece,
é sempre e paradoxalmente externa e interna ao evento narrado.
Interna porque em certo sentido não existe um “depois” absoluto
da cena traumática, já que esta justamente é caracterizada por
uma perenidade insuperável. Por outro lado, o testemunho é
externo àquela cena traumática na medida em que ele cria um
local metarreflexivo. Ele exige um certo distanciamento. [...]
O testemunho em si é terapêutico. Os diários de guerra e de
prisioneiros e muitos documentos testemunhais encontrados
enterrados no Lager são prova desta atividade testemunhal
mesmo em situações aparentemente impossíveis de abrigarem um
espaço testemunhal.26
22
MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz – atualidade e política. São Leopoldo: Nova Harmonia,
2005. p. 24.
23
MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz – atualidade e política. São Leopoldo: Nova Harmonia,
2005. p. 277.
24
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes
históricas. In: UMBACH, Rosani Ketzer (Org.) Memórias da repressão. Santa Maria: UFSM, PPGL,
2008. p. 75.
25
MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz – atualidade e política. São Leopoldo: Nova Harmonia,
2005. p. 22.
26
Idem. p. 75.
Novas narrativas: a dificuldade de legitimação de novas vozes...
343
Não obstante, seria inegável reconhecer que o mundo de
simultaneidades que se apresenta pode não contribuir, a priori, para a
construção e a conservação de tais pontes, ainda mais se considerarmos
a primazia do individualismo de hoje. Todavia, sob pena de jamais
fazer-se justiça ao ocorrido e de consentir com grotescas violações a
direitos fundamentais às mais básicas normas do Estado de Direito,
um novo deslocamento apresenta-se como plausível.
Conceber que narrativas estranhas sejam escutadas pressupõe
algumas alterações que, em tese, iriam de encontro ao racionalismo, quais
sejam: a) perceber que a ideia de tempo, de forma compartimentada
entre passado, presente e futuro, em um fluxo contínuo e linear, não mais
se sustenta, ou, ao menos, não contribui para a ideia de que injustiças
permaneçam vigentes e não se encerrem em um passado terminado e
inacessível; b) confrontação com a ideia que dicotomiza razão e emoção;
c) abertura para o que vem “do outro”, de modo a balançar o encerramento
capsular da concepção de indivíduo, tal como, em regra, se apresenta.
Paralelamente, em oposição ao que se poderia entender, é
importante perceber que as simultaneidades possibilitadas pelas novas
tecnologias, longe de inviabilizarem a legitimação de tais narrativas,
podem contribuir para que injustiças sejam reparadas, na medida em
que o aparente caos serviria para criar uma tensão produtiva,27 em
oposição a uma modernidade destituída de fundamentos. Em suma, se
não se consegue ver os próprios fantasmas é claro que eles estão vivos.
Nas palavras de Prigogine, não se pode prever o tempo (e
evidentemente a construção e solidificação de traços de memória sobre
violações a direitos fundamentais não garantem a nenhuma comunidade
que tais desrespeitos não se repitam), pois entende que o (que se entende
por) futuro permanece aberto, ligado como está a processos sempre
novos de transformação e de aumento de complexidade. Entretanto,
afirma o físico que o que entendemos por tempo não seria nem ilusão
nem dissipação, mas criação.28 Daí a possibilidade de que o surgimento
de narrativas possa, antes de despertar uma ideia de retorno, dentro
da concepção linear de tempo, evidenciar novas possibilidades para a
construção de elementos que busquem, na medida do possível, evitar
novas violações a direitos fundamentais.
27
PRIGOGINE, Ilya. O nascimento do tempo. Lisboa: Edições 70, 1999.
28
Idem. p. 72.
344
Vanessa Dorneles Schinke
Ademais, a noção de que os testemunhos desorganizariam
as estruturas da história linear das sociedades em que tais violações
ocorreram poderia ser substituída, ainda que gradualmente, pela
percepção de que tais relatos só podem ser apreciados pela própria ideia
de simultaneidade que conforma nossa sociedade. Essa coadunação,
assim, possibilitaria uma valorização do presente, com vistas a um futuro
de pleno respeito aos direitos humanos, sem representar um retorno a
um passado, deveras indesejável, em que pese o fato de tais categorias
de temporalidade apresentarem-se atualmente bastante problemáticas.
Com a descoberta de uma multiplicidade de tempos locais,
ultrapassado o tempo global caro a Newton, a ordem diferencial
da velocidade abre-nos as portas a uma complexificação, a um
enriquecimento dos três tempos. Ao “movimento” cronológico
– passado, presente, futuro – há que associar agora fenômenos
de aceleração e desaceleração, “movimento do movimento”,
mudanças de velocidade que se assemelham a fenômenos de
iluminação, a uma exposição da extensão e da duração da matéria
à luz do dia, uma “luz” que não anda afinal muito longe da dos
metafísicos. A ordem da velocidade (absoluta) é de fato uma
ordem da luz onde os três tempos clássicos são reinterpretados
num sistema que já não é exatamente o da cronologia.
O tempo, ordem de sucessão segundo Leibniz, torna-se
com Einstein ordem de exposição, sistema de representação de
um mundo físico onde futuro, presente e passado se convertem
em figuras conjuntas da subexposição, da exposição e da sobreexposição.29
Esse caminho, entretanto, não apresenta facilidades. Tal como
o pesquisador de Saramago que se perde entre arquivos no intento de
angariar informações, a ponto de tornar-se obrigatório o uso do fio
de Ariadne para quem desejasse desbravar os arquivos dos mortos, a
busca por outras narrativas depara-se com obstáculos que vão além da
organização de papéis e da instituição de datas comemorativas.30
29
VIRILIO, Paul. A inércia polar. Lisboa: Dom Quixote, 1993. p. 63.
“Cresceu com este episódio o desleixo, prosperou o abandono, multiplicou-se a incerteza, a ponto
de um dia se ter perdido nas labirínticas catacumbas do arquivo dos mortos um investigador que,
meses depois da absurda proposta, se apresentou na Conservatória Geral para efectuar pesquisas
30
Novas narrativas: a dificuldade de legitimação de novas vozes...
345
A ideia é de que não conceber voz a narrativas simultâneas
equivaleria a ter que transpor, de tempos em tempos, a parede de
fundo do arquivo dos mortos e dos vivos, já que o número crescente de
mortos, desaparecidos e narradores sem voz demandaria um espaço de
armazenamento cada vez maior. Por fim, curiosamente este texto não
está compartimentalizado em introdução, desenvolvimento e conclusão.
Referências
BAUMER, Franklin L. O Pensamento Europeu Moderno. Vila Nova de
Gaia. Edições 70, 1990. v. I. p. 56.
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literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Obras Escolhidas. V. I.
DAMÁSIO, Antônio R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro
humano. Portugal: Publicações Europa-América, 2000.
DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da
ideologia moderna. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: 1985.
heráldicas que lhe haviam sido encomendadas. Foi descoberto, quase por milagre, ao cabo de
uma semana, faminto, sedento, exausto, delirante, só sobrevivo graças ao desesperado recurso de
ingerir enormes quantidades de papéis velhos que, não precisando de ser mastigados porque se
desfaziam na boca, não duravam no estômago nem alimentavam. O chefe da Conservatória Geral,
que já mandara via à sua secretária o verbete e o processo do imprudente historiador para o dar por
morto, decidiu fazer vista grossa aos estragos, oficialmente atribuídos aos ratos, baixando depois
uma ordem de serviço que determinava, sob pena de multa e suspensão de salário, a obrigatoriedade
do uso do fio de Ariadne para quem de ir ao arquivo dos mortos.” SARAMAGO, José. Todos os
nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 15.
346
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DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos
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GAUER, Ruth M. Chittó. Transcendendo a dicotomia razão x emoção.
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Perspectiva, 2011.
VIRILIO, Paul. A inércia polar. Lisboa: Dom Quixote, 1993.
______. Velocidade e política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
Sobre os autores
Alessandro Martins Prado
Docente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS
(Unidade de Paranaíba). Mestre em Direito pelo Centro Universitário
Toledo de Araçatuba (SP).
Ana Carolina Guimarães Seffrin
Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS). Integrante do Grupo de Pesquisa Direito à Memória
e à Verdade e Justiça de Transição, coordenado pelo Professor Doutor
Jose Carlos Moreira da Silva Filho, na Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Carlos Augusto de Oliveira Diniz
Docente da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS
(Unidade de Paranaíba). Mestre em Direito pelo Centro Universitário
Toledo de Araçatuba (SP).
Carlos Bolonha
Professor Adjunto de Teoria do Estado da Faculdade de Direito
e do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade
350
Sobre os autores
Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Doutor em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ).
Cláucia Piccoli Faganello
Discente do curso de Administração: Gestão Pública –
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) – Bolsista de
Iniciação Científica (FAPERGS/UERGS). E-mail: [email protected].
Diego Oliveira de Souza
Acadêmico do nono semestre do curso de Licenciatura Plena
e Bacharelado em História da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), Técnico Administrativo do Ministério Público Federal no
Município de Santa Maria (RS). E-mail: [email protected].
Diorge Alceno Konrad
Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa
de Pós-Graduação em História da UFSM, com atuação na área de
História do Brasil, Pesquisador da Ditadura Civil-Militar Brasileira
(1964-1985), Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP.
E-mail: [email protected].
Sobre os autores
351
Eduardo Tergolina Teixeira
Pós-Graduado em Ciências Penais pela PUCRS. Mestrando
em Filosofia pela UNISINOS. Integrante do Grupo de Pesquisa Ética,
Política e Alteridade, coordenado pelo Professor Doutor Castor M. M.
Bartolomé Ruiz. Defensor Público Federal.
Evorah Lusci Costa Cardoso
Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP),
bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP) e
pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento (Cebrap).
Francisco Quintanilha Véras Neto
Professor Orientador de Pesquisa, Docente da Universidade
Federal do Rio Grande, ministra a disciplina de História do Direito,
para o curso de Direito. É professor do Programa de Pós-Graduação em
Educação Ambiental – PPGEA (FURG). É Doutor em Direito (UFPR),
líder do GTJUS – Grupo Transdisciplinar de Pesquisa Jurídica para a
Sustentabilidade. Tem experiência na área de Ciências Sociais Aplicadas
e Humanas, atuando principalmente nos seguintes temas: história
do direito, cooperativismo, relações internacionais, sociologia geral
e jurídica, fundamentos de educação ambiental, justiça ambiental e
direitos humanos. E-mail: [email protected].
352
Sobre os autores
Íris Pereira Guedes
Discente do curso de Ciências Sociais e Jurídicas – Centro
Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). E-mail: irispguedes@
gmail.com.
Jânia Maria Lopes Saldanha
Doutora em Direito. Professora do Programa de Pós-Graduação e
do Curso de Direito da UNISINOS e Professora Adjunta da Universidade
Federal de Santa Maria. Advogada. E-mail: [email protected].
Luigi Bonizzato
Professor Adjunto de Direito Constitucional da Faculdade
de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Doutor em
Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Luís Fernando Matricardi Rodrigues
Mestrando em Direito pela Universidade de Munique (LMU).
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado.
Sobre os autores
353
Márcio Moraes Brum
Graduando do sexto semestre do Curso de Direito da Universidade
Federal de Santa Maria e membro do Comitê Santa-Mariense de Direito
à Memória e à Verdade. E-mail: [email protected].
Natália Centeno Rodrigues
Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal do Rio
Grande e Bacharel em História, pela mesma instituição. É pesquisadora
da linha de Direitos Humanos e Fundamentais do Grupo Transdisciplinar
de Pesquisa Jurídica para a Sustentabilidade (GTJUS) e integrante do
grupo de pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (GPHCCRIM),
os dois sediados na FURG. É aluna especial do Mestrado em Ciência
Política (UFPel). Desenvolve atividades como Bolsista de Iniciação
Científica PROBIC/FAPERGS no projeto intitulado “Justiça Efetivada
pela reanálise da Lei de Anistia: Em Busca da Memória do Período
Ditatorial Brasileiro”, sob orientação do Professor Doutor Francisco
Quintanilha Véras Neto. E-mail: [email protected].
Rafaela da Cruz Mello
Graduanda do sexto semestre do Curso de Direito da Universidade
Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected].
354
Sobre os autores
Ricardo Silveira Castro
Aluno do quarto semestre da Faculdade de Direito da PUCRS;
Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPQ, orientado pelo Professor
José Carlos Moreira da Silva Filho. E-mail: ricardo.castro.001@acad.
pucrs.br.
Robert Rigobert Lucht
Aluno de graduação do nono semestre da Faculdade de
Direito/UFRGS e integrante do grupo de pesquisa de Ciência
Penal Contemporânea, da Faculdade de Direito/UFRGS. O artigo
apresentado decorre de pesquisa, em andamento, sob o título “Justiça
Democrática de Transição – Políticas da Memória, Direitos Humanos
e Direito Internacional Penal” (CNPq–UFRGS). E-mail: robert.lucht@
terra.com.br.
Roberta Cunha de Oliveira
Mestre no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais
da PUCRS, na linha de Violência, Crime e Segurança Pública, bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), integrante do grupo de pesquisa Direito à Verdade e à Memória
e Justiça de Transição (PUCRS), integrante do Grupo de Estudos sobre
Internacionalização do Direito e Justiça de Transição (Idejust). E-mail:
[email protected].
Sobre os autores
355
Rodrigo Andrés González-Fuente Rubilar
Licenciado en Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad de
Concepción (Chile). Abogado. Máster en Derecho de la Georg-AugustUniversität de Göttingen (Alemania). Actualmente Doctorando de la
Georg-August-Universität de Göttingen (Alemania). Docente en Derecho
Penal en la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad
de Concepción (Chile). E-mail: [email protected].
Rodrigo Deodato de Souza Silva
Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco
(UNICAP). Bolsista de Mestrado Sanduíche do Programa Nacional
de Cooperação Acadêmica (PROCAD/CAPES), junto à Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Conselheiro Consultivo do
Grupo de Pesquisa sobre Internacionalização do Direito e Justiça de
Transição (IDEJUST), iniciativa do Instituto de Relações Internacionais
da Universidade de São Paulo (USP), com a Comissão de Anistia
do Ministério da Justiça. Assessor Jurídico em Direitos Humanos
Internacionais do Programa DHI, do Gabinete de Assessoria Jurídica
às Organizações Populares (GAJOP), ONG de Direitos Humanos com
Status Consultivo Especial junto ao ECOSOC das Nações Unidas.
Membro da Coordenação Executiva do Comitê Estadual de Memória,
Verdade e Justiça de Pernambuco. E-mails: [email protected] e
[email protected].
Rodrigo Lentz
Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Graduado em Ciências Jurídicas
356
Sobre os autores
e Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Advogado. E-mail: [email protected].
Tiéli Zamperetti Donadel
Graduanda do quinto semestre do Curso de Direito da
Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected].
Vanessa Dorneles Schinke
Doutoranda em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Docente e pesquisadora na
linha de Violência, Crime e Segurança Pública. Mestre em Direito pela
Universidade de Brasília. E-mail: [email protected].
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